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FACULDADE DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO

Paulo Roberto Dias Lopes

A ORDEM DOS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS NA FORMAÇÃO DO REINO DE


PORTUGAL: Os Guardiões do Santo Lenho

RIO DE JANEIRO
2019
FACULDADE DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO

A ORDEM DOS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS NA FORMAÇÃO DO REINO DE


PORTUGAL: Os Guardiões do Santo Lenho

Paulo Roberto Dias Lopes

Monografia apresentada no Programa de Pós-graduação


Lato Sensu da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro
(FSB/RJ) para obtenção do Certificado de Especialização
em História Antiga e Medieval.

Orientador: Prof. Me. Eduardo Cardoso Daflon

RIO DE JANEIRO
2019
LOPES, Paulo Roberto Dias; A ORDEM DOS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS
NA FORMAÇÃO DO REINO DE PORTUGAL: Os Guardiões do Santo Lenho.
Rio de Janeiro: FSB/RJ, 2019.

68 páginas.

Monografia do Curso de Especialização em História Antiga e Medieval apresentada ao


Programa de Pós-graduação Lato Sensu da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Me. Eduardo Cardoso Daflon.

Palavras-chave: Cavaleiros Hospitalários. Ordem de São João. Ordem do Hospital.


Ordem de Malta. Santo Lenho. Portugal.
FACULDADE DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO

O trabalho monográfico A ORDEM DOS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS NA


FORMAÇÃO DO REINO DE PORTUGAL: Os Guardiões do Santo Lenho, apresentado
do pelo aluno Paulo Roberto Dias Lopes à Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro
(FSB/RJ) como um dos requisitos parciais para obtenção do grau de especialização em
História Antiga e Medieval do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu foi aprovado, obtendo
o grau __________ (______________).

___________________________________________
Orientador: Prof. Me. Eduardo Cardoso Daflon

Rio de Janeiro, ________ de _________________________ de 2019.


Agradecimentos

Primeiramente, agradeço a você, Manuela Bernardi Lopes, por ter sido a pessoa que
mais ouviu minhas histórias, a criança que se entretinha avidamente com as aventuras
inventadas do “Duende”, que tentava se safar das armadilhas que a floresta inóspita lhe
apresentava. Hoje eu admiro a mulher que vive a contar histórias muito mais interessantes do
que as minhas. Te amo, Filha!
À Patricia Costa, todo o teu incentivo vem pelo exemplo, tua energia me contagia e
me impulsiona sempre para novos desafios. Eu me reinvento na tua inquietude, nessa tua
busca incessante da felicidade, e sou feliz contigo. Te amo, Moça!
À Eduardo Daflon, eu percebi que não poderia ter melhor orientador no dia em que
você, um tanto constrangido, me disse que não conseguiria ler o meu material naquele final de
semana, pois ainda estava às voltas com a sua qualificação de Doutorado, que seria na
segunda-feira. Apenas dedicação e comprometimento podem definir o fato de você estar
preocupado com o meu trabalho às vésperas da sua qualificação. Me senti muito prestigiado!
Você me incentivou o tempo todo e trouxe as sugestões que deram um norte nessa minha
monografia. Obrigado, meu Mestre!
A CRUZ DE MALTA

Tuitio fidei et obsequium pauperum.


Defesa da fé e assistência aos pobres.

Lema da Ordem de Malta


RESUMO

As ordens militares surgiram após a conquista de Jerusalém pelas Hostes Cruzadas, quando da
criação do Reino Latino de Jerusalém, que teve sob seu domínio as localidades da Armênia
Menor, o Principado de Antióquia e o Condado de Trípoli. Após a conquista, muitos cruzados
e clérigos retornaram para a Europa, restando poucos guerreiros para proteger o território
conquistado havia o temor de que os muçulmanos organizassem uma contraofensiva para
reconquistar os recém-criados Estados Latinos do Oriente. Foi nesse contexto, com a iminente
necessidade de se promover a organização administrativa e militar do reino, que surgiram as
ordens militares religiosas na Palestina. O caráter de “Guerra Santa” atribuído às Cruzadas vai
ser assimilado não só no Oriente, mas também em outros recantos da Europa Medieval.
Assim, vai ficando claro para os contemporâneos das Cruzadas que a guerra santa deveria se
fixar em várias frentes e dentre elas: a conquista de territórios na Península Ibérica que
estavam em mãos dos ditos “infiéis” muçulmanos. Cabe destacar, por outro lado, que o
processo de conquista cristã promovido na Península Ibérica esteve envolto em uma série de
processos específicos dessa região, mas não por isso menos articulados ao quadro geral das
Cruzadas. Os combates que os pequenos reinos cristãos ibéricos vinham travando contra o
Islã havia três séculos, começam a adquirir no século XI contornos de um ambiente de guerra
religiosa. Nesse sentido, com o apoio da Igreja, várias ordens militares vieram se instalar no
Condado Portucalense para lutar pela causa cristã. Essas ordens foram importantes na
conquista cristã da Península Ibérica e, de forma significativa, a atuação da Ordem Soberana e
Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta, também conhecida como
Ordem de São João, Ordem de Malta ou, simplesmente, Cavaleiros Hospitalários, que
participou de batalhas decisivas na guerra de conquista e formação do Reino de Portugal,
tendo em contrapartida recebido privilégios e doações de terras. Os Cavaleiros Hospitalários
protegiam e se julgavam protegidos pelo poder místico da relíquia do Santo Lenho, por eles
guardada, cujo fragmento era sempre ostentado à frente da tropa para incentivar seus cônegos
nas batalhas contra os infiéis. Em particular nos deteremos a abordar a participação da Ordem
dos Hospitalários e sua mística religiosa na batalha do Salado, a partir da qual os muçulmanos
não mais conseguiram inverter a expansão cristã rumo à conquista final da Península Ibérica e
os portugueses não mais voltaram a se defrontar diretamente com os mouros em campos da
Europa. Buscar-se-á em nosso Trabalho de Conclusão de Curso, trazer esclarecimentos acerca
da seguinte questão: - Qual a participação dos Cavaleiros Hospitalários na formação do Reino
de Portugal e a importância do poder simbólico da relíquia do Santo Lenho para a mística
dessa atuação?

Palavras-chaves: Cavaleiros Hospitalários. Ordem de São João. Ordem do Hospital. Ordem


de Malta. Santo Lenho. Portugal.
ABSTRACT

The Military Orders emerged after the conquest of Jerusalem by the Host Crusades, in the
event of the creation of the Latin kingdom of Jerusalem, which kept under its command sites
like Lesser Armenia, the Principality of Antioch and the County of Tripoli. After the
conquest, many crusaders and clergyman returned to Europe, leaving few warriors to defend
the conquered territory. They feared that the muslins would organize an counterattack to
reclaim the newly established Eastern Latin states. In this context, with the raising need to
promote the kingdom’s administrative and military organization, the Religious Military
Orders emerge in Palestine. The character of “holy war” given to the Crusades will be
absorbed, not only in the East, as in other places of Medieval Europe. Thus, it becomes clear
to the contemporaries of the Crusades that the holy war should fixate itself in several fronts
and, among them, conquering territories in the Iberian Peninsula that were ruled by the
muslins called “unfaithful”. It’s important to highlight, on the other hand, that the process of
Cristian conquest in the Iberian Peninsula was wrapped in a series of specific process from
that region, but that doesn’t mean they were less articulated with the overview of the Crusade
process. The combats being held between small Iberian Cristian kingdoms against Islamic
nations during three centuries, started to look like - in the 11th Century - the ambiance of a
religious war. Thus, backed by the church, several Military Orders came to set camp in the
County of Portugal to fight for the Cristian cause. Those Orders were important in the Cristian
conquer of the Iberian Peninsula and, in a significant way, the Order of Knights of the
Hospital of St John of Jerusalem, of Rhodes and of Malta, also known as Order of Saint John,
Sovereign Military Order of Malta, or simply, Knights Hospitaller, that took part in decisive
battles in the war of conquest and formation of the Kingdom of Portugal, receiving in return
privileges and land donations. The Knights Hospitaller protected and judged themselves
protected by the mystical power of the True Cross relic, that was guarded by them, whose
fragment was always displayed in front of the troops to encourage their clergyman in the
battles against the unfaithful. We will talk about in particular of the participation of the Order
of Knights Hospitaller and their mystical and religious Battle of Salado, from which the
muslins cannot revert the Cristian expansion towards the final conquest of the Iberian
Peninsula and the Portuguese had not to face again directly with the Moorish in European
fields. It will be searched in this Graduation Work to bring fort clarifications about the
following question: “What is the participation of the Knights Hospitaller in the formation of
the Kingdom of Portugal and the importance of the symbolic power of the True Cross relic to
the mystic of that action?”.

Keywords: Knights Hospitaller. Order of Saint John. Order of the Hospital. Order of Malta.
True Cross. Portugal.
Lista de Imagens

Imagem 1 Mosteiro de Leça de Balio


Imagem 2 Castelo de Belver
Imagem 3 Mosteiro da Flor da Rosa/Crato
Imagem 4 Igreja dos Hospitalários em Vera Cruz de Marmelar
Imagem 5 Mapa geográfico do Reino de Portugal no Séc. XIII, baseado nas Ordens
Militares
Imagem 6 Relicário do Santo Lenho em Marmelar adornado em prata e cinzelado com as
armas do Prior D. Numo de Álvares Pereira
Imagem 7 Dia da Exaltação da Vera Cruz no Mosteiro de Marmelar
Imagem 8 Padrão de Nossa Senhora da Vitória, Cidade de Guimarães, Distrito de Braga
SUMÁRIO

1 Introdução 10

2 ANTECEDENTES 12
2.1 A Europa Medieval do Século XI 12
2.2 Igreja: “Trégua de Deus” e “Guerra Santa” 12
2.3 A Primeira Cruzada e a Conquista de Jerusalém 15
2.4 Origem das Ordens Militares Religiosas 17

3 A HISTÓRIA DA ORDEM SOBERANA E MILITAR HOSPITALÁRIA


DE SÃO JOÃO DE JERUSALÉM, DE RODES E DE MALTA 20
3.1 A Origem da Ordem Militar de São João do Hospital 20
3.2 A Militarização da Ordem dos Hospitalários 24
3.3 A Estrutura Hierárquica/Administrativa e a Iniciação na Ordem 26
3.4 Do Hospital de Jerusalém à Soberania da Ordem de São João sobre as Ilhas de
Rodes e de Malta – Estados Nacionais 29
3.4.1 O Domínio sobre Rodes 30
3.4.2 O Domínio sobre Malta 32

4 OS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS NA FORMAÇÃO DO REINO


DE PORTUGAL 36
4.1 Instalação dos Cavaleiros Hospitalários no Condado Portucalense –
Assistencial e Militar 36
4.2 A Expansão da Ordem de São João no Reino de Portugal – Castelos e
Territórios 38
4.3 O Confronto de dois poderes: O Monarca Português e a Ordem do Hospital 43

5 OS GUARDIÕES DO SANTO LENHO E A BATALHA DO SALADO 46


5.1 O Santo Lenho e sua mística na atuação dos Cruzados e da Ordem do Hospital 46
5.2 A Ordem do Hospital detém a posse do Santo Lenho em Mamelar 51
5.3 A Conjuntura na Península Ibérica e em Al Andaluz antes da Batalha do
Salado 58
5.4 O Poder místico do Santo Lenho na Batalha do Salado 60

6 Conclusão 63

Referências 66
10

1 Introdução

O objeto escolhido para esse Trabalho de Conclusão de Curso – A Ordem dos


Cavaleiros Hospitalários na Formação do Reino de Portugal: Os guardiões do Santo Lenho –
remete-nos tanto a fatos cujas fontes históricas são consistentes e internacionalmente aceitas,
quanto a narrativas baseadas na tradição, que mesmo repetidas através dos séculos, não
possuem evidências concretas de sua realização. Neste trabalho, vamos abordar com mais
ênfase a atividade militar da Ordem do Hospital, muito embora saibamos que foi seu caráter
assistencial que a diferenciou das demais, nos levando a cogitar que foi no exercício dessa
atividade que residiu o propósito que a manteve ativa e necessária durante todos esses séculos.
No tratamento específico do tema central – A Ordem do Hospital na Formação de
Portugal – ainda pouco explorado, mantivemos foco em analisar trabalhos de historiadores já
consagrados, como é o caso das portuguesas Paula Maria de Carvalho Pinto Costa e Fátima
Regina Fernandes, dos brasileiros Dirceu Marchini Neto e Renata Cristina de Souza
Nascimento e do espanhol Rafael Pérez Peña, todos doutores com teses e artigos dedicados ao
tema dos hospitalários.
Declaramos que a nossa barreira linguística foi impedimento para analisar textos de
origem muçulmana que nos levassem a uma compreensão mais acurada do “outro”, nas
batalhas das Cruzadas na Península Ibérica. Deixamos aqui a sugestão para que outros
pesquisadores venham aceitar o desafio da abrangência e se interessem pelo desenvolvimento
do tema. O presente trabalho foi dividido em quatro capítulos: Antecedentes; A História da
Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta; Os
Cavaleiros Hospitalários na Formação do Reino de Portugal; e Os Guardiões do Santo Lenho
e a Batalha do Salado.
Para entendimento do que levou a Europa a se lançar em direção à Terra Santa com o
propósito de libertá-la do jugo dos mulçumanos, faremos, no Capítulo 1, uma rápida
abordagem de temas que antecedem e justificam as Cruzadas e, em consequência, a criação da
Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta. Com
isso, buscaremos que o leitor tenha um panorama contextual adequado para que possamos
desenvolver uma argumentação objetiva que nos leve ao tema central. Desse modo, o
Capítulo 1 não terá a pretensão de ser uma abordagem exaustiva, mas apenas uma
apresentação de algumas problemáticas.
No Capítulo 2, faremos um relato sucinto da História de mais 900 anos da Ordem
Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta. De
11

importante, descreveremos como uma Ordem religiosa, nascida anos antes das cruzadas,
adquire importância por todo o Mediterrâneo, chegando a deter soberania estatal clássica,
entre os séculos XIII e XVIII, sobre as Ilhas de Rodes e Malta.
Em seguida, no Capítulo 3, iremos aprofundar o tema central de nosso Trabalho de
Conclusão de Curso, a atuação dos Cavaleiros de São João na formação do Reino de Portugal.
Abordaremos a expansão territorial da Ordem em Portugal, desde sua instalação, tanto na
função assistencial quanto militar, seus castelos e os territórios ocupados. Faremos, também,
uma análise do confronto ocorrido entre os poderes da monarquia portuguesa e da Ordem do
Hospital.
No Capítulo 4, iremos abordar a mística do Santo Lenho, relíquia que esteve
relacionada com os Hospitalários desde os seus primórdios e, particularmente em Portugal,
adquiriu aspectos identitários com a Ordem do Hospital que foram os suportes ideológicos
para a sua atuação.
12

2 ANTECEDENTES

2.1 A Europa Medieval do Século XI

A partir do século XI se observa um crescimento da população europeia devido ao


aumento da oferta de gêneros alimentícios, o que se justifica pelos seguintes fatores:
desenvolvimento das técnicas agrícolas, a exemplo do uso de um novo tipo de arado
(charrua); do sistema trienal de cultivo e pela mudança na forma de atrelar cavalos e bois;
aumento das terras cultiváveis em razão do aproveitamento de florestas, terrenos e pântanos;
alterações climáticas que, já a partir do século VIII, tornaram o clima mais seco e temperado,
transformando regiões desertas em áreas cultiváveis (CALAINHO, 2014, p. 71).
Essa alteração de clima propiciou também uma redução dos surtos epidêmicos,
principalmente da malária, da varíola e da peste, que se alastram mais rapidamente em climas
frios e úmidos. Além disso, na Europa do século XI se pode constatar a intensificação do
sistema feudal no Ocidente, entendido como a dependência dos camponeses aos donos de
terras (senhores feudais), tendo a Igreja como legitimadora desse regime. Em Demurger
(2002, p. 170) observamos que a sociedade ocidental desse tempo se tornava dinâmica e os
camponeses abandonavam seus feudos em busca de nova vida nas aldeias em formação. Na
Região Germânica, cavaleiros normandos iriam se colocar a serviço de senhores bizantinos do
sul da Itália, sendo que alguns se deslocaram para Constantinopla, para atuar como
mercenários.
Os conflitos internos entre senhores feudais eram frequentes, pois cada um detendo o
poder de polícia/justiça em seu feudo e mantendo milícias próprias, tinha o objetivo de manter
a obediência dos camponeses, vigiar seus castelos, garantir a ordem em seu distrito e guerrear
com seus inimigos. Citando Demurger “a ordem senhorial era causadora de distúrbios que
introduziam a desordem na casa de Deus” (2002, p. 18).

2.2 Igreja: “Trégua de Deus” e “Guerra Santa”

A Igreja atuou para conter os ímpetos bélicos por intermédio da “Paz de Deus”, onde
tentava definir proibições de ataque às populações desguarnecidas e de pilhagem aos bens da
Igreja, além de determinados períodos de paz obrigatória. Foram realizados vários Concílios
de Paz, o primeiro em Puy por volta de 987, seguindo-se o de Charroux, em Poitou, no ano de
989 e cujos escritos foram ratificados em Elne, no ano de 1027. No Concílio de Narbonne
13

(1054), a “Paz de Deus” foi justificada sob o argumento de que nenhum cristão deve matar
outro cristão, pois aquele que mata um cristão derrama o sangue de Cristo.
Parafraseando Demurger (2002, p. 20), o conjunto dessas regras estabeleceu a “Trégua
de Deus” e definiu dois elementos importantes, a “abstinência de guerra” durante um “tempo
sagrado”, a fim de provar e consolidar a fé dos cavaleiros medievais; e sanções eclesiásticas
aos violadores dessa trégua. Além disso, criaram-se as milícias da paz, declarando-se guerra
contra a guerra não justificada, em outras palavras: aquela que não estivesse a serviço do bem,
da paz, da Igreja, a “Guerra Justa”.
Todos esses movimentos de paz realizados pela Igreja, culminaram no Concílio de
Clermont, ocorrido em 1095, na região de Auvergne (França). Nesse evento, foram discutidas
as mudanças propostas na Reforma Gregoriana, assim conhecida em referência ao seu
principal mentor, o Papa Gregório VII, que comandou a Igreja Católica entre os anos de 1073
e 1085.
Conforme constava da Reforma, o Concílio de Clermont denunciou o abuso dos
clérigos, condenou o casamento de padres (nicolaísmo) e o tráfico de objetos sagrados pelos
clérigos (simonia). Porém, o objetivo principal do evento era libertar a Igreja do domínio dos
laicos e dar um fim à Querela de Investiduras1. Outro fato de suma importância também
ocorreu em Clermont, no último dia do Concílio, o Papa Nicolau II proferiu um discurso que
iria mudar definitivamente o panorama da Europa do Séc. XI e a História do mundo ocidental,
a convocação da “Guerra Santa” contra os infiéis.
Vamos retornar um pouco no tempo para entender melhor esse movimento da Igreja.
De forma diferente do que muitos imaginam, as peregrinações aos lugares santos eram
comuns durante a Idade Média e ocorriam pelos mais variados motivos. Fiéis iam pedir por
prosperidade material; implorar por milagres de cura; pagar promessas por graças alcançadas
ou apenas por orar e meditar. Os três roteiros mais frequentados pela cristandade eram o
Caminho de Roma, o Caminho de Santiago de Compostela e o mais importante deles, o
Caminho de Jerusalém. Vale destacar que a dificuldade de acesso dos peregrinos cristãos aos
lugares sagrados na Palestina, durante o domínio dos muçulmanos, se constituiu em das
principais motivações do clero para a “Guerra Santa”.
Os islâmicos haviam permitido, por vários séculos, as peregrinações a Jerusalém,
excetuando-se alguns momentos mais conturbados. Entretanto, a partir de 1071, as conquistas
territoriais dos muçulmanos contra os bizantinos, levaram os turcos seljúcidas, aliados do

1
Querela de Investiduras: Os papas lutavam contra a ingerência das monarquias europeias nas nomeações de
bispos, abades e dos próprios papas.
14

Califado Sunita de Bagdá, a conquistar boa parte da Ásia Menor, incluindo a cidade de
Jerusalém tomada, em 1076, das mãos dos fatímidas, pertencentes ao Califado Xiita do Cairo.
Tal fato prejudicou em muito as peregrinações, provocando na Europa um clamor pela
libertação do Santo Sepulcro das mãos dos “infiéis”.
Assim, o Papa Nicolau II, no Concílio de Clermont-Ferrand, utilizou os argumentos da
“Trégua de Deus” e da “Guerra Santa” como base para o discurso que mudou a relação de
poder da Igreja na Idade Média. Sobre isso, Chaves faz o seguinte comentário:

A partir de 1027, aproximadamente, surgem decretos que visarão à regularização


dos tempos de guerra e de paz. A esses últimos é dado o nome de ‘trégua de Deus’
[...] portanto, já se aproximam cronologicamente da pregação de Urbano II em
Clermont-Ferrand. É difícil, então, não se estabelecer algum nexo entre as duas,
sobretudo porque esse Concílio prescreve a trégua de Deus e a Cruzada 2 (2015, p.
42-43).

