Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PRESENÇA REAL
Quando S. Inácio afirma que quer o pão de Deus poder-se-ia pensar num
alimento para depois da morte, uma vez que os prazeres desta vida e os alimen
tos de corrupção não o deleitam. Com efeito, alguns autores2 falam dum
realismo eucarístico como pressuposto de linguagem simbólica. Mas também
1 «Oux ‘nSoixat Tpocpfj <p9opãç oú5è tou 0íou toútou. "Apxov 0eoú 0éXw,
6 écmv aàpÇ Tr)ffov Xpiffxou, tou éx azÉp^aToç Aauí6, xal rcópa 0éXw tò aíp.a aúxou,
6 éctlv àyáTVf] OTiéppaTOç» Rom. VII, 3, F. X. FUNK, Paires Apostolici, in Lib. H. Laupp,
Tubingae 1901, p. 260. Para a tradução dos textos de S. Inácio utilizamos também T.
CAMELOT, Igfiace d’Antioche> Lettres, 3e ed., Sources Chrétiennes, éd. du Cerf, Paris
1958 e D. RUIZ BUENO, Padres Apostólicos, 2.* ed., BAC, Madrid 1967.
2 Cfr. FUNK, o. c., p. 261; CAMELOT, o. c., p. 136 e 54-55,
A Eucaristia em S. Inácio de Antioquia 11
11 Esta convicção é tão forte que aflora noutros lugares em contextos aparentemente
inadequados. Assim, em Trall. VIII, 1, FUNK, o. c., p. 248, afirma: «regenerai-vos a vós
mesmos na fé, que é a carne do Senhor (6 e(Ttlv cràpÇ toõ xvpiou), e na caridade, que e
o sangue de Jesus Cristo (6 éaxiv alpa Tirçffou Xpurrou)». «A carne de Jesus Cristo, a sua
verdadeira carne, verdadeiramente imolada, é a fé do cristão e o seu sangue derramado,
penhor supremo dum amor incorruptível, é a sua bebida (Row. VII, 3). Deste modo não
há razão para perguntar se tais passagens têm uma significação propiamente eucarística;
não fazem senão recordar, sob imagens tiradas dos usos da liturgia eucarística, que o
primeiro objecto da fé e do amor do cristão, é a realidade da carne e do sangue de Cristo,
e que nesta fé encontra a vida ... Ver no sangue de Cristo o símbolo do seu amor e da
nossa caridade para com Ele, não é negar que o cálice seja a taça que nos une realmente
ao seu sangue, e que o pão eucarístico seja a verdadeira carne do Senhor» CAMELOT,
o. c., p. 54-55. Cfr. também Ephes. XIV, 1 e Smyrn. VI, 1, FUNK, o. c., p. 224 e 280. —
Em Phil. V, 1, FUNK, o. c., p. 268 afirma confiar na oração dos cristãos de Filadélfia para
alcançar a misericórdia que lhe coube em sorte «refugiando-me no evangeho como na carne
de Jesus EuayYEXúp wç crápxl Tqorou)». Seguindo a Camelot (Ibidem) podemos
efectivamente falar de «símbolos eucarísticos que supõem o realismo da fé eucarística; o
simbolismo não exclui o realismo, supõe-no e encontra nele o seu fundamento».
Cfr. S. GAROFALO, II Vangelo di S. Giovanni em La Sacra Biblia, III, Marietti,
Torino 1964, p. 227.
13 ~
Em Mt 23,19 aparece Swpov (não Scupéa) num contexto litúrgico-sacrificial:
«Cegos, que vale mais, o dom (8wpov)) ou o altar que santifica o dom?».
14 Pio-Gonçalo Alves de Sóusà
«Que ninguém sem contar com o bispo, faça nada de quanto diz
respeito à Igreja. Deve considerar-se válida a eucaristia celebrada
pelo bispo ou a quem este autorize. (Onde estiver o bispo está aí
a multidão, do mesmo modo que onde estiver Jesus Cristo aí está
a igreja católica). Sem o bispo (sem contar com o bispo) não
é lícito baptizar nem realizar o agápe; mas o que ele aprovar, é
o que agrada a Deus, para que seja seguro e válido tudo o que
realizar» 1S.
relação ao nosso tema: a Eucaristia «diz respeito à Igreja». Com efeito, mencio
nasse imediatamente depois a Eucaristia como uma concretização desta afirmação
geral. Além disso, na segunda parte do texto, diz-se expressamente que «sem
o bispo não é lícito baptizar nem realizar o ágape». O ágape deve relacionar-se,
aqui, directamente com a Eucaristia I6. A Eucaristia é, pois, uma das realidades
que, segundo a expressão do autor, «diz respeito à Igreja» e ninguém ({xijSeíq)
a pode celebrar «à margem (xwpíç) do bispo» 17. E quem são os que, pelo
menos com relação à Eucaristia, não actuam à margem do bispo?
