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Conceitos e História da Biogeografia

Chapter · December 2017

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Lígia Haselmann Apostólico


University of São Paulo
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Lígia H. Apostólico

A Biogeografia é uma ciência complexa e desafiadora que abrange ideias de diversas áreas
do conhecimento. Neste capítulo, apresento um resumo de seu desenvolvimento como disciplina,
desde os primeiros pensamentos a respeito da distribuição dos seres vivos até seus avanços nas
últimas décadas. Aqui também serão introduzidos alguns conceitos básicos, necessários para o
entendimento da formação desta ciência e para a compreensão dos próximos capítulos.

Ao longo da história, filósofos e naturalistas intrigaram-se com a distribuição dos seres vivos.
Destaques da ciência, como Carolus Linnaeus (1707-1778), Charles Robert Darwin (1809-1882) e
Alfred Russel Wallace (1823-1913), formularam hipóteses que buscavam responder questões como:
Por que uma espécie vive em determinada área? O que levou esta espécie a viver neste local, mas
não em outros? Por que algumas espécies são restritas a determinado local, enquanto outras
colonizaram áreas tão distantes? Por que há muito mais espécies nos trópicos do que nas regiões
temperadas e polares?
Essas questões, assim como muitas outras que podem ser formuladas nesse contexto, levaram
ao surgimento de uma ciência a qual busca compreender os padrões de distribuição das espécies e
os processos responsáveis por estes padrões – a Biogeografia. Esta é uma ciência complexa que
utiliza informações e teorias de outras disciplinas, como a Geografia, Geologia, Ecologia,
Paleontologia e Sistemática Filogenética, para documentar e entender os padrões de distribuição dos
organismos, tanto no espaço, quanto no tempo.
Neste capítulo, serão apresentados os principais conceitos e processos biogeográficos, os
quais são fundamentais para a compreensão de como o pensamento biogeográfico se modificou ao
longo do tempo. Será apresentado também um breve histórico do desenvolvimento da Biogeografia,
desde as ideias criacionistas até os dias atuais, incluindo os paradigmas, escolas, autores e principais
hipóteses que contribuíram para sua formação como ciência.

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Principais eventos históricos em Biogeografia

Há três processos ou eventos históricos básicos capazes de explicar a distribuição geográfica


dos seres vivos: extinção, dispersão e vicariância. A extinção (Figura 10.1A), dentre os três
conceitos, é o mais simples, podendo ser entendido como o desaparecimento total de um táxon.
A dispersão pode ser compreendida como a transposição de uma barreira pré-existente por
indivíduos e a posterior colonização de uma nova área (Figura 10.1B). Para entendermos melhor tal
processo, podemos começar com uma população que vive em uma determinada região. Imagine,
então, que alguns indivíduos desta população original, nesse caso ancestral, são capazes de
ultrapassar alguma barreira pré-existente (um rio ou uma cadeia de montanhas, por exemplo) e, ao
sobrepor essa barreira,
colonizam uma nova área.
Assim, veríamos que a
população original teria se
fragmentado em duas, agora
separadas pela barreira. Como
resultado deste processo, ao
longo do tempo, estas duas
populações podem se tornar
duas espécies distintas, devido
às diferenças acumuladas
entre elas por viverem sob

Figura 10.1. Principais processos (eventos históricos) em Biogeografia: (A)


condições e pressões seletivas
extinção, (B) dispersão e (C) vicariância. distintas.
O terceiro processo
biogeográfico é a vicariância (Figura 10.1C). A diferença fundamental entre dispersão e vicariância
consiste na idade da barreira em relação aos táxons (Figuras 10.1B-C). No caso da vicariância, há o
aparecimento de uma barreira que separa a população original em duas ou mais populações,
isolando-as. Nesse caso, a barreira possui a mesma idade dos táxons resultantes (Figura 10.1C). Já
no modelo de dispersão, ocorre a transposição de uma barreira pré-existente por uma parcela da
população original. Nesse caso, portanto, a barreira é mais antiga do que os táxons. Assim,
podemos definir o processo de vicariância como o surgimento de uma barreira capaz de fragmentar
a distribuição da população original. Essa fragmentação pode, como consequência, isolar as duas
populações e, assim como no caso da dispersão, resultar no aparecimento de duas espécies distintas.