Para Moretti e Reis (2011, p. 2492), ao proclamar uma “Guerra Santa” contra os
infiéis, Nicolau II demonstra uma mudança de atitude e pensamento do alto clero da Igreja
após a Reforma Gregoriana, uma vez que até então as guerras eram proclamadas por chefes
de reinos laicos, sendo assim, a Cruzada pode ser considerada um artifício no sentido de unir
o ocidente cristão sob a liderança papal. Dessa forma, a Igreja da Idade Média, passou a deter
poder para proteger seu patrimônio, tanto material quanto espiritual, e garantir sua
independência, exercendo sua autoridade sobre os cristãos.
Monteiro (2015, p. 14) é de opinião que o movimento das Cruzadas não teria sido
possível um século antes, pois a Igreja não detinha uma autoridade generalizada no mundo
ocidental, uma vez que ela própria sofria os efeitos da feudalização e da decadência do poder
régio em benefício dos senhores locais. Da mesma forma, as Cruzadas não teriam sido
possíveis dois séculos mais tarde, quando começou a se abater sobre a Europa a sombra da
“Crise do Século XIV”. Então, é possível dizer que as Cruzadas são próprias do seu tempo
(entre finais do Séc. XI e finais do Séc. XIII), um tempo de profunda reforma da Igreja, a
chamada “Reforma Gregoriana”, conduzida principalmente por Gregório VII a partir de 1075.
Nessa época é possível identificar um ambiente de reordenamento do diálogo entre o poder
eclesiástico e o poder temporal, que haveria de conduzir à supremacia política da Igreja, ou
seja à “teocracia papal”.

2
O termo Cruzada não era utilizado na época de Nicolau II. Só ficou assim conhecido porque seus
participantes eram considerados soldados de Cristo e usavam uma cruz exposta em suas roupas.
15

2.3 A Primeira Cruzada e a Conquista de Jerusalém

Em 27 de novembro de 1095, o Papa Urbano II faz seu contundente discurso


convocando os nobres e seus exércitos para libertar a Terra Santa do julgo dos infiéis
muçulmanos, assim vários senhores se uniram para organizar a primeira Cruzada com destino
a Jerusalém, que demandaria cerca de um ano para que toda a estrutura de combate estivesse
pronta para ação. Buscando identificar os principais personagens com perfil para atender ao
chamado do Papa, Franco Jr. nos relata que eram:

[...] nobres sem-terra, isto é, filhos secundogênitos3 em número cada vez maior,
produto do crescimento demográfico. De fato, o direito feudal os excluía da herança
de bens imobiliários para que a terra não fosse dividida e não se comprometessem as
relações contratuais senhor-vassalo. [...] Depois, servos desenraizados em função da
continuada fragmentação dos mansos4. [...] Quando estes passaram a ser mais
numerosos, a porção que cabia a cada um deles tornou-se insuficiente para seu
sustento, para a formação de sua própria família (1998, p. 77-78).

Ocorreu que a convocação papal ecoou por toda a Europa e enquanto os nobres
cavaleiros feudais organizavam seus exércitos, pregadores itinerantes correram por cidades e
feudos dando notícia sobre a decisão tomada pela Igreja e convocando a todos para participar
da missão divina. Dentre esses arautos da vontade divina estava Pedro, “O Eremita”, que
conseguiu mobilizar milhares de pobres, camponeses sem terra, famílias inteiras e toda a sorte
de mendigos e desvalidos e, sem o consentimento do Papa, convocou uma Cruzada Popular,
também chamada de “Cruzada dos Mendigos”, que marchou “sem eira nem beira5” para a
Terra Santa.
A horda dos mendigos chegou a Constantinopla em julho de 1096, assustando a
população local em razão da série de saques que praticavam para aliviar sua fome e sede.
Aleixo I6, soberano de Constantinopla, incentivou os seguidores de Pedro a continuar viagem
para a Ásia Menor e lutar contra o exército turco na cidade de Niceia. O destino desses
“cruzados-mendigos” estava então traçado, foram aniquilados pelas tropas do sultão Kilij
Arslam e alguns poucos que sobreviveram (basicamente mulheres e crianças) foram
capturados e vendidos como escravos.

3
Diz-se do filho que nasce em segundo lugar.
4
Trata-se do manso servil que eram as terras destinadas ao uso dos servos (camponeses do feudo).
5
Pessoas sem bens, sem posses. Expressão portuguesa: eira é um terreno de terra batida ou cimento onde grãos
ficam ao ar livre para secar. Beira é a beirada da eira. Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o
proprietário fica sem nada.
6
Aleixo I havia solicitado ajuda ao Papa Urbano II para enfrentar os Turcos Seljúcidas, que professavam o
islamismo e ameaçavam constantemente o seu reino, o que teria sido o estopim da Primeira Cruzada.
16

Alguns outros grupos cruzados, também sem autorização papal, rumaram em direção a
Jerusalém, mas se desvirtuaram no caminho e, apesar do protesto e intervenção de bispos
locais, passaram a promover pilhagens e massacres de judeus em plena Europa, acusando-os
do assassinato de Jesus Cristo. Enquanto isso, a Cruzada Oficial estava sendo organizada e
acompanhada pela Santa Sé. Acerca desses preparativos, Giordani vai esclarecer:

Os príncipes ocidentais que haviam abraçado a Cruz eram menos impacientes que
Pedro e seus amigos. Estavam dispostos a esperar as datas fixadas pelo papa.
Tinham que recrutar suas tropas e equipá-las. Era necessário conseguir dinheiro para
esse fim. Impunha-se a adoção de medidas para o governo de suas terras durante
uma ausência que poderia levar anos. Nenhum deles se encontrava em condições de
partir antes do mês de agosto (1984, p. 553-554).

Em agosto de 1096, saindo de várias regiões europeias, em sua maior parte por terra,
partem as várias tropas de nobres cruzados com destino a Jerusalém. Era a primeira cruzada
oficial, chamada Cruzada dos Nobres ou dos Barões, uma expedição militar organizada,
composta de aproximadamente trinta e cinco mil guerreiros, incluindo cerca de cinco mil
cavaleiros.
O Papa definiu que Ademar de Monteil, legado papal e Bispo de Le Puy, seria o líder
espiritual da expedição. Já a liderança militar ficou a cargo de três nobres, Raimundo IV de
Toulouse, que tinha experiência em batalhas contra muçulmanos na Península Ibérica e era
acompanhado pelos cavaleiros da Provença; Boemundo de Taranto, líder dos normandos do
sul da Itália, velhos inimigos do Império Bizantino; e Godofredo de Bulhão que vinha com
seu exército da Lorena. Além deles, outros cavaleiros estavam presentes, Eustácio III e
Balduíno de Bolonha (irmãos de Godofredo); Roberto II da Flandres; Hugo I de Vermandois;
Roberto II da Normandia; e Estevão de Blois.
Aos poucos as tropas foram chegando a Constantinopla e se reunindo do lado de fora
dos portões da cidade, em maio de 1097 estavam finalmente agrupados. Aleixo I foi
surpreendido pela quantidade de pessoas mobilizadas para as batalhas, bem como pelas
personalidades importantes que representavam os reinos cristãos da Europa Ocidental. O
Imperador Bizantino prometeu apoio logístico ao enorme contingente de guerreiros, mas em
troca exigiu que os líderes da Cruzada jurassem vassalagem e entregassem ao controle
bizantino todas as terras conquistadas dos turcos.
Partiram então os cruzados para sua campanha militar que obteve sua primeira vitória
em junho de 1097, quando caiu a cidade de Niceia, capital do Sultanato Seldjúcida da
Anatólia, situada a cerca de cem quilômetros de Constantinopla. Em maio de 1098, Balduíno
17

de Bolonha, cuja tropa havia se apartado das demais, funda o primeiro Estado Cruzado, o
Condado de Edessa; em junho de 1098, após um cerco de oito meses, a cidade de Antióquia
cai ante a ação dos cruzados.
Boemundo, que liderou o ataque, funda e passa a governar o Principado de Antióquia,
segundo Estado Cruzado no Oriente, enquanto o restante do combalido exército de Cristo7
parte para a conquista de Jerusalém. No dia 15 de julho de 1099, sob o comando de
Godofredo e após quase três anos de guerras e privações de toda sorte, os cruzados
conseguem abrir um espaço nas muralhas de Jerusalém, invadem a cidade e massacram os
seus habitantes, quer sejam muçulmanos ou judeus. A conquista de Jerusalém, foi descrita
sem complacência por autor anónimo na Crónica Anónima da Primeira Cruzada:

Na sexta-feira de madrugada atacámos a cidade de todos os lados, sem qualquer


sucesso, e ficámos todos no estupor e numa angústia terrível. (…) Foi então que um
dos nossos cavaleiros, chamado Lieutaud, escalou o muro da cidade. Pouco depois
de ele ter subido, todos os defensores da cidade fugiram pelas muralhas e pela
cidade. Os nossos seguiram-nos e perseguiram-nos, matando e acutilando em cheio
os corpos, até ao templo de Salomão. Aqui, houve uma tal carnificina que os nossos
enterravam os pés no sangue até ao tornozelo. (…) Em breve os Francos correram
por toda a cidade, pilhando o ouro e a prata, os cavalos e as mulas, as casas cheias
de bens de todos os tipos. Depois, felizes e chorando de alegria, os nossos foram
adorar o sepulcro do nosso Salvador Jesus, e saldaram a sua dívida principal para
com ele (apud MONTEIRO et al, 2015, p.17).

A primeira Cruzada cumpriu sua missão, conquistou Jerusalém e tomou posse do


Santo Sepulcro, agora era preciso organizar a administração da cidade. Os cruzados
ofereceram o título de Soberano do Primeiro Reino Cruzado em Jerusalém a Godofredo de
Bulhão, mas ele não quis usar a coroa real antes de se encontrar com o papa. Foi chamado de
Protetor do Santo Sepulcro. O esperado encontro nunca ocorreu, pois Godofredo morreu no
ano seguinte. Seu irmão Balduíno, Conde de Edessa, lhe sucedeu, assumindo o título real
(Balduíno I).

2.4 Origem das Ordens Militares Religiosas

O Reino Latino de Jerusalém8 foi organizado como uma estrutura feudal típica, ou
seja: baseava-se na existência de três estamentos sociais – nobres, clero e servos – onde a
mobilidade social era restrita e a organização econômica, política e social era baseada na

7
A essa altura, o exército cristão estava reduzido a cerca de 1.500 cavaleiros e 14.000 soldados de infantaria,
carentes de armas e provisões.
8
Estado Cruzado, criado no Oriente Médio em 1099 pela primeira Cruzada. Teve sua capital em Jerusalém e
mais tarde em Acre. Foi extinto em 1291, com a tomada da cidade pelos muçulmanos.
18

posse da terra. Durante seu reinado, Balduíno I conquistou os territórios de Acre, Sídon e
Beirute, anexando-os aos Estados que já eram cruzados como Edessa, Antioquia e Trípoli.
Apesar disso, a população do reino diminuía, muito em razão do retorno para a Europa
de muitos cruzados e clérigos que haviam participado da “Guerra Santa”, restando poucos
guerreiros para proteger o território conquistado. Além disso, havia o temor de uma
contraofensiva dos muçulmanos para reconquistar os recém-criados Estados Latinos do
Oriente. Por outro lado, a peregrinação à Terra Santa havia sido retomada e existia
necessidade de dar assistência e proteção aos cristãos que se aventuravam na empreitada. E
não só isso, os castelos necessitavam de guarnição armada, os suprimentos e equipamentos
precisavam de transporte, os locais sagrados careciam de patrulhamento e frequentemente
cristãos e muçulmanos travavam escaramuças por posse de terras ou mera pilhagem. Esse
contexto deixava evidente a necessidade de algum tipo de organização militarizada que
possuísse ainda funções assistenciais e administrativas. A resposta para todas essas
necessidades foi dada pela criação das ordens militares na Palestina.
A primeira ordem militar que se tem notícia, segundo Valente (1924, p. 11), foi a
Ordem Religiosa do Santo Sepulcro, criada durante o governo do primeiro soberano do Reino
Latino de Jerusalém, Godofredo de Bulhão (22 de julho de 1099 a 18 de julho de 1100). Era
regida pela regra do Patriarca Santo Agostinho e tinha como finalidade proteger e guardar o
Santo Sepulcro e os demais lugares sagrados do cristianismo em Jerusalém. Seus cônegos
foram chamados de “Cavaleiros do Santo Sepulcro”.
Em 1118, um grupo de nove cavaleiros franceses, liderados por Hugo de Payns,
compareceu à frente do Rei Balduíno II, prometendo colocar-se a serviço do Reino de
Jerusalém e proteger com a própria vida os peregrinos do caminho santo. Esse grupo recebeu
a imediata aprovação e a acolhida do soberano que os alojou em uma das esplanadas do
antigo Templo de Salomão. Assim surgiu a segunda ordem militar, os “Pobres Cavaleiros de
Cristo e do Templo de Salomão – Os Templários”.
A terceira ordem militar surgida foi a dos Cavaleiros de São João do Hospital, mais
conhecidos como “hospitalários”, cuja função primordial era fornecer serviços assistenciais a
peregrinos e cruzados. Essa ordem, apesar de ter sido criada antes dos templários (fundada no
século XI na Palestina), só assumiu funções militares a partir de 1130. Criada pelos
hospitalários, em 1098, temos a quarta ordem de Jerusalém, a Ordem Militar e Hospitalar de
São Lázaro de Jerusalém, que acolheu pessoas, inclusive hospitalários, que adquiriam Lepra
(Hanseníase).
A quinta ordem militar a se formar na Palestina foi a “Ordem dos Cavaleiros
19

Teutônicos de Santa Maria de Jerusalém” ou simplesmente a “Ordem Teutônica”. Foi


formada em São João de Acre, em Israel, no ano de 1190, inicialmente para auxiliar os
cavaleiros germânicos feridos nas Cruzadas.
Em Monteiro (et al, 2015, p. 36-37), acerca da importância das ordens militares,
mormente templários e hospitalários:

Estas últimas organizações (Templários e Hospitalários) configuravam um


derradeiro e precioso recurso militar dos governantes cruzados. Na década de 1170,
devia haver cerca de 300 cavaleiros da Ordem do Templo e outros tantos da Ordem
do Hospital no reino de Jerusalém (os Teutónicos só surgiriam nos últimos anos do
Séc. XII e seriam em menor número). Contas feitas, Templários e Hospitalários, em
conjunto, representavam quase metade da capacidade militar ‘pesada’ do principal
Estado Latino do Oriente, o mesmo devendo suceder em Antioquia e em Tripoli.
Mas não se tratava apenas de uma questão de expressão numérica: os contingentes
das Ordens eram o núcleo duro dos exércitos latinos da Terra Santa, porque eram os
seus únicos corpos militares permanentes, porque eram forças
semiprofissionalizadas e com uma clara vocação guerreira, porque a sua presença
continuada na Síria-Palestina lhes permitia acumular uma experiência militar
indispensável a uma luta travada nas condições que evocámos, e também porque,
tendo uma raiz religiosa e monástica, onde a obediência era um princípio sagrado, os
seus freires cavaleiros garantiam um nível de disciplina e de respeito pelos chefes
muito superior ao normal nos exércitos feudais. Além disso, a grande capacidade
económica das Ordens (que dispunham de vastos recursos no Ocidente) permitia-
lhes construir e manter fortalezas que se converteram em verdadeiros baluartes da
presença latina na Terra Santa, para além de a sua orgânica interna e de os seus
recursos humanos lhes possibilitarem repor rapidamente os numerosos efetivos que
perdiam em combate.

Um dos maiores incentivadores das ordens militares foi Bernardo de Claraval, um


abade francês da ordem religiosa de Cister. Em 1128, Bernardo criou a regra monástica dos
templários que viria a se tornar uma espécie de manual de nobreza do mundo medieval. Foi
ele o principal pregador para a organização da Segunda Cruzada, após a retomada pelos
muçulmanos da cidade de Odessa. Moretti e Reis, nos falam desse personagem que com o
tempo passou a fazer apologia do confronto armado e da guerra santa: “Entretanto, o
pensamento de Bernardo de Claraval, evoluiu com o tempo e depois o teólogo renunciou essa
moderação da violência e da guerra, e não recusou a sua utilização em qualquer medida, sobre
o combate aos infiéis nas Cruzadas” (2013, p. 3).
No Concílio de Troyes (1128 d.C.), no qual foi aprovada a regra dos templários,
Claraval realizou um sermão (Elogio da Nova Milícia Templária), intitulado De laude novae
militiae ad Milites Templi, quando afirmou que: “os soldados de Cristo lutam com segurança
as batalhas do Senhor, sem temor de cometer pecado por morte do inimigo, nem por
desconfiança de sua salvação em caso de sucumbir”.
20

3 A HISTÓRIA DA ORDEM SOBERANA E MILITAR HOSPITALÁRIA DE SÃO


JOÃO DE JERUSALÉM, DE RODES E DE MALTA

3.1 A Origem da Ordem Militar de São João do Hospital

Figueiredo (2013, p. 18) vai nos relatar que a Ordem de São João conta com mais de
novecentos anos de fundação e é a única que resta atuante das dezesseis ordens de cavalaria
criadas na Idade Média, para atuar na defesa da Terra Santa contra os inimigos muçulmanos
que cercavam os domínios cristãos do Reino Latino de Jerusalém. Ao longo dos tempos, os
cavaleiros conhecidos apenas como Hospitalários de São João de Jerusalém foram sendo
expulsos das terras que originalmente protegiam e buscaram estabelecer um Estado próprio.
Sendo assim, a Ordem do Hospital estabeleceu-se sucessivamente em Jerusalém, depois em
Acre, Chipre, Rodes, Malta e, finalmente, em Roma. Em sua denominação atual, a ordem
incorpora o nome de origem, além dos nomes das localidades onde efetivamente governou e
comandou em seus próprios estados (Rodes e Malta), dessa forma temos a “Ordem Militar e
Hospitalária de São João de Jerusalém, Rodes e Malta”.
Atualmente, os hospitalários em Roma estão constituídos como uma entidade de
direito internacional com funções soberanas, além de serem observadores permanentes das
Nações Unidas. Possuem ainda um programa de ação que inclui, além de assistência médica e
social, auxílio às vítimas de conflitos armados ou de catástrofes naturais, serviços de
emergências e de primeiros socorros, assim como auxílio a refugiados e desabrigados, sem
distinção de raça, religião ou origem, com atuação em mais de 130 países.
Em sua origem, de acordo com Pinto Costa (2000, p. 52-53), a Ordem dos
Hospitalários esteve profundamente ligada com a ideia de peregrinação à Terra Santa,
praticada para salvação da alma e aproximação de Deus. Os peregrinos nessas longas viagens
estavam expostos à péssimas condições de higiene e dieta alimentar, bem como dificuldades
de descanso por falta de alojamentos. Tudo isso associado, levava-os a uma debilidade física e
uma consequente contração de doenças. Havia claramente a necessidade de acolhimento
desses penitentes em um local cristão, para que fossem atendidos em suas necessidades.
Como nos conta Demurger (2002, p. 27-28), essas peregrinações são relatadas desde o
século IV, quando a Rainha Helena, mãe de Constantino, que como ele, converteu-se ao
21

cristianismo, visitou Jerusalém e descobriu o paradeiro da “verdadeira cruz de Cristo”9. Em


seguida, o imperador de Constantinopla mandou construir o maior dos relicários para guardar
o objeto sagrado, a própria basílica do Santo Sepulcro, o que incentivou a peregrinação de
cristãos para a Terra Santa. De acordo com Peña:

Tras el hallazgo de la Santa Cruz, Constantino envió a sus mejores arquitectos a


Jerusalén para ofrecerle el más hermoso de todos los relicarios: la iglesia del Santo
Sepulcro. Con ello miles de peregrinos de todo el mundo afluyeron a la Ciudad
Santa para adorar la cruz (2009, p. 32).

