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Escrever sobre S. Inácio de Antioquia apresenta-se, de entrada, como um
objectivo especialmente ousado e especialmente agradável. Ousado, na medida
em que não é fácil um contacto ideológico objectivo com qualquer dos Padres
Apostólicos. O mundo doutrinal em que se movem, que sabe porque vive, resulta
especialmente rebelde a uma sistematização. Além disso, duma maneira ou de
outra, todos estes escritos têm sido já tema das mais diversas análises, desde
os mais diversos pontos de vista. Ao voltar sobre eles impõe-se evitar um duplo
perigo: repetir pura e simplesmente considerações de outros autores; abrir
caminhos demasiado novos que se afastem não só dos comentaristas anteriores
mas também do próprio pensamento do autor em questão.
As características especiais destes escritos e a sua importância fazem, con­
tudo, que uma e outra vez se esqueçam estes riscos e se procure a sua reinter-
pretação total ou parcial. A possibilidade dum contacto directo com esses
monumentos qualificados da Tradição viva da Igreja é suficiente para vencer
qualquer espécie de inibição.
O estudo da pessoa e obra de S. Inácio de Antioquia enquadra-se perfeita­
mente nesta demarcação. Concretamente a sua doutrina sobre a Eucaristia,
exposta duma maneira ocasional e assistemática nas cartas escritas a caminho
do martírio em Roma, é uma prova desta afirmação. Inácio, num tom
familiar, vai recordando às distintas comunidades, a quem se dirige, alguns
aspectos da doutrina cristã pacificamente vividos dentro da Igreja. Mas come­
çavam a levantar-se já vozes discordantes: os docetas com a sua particular con­
cepção cristológica punham em perigo a doutrina eucarística e a unidade da
mesma Igreja. Diante deste inimigo comum, saído do próprio seio da Igreja,
S. Inácio não faz mais (e já é muito) que, partindo da doutrina-vida dos fiéis,
apontar as consequências deste desvario ideológico-cristológico dos docetas.
10 Pio-Gonçalo Alves de Sousa

Assim, ao conhecer o que não admitiam os docetas, sabemos o que viviam os


cristãos: uma fé inquebrantável na presença real de Cristo na Eucaristia; a
união com a Hierarquia como condição indispensável para a realização da
Eucaristia.
Partindo do texto de Rom. VII, 3, enriquecido depois pela análise de
Smyrn. VII, 1, ocupar-nos-emos em primeiro lugar no estudo da presença real.
O docetismo, tema de fundo à volta do qual gravitam as considerações de
S. Inácio, ao mesmo tempo que ajuda a descobrir qual era a fé dos cristãos na
Eucaristia introduz a questão das relações com a Hierarquia. Em que medida
se deve contar com o bispo e quais são as consequências de uma possível ruptura
com a Hierarquia?
Procuraremos responder a esta e a outras perguntas, pondo de manifesto
o pensamento de S. Inácio.

PRESENÇA REAL

S. Inácio tem vivas ânsias de que chegue o momento do martírio. Teme,


contudo, que os cristãos de Roma intercedam por ele privando-o desse modo
da possibilidade de gozar rapidamente da visão do Pai Celeste. Esta vida para
ele já não tem sentido:

«Não me deleito com o alimento de corrupção nem com os


prazeres desta vida. Quero o pão de Deus, que é a carne de
Jesus Cristo, que é da linhagem de David, e quero como bebida
o seu sangue, que é amor incorruptível» L

Quando S. Inácio afirma que quer o pão de Deus poder-se-ia pensar num
alimento para depois da morte, uma vez que os prazeres desta vida e os alimen­
tos de corrupção não o deleitam. Com efeito, alguns autores2 falam dum
realismo eucarístico como pressuposto de linguagem simbólica. Mas também

1 «Oux ‘nSoixat Tpocpfj <p9opãç oú5è tou 0íou toútou. "Apxov 0eoú 0éXw,
6 écmv aàpÇ Tr)ffov Xpiffxou, tou éx azÉp^aToç Aauí6, xal rcópa 0éXw tò aíp.a aúxou,
6 éctlv àyáTVf] OTiéppaTOç» Rom. VII, 3, F. X. FUNK, Paires Apostolici, in Lib. H. Laupp,
Tubingae 1901, p. 260. Para a tradução dos textos de S. Inácio utilizamos também T.
CAMELOT, Igfiace d’Antioche> Lettres, 3e ed., Sources Chrétiennes, éd. du Cerf, Paris
1958 e D. RUIZ BUENO, Padres Apostólicos, 2.* ed., BAC, Madrid 1967.
2 Cfr. FUNK, o. c., p. 261; CAMELOT, o. c., p. 136 e 54-55,
A Eucaristia em S. Inácio de Antioquia 11

