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Apresentado em Filosofia às Sextas, UFSM, 1996

O Conceito de Phronesis na Ethica Nicomachea


de Aristóteles
Alexandre N. Machado
Universidade Federal da Bahia
anmachado@ufba.br

I. Introdução

Este artigo consiste numa análise do conceito aristotélico de sabedoria prática. Tal
análise concentrou-se principalmente nos livros III e VI da Ética a Nicômaco, e
baseou-se principalmente na obra Ethics With Aristotle de Sarah Broadie.
Inicialmente foi feita uma exposição dos principais traços do conceito aristotéli-
co de sumo bem ou felicidade. Esta exposição visou contextualizar minimamente a
problemática que gira em torno do conceito de sabedoria prática. Tendo sido a
felicidade caracterizada como uma atividade racional conforme a virtude, passou-
se a caracterizar o conceito de virtude moral, a despeito da afirmação de Aristóteles
segundo a qual a vida feliz é a vida enformada pela atividade contemplativa. A
abordagem do conceito de sabedoria prática foi então alcançada através do seguinte
caminho: a virtude moral implica a realização de uma escolha; a escolha virtuosa é
aquela que realiza-se segundo princípios racionais práticos; a escolha racional é o
resultado de uma deliberação moral racional; e, finalmente, a excelência da delibe-
ração moral racional é a sabedoria prática. A seguir foi feita uma breve análise do
conceito de verdade prática e foram exibidos os principais aspectos formais da
deliberação: meio, fim, situação, etc.
Na parte conclusiva, concentrou-se brevemente sobre a relação entre o conceito
de virtude em si e o conceito de sabedoria prática. Ali foi apresentada, a título de
sugestão, uma tese interpretativa desta relação.

II. Felicidade e Virtude

1. O Sumo Bem e a Felicidade

No primeiro livro da Ética a Nicômaco,1 Aristóteles anuncia o tema da investiga-


ção que se segue: o “sumo bem” (EN 1094 20-25). “Bem é aquilo a que todas as
coisas tendem” (EN 1094a 1-5). Bem, portanto, é um fim. O sumo bem é sumo
porque é o mais excelente de todos os fins. Segundo Aristóteles, um fim, F, é mais
1
Aristóteles, Ética a Nicômaco, trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, São Paulo, A-
bril Cultural (Coleção Os Pensadores), 1979. Doravante, citado no interior do texto como
EN.

1
excelente do que outro, F’, se F’ está subordinado a F, e F’ está subordinado a F
quando F’ é procurado com vistas a atingir F, isto é, quando F’ não é um fim em si
mesmo, mas um meio em relação a F (EN 1094a 5-15).2 O sumo bem é caracteri-
zado como o fim com relação ao qual tudo o mais é desejado e que é desejado por
si mesmo, ou seja, ele não é desejado com vistas a alcançar outro fim (EN 1094a
15-25); é absoluto, pois além de, de fato, não ser desejado com vistas a outro fim,
ele nunca o é (EN 1097a 30ss.). O desejo de que se trata neste caso é o desejo
humano e, portanto, o sumo bem é, neste caso, o sumo bem do homem, não em
geral, sem especificação, pois que o homem não é o objeto mais elevado (EN
1141a 20-22). Se o fosse, o fim de todas as coisas estaria subordinado ao sumo
bem do homem, dado que o sumo bem é o fim com relação ao qual tudo o mais é
desejado.
O sumo bem é considerado por Aristóteles como o objeto da ciência política
(EN 1094a 25-1094b 5), em uma das acepções do termo ‘política’ (EN 1094b 10).
A política tem por finalidade (isto é, tende a) o bem humano (EN 1094b 5-10).
Portanto, o sumo bem é, como foi dito, o bem humano. Para realizar o bem huma-
no, a política “legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer” (EN 1094b
4-5), e, devido a isso, “determina quais ciências devem ser estudadas num Estado,
quais são as que cada cidadão deve aprender e até que ponto” (EN 1094a 25-1094b
5). As demais ciências, portanto, estão, em um certo sentido, sujeitas aos seus di-
tames.3
O objeto da ciência política também é identificado com a ação (EN 1095a 5);
ou, de modo mais específico, com as “ações belas e justas” ou “nobres e justas”
(EN 1094b 14-15; 1095b 4-5). A ação bela e justa é aquela que está de acordo com
um princípio racional (EN 1095 10-11). (A ação que é objeto da política é, como
veremos, a ação bela e justa em si mesma e não por acidente; e, para que seja bela e
justa em si mesma ela deve estar não meramente de acordo com um princípio ra-
cional (o que pode ocorrer por acidente), mas deve ser o resultado da aplicação da
racionalidade do próprio agente (Cf. EN 1105b 5ss.).) O bem humano, e, portanto,
o sumo bem, é alcançável, através da realização de ações guiadas por um princípio
racional. Para realizar ações desta natureza, o agente deve, por um lado, conhecer
os fatos da vida (EN 1095a 1-5) (‘vida’ entendido aqui como atividade do elemento
racional da alma (EN 1098a 5-10)) e, por outro, ter um modo de viver no qual as
2
Além disso, se uma ação A, a qual visa o fim F, vista em relação a outras ações, é um
fim (F’), e se F é distinto de A, F é mais excelente do que F’ (A), pois “onde existem fins
distintos das ações, são eles por natureza mais excelentes do que estas” (EN 1094a 5-10).
3
Aristóteles parece dizer mais do que isso: “... a finalidade desta ciência [da ciência polí-
tica] deve abranger as das outras...”. O que não é imediatamente claro aqui é o significado
de ‘abranger’. Aristóteles explica o sentido em que não se deve entender esta expressão.
Que a finalidade da ciência política abrange a das demais ciências não significa que a fina-
lidade das demais ciências está subordinada (cf. primeiro parágrafo desta secção) à finali-
dade da ciência política, pois ‘abranger’ não significa ‘servir-se de’. A finalidade da ciência
política abrange a das demais ciências na medida em que aquela faz prescrições em favor
destas, e não a estas. Isto significa que não é tarefa da ciência política prescrever à geome-
tria, p. ex., o modo correto de encontrar a solução dos seus problemas, nem sequer prescre-
ver quais problemas ela deve resolver, mas sim, prescrever as ações que constituem as
condições, digamos, exteriores para que a geometria possa desenvolver-se do melhor modo
possível, e, a partir disso, possa contribuir para a realização da felicidade na pólis (Cf. EN,
1145a 5ss.).

2
ações não sejam guiada pela paixão (EN 1095a 4-10); ele deve, pois, ter experiên-
cia acerca dos fatos que giram em torno das ações belas e justas e ser continente ou
temperante. Ele deve ser continente porque muitas vezes a razão dita princípios
contrários às coisas que nos são aprazíveis. Devido a isso, faz-se necessário que o
agente tenha sido educado nos “bons hábitos”, entre os quais está o hábito de agir
de modo continente. Aristóteles diz que não apenas para realizar ações belas e
justas é necessário ser educado nos bons hábitos, mas também para compreender
ou “ouvir inteligentemente” as lições da ciência política, as quais versam sobre
ações desta natureza (EN 1095b 4-5), pois

é preciso cultivar primeiro a alma do estudioso por meio de hábitos, tornando-o capaz
de nobres alegrias e nobres aversões, como se prepara a terra que deve nutrir a semente.
Com efeito, o que se deixa dirigir pela paixão não ouvirá o argumento que o dissuade;
e, se o ouvir, não o compreenderá. (EN 1179b 24-26)

(Este ponto ficará mais claro quando abordarmos o conceito de sabedoria prática.)
Além disso, faz-se necessário ser educado nos bons hábitos porque a investigação
da ciência política começa a partir do objeto da ciência política melhor conhecido
no início da investigação, começa pelo reconhecimento destes hábitos como sendo
bons (EN 1095b 1-10).
Mas, afinal, o que pode ser o sumo bem, ou seja, o fim alcançável pela ação be-
la e justa com relação ao qual tudo o mais é desejado e que é desejado por si mes-
mo, e que, por isso, é importante para a nossa vida (EN 1094a 20-25) e, além disso,
é objeto da ciência política? De acordo com Aristóteles, trata-se da felicidade (eu-
daimonia) (EN 1095a 15-25; 1097a 30-1097b 10) ou vida feliz, pois nunca dese-
jamos a felicidade com vistas a um outro fim qualquer; ela é o fim mais absoluto de
todos. Mas o que é a felicidade? Aristóteles distingue três tipos de vida candidatas
a ser a vida feliz: a vida dos gozos, a vida política e a vida contemplativa (EN
1095b 15-20). A identidade entre felicidade e prazer realizada por aqueles que se-
guem a vida dos gozos, que se dedicam a atividades aprazíveis, é vista por Aristó-
teles tendo “um certo fundamento” (EN 1095b 14-15). Isto se deve ao fato de que a
vida feliz é um vida que traz prazer, pois uma vida sofrida e repleta de infortúnios
não é uma vida feliz (EN 1095b 30-1096a 5). Porém, isto não significa que toda
vida aprazível seja uma vida feliz. A vida feliz é, portanto, uma vida que traz um
certo tipo de prazer.
Sendo o sumo bem, e, portanto, a felicidade, o objeto da ciência política, e sen-
do a honra a finalidade da vida política, alguns identificam, por isso, a vida feliz
com a vida política. Também aqui, Aristóteles insinua que há uma certa proximi-
dade da verdade, tendo em vista que os políticos pretendem convencer a si e aos
outros, por meio da realização do fim da vida política, de que são bons ou virtuosos
(EN 1095b 25-30), coisa que, como veremos, é um elemento constitutivo da vida
feliz. Porém, a vida política não pode ser a vida feliz por dois motivos inter-
relacionados. Em primeiro lugar, dado que a honra, a finalidade da vida política, é
sempre dada por alguém, ela nunca é atingida plenamente apenas a partir do sim-
ples agir guiado por um princípio racional, mas sim quando alguém no-la concede.
Um homem que agisse guiado por um princípio racional, por conseguinte, não seria
feliz, caso ninguém lhe concedesse honras, pois não teria atingido a finalidade da
vida política. Mas a felicidade não é algo que outra pessoa possa nos dar ou negar
desta forma. Em segundo lugar, e mais importante, dado que a honra tem por fina-