Em meados do Século VI, o Patriarca de Alexandria, João Esmoler (550–619)10, havia


criado e equipado hospitais para acolher os fiéis que se aventuravam pela rota da Terra Santa.
Quando, em 628, os romanos de Constantinopla retomaram Jerusalém, que havia sido
saqueada pelos persas em 614, João Esmoler enviou ajuda aos refugiados e encaminhou
grandes quantidades de recursos para o alívio da cidade. Finalmente, em 638 a cidade de
Jerusalém foi conquistada pelos Muçulmanos. Em sua tese de doutoramento, Marchini relata
que:

Com a conquista árabe, em 638, os peregrinos passaram a ter que aceitar guias
muçulmanos e a peregrinação ficou afetada pelas modificações da conjuntura
política no mundo islâmico. Os cristãos ocidentais começaram a peregrinar em
grupos, pois esta forma de viagem proporcionava maior segurança. A partir do
século IX, Carlos Magno tentou fazer funcionar uma política de proteção dos
lugares sagrados, mas quem protegeu efetivamente os cristãos orientais e manteve o
Santo Sepulcro durante todo o período muçulmano foi o imperador bizantino (2015,
p. 25).

Assim cristãos e mulçumanos, muito antes da Primeira Cruzada, realizaram acordos


entre seus soberanos e líderes, com o propósito de facilitar a peregrinação e construir uma
estrutura com estalagens e hospitais que dessem suporte aos cristãos na Terra Santa. Esse
relacionamento nem sempre era pacífico, pois no ano de 1006, o califa fatímida do Egito, Al
Hakim, mandou destruir igrejas e alojamentos cristãos em Jerusalém, entre eles a Basílica do
Santo Sepulcro, fato que gerou revolta no mundo cristão. Novamente, no ano de 1027, os
bizantinos, por intermédio de seu Imperador Constantino VIII, firmaram um novo acordo
diplomático com o califado fatímida, que permitiu restaurar as igrejas destruídas, fato que
provocou um novo afluxo de peregrinos a Jerusalém, movidos por interesses religiosos e

9
Segundo mito amplamente difundido na cristandade, a Imperatriz Helena de Constantinopla (250–330 d.C.),
teria viajado à Terra Santa e descoberto as três cruzes usadas na crucificação de Jesus e dos dois ladrões, Dimas
e Gesmas. Um milagre teria revelado qual das três era a cruz verdadeira, a Vera Cruz.
10
Aquele que dá esmolas frequentemente; caridoso, esmolador, esmolento.
22

comerciais.
Para desempenhar o papel de alojar e cuidar dos enfermos, dessa nova leva de
peregrinos, um grupo de comerciantes da cidade de Amalfi11, aliados de Bizâncio e
interessados no intercâmbio comercial, construíram, entre 1048 e 1063, um hospital e um
albergue na vizinhança do Santo Sepulcro. Inicialmente a comunidade do hospital foi
colocada sob a proteção da ordem de São Bento e ficou dependente do Mosteiro de Santa
Maria Latina.
Em pouco tempo houve a necessidade de construção de um novo hospital cuja capela
foi dedicada a São João Esmoler que, ao contrário da maioria dos hospitais latinos no Oriente
Médio Islâmico, duraria por muito tempo e tornar-se-ia muito conhecido (DEMURGER,
2002, p. 29). Os monges beneditinos confiaram a administração do novo hospital a um leigo
chamado Gerardo, conhecido na época como “Gerardo Hospitaleiro”.
Acerca da procedência de Gerardo, Figueiredo vai nos dizer que:

Embora a historiografia oficial da Ordem de Malta não tenha registros precisos


acerca da data, é provável que pouco após a tomada da região pelos Seldjúcidas, um
senhor, então com quase sessenta anos de idade, cujas origens são desconhecidas –
certas tradições o ligam à cidade de Amalfi, na Itália, onde seria um padre do
Convento de São Lourenço, enquanto outras tradições apontam que seria um
pequeno nobre da região de Hainaut, nos Países Baixos – teria aportado em
Jerusalém para, desafiando a postura contrária dos novos governantes, assumir o
comando do xenodochium12 e continuar prestando auxílio aos, cada vez menos
numerosos, peregrinos. Seu nome era Gérard Thom e, embora se saiba muito pouco
sobre suas atuações, é sabido que dedicou a instituição da qual se tornou curador a
São Lázaro e, apenas posteriormente, a São João Batista, sendo que essa mudança se
deve, possivelmente, a um reconhecimento ao fato de a construção estar situada
sobre as ruínas do antigo mosteiro daquele santo (2013, p. 40).

Segundo Mosconi Ruy (2011, p. 2545-2547), os servidores do Hospital andavam na


órbita dos Cavaleiros do Santo Sepulcro, primeira ordem militar criada em Jerusalém com a
missão específica do proteger os lugares santos. Até o ano de 1114, os cônegos do Sepulcro
eram seculares. Sua relação com os irmãos do Hospital de Gerardo não era de dependência.
Os hospitalários eram leigos, até 1099 seguiram os ofícios religiosos do monacato de Santa
Maria. Durante a década de 1100, solicitaram aos cônegos do Santo Sepulcro permissão para
celebrar ofícios religiosos na sua recém estruturada igreja, que até aqui não se tem certeza se

11
Amalfi fica na região da Campânia na Península Itálica, possui um porto marítimo que se abre para o Golfo de
Salermo. Esta posição geográfica permitia, além do fluente comércio, o transporte por mar de peregrinos, na ida
e na volta de suas jornadas a Terra Santa.
12
No início da Idade Média, um xenodochium ou xenodochion era um albergue ou hospital bizantino,
geralmente para estrangeiros ou peregrinos na Terra Santa, embora o termo pudesse se referir a instituições de
caridade em geral.
23

dedicada a São João Esmoler ou Batista13. No mesmo movimento, os hospitalários foram se


aproximando dos cônegos do Santo Sepulcro, formando uma espécie de coligação de homens
em armas. Em 1099, na iminência da conquista de Jerusalém pelos cruzados, as lideranças
muçulmanas expulsaram Gerardo e seus seguidores das propriedades que administravam.
Após a tomada de Jerusalém pelos cristãos, Gerardo retorna e reinicia seu trabalho,
construindo um novo e maior hospital, uma vez que a partir de então o número de peregrinos
só aumentava, ano após ano. Em 15 de fevereiro de 111314, o Papa Pascoal II, sucessor de
Urbano II, edita a Bula Pie postulatio voluntatis15 e reconhece a Ordem do Hospital como
uma instituição independente e diretamente protegida pelo Papa. Cunha (2009, p. 9) esclarece
que o pedido de reconhecimento teria partido dos próprios hospitalários, tendo os privilégios
papais que se lhe seguiram assegurado a autonomia da instituição relativamente aos prelados
diocesanos, privilégios que culminaram, como aliás aconteceu com a Ordem do Templo, com
a faculdade de dispor de clero próprio, desligado da jurisdição episcopal. Assim, fazia-se
depender a nova ordem unicamente do papado, apesar da resistência dos bispos a esta política.
Após reconhecida, a Ordem de São João de Jerusalém se torna a legítima protetora e
administradora perpétua dos hospitais e albergues em Jerusalém e na Europa. Essa data é tida
como a fundação formal da Ordem de Malta, então apenas Ordem dos Irmãos Hospitalários
de São João de Jerusalém. A bula papal, ao reconhecer a ordem religiosa, a desvincula dos
beneditinos que, até então, operavam o Hospital de Jerusalém. Acredita-se que os
hospitalários originais fossem monges beneditinos agraciados pelo próprio papa com criação
de uma ordem própria, vinculada diretamente ao Sumo Pontífice (FIGUEIREDO, 2013, p.
40).
A partir de então, uma vez que agora a instituição estava diretamente ligada à Igreja
Latina, houve uma mudança de padroeiro, saindo São João de Esmoler, ligado à Igreja
Ortodoxa, e entrando um patrono mais significativo: São João Batista. Ao mesmo tempo, a
regra da irmandade deixa de ser a de São Bento e passava a ser (pelos menos na prática)
inspirada na de Santo Agostinho. A partir deste momento, independentes dos beneditinos, os

13
Sobre o santo padroeiro do hospital há muita discordância entre os pesquisadores. Alguns historiadores
acreditam que o hospital já fora fundado sob a proteção de São João Batista, enquanto outros defendem que
primeiramente a proteção do hospital era dada por São João Esmoler.
14
Essa data é tida como a fundação formal da Ordem de Malta, então apenas Ordem dos Irmãos
Hospitalários de São João de Jerusalém.
15
De acordo com Pinto Costa, “através desta bula, o Papa conferiu à Ordem do Hospital isenção em relação ao
poder episcopal, garantiu a sucessão do responsável pela comunidade, através de um processo eleitoral interno,
em que participariam os irmãos professos, e imprimiu força econômica aos institutos, confirmando todas as
doações que tivesse recebido até a data e isentando-a do pagamento do dízimo sobre as suas terras” (2000, p.
52).
24

irmãos passaram a ser oficialmente conhecidos como “Ordem do Hospital de São João de
Jerusalém”.

3.2 A Militarização da Ordem dos Hospitalários

Podemos inferir que a Ordem do Hospital de São João ao abdicar da regra de São
Bento e adotar a Regra de Santo Agostinho, criou uma pré-condição para sua militarização.
Consoante, Pinto Costa (2000, p. 53): “Este Doutor da Igreja associou a ideia de justiça à
guerra. Isto é, guerra justa implica a luta pelo nome de Cristo e é um ideal que deve ser
seguido por qualquer cristão. Desta forma, fica legitimada a participação de religiosos nas
atividades bélicas”. Sendo assim, temos que numa sociedade onde a Cruzada tem tanta
relevância, o pensamento teológico de Agostinho se coaduna melhor com a prática militar que
viria a ser adotada pela Ordem do Hospital.
Marchini (2015, p. 34) informa que, além das funções referentes aos cuidados
assistenciais, a Ordem do Hospital também irá exercer atividades militares, como forma de
atender ao chamado da Igreja pelas cruzadas, que apontaram uma época repleta de disputas de
territórios sagrados. Observa-se, a partir do ano de 1120, quando da sucessão de Gerardo por
Raimundo de Puy, que a Ordem de São João de Jerusalém, que foi criada com a finalidade
única de praticar a caridade para com os necessitados, passa a assumir funções de guarda e
proteção.
Mas é a partir do Concilio de Troyes (1128), quando Bernardo aprova sua regra
monástica para os cavaleiros Templários, que vemos se consolidar na ordem dos Hospitalários
os mesmos ideais bélicos concedidos aos “pobres cavaleiros de Cristo”16. Ocorre que não há
evidências do momento exato a partir do qual os Cavaleiros Hospitalários tornam-se
guerreiros. Marchini (2015, p. 34) irá registrar um fato que aponta para uma ação militar, ao
menos de proteção dos Hospitalários: corria o ano 1140, quando Papa Inocêncio II enviou
uma carta a todos os prelados17 da Cristandade, solicitando contribuições em benefício dos
hospitalários. Na carta, era mencionado que a Ordem precisava de dinheiro para pagar
serventes armados que garantissem a proteção dos peregrinos.
Vemos no relato Mosconi Ruy (2011, p. 2546), evidências de que os ricos cristãos que
contribuíram para as missões na Terra Santa, estariam mais propensos a apoiar o

16
Os “Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão” – Os Templários.
17
Título de honra atribuído a certos eclesiásticos que ocupam cargos altos dentro da Igreja Católica (bispos,
arcebispos, chefes de ordens religiosas).
25

envolvimento militar ao invés dos cuidados assistenciais a doentes e feridos. Assim, a


militarização da Ordem pode ter sido, ao menos em parte, uma resposta direta a esta
preferência. Parece ter sido essa contingência que levou Raimundo de Le Puy a pleitear
mudanças na regra do Hospital, assemelhando-as aos ditames da constituição dos Templários.
Com efeito, segundo Marchini (2015, p. 34-35), os hospitalários passaram a receber
diversos castelos e fortalezas como doações, fruto provável desse processo de militarização,
sobretudo no Oriente latino. Em 1136, o Rei Fulco de Jerusalém doou ao Hospital o castelo
palestino de Beit-Jibrin, que ficava próximo à fronteira do reino. Em 1144, o conde Raimundo
II de Trípoli entregou para a Ordem de São João uma série de fortalezas, incluindo o Castelo
de Crac des Chevaliers, na Síria, todos situados em áreas de fronteira. Em 1153, os cônegos
do Hospital participaram do cerco de Ascalon, que resultou na conquista da fortaleza fatímida
pelas tropas do Reino Latino de Jerusalém.
Por outro lado, Demurger (2002, p. 35), argumenta que, por si só, o fato dos
Hospitalários terem, desde muito cedo, recebido a incumbência de guardar castelos, pode ser
um argumento forte para supor uma data para o início de sua militarização, porém não
podemos julgá-lo conclusivo, uma vez que a ordem poderia pedir ajuda a homens de armas
isolados para realizar essas missões, ou seja: a posse pura e simples de castelos, segundo
Demurger, não certificaria a militarização da ordem. O fato é que os textos oficiais só irão
comprovar a existência efetiva de militarização na ordem nos anos de 1168 e 1178, quando o
Papa Alexandre II solicitou aos hospitalários que atentassem para sua missão principal –
cuidar de enfermos – ordenando-lhes que não participassem de ações militares que não
fossem convocadas pelo Rei de Jerusalém, provavelmente reagindo aos episódios nos quais o
mestre Gilberto de Assailly levou os hospitalários a lutar contra muçulmanos no Egito entre
os anos de 1164 e 1169. O próprio estatuto da ordem só vai fazer menção a cavaleiros e
sargentos da ordem sobre a comando de Rogério des Moulis, em 1182.
Em Pinto Costa, vamos encontrar:

Na verdade, a primeira vez que os textos referem os frates armorum, ou seja, freires
de armas, foi em 1182. Esta transição foi lenta e gradual e chamou a atenção do
Papa Alexandre III, que nos anos 70 do século XII, insistia junto ao Grão-Mestre
que a primeira obrigação dos freires era o cuidado dos pobres e que o empenho nas
armas só seria aceitável quando a relíquia da Santa Cruz acompanhasse as hostes
cristãs (2009, p. 21).

Já com relação a suas estruturas militares, essas só serão citadas nos estatutos do
mestre Margat de 1203. Porém, conta Demurger (2002, p. 36), não há dúvida de que, pelo
26

menos a partir de 1164, o Hospital tenha se tornado uma ordem militar. De outra parte, quanto
a saber desde quando a ordem assumiu essa missão bélica, não há condições de se afirmar
categoricamente. A única constatação seria que os hospitalários só assumiram uma função
militar após a instituição da regra dos Templários de 1128.

3.3 A Estrutura Hierárquica/Administrativa e a Iniciação na Ordem

Estudar a estrutura hierárquica da Ordem do Hospital, consoante Pinto Costa (2.000, p.


56), será de grande importância para compreender a sua própria natureza interna, saber como
se dividiam e se organizavam, constituindo um grupo coeso, que com suas características
particulares, se distinguiram na Idade Média e se perpetraram pelos séculos até os dias de
hoje.
Peña nos conta acerca dessa organização:

El Hospital y el Temple se instituyeron como entes internacionales governados


desde un cuartel general. Ambas órdenes fueron las primeras, en un movimento de
dirección unificada - a diferencia de benedictinos y cistercienses- que continuarían
franciscanos, dominicos y jesuitas. El carácter humanitario de los hospitalarios hizo
que en los repartimientos de las posesiones en Ultramar, las del Hospital fuesen
superiores a las del Temple (2009, p. 93).

Assim ficamos sabendo que, tal como os templários, os hospitalários estabeleceram


entidades em várias regiões governadas de uma sede central, em um movimento de liderança
unificada, até porque o Hospital desenvolvia funções assistenciais e militares, o que exigia
uma estrutura econômica e administrativa robusta para dar suporte a tão abrangente
empreendimento. Pelos inúmeros castelos e fortalezas que dominavam, a Ordem de São João
tinha um peso político e se consolidou como um poder na região da Palestina.
Com o crescimento de doações em todas as partes do mundo, a Ordem teve que buscar
soluções para administrar todos esses bens. Relato de Peña (2009, p. 95) informa que será
adotada uma estrutura de governança em forma de pirâmide que irá evoluir ao longo da Idade
Média e será consolidada durante a Idade Moderna, com o objetivo de abranger todos as
regiões onde a ordem tinha interesses patrimoniais ou assistenciais. No vértice superior desta
estrutura estará o grão-mestre. Para concorrer ao cargo esse senhor deverá ser um nobre que
fará um juramento para manter e obedecer aos costumes do Hospital, bem como aos Estatutos
da Ordem. Ele nomeará os priores e oficiais da Ordem no Oeste e no Oriente.
A eleição dos grãos-mestres seguia os estatutos homologados pelo Rei Fernando
27

Afonso de Portugal, filho natural do primeiro rei de Portugal Dom Afonso Henriques, uma
vez que, entre o período compreendido entre 1122 e 1124, já existem relatos da presença dos
hospitalários na Península Ibérica e sua atuação na Guerra Santa que ali se desenrolava, pelo
menos na função assistencial. Este assunto será melhor explorado mais adiante.
Fernando Afonso foi o nono Grão-Mestre da Ordem de São João, eleito em 1194. Foi
durante sua gestão que a Ordem de São João ganhou um estatuto geral, que definiu a eleição
do grão-mestre a partir da formação, via eleição, dos membros do chamado Conselho dos
Dezesseis, formado por representantes do Oriente e do Ocidente, que em conjunto definiam o
nome do novo líder. Juntamente com o Grão-Mestre da Ordem, havia o Capítulo Geral18
(espécie de órgão colegiado) que detinha o poder legislativo e judicial. Esse colegiado fazia
reuniões periódicas, ocorrendo a cada cinco anos, mas no passado, dadas as distâncias e
dificuldades de comunicação, eram raras, só ocorrendo em momentos de grande calamidade.
O Capítulo Geral, detinha poderes para auxiliar o grão-mestre na condução dos
assuntos da ordem. Figueiredo (2013, p. 61), explica que, nesse momento, já está consolidada
uma nova forma de organização, não mais baseada unicamente na hierarquia interna, mas
também na origem dos membros: cada uma das línguas falada pelos membros da ordem
funcionava, na prática, como uma ordem com certa independência, tendo inclusive o seu
prior19. A união das oito Línguas – alemão, aragonês, auvernês20, castelhano21, francês, inglês,
italiano e provençal – representadas por seus respectivos priores – formava o conselho, que
seria responsável por eleger o grão-mestre. Este, por sua vez, seria o elo que manteria todos os
membros unidos.
O estatuto de Afonso de Portugal, segundo Figueiredo (2013, p. 40), estabeleceu
quatro categorias de membros da Ordem do Hospital: freires cavaleiros, serventes de armas,
conventuais e irmãos de ofício. As três primeiras categorias de membros constituíam-se no
núcleo da ordem, sendo que os irmãos de ofício tinham atividades subalternas. A distinção
entre elas era que apenas as três primeiras poderiam fazer parte ativa do órgão colegiado.
Existiam rituais e exigênicas para ser membro da ordem; segundo as diretrizes do Grão-
Mestre Hugo Revel (1258-1277), só podiam participar da ordem os filhos legítimos de
famílias nobres, com a exceção dos filhos de condes ou senhores de grandes títulos.

