Você está na página 1de 2

ESTEREÓTIPO: AMEAÇA INVISÍVEL

Revista Ciência Hoje


Lucas Mascarenhas de Miranda
Físico e divulgador de ciência
Universidade Federal de Juiz de Fora

Crença infundada de que mulheres têm menos habilidades do que homens em algumas
áreas, como matemática e orientação espacial, pode levar à falta de representatividade do
gênero no ambiente dos jogos digitais e até prejudicar o desempenho das jogadoras.
É comum ouvirmos o argumento de que mulheres não gostam de jogos digitais, ou pelo
menos não gostam de jogos muito competitivos e violentos, para justificar a presença massiva
de homens nos cenários amador e profissional de games. Mas será que isso é verdade?
Segundo pesquisas da Associação de Softwares de Entretenimento, desde 2008, as
mulheres já representam pelo menos 40% do público que joga jogos digitais nos Estados Unidos.
Outros países também vêm reportando uma porcentagem similar, entre 40% e 49% de presença
feminina nesses jogos.
Mas, no cenário profissional, a disparidade no número de homens e mulheres é grande.
Surge então o argumento de que mulheres não seriam tão boas em jogos competitivos e, por
isso, não alcançariam posições de destaque. Essa e outras ideias passaram a compor um
estereótipo do gênero feminino, que o coloca em posição inferior ao masculino nos jogos e em
outras atividades.
Durante muito tempo, houve até justificativa biológica para fundamentar essa
inferiorização. Pesquisas indicavam que homens se saíam melhor em testes de orientação
espacial e outras habilidades matemáticas, o que levou à conclusão de que as mulheres não
teriam boa orientação espacial nem bom senso de direção e, em última instância, não teriam
habilidades matemáticas.
Na época, cientistas acreditavam que havia uma diferença no cérebro de homens e
mulheres que seria responsável por essa desigualdade de performance. Essa justificativa fez
tanto sucesso que até hoje inúmeras pessoas acreditam que mulheres não são ‘boas’ em
orientação espacial, em ciências exatas e até em jogos, devido a uma diferença biológica inata
e invariável.
Esse estereótipo – de que mulheres são menos capazes do que homens em algumas
atividades – ganhou um ar científico e tornou-se quase irrefutável. Assim, construiu-se a ideia
de que não havia necessidade de incentivar as mulheres a seguirem determinadas carreiras e
até buscarem formas de lazer em que tivessem contato com habilidades espaciais e
matemáticas, já que sua natureza biológica as limitava.

Exclusão na cultura gamer

Como a imagem do jogador é frequentemente associada ao homem jovem e


heterossexual, a indústria de jogos continua produzindo conteúdos para agradar a esse público-
alvo. Na prática, isso significa ausência de personagens femininas e, quando elas existem,
ocupam papéis secundários e frequentemente são retratadas de forma muito sexualizada e
como vítimas de agressões no jogo. Essa falta de representatividade feminina gera nas mulheres
um baixo senso de pertencimento às comunidades gamers e faz com que elas tenham
dificuldade de se identificar com o mundo dos jogos.
Um relato comum entre as mulheres é que, quando estão jogando, seus erros são
atribuídos ao fato de serem mulheres, enquanto erros cometidos por homens tendem a ser
atribuídos à inexperiência do jogador, a um equívoco específico, ao fato de não ouvir opiniões
dos colegas e a não saber jogar em time. Qualquer equívoco é usado para justificar a tese de
que mulheres são inferiores aos homens nos jogos.
Essa posição de inferioridade é reforçada por uma prática existente nos jogos digitais –
assim como em outros esportes – chamada trash-talk, que se caracteriza por uma série de
insultos e provocações entre adversários para intimidar o oponente, elevar a confiança da sua
própria equipe ou comemorar uma vitória. Essa prática, que está muito enraizada na cultura dos
jogos on-line e compõe o próprio estereótipo do gamer e o que se acredita ser ‘o jeito certo de
jogar’, vem servindo de desculpa para a expressão de falas machistas – e também racistas e
LGBTQfóbicas.
O discurso de ódio contra mulheres – e pessoas negras e LGBTQ+ – acaba provocando
nelas um efeito de dessensibilização. Como mostrou uma pesquisa de 2019 com negros vítimas
de racismo em jogos, assim como as pontas dos dedos de um violonista ficam calejadas
(enrijecidas e sem sensibilidade) devido às constantes lesões provocadas pela corda do violão,
a pessoa que é vítima de preconceitos incessantes tende a se dessensibilizar, para aguentar as
violências diárias e poder continuar jogando.
Todas essas experiências negativas, somadas à falta de representatividade feminina
dentre os jogadores profissionais (e dentro dos próprios jogos), afasta as mulheres desse
universo e pode explicar o maior número de homens nas comunidades gamers (seja em jogos
casuais, seja em jogos competitivos).

Você também pode gostar