3
lidade evidenciar o reconhecimento da virtude ⎯ ela é uma espécie de recompensa
(EN, 1134b 1-8) à virtude e/ou um estímulo à preservação da virtude ⎯, e dado
que o reconhecimento da virtude (e isso é importante) é esperado daqueles que têm
sabedoria prática (Idem), isto é, daqueles que sabem julgar bem de modo prático e,
por isso, sabem reconhecer um homem em si mesmo virtuoso, o homem que leva
uma vida política não procura ser honrado sem mais, mas sim procura ser honrado
em razão de ser bom ou virtuoso (EN 1095b 25ss.). Isto significa que a virtude é
algo mais excelente do que a honra, pois esta última não é um fim desejado por si
mesmo, mas antes o é em função da virtude; ela é, na política, honra para a virtude.
É porque é virtuoso que o político deseja ser honrado, e não o contrário.4 Em últi-
ma análise, portanto, a virtude pareceria ser o fim almejado pelo político, e, por
conseguinte, seria esta a finalidade da vida política (Cf. EN 1102a 8-15). Mas
mesmo que o fosse, “ela parece ser”, no que diz respeito á felicidade, “de certo
modo incompleta”, pois uma vida virtuosa é compatível com uma vida inativa e/ou
com uma vida sofrida, e, como vimos, isto é incompatível com a felicidade, pois a
felicidade implica uma vida de pouco sofrimento e uma vida ativa (EN 1095b 30-
1096a 5), pois é um bem realizável mediante a ação (EN 1097a 20-25).
A vida de riquezas é descartada por ser, por natureza, um meio, e o debate em
torno da vida contemplativa é adiado até o livro X da EN. Aristóteles procura, en-
tão, especificar o que é a felicidade, ou bem humano, através do conceito de função
do homem (EN 1097b 20ss.). Função é aquele tipo de atividade que é peculiar a
uma coisa (flautista, escultor, pintor, olho, mão, pé, etc.). O bem ou excelência de
cada coisa que possui uma função é o desempenhar bem a sua função peculiar; é
fazê-la bem. Sendo assim, o bem humano, ou sumo bem, ou felicidade seria deter-
minado ao se determinar a função do homem, a atividade que lhe é peculiar, e ao se
determinar o que é o bem desempenhar esta função. Partindo do suposto de que o
homem é um ser vivo, dotado de alma, e de que a alma é o princípio do movimento
do ser vivo, Aristóteles descarta a idéia de que a função do homem, sua atividade
peculiar, seja simplesmente viver (função do elemento vegetativo da alma), isto é,
nutrir-se e crescer, pois isto também é comum às plantas, e, portanto, não é peculiar
ao homem. As plantas, porém, não percebem (função do elemento perceptivo da
alma) como o homem. Mas, perceber é algo comum a todos os animais, e, portanto,
também não é peculiar ao homem. E como a alma humana é formada de um ele-
mento apetitivo, um elemento perceptivo e um elemento racional, e este elemento

4
Aqui parece estar implícita a seguinte regra para o uso de ‘mais excelente’: sempre que
uma coisa, A (a honra), não puder ser desejada sem que se deseje uma outra coisa, B (a
virtude), mas B puder ser desejada sem que se deseje A, então B será mais excelente do que
A. Deste modo, a honra não é menos excelente do que a virtude por ser um meio para atin-
gi-la, mas porque não é alguma coisa que possa ser desejada por si mesma, na medida em
que existe em função da virtude. A objeção evidente aqui consistiria em simplesmente
afirmar a possibilidade de se desejar a honra por ela mesma, ou porque ela traz prazer não
moral. Isto, entretanto, seria o mesmo que afirmar que alguém pode desejar o reconheci-
mento da virtude que não possui. Se fazer uma coisa X a uma pessoa P faz parte do, ainda
que não seja todo o, ato de conceder honra a P (de modo que fazer X a uma pessoa P não é
o mesmo que conceder honra a P), e se ser a pessoa P à qual faz-se X é bom, pode-se dese-
jar ser P, sem desejar ser honrado. Portanto, dizer que uma pessoa deseja a honra por ela
mesma é um modo impróprio de dizer que uma pessoa deseja as coisas boas que se faz a
uma pessoa quando se lhe concede honras.

4
racional é definitório do gênero humano, segue-se que a função do homem deve ser
uma atividade do elemento racional da alma. Deste modo, homem que desempenha
uma atividade racional de modo excelente é o homem excelente, bom 5 ou virtuoso,
pois a virtude ou excelência, de modo geral, é aquilo que “não só coloca em boa
condição a coisa de que é excelência mas também faz com que a função desta coisa
seja bem desempenhada” (EN 1106a 16-17). O bem humano ou felicidade, portan-
to, é idêntico a vida do homem bom, isto é, do homem virtuoso, o homem mais
excelente; que age segundo um princípio racional e que, por isso, faz boas ações.6
“O bem do homem”, nas palavras de Aristóteles, “nos aparece como uma atividade
da alma em consonância com a virtude...” (EN 1098a 15-20; 1102a 5).
Aristóteles apressa-se a acrescentar que esta atividade deve dar-se “numa vida
completa” (Idem; cf.). A felicidade é algo que não pode ser atingido da noite para o
dia; exige muito tempo e boa sorte (EN 1100a 1-10). Além disso, ela necessita de
coisas tais como posses, bons amigos, filhos, enfim, “bens exteriores” em geral
(EN 1099a 30-1099b 10). Mas a boa sorte e os bens exteriores não são, como tais,
elementos constituintes da felicidade, não são uma conditio sine qua non do sumo
bem, mas antes são um acréscimo que facilita ou dificulta a sua realização (EN
1100a 31-1100b 11). Sua falta não impede a realização de boas ações, ainda que as
dificulte. Parece que o que sustenta a estabilidade da felicidade frente as vicissitu-
des da vida é o prazer que a vida virtuosa proporciona ao homem virtuoso.7 A vida
do homem virtuoso é aprazível para ele porque o homem virtuoso não é aquele que
apenas faz ações ditas virtuosas, mas é aquele que as faz com prazer (EN 1098b 5-
20; cf. 1104b 4ss.). Mas ela não apenas é aprazível para ele, mas é aprazível por si
ou por natureza. E o argumento para esta afirmação parece ser o seguinte: a vida
virtuosa (a felicidade) é desejada por si mesma; tudo que é desejado por si é amado
por si e tudo que é amado por si é aprazível por si ou por natureza. Sendo um pra-
zer originado da sua própria natureza, o prazer que a vida virtuosa proporciona ao
homem virtuoso não é como um prazer proporcionado pelas paixões. Por isso, o
homem virtuoso que atravessa um infortúnio, isto é, um acontecimento que causa
grande dor, não deixará de sentir prazer em ser virtuoso, pois é justamente por sê-lo
tal que ele é capaz de enfrentá-la como “nobreza e decoro” (EN 1100b 21-22); ele
“sempre tira o maior proveito das circunstâncias” (EN 1101a 1-2). Isto não signifi-
ca que ele não sentirá a dor proporcionada pelo infortúnio, mas sim que ele não
sentirá dor em ser virtuoso, mas sim prazer. Não obstante isso, se os infortúnios
forem em grande número e de freqüência intensa, “poderão esmagar e mutilar a
felicidade, pois que, além de serem acompanhados de dor, impedem muitas ativi-
dades” (EN 1100b 9-10; o grifo é nosso), isto é, as atividades virtuosas.

5
Isto, como veremos, não significa que basta que a atividade do elemento racional da al-
ma seja desempenhado de modo excelente para que o sujeito seja um homem excelente ou
bom. Faz-se necessário que os outros elementos da alma ⎯ os quais poderiam colocar-se
contra a atividade racional ⎯ submetam-se aos ditames da razão. Ou, dito de outro modo,
‘atividade do elemento racional desempenhada de modo excelente’ significa neste contexto
‘a atividade da alma, como um todo, de acordo com a atividade do seu elemento racional’.
6
“Para o homem a vida conforme a razão é a melhor e a mais aprazível (...). Donde se
conclui que essa vida é também a mais feliz.” (EN, 1178a 6-7)
7
Isto não quer dizer que a felicidade, segundo Aristóteles, seja uma propriedade psicoló-
gica de uma pessoa. Ela é, antes, uma propriedade da sua vida ⎯ a sua vida é ou não é
feliz, e é por isso que tal pessoa é ou não é feliz.

5
A necessidade de que a felicidade se dê numa vida completa origina uma ques-
tão: é necessário que um homem esteja morto para que se possa dizer com seguran-
ça que ele foi feliz? Esta pergunta origina uma outra: um homem morto não é atin-
gido pelos infortúnios que atingem as pessoas que lhe eram próximas? Aristóteles
responde à primeira pergunta do seguinte modo: para que se diga que a vida de um
homem seja feliz é necessário, sim, que ela tenha chegado ao seu fim e que, por
isso, nenhum infortúnio mais possa lhe ocorrer; mas para dizer que um homem é
feliz, basta que as condições para a felicidade “se realizem ou estejam destinadas a
realizar-se” (EN 1101a 15-25). Isto parece significar que dizer que um homem vivo
é feliz implica dizer mais ou menos o seguinte: ‘Este homem tem tido uma vida
feliz, até agora, e, ao que tudo indica, ele tem um futuro promissor.’ Com relação à
segunda pergunta, Aristóteles diz que os infortúnios que assaltam as pessoas que
eram próximas de um homem que já morreu (e não apenas infortúnios, mas tam-
bém as más ações por elas praticadas) o atingem, mas não de um modo que o torne
infeliz; assim como as boas venturas e as boas ações destas pessoas não o tornam
feliz (EN 1101b 1-10).
Em suma, portanto, a felicidade (ou sumo bem, ou bem humano, ou função hu-
mana bem desempenhada) consiste numa certa atividade da alma conforme um
principio racional, a qual tem como pressuposto uma educação nos bons hábitos e
uma vida completa. Além disso, ela pode ser auxiliada pelos bens exteriores.

2. A virtude e o meio-termo

Aristóteles começa a apresentar com mais detalhe sua doutrina da virtude no último
capítulo do livro I e em todo o livro II. Em EN 1102a 5-10 ele diz:

Já que a felicidade é uma atividade da alma conforme a virtude perfeita, devemos con-
siderar a natureza da virtude; pois talvez possamos compreender melhor, por esse meio,
a natureza da felicidade.

Para explicar o que é a virtude, Aristóteles passa, então, a apresentar uma tipologia
dos elementos da alma. Primeiramente a alma divide-se em um elemento racional e
outro privado de razão (EN 1102a 25-30). O elemento privado de razão é dividido
em outros dois elementos: o elemento vegetativo e o elemento desiderativo. O pri-
meiro, como já vimos, é responsável pela nutrição e crescimento (EN 1102a 32
1102b-13). O segundo é um tipo especial, pois, apesar de ser privado de razão, não
lhe é totalmente indiferente, mas participa da razão (EN 1102b 13-34).8 Esta parti-

8
Aristóteles também considera uma distinção alternativa dos elementos da alma, segundo
a qual, o elemento desiderativo faria parte do elemento racional da alma. Deste modo o
elemento racional da alma tornar-se-ia duplo: um deles seria aquele que possuiria a razão e
o outro seria aquele que teria uma tendência a obedecê-la (EN 1102b 14-1103a 1). O pro-
blema desta divisão, não abordado por Aristóteles, é explicar os casos em que o desejo se
coloca contrário à razão, pois isto pareceria implicar uma contrariedade interna natural do
elemento racional da alma. O elemento racional da alma pareceria possuir na sua natureza a
capacidade de gerar um hábito que volta-se contra esta própria natureza ⎯ o hábito de não
seguir os ditames da razão. Entrementes, Aristóteles diz: “Em que sentido este elemento
[desiderativo] se distingue dos outros, é uma questão que não nos interessa.” (EN 1102b 25)

