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6.

Dinâmica de Elétrons
em Sólidos
6.1 – O modelo de Drude

Neste Capítulo trataremos da dinâmica de elétrons em sólidos, que consiste


no estudo da resposta eletrônica a campos elétricos e magnéticos externos. Veremos
que, em muitas situações, esta a resposta é bastante diferente do que se poderia
esperar de um elétron isolado, ou seja, o potencial cristalino exerce um papel
fundamental, dando origem a efeitos inusitados. Iremos, portanto, utilizar os diversos
conceitos introduzidos no capítulo anterior, e veremos que será fundamental
considerarmos a natureza quântica dos elétrons. Porém, é conveniente iniciarmos este
estudo com um modelo clássico de condução cristalina. Faremos isto não apenas por
razões históricas, mas também para introduzirmos alguns conceitos básicos e até
mesmo para apontar as insuficiências deste modelo clássico, que tornaram clara a
necessidade de uma formulação quântica da dinâmica eletrônica. Este modelo é
conhecido como modelo de Drude.
Em 1900, ou seja, apenas 3 anos depois da descoberta do elétron por J. J.
Thomson, P. Drude formulou um modelo para a dinâmica daquelas então recém-
descobertas partículas com o objetivo de explicar, entre outras coisas, a condução de
eletricidade e calor pelos metais. Naquela época, antes do surgimento da Mecânica
Quântica, as ferramentas de Drude eram a Mecânica Newtoniana e a Termodinâmica.
Drude então supôs que os elétrons em um sólido se comportavam como um gás de
partículas clássicas, o que era a melhor suposição possível na ocasião.
Drude supôs ainda que os elétrons se moviam em um cristal sofrendo
seguidas colisões com os íons da rede, como está esquematizado na Fig. 6.1. Como
vimos no Capítulo anterior, isto não é correto: em um potencial cristalino periódico
um elétron de Bloch tem uma velocidade média independente do tempo. Se a hipótese
de colisões com os íons estacionários fosse verdadeira, o livre caminho médio de um
elétron no sólido seria da ordem das distâncias interatômicas, ou seja, apenas alguns
angstrons. Como vimos, a baixas temperaturas o livre caminho médio pode chegar a
alguns centímetros!
Hoje sabemos que os mecanismos de espalhamento mais importantes para os
elétrons não são os íons cristalinos estacionários, mas sim os defeitos da rede (como
impurezas, vacâncias, etc.), as vibrações cristalinas (espalhamento elétron-fônon) e o
espalhamento elétron-elétron. No entanto, podemos estudar o modelo de Drude sem
nos preocuparmos com o mecanismo específico de espalhamento. Vamos fazer
apenas as seguintes suposições:
1. A probabilidade que um elétron sofra uma colisão entre os instantes t e
t+dt é dada simplesmente por dt  , onde  é o tempo de relaxação. As
colisões são portanto eventos não-correlacionados.
2. Entre duas colisões, o elétron viaja em linha reta, como uma partícula
livre (caso não esteja sob a ação de forças externas).

108
3. Após a colisão, o elétron "perde a memória" sobre sua velocidade
anterior, e sua nova velocidade tem direção aleatória e módulo dado pela
distribuição de Maxwell.

Figura 6.1 – Modelo clássico de dinâmica eletrônica proposto por Drude, segundo o qual os elétrons
sofreriam colisões clássicas com os íons.

Iremos agora obter a equação de movimento dos elétrons segundo este


modelo. Suponhamos que no instante t o momento linear médio dos elétrons seja
p(t ) . Qual será então o momento médio no instante t+dt ? Bem, o momento de um
elétron pode ser alterado por uma força externa f (t ) ou por colisões. Como dissemos,
um elétron sofre uma colisão entre t e t+dt com probabilidade dt  . Assim, a fração
dos elétrons que colidem neste intervalo é dt  , e a fração dos elétrons que não
colidem é (1 − dt  ) . Assim, a contribuição para p(t + dt) dos elétrons que não
colidem é:

p(t + dt) =  p(t ) + f (t )dt  (1 − dt  ) . (6.1)

Os elétrons que sofreram colisão no intervalo de tempo considerado também


contribuem para p(t + dt) , já que após a colisão eles continuam sendo acelerados
pela força f(t). Podemos dizer que a contribuição destes elétrons é menor que
f (t ) dt  dt  , já que não sabemos o instante exato da colisão. Este termo contribui
apenas em ordem (dt)2 para o momento médio final. Mantendo apenas os termos
lineares em dt, temos

p(t + dt) − p(t ) = f (t )dt − p(t ) dt  , (6.2)

que nos permite então encontrar a equação de movimento:

dp p
=f − , (6.3)
dt 

onde, para simplificar a notação, abandonamos os colchetes para as quantidades


médias. Fica implícito, porém, que esta não é uma equação para um elétron
específico, mas descreve o movimento médio dos elétrons. Note que ela é uma
equação de Newton com um termo dissipativo, devido às colisões.

109
Vamos analisar as consequências da Eq. (6.3) para alguns casos importantes:

(A) Campo elétrico constante: Lei de Ohm


No caso de um campo elétrico constante, temos f = −eE . A Equação (6.3)
torna-se então

dp p (6.4)
= −eE − .
dt 

Estamos interessados principalmente na solução estacionária, ou seja, quando


dp dt = 0 . Impondo esta condição, obtemos

e E
v=− , (6.5)
m

onde v = p m é a velocidade média dos elétrons, conhecida como velocidade de


arraste. A velocidade de arraste está relacionada à densidade de corrente j = −nev ,
onde n é a densidade de elétrons. Assim, obtemos

ne 2
j= E =  DE , (6.6)
m

ne 2
onde  D = é a condutividade de Drude. A Equação (6.6) é a conhecida lei de
m
Ohm da condução elétrica, uma lei empírica que acabamos de demonstrar a partir de
argumentos sobre o movimento microscópico dos elétrons. A expressão para a
condutividade de Drude contém o tempo de relaxação como único parâmetro
desconhecido, já que a massa eletrônica e a densidade de elétrons no metal são, em
princípio, conhecidas. Ela nos permite, portanto, a partir de medidas experimentais da
condutividade, obter o tempo de relaxação, um importante parâmetro associado ao
movimento microscópico eletrônico. A Tabela 6.1 mostra resultados para  para
diversos metais alcalinos a diferentes temperaturas. Note que  é da ordem de 10-14 s e
diminui fortemente com o aumento da temperatura. Assim, a resistividade dos metais
aumenta com a temperatura, o que é verificado experimentalmente e é uma das
características que os distingue dos semicondutores, como veremos futuramente.

