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Coesão Cristalina
2.1 - Introdução
Neste capítulo, iniciamos nosso estudo dos sólidos cristalinos1 tentando responder
a uma pergunta simples: por que átomos isolados se unem para formar sólidos? A
resposta também parece simples: devido à atração eletrostática entre elétrons negativos e
núcleos positivos. De fato, interação Coulombiana e Mecânica Quântica são suficientes
para explicar a coesão cristalina2. Porém, esta aparente simplicidade esconde uma imensa
riqueza e variedade de maneiras pelas quais os átomos se ligam entre si para formar um
sólido. Neste capítulo, iremos explorar estas diferentes manifestações da coesão cristalina
tendo como guia a Tabela Periódica dos elementos, auxiliar indispensável de um físico de
Matéria Condensada. Neste passeio pela Tabela Periódica, ficará clara a conexão entre a
estrutura eletrônica dos átomos e as formas de coesão cristalina.
Começamos pela coluna VIII da Tabela Periódica, a dos chamados gases nobres
ou inertes. Estes elementos possuem a última camada eletrônica totalmente preenchida e
preferem mantê-la assim, ou seja, permanecem com sua estrutura eletrônica praticamente
inerte ou inalterada mesmo na presença de outros átomos. Neste sentido eles formam o
tipo mais simples de sólido, essencialmente uma coleção de átomos neutros, cada qual
com sua nuvem eletrônica esférica original.
Como então esses átomos neutros se atraem para formar um sólido? A explicação
está na chamada interação dipolo flutuante - dipolo induzido, ou interação de van der
Waals3. Em mecânica quântica, dizer que um átomo possui uma distribuição esférica de
carga eletrônica só faz sentido em termos de média temporal: flutuações quânticas
produzem dipolos elétricos instantâneos nos átomos, que por sua vez induzem a formação
de dipolos nos átomos vizinhos. A interação entre estes dipolos causa uma atração entre
os átomos.
1
A definição do conceito de cristal ou sólido cristalino será feita de forma mais precisa no próximo
capítulo. Por ora, basta dizer que um sólido cristalino é aquele onde os átomos se organizam
geometricamente de maneira ordenada.
2
Interações magnéticas contribuem pouco para a coesão e interações gravitacionais podem ser totalmente
desprezadas.
3
As interações de van der Waals são também conhecidas como interações de dispersão ou de London.
Alguns autores denominam de interações de van der Waals um conjunto maior de interações, incluindo as
interações entre dipolos permanentes, por exemplo.
12
p1
r
p2
Figura 2.1 - Representação clássica de dois átomos neutros interagindo através de seus dipolos (um
flutuante e o outro induzido). Os círculos brancos representam os núcleos, e os círculos pretos representam
a posição instantânea média dos elétrons.
Vejamos como isto funciona de forma mais detalhada. Considere dois átomos (1 e
2) separados por uma distância r. Em um dado instante, uma flutuação quântica produz
um momento de dipolo elétrico p1 no átomo 1. Este dipolo irá gerar um campo elétrico E
proporcional a p1/r3 na posição do átomo 2. Este campo elétrico, por sua vez, irá
polarizar o átomo 2, induzindo-lhe um momento de dipolo p2 proporcional ao campo
elétrico:
p1
p2 = E , (2.1)
r3
p1 p 2 p12
U − − . (2.2)
r3 r6
13
TABELA 2.1 – Alguns parâmetros estruturais dos sólidos de gases nobres.
12 6
v LJ (r ) = 4 − . (2.7)
r r
4
Pode-se obter He sólido somente aplicando-se pressão hidrostática.
14
chamado movimento de ponto-zero: há energia cinética mesmo a temperatura zero, um
efeito intrinsicamente quântico.
0.02
0.01
U (eV)
σ
0.00
ε
-0.01
0 1 2 3 4 5 6 7
R (A)
Figura 2.2 – Potencial de Lennard-Jones para o argônio. Repare o curto alcance do potencial atrativo,
quando comparado à região “excluída” devido ao forte potencial repulsivo. Os parâmetros σ e ε, que
definem respectivamente as escalas de comprimento e energia do potencial, estão indicados na figura.