se pode pensar noutra explicação na qual se destaca mais directamente este


realismo eucarístico: considerar este texto precisamente como uma justificação
do seu desejo de martírio. Agora já não o deleita o alimento de corrupção nem
os prazeres desta vida: somente a carne e o sangue de Cristo lhe servem de
alimento. Nesta situação, que encontra ele de tipicamente terreno que o prenda
a esta vida?
De qualquer modo a existência dum contexto marcadamente eucarístico
parece ser algo inegável. A menção do «pão de Deus» obriga-nos a pensar
imediatamente em Io 6,33, de quem depende em tantos pontos S. Inácio3: «o
pão de Deus (ó yàp áproç tou 0eou) é o que desce do céu e dá a vida ao
mundo». Este alimento — pão e bebida — é a carne e o sangue de Cristo: real,
como real é o alimento corruptível; mas incorruptível, por contraste com o
alimento corruptível desta vida e pela identificação do sangue com o amor
incorruptível (àráiw) àcpBapxoç) 4. Além da razão de contraste, o autor
reafirma a realidade deste alimento divino mediante a confissão dum pressu­
posto fundamental: a verdade da humanidade de Cristo «que é da linhagem de
David» (cfr. Io 7,42; Rom 1,3; 2 Tim 2,8). Interessa-lhe reafirmar com toda
a clareza este princípio sem o qual a Eucaristia correria o perigo de ser consi­
derada como uma mera «aparência». Este perigo, com todas as consequências,
está latente nas cartas de S. Inácio. Dirigindo-se aos cristãos de Esmirna mantém,
com mais clareza ainda, uma unidade de pensamento. Com efeito ao falar da
Eucaristia, escreve:

«Afastam-se também da eucaristia e oração, pela qual não con­


fessam que a eucaristia é a carne do nosso Salvador Jesus Cristo
que (a carne) padeceu pelos nossos pecados, a que pela sua bon­
dade o Pai ressuscitou. Os que, pois, contradizem o dom de
Deus morrem disputando; a estes ser-lhes-ia melhor celebrar o
ágape para que assim ressuscitem» 5.

3 Cfr. RUIZ BUENO, o. c.t p. 384-392.


4 Partindo da realidade do sangue de Cristo, nos encontramos com esta identificação
enriquecedora: «é amor incorruptível», talvez porque dar a vida por alguém é a máxima
prova de amor (cfr. Gen 42,22; 27,4.24.25; Lc 11,50; Act 22,20). Cfr. também Trall.
VIII, 1 e Smyrn. I, 1, FUNK, o. c.> p. 248 e 274.
5 «EúxapLtTTÍaç xal irpocrEux^Ç àrcéxovTai, 6ià tò pi) ôpokoYEÍv ttjv eúxapWTÍav
aápxa Eivai tou awTfjpoç fjpwv IrjcroO XpLffxov t?)v Ú7tèp tóóv àpapTtwv f)pâ)v
TraGouaav, fjv Tf) XPTl°''r^TTlTL ò tcoctt^p TÍYEipEV. Oí ouv àvTiXéyovTEç Tf) ScopEçc tou
0eou (TuÇtitouvteç àTtoOvfjcrxouo-Lv. SuvécpEpEV 8è aÚTOtç àvaitàv, t'va xai àvacrTwacv.»
Smyrn. VII, 1, FUNK, o. c., p. 280 e 282.
12 Pio-Gonçalo Alves de Sousa

O contexto doceta em que nos movemos introduz-nos mais directamente


no tema da fé dos primeiros cristãos na presença real de Cristo na Eucaristia e
da necessidade da união com a hierarquia.
Os docetas não frequentavam6 por razões doutrinais as reuniões cristãs,
neste caso «EÚxapuTTÍaq xat Ttpoo-EUXTÍq». Estes dois substantivos unidos por
xaí, sem artigo, constituem um todo. Eúxapurría não expressa neste lugar
primariamente uma ideia de acção de graças 7, tem já um valor técnico como se
vê pela frase seguinte: «a eucaristia é a carne do nosso Salvador Jesus Cristo».
Por sua vez tzpoctevxt] tanto pode significar oração como lugar de oração8.
Contudo, qualquer que seja a interpretação que se dê a este vocábulo, não
influi duma maneira sensível no valor deste texto.
Detenhamo-nos na análise das causas e consequências deste afastamento
dos docetas. A causa única desta atitude, pelo menos neste contexto, radica na
concepção docética do corpo de Cristo. Estes herejes «recusavam admitir que
Jesus Cristo tivesse sido um homem verdadeiro, possuindo um corpo de carne
como o nosso, e consideravam consequentemente pura ilusão ou aparência enga­
nosa o que os Evangelhos contam e o que a Igreja ensina quer sobre a con­
cepção humana de Cristo, o seu nascimento e a sua vida, quer sobre os seus
sofrimentos, a 'sua morte e a sua ressurreição» 9. Partindo destes pressupostos
não podiam logicamente deixar de negar a realidade da Eucaristia. Por isso
(8ià tó) afastavarmse das reuniões cristãs e realizavam por conta própria as
suas celebrações10. Afastavam-se para não confessar (óp,oXoYÉco) a Eucaristia e
de facto não a confessavam, não só porque essa era a sua intenção mas também
porque o mero afastamento leva consigo a não confissão, como veremos poste-
riormente.
Notemos desde já como esta atitude põe em relevo a verdadeira fé dos
cristãos na Eucaristia: era tão clara e os docetas conheciam-na tão perfeita­
mente que por coerência com a sua doutrina cristológica sentem verdadeira
necessidade de abandonar as celebrações cristãs. A confissão cristológica marcava
a confissão eucarística.