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É interessante ressaltar que o termo “barreira biogeográfica” não está limitado a barreiras
geológicas, como o soerguimento de uma cadeia de montanhas (como ilustrado na Figura 10.1C) ou
a separação dos continentes. Qualquer aspecto biótico ou abiótico – seja ele geográfico, ecológico
(competição, predação, comportamento), fisiológico (temperatura, profundidade) – que restrinja o
movimento ou interação entre populações em diferentes ambientes é considerado uma barreira
biogeográfica.

Tipos de especiação

A fragmentação de uma espécie ancestral em duas ou mais populações devido à presença de


alguma barreira entre elas – seja ela resultante do processo de vicariância ou dispersão – é um
fenômeno crucial para os estudos biogeográficos. Além de resultar na alteração da distribuição
espacial da espécie ancestral, o isolamento geográfico pode ser responsável por alterações na
história evolutiva do táxon ao longo do tempo. Isso porque, como explicado na seção anterior,
eventos de dispersão e vicariância podem resultar, ao longo do tempo, em um acúmulo de
diferenças entre as populações que se apresentam isoladas pela barreira. O acúmulo pode, por sua
vez, levar à diferenciação entre elas e ao surgimento de espécies distintas a partir de uma única
espécie ancestral, processo o qual denominamos especiação. Esses processos são similares aos
conceitos de anagênese e cladogênese utilizados na Sistemática Filogenética. A modificação após o
isolamento de uma população, ou seja, em um ramo filético, é considerado anagênese, enquanto a
fragmentação de uma população devido a eventos de vicariância ou dispersão é denominado
cladogênese.
A forma mais conhecida de especiação é a especiação alopátrica, a qual se caracteriza pela
ocorrência de dois processos: isolamento geográfico e isolamento reprodutivo. Assim, para que a
especiação alopátrica ocorra, é necessário que uma população ancestral, originalmente distribuída
em toda uma área (cosmopolitismo ancestral), seja geograficamente isolada em duas ou mais
subpopulações. Esse isolamento entre subpopulações interrompe o fluxo gênico entre elas, podendo
ocasionar isolamento reprodutivo. Como resultado deste isolamento, essas subpopulações podem
acumular cada vez mais diferenças entre si, levando à incompatibilidade genética e ao
estabelecimento de espécies distintas.
Apesar de a especiação alopátrica ser o modo mais simples de se entender o processo de
especiação, hoje sabe-se que a divergência de uma população em duas subpopulações (e,
posteriormente, em duas espécies distintas) não requer isolamento geográfico. Nesse caso, quando
há uma região de contato entre as subpopulações, a especiação pode ocorrer por dois processos:
parapatria e simpatria.
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A especiação parapátrica ocorre quando as distribuições das duas subpopulações são
adjacentes. Já quando a especiação ocorre entre subpopulações com distribuições sobrepostas, que
convivem em uma mesma área, esta é chamada especiação simpátrica. Essa forma de especiação é
comumente associada a eventos de seleção disruptiva, nos quais as pressões do ambiente são
capazes de selecionar indivíduos portadores de fenótipos extremos, gerando dois grupos dominantes
na população – cada um deles adaptado a um conjunto diferente de fatores abióticos ou bióticos.
Essa forma de seleção pode, progressivamente, dividir a população, reduzir o fluxo gênico entre as
subpopulações e resultar em especiação.