18
O Hospital organizou, ainda em 1291, o Capítulo Geral de Chipre. Capítulos Gerais são reuniões onde todos
os membros da Ordem são representados.
19
As Línguas eram divididas em Grandes Prioratos, administrados por um grande prior, que por sua vez era
dividida em Ecomiendas.
20
Também dito língua de Auvergne, região da França.
21
Em 1461, o Grão-Mestre Pere Ramón Zacosta, transformaria a língua castelhana em língua castelhana
portuguesa.
28

Ao iniciado era imposto o dever de obediência dentro da fé, não podendo seguir a sua
livre vontade, para viver ao arbítrio de seu superior. Assim, haveria a garantia de disciplina
dentro da comunidade, afastando-se a irreverência por intermédio da cega obediências ao
comando do grão-mestre. Por ocasião da cerimônia de iniciação, segundo Pinto Costa:
“relembrava-se o significado de salvação inerente à própria cruz, e o professo beijava-a,
recebendo a capa e a cruz sobre o lado esquerdo do peito. Depois era-lhe apertado o manto ao
pescoço, como uma representação do jugo do Senhor e repouso da alma” (2000, p. 56).
O hábito dos hospitalários consistia numa veste ou capa preta comprida de mangas
largas tendo do lado esquerdo a cruz branca de oito pontas. O cordão que fazia parte da capa
era feito em seda preta e branca onde seriam bordados os mistérios da paixão de cristo. Essa
roupa de características simples atendia ao voto de pobreza – sine proprio vivere22 – seguido
por todos os que professassem à vida religiosa da ordem. Essa roupa foi utilizada até o século
XII, servindo para utilização tanto os serviços assistenciais quanto em combate.
Pinto Costa (2000, p. 62), vai ressaltar que a presença feminina na Ordem de São João
é observada desde sua constituição até os dias de hoje. A origem das hospitalárias está ligada
ao hospício fundado em 1104 para atender mulheres devotas da fé cristã. O Grão-Mestre
Hugo de Revel (1258-1277), concedeu poder aos priores para receberem nos mosteiros da
ordem, mulheres de honesta vida, fruto de legítimo matrimônio de pais nobres.
Com relação à estrutura administrativa, os membros da Ordem do Hospital viviam em
conventos, de acordo com Marchini (2015, p. 33), os conventos europeus eram agrupados por
comendas (unidades de administração e exploração econômica) e administrados por
comendadores (ou preceptores). As comendas eram agrupadas em províncias chamadas
priorados, que eram administradas por bailios capitulares, que eram os comendadores ou
castelãos no Leste Europeu, geralmente nomeados pelo “Capítulo Geral da Ordem”. As
comendas compunham os priorados, que compunham oito Línguas (ou Nações). As Línguas
eram subdivididas em unidades territoriais e administrativas menores, os priorados, que eram
subdivididos em bailios e comendas.
De forma sintética, Paula Pinto Costa esclarece como funcionavam as Comendas:

De uma forma pragmática podemos dizer que uma comenda é um determinado


conjunto de bens, gerido por um freire professo, que exerce o cargo de comendador,
e cujo funcionamento conta com muitas outras pessoas, tanto pertencentes à
hierarquia da instituição, como com uma numerosa massa de indivíduos,
relacionados com a exploração indireta da terra, de cuja administração resulta um
rendimento. Esta definição geral aplica-se a todas as Ordens Militares presentes no

22
Sine proprio vivere = Sem bens próprios.
29

reino. Em relação à Ordem do Hospital, existem quatro tipos de comendas, de


acordo com os comendadores e os motivos que presidiram à sua colocação à frente
de cada uma delas. Assim, temos as chamadas comendas de Cabimento
(administradas por um freire professo - cavaleiro, capelão conventual ou servente de
armas - por um período de cinco anos, podendo ser renovável), de Melhoramento
(entregue a um comendador apto, também por um período de cinco anos), de Graça
(trata-se de uma comenda entregue pelo Grão Mestre a um cavaleiro distinto,
igualmente por cinco anos) e, por fim, as Magistrais (em que o Grão Mestre reserva
para si os frutos do rendimento, entregando a sua administração a quem entendesse).
Esta estrutura de comendas já conserva em si vários elementos que interessam à
atribuição de cada uma delas, uma vez que conta com critérios previamente
estabelecidos, embora não seja fácil apurar o grau de fidelidade com que estas
obrigações eram cumpridas (2000, p. 103).

Havia ainda um Convento Central da Ordem, cujos oficiais eram chamados de bailios
conventuais. Esses oficiais eram oito: o grão-comendador, o marechal, o grão-hospitalário, o
almirante, o drapier ou conservador, o grão-bailio, o grão-chanceler e o turcopolier ou general
da cavalaria. “Em termos de governo, contava com a figura do Grão-Mestre e de vários
órgãos colegiais, dos quais se destacava o Capítulo Geral, sendo respeitada uma estrutura
hierárquica bem definida” (Ibid., 2000, p. 49). No âmbito dos priorados, haviam Capítulos
Priorais ou Provinciais, dos quais faziam parte o prior, os comendadores e os bailios.

3.4 Do Hospital de Jerusalém à Soberania da Ordem de Malta sobre as Ilhas de Rodes


e de Malta – Estados Nacionais

Parafraseando Marchini (2015, p. 30), após o cerco e a da queda de Jerusalém, em


118723, a Ordem do Hospital mudou sua sede para São João de Acre, lá permanecendo até
1291. Neste ano, o sultanato do Egito promoveu um cerco à cidade que findou com queda de
do Acre. Esse episódio marca o fim do Reino Latino Cristão no Oriente Médio. A Ordem do
Hospital teve então que se retirar e procurar refúgio na Ilha de Chipre, onde foram acolhidos
por Henri II de Luisignon, ex-rei de Jerusalém e monarca do Chipre desde 1285. O
relacionamento, que a priori foi cordial, acabou em tensões entre os dois poderes. Figueiredo
vai nos informar que:

[...] embora os Hospitalários desfrutassem de grande prestígio, é pouco provável que


o Rei de Chipre lhes concedesse o domínio sobre uma cidade, já que tanto a ilha em
si era pequena demais para dispor de territórios, quanto a presença das ordens de
cavalaria converter-se-ia num grande transtorno para os cipriotas. O grande afluxo
de cavaleiros, sacerdotes, auxiliares e mesmo civis sobreviventes da tomada de Acre

23
O cerco de Jerusalém foi uma decisiva batalha travada pelo controle da cidade Santa, entre 20 de setembro a 2
de outubro de 1187, quando os homens de Balião de Ibelin, nobre cruzado, rendem a cidade a Saladino, um
poderoso sultão árabe.
30

desde cedo comprometera os escassos recursos da ilha e a situação só se agravava


pelo fato de as ordens de cavalaria serem isentas do pagamento de impostos (2013,
p. 59).

Segundo Figueiredo (2013, p. 70), quando o Hospital iniciou seu processo de


estruturação administrativa, com a formação do Capítulo Geral do Chipre ainda em 1291,
estabeleceu novas prioridades, a mais importante delas seria a decisão dos hospitalários que
seu futuro militar estaria no mar, onde iriam manter um constante enfrentamento contra os
muçulmanos, bem como nos litorais próximos à Terra Santa, buscando identificar uma
oportunidade para retomá-la.

3.4.1 O Domínio sobre Rodes

A fim de viabilizar seus objetivos militares, a ordem passou a investir recursos na


construção e compra de navios, tornando-se rapidamente uma grande potência naval no
Mediterrâneo Oriental. Na prática, a Ordem do Hospital se esforçava para adquirir domínios
temporais próprios, traçando como objetivo a fundação de um Estado Monástico. Os
hospitalários voltaram sua atenção para a Ilha de Rodes, uma possessão bizantina que estava
impregnada de corsários otomanos, que dali faziam base para suas incursões.
Em 1309, a Ordem de São João conquista a Ilha de Rodes e a transforma em uma base
de suas atividades de defesa do avanço islâmico no Mediterrâneo. Consoante nos narra Peña
(2009, p. 109), com essa conquista, a Ordem do Hospital alcançou a soberania territorial e
fortaleceu sua posição como entidade soberana universalmente reconhecida pelo papado e os
poderes do Oriente e do Ocidente, transformando o grão-mestre em Príncipe de Rodes. Com a
independência de qualquer outro poder e sob a concordância do papa, que legitimou o seu
direito de manter as forças armadas e enfrentar os infiéis, a agora conhecida como Ordem de
Rodes, formou a base de sua soberania na ilha por quase dois séculos. A função assistencial
da Ordem Hospitalária ficou prejudicada durante esse período, pois já não se atendia mais aos
penitentes do Oriente Médio, além disso, a falta de recursos24 fez com que algumas cidades
deixassem de garantir a administração da maioria dos hospitais. Entretanto, a Ordem do
Hospital continuou praticando essa função enquanto sediada em Rodes.
Peña (2009, p. 125) vai observar que o Principado Hospitalário de Rodes
transformou-se por mais de duzentos anos na defesa mais oriental do Cristianismo e

24
Essa situação começa a se reverter pela bula Ad providam (2 de maio de 1312), quando o Papa Clemente V
autoriza a transferência dos bens da Ordem do Templo, que havia sido extinta, para a Ordem de São João de
Jerusalém.
31

constituiu uma base militar de grande importância estratégica para a Europa. Mas ocoreu que,
por outro lado, o Islã progrediu intensamente, o Império mulçulmano turco (otomanos), que
surgiu na Ásia Menor, se expandiu para os Balcãs e derrotou os exércitos cristãos orientais em
Kosovo, em 1389, e sete anos depois aniquilaram as forças ocidentais em Nikopolis
(Bulgária) para finalmente, em 1453, conquistar Constantinopla e destruir o Império
Bizantino.
A queda de Constantinopla foi percebida no Ocidente como uma enorme derrota para
todo o Cristianismo, Figueiredo (2013, p. 73-74) vai afirmar que, a partir de então, os
otomanos estariam sem inimigos em sua retaguarda e dessa forma, aptos para avançar sobre o
restante da Europa. Os muçulmanos haviam conseguido bater à porta de seus inimigos
cristãos, pois o domínio do estreito do Bósforo significava o controle das rotas entre o Mar
Negro e o Mediterrâneo.
Figueiredo segue informando que derrotar os hospitalários em Rodes passou a ser o
grande propósito tanto de otomanos quanto dos mamelucos do Sultanato do Cairo25, que há
tempos travavam disputas marítimas com a Ordem de Rodes. Os mamelucos comercializavam
com as repúblicas italianas, mas eram constantemente atacados por navios hospitalários,
devido ao fato de que para a ordem militar cristã, o ataque e sequestro de mercadorias de
navios muçulmanos fazia parte da luta contra os infiéis; além de servir como uma importante
fonte de renda. Tanto era assim que otomanos e mamelucos chamavam Rodes de “Lar dos
Demônios”, por conta de tais práticas.
Nos anos seguintes, a Ordem do Hospital sofreu forte pressão exercida pelos
muçulmanos, os quais decidiram atacar a Ilha de Rodes. O Sultanato Mameluco do Egito
atacou em 1440 e em 1444 e foram repelidos. Os turcos otomanos vieram em 1480 e, depois
de mais de um mês de cerco foram rechaçados pelos hospitalários. Essa vitória fez a Ordem
do Hospital tornar-se bastante prestigiada entre os cristãos e elevou o status dos cavaleiros
dessa milícia; ou seja, manter a presença hospitalária tornou-se um fim em si mesmo, pelo
fato de terem resistido ao cerco turco.
O início do século XVI é pródigo em acontecimentos marcantes e podemos destacar
pelo menos três: 1) Portugal e Espanha se lançam nas Grandes Navegações, motivados pela
vitória contra os mouros na Península Ibérica e instigados pela dificuldade provocada pelo
domínio da rota comercial do Oriente pelos muçulmanos; 2) Martin Lutero publica as suas 95

25
O Sultanato Mameluco do Cairo foi um reino medieval que abrangia o Egito, o Levante e o Hejaz. O início do
reinado se deu com a dissolução da Dinastia Aiúba (1342), findando com sua conquista pelas tropas otomanas
em 1517.
32

teses e se torna um figura central da Reforma Protestante, sendo combatido pelo Imperador do
Sacro Império Romano Germânico e excomungado pelo Papa Leão X; e 3) a vitória dos
otomanos, liderados pelo Sultão Solimão, o Magnífico (1494-1566), sobre o Reino
Mameluco do Egito, em 1517, transformando o Império Otomano na maior unidade territorial
do mundo.
Sob essa conjuntura, nos narra Peña (2009, p. 82) que, em 1527, o Império Otomano
atacou a Ilha de Rodes com um exército de duzentos mil homens e setecentos navios. Os
hospitalários fizeram a defesa da ilha sozinhos, pois não receberam reforços de nenhum dos
Estados Cristãos da Europa, às voltas com seus próprios problemas. Assim, após uma luta
épica de mais de seis meses contra o poderoso exército muçulmano, os cônegos da ordem
cederam ao poder militar do inimigo. Ao final, já praticamente sem condições de continuar
lutando, o Grão-Mestre Frey Filippo de Villiers L'Isle-Adam pediu uma audiência com o
sultão otomano e propôs a capitulação sob a condição de salvo-conduto a todos os cavaleiros.
Assim, o Sultão Solimão permitiu que a ordem de São João deixasse a Ilha de Rodes levando
seus tesouros, relíquias, arquivos e súditos26.

3.4.2 O Domínio sobre Malta

A Ordem de São João havia perdido a sua Sede-Estado, a qual governou por mais de
duzentos anos e, de acordo com Figueiredo (2013, p. 82), estava sendo vista pelos cristãos
como uma entidade remanescente de uma história cruzada que havia se frustrado quando do
fim do Reino de Jerusalém no Oriente Médio. Embora ainda mantivesse um grande poder
econômico, graças às suas possessões na Europa, seu prestígio político fora afetado pela
conjuntura e havia dificuldades para encontrar um novo local para sediar a ordem.
Inicialmente, Carlo V, Imperador do Sacro Romano-Germânico, concedeu aos
hospitalários a cidade de Trípoli, na atual Líbia, para que lá fizessem seu novo Estado
Monástico. Ocorreu que a cidade, embora às margens do Mediterrâneo, era localizada em
uma área de difícil defesa militar e não parecia capaz de sustentar atividades econômicas que
dessem suporte a uma estrutura como a dos Cavaleiros de São João. Instalados em Trípoli,
onde construíram o fortificado Castelo Vermelho, os hospitalários sabiam que tal local não
poderia substituir Rodes como sua casa. Assim, pleitearam junto às mais importantes figuras
da Europa ajuda para poderem seguir em sua missão de resistir à expansão marítima

26
O fato de o exército otomano não ter sido capaz de penetrar a defesa de Rodes é celebrado até hoje pela Ordem
de Malta como uma vitória diplomática e um ato de heroísmo militar.
33

muçulmana no Mediterrâneo Oriental.


Ocorreu que o avanço otomano no Leste Europeu novamente preocupava a
cristandade, fato que motivou o Imperador Carlos V a intervir a favor da Ordem de São João,
é o que nos relata Peña:

Será todo lo anteriormente expuesto lo que motive a Carlos V - patrón natural de


una Orden con sus mismos intereses, esto es frenar la expansión turca- para
facilitar una nueva base logística a la Religión de San Juan. Pero, geográficamente,
sólo había un territorio que los caballeros de San Juan podían seriamente
contemplar como su nueva base: Malta, una antigua posesión de la aragonesa
corona de Sicilia. Por ello, en 1523, Carlos V ofrece a la Orden de San Juan, el
archipiélago de Malta y la plaza fuerte de Trípoli (2009, p. 147).

Assim ficamos sabendo que Carlos V, interessado em deter a expansão turca, irá
ceder, em 1523, uma nova base para as atividades dos Cavaleiros de São João, o Arquipélago
de Malta, uma antiga possessão da coroa aragonesa da Sicília. Esse era realmente um local
estratégico devido à sua posição privilegiada entre a costa sul da Itália e o norte da África,
estando ainda praticamente no centro do Mar Mediterrâneo. A partir da doação da ilha, os
hospitalários ficaram conhecidos como a Ordem de Malta. Segundo Jardin e Guyyarde (apud
FIGUEIREDO, 2009, p. 91), à época da chegada da ordem, a população de Malta estava em
torno de trinta mil habitantes e os recursos naturais da ilha – em especial a madeira,
indispensável à construção de navios – eram escassos, o que fez com que os hospitalários se
tornassem dependentes de suas possessões europeias para poderem abastecer a ilha de víveres,
equipamentos e matéria prima.
A doação de Malta não acarretou na obrigação militar de vassalagem dos hospitalários
em relação ao Imperador Carlos V, muito embora, a título simbólico, passaria a existir a
obrigação anual formal de pagamento de um falcão treinado para a cetraria 27 do rei de
Espanha, suserano da Sicília (o falcão maltês). O que se observa na prática é que se
desenvolveu uma forte aliança entre o Estado Monástico e o Sacro Império Romano-
Germânico. No arquipélago de Malta, a ordem novamente consolida sua missão de servir de
bastião avançado da cristandade frente ao poder muçulmano, como já havia feito em Rodes,
reestabelecendo sua organização legislativa e judicial, com a qual foi institucionalizada como
entidade autônoma do controle da comunidade internacional. A partir de então, os
hospitalários ficaram conhecidos como a Ordem de Malta.
A Ordem de Malta atuará para conter o avanço dos turcos otomanos no Mediterrâneo
Ocidental e nos Balcãs. Realizará campanhas em terra e no mar, com sua frota própria de
27
A falcoaria ou cetraria é a arte de criar, treinar e cuidar de falcões e outras aves de rapina para a caça.
34

navios de combate. Vários combates serão lembrados: a formação da Santa Liga de 1538,
para salvar a cidade de Veneza das mãos de otomanos; o cerco a Argel de 1541, onde consta
que os hospitalários salvaram o Rei Carlos V de cair prisioneiro dos turcos; A defesa de
Malta, em 1551, do ataque de uma grande força muçulmana que tentou invadir a ilha; a perda
da cidade de Trípoli, em 1551, onde cercado por alguns milhares de turcos, o comandante
hospitalário, Gaspard de Vallier, negociou a entrega da cidade; e a resistência ao cerco de
Malta de 1565, cuja vitória de Malta seria vista como uma espécie de “Nova Cruzada” no
imaginário europeu (PEÑA, 2009, p. 162).
Mas a maior de todas as batalhas marítimas se daria na cidade grega de Lepanto, em
1571. A origem desse conflito se daria como uma resposta cristã à invasão otomana na Ilha
de Chipre, que àquela altura se constituía em uma possessão veneziana. Segundo nos conta
Figueiredo:

Cinco anos após a derrota em Malta, os otomanos enviaram uma grande armada a
Chipre e, embora sofressem uma severa resistência das guarnições locais,
capturaram a ilha. Esse evento foi o gatilho para a criação da Liga Santa, entre
Estados Pontifícios, Veneza, Espanha, Nápoles, Sicília, Gênova, Toscana, Savoia,
Parma, Urbino e a Ordem de Malta. O propósito dessa grande aliança católica era
impedir o domínio do Mediterrâneo Oriental pelo Império Otomano, pois a região
era percebida como um flanco da Cristandade (2013, p. 98-99).