6 O verbo àvcéxco em sentido intransitivo expressa um afastamento físico: cfr. A.


BAILLY, Didionnaire Grec-Français, rev. por L. SÉCHAN-P. CHANTRAINE, lib. Hachette,
Paris 1950, p. 213.
7 Em Ephes. XIII, 1 este termo está ainda muito próximo do significado exclusivo
de acção de graças: cfr. CAMELOT, o. c., p. 52 e 82 nota 1.
8 Cfr. BAILLY, o. c., p. 1664.
9 G. BAREILLE, Eocétisme, em DTC, 1484.
10 Cfr. Ephes. XX, 2; Magn. IV; Philad. IV; Smyrn. VIII, 1-2: FUNK, o. c., p. 230,
232 e 234, 266, 282,
A Eucaristia èm S. Inácio de Àntioquia 13

Além da ideia, já clara, da realidade da Eucaristia 11 que outros porme­


nores aporta S. Inácio no momento de expressar a fé eucarística dos primeiros
cristãos?
A segunda parte deste texto tem um valor complementar, que se com­
preenderá com relativa facilidade à luz do que já examinámos: um contexto
claramente eucarístico.
A carne de Jesus Cristo é a mesma (aápxa ... Trjv) que padeceu e ressus­
citou. É o dom de Deus (vn SojpEQ' tou Geou). No diálogo de Jesus com a
Samaritana {Io 4,10), onde se utiliza esta mesma expressão, o «8o)péa toú
Geou» interpreta-se simplesmente como ocasião dum encontro com Deus 12. Não
existe, neste lugar, nenhuma relação com um contexto eucarístico B. Contudo
essa expressão vem a manifestar uma realidade que coincide de algum modo
com o conteúdo da Eucaristia: um encontro pessoal com Deus. Com razão,
pois, o autor relaciona essa expressão com esta realidade. Com efeito a oposição
(àvTikEYOVTEq) a este dom une-se à morte (à-oSvTjcrxouoxv), paralelamente ao
que afirma S. João (Io 6,50) no discurso do pão da vida: «o que come deste
pão não morrerá eternamente». Também a relação Eucaristia-vida (cfr. Io
6,50s) bem como todo o contexto anterior leva-nos a interpretar o verbo

11 Esta convicção é tão forte que aflora noutros lugares em contextos aparentemente
inadequados. Assim, em Trall. VIII, 1, FUNK, o. c., p. 248, afirma: «regenerai-vos a vós
mesmos na fé, que é a carne do Senhor (6 e(Ttlv cràpÇ toõ xvpiou), e na caridade, que e
o sangue de Jesus Cristo (6 éaxiv alpa Tirçffou Xpurrou)». «A carne de Jesus Cristo, a sua
verdadeira carne, verdadeiramente imolada, é a fé do cristão e o seu sangue derramado,
penhor supremo dum amor incorruptível, é a sua bebida (Row. VII, 3). Deste modo não
há razão para perguntar se tais passagens têm uma significação propiamente eucarística;
não fazem senão recordar, sob imagens tiradas dos usos da liturgia eucarística, que o
primeiro objecto da fé e do amor do cristão, é a realidade da carne e do sangue de Cristo,
e que nesta fé encontra a vida ... Ver no sangue de Cristo o símbolo do seu amor e da
nossa caridade para com Ele, não é negar que o cálice seja a taça que nos une realmente
ao seu sangue, e que o pão eucarístico seja a verdadeira carne do Senhor» CAMELOT,
o. c., p. 54-55. Cfr. também Ephes. XIV, 1 e Smyrn. VI, 1, FUNK, o. c., p. 224 e 280. —
Em Phil. V, 1, FUNK, o. c., p. 268 afirma confiar na oração dos cristãos de Filadélfia para
alcançar a misericórdia que lhe coube em sorte «refugiando-me no evangeho como na carne
de Jesus EuayYEXúp wç crápxl Tqorou)». Seguindo a Camelot (Ibidem) podemos
efectivamente falar de «símbolos eucarísticos que supõem o realismo da fé eucarística; o
simbolismo não exclui o realismo, supõe-no e encontra nele o seu fundamento».
Cfr. S. GAROFALO, II Vangelo di S. Giovanni em La Sacra Biblia, III, Marietti,
Torino 1964, p. 227.
13 ~
Em Mt 23,19 aparece Swpov (não Scupéa) num contexto litúrgico-sacrificial:
«Cegos, que vale mais, o dom (8wpov)) ou o altar que santifica o dom?».
14 Pio-Gonçalo Alves de Sóusà