6
cipação dá-se na forma positiva de sua relação com a razão: o elemento desiderati-
vo da alma, de um modo positivo, ouve os ditames da razão e os segue; de um mo-
do negativo, lhes é totalmente contrário e luta para resistir a eles. Quando ocorre
que um sujeito deseja e age conforme o primeiro caso, diz-se que o sujeito deseja e
age de um modo temperante ou continente e, por isso, possui hábitos virtuosos. No
caso contrário, o sujeito é intemperante ou incontinente; possui hábitos viciosos. A
virtude, por conseguinte, é o hábito do elemento desiderativo da alma no qual a-
quele sempre segue os “conselhos” desta, ou atende às suas razões. E como o hábi-
to de seguir os conselhos da razão, ou obedecer aos princípios racionais, é digno de
louvor, e somente eles o são, “aos hábitos dignos de louvor chamamos virtudes”
(EN 1103b 11). Estas são, entretanto, virtudes morais, as quais distinguem-se das
virtudes intelectuais, tais como a sabedoria filosófica, a compreensão e a sabedoria
prática.
Afora a classificação da virtude (moral) em relação às partes ou elementos da
alma, outro modo de Aristóteles classificar a virtude é com relação às coisas que
encontram-se na alma (EN 1105b 19-20). Elas são em número de três: paixões,
faculdades e disposições de caráter (EN 1105b 20) A virtude não é uma paixão
(apetite, cólera, medo, etc.) nem uma faculdade (capacidade de sentir as paixões),
pois a paixão em si mesma é moralmente indiferente e as faculdades fazem parte da
natureza da alma. A virtude, portanto, é uma disposição de caráter, pois é aquilo
em virtude do qual somos ditos bons ou maus. Mas, porque o fato de que as facul-
dades fazem parte da natureza da alma impossibilita-as de serem virtudes?
Por consistir em uma disposição de caráter que manifesta-se nos bons hábitos, a
virtude moral constitui-se de uma disposição para realizar determinado tipo de
ação. Por isso, somente é virtuoso aquele que sabe fazer coisas virtuosas. Para se
saber fazer coisas virtuosas, é necessário que se aprenda a fazê-las. Agora, toda
coisa que, para ser feita, necessita ser aprendida, tal como as ações virtuosas, a-
prende-se fazendo (EN 1103a 30-1103b 1). Devido a isso, a virtude moral é adqui-
rida por meio do exercício ou prática repetida daquelas ações consideradas virtuo-
sas (Cf. EN 1114a 9-10), ou seja, é adquirida através do hábito (EN 1103a 15-20).
Dado que é assim adquirida, e dado que a virtude pode contrariar a natureza, quan-
do ela, por exemplo, manifesta-se na forma de temperança, a virtude não pode ori-
ginar-se por natureza, pois nada pode adquirir por natureza um hábito que contrarie
a sua própria natureza (EN 1103a 18-24). Esta é a razão pela qual a virtude não
pode ser uma faculdade. Ademais, não é porque uma pessoa possui uma determi-
nada faculdade que ela é considerada boa ou má, virtuosa ou viciosa. As coisas
adquiridas por natureza encontram-se em nós primeiramente em potência (como o
sentido da visão) e, por isso, podem tornar-se ato (ver). A aquisição da virtude, ao
contrário, dá-se, como vimos, pelo ato, a prática das ações virtuosas, e só então
pode ser tida em potência (EN 1103a 26-33), como quando dizemos que, mesmo
não estando a agir, um certo homem que dorme é virtuoso (EN 1096a 30ss.). Po-
rém, embora a virtude não tenha uma origem natural, qualquer ser humano tem
uma possibilidade natural de adquirir virtudes, porquanto todos os homens são
“adaptados por natureza a recebê-las” (EN 1103a 25).
O hábito consiste num certo padrão de resposta que alguém dá ⎯ no padrão da
ação que alguém realiza quando está ⎯ frente a uma determinada situação ou
circunstância. Em razão disso, é na diferença do padrão de resposta que duas pes-
soas dão frente às mesmas circunstâncias que se mostra a diferença de caráter de

7
ambas (EN 1103b 1-25). Se o padrão de resposta ou hábito é virtuoso, trata-se de
uma pessoa virtuosa; se é vicioso, trata-se de uma pessoa vil ou viciosa. Entretanto,
nos dois casos a origem ou causa é a mesma: o hábito (EN 1103b 6-8); é através do
hábito que adquirimos a virtude ou a vício.
Agora, no que consiste a diferença entre virtude e vício? entre o padrão de res-
posta virtuoso e o padrão de resposta vicioso? Aristóteles diz que a virtude pode ser
destruída pelo excesso ou pela falta ou carência. Vejamos um exemplo de Aristóte-
les:

...o homem que tudo teme e de tudo foge, não fazendo frente a nada torna-se um covar-
de, e o homem que não teme absolutamente nada, mas vai ao encontro de todos os pe-
rigos, torna-se temerário. (EN 1104 20-22)

Tanto a covardia quanto a temeridade são padrões de resposta viciosos frente a


uma situação de perigo, tal como a guerra (EN 1103b 15-16). O padrão de resposta
virtuoso, neste caso, é a coragem (Cf. EN livro III, caps. 6-9). A covardia é uma
carência, enquanto a temeridade é um excesso. A coragem é um meio-termo entre
ambos (EN 1106b 15). O excesso e a falta são extremos contrários entre si e o
meio-termo é contrário a ambos. Os extremos são mais contrários entre si do que
em relação ao meio-termo, pois estão mais afastados entre si (EN 1108b 10-35).
Parece então que a diferença entre virtude e vício mostra-se na diferença de uma
espécie de grau de intensidade9 (quantidade; cf. EN 1106a 26) de um certo tipo de
paixão e, consequentemente e necessariamente, da ação que dela resulta (EN 1106
b 15-16). Quando a ação é excessivamente ou insuficientemente intensa (porque a
paixão é excessivamente intensa e incontida), então ela é viciosa; quando ela é
realizada na intensidade exata, é virtuosa. Que a ação seja realizada de modo medi-
ano, ou excessivo, ou insuficiente, isto dependerá da disposição de caráter que se
encontra na alma (EN 1108b 10-12). Esta mediania, entretanto, não é, digamos,
objetiva, isto é, não é necessariamente idêntica para todas as pessoas (Cf. EN 1106a
25-1106b 9). Aquilo que é meio-termo para um certo tipo de pessoa, pode não sê-lo
para um outro. Uma pessoa que faz muito esforço físico certamente não será censu-
rada se comer mais do que a quantidade que seria considerada o meio-termo para
uma pessoa mais sedentária, pois aquela necessita de mais alimentos do que esta.
Além disso, e por isso, o meio-termo não é idêntico ao meio-termo aritmético, o
qual é objetivo. O meio-termo aritmético (média aritmética) entre, por exemplo, 10
e 2 é 6, pois entre 2 e 6 e entre 6 e 10 há a mesma quantidade, a saber, 4; isto é, 6 é
eqüidistante de 10 e 2. O mesmo não ocorre com o meio-termo relativo à virtude.
Algumas vezes o meio-termo está mais próximo do excesso (covardia ← ← cora-
gem → temeridade), noutras, da falta (apatia10 ← temperança → → intemperança)

9
“...há uma meta a que visa o homem orientado pela razão, ora intensificando, ora rela-
xando sua atividade, e há um padrão que determina os estados medianos que dizem serem
os meios termos entre o excesso e a falta...” (EN, 1138b 21-24; O grifo é nosso).
10
Aristóteles diz que o extremo carente em relação a temperança não tem nome, pois di-
ficilmente é encontrado. Ele o define do seguinte modo: “...alguém que não se agrade de
nada e não ache nenhuma coisa mais atraente do que outra qualquer...” (EN 1119a 9-10).
Ocorre que isto está mais ou manos de acordo com a definição de apatia dada pelo Dicioná-
rio Aurélio, segundo a qual apatia é um “estado de insensibilidade, impassibilidade, indife-
rença”.

8
(EN 1109a 1-20). Devido a isso, em alguns casos, o excesso é mais errôneo do que
a falta, noutros, o contrário (EN 1109a 25-30). O meio-termo relativo à virtude,
portanto, não caracteriza-se por ser eqüidistante dos extremos (excesso e falta),
mas por não ser, em um certo sentido, nem demasiado muito, nem demasiado pou-
co (EN 1106a 30-31). Esta relativa assimetria deve-se principalmente à natureza
humana, “pois aquilo para que mais [naturalmente] tendemos nos parece mais con-
trário ao meio-termo.” (EN 1109a 13-14) Tendemos mais naturalmente, p. ex., aos
prazeres e a evitar os perigos. Por essa razão, a temperança nos parece mais contrá-
ria à intemperança e a coragem nos parece mais contrária á covardia (EN 1109a 15-
20).
O meio-termo que constitui a virtude das nossas ações, além de ser relativo a
cada pessoa que o procura, é relativo também às pessoas que são atingidas pelas
suas ações, ao lugar onde elas são praticadas, ao momento, e assim por diante (Cf.
EN 1106a 25-29; 1106b 20-24; 1109b 14-17; 1115b 15-20). Isto significa que a
procura do meio-termo da ação é sempre relativa às circunstâncias em que a ação é
exigida. O fracasso desta procura resulta numa ação realizada nas circunstâncias
indevidas; numa ação não virtuosa que ou é um excesso ou uma falta em relação ao
meio-termo.

3. Justiça

Aristóteles afirma que “o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma
em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e a
mais completa.” (EN, 1098a 16-18) Qual é a melhor e a mais completa ou perfeita
das virtudes? A isso Aristóteles responde: “...a justiça neste sentido não é uma par-
te da virtude, mas a virtude inteira.” (EN, 1130a 9-10; cf. 1129b 25-1130) Em que
“sentido”? Segundo Aristóteles, ‘justiça’ é um termo ambíguo, ainda que não cons-
titua uma homonímia casual, tal como aquela constituída pelos dois significados de
κλεiζ ⎯ ‘clavícula’ e ‘ferrolho da fechadura’ (EN, 1029a 25-30). O sentido em
que a justiça é uma virtude completa é aquele que em que se diz que um homem é
honesto porque faz sempre ações legítimas ou porque respeita as leis. O homem
que respeita as leis é tido como justo porque as leis são criadas tendo em vista “a
produzir e a preservar, para a sociedade política [isto é, a sociedade da pólis], a
felicidade e os elementos que a compõem”. (EN, 1029b 17-19) As leis ordenam a
prática de atos virtuosos e proíbem os atos viciosos (EN, 1130b 16-25). Mas, por
que a justiça é a virtude completa? Porque a virtude completa é a virtude do melhor
dos homens, e o melhor dos homens “não é o que exerce a sua virtude para consigo
mesmo, mas para com um outro” (EN, 1130a 6-8; cf. 1130b 1-2). Aquele que é
justo é virtuoso não apenas para consigo mesmo, mas também para com os outros,
pois está concorrendo para a realização não apenas da sua felicidade, mas da felici-
dade do estado, e a felicidade do estado é um bem maior e mais completo que a
felicidade do indivíduo (EN, 1094 b 7-10).11
Aristóteles chega a afirmar que a justiça e a virtude são a mesma coisa, diferin-
do apenas em essência: “Aquilo que, em relação ao nosso próximo, é justiça, como

11
A tese de que a felicidade do estado é um bem maior do que a felicidade do indivíduo é
uma evidência contra uma interpretação egoísta do conceito aristotélico de felicidade.

9
uma determinada disposição de caráter, em si mesmo, é virtude.” (EN, 1130a 11-
12). Esta passagem parece significar o seguinte. A coisa X, enquanto considerada
como algo que põe uma pessoa em relação virtuosa com as demais, é justiça; a
mesma coisa X, enquanto considerada em si mesma, é uma disposição virtuosa de
caráter desta pessoa: a virtude completa, a virtude em sentido pleno (EN, 1130b 5-
7).