Metal T = 77 K T = 273 K
Li 7,3  10-14 s 0,88  10-14 s
Na 17  10-14 s 3,2  10-14 s
K 18  10-14 s 4,1  10-14 s
Tabela 6.1 – Tempo de relaxação em alguns metais alcalinos em função da temperatura. Fonte:
Ashcroft.

110
Figura 6.2 – Medidas experimentais da resistividade do potássio a baixas temperaturas. Note o
comportamento quadrático, convergindo para uma constante (resistividade devido a impurezas) a T = 0.
Os dados se referem a duas amostras com diferentes graus de pureza. (Fonte: Kittel)

Podemos entender de forma mais completa as razões do aumento da


resistividade com a temperatura analisando os diversos tipos de espalhamento que um
elétron pode sofrer. Como já dissemos, um elétron pode ser espalhado por impurezas.
A concentração de impurezas é independente da temperatura, portanto espera-se que a
resistividade associada a este processo de espalhamento também seja razoavelmente
independente da temperatura, ou seja,  i  constante . Um outro mecanismo de
espalhamento é através de vibrações cristalinas. Estudaremos este mecanismo em
mais detalhe no próximo capítulo, mas podemos adiantar que a resistividade associada
a este mecanismo é linear com T a temperaturas altas (  v  T ) e proporcional a T5 a
temperaturas baixas. O terceiro mecanismo é o espalhamento elétron-elétron. Como
vimos brevemente no Capítulo anterior, a seção de choque do espalhamento elétron-
elétron é proporcional a T2 a baixas temperaturas, e portanto a resistividade associada
a este mecanismo tem a mesma dependência. Assim, a resistividade dos metais a
baixas temperaturas é dominada por este termo quadrático
Como considerar simultaneamente todos estes mecanismos de espalhamento?
Supondo que eles são independentes entre si, darão origem a taxas de colisão (inverso
do tempo de relaxação) que se somam, ou seja:
1 1
=∑ (6.6a)
𝜏 𝜏𝑗
𝑗
Esta é a Regra de Matthiessen. O índice i está associado aos diferentes mecanismos
ou processos de espalhamento. Como o inverso do tempo de relaxação é proporcional
à resistividade, a resistividade total será também a soma das contribuições para as
resistividades dos vários processos:

111
 (T ) =  i + AT 2 , (6.7)

A temperaturas altas o mecanismo de espalhamento elétron-elétron deixa de ser


quadrático, e a resistividade é dominada pelo espalhamento elétron-fônon, linear com
a temperatura. A verificação experimental da Regra de Matthiessen está mostrada na
Fig. 6.2.

(B) Campo elétrico e magnético constantes: Efeito Hall


Na presença de campos elétricos e magnéticos, a força que atua sobre um
elétron é a força de Lorentz:

f = −e(E + v  B ) .
(6.8)
A equação de movimento no regime estacionário torna-se, portanto,

 pB  p
e E + + = 0. (6.9)
 m  

Uma geometria particular, porém de grande interesse prático, ocorre quando


os campos elétrico e magnético aplicados são perpendiculares um ao outro. Esta
geometria dá origem ao chamado Efeito Hall, descoberto por E. H. Hall em 1879 (ou
seja, antes da descoberta do elétron). Considere um campo elétrico na direção x e um
campo magnético na direção z, como mostra a Fig. 6.3. No regime transiente, um
elétron inicialmente acelerado pelo campo elétrico longitudinal Ex é defletido na
direção transversal –y pela força de Lorentz. Como a amostra é finita nesta direção,
isto gera um acúmulo de carga negativa de um lado e positiva do outro, que produz
um campo elétrico transversal na direção y que, no regime estacionário, cancela a
componente transversal da força de Lorentz.

z B = Bz
y

x + + + + + + + + + +
v j

- - - - - - - - - - Eyy

Exx
Figura 6.3 – Esquema do Efeito Hall. B e Ex são os campo aplicados, enquanto que o campo transversal
Ey surge devido ao acúmulo de elétrons na parte anterior da amostra mostrada na figura.
Como veremos a seguir, as quantidades de interesse são a
𝐸 𝐸𝑦
magnetorresistividade longitudinal , 𝜌𝑥𝑥 (𝐵) = 𝑗𝑥 e o coeficiente Hall, 𝑅𝐻 = 𝑗 𝐵 =
𝑥 𝑥
𝜌𝑥𝑦
, que é relacionado à magnetorresistividade transversal 𝜌𝑥𝑦 . Vamos calcular
𝐵
estas duas quantidades resolvendo as equações de movimento do modelo de Drude.