àyairáw em sentido eucarístico. Optando por esta interpretação14 encontra-


mo-nos de novo com uma referência a essa ideia anteriormente sublinhada: a
relação Eucaristia-vida (ágape-ressurreição).

UNIÃO COM A HIERARQUIA

Tínhamos dito anteriormente que os docetas se afastavam das celebrações


cristãs como reacção contra uma verdadeira confissão eucarística. Logravam este
objectivo não só pela intencionalidade da sua atitude, mas também porque o
mero afastamento levava consigo a não confissão. Abundando neste tema
S. Inácio escreve:

«Que ninguém sem contar com o bispo, faça nada de quanto diz
respeito à Igreja. Deve considerar-se válida a eucaristia celebrada
pelo bispo ou a quem este autorize. (Onde estiver o bispo está aí
a multidão, do mesmo modo que onde estiver Jesus Cristo aí está
a igreja católica). Sem o bispo (sem contar com o bispo) não
é lícito baptizar nem realizar o agápe; mas o que ele aprovar, é
o que agrada a Deus, para que seja seguro e válido tudo o que
realizar» 1S.

A primeira frase deste texto é absolutamente taxativa («p/qSEÍç ... tl


TtpacraÉTW») e marca-o em toda a sua extensão.
Para conseguir uma penetração objectiva no pensamento de S. Inácio,
neste lugar, é necessário responder previamente a duas perguntas: Que extensão
tem a afirmação «quanto diz respeito à Igreja»? Que significa «sem contar
com o bispo»?
O autor não nos oferece neste lugar elementos suficientes para dar uma
resposta completa a esta pergunta. Temos, contudo, os elementos bastantes com

M FUNK, o. c., p. 280-281 e CAMELOT, o. c., p. 160-161 traduzem por amar,


praticar a caridade.
15 «MijSdç xwpL; tou èitiaxÓTtou ti Ttpaao-ÉTW twv àviqxóvTwv eIç ti?)v éxxXTQaíav.
’Exeívt) Pegaía EÚxapWTÍa ^yeI<t0w, V) úitò émcrxoKov ouaa £ áv aÚTÒç é^iTpéilm- 2.
Òtcou áv <pavf] ò émaxoTtoç, éxEÍ tò 7cXf)0oç ^tw, tócrrap 8kou áv fj XpicrTÒç Tqaouç,
éxEÍ -f) xa0oXix?) éxxX^aía. Oux éÇóv écrTLV x^pCç toú émo-xÓTwu oute parcTÍÇEiv oute
àyáTvnv TioiEÍv áXX’ õ &v éxEÍvoç Soxqxácrn, toúto xal Ttp 0Etp EÚápECTTOV, tva
àacpaXèç fi xal péflatov rcãv, 8 TcpácraETai» Smyrn. VIII, 1-2, FUNK, o. c., p. 282.
À Êucaristia èm S. tnàcio de Àntioquia Í5