III. Escolha e Sabedoria Prática

1. Voluntariedade, escolha e deliberação

Dado que a virtude é um meio-termo entre dois extremos, a ação virtuosa implica a
possibilidade de uma escolha (EN 1105a 30ss.; 1106a 4-5) de um dos pontos que
vão de um extremo ao outro, passando pelo meio-termo. Apenas um destes pontos,
o meio-termo, é o ponto correto, os demais, errôneos. Por isso, na escolha é quanti-
tativamente mais fácil errar do que acertar, ou então, é mais difícil acertar do que
errar (EN 1106b 29-35). Consequentemente, é mais difícil ser virtuoso do que ser
vicioso. Mas, é mais difícil ser virtuoso do que ser vicioso não apenas por esta
razão. Dado que todo objeto de escolha é ou aprazível ou doloroso (EN 1104b 35-
36) e que é mais difícil lutar contra o prazer do que contra a dor, é mais difícil ser
virtuoso do que ser vicioso, pois a virtude se orienta para o mais difícil, e o mais
difícil, neste caso, é lutar contra a nossa inclinação natural (EN 1105a 8-9; cf.
1104b 10-11). Nossa inclinação natural é procurar o prazer e evitar a dor (EN
1109a 15; cf. 1117 a 33-34). Há, entretanto, prazeres legítimos, como o gozado
nas ações virtuosas, e ilegítimos, como os gozados nas ações viciosas (Cf. EN 1105
a 5-8). Pode-se dizer, portanto, que a virtude consiste em uma ação que produz um
prazer legítimo (EN 1104b 26-28) e que, por isso, “devemos tomar como sinais
indicativos do caráter o prazer ou a dor que acompanham os atos” (EN 1104b 4-
50).
O prazer ou a dor que acompanha os atos, entretanto, não pode ser tomado co-
mo um critério absoluto, in abstracto. Uma pessoa que compartilha os mesmos
princípios defendidos por nós pode realizar, com prazer, uma determinada ação
que nós julgamos vil e, não obstante, pode achar que está sendo virtuosa. Isto pode
ocorrer por ignorância, e é o que freqüentemente ocorre quando, p. ex., procuramos
infligir uma pena ou castigo no intuito de sermos justos, mas onde, por ignorância,
acabamos por ser injustos. A ignorância, neste caso, diz respeito aos fatos relevan-
tes para o bom julgamento do caso (Cf. EN 1111a 16-19), ou seja, diz respeito às
circunstância particulares do ato. Daquele que assim erra, costuma-se dizer que não
sabia o que estava fazendo (EN 1111a 6-11). Não sabendo o que estava fazendo,
não se pode dizer desta pessoa que ela realizou uma ação viciosa voluntariamente,
pois “tudo que se faz por ignorância é não-voluntário” (EN 1110b 16-17; 1111a 16-
17).
Ação voluntária é aquela “cujo princípio motor encontra-se no próprio agente
que tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato.” (EN 1111a 21-23)
Quando uma ação parte de uma agente que conhece as circunstâncias particulares

10
do ato, mas no qual não encontra-se o princípio motor que gerou a ação, esta ação é
involuntária, tal como quando agimos por uma compulsão externa (p. ex. quando
alguém nos impele através de uma ameaça). Este tipo de ação produz dor e arre-
pendimento naquele que age, pois este age contra a sua tendência natural (EN
1110b 15-17). Quando uma ação parte de uma agente no qual encontra-se o princí-
pio motor que gerou a ação, mas que não conhece ou ignora as circunstâncias par-
ticulares do ato (justamente como no exemplo do mau julgamento), tal ação é não-
voluntária (Idem), isto é, a ação foi feita conforme a sua tendência natural, porém,
aquilo que se queria fazer, aquilo que se acreditava estar fazendo, ⎯ realizar um
ato virtuoso ⎯ não é o que se fez ⎯ um ato vicioso. Portanto, ela é uma ação não-
voluntária com relação ao vício (EN 1110b 29-30). Aristóteles ainda distingue a
ação viciosa que se faz por ignorância daquela que se faz na ignorância (EN 1110b
25-27). A ação que se faz na ignorância é aquela que parte de uma agente que não
conhece ou ignora as circunstâncias particulares do ato, porém, a causa de tal ação
não é esta ignorância, mas sim um estado psicológico ou um estado físico (embria-
guez) originados de uma paixão não controlada (cólera; apetite). Aquele que come-
te um erro de julgamento na ignorância, diferentemente daquele que o comete por
ignorância, não merece perdão, pois o não conter as paixões, seja, p. ex., não con-
tendo a cólera, seja não evitando beber até a embriaguez, é típico da pessoa intem-
perante, isto é, não virtuosa. Este tipo de ação não é considerado nem involuntário,
nem não-voluntário, pois elas não se geraram contra a tendência natural do agente e
tampouco estão fora do poder do agente de impedi-las, caso ele assim o queira. Por
outro lado, toda ação viciosa que não é voluntária, quer involuntária, quer não-
voluntária, é digna de perdão ou piedade (EN 1109b 31-32; 1110b 29-1111a 1),
tendo em vista que aquele que a realiza não tem a intenção de realizar um ato vi-
cioso. Apenas as ações voluntárias são, pois, dignas de louvor (quando virtuosas),
ou de censura (quando viciosas) (EN 1109 30-31).
Ação virtuosa, portanto, que não o é por acidente, é sempre voluntária. Não bas-
ta, entretanto, que a ação seja voluntária e fruto de uma disposição virtuosa de cará-
ter. Como já foi dito, a ação virtuosa implica a possibilidade de uma escolha. Por
esta razão, pode-se afirmar que a voluntariedade da ação virtuosa diz respeito à
escolha do meio-termo A ação virtuosa é aquela originada da intenção de acertar na
escolha da ação que se constitui no meio-termo entre o excesso e a falta; intenção
esta advinda de uma firmeza de caráter moldado pelos bons hábitos (EN 1105a 30-
1105b 5)
Em um certo sentido, toda ação que resulta de uma escolha é uma ação voluntá-
ria, ainda que o contrário não seja verdade (EN 1111b 6-10). Pode ocorrer, entre-
tanto, que uma ação que resulta de uma escolha, em outro sentido, não seja volun-
tária. Trata-se dos atos mistos. Uma pessoa pode, p. ex., a partir do princípio “dos
males, o menor” (Cf. EN, 1131b 20-24) decidir (ou seja, escolher) realizar uma
ação considerada por ele mesmo, em si mesma, desprezível, quando é o caso em
que esta ação é, dentre aquelas que estão no seu poder de realização, a melhor. Isto
pode ocorrer quando, p. ex., alguém comete um assassinato para salvar a vida dos
seus familiares. Esta ação é, por um lado, voluntária, pois seria absurdo dizer que o
agente decidiu ou escolheu fazer aquilo que não estava dentro do seu poder de rea-
lização. Além disso, justamente porque este agente considera ou julga que a ação é,
em si mesma, desprezível, mas, naquelas circunstâncias, a julga como sendo a me-
lhor coisa a ser feita, justamente por isso, ele deve estar de posse do conhecimento

11
das circunstâncias particulares da ação. E, como vimos, a ação voluntária é aquela
“cujo princípio motor encontra-se no próprio agente que tenha conhecimento das
circunstâncias particulares do ato” (EN 1111a 21-23). Por outro lado, todavia, qua
ação desprezível, isto é, considerando-se o valor intrínseco negativo da ação (p.
ex., um assassinato), a ação é involuntária, pois, por ser desprezível em si mesma
para o agente, ele a faz com sofrimento e, se estivesse em seu poder modificar as
circunstâncias, a fim de que o melhor a ser feito não fosse mais aquela ação, mas
uma ação de valor intrínseco positivo, ele as modificaria, pois ele possui uma dis-
posição de caráter tal que o impele sempre a fazer ações intrinsecamente virtuosas
(Cf. EN, 1110a 4-15).
Seja como for, algo é certo a respeito da escolha: seu objeto é sempre aquilo que
pode ser realizado graças o esforço do agente (EN 1111b 25). A possibilidade da
realização daquilo que é escolhido distingue a escolha do desejo, dado que pode-se
desejar coisas impossíveis (EN 1111b 20ss.). Por limitar-se ao possível, a escolha
tampouco pode ser uma opinião, pois a opinião, além de versar sobre coisas possí-
veis (que podem ocorrer ou não ocorrer), pode também versar sobre coisas impos-
síveis e sobre coisas eternas ou necessárias, as quais não são passíveis de escolha
(EN 1111b 30ss.; 1112a 20ss.). Uma opinião é ou verdadeira ou falsa. A possibili-
dade da verdade ou falsidade da opinião funda-se numa determinada relação exis-
tente entre a opinião e o objeto do qual ela é opinião: quando a opinião é verdadei-
ra, ela relaciona-se convenientemente com o seu objeto, quando é falsa, inconveni-
entemente. O mesmo não ocorre com a escolha. A conveniência ou inconveniência,
no que respeita à escolha, é relativa não ao modo de relação entre a escolha e o seu
objeto, mas sim ao objeto da escolha. Em outras palavras, é do objeto escolhido
que pode ser dito ser conveniente ou inconveniente e não da relação entre escolha e
objeto escolhido, e é porque o objeto da escolha é conveniente que se diz que a
pessoa que o escolhe (voluntariamente) tem um bom caráter, pois o objeto conve-
niente é o objeto bom, enquanto o objeto inconveniente é o objeto mau, e aquele
que o escolhe é dito ter mau caráter.
Além de ser algo possível, o objeto de uma possível escolha é tal que comporta
dúvidas sobre se deve ou não deve e como deve ser realizado, pois pode ser reali-
zado de vários modos (EN 1112a 30-1112b 8), assim como pode simplesmente não
ser realizado. O modo correto de realizar o objeto da escolha, assim como a própria
escolha, é algo que dependerá das circunstâncias em que a escolha é exigida. Por
isso, para saber o que deve ser feito e como deve ser feito, o agente deverá conside-
rar os aspectos circunstanciais relevantes para o caso em questão, posto que a pro-
cura pelo que e como fazer nada mais é do que a procura do meio-termo da ação, o
qual é sempre determinado pelas circunstâncias. O critério de relevância dos aspec-
tos circunstanciais é coisa que veremos mais tarde. Mas, pode-se adiantar que tal
critério é dado pela combinação do valor intrínseco do tipo de ação que se pretende
realizar com o valor relativo que tal ação adquire dentro das circunstâncias.
O processo de procura do meio-termo é uma espécie de investigação (EN 1112b
20-28) ou análise (EN 1112a 16-17). Esta investigação é acerca do que e como
deve (ou não deve) ser feito ⎯ ou acerca do que é melhor, do que é virtuoso fazer
⎯ em uma determinada circunstância, diferentemente da investigação teórica, a
qual diz respeito não ao que deve ser feito, mas ao que é verdade, e é própria das
ciências teóricas. Quando investigamos acerca do que deve ser feito em uma de-
terminada circunstância, estamos a realizar uma deliberação (Cf. EN, VI, cap. 9), e

12
o resultado da deliberação é a escolha de uma ação (EN 1113a 3-9). A forma
“nvestigativa” da deliberação, a qual compõe-se basicamente da análise dos deta-
lhes circunstanciais relevantes para o caso em questão e de uma escolha resultante
desta análise, ambos orientados pelo intuito de realizar ações virtuosas, mostra que
a deliberação é uma espécie de raciocínio, isto é, uma conexão de proposições que
obedece um princípio racional.12 Portanto, a escolha de uma ação é algo que envol-
ve um princípio racional (EN 1112a 16-18). Trata-se de um princípio racional prá-
tico, e, portanto, deliberar é raciocinar de um modo prático.
Agora, se ser virtuoso em si mesmo é realizar ações virtuosas em si mesmas, se
realizar ações virtuosas em si mesmas é, entre outras coisas, realizar ações voluntá-
rias que são o resultado de uma deliberação que visa o meio-termo, e se deliberar é
realizar uma espécie de raciocínio, segue-se que saber raciocinar de modo delibera-
tivo ou prático é uma condição necessária para que alguém seja em si mesmo vir-
tuoso; portanto, é uma condição necessária par que alguém seja feliz. Sendo assim,
além de necessitar ter virtudes morais, o homem feliz necessita ter virtudes intelec-
tuais.