112
Se B = Bz, então p  B = ( p y x − p x y )B . Usando a definição de frequência de
eB
cíclotron,  c = , as componentes x e y da equação de movimento tornam-se
m

px
eE x +  c p y + =0
 (6.10)
py
eE y −  c p x + =0

 ne 
Multiplicando ambas equações por   e usando as definições de  D e j, temos
 m 

 D E x −  c j y − j x = 0
. (6.11)
 D E y +  c j x − j y = 0

No regime estacionário, j y = 0 . Assim, da 1a equação temos

𝐸𝑥 1
𝜌𝑥𝑥 (𝐵) = =𝜎 , (6.12)
𝑗𝑥 𝐷

ou seja, no modelo de Drude a magnetorresistência é independente do campo


magnético. Este resultado foi inicialmente um sucesso do modelo de Drude, já que
confirmou os resultados iniciais de Hall de que 𝜌𝑥𝑥 (𝐵) parecia ser, de fato,
aproximadamente independente de B. No entanto, medidas subsequentes em
diferentes materiais e faixas de campo magnético mais extensas mostraram que, em
alguns casos, 𝜌𝑥𝑥 (𝐵) pode ter uma dependência forte com B, o que não pode ser
explicado por um modelo clássico como o de Drude.
Da 2a equação, obtemos o coeficiente Hall

Ey 1
RH = =− . (6.13)
jx B ne

Este resultado é extremamente interessante e útil. Note que RH não depende do tempo
de relaxação. Medidas de RH medem diretamente a densidade de elétrons e, o que é
mais interessante, o sinal da carga dos mesmos. Veja alguns resultados na Tabela 6.2.

Metal RH (exp)/(-1/ne)
Li 0,8
Na 1,2
K 1,1
Al -0,3
Mg -0,2
Tabela 6.2 – Resultados experimentais para o coeficiente Hall de alguns metais.

113
Note que o valor de Drude está em bom acordo com os resultados
experimentais para os metais alcalinos. Mas, para outros metais, o modelo falha
completamente, até mesmo no sinal da carga dos portadores. Aparentemente, os
portadores de eletricidade nestes materiais são positivos! Entenderemos melhor este
aparente mistério nas próximas seções. Medidas experimentais mostram também uma
forte dependência de RH com B, o que o modelo de Drude também não prevê.
O efeito Hall difere drasticamente do comportamento previsto pelo modelo de
Drude em situações extremas de campos magnéticos muito altos e temperaturas muito
baixas. Nestes casos, Klaus von Klitzing descobriu em 1980 que as
magnetorresistências longitudinais e transversais tem comportamento bastante
inusitado em um gás de elétrons bidimensional, o que dá origem ao chamado efeito
Hall quântico, ilustrado na Fig. 6.3a. Por esta descoberta, von Klitzing ganhou o
Prêmio Nobel de Física de 1985.

Figura 6.3a – Magnetorresistividade longitudinal (eixo da direita) e transversal (eixo da esquerda) no


efeito Hall quântico. Note que 𝜌𝑥𝑦 (𝐵) apresenta platôs em valores determinados por constantes
fundamentais da natureza. Desta forma, o efeito pode ser usado em metrologia, como padrão de
resistência. No limite de baixos campos magnéticos, o comportamento tipo Drude é recuperado.

(C) Condutividade AC de metais


Consideremos agora o caso de um metal sob a ação de um campo elétrico
dependente do tempo de forma harmônica:

( )
E(t ) = Re E( )e −it . (6.14)

Esta é a situação relevante, por exemplo, no caso de uma onda eletromagnética


propagando-se por um metal. Procuramos uma solução estacionária da Eq. (6.4), de
modo que

( )
p(t ) = Re p( )e −it . (6.15)

Substituindo em (6.4), obtemos

114
p( )
− ip( ) = − − eE( )

. (6.16)
eE( )
p( ) = −
1  − i

( )
Sabendo que j = − nep m e j(t ) = Re j( )e −it , obtemos a relação entre j e E:

j( ) =
(ne m E( )
2
)
=  ( )E( ) , (6.17)
1  − i

onde  ( ) é a condutividade AC:

D
 ( ) = , (6.18)
1 − i

e  D é a condutividade DC de Drude (Eq. (6.6)).


Para fazer uma conexão deste resultado com as propriedades óticas de um
metal, temos que relembrar nossos conhecimentos sobre as equações de Maxwell em
um meio material. Em unidades SI,

  E   E 
  B = 0  j +  0  =  0  E +  0  . (6.19)
 t   t 

Sabendo que E t = −iE , então

  i  E E
  B = 0  +  0  =  0 ( ) , (6.20)
  t t

onde podemos identificar a função dielétrica complexa dependente da frequência:

i
 ( ) =  0 + . (6.21)

Esta é uma equação muito importante, que relaciona a função dielétrica com a
condutividade. A partir da Eq. (6.18) e supondo que   1 1, chegamos ao
resultado:

  P2 
 ( ) =  0 1 −  , (6.22)
  2 

onde

1
Neste regime, o elétron realiza várias oscilações antes de colidir. A validade desta aproximação de
altas frequências está discutida em Ashcroft (p. 18).

115
12
 ne 2 
 P =   (6.23)

 0 
m

é a chamada frequência de plasma.


Vamos analisar fisicamente as consequências da Eq. (6.22). Se a função
dielétrica for real e negativa, a radiação eletromagnética não se propaga no metal. De
fato, este é o resultado que entendemos como usual para metais e ocorre para    P .
No entanto, se    P , a função dielétrica é positiva e a radiação se propaga pelo
metal sem ser atenuada. De fato, observa-se que os metais alcalinos tornam-se
transparentes para frequências em torno do ultravioleta ou maiores. A Tabela 6.3
mostra a comparação entre a predição teórica (a partir da Eq. (6.23)) e o valor medido
do comprimento de onda de plasma  P = 2c  P para vários metais alcalinos. O
acordo é razoável, considerando as aproximações envolvidas.

Metal λP teórico λP experimental


(102 nm) (102 nm)
Li 1,5 2,0
Na 2,0 2,1
K 2,8 3,1
Rb 3,1 3,6
Cs 3,5 4,4

Tabela 6.3 – Comprimento de onda de plasma (experimental e teórico) para os metais alcalinos. Fonte:
Ashcroft, p. 18.