relação ao nosso tema: a Eucaristia «diz respeito à Igreja». Com efeito, mencio­
nasse imediatamente depois a Eucaristia como uma concretização desta afirmação
geral. Além disso, na segunda parte do texto, diz-se expressamente que «sem
o bispo não é lícito baptizar nem realizar o ágape». O ágape deve relacionar-se,
aqui, directamente com a Eucaristia I6. A Eucaristia é, pois, uma das realidades
que, segundo a expressão do autor, «diz respeito à Igreja» e ninguém ({xijSeíq)
a pode celebrar «à margem (xwpíç) do bispo» 17. E quem são os que, pelo
menos com relação à Eucaristia, não actuam à margem do bispo?
Encontramos, até certo ponto, a resposta neste mesmo texto: são aqueles
a quem o bispo manda, dá poder 18. O autor abunda nesta mesma ideia, refe­
rindo-se ao baptismo e ao agápe (Eucaristia), mediante a utilização do verbo
8oxtp,áÇcu que expressa a aprovação para um ofício eclesiástico19. Sem essa
aprovação actua-se «sem contar com o bispo», já que não se pode livremente
(oúx é^óv ecttlv) 20 permitir baptizar ou celebrar o ágape.
E em que consiste exactamente esta aprovação?
Não encontramos, neste lugar, elementos suficientes para formular uma
resposta precisa. Contudo, se temos diante dos olhos a totalidade dos escritos
conhecidos de S. Inácio, não podemos deixar de pensar que essa aprovação se
situa dentro do quadro da hierarquia tripartida, tema meridianamente claro no
nosso autor21.
Uma vez assentes estes pressupostos podemos perguntar-nos: a afirmaçã»
«deve considerar-se válida a eucaristia celebrada pelo bispo ou a quem este
autorize» terá um sentido exclusivo?
Sendo esta uma das coisas que «diz respeito à Igreja» e que portanto não
pode ser feita «sem contar com o bispo», se não goza positivamente desta
última condição, ainda que externamente reproduza uma acção válida, deve
considerar-se inválida. Com efeito o texto grego (mais que a tradução que
apresentamos) corrobora bastante claramente esta interpretação: «deve consi­
derar-se válida aquela (éxeívq) eucaristia...». Este adjectivo determina bem de
que eucaristia se trata; outorga-lhe um sentido realmente exclusivo.

16 Como afirma FUNK, Ibidem, p. 283, o facto de que S. Inácio una o baptismo
e o ágape pode querer recordar «os principais ministérios do bispo ou os grandes sacra­
mentos da Igreja» e, nesse caso, áyaTtr) diria relação à Eucaristia e não ao convívio dos
cristãos antes da ceia do Senhor.
17 Xwpíç significa à margem de, separadamente, à parte: BAILLY, o. c., p. 2165.
Cfr. Ibidem, p. 782, significado do verbo èKiTpépco.
” Cfr. Didajé, XV, 1, FUNK, o. c., p. 32 e 34; I CLEMENTIS, Ad Cor. XLII, 4.
Ibidem, p. 152.
20 cfr. BAILLY, o. c., p. 702.
21 Cfr., v. g„ RUIZ BUENO, o. c„ p. 421-424.
16 Pio-Gonçalo Alves de Sôusa

Mas qual é a qualificação exacta de todas essas celebrações que, perten­


cendo ao grupo das coisas que «dizem respeito à Igreja», são realizadas à
margem do bispo?
Encontramo-nos com dois adjectivos e uma expressão que, indirectamente,
as qualificam: PePocíoç, àcrcpakTjç e «6 áv ... touto».
BEPaíoç e áoxpaXVjç coincidem no seu significado fundamental — estabili-
dade 22 —, complementando-se, como também dá a entender o nosso autor ao
utilizá-los unidos pela conjunção xaí no fim do texto que estamos a estudar.
BE@aíoç aplica-se primeiro à Eucaristia e depois, juntamente com àcrcpakifc, a
tudo o que estiver aprovado pelo bispo. Portanto a celebração eucarística que
for feita à margem do bispo, ou tudo o que devendo ter a sua aprovação carece
dela, não goza de estabilidade. Mas qual é o alcance real desta instabilidade?
Parece-nos bastante saber (cremos por outra parte, que o texto não diz
mais) que ninguém, sem contar com o bispo, pode fazer nada de quanto diz
respeito à Igreja. Numa carta23 dos primeiros anos do séc. II cujo conteúdo
se situa num ambiente duma profunda intimidade, este mandato parece suficien­
temente explícito e determinante.
Analisemos, finalmente, a expressão «o que o bispo aprovar (o áv ...), é
o que ('rouxo) agrada a Deus». Existe uma correspondência literária entre o e
touto, circunstância que confere à frase um sentido de exclusividade: somente
o que o bispo aprovar é agradável a Deus. Não se nega a possibilidade da
realização material, à margem do bispo, daquelas coisas que pertencem à Igreja:
de facto os docetas celebravam assim a eucaristia. Afirma-se simplesmente (e
suficientemente) que esse tipo de realizações cai fora do âmbito do agradável
(EÚápEcrrov) a Deus.
Insistimos: que valor podem ter essas acções não-agradáveis a Deus, con-
cretamente, as celebrações eucarísticas?
No § IV da carta aos cristãos de Filadélfia S. Inácio, depois de falar do
perigo da heresia (docetas), da ruptura com a Igreja, da desunião com o bispo,
responde mais pormenorizadamente a esta pergunta:

«Procurai vivamente usar duma só eucaristia; com efeito é uma


só a carne do Nosso Salvador Jesus Cristo e um o cálice para a
união do seu sangue; um só altar, assim como um só bispo com

22 pePaíoç, falando de coisas, significa seguro, certo; por sua vez ào-paXVjç significa
firme, sólido: cfr. BAILLY, o. c., p. 354 e 296.
23 Cfr. CAMELOT, o. c., p. 17-20.
A Eucaristia em S. Inácio de Antioquia 17

o presbitério e os diáconos, seus com-servos. Para que (assim), o


que fizerdes, que o façais segundo Deus» 24.