Como resultado da batalha naval, a marinha da Liga Santa, reforçada por inúmeros
navios da Ordem de Malta, derrotaria as forças otomanas, destruindo toda a sua frota e
matando todos os melhores navegantes turcos. Assim, a Batalha de Lepanto foi tão decisiva
que marcaria o fim das ofensivas navais do Império Otomano no Mediterrâneo, ao ponto de
ser considerada por Figueiredo (2009, p. 99) como o fim do antagonismo militar entre cristãos
e muçulmanos, que se iniciara com as Cruzadas.
As galeras maltesas continuaram perseguindo e capturando os navios turcos na costa
adriática. Os produtos mais procurados pelos hospitalários eram: trigo, gado, azeite, café,
tapetes, metais preciosos e finalmente, escravos. Porém já não ocorriam as grandes batalhas,
uma vez que os otomanos tinham novos inimigos surgidos com a ascensão da Dinastia
Safávida, na Pérsia, que se tornara uma séria ameaça xiita ao Império Otomano, obrigando-os
a voltar sua atenção ao domínio do Mediterrâneo Oriental. O último grande empreendimento
militar da Ordem de Malta ocorreu no início do século XVII, contra a cidade de Bona, na
atual Argélia, que foi capturada aos piratas muçulmanos berberes. Em uma síntese, acerca do
Estado Monástico de Malta, Figueiredo vai afirmar:
35

Sem um Império Otomano agressivo contra o qual lutar, seus cavaleiros se deixaram
corromper pelas imunidades de que dispunham e passaram a aproveitar seu know
how marítimo para servirem de corsários a seu próprio Estado ou de mercenários a
Estados estrangeiros – dos quais muitas vezes eram naturais. A falta de uma
identidade nacional em sentido étnico, bem como a dissociação entre a elite dos
membros da Ordem de Malta e os habitantes do arquipélago também não contribuiu
para a costura de um Estado em sentido cultural (2013, p.112).

De resto, a Ordem de Malta do século XVII teria como principal missão cuidar
constantemente das instalações defensivas do arquipélago, a espera de um novo ataque turco
que jamais voltaria a ocorrer.
36

4 OS CAVALEIROS HOSPITALÁRIOS NA FORMAÇÃO DO REINO DE


PORTUGAL

4.1 Instalação dos Cavaleiros Hospitalários no Condado Portucalense – Assistencial e


Militar

Não se sabe a data precisa da chegada dos hospitalários no Condado Portucalense pois
existem muitas dúvidas acerca da cronologia da sua instalação em Portugal, mormente após
uma parte importante do arquivo da ordem, sediado no Convento da Flor da Rosa, ter sido
destruído pelas tropas espanholas em 1662, durante a chamada Guerra da Restauração que,
pois, fim à União Ibérica e resgatou a total independência de Portugal. Pinto Costa vai criar
um contexto provável para a chegada dos hospitalários à Península Ibérica:

No tempo em que a Ordem do Hospital deu os primeiros passos em Jerusalém,


Portugal ainda não existia como Reino Independente. A nível político a área
geográfica na dependência do Conde D. Henrique – Condado Portucalense –
constituía uma fração do Reino de Leão e por isso, estava sujeita ao imperador das
Espanhas. Do ponto de vista eclesiástico, a instituição do primado de Toledo no Séc.
XI, marcou um momento importante na história deste território peninsular,
seguindo-se uma disputa entre esta diocese e a de Braga (1089-1103). O Papa
Pascoal II resolveu a questão, ao reconhecer Braga como metrópole da Galiza,
admitindo, desta forma, os direitos desta sé sobre toda a Galiza e daquilo que viria a
ser Portugal. Com efeito será neste enquadramento que os primeiros freires
Hospitalários vão atuar (2000, p. 93).

O contexto de atuação dos hospitalários em Portugal, passa também pelo espírito de


cruzadas que tomou conta da Europa no século XI, quando as lutas contra os mouros na
Península Ibérica seriam identificadas como uma “Guerra Santa”. E para certificar essa ideia
contribuíram dois pontífices da Santa Sé: o primeiro foi Alexandre II (1061-1073) que
permitiu que os combatentes da Península Ibérica, tal como na Cruzada à Jerusalém, ficassem
dispensados de penitências e; o segundo foi Pascoal II (1099-1118) que proibiu os cavaleiros
peninsulares de partirem em cruzada em direção ao Oriente Latino, uma vez que havia
mouros a combater no espaço ibérico. Pois foi nesse ambiente que nasceu Portugal, quando
em 1179, O Papa Alexendre III, pela bula Manifestis Probatum, reconheceu o título de “Rex”
ao primeiro monarca lusitano, D. Afonso Henriques.
Os registros do Arquivo Nacional da Torre do Tombo apontam que a ordem havia se
instalado em Portugal entre 1122 e 1128, quando recebeu o antigo Mosteiro de Leça, situado
nos arredores do Porto, como doação de Dona Teresa. Segundo consta, foi ali que a Ordem
dos Hospitalários fixou a sua primeira sede em terras lusitanas. De outra parte, Pinto Costa
37

(2000, p. 93) cita um documento que menciona uma presença mais tardia da Ordem do
Hospital em Portugal (1132), trata-se de uma doação feita por um certo Zalama Godins, a qual
“declara que os cónegos compraram ao vigário do Hospital de Jerusalém, Paio Galindes, por
sete morabitinos e meio de ouro, a décima parte dos bens, que ele tinha dado à Ordem do
Hospital por sua alma”. Porém, nem temos evidências documentais da data exata da doação
do Mosteiro, nem tampouco se a doação de Zalama Godins estivesse sendo feita à ordem no
Condado ou em Jerusalém.
Então temos que, provavelmente, a Ordem do Hospital se instalou no Condado
Portucalense durante o governo de Dona Teresa, mãe de Afonso Henriques, primeiro rei de
Portugal. Também já se deduz que o motivo primordial da instalação da Ordem de São João
foi a prática da assistência, já que até esse momento não há registros de uma atuação militar,
ficando para segundo plano as intenções militares.
Para além do Mosteiro de Leça, Marchini (2015, p. 39) nos aponta uma comprovação
da presença oficial dos hospitalários, trata-se da célebre carta de foral de 114028, que registra a
concessão para administração do Couto de Leça29, feita por D. Afonso Henrique a D. Aires
(prior do Hospital de Portugal e da Galiza), aos freires existentes e aos sucessores destes. Este
privilégio também abrangia a confirmação de todos os bens que possuíssem. Considerando
que Afonso Henriques havia sido aclamado rei de Portugal em 1139, o foral concedido vai ser
o primeiro documento oficial para comprovar a instalação dos Cavaleiros Hospitalários e sua
efetiva atuação em terras lusitanas.
Os cavaleiros da Ordem de São João obtiveram então o Couto de Leça, confirmando a
posse de todas as suas heranças e propriedades, além da isenção de quaisquer tipos de
tributos. Estes privilégios, segundo Marchini (2015, p.40) estão presentes nos vários registros
do Livro dos Herdamentos e Doações do Mosteiro de Leça. No primeiro momento de sua
instalação, os hospitalários se localizavam em sua maioria no norte do reino português e a
razão disso era o importante papel que tiveram de dar abrigo e proteção, a partir de Leça do
Balio, aos peregrinos que se aventuravam no perigoso caminho português de São Tiago de
Compostela.
Com relação às funções militares da Ordem dos Hospitalários em Portugal, Marchini
(2015, p. 39), vai informar que em 1147, não há evidências da atuação militar dos cônegos do
Hospital nas conquistas das cidades de Santarém e Lisboa, realizadas por D. Afonso

28
Uma carta de foral, ou simplesmente foral, era um documento real utilizado em Portugal, que visava
estabelecer um concelho e regular a sua administração, seus deveres e privilégios.
29
O Couto era um lugar, concedido pelo Rei, onde havia imunidade perante os impostos e justiça reais.
38

Henriques. Tal fato nos leva a deduzir que neste momento a ordem ainda não possuía um
programa de ação bélica.

Imagem 1: Mosteiro de Leça de Balio (Fonte: Disponível em wikipedia.org, acesso em dez. 2018).

Entretanto, em 1189, quando D. Sancho I conquistou os castelos de Alvor e Silves, a


participação bélica da Ordem Militar do Hospital já está verificada (PINTO COSTA, 2006, p.
680). Nesta ocasião, parece que a Ordem já tinha uma estrutura militar consolidada, que deve
ter se desenvolvido na segunda metade do século XII. Citando Mário Jorge Barroca (apud.
PINTO COSTA, 2006, p. 680-681), “este aspecto revela que o ramo português dos Cavaleiros
de S. João do Hospital tinha procedido a uma reforma da sua orgânica interna, de forma a
contemplar as duas vertentes de atuação – a assistencial e a militar”.
Os Hospitalários basicamente tiveram quatro objetivos no Reino de Portugal: seus
freires praticavam atividades de assistência e hospitalidade; a par disso, exerciam funções
militares na luta contra muçulmanos; por intermédio de doação de coutos e concessão de
cartas de foral, atuavam no repovoamentos e reorganizações territoriais; e cumpriam seus
deveres com o seu principal, o Grão-Mestre, enviando recursos e/ou reforços para as
demandas do Convento Central no Mediterrâneo.

4.2 A Expansão da Ordem de São João no Reino de Portugal – Castelos e Territórios

Antes de dar continuidade ao presente tópico, cabe relembrar Figueiredo (2013, p. 61),
quando explica que a organização interna da Ordem do Hospital estava baseada na origem dos
39

membros, ou seja: cada uma das línguas falada pelos membros da Ordem funcionava na
prática, como uma ordem com certa independência, tendo inclusive o seu prior. A união das
oito línguas – alemão, aragonês, auvernês castelhano30, francês, inglês, italiano e provençal –
representadas por seus respectivos priores, formaria o “Capítulo Geral”, que seria responsável
por eleger o grão-mestre. Este, por sua vez, seria o elo que manteria todos os membros
unidos.
Isso quer dizer que, no período aqui narrado, os hospitalários de Portugal faziam parte
da Língua Castelhana ou Língua de Espanha, a qual se incluíam os cônegos dos Reinos de
Castela, de Leão e de Aragão. Esse fato, por vezes, fazia com que em os interesses do rei de
Portugal se conflitassem com os do prior Castelhano, que geralmente não era nascido em
terras lusitanas. Essas informações serão importantes para a compreensão cronológica dos
estágios de poder e influência da ordem no Reino de Portugal. Acerca disso, temos o
esclarecimento de Pinto Costa:

[...] O Priorado de Portugal da Ordem de São João fazia parte de uma vasta
estrutura, territorialmente dividida em circunscrições, conhecidas como Nações ou
Línguas. Esta organização dispunha de órgãos de poder, que integravam todos estes
núcleos espaciais, nomeadamente a figura do Grão-Mestre, o Capítulo Geral, o
Convento e os Conselhos. Portugal fazia parte da Língua de Castela e Portugal que,
para além destes dois priorados, contava com o de Leão. Até o Séc. XV, esta
circunscrição era mais ampla e designada por Língua de ‘Espanha’, na qual estavam
englobados os priorados mencionados e os de Aragão (2000, p. 101).

Isto posto, temos que, por participar do processo de conquista territorial e por ajudar
no repovoamento e organização social de diversas áreas, a Ordem do Hospital recebeu
doações e privilégios, fruto dos serviços prestados aos primeiros monarcas portugueses. Além
disso, a Ordem de São João recebeu muitos bens e propriedades oriundas de heranças
deixadas por pessoas de posses, simpatizantes da causa “Cruzada”.
Domingues Silva (2017, p. 8), explica que no Condado Portucalense, a fronteira entre
cristãos e muçulmanos em 1191, era o Rio Tejo. No processo de conquista, o interesse era
avançar para o sul, mas isso não era fácil pois havia dois problemas: o perigo dos mouros
atacarem o território novamente; e povoar e proteger os novos territórios cristãos. Assim, as
autoridades régias, decidiram entregar o território às ordens militares, sendo que essas tinham
a função de povoar e defender, os territórios recém-conquistados. No Alto Alentejo, entre
1191 e 1271, os hospitalários se instalaram em Amieira do Tejo, Castelo de Vide, Marvão e

30
Em 1461, o Grão-Mestre Pere Ramón Zacosta, transformaria a língua castelhana em língua castelhana
portuguesa.
40

Crato.
Pinto, Gisela e Vicente (2010), irão fazer um breve relato sobre as doações de
territórios para os hospitalários, afirmando que, ao estarem ao lado de D. Afonso Henriques
na tomada de Santarém e de Lisboa (1147), a princípio prestando apenas serviços
assistenciais, a Ordem teria sido recompensada com as Igreja de S. João de Alporão e São
Braz, antigas mesquitas de Santarém, estabelecendo ali a Sede da Comenda de Lisboa. Alguns
decênios depois, quando provavelmente já teriam uma estrutura militar efetiva, teriam
recebido, no ano de 1174, em região de fronteiras com as terras dos mouros, as vilas da Sertã
e de Pedrógão. Na mesma zona geográfica, junto à bacia do Zêzere, em cerca de 1194,
obtiveram a posse das Comendas de Oleiros e Álvaro.
Podemos inferir que a doação feita por D. Sancho I (o Povoador) da terra de
Guidintesta (1194), junto à linha do Tejo, atesta que a Ordem do Hospital estava organizada
de forma a desenvolver uma ação efetiva na luta de conquista travada entre cristãos e
muçulmanos em Portugal, tanto assistencial quanto militar, pois a região era considerada uma
fronteira crítica, onde o conflito com os mouros se fazia frequente. Ali os hospitalários
construíram o Castelo de Belver, instalado em um local que permite uma vista panorâmica do
Rio Tejo, linha estratégica na defesa da fronteira muçulmana. O testamento de D. Sancho I,
no ano de 1210, que determinou a guarda de parte de seu tesouro no Castelo de Belver, denota
a capacidade de defesa exercida pela ordem. Naquele momento, o castelo já seria uma das
principais casas da Ordem de São João de Jerusalém, rivalizando com Leça. Em 1224, D.
Sancho II doa aos hospitalários o Castelo de Algoso, doação que se enquadra em uma política
de defesa e povoamento regional. O que podemos observar é que a Ordem de São João
recebeu territórios e comendas à medida que as vitórias bélicas aconteciam e novos territórios
iam sendo tomados dos muçulmanos nas terras de Al-Andaluz31.

31
Al-Andaluz foi o nome dado pelos muçulmanos à Península Ibérica no Séc. VIII, a partir do domínio
do Califado Omíada.
41

Imagem 2: Castelo de Belver (Fonte: Disponível em trekearth.com, acesso em jan. 2019).

Em determinado momento entre os séculos XIII e XIV, o Priorado Português da


Ordem da São de Jerusalém passou a ser chamado de “Priorado do Crato”. De acordo com,
Marchini (2015, p. 42), essa identificação começa a se delinear quando, em 1232, D. Sancho
II doa à Ordem a região do Crato, esperando que os freires povoassem e protegessem o local.
Alguns anos depois, em 1356, a Ordem do Hospital teria transferido sua sede conventual de
Leça para o Crato.

Imagem 3: Mosteiro da Flor da Rosa/Crato (Fonte: Disponível em pinterest.com, acesso em jan. 2019).
42

Até meados do Séc. XIV, os Hospitalários controlavam um vasto território ao sul de


Portugal e estabeleceram uma base militar exclusiva na região de Portalegre – O Priorado do
Crato. A Ordem conseguia manter-se independente da Coroa Portuguesa que parecia
reconhecer o significado e importância do caráter assistencial e bélico da Ordem de São João.
Em seu artigo, Ferrão vai esclarecer:

O reconhecimento do significado e importância do caráter plurinacional e


supranacional da Ordem dos Hospitalários faz com que consigam manter a
independência da coroa pela forma com que se implantam no Condado
Portucalentse e o protagonismo adquirido ao serviço da Coroa e grande
envolvimento no povoamento e fortificação das terras doadas de Guidintesta, que
fazem parte da linha de defesa do Tejo e simultaneamente funcionavam como
corredor ou ponta avançada da reconquista peninsular, consolidando a presença
desta Ordem de tal forma que é formado o Priorado de Ucrate (Crato) ao qual
pertenciam as vilas de Amieira do Tejo, Gáfete, Tolosa, Gavião, Belver, Envendas,
Carvoeiro, Proença-a-Nova, Sertã, Pedrógão Pequeno, Oleiros e Álvaro. Os castelos
de Amieira do Tejo, de Belver, do Crato e o Mosteiro de Flor de Rosa são
testemunhos da presença e poder que marcam a organização territorial e
administrativa desta região do Alto Alentejo (2010, p. 120).

A vitória sobre os mouros32 em Faro (1249), quando o Califado Almóada cai frente as
tropas do Rei Afonso III de Portugal e Algarve, contou com a participação de várias ordens
militares, dentre elas os Hospitalários. A conquista da região de Faro vai marcar a
consolidação territorial e a configuração atual de Portugal, bem como o auge do prestígio da
Ordem do Hospital em terras lusitanas. Costa vai nos relatar:

Desde o Séc. XII, altura em que os freires de S. João se instalaram no território que
viria a ser Portugal, e até ao Séc. XVI, o relacionamento destes freires, com a
monarquia passou por fases diversas, como é natural ao pensarmos num período tão
longo como este que, grosso modo, corresponde a 400 anos. Desde o reinado de
Afonso Henriques até ao de Sancho II verificou-se uma cooperação mútua entre a
monarquia portuguesa e a Ordem do Hospital (2000, p. 353).

Ocorreu que, após a consolidação do território português, com o domínio de todas as


terras antes de posse de mulçumanos, o poder das ordens militares em Portugal foi aos poucos
se tornando incomodo para a realeza, que buscava consolidar o seu poder e via nas posses de
enormes áreas territoriais e nas isenções tarifárias um empecilho para os seus planos.
Demurger (2002, p. 235), conta que após 1250, a ideia de guerra de “Reconquista” irá se

32
Mouros, mauritanos, mauros ou sarracenos: são considerados, originalmente, os povos oriundos do Norte de
África, adeptos do Islã, nomeadamente Marrocos, Argélia, Mauritânia e Saara Ocidental, invasores da região da
Península Ibérica, Sicília, Malta e parte de França, durante a Idade Média.
43

arrefecer. Os poucos enfrentamentos com o Reino Muçulmano de Granada, última das taifas33
remanescentes, não bastavam para alimentar o sonho de “Cruzada”.
Dessa forma, temos que as ordens militares ricas, numerosas e ociosas tornam-se um
fardo para a economia e a política dos Estados Ibéricos. A partir de 1261, segundo Marchini
(2015, p. 43), teve início a exigência de certas atribuições fiscais para as ordens presentes no
reino português, sendo regulado e aplicado um imposto sobre animais de pasto em terrenos
senhoriais de comendas.
Não obstante, foi especificamente no reinado de D. Dinis, que as ordens militares
passaram a receber interferência direta da monarquia. Tanto é assim que, a partir de 1279, D.
Diniz I, que reinou por 64 anos, vai intensificar o processo de fortalecimento do poder régio e,
aproveitando-se da extinção da Ordem do Templo, vai estrategicamente criar a Ordem de
Cristo em Portugal, no ano de 1319, totalmente subordinada à Coroa. A partir de então irá se
adotar uma pauta de atuação política e administrativa centralizada na corte, na intenção de
influenciar e controlar as ordens militares.