Como dissemos antes, a interação de van der Waals leva este nome porque
contém os ingredientes que justificam a chamada equação de estado do gás de van der
Waals5. Esta equação foi proposta por J. D. van der Waals em sua tese de doutorado em
1873 e é a maneira mais simples de se descrever gases não-ideais e transições de fases:
a
p + 2 (v − b ) = RT , (2.8)
v
5
Os gases não-ideais ou de van der Waals são estudados no curso de Termodinâmica. Uma boa referência é
o livro de F. Reif, Fundamentals of Statistical and Thermal Physics, (McGraw-Hill, 1988).
15
Outros sistemas em que a interação de van der Waals é importante são os
materiais que têm algum tipo de organização bidimensional (2D). O caso mais conhecido
é o grafite. Como veremos no próximo capítulo, o grafite é um material formado por
folhas monoatômicas de carbono (conhecidas como grafeno), em que os átomos de
carbono fazem ligações covalentes fortes no plano e a interação entre os planos é do tipo
van der Waals.
1 1
U=
N
u (r ) = 2 N u (r )
ij
ij
i j
ij . (2.8)
1 N
U= u (r j )
2 j =2
, (2.9)
16
onde rj r1j é a distância do íon j ao átomo central (origem). Desprezando os efeitos
quânticos, à temperatura zero a energia cinética será nula, de modo que a energia de
coesão será dada simplesmente pelo negativo da energia potencial (supondo, é claro, que
o potencial de interação entre pares vai a zero no infinito).
U (a) =
1
2
6v LJ (a) + 12v LJ ( 2a) + 8v LJ ( 3a) + (2.10)
O primeiro termo desta soma é a contribuição dos 6 vizinhos mais próximos do átomo
central (primeiros vizinhos); o segundo termo representa a contribuição dos 12 segundos
vizinhos, e assim por diante. Desta forma, fica explícito que a energia potencial é uma
função do parâmetro de rede a. Se a pressão sobre o sistema também for nula, o sólido irá
adotar o parâmetro de rede a0 que minimiza a energia potencial, ou seja, temos que impor
a condição
dU
=0 . (2.11)
da a0
dU
p (v ) = − . (2.12)
dv
6
Na verdade, veremos no próximo capítulo que este não é o arranjo mais favorável energeticamente para os
sólidos de gases nobres.
17
Além disso, a partir da derivada segunda da energia em relação ao volume, podemos
calcular o módulo de bulk, ou módulo de compressibilidade volumétrica:
d 2U dp
B0 = v 0 = −v 0 . (2.13)
dv 2 v0
dv v0
O módulo de bulk, que tem dimensões de pressão, mede a resistência do sólido a sofrer
variações de volume sob ação de uma pressão externa, ou seja, é uma medida da rigidez
do sólido. A Tabela 2.2 mostra o módulo de bulk de alguns materiais (inclusive líquidos e
gases). O diamante “ainda” é o material menos compressível da natureza, apesar de
existirem propostas teóricas de novos materiais com módulos de bulk ainda maiores7. O
módulo de bulk também se relaciona à velocidade do som no sólido (𝑣𝑠𝑜𝑚 = √𝐵0⁄𝜌), em
que ρ é a densidade de massa do sólido.
Na + 5,14 eV Na+ + e-
e- + Cl Cl- + 3,61 eV
Figura 2.3 – Mecanismo de coesão dos cristais iônicos, exemplificado para o NaCl. Veja detalhes em
Kittel, p. 67.
Consideremos o mais estudado destes compostos, o cloreto de sódio (NaCl),
vulgarmente conhecido como “sal de cozinha”. O mecanismo de coesão neste material
está esquematizado na Fig. 2.3. Considere um átomo de Na isolado (na fase gasosa). Sua
7
"Prediction of New Low-Compressibility Solids", A. Y. Liu e M. L. Cohen, Science 245, 841 (1989).