Este texto, que pela sua estrutura literária nos recorda o texto escriturístico
de Eph 4, 1-6, tem presente a Eucaristia como sacramento de unidade.
Está fora de dúvida que neste lugar o substantivo EÚxaptcrTÍa se utiliza já
como termo técnico, o que aliás sucede praticamente sempre em S. Inácio25. Não
esqueçamos o contexto antidocético em que nos movemos. Os fautores desta
heresia sentiam, por coerência, uma absoluta necessidade de abandonar as cele­
brações cristãs, porque eram verdadeiramente eucarísticas. A recomendação de
unidade de S. Inácio deve visar logicamente as celebrações eucarísticas e não só
de acção de graças. Além disso a menção imediata da carne e sangue de Cristo
ajuda a situar-nos definitivamente num contexto eucarístico.
Esta recomendação de S. Inácio — o texto que estudamos em toda a sua
extensão — que à primeira vista pode parecer desorientadora, encerra um
profundo significado: alude, por um lado, ao facto histórico da separação,
também de culto, dos docetas e, por outro, ao tema da unidade centrando-se na
Eucaristia.
A preocupação dos cristãos em usar duma só Eucaristia vem expressada pelo
verbo (TTCOuSáÇw. Este verbo, pelo seu conteúdo, exige dos cristãos uma
preocupação incompatível com a busca de qualquer outra eucaristia: devem
apressar-se, ocupar-se activamente26 em buscar píqc EÚxapumqç. Esta recomen­
dação, e precisamente neste contexto antidocético, alude claramente à existência
de outras celebrações pretensamente eucarísticas. E dizemos pretensamente euca­
rísticas porque segundo o raciocínio do autor é nula a sua entidade. Com efeito
os docetas ao afastar-se das celebrações eucarísticas cristãs buscavam outra euca­
ristia, consentânea com os seus esquemas cristológicos que falavam de outra carne
de Cristo: uma carne de Cristo que era aparência (Óoxéco) de carne. A «sua»
eucaristia era aparência de Eucaristia e não verdadeira Eucaristia: esta é uma só
(EÚxapiaTÍqc), porque (yáp) não há mais que uma carne de Cristo (pia ...
aápÇ); para reunir o sangue de Cristo (eíç evwoxv tou aípaxoç aúxoC) não há

24 «ErcouSátrare ouv ptç EÚxapLcrTÍqc xpíjo-Oaf pia yàp cràpt; toú xupíou
Itjo-oú XpuTTOÚ xal -tcottjplov eíç Çvwctlv tou atpaxoç aúxou, 2v OutnacrT^piov, <l)ç
clç éKÍcrxoKOç ápa Tip •rcpEaPuTEpícp xat Siaxóvotç toiç auv8oúkou; pou* tva, éàv
'TCpácrcrrjTE, xaxà 0eòv içpáaariTE.» Phil. IV, FUNK, o. c., p. 266.
25 Cfr. também supra.
26 BAILLY, o. c., p. 1780.

2
18 Pio-Gonçalo Alves de Sousa

mais que um cálice (ev TOvrjpLOv). Pode haver outros cálices, como há outras
eucaristias, mas não reúnem o sangue de Cristo.
A verdade deste pão e deste vinho, a sua verdade eucarística, depende da
relação com a hierarquia: há um só altar (ev Ouoxacrrqpiov), uma só hierarquia
(eiç ErcÚTXOTtoq). Este é o segredo para que «o que fizerdes o façais segundo
Deus».
O tema do altar aparece com certa frequência 27
27 nos escritos de S. Inácio.
Assim, na carta aos Efésios, ao falar do bispo como centro de unidade afirma
que «se alguém não está dentro do altar priva-se do pão de Deus» 28.
Também na carta aos cristãos de Trales chama a atenção para o perigo da
infiltração da heresia e a consequente necessidade da união com o bispo:

«O que está dentro do altar é puro, mas o que está fora do


altar não é puro; quer dizer, o que faz alguma coisa sem contar
com o bispo e com o presbitério e com os diáconos esse é o
que não está puro de consciência» 29.