Biogeografia Histórica e Ecológica

Tradicionalmente, a Biogeografia foi dividida em duas subdisciplinas, Biogeografia


Ecológica e Histórica, as quais são caracterizadas principalmente quanto às escalas de tempo e
espaço que abordam. A Biogeografia Ecológica analisa padrões em nível de população ou espécie,
em escalas curtas de tempo e espaço, buscando relacionar os padrões de distribuição dos seres vivos
com fatores bióticos e abióticos – tais como topografia, latitude, clima, tipo de solo, taxas de
predação ou competição – e entender como esses fatores alteram ou mantêm a distribuição atual dos
organismos em seus ambientes. Já a Biogeografia Histórica – a qual será contemplada com mais
detalhes neste capítulo – preocupa-se em analisar padrões em nível de espécies ou táxons
supraespecíficos, em escalas temporais e espaciais maiores. O principal interesse dessa abordagem
está relacionado a processos históricos que ocorrem por longos períodos de tempo e ao
entendimento de como estes são responsáveis pelos padrões biogeográficos atuais. Contudo, deve-
se ressaltar que essa divisão é artificial, meramente didática e mascara a complexidade da
disciplina.

História da Biogeografia

Biogeografia Pré-Evolutiva

Os primeiros questionamentos relacionados à origem e distribuição dos seres vivos datam de


séculos atrás, em um período no qual os pensamentos eram enraizados em explicações religiosas e
no que estava escrito nas antigas escrituras bíblicas, sem qualquer fundamento científico. Alguns
dos questionamentos mais antigos dos quais se tem conhecimento aparecem no Livro do Gênesis,
no Antigo Testamento. Neste livro, existem as primeiras ideias de centro de origem e dispersão – os