18
configuração eletrônica é 1s22s22p63s1, ou seja, há um único elétron na camada mais
externa. É razoavelmente fácil arrancar este elétron e formar um íon positivo Na+. O
custo (energia de ionização) é de apenas 5,14 eV 8. Tome agora um átomo de Cl isolado,
com sua configuração eletrônica 1s22s22p63s23p5. Com 7 elétrons na última camada,
necessita de apenas mais um para formar um íon negativo Cl- de camada fechada. De
fato, este elétron extra não custa nenhuma energia adicional, pelo contrário, o íon Cl- é
mais estável do que o átomo neutro, de forma que a formação do íon libera uma energia
de 3,61 eV (afinidade eletrônica). Esta energia, porém, não compensa a energia para
formação do Na+, de tal modo que, até o momento, nosso balanço energético é negativo.
Porém, este déficit energético, calculado a partir da ionização de cada íon isolado, é mais
do que compensado pela atração eletrostática das espécies iônicas: ao trazermos os íons
de Na+ e Cl- desde o infinito até a as posições que ocupam no cristal de NaCl há um
ganho energético de 7,9 eV por par de íons. Portanto, a energia de coesão do NaCl a
partir dos átomos neutros é de (7,9 - 5,1 + 3,6) = 6,4 eV (por par), o que representa uma
coesão extremamente forte, o que é típico nos cristais iônicos. Veja na Tabela 2.3 as
energias de coesão dos diversos halogenetos alcalinos e compare com os valores da
Tabela 2.1 para os sólidos de gases nobres.
Assim como nos cristais de gases nobres, a interação atrativa de Van der Waals e
a repulsão devido ao Princípio de Exclusão também estão presentes em cristais iônicos,
mas a atração eletrostática entre os íons é responsável pela maior parte da energia de
coesão. A contribuição eletrostática para a energia de coesão é também conhecida como
energia de Madelung, e seu cálculo nos põe em contato pela primeira vez com algumas
sutilezas e dificuldades associadas ao potencial Coulombiano ( ~ 1 / r ).
Por simplicidade, consideremos um cristal iônico unidimensional de cargas
iônicas +q e -q. O íons positivos e negativos se alternam na cadeia unidimensional
infinita, como está mostrado na Fig. 2.4, e a distância entre íons é R.
Íon de referência
+ _ + _ + _ + _ + _ +
R
Figura 2.4 - Cadeia unidimensional de íons separados por uma distância R. As linhas tracejadas marcam
os limites das camadas neutras, úteis para cálculos rapidamente convergentes da constante de Madelung.
8
Analise na tabela periódica a energia de ionização dos diversos átomos. Note que os metais alcalinos são
os átomos dos quais se pode mais facilmente arrancar um elétron.
19
Queremos calcular a energia eletrostática deste sistema infinito de cargas iônicas. Cada
par de íons contribui com uma energia de q 2 4 0 r ij , onde o sinal + (-) corresponde a
cargas de sinal igual (oposto) e rij é a distância entre as cargas. A energia potencial
eletrostática por íon é portanto
1 1 q2 1 1 q2
U=
2 N 4 0
=
r 2 4
i j
r
. (2.14)
ij 0 j 0 j
1 1 q2 1 1 q 2
U=
2 4 0 R
j 0 j
= −
8 0 R
, (2.15)
onde
1 1
= R = (2.16)
j 0 r j j 0 | j |
9
Aguarde a definição mais rigorosa deste conceito para o próximo capítulo. Por ora, entenda como
estrutura cristalina o conjunto de posições espaciais que os íons ocupam.
20
2.0
1.8
1.6
1.4 2 ln2
1.2
1.0
0 2 4 6 8 10
Termos
Figura 2.5 – Convergência numérica da constante de Madelung, dependendo da maneira como os termos
são somados. Os quadrados (convergência lenta) correspondem à soma expressa na Eq. (2.12), enquanto os
círculos (convergência rápida) correspondem à Eq. (2.13).