O altar, símbolo de unidade é para o sacrifício 31, de tal modo que se


alguém se aparta do altar, aparta-se do sacrifício e rompe a unidade. Portanto,
da mesma maneira que se alguém está fisicamente longe do altar não pode
comer o pão eucarístico (maximamente -se se aparta para não comer), assim se
alguém rompe a unidade não pode receber o alimento divino. Partindo do facto
da existência e recepção do pão eucarístico afirma-se não só a necessidade duma
proximidade física, mas também duma compenetração total e profunda entre
os fiéis e o altar32. E em que consiste, mais em concreto, essa compenetração
com o altar?
Consiste na união com a hierarquia. Com efeito a relação compenetração
com o altar/pureza de consciência é explicada (tout forro) pela relação pureza

27 Cfr. também Magn. VII, 1-2, FUNK, o. c., p. 234-236.


n «’Eàv pr) tlç fj êvxòc; tou ôuaiatTTTjpíou, úaxEpEÍhraL tou ápxou tou ®eoú»
Eph. V, 2, FUNK, o. c., p. 216.
29 «’0 ivxbç ôuaiatTTTQpíou tóv xaôapóç ècrziv ó 8è éxxòç GuaiacrTTQpíou wv ou
xaOapóç écrav tout’ ectlv, ò Xtoplç émcrxÓTtou xal irpEcrPuTEpíou xal 6iaxóvu>v irpáaawv
ti, outoç oú xaôapóç écmv 'rfj ctuvelStío-el» Trall. VII, 2, FUNK, o. c., p. 246 e 248.
30 Cfr. Magn. VII, 2, FUNK, o. c., p. 236.
31 ©uaxacrvTjpiov: cfr. BAILLY, o. c., p. 951.
31 A tradução de èvxóç por «dentro» pode resultar um tanto chamativa (cfr. BAILLY,
o. c., p. 689-690). Contudo, é a que mais se aproxima à ideia que o autor quer expressar
neste contexto.
À Eucaristia em S. Inácio de Àntioquia 19

de consciência/união efectiva com a hierarquia33. E que se necessita para des-


fazer essa compenetração?
Basta alguma coisa (tl) feita sem contar (xwpíç) com a hierarquia. Esse
«algo» realizado nessas condições é suficiente para manchar a consciência e
portanto situar a pessoa fora do âmbito do altar, da unidade. Ao mesmo tempo,
e pela mesma razão, esta pessoa afasta-se do pão de Deus, separa-se do pão
eucarístico.

Com razão, pois, S. Inácio desejaria saber do Senhor que «cada um em


particular e todos em conjunto vos congregais na graça que vem do seu nome
numa única fé e em Jesus Cristo. Que 'segundo a carne é da linhagem de David',
filho do homem e filho de Deus, — para obedecer ao bispo e ao presbitério com
espírito atento partindo um único pão, que é remédio de imortalidade, antídoto
para não morrer, mas para viver para sempre em Jesus Cristo» 34.

O paralelismo da parte final deste texto com Act 2,46 e 20,7 35 e Io 6,50
-51 confirma o seu carácter eucarístico. Mas antes de examinar a virtude deste
pão vejamos os pilares em que assenta a dimensão eucarística desta reunião.
Não se trata duma mera aglomeração de pessoas: estes cristãos reunem-se na
graça de Deus, numa única fé e em Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro
Deus. Isto é o que dá coesão e unidade e explica a possibilidade desta reunião.
Mas o que é que, duma maneira mais imediata, reune a estes cristãos?
A fracção do pão «sob» um bispo com o seu presbitério. Haverá que
explicar o conteúdo da preposição «sob» que encerra, neste lugar, os matizes
da conexão Eucaristia/Hierarquia. Está claro que a fracção do pão se realiza
num acto em que está presente a hierarquia. Mas por quê se reúnem os cristãos?

33 «Está bem, não só chamar-se cristãos, mas sê-lo também; não como alguns que
mencionam o nome do bispo (È7ucrxo~ov), mas depois fazem tudo sem contar com ele.
Não me parece que estes tenham boa consciência já que não se reúnem legitimamente
conforme está mandado (8ià tò pr] 0E0al(jOç xax’ évtoXt)V auva0poíÇEa0ai)» Magn. IV,
FUNK, o. c.t p. 232 e 234.
34 «MáXicrra éàv ó xupióç poL àTtoxaXúipn, otl ol xax’ ávSpa xotvfi •rcávTEç èv
xàpLTt éÇ òvópaTOç <ruvépXE(T0E èv pxçc tcío-tel xal èv ,lT)aou Xpurrcp, Ttp xatà
aápxa éx yévouç Aaví8, Ttp ulcp àv0púitou xal utcp 0eou, eIç tò ÚTtaxoÚEiv upãç
âmcrxÓTtcp xal tq) 'rcpEapuTEpítp àrcEpuntácrnp Siavolqc, Eva ápxov xXwvteç, ècruv
cpáppaxov à0avacrlaç, àvxlSoToç tou p^ àKo0avEiv, àXXà Çfjv év Xptçttp ôià
TtavTÓç.» Eph. XX, 2, FUNK, o. c., p. 230.
35 Para o sentido eucarístico destes textos escriturísticos, cfr. J. DUPONT, Les Actes
des Apôtres, 3.“ ed., éd. du Cerf, Paris 1964 p. 51.
20 Pio-Gonçalo Alves de Sòusa