Encontramos, até certo ponto, a resposta neste mesmo texto: são aqueles
a quem o bispo manda, dá poder 18. O autor abunda nesta mesma ideia, refe
rindo-se ao baptismo e ao agápe (Eucaristia), mediante a utilização do verbo
8oxtp,áÇcu que expressa a aprovação para um ofício eclesiástico19. Sem essa
aprovação actua-se «sem contar com o bispo», já que não se pode livremente
(oúx é^óv ecttlv) 20 permitir baptizar ou celebrar o ágape.
E em que consiste exactamente esta aprovação?
Não encontramos, neste lugar, elementos suficientes para formular uma
resposta precisa. Contudo, se temos diante dos olhos a totalidade dos escritos
conhecidos de S. Inácio, não podemos deixar de pensar que essa aprovação se
situa dentro do quadro da hierarquia tripartida, tema meridianamente claro no
nosso autor21.
Uma vez assentes estes pressupostos podemos perguntar-nos: a afirmaçã»
«deve considerar-se válida a eucaristia celebrada pelo bispo ou a quem este
autorize» terá um sentido exclusivo?
Sendo esta uma das coisas que «diz respeito à Igreja» e que portanto não
pode ser feita «sem contar com o bispo», se não goza positivamente desta
última condição, ainda que externamente reproduza uma acção válida, deve
considerar-se inválida. Com efeito o texto grego (mais que a tradução que
apresentamos) corrobora bastante claramente esta interpretação: «deve consi
derar-se válida aquela (éxeívq) eucaristia...». Este adjectivo determina bem de
que eucaristia se trata; outorga-lhe um sentido realmente exclusivo.
16 Como afirma FUNK, Ibidem, p. 283, o facto de que S. Inácio una o baptismo
e o ágape pode querer recordar «os principais ministérios do bispo ou os grandes sacra
mentos da Igreja» e, nesse caso, áyaTtr) diria relação à Eucaristia e não ao convívio dos
cristãos antes da ceia do Senhor.
17 Xwpíç significa à margem de, separadamente, à parte: BAILLY, o. c., p. 2165.
Cfr. Ibidem, p. 782, significado do verbo èKiTpépco.
” Cfr. Didajé, XV, 1, FUNK, o. c., p. 32 e 34; I CLEMENTIS, Ad Cor. XLII, 4.
Ibidem, p. 152.
20 cfr. BAILLY, o. c., p. 702.
21 Cfr., v. g„ RUIZ BUENO, o. c„ p. 421-424.
16 Pio-Gonçalo Alves de Sôusa
22 pePaíoç, falando de coisas, significa seguro, certo; por sua vez ào-paXVjç significa
firme, sólido: cfr. BAILLY, o. c., p. 354 e 296.
23 Cfr. CAMELOT, o. c., p. 17-20.
A Eucaristia em S. Inácio de Antioquia 17
Este texto, que pela sua estrutura literária nos recorda o texto escriturístico
de Eph 4, 1-6, tem presente a Eucaristia como sacramento de unidade.
Está fora de dúvida que neste lugar o substantivo EÚxaptcrTÍa se utiliza já
como termo técnico, o que aliás sucede praticamente sempre em S. Inácio25. Não
esqueçamos o contexto antidocético em que nos movemos. Os fautores desta
heresia sentiam, por coerência, uma absoluta necessidade de abandonar as cele
brações cristãs, porque eram verdadeiramente eucarísticas. A recomendação de
unidade de S. Inácio deve visar logicamente as celebrações eucarísticas e não só
de acção de graças. Além disso a menção imediata da carne e sangue de Cristo
ajuda a situar-nos definitivamente num contexto eucarístico.
Esta recomendação de S. Inácio — o texto que estudamos em toda a sua
extensão — que à primeira vista pode parecer desorientadora, encerra um
profundo significado: alude, por um lado, ao facto histórico da separação,
também de culto, dos docetas e, por outro, ao tema da unidade centrando-se na
Eucaristia.