A frequência de plasma surge também no contexto das oscilações


longitudinais de carga que podem ocorrer em um metal, sendo associadas a
densidades de corrente oscilatórias j(ω) no material. Uma maneira qualitativa de
entender essas oscilações de carga que o metal pode sustentar (também conhecidas
como oscilações de plasma ou plásmons) é através do modelo simplificado que está
ilustrado na Fig. 6.4. Considere um gás de elétrons com densidade n que se desloca
como um todo por uma distância x em relação aos núcleos positivos. Este
deslocamento irá produzir densidades superficiais de carga σ (não confundir com a
condutividade) em faces opostas do sólido, como mostra a figura, com  =  nex .
Forma-se então, instantaneamente, a configuração de um capacitor de placas
paralelas, com um campo elétrico homogêneo e igual a   0 . Este campo causará
uma força restauradora no gás de elétrons como um todo. De fato, cada elétron estará
sujeito a uma força restauradora F = − ne 2 x  0 , que dará origem uma oscilação
( )
harmônica com frequência angular ne 2 m 0 , que é precisamente a frequência de
12

plasma. A Fig. 6.4 corresponde a um plásmon com grande comprimento de onda (da
ordem do tamanho do cristal), mas tais oscilações podem ocorrer também com
comprimentos de onda menores.

116
x

+ -
+ -
+ -
+ E =  0 -

 = nex  = − nex
Figura 6.4 – Modelo simplificado para as oscilações de plasma. A região cinza representa o gás de elétrons.

(D) Condutividade Térmica: Lei de Wiedemann-Franz


Um dos maiores sucessos do modelo de Drude foi a explicação da Lei de
Wiedemann-Franz. Há muito tempo sabia-se que os metais eram bons condutores de
eletricidade e de calor. Suspeitava-se portanto de um mesmo mecanismo
microscópico para os dois fenômenos. Drude supôs que este mecanismo seria o
movimento dos elétrons nos metais.
A Lei de Wiedemann-Franz é uma lei empírica descoberta a partir de medidas
da condutividade térmica e elétrica de diversos metais:


= AT , (6.24)

onde  é a condutividade térmica,  é a condutividade elétrica, T é a temperatura e


A é uma constante. O que torna essa lei ainda mais interessante é o fato de que a
constante A parecia ser razoavelmente independente do metal, variando entre 2,0-2,5
 10-8 WK-2 para os mais diversos materiais2.
Podemos obter a Lei de Wiedemann-Franz a partir dos argumentos de Drude
sobre o movimento dos elétrons. Apresentaremos aqui uma demonstração
simplificada, usando um modelo unidimensional. A condutividade térmica é definida
por

j Q = −T , (6.25)

onde jQ é a densidade de corrente de energia térmica e T é o gradiente da
temperatura, Vamos supor uma barra metálica bastante fina, ao longo da direção x,
com a temperatura diminuindo da esquerda para a direita, como mostra a Fig. 6.5. Os
elétrons que chegam em um dado ponto x da barra vindos da esquerda sofreram sua
última colisão, em média, no ponto x − v , enquanto que os elétrons que chegam
pela direita sofreram sua última colisão, em média, no ponto x + v . Como se nota, os
elétrons vindos da esquerda têm maior energia cinética, pois a temperatura é maior
daquele lado. Haverá portanto um fluxo de energia da esquerda para a direita. A
densidade de corrente de energia térmica transportada pelos elétrons que vêm da

2
Veja a Tabela 1.6 do Ashcroft.

117
esquerda é (𝑛⁄2)𝑣𝑥 𝜀(𝑇[𝑥 − 𝑣𝜏]), onde n/2 é a densidade de elétrons que viajam para
da esquerda para a direita e (T) é a energia térmica por elétron correspondente à
temperatura no ponto de onde os elétrons vieram. Analogamente, a densidade de
corrente de energia térmica transportada pelos elétrons oriundos da direita é
(𝑛⁄2)𝑣𝑥 𝜀(𝑇[𝑥 + 𝑣𝜏]). O fluxo total é, portanto,

1
𝑗 𝑄 = 2 𝑛𝑣𝑥 {𝜀(𝑇[𝑥 − 𝑣𝜏]) − 𝜀(𝑇[𝑥 + 𝑣𝜏])} =
𝑑𝜀 𝑑𝑇 (6.26)
= 𝑛𝑣𝑥2 𝜏 (− )
𝑑𝑇 𝑑𝑥

T alta T baixa

x - v x x + v
Figura 6.5 – Transporte de energia em uma barra metálica com um gradiente de temperatura.

Para obtermos uma expressão análoga para o caso tridimensional, basta


notarmos que, na expressão acima, a velocidade corresponde à média da componente
x. Usando que v x2 = 13 v 2 , e sabendo que
n(d dT ) = (N V )(d dT ) = (dE dT ) V = c v , onde cv é o calor específico eletrônico,
temos

j Q = − 13 v 2 c v T , (6.27)

ou seja, a condutividade térmica é dada por  = 13 v 2 c v . Para obtermos o a lei de


Wiedemann-Franz, basta dividirmos pela condutividade elétrica de Drude (Eq. 6.6):

 13 c v mv
2

=
 ne 2 (6.28)

Aplicando, como Drude fez, as leis da termodinâmica clássica, c v = 32 nk B e


1
2
mv 2 = 32 k B T , obtemos

 3  kB 
2

=   T. (6.29)
 2 e 

Segundo o modelo de Drude, portanto, há uma constante de proporcionalidade


A universal, como sugeriam os resultados experimentais. O valor numérico desta

118
constante é de 1,1  10-8 WK-2, aproximadamente metade do valor experimental.
Porém, na época Drude errou por um fator 2 o cálculo de sua condutividade (veja
problema da lista), encontrando exatamente o valor experimental, o que soou como
um sucesso estrondoso da teoria. Na verdade, além deste erro de cálculo, há outras
duas discrepâncias por um fator de 100 que fortuitamente se cancelam: como vimos
no capítulo passado, o calor específico à temperatura ambiente é tipicamente 100
vezes menor que o resultado clássico, enquanto que as velocidades quadráticas médias
são da ordem de 100 vezes maiores, devido ao Princípio de Exclusão de Pauli.
A relação entre a condutividade térmica e a condutividade elétrica é uma
manifestação de uma classe de fenômenos conhecidos como fenômenos
termoelétricos. Alguns destes fenômenos têm aplicações tecnológicas importantes.
Por exemplo, o efeito Seebeck, ilustrado na Fig. 6.5a, consiste no surgimento de uma
d.d.p. elétrica se uma barra metálica é submetida a um gradiente de temperatura em
circuito aberto. A constante de proporcionalidade entre esta d.d.p. e o gradiente de
temperatura depende do metal em questão, de modo que este efeito pode ser utilizado
para medir a diferença de temperatura entre a junção entre dois metais (termopar) e
um banho térmico de referência. Outro efeito termoelétrico importante, também
ilustrado na figura, é o efeito Peltier, que descreve o surgimento de um gradiente de
temperatura quando uma corrente é transmitida através da junção entre dois metais
distintos. Este efeito é utilizado em refrigeradores termoelétricos.