1 1 1 1
= 2 − + − + . (2.17)
1 2 3 4
1 1 1 1 1 1 1
= + + − + − + + + − + . (2.18)
1 1 2 2 3 3 4
Uma breve inspeção nos faz concluir que esta série é idêntica à da Eq. (2.11). O
reagrupamento dos termos desta maneira, porém, permite uma rápida convergência da
mesma, como mostrado na Fig. 2.5. Na lista de exercícios deste Capítulo, aplica-se o
método de Madelung para um cristal bidimensional.
A Fig. 2.6 mostra a densidade eletrônica em um plano do cristal de NaCl. Nota-se
que os íons são praticamente esféricos.
21
Figura 2.6 - Densidade eletrônica em um plano do cristal de NaCl. Fonte: Ashcroft e Mermin.
Dissemos que, em um cristal iônico formado por elementos das colunas I-VII
existe uma transferência de 1 elétron do cátion para o ânion. Na realidade, esta
transferência eletrônica nunca é completa: quando os íons se juntam para formar o sólido,
existe ainda uma certa probabilidade de que este elétron passe uma fração de seu tempo
em orbitais do cátion. De fato, é impossível associar rigorosamente uma carga a um íon
específico em um sólido ou molécula. No entanto, há algumas receitas que são usadas
para estimar a quantidade fracionária de carga eletrônica que é transferida do cátion para
o ânion10. Esta quantidade de carga está também associada à ionicidade ou caráter iônico
de uma ligação química. A Tabela 2.4 apresenta o caráter iônico de vários compostos, a
partir da definição de J. C. Phillips11. Note que os halogenetos alcalinos apresentam uma
ionicidade bem próxima de 1, indicando uma transferência quase completa de um elétron.
10
http://en.wikipedia.org/wiki/Partial_charge
11
J. C. Phillips, Bonds and Bands in Semiconductors, Elsevier (1973).
22
Consideremos agora os compostos II-VI, ou seja, formados por elementos das
colunas IIA e VIA da Tabela Periódica (por exemplo, MgS, MgO, etc.). A Tabela 2.3
mostra que estes compostos têm ionicidades menores que as dos halogenetos alcalinos.
Isto ocorre porque os compostos II-VI apresentam menor diferença de
eletronegatividades entre seus constituintes. Como regra geral, quanto menor a diferença
entre eletronegatividades, menor a transferência de carga eletrônica. Deste modo, espera-
se que os compostos III-V (GaAs, InP, etc.) tenham ionicidade ainda menor, e que os
sólidos formados por elementos do grupo IV (C, Si, Ge, etc) tenham ionicidade nula. Isto
é confirmado pelos dados da Tabela 2.3 e está ilustrado pictoricamente na Fig. 2.7.
Nestes compostos, um novo tipo de coesão, onde os elétrons são compartilhados ao invés
de transferidos, passa a atuar: as ligações covalentes.
Figura 2.7 – Desenho esquemático da distribuição espacial dos 8 elétrons de valência (por par de átomos)
em NaCl, MgO, GaAs e Si. Note a mudança do regime de coesão, desde completamente iônico (NaCl),
até completamente covalente (Si), passando por regimes intermediários onde a coesão é parcialmente
iônica e parcialmente covalente. Ashcroft, p. 388.
23
estiverem bastante afastados um do outro, o único elétron deverá estar em um dos dois
orbitais 1s. Isto faz com que estes dois orbitais, que denominamos s1 e s 2 ,
correspondendo aos átomos 1 e 2 que irão formar a molécula (Fig. 2.7(b)), representem
uma boa escolha de base para descrevermos a função de onda da molécula. Assim,
fazemos o ansatz
= u1 s1 + u 2 s 2 . (2.19)
e-
(a) 1 2
H+ H+
s1 s2
(b)
a = 1
2 (1− S )
(s1 − s 2 )
(c) s + V
Anti-ligante
s
l = 1
2 (1+ S )
(s1 + s2 )
s - V
Ligante
+
Figura 2.7 – Ligação covalente na molécula de H 2 . Por simplicidade, estamos ignorando a repulsão de
overlap, que será discutida mais adiante.