2. Deliberação e Sabedoria Prática

A conexão entre sabedoria prática e deliberação é explicitada na seguinte passagem


do livro VI de EN:13

No que tange à sabedoria prática, podemos dar-nos conta do que seja considerando as
pessoas a quem atribuímos.
Ora, julga-se que é cunho característico de um homem dotado de sabedoria prática
o poder deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para ele, não sob um aspecto
particular, como por exemplo sobre a espécie de coisas que contribuem para a saúde e o
vigor, mas sobre aquelas que contribuem para a boa vida em geral. (EN, 1140a 24-28)

12
Aristóteles diz também que deliberar é o mesmo que calcular, na medida em que deli-
berar é contemplar o variável, isto é, aquilo que cujas causas não são sempre as mesmas
(EN 1139a 4-15).
13
Normalmente se considera o livro VI da EN como aquele em que Aristóteles expõe a
sua doutrina da sabedoria prática. Cabe destacar, entretanto, a avaliação de William F. R.
Hardie. Ele afirma que “o livro VI não contém qualquer tentativa de realizar uma adequada
consideração do pensamento prático”. E complementa: “ele formalmente não aperfeiçoa a
consideração da deliberação (bouleusis) dada anteriormente” (Aristotle’s Ethical Theory,
1988, p. 217). Para Hardie o livro é “casual” e “não nos oferece respostas razoáveis a todas
as questões centrais as quais nós poderíamos esperar que ele respondesse.” (op. cit., p. 212)

13
Se ter sabedoria prática é saber deliberar bem,14 e se saber deliberar bem é saber
raciocinar de um modo prático, então ter sabedoria prática é saber raciocinar de um
modo prático (Cf. EN, 1140b 4-5; 1140b 20). Vimos que a deliberação visa a esco-
lha do meio-termo da ação. Tendo em vista que “o meio-termo é determinado pelos
ditames da reta razão” (EN, 1138b 19-20), ou da regra justa (EN, 1138b), ter sabe-
doria prática é obedecer aos ditames da reta razão. Mas, quais são estes ditames?
Aristóteles apressa-se em afirmar que isto “não é de modo algum evidente” (EN,
1138b 34). Entretanto, algo é certo: a reta razão, ou regra justa, é aquela que de-
termina certos padrões de ação (Idem). Mas, para deliberar bem em um caso parti-
cular é necessário mais do que esta afirmação geral. Ninguém sabe como deliberar
bem se simplesmente procura seguir a regra que diz: ‘Delibera sempre a fim de
encontrar a ação que está conforme o padrão determinado pela reta razão’.
A determinação do seja a reta razão é iniciada por Aristóteles, mais uma vez,
por meio de tipologia dos elementos da alma (EN, 1139a 4-15). Segundo ele, como
já vimos, a alma possui um elemento privado de razão e um elemento racional. O
elemento racional, por sua vez, divide-se em dois: aquele que contempla as coisas
eternas e aquele que contempla as coisas variáveis.15 O primeiro elemento, Aristó-
teles denomina científico, o segundo, calculativo. Dado que a ação não é uma coisa
eterna, mas sim variável, é a alma calculativa que a contempla. ‘Variável’ parece,
neste contexto, implicar ‘ser deliberatório’, pois Aristóteles identifica os significa-
dos de ‘calcular’ ⎯ a ação própria do elemento da alma que trata de coisas variá-
veis ⎯ e ‘deliberar’.16 Sendo a deliberação uma atividade do elemento calculativo
da alma, e sendo este elemento um elemento racional, a deliberação é uma virtude
de um dos elementos racionais da alma ⎯ é, pois, uma virtude intelectual (EN,
1138b 35-1139a 2). O passo seguinte de Aristóteles é determinar qual é o “melhor
estado” ou virtude do elemento calculativo da alma.
Tendo em vista que a deliberação é a causa eficiente da escolha, e que a escolha
é causa eficiente da ação, Aristóteles primeiramente, a fim de elucidar a delibera-

14
Uma contra-evidência desta interpretação, entretanto, parece ser a afirmação de Aristó-
teles de que uma escolha sábia (e, portanto, racional) pode ser feita sem a produção de um
argumento justificante que demonstre a racionalidade da escolha. Diz Aristóteles:
...devemos acatar, não menos que as demonstrações, os aforismos e opiniões não de-
monstradas de pessoas experientes e mais velhas, assim como das pessoas dotadas de sabe-
doria prática. Com efeito essas pessoas enxergam bem porque a experiência lhes deu um
terceiro olho. (EN, 1143b 10-17)
Todavia, Aristóteles parece querer dizer nesta passagem o seguinte: ‘Não é necessário
que a deliberação (o argumento justificante da ação) seja realizada sempre antes da escolha.
A experiência em deliberar torna o agente capaz de escolher acertadamente sem deliberar
previamente’. Isto não significa, entretanto, que o argumento justificante da ação torne-se
dispensável em absoluto. O sábio que escolhe sem deliberar deve poder dar o argumento
justificante assim que seja solicitado. Caso contrário, sua ação não será justificada ⎯ não
será racional.
15
A razão desta divisão é a seguinte: “...quando dois objetos diferem em espécie, as par-
tes da alma que correspondem a cada um deles também diferem em espécie, visto ser por
uma certa semelhança ou afinidade com os seus objetos que elas os conhecem.” (EN, 1139a
9-11) Esta divisão torna problemática a situação da Física, a qual não trata de coisas eter-
nas, mas tampouco é uma ciência prática. Cf. W. F. R. Hardie, op. cit., pp. 222-223.
16
Esta implicação choca-se com a afirmação de Aristóteles de que a alma calculativa
“contempla” as coisas variáveis, se ‘contempla’ significa teoriza.

14
ção, enumera aquelas coisas que existem na alma e que “controlam” (o que parece
significar ‘causam’) a ação: sensação, razão e desejo. A seguir ele procura determi-
nar quais destas coisas pode constituir-se em princípio de ação. Naquele contexto,
‘princípio de ação’ parece significar: ‘aquela coisa (ou coisas) que por si só é causa
da ação’, dado que ele exclui a possibilidade de que a sensação seja princípio de
ação, sob a alegação de que os animais possuem sensação, mas não “participam”
da ação. Tal alegação é aceitável somente se a) a ação é algo que implica não ape-
nas sensação, mas desejo e razão (o que parece estar implícito na enumeração da-
quelas coisas que existem na alma e que controlam a ação), e se b) os animais pos-
suem apenas sensação e não possuem razão, ainda que, talvez, possuam desejo.
A seguir, Aristóteles estabelece uma analogia entre os dois elementos restantes:
“A afirmação e a negação no raciocínio correspondem, no desejo, ao buscar e ao
fugir.” (EN, 1139a 22; os grifos são nossos). (‘Raciocínio’ deve ser entendido aqui
como um uso da razão.) Em que sentido há aqui uma correspondência? Isto se es-
clarece no que se segue à passagem citada:

...sendo a virtude moral uma disposição de caráter relacionada com a escolha, e sendo a
escolha um desejo deliberado, tanto deve ser verdadeiro o raciocínio como reto o dese-
jo para que a escolha seja acertada, e o segundo deve buscar exatamente o que afirma o
primeiro. (EN, 1139a 24).

O conceito chave aqui é o de escolha acertada. Para que se possa fazer uma esco-
lha acertada, deve-se, a) buscar aquilo que se segue do raciocínio prático, da deli-
beração, b) este raciocínio deve ser verdadeiro e c) o desejo deve ser reto, isto é,
deve ser fruto de uma determinada disposição de caráter: a virtude moral. Talvez
seja a virtude moral que determina que se busque aquilo que se segue do raciocínio
prático, e, por isso, talvez a) siga-se de c). Mas, isto somente pode ser o caso se a
virtude moral for uma condição de possibilidade do raciocínio prático, pois a virtu-
de moral não pode determinar que se busque algo moralmente neutro. Isto está
implícito no conceito de escolha acertada. Uma escolha acertada é acertada na
medida em que é uma escolha do meio-termo da ação, a qual, deste modo, nada
mais é do que a ação virtuosa. Portanto, dado que toda escolha é o resultado da
deliberação, do raciocínio prático, o raciocínio prático é o resultado de uma combi-
nação de uma capacidade intelectual e da disposição de caráter virtuosa ⎯ a virtu-
de moral ⎯, a qual tem como conseqüência o desejo de uma ação virtuosa.

Eis aí porque a escolha não pode existir sem razão e intelecto, nem sem uma disposição
moral; pois a boa ação [e, portanto, a boa escolha] e o seu contrário não podem existir
sem uma combinação de intelecto e caráter. (EN, 1139a 32-35)

(Deve-se entender ‘boa ação’ como significando aqui boa ação em si mesma.) A
causa eficiente da boa escolha, sua conditio sine qua non, não é, portanto, apenas o
intelecto, mas também o caráter. Aristóteles, entretanto, acrescenta: “O intelecto
em si mesmo não move coisa alguma; só pode fazê-lo o intelecto prático, o qual
visa um fim qualquer.” (EN, 1139a 35-36) A escolha acertada é aquela que é fruto
de um raciocínio que é feito em função de uma determinada finalidade geral: reali-
zar ações virtuosas, ou, como vimos, ser justo. Esta finalidade é o objeto do desejo
do homem virtuoso. Mas esta finalidade geral, conforme as circunstâncias, toma
uma forma particular no desejo de realizar cada uma das virtudes morais particula-

15
res: temperança, coragem, etc. Uma escolha, portanto, é sempre feita por meio do
uso do intelecto prático, o qual sempre opera em função de um fim, que, por sua
vez, é sempre objeto de um desejo. Devido a isso Aristóteles diz: “...a escolha é o
raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo, e a origem de uma ação desta espé-
cie é um homem.” (EN, 1139b 4-5) O desejo concorre com o intelecto para encon-
trar os melhores meios para realizar sua finalidade.17 Neste ponto, devemos consi-
derar a polêmica opinião de Aristóteles, expressada no livro III da EN, segundo a
qual os objetos de deliberação são sempre os meios, e nunca os fins. Citarei a pas-
sagem e seguirei comentando-a.