4.3 O Confronto de dois poderes: O Monarca Português e a Ordem do Hospital

No início do século XIV, após a extinção da Ordem do Templo, foi criada em Portugal
uma nova ordem religiosa militar, a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo os
ditames da bula pontifícia Ad Ez Ex Quibis Cultus Augeatur do Papa João XXII, de 14 de
março de 1319, que atendeu a pedidos diretos de D. Diniz ao Papa. Por esse documento, o
vasto patrimônio templário em Portugal foi passado para a “Ordem de Cristo”, nome pelo
qual essa ordem ficou conhecida. Assim, os hospitalários portugueses ficaram privados dessa
herança, prevista na bula Ad Providam de 12 de maio de 1312, que efetivamente foi
observada em outras regiões de atuação de Priorados/Línguas, onde os bens templários foram
cedidos à Ordem do Hospital.
Segundo Costa (1996, p. 90-95), D. Diniz alegou ao Papa João XXII (1316-1334) que
a transferência dos bens templários para a Ordem do Hospital acarretaria danos à Coroa
portuguesa, uma vez que a Ordem do Hospital portuguesa era subordinada ao Grão-
Comendador da Língua Castelhana na Hispânia, que residia em Castela e era a autoridade
máxima da ordem na Península, que por sua vez era subordinada ao grão-mestre supremo, que
nesse período residia na Ilha de Rodes. O receio do rei português era que essa situação

33
Taifa no contexto da história ibérica, refere-se a um principado muçulmano independente, um emirato ou
pequeno reino existente no Al-Andaluz (região da Península Ibérica para os muçulmanos).
44

poderia provocar problemas quanto à posse dos bens em terras portuguesas, além de
proporcionar ao rei de Castela algum tipo de pretensão territorial em tempo de guerra.
A Ordem de Cristo foi então estruturada obedecendo a um programa que respeitava,
na íntegra, os interesses da monarquia portuguesa. Seu primeiro grão-mestre foi D. Martim
Gil, que fora responsável pela Ordem de Avis. O monarca D. Dinis I mostrou grande
perspicácia política, aproveitando o momento que a sorte lhe ofereceu, pois, além de criar a
Ordem de Cristo, o soberano atraiu para a sua área de influência as ordens de Calatrava e
Avis, seguindo em sua estratégia de afirmar a identidade nacional portuguesa. Demurger
(2002, p. 196-197), vai mesmo afirmar que as dificuldades do Hospital em recuperar o
patrimônio templário pode ser explicada pelo “nacionalismo” dos Estados, mormente na
Península Ibérica.
O poder dos hospitalários na Península Ibérica era considerável e foi visto como um
potencial perigo por Portugal, pois muitas vezes o posicionamento político dos grão-mestres
se confrontava com as pretensões da monarquia. Isso se explica pelo fato da Ordem de São
João obedecer a um grão-mestre estabelecido, naquele momento, na Sede da Ilha de Rodes e
subordinado diretamente à Sé de Roma, o que a diferenciava de todas as demais ordens
presentes em Portugal desde 1319, ano da extinção dos templários. Dessa forma, em vários
momentos as ações dos hospitalários seriam, como não podiam deixar de ser, contrárias aos
interesses da Coroa Portuguesa. Este fato contribui para acirrar o conflito entre os dois
poderes (FERRÃO, 2010, p. 120).
As diferenças entre a Ordem do Hospital e as demais Ordens instaladas em Portugal
vai ser narrada por Marchini (2015, p. 45):

A Ordem do Hospital diferenciava-se das restantes em dois grandes aspectos. De um


lado, por uma autonomia institucional específica enquanto Ordem de atuação
intercontinental, cujos diferentes ramos, as Línguas, estavam diretamente
dependentes do Convento Central sediado em Malta; consequentemente, sujeitos à
autoridade de um Mestre Geral e às diretrizes assumidas em Capítulos Gerais. Por
outro lado, o fato de ser uma Ordem que além de funções bélicas, exercia funções
caritativas e cujos seus membros cumpriam efetivamente os votos de castidade,
pobreza e obediência (2015, p. 45).

A par disso, é importante destacar uma questão que podemos chamar de paradoxal.
Pinto Costa (2001, p. 175-176), analisa esse ponto e informa que, se por um lado havia um
confronto ideológico, de outro existia proximidade e intimidade entre a Monarquia e a Ordem
do Hospital. É o que se observa na constatação de quem eram as pessoas que pleiteavam os
prestigiosos cargos na Ordem do Hospital, a quais famílias pertenciam, os caminhos que
45

percorreram dentro da instituição e que ambientes frequentavam. A conclusão aponta uma


característica dos líderes hospitalários: eram eles oriundos da alta aristocracia e mantinham
uma forte vinculação com a Coroa. Essa situação faz com que, ao passo das medidas que
toma para controlar as ordens militares, D. Diniz concede privilégios e faz doações aos
hospitalários, que continuam a participar da defesa do reino e a desempenhar um papel
assistencial imprescindível. De outra parte, o caráter sui generis da Ordem e sua vinculação
com a Santa Sé, faz com que o rei não perca de vista o fator diplomático dessa relação.
Nesse ambiente de aparente contrassenso, haverá momentos de cordialidade, nos quais
prevalece a força institucional dos hospitalários, fruto de sua atuação militar e assistencial,
além de sua situação de subordinação ao grão-mestre e à Santa Sé; e momentos de
animosidade, provocados pelo processo de afirmação monárquica. O fator de equilíbrio desse
relacionamento foi o patriarca de Roma que por várias vezes mediou esses conflitos, ora
intercedendo por uma parte e ora por outra, como no caso da criação da Ordem de Cristo, em
que a Sé foi favorável à monarquia e o caso da isenção de pagamento de dízimo para subsidiar
as guerras contra os mouros, em que o papa se colocou ao lado da Ordem de São João. O que
iremos observar é que, uma vez instalado, a partir da consolidação do reino de Portugal e dos
interesses ambíguos dessas duas forças, o relacionamento entre a monarquia e a Ordem do
Hospital irá se manter conflituoso nos séculos subsequentes (PINTO COSTA, 2001, p. 182-
183). Cabendo destacar que um dos momentos mais conflituosos entre os dois poderes, foi o
período em que o Rei D. Diniz cria a Ordem de Cristo e impede os hospitalários de tomar
posse do patrimônio templário em Portugal.
46

5 OS GUARDIÕES DO SANTO LENHO E A BATALHA DO SALADO

5.1 O Santo Lenho e sua mística na atuação dos Cruzados e da Ordem do Hospital

Nossa narrativa até esse ponto se ateve a abordar os fatores conjunturais ligados à
criação e trajetória da Ordem dos Hospitalários, porém nos cabe agora tratar dos aspectos
místicos/intangíveis da Instituição que afinal são os suportes ideológicos para a sua
existência. No discurso pela passagem do 900º aniversário da Ordem e dois dias antes de sua
renúncia, o Papa Bento XVI (2013, p. S/N), assim a caracterizou:

A vossa Ordem distinguiu-se, desde o início, pela sua fidelidade à Igreja e ao


Sucessor de Pedro, bem como pela sua irrenunciável fisionomia espiritual,
caracterizada por um alto ideal religioso. Continuai a caminhar por esta estrada,
testemunhando concretamente a força transformadora da fé. Pela fé, [...] ao longo
dos séculos, os membros da vossa Ordem prodigalizaram-se, primeiro, na
assistência dos doentes em Jerusalém e, depois, no amparo dos peregrinos na Terra
Santa, expostos a graves perigos, escrevendo gloriosas páginas de caridade cristã e
defesa da cristandade [...] sem nunca renunciar aos ideais originários, mormente ao
duma intensa vida espiritual de cada um dos seus membros (Grifo nosso).

O pronunciamento papal exalta os valores de “alto ideal religioso” e de “intensa vida


espiritual” e afirma que a Ordem não renunciou aos seus ideais originários. Parafraseando
Nascimento (2015, p. 255), tais ideais foram forjados no contexto das cruzadas, quando as
Ordens Militares aparecem como a expressão mais evidente da sacralização da guerra, sendo
que o monge guerreiro representou a grande novidade no plano da espiritualidade medieval.
Nesse contexto, Costa (2011, p. 143-178) vai afirmar que a Ordem dos Cavaleiros
Hospitalários, em seu protagonismo na dupla função caritativa/guerreira, vai concentrar em si
a personificação do ideário das cruzadas. Na análise da atuação da Ordem, encontra-se “uma
mentalidade cruzadística de cunho sagrado e idealizada para a cavalaria cristã”, ou seja: uma
sacralidade em suas práticas de assistência aos peregrinos e guerra aos “infiéis”.
Durante a Idade Média a materialização do sagrado esteve ligada ao contato e
adoração das santas relíquias de Cristo e dos santos, promovendo e manifestando o poder
monástico:

Instrumentos úteis na construção da sacralidade dinástica, as santas relíquias de


Cristo e dos primeiros mártires foram objeto de disputa de reis e cidades desde sua
invenção (descoberta) na Palestina. O cristianismo dos primeiros séculos já
promovia seu culto que, no contexto medieval, atingirá o auge. A redistribuição das
relíquias da paixão, levada a extremos, incentivou a devoção do cristão, tanto em sua
dimensão miraculosa e protetora, quanto no sentido de promoção e manifestação do
47

poder monárquico (NASCIMENTO, 2014, p. 56).

De todas as relíquias de adoração cristã, nenhuma carrega maior carga simbólica do


que a Santa Cruz (Santo Lenho), o principal objeto da paixão de Jesus Cristo. Como
contamos anteriormente, atribuiu-se a Helena, mãe do imperador Constantino (272-337) a
descoberta dos lugares da paixão. No ano de 326, a Rainha peregrinou à terra santa e
localizou a Colina de Gólgota34 (local da crucificação); segundo a História Eclesiástica, a
Rainha mandou destruir o antigo templo romano ali construído e na escavação que se seguiu
encontrou três cruzes, ao fim um milagre apontou qual dentre as três era a cruz do martírio de
Cristo. A imperatriz e o seu filho Constantino fizeram construir no local do achado um
templo, a chamada Basílica do Santo Sepulcro, onde guardaram a relíquia.
Muito depois, no ano 614, o Xá Sassânida Cosroes II, da Pérsia, tomou Jerusalém e,
após a vitória, levou a Vera (verdadeira) Cruz para o seu reino. Pelo mito da cristandade, o rei
persa teria colocado a Cruz por baixo dos seus pés no trono, como símbolo de seu desprezo
para com a religião dos cristãos. Após quinze anos de lutas (ano de 628), o imperador
bizantino Heráclio derrotou as tropas persas de Cosroes e, no dia 14 de setembro, fez retornar
a relíquia a Jerusalém. Essa data é registrada nos calendários litúrgicos como da “Exaltação da
Vera Cruz”.
No pressuposto de evitar novos roubos, a relíquia do Santo Lenho foi partida em
pedaços que foram distribuídos pela Cristandade da seguinte forma: um foi levado para
Roma; outro para Constantinopla; um terceiro foi deixado num formoso cofre de prata em
Jerusalém; e, um último pedaço foi dividido em pequenas lascas para serem repartidas por
diversas igrejas de todo o mundo. De acordo com Nascimento (2014, p. 258), essa
distribuição atingiu uma proporção abusiva e, mesmo com a intervenção das autoridades
eclesiásticas, que tentavam registrar e chancelar a relíquia, a circulação desse e de outros
objetos sacros proliferou-se de uma maneira descontrolada durante a Idade Média.
Michaud (1950, p. 28-29), faz uma narrativa mística do momento em que os cruzados,
após invadirem Jerusalém (1099), encontram o que seria um dos pedaços maiores da
Verdadeira Cruz de Cristo:

34
Gólgota (em aramaico), Calvaria (em latim), Calvário (em português): é a colina na qual Jesus foi crucificado
e que na época de Cristo, ficava fora da cidade de Jerusalém. O termo significa “caveira”, referindo-se a uma
colina ou platô que contém uma pilha de crânios ou a um acidente geográfico que se assemelha a um crânio.
48

Mas os cruzados desviaram bem depressa suas vistas dos tesouros prometidos ao seu
valor, para admirar uma conquista muito mais preciosa aos seus olhos: era a
verdadeira cruz, levada por Cosroés e trazida de novo a Jerusalém por
Heráclio. Os cristãos encerrados na cidade tinham-na escondido durante o cerco, da
sanha dos muçulmanos. Sua presença excitou os mais vivos transportes dos
peregrinos. Com esse objeto, diz uma velha crônica, ficaram os cristãos tão
contentes como se tivessem visto o corpo de Jesus pendente da mesma. Foi
depois levada em triunfo pelas ruas de Jerusalém e recolocada na igreja da
Ressurreição (Grifo nosso).

É correto supor que o relicário da Vera Cruz, a partir do seu achamento pelos
cruzados, tenha sido protegido pela Ordem dos Cónegos do Santo Sepulcro, primeira ordem
militar criada em 1103 por Balduíno I, o primeiro rei de Jerusalém. A missão primordial dessa
Ordem era a guarda e proteção dos lugares sagrados de Jerusalém e, dentre eles, o mais
importante era a Igreja do Santo Sepulcro, onde havia sido confinada a Vera Cruz. Essa
relíquia apenas saía do seu local de adoração em ocasiões especiais, geralmente procissões ou
batalhas, sendo carregada pelo Bispo local e acompanhada de perto pelas ordens militares.
Os cruzados do Reino Latino de Jerusalém, certamente atribuíam à presença do Santo
Lenho capacidades místicas, verdadeiros milagres, a interferir no resultado das batalhas. Em
Michaud (1950, p. 378-379), temos a seguinte narrativa, na batalha de Monte Gisard de 1177,
que confrontou tropas cristãs e muçulmanas:

Balduino35 marcha à frente de seu exército, precedido pelo lenho da verdadeira


cruz; ele só tinha consigo trezentos e setenta e cinco cavaleiros, todos, porém,
cheios da graça celeste, que os tornava mais fortes do que de costume. Os
muçulmanos, que no começo resistiam com coragem, não conseguiram, porém,
reunir-se; o anjo exterminador parecia seguir os cristãos, na refrega. A presença da
cruz jamais havia produzido tantos milagres; várias vezes, durante o combate,
parece que viram seus braços erguerem-se até o céu e estenderem-se até o horizonte.
Saladino perdeu todos os seus mamelucos, - de vestes de seda de cor de açafrão -
que combatiam ao seu lado. A derrota dos muçulmanos foi completa (Grifo nosso).

A mesma batalha também é descrita por Monteiro e outros (2015, p. 25):

Em finais de 1177, Saladino passara à ofensiva contra os Estados cruzados e


invadira o reino de Jerusalém pelo sul. Balduíno IV, muito em esforço e com poucos
efetivos, reagira e tentara travar o adversário na região de Ascalon (ligeiramente a
norte de Gaza). Não tendo sucesso, o rei cristão optara por perseguir o líder
muçulmano e acabara por derrotá-lo, não sem surpresa, na Batalha de Monte Gisard
(Tall al-Safiya, perto de Ramla), a 25 de novembro de 1177, inspirado por uma
visão de São Jorge e pela posse da Vera Cruz de Cristo, e graças ao precioso
auxílio dos cavaleiros da Ordem do Templo e das forças transjordanas conduzidas

35
Balduíno IV de Jerusalém, cognominado o Leproso, foi rei de Jerusalém de 1174 até à sua morte, em 1185.
Era filho do rei Amalrico I com a sua primeira esposa, Inês de Courtenay, irmão da rainha Sibila de Anjou.
49

por Reinaldo de Châtillon36 (Grifo nosso).

Observamos também que a ausência do Santo Lenho nas batalhas era considerada de
mal agouro e significava a iminência da derrota. Em Muchaud (Vol. 2, 1950, p. 123), o autor
vai narrar que, em 1102, o Rei Balduíno I37 reuniu às pressas seus cavaleiros para enfrentar
um exército de infiéis que saíram de Ascalon para atacar um contingente de cruzados que
estava retornando para a Europa. Em razão do imenso contingente muçulmano, Balduíno
havia sido aconselhado a evitar o confronto direto, porém o monarca não considerou o pedido.
A conclusão foi que as tropas cristãs foram massacradas e, segundo Muchaud, a explicação da
derrota teve critérios míticos: “As crônicas que falam desse combate censuram Balduino por
não ter feito colocar na frente, a cruz de Jesus Cristo, que os devia preceder, como de
costume” (Grifo nosso).
A Ordem do Hospital sempre seguiu o Santo Lenho em Jerusalém, mesmo antes da
militarização da Ordem, quando atuava apenas na assistência das tropas. Como nos relatou
Pinto Costa (2009, p. 21), o Papa Alexandre III, em documento dos anos 70 do século XII,
entre 1170 e 1180, insistia junto ao Grão-Mestre do Hospital que a primeira obrigação dos
freires era o cuidado dos pobres e que o empenho nas armas só seria aceitável quando a
relíquia da Santa Cruz acompanhasse as hostes cristãs (Grifo nosso).
Um dos principais momentos dos Hospitalários, junto aos Templários, nos confrontos
com muçulmanos, foi a batalha de Hattin, ocorrida em 1187, onde enfrentaram o poderoso
exército de Saladino. É consenso entre os historiadores que, a derrota das tropas cristãs na
Galiléia, na localidade chamada de “Cornos de Hatin”, causada certamente por erros
estratégicos do rei Guido de Lusignan, foi determinante para o fim do Reino Latino de
Jerusalém, tamanho o número de baixas de cruzados na disputa. Mas, paradoxalmente, foi
um momento em que as ordens militares demostraram toda a sua dedicação e devoção à causa
da cristandade.
Sobre a participação das ordens militares na batalha de Hattin, temos em Monteiro e
outros (2015, p. 77):

36
Reinaldo de Châtillon era senhor da Transjordânia e de Heborn, permaneceu na terra santa após o fracasso da
Segunda Cruzada.
37
Balduíno I de Jerusalém ou Balduíno de Bolonha foi um dos líderes da Primeira Cruzada, tendo-se tornado no
primeiro Conde de Edessa e no segundo governante de Jerusalém, sucessor do seu irmão Godofredo de Bulhão, e
o primeiro com o título de rei da Cidade Santa.
50

Se assim foi de facto, terá sido a unidade central da hoste cristã, liderada pelo rei
Guido (acompanhado pelos Hospitalários e, possivelmente, pelos Templários,
que fechariam este segmento da coluna), a pagar as despesas da aventura. De certa
forma, os muçulmanos ter-se-ão centrado num objetivo principal, atacando mais
insistentemente a ‘cabeça da serpente inimiga’ e continuando a separá-la das
restantes forças cruzadas. Para resistir à pressão e conseguir continuar a marcha, os
esquadrões das Ordens Militares tiveram de executar algumas cargas a cavalo,
em especial a partir da retaguarda do corpo central da coluna cristã, cargas
essas que parecem ter sido relativamente bem-sucedidas, mas que terão
implicado também muitas baixas (Grifo nosso).