A preocupação dos cristãos em usar duma só Eucaristia vem expressada pelo
verbo (TTCOuSáÇw. Este verbo, pelo seu conteúdo, exige dos cristãos uma
preocupação incompatível com a busca de qualquer outra eucaristia: devem
apressar-se, ocupar-se activamente26 em buscar píqc EÚxapumqç. Esta recomen
dação, e precisamente neste contexto antidocético, alude claramente à existência
de outras celebrações pretensamente eucarísticas. E dizemos pretensamente euca
rísticas porque segundo o raciocínio do autor é nula a sua entidade. Com efeito
os docetas ao afastar-se das celebrações eucarísticas cristãs buscavam outra euca
ristia, consentânea com os seus esquemas cristológicos que falavam de outra carne
de Cristo: uma carne de Cristo que era aparência (Óoxéco) de carne. A «sua»
eucaristia era aparência de Eucaristia e não verdadeira Eucaristia: esta é uma só
(EÚxapiaTÍqc), porque (yáp) não há mais que uma carne de Cristo (pia ...
aápÇ); para reunir o sangue de Cristo (eíç evwoxv tou aípaxoç aúxoC) não há
24 «ErcouSátrare ouv ptç EÚxapLcrTÍqc xpíjo-Oaf pia yàp cràpt; toú xupíou
Itjo-oú XpuTTOÚ xal -tcottjplov eíç Çvwctlv tou atpaxoç aúxou, 2v OutnacrT^piov, <l)ç
clç éKÍcrxoKOç ápa Tip •rcpEaPuTEpícp xat Siaxóvotç toiç auv8oúkou; pou* tva, éàv
'TCpácrcrrjTE, xaxà 0eòv içpáaariTE.» Phil. IV, FUNK, o. c., p. 266.
25 Cfr. também supra.
26 BAILLY, o. c., p. 1780.
2
18 Pio-Gonçalo Alves de Sousa
mais que um cálice (ev TOvrjpLOv). Pode haver outros cálices, como há outras
eucaristias, mas não reúnem o sangue de Cristo.
A verdade deste pão e deste vinho, a sua verdade eucarística, depende da
relação com a hierarquia: há um só altar (ev Ouoxacrrqpiov), uma só hierarquia
(eiç ErcÚTXOTtoq). Este é o segredo para que «o que fizerdes o façais segundo
Deus».
O tema do altar aparece com certa frequência 27
27 nos escritos de S. Inácio.
Assim, na carta aos Efésios, ao falar do bispo como centro de unidade afirma
que «se alguém não está dentro do altar priva-se do pão de Deus» 28.
Também na carta aos cristãos de Trales chama a atenção para o perigo da
infiltração da heresia e a consequente necessidade da união com o bispo:
O paralelismo da parte final deste texto com Act 2,46 e 20,7 35 e Io 6,50
-51 confirma o seu carácter eucarístico. Mas antes de examinar a virtude deste
pão vejamos os pilares em que assenta a dimensão eucarística desta reunião.
Não se trata duma mera aglomeração de pessoas: estes cristãos reunem-se na
graça de Deus, numa única fé e em Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro
Deus. Isto é o que dá coesão e unidade e explica a possibilidade desta reunião.
Mas o que é que, duma maneira mais imediata, reune a estes cristãos?
A fracção do pão «sob» um bispo com o seu presbitério. Haverá que
explicar o conteúdo da preposição «sob» que encerra, neste lugar, os matizes
da conexão Eucaristia/Hierarquia. Está claro que a fracção do pão se realiza
num acto em que está presente a hierarquia. Mas por quê se reúnem os cristãos?
33 «Está bem, não só chamar-se cristãos, mas sê-lo também; não como alguns que
mencionam o nome do bispo (È7ucrxo~ov), mas depois fazem tudo sem contar com ele.
Não me parece que estes tenham boa consciência já que não se reúnem legitimamente
conforme está mandado (8ià tò pr] 0E0al(jOç xax’ évtoXt)V auva0poíÇEa0ai)» Magn. IV,
FUNK, o. c.t p. 232 e 234.
34 «MáXicrra éàv ó xupióç poL àTtoxaXúipn, otl ol xax’ ávSpa xotvfi •rcávTEç èv
xàpLTt éÇ òvópaTOç <ruvépXE(T0E èv pxçc tcío-tel xal èv ,lT)aou Xpurrcp, Ttp xatà
aápxa éx yévouç Aaví8, Ttp ulcp àv0púitou xal utcp 0eou, eIç tò ÚTtaxoÚEiv upãç
âmcrxÓTtcp xal tq) 'rcpEapuTEpítp àrcEpuntácrnp Siavolqc, Eva ápxov xXwvteç, ècruv
cpáppaxov à0avacrlaç, àvxlSoToç tou p^ àKo0avEiv, àXXà Çfjv év Xptçttp ôià
TtavTÓç.» Eph. XX, 2, FUNK, o. c., p. 230.
35 Para o sentido eucarístico destes textos escriturísticos, cfr. J. DUPONT, Les Actes
des Apôtres, 3.“ ed., éd. du Cerf, Paris 1964 p. 51.
20 Pio-Gonçalo Alves de Sòusa
Quando foi realizado este trabalho, o Autor era bolseiro da Fundação Calouste
Gulbenkian.