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primeiros conceitos biogeográficos –, mencionados três vezes. A primeira menção ocorre no mito
do Jardim do Éden, onde Deus teria criado todos os animais, plantas e o primeiro casal humano.
Após o pecado original, o homem, animais e plantas teriam se dispersado, a partir do Éden, e
colonizado outras áreas. O segundo caso é o mito da Arca de Noé, segundo o qual, após o dilúvio, a
arca teria desembarcado no monte Ararat (atual território Turco) e, a partir de lá, o homem e todos
os animais e plantas mantidos na arca teriam colonizado o restante do mundo. E, finalmente, a
terceira menção aparece no mito da torre de Babel, com a história da diversificação dos povos e
línguas.
Durante o século XVIII, o pensamento da época permanecia baseado nas explicações
religiosas propostas pela Igreja. Foi nesse período em que viveu o primeiro nome de destaque no
contexto histórico deste capítulo: Linnaeus. Ele é primeiramente reconhecido por sua contribuição
na área da Biologia, com a criação da nomenclatura binominal e do sistema de classificação de
seres vivos, ambos utilizados até os dias de hoje. Além disso, sua curiosidade a respeito do mundo
natural também o fez indagar sobre a origem e a distribuição dos seres vivos na Terra. Conterrâneo
aos pensamentos da época, Linnaeus baseou-se no mito do Jardim do Éden para hipotetizar que
todas as formas de vida haviam surgido em uma montanha paradisíaca, localizada próxima ao
Equador (i.e., ideia de centro de origem), e depois se dispersado pelo restante do mundo. De acordo
com a explicação de Linnaeus, cada espécie estaria adaptada a determinada condição climática na
montanha e, após sua dispersão, habitaria regiões com condições similares no planeta. Seguindo
essa lógica, organismos adaptados às regiões mais frias de altitude da montanha se dispersariam
para áreas frias do planeta, enquanto que aqueles que habitavam as regiões menos elevadas da
montanha se dispersariam para as regiões mais quentes. Segundo Linnaeus, essa mesma lógica
explicaria a dispersão dos seres vivos a partir do Monte Ararat, local onde, segundo o mito biblíco
do dilúvio, a Arca de Nóe teria desembarcado. As ideias de Linnaeus a respeito da distribuição
geográfica dos seres vivos foram apresentadas em uma publicação denominada Oratio de Telluris
Habitabilis Incremento em 1744.
O século XVIII foi ainda marcado pelas grandes viagens exploratórias realizadas pelos
naturalistas, as quais permitiram o vislumbre da enorme diversidade de espécies de plantas e
animais, desconhecidas até então. Com o início das descrições mais detalhadas sobre a distribuição
dos seres vivos, os naturalistas da época começaram a se indagar sobre a veracidade das ideias
criacionistas e a buscar explicações para entender o que gerava tais padrões de distribuição nas
diferentes regiões da Terra.
Neste contexto, o naturalista George-Louis Leclerc, o Conde de Buffon (1707-1788), foi o
primeiro a se opor às ideias de seu contemporâneo, Linnaeus. Buffon observou que diferentes áreas
tropicais do mundo, mesmo aquelas com condições ambientais e climáticas similares, eram
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habitadas por espécies de mamíferos completamente distintas. Segundo Leclerc, a origem dos seres
vivos deveria ter ocorrido em regiões próximas ao norte da Europa, e não próxima aos trópicos.
Ainda com essa hipótese, Leclerc defendia que, ao longo do processo de dispersão pelo globo, as
espécies se modificavam mais quanto mais distantes de seu centro de origem. Essa ideia permitiu a
formulação do primeiro princípio biogeográfico, conhecido como Lei de Buffon, o qual postulava
que as diferentes regiões da Terra, apesar de compartilharem determinadas características, seriam
habitadas por diferentes espécies de plantas e animais.
O alemão Johann Reinhold Forster (1729-1798) foi outro naturalista de destaque na época. Ao
longo de suas viagens exploratórias pelo mundo, Forster coletou milhares de espécies de plantas
não descritas até então e comprovou que a Lei de Buffon aplicava-se não somente aos mamíferos,
mas também às plantas e a outros animais. Por meio de suas observações, ele descreveu ainda os
gradientes latitudinais de diversidade, salientando o aumento da riqueza de espécies em direção às
baixas latitudes, em regiões tropicais.
Conterrâneo de J. Forster, Alexander von Humboldt (1769-1859) foi outro naturalista
importante para o desenvolvimento da Biogeografia, que, depois de suas viagens exploratórias pelo
mundo, generalizou ainda mais a Lei de Buffon para incluir plantas e a maioria dos animais
terrestres conhecidos até então. Seu principal destaque, porém, foi resultado de sua ideia de escalar
mais de 5800 metros para chegar ao topo do vulcão Chimborazo, localizado no Equador, durante
uma de suas expedições à América do Sul. Graças a este feito, Humboldt observou que a riqueza de
espécies de plantas diminuía conforme se aumentava a altitude. Segundo ele, existiam faixas de
distribuição ao longo das diferentes altitudes, ou uma sucessão altitudinal – similares ao gradiente
latitudinal de diversidade proposto por Forster –, as quais ele denominou zonas fisionômicas.
Durante o século XIX, o botânico suíço Augustin Pyramus de Candolle (1778-1841),
inspirado nos trabalhos de Humboldt, teve grande contribuição para a consolidação da Biogeografia
como ciência. A ele pode ser atribuída, por exemplo, a primeira distinção entre Biogeografia
Ecológica e Histórica quando em 1820 cunhou, respectivamente, os termos ‘estações’ e
‘habitações’. Segundo ele, o primeiro termo se referia às causas físicas atuantes no presente,
essencialmente ao clima e à topografia. Já o segundo termo estaria relacionado às causas externas,
que ocorreram no passado, principalmente circunstâncias geográficas e geológicas.
Os conceitos formulados por de Candolle foram a primeira tentativa de explicar os fatores que
levariam os organismos a se distribuírem em determinados locais, mas não em outros. Com essa
linha de pensamento, esse autor observou que algumas espécies de planta apresentavam uma
distribuição muito ampla, podendo ser encontradas em quase todas as regiões do planeta, enquanto
outras estavam restritas a regiões singulares. Foi assim que, a partir dessas observações, de
Candolle formulou o conceito de endemismo – usado para designar espécies restritas a uma única
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região e um dos conceitos centrais da Biogeografia Cladística (veja Capítulo 11) – e também uma
das primeiras propostas de classificação do planeta em regiões biogeográficas de acordo com as
espécies encontradas.