Os valores dos coeficientes u1 e u2 são obtidos por argumentos de simetria: o
sistema tem simetria de reflexão em relação a um plano equidistante dos dois núcleos, de
modo que as funções de onda têm que ser simétricas ou antissimétricas em relação a este
plano, ou seja, |𝜓𝑙,𝑎 ⟩ = 𝐴± (|𝑠1 ⟩ ± |𝑠2 ⟩). Impondo-se a normalização em cada caso (lista
H
de exercícios), encontra-se l , a = 1 ( s1 s2 ) e calculando-se a energia E = ,
2 (1 S )
onde H é a Hamiltoniana do elétron na molécula, encontra-se dois auto-estados, com
energias aproximadamente iguais a El ,a = s V + SV , em que:
24
• S = s1 s 2 é o overlap (superposição) entre os dois orbitais atômicos.
• s = s 1 H s1 = s 2 H s 2 é aproximadamente12 a energia do orbital 1s do
hidrogênio.
• 𝑉 = −⟨𝑠1 |𝐻|𝑠2 ⟩ = −⟨𝑠2 |𝐻|𝑠1 ⟩ > 0 chamaremos de energia covalente13 e
representa, como veremos, o decréscimo de energia associada à formação da
ligação covalente.
s + V
s
s - V
U = -V U = -2V U = -V U = 0
Figura 2.8 – Variação de energia com relação a s em função do número de elétrons na ligação covalente,
ignorando-se os efeitos de repulsão Coulombiana entre os elétrons.
12
A energia s é na verdade menor que a do estado 1s do H devido ao potencial atrativo do segundo núcleo.
13
Convença-se, ou veja o cálculo explícito desta quantidade nas referências citadas ao final deste capítulo,
que, definida desta forma, a energia covalente V é uma grandeza positiva.
14
B. H. Bransden e C. J. Joachain, Physics of Atoms and Molecules, (Longman, 1990), Cap. 9.
25
calcular o decréscimo de energia eletrônica como mostrado na Fig. 2.8: -V, -2V, -V e 0
para 1, 2, 3 e 4 elétrons, respectivamente. Este argumento é aproximado porque ignora
não apenas a repulsão de overlap como também, como já adiantamos, um termo extra na
Hamiltoniana que aparece quando mais de um elétron está presente no sistema: a
repulsão Coulombiana entre os elétrons, que aumenta a energia e portanto diminui a
estabilidade da ligação covalente. Portanto, para um sistema com 4 elétrons (por
exemplo, dois átomos de He), há 2 elétrons em estados ligantes e 2 elétrons em estados
anti-ligantes, o que torna a ligação covalente efetivamente nula e, levando-se em conta a
repulsão Coulombiana entre os elétrons, ocorre de fato uma repulsão entre os átomos. É
este efeito combinado do Princípio de Pauli e da interação entre os elétrons, somado com
a repulsão de overlap e a repulsão Coulombiana entre os núcleos (que também começa a
ser importante a curtas distâncias) que dá origem à repulsão a curtas distâncias entre
átomos de camadas fechadas como os gases nobres.
A partir desta análise da ligação covalente no íon de H 2+ , podemos, de forma
qualitativa, antecipar o que acontecerá quando tivermos um sistema com muitos átomos,
ou seja, um sólido. Como vimos, no caso de dois átomos (com um orbital atômico por
átomo), temos uma matriz hamiltoniana 2×2 e portanto 2 autovalores da energia depois
da diagonalização. Assim, se tivermos N átomos, teremos N autovalores de energia, como
ilustra a Fig. 2.9. No limite em que N é muito grande, que é o caso em um sólido, o
conjunto dos N autovalores forma uma faixa muito densa, quase contínua, de energias. A
esta faixa, chamamos de bandas de energia, um conceito que veremos em mais detalhe
no Capítulo 6. Como cada nível pode conter 2 elétrons (pelo Princípio de Exclusão), os
elétrons terminam por ocupar os N/2 níveis de mais baixa energia (que formam a banda
de valência), deixando desocupados os níveis restantes (banda de condução). Desta
forma, a energia do sistema é reduzida em relação ao sistema formado por N átomos
isolados, o que consiste precisamente na coesão cristalina de sólidos covalentes.