Não deliberamos acerca dos fins, mas a respeito de meios. Um médico, por exemplo,
não delibera se há de curar ou não, nem um orador se há de persuadir, nem um estadista
se há de implantar a ordem pública, nem qualquer outro delibera a respeito de sua fina-
lidade. Dão a finalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de alcan-
çá-la; e, se parece ser alcançada por vários meios, procuram o mais fácil e o mais efi-
caz; e se por um só, examinam como será alcançada por ele, e por que outro meio al-
cançará este primeiro, até chegar ao primeiro princípio, que na ordem de descobrimento
é o último. (EN, 1112b 11-19)

Parece contra-intuitivo que não se possa deliberar sobre fins. Por exemplo: para
ficar com os exemplos de Aristóteles, parece aceitável dizer que alguém pode deli-
berar sobre se irá curar as pessoas ou se irá persuadí-las. Aristóteles, entretanto,
está realmente negando esta possibilidade? Segundo Sarah Broadie, não.18 A evi-
dência para esta interpretação seria a expressão ‘sua’ que ocorre na frase “...nem
qualquer outro delibera a respeito de sua finalidade.” “Aqui Aristóteles considera
abstrações: o médico qua médico.”19 Na medida em que uma pessoa delibera como
um profissional como outro qualquer, o qual teria, por hipótese, um direito incon-
dicional a um período de descanso, ela pode deliberar se irá curar uma pessoa que
está enferma durante o seu período de descanso. Mas, na medida em que delibera
como médico, a finalidade do médico não pode ser colocada em questão. Uma
evidência adicional para esta interpretação é a seguinte: Aristóteles admite a possi-
bilidade de que uma deliberação se conclua na escolha de um meio ou meios para
se atingir uma finalidade, a qual é uma meio em relação a outra finalidade. Ora, se
uma coisa X é um meio M em relação a um determinado fim, então pode-se delibe-
rar sobre X. Mas, se X é um fim em relação a outro meio M’, isto não impede a
primeira possibilidade. Desta reflexão conclui-se que os conceitos meio-fim são
conceitos funcionais. Pode-se deliberar sobre X apenas na medida em que X é um
meio em relação a um determinado fim Y, isto é, se deliberar sobre X é deliberar
sobre X por causa de Y.20 X, portanto, enquanto é objeto de uma possível delibera-
ção, é considerado através da função ‘X por causa de Y’. Pode-se, entretanto, deli-
berar sobre Y, se Y for considerado através da função ‘Y por causa de Z’. Aqui,
todavia, Y não mais é considerado como um fim, e sim, como um meio. Mas, po-
de-se tornar Y não deliberável, se ele for considerado através da função ‘X por

17
Ou, poder-se-ia dizer, o elemento desiderativo virtualmente habituado “escuta e obede-
ce” a razão, a fim de realizar o seu objeto de desejo (EN, 1102b 30 ss.)
18
Sarah Broadie, Ethics With Aristotle, pp. 182-183.
19
Op. cit., p. 183.
20
Op. cit., p. 179.

16
causa de Y’. Sendo assim, o caráter não deliberativo dos fins não é absoluto, mas é
relativo única e exclusivamente à estrutura funcional da deliberação,21 funcionali-
dade esta oriunda dos conceitos meio-fim. Consequentemente, se isto está correto, o
que Aristóteles estaria dizendo na passagem supracitada seria que não se pode deli-
berar sobre fins porque deliberar é deliberar sobre X por causa de Y, e X, neste
contexto, é sempre um meio em relação a um fim. Poder-se-ia, a partir disso, dizer
que se pode realizar a deliberação D sobre um fim F apenas na medida em que F
não é o fim visado na deliberação D. Alguém pode, pois, deliberar sobre se irá
curar as pessoas ou se irá persuadí-las, mas pode fazer isso apenas na medida em
que ‘curar as pessoas ou persuadí-las’ é uma disjunção de meios em relação a um
fim que não é um elemento desta disjunção ⎯ ser feliz, talvez.22
Se, portanto, deliberar é deliberar sobre X por causa de Y, deliberar moralmente
bem, ou fazer a escolha acertada, parece ser deliberar tendo como fim em vista um
bem moral; de um modo geral, o bem humano, ou felicidade. Isto sugere que, para
deliberar bem de um modo prático, deve-se estar de posse da verdadeira concepção
da do que seja o bem humano ou felicidade. Broadie chama esta concepção sobre a
deliberação moral de concepção do “Grande Fim”.23 Esta é a opinião expressada
por Hardie. Com efeito ele diz: “...quando Aristóteles sustenta que um homem
sábio teria uma adequada e verdadeira concepção de eudaimonia, e faz dela o fim
da sua vida, ele quer dizer que um homem sábio é um erudito perseguidor da sua
própria felicidade.”24 “A pessoa de sabedoria prática teria (em uma tal teoria) que
ser filósofo ou ter absorvido os ensinamentos dos filósofos.”25 O argumento de
Broadie contra uma tal concepção da deliberação moral, e, portanto, da sabedoria
prática, é mais ou menos o seguinte:26 como o sábio obtém “uma adequada e ver-
dadeira concepção de eudaimonia”? Por experiência, diria Aristóteles. Como se dá

21
Aristóteles faz uma comparação entre a impossibilidade de deliberar sobre fins e a im-
possibilidade de deliberar sobre fatos particulares, afirmando que os fatos particulares são
objeto de percepção e não de deliberação (EN, 1113a 1-2). Esta comparação sugere que
afirmar que um fim é objeto de deliberação é cometer um erro categorial, tal como o é
dizer que um fato particular é objeto de deliberação.
22
A única ressalva que se deve fazer à explicação acima é a de que a felicidade não é
uma coisa X que possa ser considerada através da função ‘X por causa de Y’, pois ela,
como vimos, é um fim absoluto. Sobre ela, portanto, não se pode deliberar em absoluto.
23
Broadie, op. cit., pp. 198ss. Segundo Broadie, esta opinião a respeito da deliberação
moral nasce de uma analogia enganadora entre deliberação moral e a deliberação que há na
arte (cf. op. cit., pp. 190-198), isto é, a “capacidade raciocinada de produzir” (EN, 1140a 7);
analogia esta sugerida pelo próprio Aristóteles em algumas passagens da EN. “[...] Bem o
mostra o fato de atribuirmos sabedoria prática a um homem, sob um aspecto particular,
quando ele calculou bem com vistas em alguma finalidade boa que não se inclui entre aque-
las que são objeto de alguma arte.” (EN, 1140a 28-30) A diferença entre o raciocínio práti-
co na arte e outro no âmbito moral repousaria na diferença do fim visado em cada um, e não
na sua forma.
24
Hardie, op. cit., p. 215. Deve-se observar que Hardie faz esta observação em meio a
discussão sobre o caráter egoísta ou altruísta do conceito aristotélico de felicidade. Por isso,
o que está na mira da análise, e, por isso, está sob suspeita, é a afirmação de que o homem
sábio é um perseguidor da sua própria felicidade, e não de que ele é um erudito persegui-
dor da felicidade.
25
Broadie, op. cit. p. 190.
26
Op. cit., pp. 200- 201.

17
esta experiência? Dá-se por meio da análise de deliberações particulares. Mas, o
que pode funcionar aqui como critério para julgar que uma deliberação particular é
sábia ou não? Certamente não pode ser uma “adequada e verdadeira concepção de
eudaimonia”, pois, caso contrário, esta concepção da experiência moral seria circu-
lar. Portanto, uma adequada e verdadeira concepção de eudaimonia não pode ser
uma condição necessária da deliberação sábia, e tampouco, portanto, da sabedoria
prática. Acreditar no contrário é confundir a sabedoria prática com a sabedoria
sobre a prática. Aristóteles não possuía sabedoria prática porque escreveu a Ética a
Nicômaco, mas sim porque possuía (se possuía) a capacidade de deliberar bem;
porque seguia as regras do bem deliberar moralmente.
Quais são as regras do bem deliberar moralmente? Qual é a forma geral da boa
deliberação moral? Voltemos àquela passagem na qual Aristóteles diz que para que
a escolha seja acertada tanto deve ser verdadeiro o raciocínio, quanto reto o desejo.
O que se deve entender aqui por ‘raciocínio verdadeiro’? Após a passagem men-
cionada, Aristóteles faz uma comparação entre intelecto contemplativo e intelecto
prático. Diz ele:

Ora, esta espécie de intelecto e de verdade é prática. Quanto ao intelecto contemplativo,


e não prático nem produtivo, o bom e o mau estado são, respectivamente, a verdade e a
falsidade (pois esta é a obra de toda parte racional); mas da parte prática e intelectual o
bom estado é a concordância da verdade com o reto desejo. (EN, 1139a 27-31)

Aqui novamente aparece a idéia de que a boa escolha realiza-se pela conjunção do
elemento desiderativo da alma com o elemento racional. Temos agora as expres-
sões a) ‘verdade do raciocínio’, b) ‘verdade prática’, c) ‘verdade enquanto um pro-
duto de todo elemento racional da alma’ e d) ‘verdade que, no bom estado do inte-
lecto prático, concorda com o reto desejo’. (c) parece designar um conceito geral
de verdade, o qual vale tanto para o intelecto prático quanto para o intelecto con-
templativo. Um pouco mais abaixo, Aristóteles diz: “...a obra de ambas as partes
intelectuais é a verdade. Logo, as virtudes de ambas serão aquelas disposições se-
gundo as quais cada uma delas alcançará a verdade.” (EN, 1139b 12ss.) Resta saber
se este conceito é um conceito genérico no sentido estrito do termo, e se, portanto,
a expressão ‘verdade’ é usada nos dois casos como sinônimas, ou se em ambos os
casos se diz que há uma verdade por analogia ou ainda, o que é menos provável,
por homonímia. (a) e (d) parecem significar a mesma coisa. Ambos, entretanto,
significam o mesmo que (b)? Certamente que não, pois, caso contrário, não se pode
dizer que a verdade prática é a concordância da verdade com o reto desejo, sob
pena de criar uma definição na qual o definiendum ocorre no definiens. Parece en-
tão que (a) e (d) referem-se à verdade teórica. Isto significa dizer que a verdade
pratica é a concordância da verdade teórica com o reto desejo? Se sim, então em
que medida (c) é (se é) um gênero de (b)? Aqui não é possível avançar mais sem
responder às seguintes perguntas:

1. O que significa (c)?


2. O que significa (b)?
3. O que significa (a) e (d)?

18
Broadie, a partir de uma sugestão de Aristóteles (EN, 1139b 26ss.), afirma que a
resposta a (1) deve ser encontrada nos Analíticos Posteriores de Aristóteles, onde
ele explica o que é o conhecimento científico. Na Ética a Nicômaco Aristóteles diz:

Em suma, o conhecimento científico é um estado que nos torna capazes de demonstrar


[...], pois é quando um homem tem certa espécie de convicção, além de conhecer os
pontos de partida, que possui conhecimento científico. E se estes [os pontos de partida]
não lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusão, sua ciência será puramente a-
cidental. (EN 1139b 31-34)

A interpretação de Broadie desta passagem é a seguinte:

Aqui ele explica qual é o objetivo da atividade teórica e como ele é atingido. O objetivo
é o conhecimento científico (epistèmè), e conhecimento científico é entender e ser ca-
paz de explicar fatos gerais em termos das suas causas. Nós começamos por assumir
que alguma coisa é o caso, e então procuramos entender e explicá-la por referência aos
primeiros princípios dos quais ela se segue silogisticamente. Diz-se de alguém que te-
nha um adequado silogismo sob seu domínio que é capaz de ‘demonstrar’ o fato a ser
explicado, e esta compreensão [grasp] demonstrativa (epistèmè) é compreensão da ver-
dade. Ter a verdade sobre um fato é ter a explicação; não é ter fundamentos para ou e-
vidências de que o fato ocorre.
[...] ‘verdade’ aqui não significa outra coisa do que tudo o quanto seja a ocupação
[business] da razão perseguir, de acordo com a espécie de raciocínio.27