Figura 6.5a – Ilustrações dos efeitos Seebeck (à esquerda) e Peltier (à direita).

6.2 - Teoria Semi-Clássica

Como vimos, o modelo de Drude, apesar de servir como uma introdução


qualitativa à dinâmica eletrônica em sólidos, contém diversas limitações fundamentais
por ser um modelo clássico. Nesta Seção, iremos descrever uma teoria muito mais
elaborada da dinâmica eletrônica, a teoria semi-clássica.
Na descrição semi-clássica a interação elétron-cristal é tratada quanticamente
através da estrutura de bandas (supostamente conhecida)  n (k ) , que é obtida, como
vimos no Capítulo anterior, a partir da solução da equação de Schrödinger com um
potencial periódico. Já a interação dos elétrons com os campos elétrico e magnético
será descrita classicamente, daí o nome de teoria semi-clássica.
Os estados estacionários em um potencial periódico podem ser descritos pelas
funções de Bloch  k (r ) . Funções de Bloch têm o vetor de onda k bem definido, e
portanto são deslocalizadas espacialmente, ou seja, a probabilidade de se encontrar
um elétron em qualquer célula unitária do cristal é a mesma. Esta descrição satisfaz o

119
princípio da incerteza, x k  1 pois a incerteza no vetor de onda é nula, enquanto
que a incerteza na posição é total.
Para descrevermos uma dinâmica semi-clássica, precisaremos determinar
simultaneamente a posição e o momento de um elétron sem violar o princípio da
incerteza. Isto só é possível porque não precisamos de precisão absoluta nesta
determinação. A posição r do elétron deve ser bem definida se comparada com o
comprimento de onda  dos campos externos aplicados, enquanto que o vetor de onda
k deve ser bem definido se comparado às dimensões da Zona de Brillouin.
Este objetivo é alcançado através de um pacote de ondas de Bloch,
construído de forma análoga a um pacote de ondas planas usual em Mecânica
Quântica:

 i 
 n (r, k , t ) =  g (k ) nk  (r ) exp −  n (k )t  . (6.30)
k   

O vetor de onda k do pacote será bem definido se os coeficientes g(k') forem


diferentes de zero apenas em uma pequena vizinhança k em torno de k muito menor
que as dimensões da Zona de Brillouin, ou seja, k  (1 a ) , como mostra Fig. 6.6.
ky
Região onde
g(k')  0
k

kx

Figura 6.6 - Apenas os coeficientes de Fourier de ondas de Bloch na região cinza contribuem para o
pacote de ondas, definindo k em relação às dimensões da ZB.

A partir da relação de incerteza x k  1 , isto implica em que x a , ou seja,


a largura do pacote no espaço real é muito maior que as distâncias interatômicas.
Como condição de validade da aproximação semi-clássica, esta largura deve ainda ser
muito menor que o comprimento de onda dos campos externos para que possamos
supor que o campo que atua em um elétron é bem definido. Estas condições estão
esquematizadas na Fig. 6.7.

x


Figura 6.7 - Ilustração das condições de validade do modelo semi-clássico no espaço real: a<<x<<.

120
As condições de validade descritas acima têm uma faixa de aplicação bastante
ampla. A luz visível, por exemplo, tem comprimentos de onda na faixa de 104 Å,
muito maiores portanto que as distâncias interatômicas típicas.
Assim, de agora em diante, quando falarmos de um "elétron" estaremos nos
referindo ao pacote de ondas de Bloch definido acima, com posição r, vetor de onda k
e energia  n (k ) bem definidos. A velocidade do elétron é também bem definida, e
dada pela velocidade de grupo do pacote de ondas:

d 1 
v n (k ) = =  k  n (k ) . (6.31)
dk 

Reobtemos o resultado para a velocidade de um elétron de Bloch (Equação (5.44)),


agora dentro de um contexto diferente.
A dinâmica eletrônica no modelo semi-clássico é regida por um conjunto de
regras, definidas a seguir:
1. O índice de banda n é uma constante do movimento. Transições banda-
banda causadas pelos campos (absorção ou emissão de fótons) são efeitos
quânticos que o modelo semi-clássico não se propõe a descrever.
2. O vetor de onda k é definido na 1a Zona de Brillouin, ou seja, elétrons com
vetor de onda k e k+G são o mesmo elétron. Consequentemente, se a
dinâmica alterar o valor de k para fora da 1a ZB, automaticamente subtrai-
se um vetor G para que tenhamos de volta k na 1a ZB.
3. As equações semi-clássicas de movimento são:
1
r = v n (k ) =  n (k ) (6.32)

k = Fext = −eE + v n (k )  B  (6.33)

A Equação (6.33) merece uma justificativa. Mostramos no Capítulo anterior


que k não é o momento do elétron, mas sim o momento cristalino. Pode então
parecer estranho que k = Fext , onde Fext é a força externa, no nosso caso a força de
Lorentz. Mas não há nenhuma inconsistência nisso, já que a força externa não é a
força total no elétron. As forças devido ao potencial cristalino já estão, de alguma
forma, incluídas na relação de dispersão  n (k ) .
Vamos analisar em detalhe algumas das consequências das equações semi-
clássicas:

(A) Bandas totalmente preenchidas não contribuem para condução


Vamos analisar a dinâmica semi-clássica dos elétrons sob a ação de um campo
elétrico constante em uma banda totalmente preenchida, como a da Fig. 6.8. A força
externa é simplesmente Fext = −eE . Podemos então resolver a Equação (6.33),
obtendo

eE
k (t ) = k (0) − t . (6.34)

Note que, após um pequeno intervalo dt, os vetores de onda de todos os elétrons
mudam pela mesma quantidade. Uma banda que está inicialmente preenchida

121
continua exatamente da mesma maneira, com a única diferença que há uma
permutação entre os vetores de onda dos elétrons, como mostra a Fig. 6.8.