Biogeografia Evolutiva

A escola da Biogeografia Evolutiva teve seu surgimento a partir das ideias de dois famosos
naturalistas ingleses, Darwin e Wallace. Darwin e sua teoria da evolução por meio da seleção
natural, além de sua indiscutível contribuição à Biologia, teve também implicações para a
Biogeografia. Antes do surgimento desse pensamento, os naturalistas da época limitavam suas
explicações às descrições dos padrões de distribuição observados, sem destacar a questão do tempo,
de forma que as explicações levavam em consideração principalmente aspectos ecológicos, mas não
históricos. Assim, ao contrário da ideia fixista, de que as espécies seriam imutáveis, as ideias de
Darwin permitiram combinar a teoria da evolução com o modelo de dispersão dos táxons. No
entanto, apesar de Darwin e Wallace preocuparem-se com a distribuição dos organismos, ambos
mantiveram as ideias a respeito de centros de origem e de dispersão como única força motora de
diversificação (paradigma dispersalista).
Wallace foi conhecido, principalmente, por ter proposto a teoria da evolução por seleção
natural concomitantemente a Darwin. Na área da Biogeografia, Wallace é reconhecido como o pai
da Zoogeografia, devido a sua proposta de regionalização do mundo em zonas zoogeográficas. Essa
proposta foi baseada no trabalho do ornitólogo britânico Philip Sclater (1829-1913), publicado em
1858. Baseado na composição de espécies de aves nas diferentes áreas do globo, Sclater reconheceu
a existência de duas grandes divisões, ou “locais de criação” – Velho e Novo Mundo –, as quais
eram subdivididas em seis regiões biogeográficas. Em 1876, Wallace expandiu o número de regiões
biogeográficas propostas por Sclater após a inclusão de outros grupos animais além das aves. As
regiões biogeográficas estabelecidas por Wallace são reconhecidas até hoje.
Além disso, durante sua expedição às ilhas malaias, Wallace observou a existência de uma
delimitação entre as ilhas do leste e do oeste do arquipélago quanto à distribuição das espécies.
Segundo ele, a fauna das ilhas a oeste era muito semelhante àquela encontrada na Ásia, enquanto
que as espécies das ilhas a leste eram mais similares às espécies que habitavam a Austrália. Essa
delimitação imaginária entre leste e oeste ficou conhecida como Linha de Wallace e é aceita pelos
zoogeógrafos desde então.
Os autores da escola da Biogeografia Evolutiva fundamentavam-se na ideia de centros de
origem, definidos como centros geradores de fauna e flora, a partir dos quais as espécies poderiam
se dispersar para novas áreas. Para esses autores, o centro de origem deveria ser o local onde
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estariam distribuídas as espécies de origem mais recente (mais derivadas), as quais poderiam levar
ao deslocamento de espécies mais antigas para regiões mais periféricas devido à competição por
recursos. Essa ideia é oposta ao que hipotetizava a lei de Buffon. Além disso, o centro de origem
seria o local com maior diversidade de espécies, uma vez que, por ser o local mais antigo, deveria
conter o maior número de espécies viventes. Como veremos nas próximas seções deste capítulo, o
conceito de centro de origem sofreu mudanças conceituais drásticas ao longo do tempo,
principalmente durante o predomínio da escola da Biogeografia Filogenética.
Ao longo do século XIX, as ideias dos dispersalistas foram contrariadas por autores como
Joseph Hooker (1817-1911) e John Willis (1868-1959), os quais consideravam que seria pouco
provável que eventos de dispersão de longo alcance pudessem explicar os padrões de distribuição
observados até então. Esse novo grupo, conhecido como extensionistas, defendia a ideia de que, em
tempos remotos, existiram pontes intercontinentais conectando todos os continentes atuais. Para
eles, estas pontes, submersas pelos oceanos nos tempos atuais, seriam a fonte de explicação mais
adequada para entender a distribuição disjunta de muitos grupos em continentes atualmente
separados. No entanto, as ideias extensionistas entraram logo em descrédito, e o dispersalismo foi
resgatado como única explicação possível para os autores do início do século XX.