Esta interpretação é reforçada pelo fato de que Aristóteles elenca cinco espécies de
disposições pelas quais a alma está de posse da verdade ⎯ arte, conhecimento
científico, sabedoria prática, sabedoria filosófica, e razão intuitiva ⎯ e justifica a
exclusão do juízo e da opinião dizendo que “estas podem enganar-se” (EN, 1139b
15ss.). Isto significa que estar de posse da verdade é dispor de um fundamento
racional28 que garante a verdade de uma proposição particular, seja no caso da teo-
ria, seja no caso da deliberação. Seja como for, se a interpretação de Broadie está
correta, então (c) designa o gênero da verdade, do qual a verdade teórica e a verda-
de prática são espécies. (b), portanto, é uma espécie de entendimento e explicação
da ação. Isto sugere que ‘boa deliberação’ ou ‘escolha acertada’ são sinônimos de
‘verdade prática’. Deliberar bem é encontrar a verdade prática.29 E encontrar a ver-
dade prática é encontrar os fundamentos racionais da escolha, é realizar uma esco-
lha racional; uma escolha que se baseia em razões. Segundo Broadie, “é importante
para ele [Aristóteles] falar de verdade nesta conexão, não meramente do bom, cor-
reto ou apropriado, pois estes termos também se aplicam à infra-estrutura não
racional da escolha racional.”30 Isto é, eles aplicam-se a tudo aquilo que é virtuoso
ou justo sem ser a conseqüência de uma escolha racional, e que, por isso, não são
virtuosos justos em si mesmos.
Mas, ainda resta a questão (3). O que pode significar que a verdade prática con-
siste na concordância da verdade, ou da verdade do raciocínio, com o reto desejo?
Tendo em vista que ‘verdade’ está aqui qualificando o raciocínio, e tendo em vista

27
Op. cit., p. 223.
28
Não fosse o caso da razão intuitiva, poder-se-ia dizer aqui raciocínio.
29
Op. cit., p. 225.
30
Op. cit., p. 224.

19
que tal verdade pode dar-se independentemente da sua concordância com o reto
desejo, concordância esta que consiste na verdade prática, parece então que a ex-
pressão ‘verdade’ significa, neste contexto, o mesmo que, na lógica, significa a
expressão ‘validade formal’. Em sendo assim, a deliberação, ou ao menos a boa
deliberação, não seria, sem mais, este raciocínio, pois, como vimos, deliberar bem é
encontrar a verdade prática e encontrar a verdade prática é estabelecer a concor-
dância entre o raciocínio verdadeiro com o reto desejo. Portanto, a verdade prática
não é, tal como se conjecturou acima, a concordância da verdade teórica com o reto
desejo, como se houvesse um conhecimento cientifico que justificasse a ação. A
verdade prática é, antes, a concordância do raciocínio válido com o reto desejo.
Talvez se possa dizer que a verdade prática consiste na concordância da verdade
teórica com o reto desejo, mas apenas na medida em que se entende ‘verdade teóri-
ca’ como significando ‘demonstração’ e na medida em que se concebe a delibera-
ção como um tipo de demonstração. (Cf. EN, 1143b 11ss.) Seja como for, temos
que responder agora à seguinte pergunta: qual é forma válida do raciocínio que
deve estar em concordância com o reto desejo? Ou então, quais são os termos for-
mais deste raciocínio?
Dois termos já são conhecidos: meio e fim. Pois a deliberação é um raciocínio
que procura justificar a escolha de um meio X por causa de um fim Y. Em se tra-
tando de uma boa deliberação, Y certamente deve ser um fim moralmente digno de
ser atingido. Como primeira aproximação teríamos o seguinte tipo de raciocínio:

1. se desejo Y, devo fazer aquilo que é um meio para realizar Y;


2. desejo Y;
3. X é um meio para realizar Y;
Ergo, devo fazer X.

Isto poderia ser a forma geral da deliberação? Não. Há dois problemas básicos
suscitado por este padrão de argumentação: a) mesmo sendo um meio para atingir
Y, o qual é um fim moralmente aceitável, X pode ser uma ação moralmente conde-
nável, quer por razões intrínsecas, quer por razões extrínsecas; e b) ainda que Y,
por razões intrínsecas, seja moralmente aceitável, pode ocorrer que, por razões
extrínsecas, seja moralmente condenável. (a) representa o problema do conflito de
valores (que devo fazer se, para fazer Y, o qual é moralmente bom, devo fazer X, o
qual é moralmente mau?) e da moralidade dos meios (se o fim é moralmente bom,
o meio que escolho, não importa qual, é também moralmente bom?), e (b) repre-
senta o problema da circunstancialidade (matar é moralmente mau em qualquer
circunstância?). Em última análise, estes problemas dizem respeito às circunstân-
cias ou situação na qual se deve escolher o que fazer; e em ambos os casos não se
realiza uma boa deliberação, se o raciocínio, ainda que válido, não concorda com o
reto desejo. O tipo de raciocínio apresentado acima é semelhante àqueles apresen-
tados por Aristóteles em dois exemplos. O primeiro parece ser uma conjunção de
um silogismo teórico com um argumento da forma exibida acima. Diz Aristóteles:

...se um homem soubesse que as carnes leves são digeríveis e saudáveis, mas ignorasse
que espécies de carnes são leves, esse homem não seria capaz de produzir a saúde; po-
deria, pelo contrário, produzí-la o que sabe ser saudável a carne de galinha. (EN, 1141b
17-20)

20
Aqui pode-se separar dois argumentos distintos:

argumento A
1. se desejo a saúde, devo fazer aquilo que é um meio para ela, isto é, aquilo
que é saudável;
2. desejo a saúde;
3. comer carnes leves é um meio para a saúde, isto é, é saudável;
Ergo, devo comer carnes leves.

argumento B
1. as carnes leves são saudáveis;
2. a carne de galinha é leve;
Ergo, a carne de galinha é saudável.

A argumentação apresentada na passagem supracitada é desenvolvida tendo em


vista uma finalidade, e, por isso, nela está implícito um raciocínio prático. Tal fina-
lidade expressa-se na frase “...esse homem não seria capaz de produzir a saúde...”.
Aristóteles quer mostrar, entretanto, que faz-se necessário lançar mão de argumen-
tos do tipo B, a fim de que a premissa (3) do argumento do tipo A ganhe a sua de-
vida especificação, e, assim, torne a conclusão do argumento imediatamente prati-
cável. Esta especificação faz-se necessária porque a sabedoria prática se ocupa
“com o fato particular imediato, visto que a coisa a fazer é desta natureza”(EN,
1142a 23-24). O particular imediato é aquilo que é objeto não de conhecimento
científico mas de percepção ⎯ e não da percepção de qualidades peculiares a um
determinado sentido, mas de uma percepção semelhante àquela pela qual sabemos
que a figura particular que temos diante dos nossos olhos é um triângulo.” (EN,
1142a 24-29) O particular imediato, e, portanto, a ação que deve ser realizada, é
uma instância de um conceito. ‘Perceber’, neste caso, significa: ‘saber que a coisa
a é uma instância do conceito F’. A combinação do argumento A com o argumento
B, portanto, resulta na seguinte conclusão: ‘devo comer carne de galinha.’
O outro exemplo de Aristóteles inclui uma proibição. Diz ele:

...o erro na deliberação pode versar tanto sobre o universal como sobre o particular, isto
é: tanto é possível ignorar que toda água pesada é má como que esta água aqui presente
é pesada. (EN, 1142a 20-22)

‘Má’ certamente está sendo usado aqui como sinônimo de ‘insalubre’. Portanto, a
ignorância a que Aristóteles se refere diz respeito à premissa (3) do argumento do
tipo A. Por outro lado, mesmo não ignorando a verdade da premissa (3), sem um
silogismo que especifique o conceito água pesada e que resulte numa nova premis-
sa, pode-se cometer um erro de deliberação. Tal erro se deriva da incapacidade de
identificar as instâncias de um dos conceitos da premissa (3), que, no exemplo
acima, é água pesada. Deste modo, o argumento implícito na passagem supracita-
da, com o acréscimo da nova premissa, seria o seguinte:

1. se desejo a saúde, não devo fazer aquilo que é um meio para ela destruí-la,
isto é, aquilo que é insalubre;
2. desejo a saúde;

21
3. beber água pesada é insalubre;
4. esta água aqui presente é pesada
Ergo, não devo beber esta água.

A grande dificuldade destes dois exemplos consiste em ambos a finalidade vi-


sada pelo argumento, a saúde, é a finalidade de uma arte: a medicina. Mas, arte ou
produção e ação não são a mesma coisa (EN, VI, cap. 4) Sendo assim, qual é a
diferença entre um argumento do tipo A usado na arte de um argumento do mesmo
tipo usado em contextos práticos? Uma diferença consiste em que na arte não há o
problema do conflito de valores, nem o problema da moralidade dos meios, e nem
o problema da circunstancialidade. Isto indica que a forma geral da deliberação
deve ser diferente da forma do argumento do tipo A. Ela deve incluir o fator cir-
cunstancial. Tal fator introduz uma certa dose de variabilidade na justificação de
uma mesma ação particular. Na circunstância C, a ação A é justificada, na circuns-
tância C’, ela pode não sê-lo. Isto esta de acordo com a afirmação de Aristóteles de
que a sabedoria prática versa sobre o variável. Qual é, portanto, a forma geral da
deliberação?
Aristóteles afirma que “os silogismos em torno do que se deve fazer começam
assim: ‘visto que o fim, isto é, o que é melhor, é de tal e tal natureza...’” (EN,
1144a 31) O fim é aquilo que é objeto de desejo. Portanto a deliberação sempre
começa a partir da consideração dos nossos desejos, dos nossos interesses.31 Se sou
um homem virtuoso (ou ao menos esforço-me para sê-lo), iniciarei a deliberação
com uma constatação cuja forma é mais ou menos a seguinte: ‘X é bom e eu desejo
X, porque eu desejo o que é bom’, onde X designa um conceito que representa, de
um modo geral, uma ação virtuosa, tal como ação corajosa. Qual é passo seguinte?
O passo seguinte parece ser encontrar um meio para realizar X. A partir desses dois
passos teríamos o seguinte argumento:

1. X é bom;
2. eu desejo realizar X;
3. para realizar X, deve-se fazer o que é um meio para realizar X;
4. M é um meio para realizar X
Ergo, eu devo fazer M.