 
E
10 1

1 9 2 10
2 8 3 9
3 7 4 8
4 6 5 7
5 6
k k
t=0 t = dt
Figura 6.8 - Ilustração da dinâmica eletrônica a campo elétrico constante em uma banda totalmente
preenchida. Todos os elétrons têm seu vetor de onda k alterado pelo mesmo valor, ocorrendo apenas uma
permutação dos elétrons (indicados pelos números) pelos diferentes k's permitidos.

Vamos mostrar agora que a densidade de corrente elétrica associada a uma


banda totalmente preenchida é nula. A densidade de corrente é dada por j = −ne v .
A velocidade média deve ser encontrada somando-se sobre todos os pontos k da 1a
ZB:

2 2e 
j = −ne
N
 v(k ) = − (2 )  
k
3 ZB
dk  k  (k ) .
(6.35)

Usamos agora os seguintes fatos: (i) A função  (k ) é periódica no espaço recíproco,


com período igual à 1a ZB:  (k ) =  (k + G) ; (ii) (Teorema) A integral sobre uma
célula unitária do gradiente de qualquer função periódica é zero. Este teorema está
demonstrado no Apêndice I do Ashcroft. Assim, mostramos que j = 0 para uma
banda completamente preenchida. Este resultado justifica a definição de condutores e
isolantes que fizemos na Seção 5.3, ou seja, materiais isolantes têm todas as bandas
totalmente preenchidas ou vazias, enquanto que materiais condutores ou metálicos
têm pelo menos uma banda semi-preenchida, e só participam da condução de
eletricidade os elétrons destas bandas.

(B) Buracos
Um dos resultados mais intrigantes apresentados na Seção anterior foi a
medida do coeficiente Hall em alguns metais que aparentemente indicava que os
portadores de carga seriam positivos. Veremos que a razão deste fenômeno está no
comportamento coletivo dos elétrons em uma banda semi-preenchida que é muitas
vezes melhor compreendido se interpretarmos a ausência de elétrons em alguns níveis
como "partículas" de carga positiva, conhecidas como buracos. Vejamos algumas
propriedades do buracos:
(i) Uma banda totalmente preenchida tem momento total igual a zero, ou seja,
k total =  k = 0 . Isto ocorre porque para cada vetor de onda k permitido existe um -
k
k. Se retiramos um elétron com vetor de onda ke da banda, esta terá momento total -

122
ke, ou podemos equivalentemente dizer que criou-se um buraco com momento
k b = −k e , como mostra a Fig. 6.9. O buraco é a uma representação efetiva dos
demais elétrons que restaram na banda.
(ii) A energia do buraco é o negativo da energia do elétron ausente,
 b (k b ) = − e (k e ) . Isto ocorre pois quanto mais baixa a energia do nível desocupado,
maior será a energia total dos elétrons que restaram, ou seja, do buraco. Pode-se então
definir uma banda virtual de buracos, com concavidade oposta à banda de elétrons,
como mostra a Fig. 6.9. 

ke
kb k

Figura 6.9 - Duas descrições equivalentes do mesmo sistema físico: uma banda de elétrons com um
único nível vazio, de energia e e vetor de onda ke, ou uma banda de buracos com um único nível
ocupado, de energia b=-e e vetor de onda kb=- ke.

(iii) A velocidade do buraco é igual à velocidade que teria o elétron ausente,


v b = v e . Isto pode ser verificado notando-se que as derivadas de  (k ) na Fig. 6.9 são
idênticas tanto para o elétron como para o buraco.
(iv) Se k b = −k e e v b = v e , então a equação de movimento para buracos é :

k b = eE + v b  B , (6.36)

ou seja, é a equação de movimento para uma partícula de carga positiva +e!


Estas 4 características definem o conceito de buraco. Mas, como dissemos, a
descrição da dinâmica dos elétrons em uma banda pode ser feita ou não utilizando-se
este conceito. Veremos a seguir em que situações a utilização da idéia de buracos será
mais útil.

(C) Massa efetiva


Em alguns casos de interesse, principalmente em semicondutores, o
preenchimento das bandas é tal que uma das situações esquematizadas na Fig. 6.10
pode ocorrer: o nível de Fermi está localizado próximo do fundo ou do topo de uma
banda. Na vizinhança de um máximo ou mínimo, a relação de dispersão pode sempre
ser aproximada por uma expressão quadrática. Em uma dimensão, teríamos:

 (k ) =  0  A(k − k 0 ) 2 , (6.37)

onde o sinal (+) descreve a banda em torno de um mínimo e o sinal (-) em torno de
um máximo.

123
 
F

F

k0 k k0 k

Figura 6.10 - Situações importantes onde o conceito de massa efetiva é útil: banda ocupada apenas em
torno de um mínimo (esquerda) ou desocupada em torno de um máximo (direita).