Biogeografia Filogenética

O entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1976), conhecido como o pai da Sistemática


Filogenética, teve papel de destaque também no campo da Biogeografia. Suas ideias permitiram
unificar hipóteses filogenéticas aos estudos dos padrões biogeográficos no espaço e demonstraram
que árvores filogenéticas poderiam ser uma ferramenta poderosa para ajudar no entendimento
desses padrões para grupos de interesse.
Hennig, assim como os demais autores de sua época, ainda defendia que a dispersão seria a
única hipótese plausível para explicar a distribuição das espécies que se encontravam distantes dos
centros de origem. No entanto, ao contrário dos autores pertencentes à Escola Evolutiva, Hennig
postulava que nos centros de origem deveriam ser encontrados os representantes mais primitivos do
táxon, e não os mais derivados (Figura 10.2). Para ele, existiria uma progressão entre
ocupação/colonização de áreas, similar à progressão de caracteres no cladograma, ou seja, as áreas
habitadas por espécies mais primitivas seriam as áreas mais antigas (ou mais ancestrais) de
ocorrência do táxon (i.e., centros de origem), enquanto as áreas habitadas pelas espécies mais
derivadas seriam, por consequência, as áreas mais recentes de ocorrência do táxon e mais distantes
dos centros de origem. Essa regra, conhecida como Regra da Progressão (Figura 10.2A), foi uma
importante contribuição à Biogeografia Filogenética.

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Figura 10.2. Definições de centro de origem. (A) De acordo com a escola da Biogeografia Filogenética; a história da
área coincide com a história do táxon (área de ocorrência mais antiga ou ancestral do táxon, espécies mais primitivas vs.
áreas de ocorrência mais recente do táxon, espécies mais derivadas). (B) De acordo com a Escola Evolutiva; a história
da área não coincide com a história do táxon (área mais antiga, espécies mais derivadas). As setas representam o sentido
da dispersão dos organismos de acordo com as premissas de cada escola. CO = Centro de origem.

Pan-biogeografia e o conceito de vicariância

“Vida e terra evoluem juntas”. O autor desta frase, o botânico Léon Croizat (1894-1982), foi
um dos principais críticos às explicações dos dispersalistas e ao conceito de centros de origem. Para
Croizat, não parecia sensato acreditar que padrões semelhantes de distribuição de diferentes
organismos estivessem ligados a histórias independentes de dispersão. A dispersão seria um evento
que dependia do acaso e também da capacidade de dispersão de cada espécie, de forma que era
mais lógico assumir que os padrões observados seriam consequência de histórias compartilhadas,
causadas por respostas similares às modificações da superfície do planeta. Defensor de que as
barreiras geográficas evoluem juntamente com as biotas, Croizat acreditava que a teoria de
Wegener de deriva continental explicava de forma satisfatória padrões antigos de distribuição de
biotas, mas seria insuficiente para explicar os eventos geológicos associados aos padrões de
distribuição geográficos complexos e mais recentes.
O conceito central formulado por Croizat para explicar a evolução das biotas foi o chamado
“form-making process” – termo que pode ser entendido como o processo de mudança de forma ao
longo do tempo, mas incluindo, nesse caso, a importância de movimento no espaço. Para a
ocorrência desse processo, Croizat defendia que deveria existir um estágio de mobilidade, o que
permitiria que as espécies expandissem sua distribuição, e um estágio de imobilidade, resultado do
processo de vicariância. A partir dessa lógica, o autor defendia que uma espécie ancestral deveria
estar amplamente distribuída (cosmopolitismo ancestral) em determinada área. Para ele, eventos
vicariantes—tais como o surgimento de lagos, montanhas ou vulcões—seriam responsáveis pela