Em Monteiro e outros (2015, p. 82-83), temos que a cavalaria muçulmana lançou-se


em ofensiva e, em determinado momento, a preciosa Vera Cruz foi capturada, devastando o
que restava da moral dos cristãos38. O Rei Guido continuou a resistir com um grupo restrito
de monges guerreiros, mas, a certa altura, a resistência foi vencida, com muitos cristãos sendo
capturados no chão, exaustos pelo esforço do combate, conforme o relato de Ibn al-Athir39
sobre o final da batalha:

Então os sobreviventes Francos40 subiram a uma colina do lado de Hattin, onde


tentaram erguer as suas tendas e defender-se, mas, sendo vigorosamente atacados de
todos os outros lados, foram travados nos seus propósitos e não conseguiram montar
senão uma única tenda, a do rei. Os muçulmanos apoderaram-se da grande cruz
chamada ‘A Verdadeira Cruz’, que, segundo dizem, contém um pedaço da
madeira que, segundo eles, foi utilizada para crucificar o Messias. Esta captura
constituiu um golpe muito duro, pois veio confirmar-lhes a morte e o desastre.
Cavaleiros peões caíram em grande número, mortos ou aprisionados, e o Rei só
ficou na colina com uns cento e cinquenta cavaleiros, os mais valentes e os mais
famosos41... Os muçulmanos, trepando a encosta, deitaram a tenda abaixo e
capturaram-nos até ao último homem. Entre eles, estava o Rei, o seu irmão
[Godofredo de Lusignan] e o príncipe Arnât, senhor de Kerak e o maior inimigo
franco dos Muçulmanos42. Capturaram também o senhor de Biblos, o filho de
Honfroi, o chefe dos Templários, que era um dos mais altos dignitários entre os
Francos, e uma tropa de Templários e de Hospitalários. O número de mortos e de
prisioneiros entre eles foi de tal ordem que […] desde a época do seu primeiro
assalto contra o litoral da Síria (em 1098) os Francos nunca tinham sofrido uma tal
derrota” (p. 150-151) (Grifo nosso).

Por fim, consta que foi dada aos monges guerreiros a opção de se converterem ao Islão
ou serem executados, sendo que a maioria não renegou sua fé. Na manhã do dia 6 de julho de
1187, o líder muçulmano ordenou a decapitação de mais de duzentos hospitalários e
templários, no intuito de “purificar a terra destas duas raças impuras”. O historiador árabe Ibn
al-Athir, vai registar que Saladino mandou executar os membros das Ordens Militares e
38
Consta que o relicário cruzado com um fragmento da verdadeira cruz de Cristo nunca mais foi recuperado.
39
Ali ibn al-Athir foi um historiador e cronista árabe, curdo segundo a Enciclopédia do Islão. Passou sua vida
escolar em Mossul, mas visitava Bagdá frequentemente. Por um tempo esteve com o exército de Saladino na
Síria, e mais tarde viveu em Alepo e Damasco
40
Francos: era assim que os muçulmanos se referiam a qualquer cristão presente nas cruzadas.
41
O historiador árabe se refere aos hospitalários e aos templários.
42
O historiador árabe refere-se a Reinaldo de Châtillon.
51

não os outros porque eles eram os mais ferozes combatentes de todos os Francos (Grifo
nosso).

5.2 A Ordem do Hospital detém a posse do Santo Lenho em Mamelar

Em Portugal, a presença dos hospitalários em confrontos bélicos junto ao Santo


Lenho, atuando como guerreiros ou dando assistência aos enfermos, foi registrada desde a
conquista de Lisboa (1147), até a batalha do Salado 1340, última batalha contra os mouros
que a Ordem dos Hospitalários participou em território lusitano. Johnson (apud COSTA 2001,
p. 143) comenta sobre esses episódios:

Tanto na crônica da batalha do Salado escrita pelo cronista-refundidor de 1380-


1383 quanto na carta do cruzado inglês presente à conquista de Lisboa de 1147
encontrei uma mentalidade cruzadística de cunho sagrado e idealizada para a
cavalaria cristã. Como objeto simbólico desta mentalidade e com significado de
catalisador das forças cruzadas, a cruz do Santo Lenho, presente em ambos os
acontecimentos, teve sua presença intensificada no discurso da batalha do Salado.
Como? Através da ligação feita pelo cronista entre a figura do prior do Hospital D.
Álvaro Pereira (e sua linhagem) e a Ordem do Hospital, ambos presentes na batalha
e enaltecidos pela fonte (Grifo nosso).

Sobre a presença da Cruz na conquista de Lisboa, reproduzimos trecho da Carta do


cruzado R., com base nas traduções, que narra a exortação final e missa campal (19 de
outubro de 1147):

No domingo seguinte, pois, estando já a postos os aprestos de defesa, chama-se o


arcebispo43 para dar a bênção ao empreendimento. Acabada a oração e feita a
aspersão da água benta, determinado sacerdote, com a relíquia do Santo Lenho do
Senhor nas mãos, pronunciou o seguinte sermão (Grifo nosso).

Numa pesquisa na Ficha de Inventário do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa –


Portugal, Franco (1995, p. 50-55), tivemos a confirmação de que um fragmento da Vera Cruz,
autenticado pela Santa Sé, já se encontrava de posse do primeiro monarca português, D.
Afonso Henriques e que teria sido transmitido por herança para seu filho D. Sancho I:

A Cruz de D. Sancho I foi mandada executar por este rei no segundo testamento que
lavrou, para que se entregasse ao mosteiro de Santa Cruz em Coimbra. [...] A
prodigalidade que o monarca revelou no fim da sua vida [...], prende-se igualmente
com a preocupação de garantir a salvação da sua alma. A entrada desta alfaia no
Mosteiro de Santa Cruz veio enriquecer o vultuoso tesouro de relíquias e
preciosidades do opulento mosteiro e preencher uma lacuna do culto que aí devia

43
Possivelmente o Arcebispo de Braga, João Peculiar, acompanhado dos freires de São João.
52

ser prestado ao Santo Lenho. D. Afonso Henriques, ao fundar a instituição com


D. Telo, dedica o culto dos Cénegos Regantes à invocação da Cruz de Cristo e
deixa ao Mosteiro uma relíquia da Santa Cruz. De acordo com a tradição, tinha-a
tomado em 1128 ao seu primo Afonso VII de Castela, na batalha da Veiga de
Valdevez, depositando-a posteriormente na Igreja de Grade, guardando para si um
fragmento que dividiu em duas partes. Um dos fragmentos foi incrustado numa
pequena cruz peitoral em ouro, pertença do monarca e que depois veio a
integrar a Cruz em ouro que D. Sancho irá doar testamentalmente a Santa
Cruz de Coimbra, e o outro fragmento foi oferecido a São Teotónio, co-fundador
do mosteiro e primeiro santo português. Santa Cruz passa assim, a funcionar como
repositório dos despojos mortais dos primeiros reis de Portugal e ainda como tesouro
dos objectos-simbolo do reino: como a espada do rei fundador aí se passa a
guardar também a relíquia do Santo Lenho. Neste contexto, a Cruz de D.
Sancho proporciona o enquadramento condigno à relíquia que o monarca
herdara de seu pai e dignifica o orago de uma instituição tão intimamente
ligada à monarquia portuguesa (Grifo nosso).

Diante desses relatos, é lícito supor que o Santo Lenho que esteve presente na
Conquista de Lisboa e que deu suporte ao Sermão do Arcebispo de Braga, D. João Peculiar,
fosse de propriedade do comandante das tropas, o próprio rei D. Afonso Henriques. Da
mesma forma, podemos deduzir que, em 1189, no momento em que as tropas compostas pelas
ordens militares, dentre elas os Hospitalários, acompanhadas de hostes cruzadas 44,
conquistavam as praças mouriscas de Alvor e Silves, o rei português, D. Sancho I, que estava
no comando do exército, fez ostentar o estandarte da relíquia do Santo Lenho.
Fazemos constar, nessa parte do trabalho, a nossa observação de que a presença do
Santo Lenho nas batalhas cruzadas era uma tradição que vinha desde a tomada de Jerusalém
até as batalhas contra os mouros em Portugal. De outra parte, pelas pesquisas realizadas até
aqui, a relíquia estava protegida por ordem de reis, seja na Igreja do Santo Sepulcro em
Jerusalém, quanto no Mosteiro da Santa Cruz em Coimbra e, por ordem real, o Santo Lenho
seguia à frente das tropas, sempre ostentado por um clérigo e protegido pelas ordens militares.
Outro dado importante, tema do nosso trabalho, é que, na Igreja de Santa Cruz de
Marmelar em Portugal, freguesia de Portel - Alentejo, encontra-se desde o século XIII, em
terras que, à época, pertenciam à Ordem do Hospital em Portugal, um fragmento de madeira
atribuído à cruz de Cristo. A relíquia é protegida e guardada em um relicário45 e tornou-se um
símbolo de proteção sagrada em uma região fronteiriça na luta contra os muçulmanos. Consta

44
Em maio de 1189, uma frota de cruzados que se dirigia à Jerusalém aportou em Portugal. Durante sua estadia
para reparos e abastecimento, foram persuadidos por D. Sancho I a participar da tomada dos castelos de Alvor e
Silves.
45
“Era como se o santo estivesse realmente presente ali. Procurou-se, a partir dos relicários expostos, mostrar a
importância dos materiais com os quais foram confeccionados, a forma com que os medievais idealizam suas
imagens, sua organização e, principalmente, que a imagem não era uma simples representação, mas sim, o
invisível no visível, Deus no homem, o ausente no presente. Christo, Souza e Manhães (2017, p. 119). O Corpo
das Imagens- Ensaios sobre cultura visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. Bauru, SP: Edusc:
2007. p. 285.
53

que a relíquia foi retirada de seu lugar de veneração para acompanhar os cavaleiros
hospitalários na Batalha do Salado de 1340. O fato a se destacar é que, segundo várias
narrativas, a relíquia foi trazida para Portugal pelo Prior do Hospital e foi guardada na região
de Portel, área de influência hospitalária.
Acerca do caráter sacro que a presença da Sagrada Cruz trazia à região do Alentejo,
protegida pelos Hospitalários, Nascimento vai ressaltar que:

Nos reinos ibéricos, o avanço das fronteiras frente ao domínio muçulmano criou a
necessidade de povoar e garantir a cristianização de espaços chave, que
consolidaram a presença dos reinos cristãos em vastos territórios. A Ordem do
Hospital, criada no âmbito da Primeira Cruzada, foi fundamental na defesa da frente
de disputas militares com os islâmicos. Neste sentido, a fronteira alentejada esteve
protegida pela ação progressiva dessa ordem. Em Marmelar, a presença de um
pequeno fragmento da Vera Cruz trouxe ao local status de santidade, buscando
solidificar a presença cristã na região (2018, p. 151).

Imagem 4: Igreja dos Hospitalários em Vera Cruz de Marmelar


(Fonte: Disponível em ascendensblog.blogspot.com, acesso em jan. 2019).

Os historiadores ainda procuram evidências concretas de como o Santo Lenho chegou


a Marmelar, pois pairam ainda dúvidas e lendas na historiografia e na documentação. Mas
reportando-nos a essas narrativas de tradições, temos em Serafim (2007, p. 162), a descrição
de como um pedaço significativo da relíquia do Santo Lenho teria chegado a Portugal, no ano
de 1271, nas mãos do Prior dos hospitalários portugueses, D. Afonso Pires Farinha, que havia
54

participado da sétima cruzada na Terra Santa46 (1248-1254). Segundo essa tradição, a ilustre
relíquia tinha como destino a Sé de Évora, que o bispo D. Durando Pais acabara de fundar. No
entanto, a mula que a transportava empacou em um lugar chamado Fonte Santa, e recusou-se
a avançar enquanto não lhe descarregassem a “sagrada carga”. Na obra Angiológio Lusitano,
editada em 4 tomos em 1652 e reeditada pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto
em 2002, Jorge Cardoso conta como ocorreu o prodígio que fez D. Afonso Pires Farinha
acreditar que o Santo Lenho deveria ficar em Marmelar:

É certo, que vinha esta Relíquia dirigida à Sé de Évora, e chegando ao lugar da


Fonte-Santa, nunca a mula que a trazia quis passar diante, até que lhe foi tirada a
sagrada carga. E para que não servisse em profanos usos, estalou de repente, com a
admiração de todos, que ali se achavam. E para ficar mais famoso o milagre, brotou
a terra um canal de água, que hoje persevera, com o título de Fonte-Santa, e o
Arreiro metendo na terra a vara com que picava a mula, em continente se viu um
formoso pinheiro, de que ainda há memória, por mais que os romeiros o levem em
Cruzes, pelas quais obra o Céu grandes maravilhas. Tudo isto corre por conta da
Tradição, à qual nada acrescentamos nem diminuímos.

Imagem 5: Mapa geográfico do Reino de Portugal no Séc. XIII, baseado nas Ordens Militares
(Fonte: MATTOSO, s/d, p. 212)

46
Apesar da história de que o portador da relíquia foi Afonso Farinha, sendo tal feito relatado em diversas obras,
não há prova documental inconteste dessa narrativa (PINTO COSTA, 2013, p. 216).
55

O relato do Angiológio Lusitano, descreve que o fragmento do Santo Lenho se dirigia


à Sé de Évora, no entanto a mula que o transportava empacou em um lugar chamado Fonte
Santa, caracterizando um milagre que fez com que a relíquia permanecesse em Marmelar. No
mapa acima, consta o retrato geográfico do reino de Portugal no século XIII, totalmente
baseado na existência das ordens militares. Os Hospitalários (no mapa, seus domínios estão
marcados por listras verticais cinzas) defendiam a entrada pelo Tejo ao norte, a partir do
Zêzere, com base em Belver e Crato, bem como a região do Alentejo Central, hoje Distrito de
Évora, onde se localiza a vila de Marmelar. O que podemos observar aqui é que, segundo o
relato do milagre, a mula empacou em terras administradas pelos hospitalários quando deveria
ter prosseguido a viagem até a Sé de Évora, que se localizava em terras controladas pela
monarquia portuguesa.
Referindo-se à devoção que a relíquia passou a ter junto à monarquia portuguesa,
Serafim (2007, p. 163) aponta que, nos últimos anos de sua vida, o Rei D. Diniz solicitou a
relíquia e usufruiu de sua contemplação com exclusividade, porém, em seu testamento exigiu
que em sua morte, que ocorreu em 1325, a devolvessem ao Mosteiro de Marmelar e a seus
verdadeiros protetores: os Hospitalários. É provável que o Rei D. Felipe IV, filho de D. Diniz
e sucessor do trono, tenha também adquirido uma especial devoção à relíquia, pois é fato que
quando partiu para Al Andaluz para enfrentar os mouros na Batalha de Salado, hoje cidade de
Cádiz - Espanha, seguia com ele, à frente da hoste hospitalária, D. Álvaro Gonçalves Pereira –
sucessor de D. Afonso Pires Farinha - que levava, a pedido do monarca, o Santo Lenho de
Marmelar.
Um aspecto que merece destaque, conforme nos relata Nascimento, refere-se às
disputas entre as principais linhagens da Ordem do Hospital (Os Góis/Farinha e os Pereira)
pelo controle sobre a relíquia:

Outro aspecto que deve ser ressaltado é a questão das disputas entre as principais
linhagens que gravitavam no âmbito da Ordem. Góis/Farinha e Pereira 47 assumiram
a gestão de Comendas de primeira importância, ‘a de Marmelar, no caso dos de
Góis, e a do Crato/Flor da Rosa, no caso dos Pereira’ (COSTA, 2013, p. 229). Tanto
Marmelar quanto Flor da Rosa podem ser consideradas como espaços de projeção
do oriente latino no contexto português pós-reconquista. Marmelar seria uma
segunda Jerusalém e Flor da Rosa uma revivescência da estrutura hospitalária em
Rodes. Os Góis/Farinha, fundadores do Mosteiro do Hospital em Marmelar, e os
Pereira, como fundadores do castelo fortificado de Flor da Rosa desde 1341. A
relíquia seria objeto de disputas entre estas famílias. A disputa revela a importância
da posse deste objeto sacro, especialmente após a intensificação do culto ao Santo
Lenho (2015, p. 260).

47
Linhagens ligadas ao Prior D. Afonso Pires Farinha e ao seu sucessor Prior D. Álvaro Gonçalves Pereira.
56

Acerca dos prodígios da Santa Cruz, apresentamos um relato da própria Ordem dos
Hospitalários, escrito em 1744, que pode ser encontrado na página oficial da entidade:
“Visitação Geral da Ordem de Malta às Suas Comendas nas Províncias da Estremadura e
Alentejo, nas Comendas de Santarém, Torres Vedras, Torres Novas e Landal, Vera Cruz e
Portel, Elvas e Montoito”:

Tem esta Igreja uma insigne, milagrosa e venerável Relíquia do Santo Lenho em
forma de cruz Patriarcal, embutida num relicário de prata de filigrana formado de
custódia com vidro, e se conserva com toda a veneração fechada em um nicho de
pedra mármore dourada com capa e cortina com lâmpada de prata quotidianamente
acesa, expondo-se no dia da invenção da Vera Cruz de 3 de Maio e da sua exaltação
a 14 de Setembro em cujos dias concorre um numerável povo à referida Igreja, como
também nos mais dias do ano levado da veneração e fé que têm na Santa Relíquia
que é prodigiosa para todos os males e enfermidades e principalmente para os
vexados e possessos do Demónio e é tradição antiga de que se faz memória nos
Tombos desta Comenda que Frei Afonso Peres Farinha, Prior que foi do Hospital
neste Reino trouxera esta Santa Relíquia de Jerusalém no ano de 1271 e que vindo
destinada para a Sé de Évora, ao passar por esta localidade, a mula que a trazia não
passou adiante. Assim que lhe foi retirada a Santa Relíquia, de repente começou a
brotar um canal de água que ainda hoje se preserva com o título de Fonte Santa, e à
mesma Sagrada Relíquia se atribui a glória da famosa Batalha do Salado no ano de
1340, aonde a instancias d’El-Rei D. Afonso IV, a conduziu D. Álvaro Gonçalves
Pereira, Grão Prior do Crato, e voltando da Batalha foi servida a Magestade do dito
Senhor se partisse a mesma Sagrada Relíquia em duas partes iguais ficando uma
parte nesta Igreja da Vera da Cruz, e indo a outra como foi para a Sé de Évora de
sorte que no seu principio tinha perto de dois palmos de comprimento com dois
braços iguais, um no cimo e outro abaixo, o que tudo se declarou nos tombos desta
Comenda referindo-se a crónica do dito Senhor e outros autores (ANTT - Ordem de
Malta, Visitações, Livro n.º 15, folha 364v e seguintes).

Do texto acima, realçamos as seguintes informações: a Igreja de Marmelar celebra


duas datas importantes para a Cristandade: o 03 de maio, dia de “Invenção da Cruz”, quando
Helena, mãe do Imperador Constantino, encontrou a Vera Cruz em Jerusalém; e o 14 de
setembro, dia de “Exaltação da Cruz” quando, segundo a tradição, Heráclito entrou em
Jerusalém trazendo de volta a Cruz de Cristo, que havia sido sequestrada pelos persas.
Ficamos sabendo que o povo acorre à Igreja não só para suas procissões, mas também em
busca exorcismos e milagres “para todos os males e enfermidades e principalmente para os
vexados e possessos do Demónio”.
Um dado importante aponta o ano provável em que o Santo Lenho teria chegado a
Marmelar – 1271, sendo destinado à Sé de Évora; porém um milagre teria definido seu
paradeiro junto à “Fonte Santa”, que jorrou água na presença do objeto sagrado. Temos ainda
a importante informação de que, pela tradição, a pedido do Rei D. Afonso IV, o Prior do
Hospital D. Álvaro Gonçalves Pereira conduziu o Santo Lenho na Batalha de Salado, ocorrida
em 1340. Outro dado relevante é a narrativa de que, após a Batalha, a relíquia foi repartida
57

em duas partes iguais, ficando uma na Igreja da Santa Cruz de Marmelar e a outra para a Sé
de Évora, seu destino original. A relevância desses dados reside em podermos ter um relato
sobre o entendimento da própria Ordem do contexto descrito pela tradição, pois isso nos dá o
conhecimento da crença que os Hospitalários buscam propagar.