Figura 2.9 – Evolução dos níveis de energia de um cristal covalente à medida em que o número de
átomos aumenta, levando à formação de bandas. À direita, a figura mostra de forma esquemática o
esquema de estados ligantes e anti-ligantes em um sólido 1D (MO=”molecular orbital”). Fonte: “General
Chemistry”, Petrucci et al.
Portanto, uma ligação covalente é mais forte quando contém exatamente 2
elétrons. Em sólidos do grupo IV, há 4 elétrons de valência que podem portanto formar 4
26
ligações covalentes por átomo. Como veremos nos próximos capítulos, a estrutura típica
destes materiais é a chamada estrutura do diamante, na qual cada átomo fica no centro
de um tetraedro formado por seus 4 primeiros vizinhos, com os quais forma ligações
covalentes. Analogamente à molécula de H 2+ , há um acúmulo de elétrons ao longo da
direção que une os átomos. Isto fica claro na Fig. 2.10, que mostra a densidade de
elétrons das camadas de valência em um plano de um cristal de Si, calculada por métodos
de primeiros princípios. Note que, ao contrário das interações iônica e de Van der Waals
que são esfericamente simétricas, a ligação covalente é extremamente direcionada. Já a
Fig. 2.11 mostra a densidade eletrônica de sólidos formados por átomos das colunas III-V
e II-VI da tabela periódica, onde as ligações são parcialmente iônicas e parcialmente
covalentes.
Figura 2.10 – Contribuição dos elétrons de valência para a densidade eletrônica em um plano do cristal
de Si. As posições atômicas estão marcadas com um . A escala de cinza varia desde branco (altas
densidades) até preto (baixas densidades). Note o acúmulo de elétrons ao longo da direção que une os
átomos.
Figura 2.11 - Densidade eletrônica dos elétrons de valência em um composto III-V (GaAs) e outro II-VI
(CdTe). Note que as ligações são parcialmente iônicas e parcialmente covalentes. Fonte: T.Kajitani et al., J.
Crystal Growth 229, 130 (2001).
27
2.6 - Coesão Metálica
Figura 2.11 – Distribuição eletrônica esquemática (região cinza) em um metal alcalino. Neste tipo de
material, os elétrons se distribuem quase uniformemente pelas regiões intersticiais.
Os metais alcalinos formam o tipo mais simples de metal. São formados pelos
elementos da coluna IA da Tabela Periódica (Li, Na, K, etc.). Como descrito na discussão
sobre halogenetos alcalinos, estes elementos possuem um elétron facilmente ionizável no
orbital s da última camada. Ao formar-se o sólido, estes elétrons tornam-se
deslocalizados e podem mover-se quase livremente pelo cristal, ocupando todas as
regiões entre os átomos (veja Fig. 2.11) e são os responsáveis pela condução de
eletricidade nestes materiais. Além disso, participam de forma importante na coesão
cristalina ao exercerem uma blindagem bastante efetiva dos íons. Veremos nos capítulos
seguintes que, em inúmeras situações, os metais alcalinos são o sistema físico mais
próximo do modelo idealizado de gás de elétrons livres, que estudaremos no Capítulo 6.
Na ocasião, estudaremos com um pouco mais de detalhe a coesão metálica.
Os metais de transição ocupam uma boa parte da Tabela Periódica: as 3 fileiras
que se estendem desde a coluna IB até à VIIIB. Nestes metais, além dos elétrons quase-
livres derivados dos orbitais s da ultima camada, que exercem função semelhante à dos
metais alcalinos, há os elétrons originários de orbitais d da penúltima camada. Estes
orbitais são gradualmente preenchidos desde a coluna I até a VIII. Os elétrons d
contribuem ativamente na coesão destes materiais formando ligações covalentes entre
átomos vizinhos. Isto faz com que os metais de transição tenham energias de coesão e
temperaturas de fusão mais altas do que os metais alcalinos.