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fragmentação da área de distribuição da população original e resultariam, dessa forma, em
processos de especiação alopátrica, ou seja, de diferenciação em novas espécies. Em oposição ao
modelo de evolução por seleção natural de Darwin, Croizat enfatizava a importância dos eventos
vicariantes para a mudança de forma (form-making process) ao longo do tempo.
Croizat foi também fundamental para o desenvolvimento da Biogeografia com a criação da
Pan-biogeografia. Nesta, a dimensão geográfica ou espacial da biodiversidade é fundamental para
permitir o entendimento dos padrões de distribuição. Esse método inteiramente novo baseia-se na
construção de ‘traços individuais’ para cada espécie de interesse. Esses traçados são simplesmente
linhas no mapa que conectam todas as localidades onde a espécie já foi encontrada por uma
distância mínima, ou conforme a teoria dos grafos em uma representação matemática denominada
de “miminum spanning tree”. A partir dos traços individuais de diferentes espécies é possível obter
‘traços generalizados’ (os quais, entre outras interpretações, representam biotas ancestrais) nos
locais onde há sobreposição de dois ou mais traços individuais, e ‘nós’, nos locais onde traços
generalizados se sobrepõem, representando áreas com grande complexidade biológica.
Quando Croizat formulou a Pan-biogeografia, alguns cientistas de sua época levaram em
consideração suas contribuições. No entanto, Croizat era alvo de críticas de muitos de seus
contemporâneos, não somente pela falta de credibilidade científica de algumas de suas análises, mas
também devido a sua personalidade e ao estilo de escrita e linguagem pouco ortodoxos de seus
trabalhos, os quais continham, com frequência, críticas a outros autores. Esses fatores acabaram por
surtir um efeito negativo sobre suas ideias, as quais foram ignoradas ou desacreditadas por grande
parte da comunidade científica da época.

Biogeografia Cladística

Já no final do século XX, três pesquisadores americanos, Gareth Nelson, Donn Eric Rosen e
Norman Platnick aliaram os princípios de Sistemática Filogenética, Pan-biogeografia e da então
moderna teoria da tectônica de placas (deriva continental de Wegener), criando o que ficou
conhecido como Biogeografia Cladística ou de Vicariância. Apesar da oposição feita por Croizat –
o qual, além de não aceitar as ideias da Sistemática Filogenética defendidas por Hennig, havia
publicado comentários negativos sobre o autor e suas propostas em um de seus trabalhos –, os
autores uniram os conceitos de ambos os pesquisadores em uma nova linha de pensamento que
assumia a existência de uma correspondência entre os relacionamentos filogenéticos e a distribuição
geográfica. Segundo os métodos de Biogeografia Cladística, se compararmos cladogramas de área
derivados de cladogramas de táxons de diferentes grupos que habitam determinada região, seria
possível reconhecer o padrão geral de fragmentação da biota, e consequentemente da área, nas
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regiões analisadas e, assim, obter um cladograma geral da área (para mais detalhes sobre
cladogramas gerais de área, ver Capítulo 11).