Por analogia com os elétrons livres, onde  (k ) =  2 k 2 2m , define-se uma



massa efetiva m  tal que A =  2 2m . Assim,

2
 (k ) =  0  
(k − k 0 )2 . (6.38)
2m

A velocidade e a aceleração podem então ser calculadas analiticamente:

1 d 
v(k ) = =   (k − k 0 ) (6.39)
 dk m
k F
a = v =   =  ext (6.40)
m m

Vejamos estas relações em maior detalhe. Na vizinhança de um mínimo,


temos Fext = m  a , ou seja, o elétron se comporta como uma partícula livre com uma
massa efetiva. A massa efetiva pode ser numericamente bastante diferente da massa
do elétron (como veremos quando estudarmos os materiais semicondutores), o que irá
alterar profundamente as propriedades dinâmicas dos elétrons, tornando-os mais
“leves” ou mais “pesados”. Note que todo o efeito do potencial cristalino está
embutido neste único parâmetro. Na vizinhança de um máximo, a situação torna-se
ainda mais interessante e inesperada: Fext = −m  a , ou seja, a aceleração é em sentido
oposto à força externa, como se o elétron tivesse uma massa efetiva negativa! Neste
caso é útil o conceito de buracos3. Para a banda de buracos associada (veja Fig. 6.9)
temos uma massa efetiva positiva e, como mostra a Eq. (6.36), uma equação de
movimento para partículas de carga positiva. Assim, em situações como a mostrada
na Fig. 6.10 (direita), em que o nível de Fermi passa perto do topo de uma banda, diz-
se que os portadores de carga são buracos e não elétrons.
Em geral, a massa efetiva depende da direção cristalina. A generalização de
(6.37) para três dimensões é
2
 n (k ) =  0  k  M −1  k , (6.41)
2
onde M-1 é o tensor massa efetiva inversa:

3
Os físicos não se sentem muito confortáveis em lidar com partículas de massa negativa...

124
1  2
M −1
=
 2 k i k j
ij . (6.42)

Portanto, no caso mais geral, a aceleração não estará necessariamente na direção da


força externa. Mais uma vez, isto pode ser entendido lembrando que a força externa
não é a força total. A influência do potencial cristalino é importante, e está
elegantemente embutida no tensor massa efetiva.

(D) Dinâmica semi-clássica para campo elétrico constante


Vamos agora resolver as equações semiclássicas (6.32) e (6.33) para alguns
casos simples, porém interessantes. Vejamos inicialmente o que ocorre para um
campo elétrico constante. Vamos supor que temos uma banda (como a que está
mostrada na Fig. 6.11) ocupada por um único elétron. Como já vimos, a trajetória dos
elétrons no espaço recíproco é dada pela Equação (6.34), ou seja, em um mesmo
intervalo de tempo este elétron mudaria seu vetor de onda k pela mesma quantidade.
Dado um intervalo de tempo bastante longo, o elétron percorreria no espaço recíproco
toda a extensão da 1a Zona de Brillouin, até ser “refletido” de volta ao início pela
regra k  k − G (segunda regra do modelo semi-clássico). Como seria a trajetória
deste elétron no espaço real? Bem, a velocidade é dada pela Equação (6.32).
Mostramos na Fig. 6.11 um exemplo unidimensional, onde a velocidade é
simplesmente proporcional a d dk . Como k (t ) = k (0) − eEt  , o eixo k pode ser
simplesmente interpretado como o eixo –t, ou seja, o movimento do elétron é
oscilatório. Chegamos assim a um resultado inesperado: em um cristal, um campo
elétrico DC gera uma corrente AC! Estes movimentos oscilatórios são conhecidos
como oscilações de Bloch, e sua origem está no fato que, na vizinhança dos pontos de
máximo das bandas, a aceleração é contrária à força, como discutimos anteriormente.

v(k)
(k)

t k

Figura 6.11 – Exemplo unidimensional das oscilações de Bragg de um elétron sob a ação de um campo
elétrico constante.
O fenômeno das oscilações de Bloch parece destoar da nossa experiência
diária. Sabemos que, quando se aplica um campo elétrico constante a um metal,
observa-se uma corrente elétrica DC (Lei de Ohm). De fato, as oscilações de Bloch
ainda não foram observadas em metais comuns. Mostramos a seguir que a razão está
no espalhamento dos elétrons, que discutimos na Seção anterior.
Para que as oscilações sejam observadas, é necessário que o elétron percorra
uma “distância” k no espaço recíproco da ordem das dimensões da ZB, ou seja,

125
k  2 a  1010 m -1 . Podemos então calcular o período deste movimento
oscilatório: T =  k eE . Para campos elétricos típicos (E ~ 1 V/m), temos T ~ 10-5 s.
Este deve ser o tempo de percurso livre de um elétron para que pudéssemos observar
uma oscilação de Bloch. No entanto, vimos na Seção anterior que o tempo de
relaxação (tempo médio entre duas colisões) dos elétrons em metais é da ordem de 10-
14
s, ou seja, o elétron colide bem antes de realizar um ciclo completo pela ZB.
Apesar destas dificuldades em metais, o fenômeno das oscilações de Bloch já
foi observado em sistemas semicondutores artificiais, conhecidos como super-redes4.
Uma super-rede do tipo mais simples é produzida pela deposição sequencial de 2
materiais diferentes, digamos A e B, com cada camada contendo vários planos
atômicos, como mostra a Fig. 6.12. Assim, a periodicidade no espaço real é
modificada artificialmente: a célula unitária torna-se muito maior. Isto implica que, no
espaço k, a ZB torna-se muito menor. Com um k muito pequeno, torna-se possível
observar as oscilações de Bloch.

… A B A B …

a
Figura 6.12 – Exemplo de uma super-rede AB. Cada camada consiste em diversos planos atômicos.
Assim, a célula unitária (indicada pelo parâmetro de rede a) torna-se muito maior do que a célula unitária
de um cristal típico, tornando então a ZB muito menor.