28
Os metais nobres (Cu, Ag, Au) possuem os orbitais d da penúltima camada
totalmente preenchidos e portanto não formam ligações covalentes entre si. Mas
contribuem na coesão cristalina através de interações de Van der Waals entre átomos
vizinhos.
Na Tabela 2.5, energias de coesão e pontos de fusão para alguns metais alcalinos,
de transição e nobres.
Tabela 2.5 - Temperaturas de fusão e energias de coesão de diversos metais. Fonte: Kittel e Ashcroft.
Elemento Tfusão(K) Ecoesão Elemento Tfusão(K) Ecoesão
(eV/átomo) (eV/átomo)
O hidrogênio ocupa uma posição única entre os elementos. Pode compartilhar seu
único elétron em uma única ligação covalente, mas isso não é de muita utilidade em
sólidos que necessitam uma conectividade tridimensional da rede. Por outro lado, por ter
apenas 1 elétron de valência, se poderia esperar um comportamento similar aos demais
elementos da coluna IA, ou seja, a constituição de um sólido metálico (como os metais
alcalinos) ou a formação de cristais iônicos com halogênios. A formação de cristais
iônicos ocorre (são chamados de hidretos), mas com relação ao sólido metálico, esta fase
já foi predita teoricamente para ocorrer a altíssimas pressões, mas ainda não foi
observada experimentalmente15. Há, porém, uma outra peculiaridade do átomo de
hidrogênio: ao perder seu elétron, o íon de hidrogênio é nada mais que um próton, 105
vezes menor do que qualquer outro íon. Isto permite uma aproximação grande entre dois
íons negativos, com o íon H+ fazendo uma “ponte” entre os dois (Fig. 2.12). Esta
aproximação, porém, dificulta que outros íons negativos se aproximem. Esta é a chamada
ligação de hidrogênio (antes conhecida como ponte de hidrogênio) e é portanto uma
ligação essencialmente iônica entre dois átomos apenas, em geral átomos de alta
eletronegatividade (F, N, O, etc). Exerce um papel importante em sistemas biológicos
(por exemplo, é responsável pela ligação entre cadeias do DNA) e em gelo (veja Fig.
2.13).
15
A fase mais estável do hidrogênio a pressões ambientes é um sólido molecular, onde moléculas de H2
formam as unidade básicas (H.-K. Mao e R. J. Hemley, Rev. Mod. Phys. 66, 671 (1994)). A fase metálica
é considerada o “Santo Graal” da física de altas pressões e alguns pesquisadores já reportaram a sua
observação, mas sem que conseguissem reproduzir os resultados.
29
F- F-
+
H
Figura 2.12 – Ponte de hidrogênio na molécula de HF2-. Note que o pequeno tamanho do próton permite
uma grande aproximação entre os dois ânions, o que por sua vez impede a aproximação de demais ânions.
Veja Kittel, p. 77.
Figura 2.13 – Desenho esquemático bidimensional da estrutura do gelo (H 2O). As linhas tracejadas
representam as pontes de hidrogênio.
Leituras Complementares:
◼ Kittel, Capítulo 3.
◼ Ashcroft-Mermin, Capítulos 19 e 20. O método da soma por camadas neutras
para a constante de Madelung está bem discutido aí.
◼ Ibach-Lüth, Capítulo 1.
◼ Uma boa introdução ao conceito de ligação covalente se encontra em W. A.
Harrison, Electronic Structure and The Properties of Solids, (Dover, 1989),
Capítulo 1.
◼ F. Reif, Fundamentals of Statistical and Thermal Physics, (McGraw-Hill,
1988). No Cap. 10 há uma discussão detalhada dos gases de Van der Waals.
◼ Uma descrição mais detalhada da molécula de H2+ está em B. H. Bransden e
C. J. Joachain, Physics of Atoms and Molecules, (Longman, 1990), Cap. 9.
◼ Uma outra abordagem, também detalhada, para a ligação covalente
(especificamente para a molécula de Li2+, bastante semelhante à molécula de
H2+), está em W. A. Harrison, Elementary Electronic Structure, (World
Scientific, 1999), Cap. 1.
30