Wegener e a deriva continental

Em 1912, o meteorologista alemão Alfred Wegener (1880-1930) propôs a ideia de que


todos os continentes atuais estiveram conectados, em tempos passados (durante o final do
Paleozoico e início do Mesozoico), como um único supercontinente, o qual ele denominou
Pangeia. Segundo Wegener, a Pangeia teria se fragmentado em dois continentes, Gondwana e
Laurásia, os quais, por sua vez, fragmentaram-se em América do Norte e Eurásia e em Índia,
Austrália, Antártica, África e América do Sul, respectivamente.
Wegener foi o primeiro autor a sugerir o movimento dos continentes, o qual ficou
conhecido como deriva continental. Ele baseou suas conclusões em um conjunto de observações
a respeito da similaridade entre continentes que, nos tempos atuais, estão separados por milhares
de quilômetros. Dentre as evidências reunidas por Wegener, merecem destaque suas
observações sobre as semelhanças quanto ao registro fóssil de espécies vegetais e animais e
quanto à distribuição de depósitos glaciais e de carvão em continentes hoje separados, além da
congruência entre as linhas de costa da África e América.
Infelizmente, as ideias de Wegener foram desacreditadas, uma vez que na época não havia
explicação causal que sustentasse sua hipótese, i.e., como os continentes moviam-se. As ideias
de Wegener só foram aceitas a partir da década de 1960, quando o geofísico americano Harry
Hess (1906-1969) demonstrou evidências geológicas sobre a tectônica de placas, evidenciadas
pela expansão do substrato oceânico e por técnicas de paleomagnetismo, as quais permitiram o
entendimento dos mecanismos responsáveis pelo movimento dos continentes. A comprovação
da tectônica de placas trouxe avanços extraordinários à Biogeografia, permitindo uma nova
visão para explicar os padrões de distribuição dos seres vivos em nosso planeta.

Quadro 1. Wegner e a Deriva Continental

As obras de Nelson e Platnick foram fundamentais para a Biogeografia atual. Somente com o
surgimento da Biogeografia Cladística foi possível integrar os conhecimentos de tectônica de placas
(a deriva continental de Wegener), da Sistemática Filogenética de Hennig e o conceito de
vicariância, possibilitando associar de maneira mais precisa o relacionamento filogenético dos
táxons, seus padrões de distribuição e a história evolutiva do planeta.
A emergência da Biogeografia como ciência nas últimas décadas pode ser atribuída a um

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conjunto de transformações, não somente conceituais, mas também relacionadas à aplicação de
novas metodologias e aos avanços tecnológicos de outras áreas como a Biologia Molecular. Os
estudos biogeográficos descritivos deram lugar a uma disciplina nova, que objetiva construir e
testar hipóteses biogeográficas a respeito da distribuição dos seres vivos.
Nas últimas décadas, nota-se também que a Biogeografia tem deixado de ser uma ciência
praticada por ecólogos, sistematas ou paleontólogos, por exemplo, passando a constituir uma
disciplina praticada por biogeógrafos. Essa mudança deve-se, em parte, à produção de livros
relacionados à Biogeografia e sua inserção na grade curricular de grande parte das universidades,
fatos que passaram a se tornar mais comuns após a década de 1980. Além disso, o avanço
tecnológico de programas computacionais que permitem a compilação e manipulação de grandes
conjuntos de dados, aliado à utilização de dados georreferenciados e de parâmetros ambientais
(climáticos, geológicos, geográficos, entre outros), tem permitido um avanço na precisão de
reconstruções da história evolutiva dos táxons e do próprio planeta.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a MSc. Filipe M. Gudin, Dra. Laura R. Prado, MSc. Priscylla Moll e
Prof. Dr. Ângelo Parise Pinto por aceitarem participar na revisão deste capítulo. Obrigada pela
leitura crítica e por compartilharem o conhecimento de cada um de vocês a respeito desse tema tão
vasto. Todas as correções, comentários e sugestões foram valiosos para aprimorar o texto e para
precisar muitos dos conceitos da Biogeografia citados neste capítulo. Tenho certeza de que o
conteúdo final ficou muito melhor graças à colaboração de todos. Gostaria de agradecer também a
Dr. Pedro G. B. S. Dias pela ajuda na elaboração inicial deste capítulo, pelas leituras do texto e por
acrescentar informações pertinentes ao seu conteúdo.

BIBLIOGRAFIA

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