Mas, dado que o problema da incompatibilidade de valores, da justificação dos


meios e da circunstancialidade originam-se do fato de que tanto o fim quanto os
meios para fins, embora tendo um valor intrínseco, possuem um valor extrínseco
que varia conforme as circunstâncias, a pessoa que delibera deveria levar a cabo a
deliberação sempre procurando determinar não o que é virtuoso fazer sem mais,
mas sim o que é virtuoso fazer, dadas as circunstâncias (ou dada a situação) tais
como, por exemplo, o tipo de pessoa que delibera, as conseqüências da ação em
relação às outras pessoas, o tipo de pessoa que sofre as conseqüências da ação, o
momento em que a ação é realizada, o local, etc. Portanto, a deliberação deve inclui
este fator nas suas premissas. M é um meio para realizar X, mas, se ele é um meio
relevante para a minha presente deliberação, então ele deve ser um meio para reali-

31
“... é àquele que observa bem as diversas coisas que lhe dizem respeito que atribuímos
sabedoria prática.” (EN, 1141a 25)

22
zar X na situação S em que me encontro. Ademais, o meu interesse em realizar X é
um interesse que surge em alguma situação determinada. Desejar realizar X é dese-
jar realizar X na situação S. Talvez M não seja factível na situação em que me
encontro. Se este for o caso, terei que encontrar um outro meio de realizar X. Seja
como for, temos que introduzir uma nova premissa no argumento esboçado acima e
temos que modificar o que ali é a premissa (4). A partir disso temos o seguinte
argumento:

1. X é bom;
2. desejo realizar X;
3. estou na situação S;
4. para realizar X, deve-se fazer o que é uma meio para realizar X;
5. na situação S, M é um meio para realizar X
Ergo, devo fazer M.

O que ocorre, entretanto, se, após uma reflexão eu constato, na situação S, todo
meio para realizar X é mau? Neste caso tenho a seguinte disjunção: ou a) eu renun-
cio a realizar X,32 ou b) pondero qual dentre os meios para realizar X na situação S
é o mal menor, ou ainda c) procuro modificar S. Os critérios para decidir entre os
três termos desta disjunção são basicamente os seguintes: d) o valor da renúncia a
realizar X, e) os valores dos meios alternativos em relação a M, e f) a possibilidade
(tanto teórica quanto moral) de modificar S. Através deste ajustamento do argu-
mento ao reto desejo vai-se procurando uma versão final satisfatória do argumento,
a qual concorde inteiramente com o reto desejo.33 Este último, então, perseguirá o
que determina a conclusão do argumento. O todo deste processo de ajustamento é a
deliberação, e, portanto, ter a capacidade de encontrar o ajuste perfeito entre um
argumento possível ⎯ que é válido e cuja prescrição é realizável ⎯ e o reto desejo
é ter sabedoria prática. Tal ajuste perfeito resulta na justificação da ação, pois re-
sulta na determinação do que, dadas as circunstâncias, é o melhor a ser feito.34
Na forma do último argumento apresentado, a premissa (5) é um tipo de instan-
ciação do conceito X da premissa (1), o qual, como vimos designa, de um modo
geral, uma ação virtuosa. A instância do conceito X é designada pela expressão
‘fazer M na situação S’. Realizar X na situação S por meio de uma deliberação é
encontrar a ação que, de uma só vez, é uma instância de X e é possível de ser reali-
zada na situação S. Portanto, deliberar é realizar a instanciação do conceito X. A
dificuldade desta instanciação consiste em que ela é sempre feita com relação a
uma determinada situação, a qual é descrita sempre em função do desejo de realizar

32
“E se chegamos a uma impossibilidade, renunciamos à busca: por exemplo, se preci-
samos de dinheiro e não há maneira de consegui-lo. Mas se uma coisa é possível tratamos
de fazê-la. Por coisas ‘possíveis’ entendo aquelas que podem se realizar pelos nossos esfor-
ços.” (EN, 1112b 25-27) Lembremo-nos de que Aristóteles afirma que se os infortúnios
forem em grande número e de freqüência intensa, “poderão esmagar e mutilar a felicidade,
pois que, além de serem acompanhados de dor, impedem muitas atividades” (EN 1100b 9-
10; o grifo é nosso).
33
Cf Broadie, op. cit., pp. 228-229.
34
“...delibera bem no sentido irrestrito do termo aquele que, baseando-se no cálculo, é
capaz de visar à melhor, para o homem, das coisas alcançável pela ação.” (EN, 1142b 12-
13)

23
X. Além disso, algumas vezes realizar M na situação X pode ser uma instância
legítima de X, mas, ao mesmo tempo, pode ser uma instância do conceito Z, o qual
representa um vício. Isto pode ocorrer porque fazer M na situação S, mesmo reali-
zando X, tem como conseqüência, devida justamente a fazer M na situação S, a
realização de Z. Por conseguinte, deliberar é encontrar uma ação que seja uma es-
pécie de elo entre um conceito geral de uma ação virtuosa35 desejada, a situação em
que o sujeito deliberante se encontra (e, talvez, entre esta situação e uma situação
na qual a situação pode se transformar através da ação do sujeito deliberante), e os
demais conceitos de ação virtuosa.
Não é certo que Aristóteles tenha concebido explicitamente esta forma do ar-
gumento deliberativo. Entretanto algo é certo: os elementos que a compõem ⎯
meios, fins, circunstâncias ou situação, concordância e processo de ajustamento
entre raciocínio e reto desejo ⎯ aparecem em vários pontos da sua reflexão. O
elemento menos explícito é o processo de ajustamento entre raciocínio válido e reto
desejo. A concordância entre ambos é algo explícito. Mas, não é certo que Aristóte-
les tenha pensado a procura por esta concordância como um processo de ajusta-
mento, dado que ele concebe a deliberação como uma espécie de cálculo, e isto
sugere que a deliberação seria constituída de um conjunto de regras que se aplicari-
am de uma só vez aos elementos da deliberação.

IV. Conclusão

Vários tópicos a respeito da sabedoria prática não forma tratados neste artigo. Em
especial, a relação entre sabedoria prática e sumo bem. Afinal, o sumo bem ou
felicidade foi apresentado aqui como a excelência do homem, e a excelência do
homem foi apresentada como uma atividade moral. Ocorre que Aristóteles afirma
que “essa atividade [a atividade que é a excelência do homem] é contemplativa”
(EN, 1177a 17). Deixaremos este problema sem tratamento.
Há, entretanto, uma afirmação feita mais acima que merece um pouco mais de
comentário. Trata-se da afirmação de que a sabedoria prática consiste na capacida-
de de encontrar o ajuste perfeito entre um argumento possível ⎯ válido e cuja
prescrição é realizável ⎯ e o reto desejo. Esta afirmação parece eliminar a possibi-
lidade de se conceber a sabedoria como uma virtude puramente intelectual, pois
inclui na sua estrutura um papel essencial para o reto desejo, o qual, à primeira

35
Poder-se-ia perguntar: porque, segundo Aristóteles, a ação corajosa, por exemplo, é
uma ação virtuosa? a) Devido à definição de formal (não indutiva) de virtude, a qual pode
incluir espécies desconhecidas de virtude (de outras culturas, talvez)? É possível provar que
uma determinada disposição de caráter é uma virtude sem fazer apelos do tipo “todos con-
sideram que isso é virtude”? (E aqui dever-se-ia especificar a referência de ‘todos’.) Ou
considerar uma disposição de caráter como uma virtude é algo que b) depende a uma certa
determinação cultural? Todo o peso do deve do argumento deliberativo repousa, em última
análise, no bom da premissa (1). Se, portanto a resposta à primeira pergunta é (b), então o
argumento deliberativo de Aristóteles é justificante, dados os valores morais da cultura
grega da sua época. Se a resposta é (a), o que pode funcionar como definição formal de
virtude?

24
vista, não pode ser tido em conta como uma virtude intelectual. Aristóteles, todavi-
a, afirma:

..dizemos que algumas virtudes são intelectuais e outras morais; entre as primeiras te-
mos a sabedoria filosófica, a compreensão, a sabedoria prática; entre as segundas, por
exemplo, a liberalidade e a temperança. Com efeito, ao falar do caráter de um homem
não dizemos que ele é sábio ou que possui entendimento, mas que é calmo e temperan-
te. (EN, 1103a 4-10)

Em contraste com estas afirmações tão categóricas, Aristóteles complementa em


forma de ressalva: “No entanto, louvamos também o sábio, referindo-nos ao hábi-
to; e os hábitos dignos de louvor chamamos virtudes.” (EN, 1103a 10-11) Toda
virtude adquirida por hábito é uma virtude moral (EN, 1103a 14ss.) Há uma passa-
gem na qual Aristóteles é mais categórico em relação ao estatuto da sabedoria prá-
tica: “Do que se disse fica bem claro que não é possível ser bom na acepção estrita
do termo sem sabedoria prática, nem possuir sabedoria sem virtude moral.” (EN,
1144b 30) Se não é possível adquirir sabedoria prática sem virtude moral, isto pa-
rece ser porque a última é um elemento componente da primeira. Ter sabedoria
prática é saber deliberar bem. Deliberar é calcular, é raciocinar de um modo práti-
co. Raciocinar de um modo prático, por sua vez, é algo que envolve, necessaria-
mente, o reto desejo, pois, caso contrário, seria uma mera habilidade, isto é, uma
faculdade “que tem o poder de fazer as coisas que conduzem ao fim e alcançá-lo”
(EN, 1144a 24-25), seja este fim bom ou mau; e “se o fim for mau, a habilidade
será simples astúcia” (EN, 1144a 26). Mais adiante, Aristóteles faz uma afirmação
inversa à primeira parte de 1144b 30: “...está claro que não é possível possuir sabe-
doria prática quem não seja bom” (EN, 1144a 36). Esta última afirmação baseia-se
no conceito de bondade, ou virtude, em si e não por acidente. Ser moralmente vir-
tuoso em si é ter o desejo reto ⎯ ou ter virtude natural, no sentido em que é uma
disposição de caráter ⎯ e ter a capacidade de escolher racionalmente o melhor
meio de realizar aquilo que é buscado pelo reto desejo. Tem-se, pois, o seguinte par
de teses: a) não é possível possuir sabedoria prática sem ser bom ou virtuoso (em
si) e b) não é possível ser bom ou virtuoso (em si) sem possuir sabedoria prática.
Dada a mútua condicionalidade de ser virtuoso ou bom em si, por um lado, e ser
sábio de um modo prático, por outro, parece que o qualificativo ‘bom em si’ ou
‘virtuoso em si’, quando aplicados às ações, implicam a atribuição de qualidades
intelectuais e morais àquele que as pratica. Ambas, sabedoria prática e virtude mo-
ral, parecem ser dois lados da mesma moeda. Ou seja, talvez à sabedoria prática e à
virtude moral em si mesma aplique-se aquele tipo de distinção que Aristóteles es-
tabeleceu entre justiça e virtude: ambas são a mesma coisa, mas diferem quanto a
essência. Diz-se que uma pessoa possui sabedoria prática quando, qua moralmente
virtuosa em si, se considera a excelência intelectual que ela possui, e diz-se desta
mesma pessoa que possui virtude moral em si quando, qua sábia de um modo prá-
tico, se considera a excelência moral que esta pessoa possui. Esta interpretação
ajusta-se à afirmação de Aristóteles segundo a qual, para que um homem seja bom,
basta que nele esteja presente uma única qualidade: a sabedoria prática; pois, es-
tando ela presente, “lhe serão dadas todas as virtudes” (EN, 1145a 1).

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Referências

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, São


Paulo, Abril Cultural, 1979.
BROADIE, Sarah, Ethics With Aristotle, New York/Oxford, Oxford University
Press, 1991.
HARDIE, W. F. R., Aristotle’s Ehical Theory, Oxford, Clarendon Press, 1988.
MOTHERSILL, Mary, “Anscombe’s Account of the Pratical Sylogism”, Philoso-
phical Review, Vol. LXXI, nº 4, 1962.

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