(E) Dinâmica semi-clássica para campo magnético constante


No caso de um campo magnético constante, a equação (6.33) torna-se:
k = Fext = −e [ v(k )  B] . (6.43)


Nota-se então que k é perpendicular tanto a B quanto a  (k ) (que é proporcional a
v(k)). Portanto, no espaço recíproco o elétron se move em uma superfície de energia
constante e em um plano perpendicular ao campo magnético, como mostra a Fig.
6.13.
kz
B = Bz


k(0)

ky

kx  = constante

Figura 6.13 – Órbita de um elétron no espaço recíproco sob a ação de um campo magnético constante. O
vetor de onda do elétron se move em uma linha formada pela interseção da superfície de energia
constante com um plano perpendicular ao campo magnético.
4
K. Leo, P. H. Bolivar, F. Bruggemann, R. Schwelder e K. Kohler, Solid State Comm. 84, 943 (1992).

126
Vamos analisar como seria então o movimento deste elétron no espaço real.
Seja o campo magnético orientado na direção z, B = Bz . A Equação (6.43) torna-se

k x = −e v y B
,
k y = e v x B (6.44)

que podemos integrar e obter


x(t ) = x 0 + k y (t )
eB (6.45)

y (t ) = y 0 − k x (t )
eB

Esta é portanto a trajetória do elétron no espaço real que, dependendo da


complexidade da superfície de energia constante, pode ser bem complicada. Vamos
tomar, como um exemplo simples, a trajetória elíptica mostrada na Fig. 6.13. Vamos
supor que a elipse correspondente à trajetória no espaço k tenha seu semi-eixo maior
ao longo de x. A Fig. 6.14(a) mostra uma projeção desta trajetória no plano kz = 0.
Estão mostrados alguns instantes da trajetória e seus vetores k correspondentes.
Analisando as equações (6.44), obtemos as componentes x e y da velocidade no
espaço real (Fig. 6.14(b)) correspondentes aos mesmos instantes da figura (a). Nota-se
que a trajetória no espaço real é também no sentido anti-horário (como se esperaria de
um elétron sob a ação de um campo magnético), porém girada de 90o com relação à
trajetória no espaço recíproco. Se levarmos em conta a componente vz da velocidade,
que neste caso é constante, chegamos à conclusão que a trajetória do elétron é uma
espiral.

(a) (b) y 3
ky 2

3 1 kx 2
4 x
4

Figura 6.14 – Projeção no plano xy das órbitas no espaço recíproco (a) e no espaço real (b) de um elétron
sob a ação de um campo magnético constante na direção z. Ambas as órbitas correspondem a um
movimento no sentido anti-horário, mas estão giradas de 90o entre si.

127
O exemplo específico discutido acima pertence a uma classe de órbita
conhecida como órbita de elétron. No entanto, este não é o único tipo de órbita. Os
tipos de órbita possíveis estão descritos a seguir.
(i) Órbita de elétron
Se a superfície de Fermi não cruza os planos de Bragg que delimitam a 1a ZB
(por exemplo, metais alcalinos), as órbitas dos elétrons mais energéticos têm sentido
anti-horário, como mostra a Fig. 6.15.

B
k



1a ZB
Figura 6.15 – Órbita de elétron, no sentido anti-horário.

(ii) Órbita de buraco


Consideremos agora uma situação onde a superfície de Fermi toca a borda da
ZB. Isto ocorre, por exemplo, para os metais bivalentes. A Fig. 6.16(a) mostra esta
situação no esquema de zona reduzida. Repare que a trajetória no elétron no espaço
recíproco é tal que o elétron percorre uma certa distância ao longo da superfície de
Fermi até sair da 1a ZB, quando então é trazido de volta por uma translação de um
vetor G. A trajetória obedece à seqüência 1 → 2 → 3 → 4 → 1 mostrada na figura. É
instrutivo analisar esta trajetória no esquema de zona repetida, na Fig. 6.16(b). Note
que o elétron percorre uma órbita no sentido horário, como se fosse uma partícula de
carga positiva! Mais uma vez notamos que o conceito de buraco aparece de como uma
maneira natural para descrever a dinâmica destas partículas, e isto ocorre pois a
superfície de Fermi encontra-se numa região próxima a um máximo da banda. As
regiões desocupadas que a superfície de Fermi engloba (círculos brancos na figura)
são chamadas bolsos de buracos ("hole pockets") .
(a) (b)
1 3

2 2
4
B
4 4 3
 1
k 2
1 3

Figura 6.16 – Órbita de buraco, no sentido horário.

128
Pode-se mostrar que, na vizinhança de um mínimo ou máximo de banda, a
frequência do movimento periódico dos elétrons ou buracos é dada pela frequência de
eB
cíclotron  c =  , onde m* é a massa efetiva ciclotrônica. Pode-se mostrar
m
(Problema 2, Capítulo 12 do Ashcroft, que deixamos como um exercício opcional um
tanto desafiador), que a massa efetiva ciclotrônica pode ser obtida a partir do tensor
massa efetiva da seguinte forma:
1
 M  2
m = 

 ,

(6.46)
M
 zz 
onde M é o determinante de M e o campo aplicado está na direção z. Um método
bastante poderoso para determinação da superfície de Fermi em metais é baseado
nesta relação: a ressonância ciclotrônica. Neste método, aplica-se um campo
magnético e constante e incide-se simultaneamente radiação de microondas no cristal.
A radiação será mais atenuada quando a frequência da radiação incidente estiver em
ressonância com a frequência de cíclotron. Variando-se a magnitude e a orientação do
campo magnético, pode-se então mapear a superfície de Fermi.
No Capítulo 5, mencionamos também a existência da massa efetiva térmica,
que pode ser obtida a partir de medidas de calor específico. A massa efetiva térmica,
mT , também se relaciona com o determinante do tensor massa efetiva:

mT = M
13
.
(6.47)
(iii) Órbitas abertas
Um terceiro tipo de órbita são as órbitas abertas, esquematizadas na Fig. 6.17.
Em 3 dimensões, as órbitas abertas podem ser obtidas variando-se a direção do campo
magnético aplicado, como mostra a Figura 12.8 do Ashcroft.

 

Figura 6.17 – Órbita aberta.

Referências:
- Ashcroft, Capítulos 1 e 12.
- Kittel, Capítulos 8 e 9.

129

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