Imagem 6: Relicário do Santo Lenho em Marmelar adornado em prata e cinzelado com as armas do Prior D.
Numo de Álvares Pereira (Fonte: Disponível em perspectivasdoolhar.blogspot.com, acesso em jan. 2019)

Vários são os relatos da presença do Santo Lenho, em mãos dos cruzados, em


momentos cruciais da história na Idade Média. Costa (2001/2002, p. 143), nos fala da
Conquista de Lisboa (1147); Pinto Costa (2009, p. 21), narra sua presença em Jerusalém no
século XII; temos as numerosas narrativas do Santo Lenho na Batalha de Salado (1340); além
de outras aqui citadas. Assim, é fundamental reconhecer a valor histórico e simbólico que a
relíquia representou nas lutas contra os muçulmanos e na formação do Reino de Portugal.
Nascimento (2013, p. 01) vai registrar: “A Cruz do Marmelar foi o centro irradiador do
espírito cruzado vencedor na Batalha do Salado, além de estar presente em outros momentos
importantes da história da monarquia portuguesa, sendo considerada portadora de qualidades
miraculosas”.
58

Imagem 7: Dia da Exaltação da Vera Cruz no Mosteiro de Marmelar (Fonte: Disponível em


ordemdemalta.blogspot.com, acesso em mar. 2019)

Na foto acima, tirada em 14 de setembro de 2013, durante a procissão de “Exaltação


da Santa Cruz”, no Mosteiro de Vera Cruz de Marmelar, podemos observar que os Cavaleiros
Hospitalários (Ordem de Malta), em seus trajes tradicionais e ostentando suas condecorações,
seguem ao lado do clérigo da região, ritualmente protegendo a sagrada relíquia, tal como se
sucedia no século XII, nas batalhas travados nos tempos das cruzadas em Jerusalém, quando
a Ordem foi instruída pelo Papa Alexandre III a só se empenhar em armas quando o Santo
Lenho acompanhasse as tropas cristãs.

5.3 A Conjuntura na Península Ibérica e em Al Andaluz antes da Batalha do Salado

Pelo tratado de Alcanizes, firmado em 1297 por Fernando IV de Castela e D. Diniz I


de Portugal, foram definidas as fronteiras do território lusitano, tornando Portugal o primeiro
Estado-Nação da Europa. Mas isso não significou que, a partir do acordo, a convivência entre
os dois reinos se tornara pacífica, promoviam-se casamentos entre as cortes para buscar
alianças que por vezes geravam mais conflitos do que paz. E foi o que se verificou quando
Afonso IV de Portugal, filho/herdeiro de Dom Diniz e pai de Maria de Portugal, descobriu
que a filha sofria humilhações com a prática de adultério do marido, o Rei Afonso XI de
Castela. O rei lusitano soube também que a princesa portuguesa estava vivendo em um
59

convento em Sevilha. Sobre esse episódio Lalanda (1987, p. 133) nos dirá que: “Esse facto,
aliado a todo o conjunto de agravos entretanto recebidos por Portugal, determinará o início da
guerra, que durará de 1337 a 1338, com trégua pedida pelos Legados pontifício e francês e
que se concluirá em 1339”.
Pelo lado muçulmano, após seis séculos de enfrentamentos entre cristãos e
muçulmanos, a presença islâmica na Península Ibérica estava restrita ao reino de Granada,
onde o soberano Yusef Abdul Hagiag acalentava sonhos de uma reação mourisca que
trouxesse de volta o esplendor de Andaluz. D. Afonso XI continuava a fazer ofensivas contra
o Reino de Granada e a par das frequentes hostilidades entre Portugal e Castela, o soberano
muçulmano, vendo ali uma oportunidade da qual Granada não podia prescindir, foi em busca
de alianças para atacar o Reino de Castela. Para enfrentar a empreitada, Costa, (2001/2002
p.155) vai narrar que Yusef solicitou a ajuda a uma nova dinastia emergente, os meríndios,
uma dinastia berbere da região de Fez que reinou no Marrocos, norte da África, de 1196 a
1464, substituindo o poder Almôada. O rei de Fez, Abu-l-Hasan’ Ali, acatou o chamado e
passou a reunir suas tropas para desembarcar ao sul da Península Ibérica, nas cidades de
Algeciras e Gibraltar.
A monarquia portuguesa entendia que a invasão da Península Ibérica por tropas
muçulmanas vindas do norte da África, em apoio a Granada, representava um grande perigo
para a soberania lusitana. Importante frisar que, desde 1249, os muçulmanos haviam perdido
todo e qualquer domínio sobre terras lusitanas e, por outro lado, desde 1297 as fronteiras com
Castela estavam demarcadas. Por esse motivo Portugal há muito não investia contra os
mouros. De outra parte, o Reino de Castela ainda combatia os mouros visando novas
conquistas territoriais.
Em 1339, o sultão marroquino enviou tropas merínidas para o estreito de Gibraltar.
Enquanto os navios hospitalários e castelhanos preparavam um cerco marítimo, a frota cristã
foi atingida e destroçada por uma tempestade que inutilizou os navios para a batalha. Dessa
forma, o sul da Península retornou ao poder muçulmano que fixou uma base na cidade de
Tarifa, criando dificuldades na rota comercial marítima na entrada do Mediterrâneo. Felipe XI
de Castela solicitou o apoio do Papa e contratou navios genoveses em busca de reforços,
diante da ameaça real à Cristandade. Diante disso, não lhe restou alternativa senão iniciar
tratativas para obter o auxílio do rei de Portugal.
Um tratado de paz48 foi firmado em 1339, entre portugueses e castelhanos, uma vez

48
Intermediado, entre 1338/39, pelo Monarca Francês e pelo Patriarca de Roma.
60

que, apesar do rancor recíproco ainda se fazer sentir, restava evidente para D. Afonso IV de
Portugal que a região Ibérica estava sob ameaça de retomada pelas tropas muçulmanas. É
nessa conjuntura que surge a aliança entre os dois reis ibéricos. Lalanda (1987, p. 119-122)
explica que o monarca português não pôde colocar os seus motivos pessoais de queixa contra
o genro acima da defesa da Península, e por isso convoca o seu exército que conta com os
mestres das ordens militares e o arcebispo de Braga, além de forças que vão se organizar nas
cidades portuguesas, ao que consta com a participação de muitos nobres.

5.4 O Poder místico do Santo Lenho na Batalha do Salado

Assim unidos, os dois Afonsos partem de Sevilha em direção à Tarifa, província de


Cadiz, ao encontro das tropas muçulmanas. Os contingentes de ambas as partes são
numericamente imprecisos, segundo relatos calcula-se que o exército dos muçulmanos era
muito mais numeroso, numa proporção quatro vezes maior do que os combatentes cristãos. O
encontro se deu no dia 30 de outubro de 1340, sendo que a ribeira do Rio Salado serviu de
trincheira para os dois exércitos. Os planos de batalha dão conta que os castelhanos atacariam
os marroquinos e os portugueses se defrontariam com os guerreiros de Granada.
A principal narrativa, na visão lusitana, da batalha do Salado (1340), segundo Costa
(2001, p. 144), está contida no título XXI do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro —
escrito entre 1380 e 1383. Seu autor é o conde D. Pedro, que era filho bastardo do rei D. Dinis
e um dos fidalgos mais ricos do reino. O Livro de Linhagens foi escrito com um propósito
bem definido: preservar a memória das Linhagens de Sangue em Portugal, uma vez que o
autor narra para seus próprios pares sociais, a nobreza portuguesa, grupo tão poderoso quanto
reduzido.
Esses relatos dão conta que os cavaleiros de Afonso IV, tendo à frente a tropa dos
hospitalários, comandada pelo prior do Hospital – D. Álvaro Gonçalves Pereira, atacaram os
granadinos de Yusef Abdul Hagiag, que seria muito mais numerosa do que as tropas
portuguesas. O prior do Hospital protegia o Santo Lenho e incitava suas tropas a subjugar os
infiéis. Após várias horas de batalha, muitos mortos e feridos de ambos os lados, os
muçulmanos são derrotados e abandonam o campo de batalha, deixando para trás os espólios
de guerra49 dos acampamentos dos reis de Fez e de Granada.
Serafim vai descrever o milagre que se sucedeu, quando no calor da batalha as tropas

49
Os espólios ou despojos de guerra são objetos conquistados pelo exército ou pela parte vencedora de uma
batalha ou guerra. Serviam como troféus para lembrar a vitória obtida sobre o inimigo.
61

lusitanas apresentavam sinais de desânimo, percursores da derrota:

Nas alturas em que os corpos se rendiam ao cansaço e o ânimo adejava, acalentavam


e fortaleciam a fé olhando e sentindo a proximidade de relíquia tão sagrada. No
cansaço da batalha, incapazes de suster as investidas inimigas, e sentindo a
iminência da derrota, deram pelo desaparecimento da relíquia. D. Álvaro Pereira,
sabendo do acontecido, ordenou, em desespero, que a procurassem... Tudo mudou
no momento em que o cavaleiro que encontrou o santo lenho rompeu entre os
soldados portugueses, que logo se sentiram que a graça de Deus era com eles porque
se acharam valentes e esforçados como no começo da lide e seguiram a Vera Cruz,
corajosos e enraivecidos, pondo o inimigo em debandada (2007, p. 163).

A presença da Relíquia Sagrada motivou as tropas cristãs e lhes deu força justamente
quando se encontravam em desvantagem. Assim, tal como havia predito por D. Álvaro, a
vitória foi dada aos cristãos pelas graças emanadas da “Santa Vera Cruz”. Acerca do caráter
sagrado da batalha do Salado, temos ainda Nascimento (2014, p. 115), que comenta ser a
vitória nessa batalha um dos principais relatos da tradição de sacralidade da Vera Cruz, pois a
presença da Relíquia garantiu a vitória sobre os infiéis, sublinhando seu caráter extraordinário
e sobre-humano, levando os soldados cristãos a acreditarem que “a própria presença de Cristo
(sentida no fulgor da luta), emanada através do Lenho que propiciou a vitória sobre as hostes
infiéis”.
A batalha de Salado foi também uma das últimas travadas no estilo medieval, sobre
essa assertiva, temos a narrativa de Ancona (1989, p. 371 apud Costa, 2001, p. 143-178):

A batalha do Salado é uma espécie de epílogo dessa mentalidade cavaleiresca-


cruzada de que as ordens hierosolimitanas 50 foram protagonistas. Praticamente foi
uma das últimas vezes que assistimos na Península a guerra ser travada sem os
determinantes técnicos e econômicos que a idade moderna consagrou. Portanto, o
Salado ainda não pode ser considerado uma guerra moderna, tal qual a entendo hoje.

Para preservar a memória do evento de Salado, o Rei Afonso IV mandou erigir um


pequeno templo, chamado de “Padrão de Nossa Senhora da Vitória”, no centro da cidade
histórica de Guimarães, situada no Distrito de Braga.

50
Hierosolimitanas: aquelas que tiveram origem em Jerusalém.
62

Imagem 8: Padrão de Nossa Senhora da Vitória, Cidade de Guimarães, Distrito de Braga (Fonte: Disponível em
patrimoniocultural.gov.pt, acesso em mar. 2019)

O revés dos exércitos muçulmanos na batalha de Salado de 1340, não foi uma mera
derrota militar mais sim um desastre definitivo. A partir de então os muçulmanos não mais
conseguiram inverter a expansão cristã rumo à conquista final da Península Ibérica, sendo que
os portugueses nunca mais voltariam a se defrontar com os mouros em campos de batalha da
Península Ibérica.
63

6 Conclusão

Segundo a tradição, os Cavaleiros Hospitalários se tornaram os guardiões do Santo


Lenho a partir de 1271, quando a relíquia chega ao Mosteiro de Santa Cruz de Marmelar, área
administrada pela ordem em Portugal. É quando constatamos também a estreita relação que o
Lenho irá ter com a atuação da Ordem do Hospital no território português. Porém, há indícios
de que, apenas em 1340, a monarquia portuguesa, na figura do Rei D. Felipe IV, tenha
oficialmente definido que uma metade da relíquia iria ficar em definitivo sob a guarda dos
hospitalários.
De outra parte, observamos que havia uma tradição de se levar a relíquia da Vera Cruz
para as batalhas contra os “infiéis” e, nesses momentos, o principal clérigo local carregava o
relicário, cercado de perto pelas Ordens Militares. Essas relíquias foram utilizadas pelas
monarquias da Europa para promover o seu poder e parafraseando Nascimento (2014, p.56),
diremos que a distribuição das Relíquias da Paixão incentivou a devoção do cristão, tanto em
sua dimensão miraculosa e protetora, quanto no sentido de promoção e manifestação do poder
monárquico, tais relíquias ficavam à ordem de reis, guardadas em locais por eles
determinados. Em Portugal, Dom Afonso Henriques era possuidor de um pedaço que doou a
seu filho Sancho I, que por sua vez o deixou, em testamento, sob a guarda do Mosteiro de
Santa Cruz de Coimbra, cujos cônegos eram consultores da realeza portuguesa.
Segundo a tradição, D. Afonso Pires Farinha, prior do Hospital em Portugal,
retornando da Sétima Cruzada, trouxe consigo um pedaço do fragmento da Santa Cruz,
destinado à Sé de Évora, que o Bispo Durando Pais acabara de fundar 51. Ocorreu que um
milagre indicou que o Santo Lenho deveria ficar em Marmelar. Pelo relato tradicional, temos
então que o Santo Lenho foi parar em terras administradas pelos hospitalários e não em mãos
do bispo de Évora, região de controle do rei de Portugal.
Cabe consignar, que em fins do século XIII as ordens militares estavam politicamente
enfraquecidas em função da queda de Jerusalém (1189) e pelas derrotas que os cruzados
sofriam na Palestina, que terão seu momento definitivo com a queda do Acre, em 1291,
última cidade cristã no Oriente Médio. De outra parte, as fronteiras de Portugal, após a
conquista do Algarve (1249), já estão desenhadas e serão oficializadas em 1297, com o
tratado de Alcanizes. Assim, desde 1261, época do reinado de D. Afonso III, iremos assistir a

51
A Sé de Évora é a maior Catedral medieval de Portugal. Surgiu da demolição de uma pequena igreja fundada
por D. Soeiro em 1204 e seu lugar se construiu a Catedral, que foi erigida entre 1280 e 1340. Consta que o Bispo
D. Durando Pais, foi o grande incentivador da construção da Sé.
64

uma escalada de embates políticos entre a monarquia portuguesa e a Ordem do Hospital. E


isso ocorria devido ao fato de que, enquanto a monarquia buscava consolidar seu poder, a
Ordem do Hospital nem sempre esteve do lado do rei, pois era uma entidade presente em
terras lusitanas, mas subordinada à língua Castelhana, na figura do Grão-Comendador da
Hispânia, que residia em Castela, que por sua vez devia obediência à Ordem de São João do
Hospital, com sede na Ilha de Rodes desde 1309, que era subordinada diretamente à Sé de
Roma.
O auge desses conflitos ocorreu durante o longo reinado de D. Diniz (1279 a 1325)
que, em detrimento dos hospitalários, vai agir para direcionar o patrimônio dos templários,
extintos em 1312, para a recém-criada Ordem de Cristo (1319); obviamente com o intuito de
impedir que o reino rival de Castela, por intermédio de sua influência na Ordem do Hospital,
viesse a requerer algum domínio territorial em Portugal. Nesse ambiente de confronto entre o
rei e a Ordem do Hospital, o Rei D. Diniz solicitou à Ordem do Hospital a posse da relíquia
do Santo Lenho para “usufruir de sua contemplação com exclusividade”, fazendo registrar em
seu testamento que a relíquia seria devolvida ao Mosteiro de Marmelar e, consequentemente,
aos hospitalários, quando de sua morte.
Entre as famílias das linhagens da própria Ordem do Hospital eram comuns as
disputas pelo Santo Lenho, de um lado os Góis/Farinha, que detinham a gestão da Comenda
de Marmelar e de outra parte os Pereira, que administravam a comenda do Crato/Flor da
Rosa. Essas disputas nos fazem perceber que aquele que possuísse o controle sobre a relíquia
também deteria o controle sobre a ordem em Portugal, ou seja: o poder do Santo Lenho não
era só místico/sagrado, mas também tinha um importante significado político dentro da
Ordem do Hospital em Portugal.
Ao que tudo indica, nessa disputa das linhagens do Hospital em Portugal, os Pereira
acabaram obtendo o maior prestígio junto ao rei português, uma vez que consta das narrativas
da Batalha do Salado que o Rei Felipe VI teria pedido ao prior do Hospital, Dom Álvaro
Gonçalves Pereira, para que, junto com as tropas hospitalárias, se fizesse acompanhar da
relíquia do Santo Lenho em batalha. Considerando que, conforme a tradição, teria sido o
próprio prior do Hospital a proteger o Lenho na Batalha do Salado, podemos inferir que, pelo
menos naquele momento não se observavam confrontos entre o rei e a ordem. Outra
informação que pode corroborar com essa afirmativa é a de que, segundo narrativa dos
próprios hospitalários, após a batalha do Salado, a relíquia do Santo Lenho foi repartida em
dois pedaços iguais, ficando uma parte em Marmelar e a outra foi encaminhada ao seu destino
de origem, a Sé de Évora.
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É lícito supor então que a separação da relíquia em duas partes iguais compôs um
acordo, realizado entre o rei e o prior do Hospital, para que um pedaço do Santo Lenho, fosse
direcionado ao seu destino original, a Sé de Évora. Parece-nos também que, se considerarmos
que a posse da relíquia certifica um poder regional e político, a Ordem do Hospital em
Portugal, obteve do rei, além do um reconhecimento de sua condição sui generis, a
confirmação da posse de uma poderosa relíquia que, estando presente, credenciava os
hospitalários a pegar em armas para defender os interesses da Cristandade, tal como uma vez
instruiu o papa e assim como, tradicionalmente, se observa desde de que os cruzados
encontraram um pedaço do Santo Lenho em Jerusalém.
Até aqui nosso trabalho apontou em Portugal traços de uma função identitária entre os
hospitalários e o Santo Lenho de Marmelar porém, sobre o tema proposto nesse trabalho –
“Os Guardiães do Santo Lenho” – registramos que existem pontos que precisam ser melhor
estudados com o fito de conhecer se foi uma motivação política que levou os hospitalários a
possuírem um fragmento do Santo Lenho em Portugal, apoiados na narrativa do milagre que
assegurou a presença da relíquia na região de Portel, área de sua influência.
De outra parte, temos ainda que buscar esclarecimentos acerca do confisco do Santo
Lenho do Mosteiro de Marmelar pelo Rei Dom Diniz I, que somente o devolveu em
testamento e após a sua morte, pois a análise cronológica nos leva a deduzir que a relíquia foi
solicitada em tempos de conflito, entre a ordem e o Rei, e devolvida em tempos de
diplomacia. Para corroborar esse raciocínio temos que, após a batalha do Salado, o Rei
Afonso IV cedeu um pedaço do Santo Lenho para posse definitiva dos hospitalários.
Torcemos para que as respostas a essas questões se tornem desafios e objeto de
trabalhos acadêmicos de outros pesquisadores, que queriam lidar com o importante tema do
papel exercido pelas ordens militares na formação do Reino de Portugal.
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