A resposta encerra-se, fundamentalmente, nos termos «síç tò (maxoúsw


... xXwvteç». O objectivo, o centro material da reunião é a fracção do pão
(xXwvteç); mas os cristãos reunem-se obedecendo36 e o próprio facto de se
reunirem assim manifesta essa obediência que os une duma maneira efectiva37
com a hierarquia. Esta união, por sua vez, está na base da unidade do pão que
partem (cva áprov xXwvteç). Recordemos como os docetas se afastavam das
legítimas reuniões cristãs buscando «outra eucaristia»38.
E qual é a «virtude» deste pão?
Resumidamente, a sua «virtualidade» enfrenta-se directamente com a
morte: é cpáppaxov e àvTÍSoTOç. Cada um destes termos pode aludir a aspectos
distintos, mas complementares, dum mesmo influxo. Com efeito àvTÍSoTOç
significa antídoto, literalmente, algo que se dá contra 39; por sua vez <pápp,axov
significa unguento, preventivo, preparação mágica40. Mas o influxo da Euca­
ristia é ainda mais profundo e extenso. Não se situa simplesmente a um nível
negativo ou mesmo conservativo; influi também duma maneira directamente
positiva: pela Eucaristia (remédio e antídoto) se «vive para sempre em Jesus
Cristo»41. E é absolutamente lógica esta afirmação. Com efeito a Eucaristia
não é um simples remédio ou antídoto contra uma doença, mas contra a morte.
Portanto mais que um remédio ou antídoto é o remédio ou antídoto contra a
morte: é a Vida42.

Partindo da verdade da Humanidade de Cristo, S. Inácio situa as suas


considerações num contexto dum verdadeiro realismo eucarístico que, em alguns
lugares, serve de pressuposto a uma linguagem simbólica. O autor não só supera,
duma maneira clara, o risco da «aparência», mas também, servindo-se do pensa­
mento e consequentes atitudes dos docetas, manifesta a fé dos cristãos, vivida
pacificamente: a Eucaristia é, realmente, a carne e o sangue de Cristo. Pela

36 Yitaxoúto significa escutar baixando a cabeça, responder a um convite: BAILLY,


o. c., p. 1992 obediência dos leigos ao clero: cfr. Constitutiones Apostolorum, III, 8,3 e
VIII, 47, 74, F. X. FUNK, Didascalia et constitutiones Apostolorutn, I, Paderbomae 1905,
p. 199 e 586.
37 A expressão «àitEpurrcáffTtp Siavoíç:» manifesta precisamente o modo dessa
obediência: uma adesão contínua, serena (Cfr. BAILLY, o. c., p. 212).
38
Cfr. supra.
39 BAILLY, o.c., p. 178.
40 Ibidem, p. 2054-2055.
41 Cfr. Phil 1,21.
42
Cfr. Io 6,50-51.
A Eucaristia em S. Inácio de Antioquia 21

claridade da confissão eucarística cristã, os docetas sentiam-se obrigados a


afastar-se das -suas celebrações: afastavam-se para não confessar a Eucaristia e
procuravam outra eucaristia consentânea com os seus esquemas cristológicos. Por
outro lado, esta ruptura levava consigo necessariamente a não-confissão. Com
efeito, sendo a Eucaristia uma das coisas que diz respeito à Igreja, não pode
ser celebrada à margem do bispo. Somente os que tenham a aprovação do bispo
podem celebrar uma Eucaristia «estável», agradável a Deus. Portanto os cristãos
devem usar duma só Eucaristia, dum só altar. Deve existir uma compenetração
total e profunda entre os fiéis e o altar, entre os fiéis e a hierarquia.
A celebração da Eucaristia entre os cristãos não é uma mera aglomeração
de pessoas: reunem-se obedecendo e a sua obediência assim manifestada está
na base da unidade do «pão que partem».
O influxo da Eucaristia é não só preservativo e conservativo: pela Euca­
ristia vive-se para sempre em Jesus Cristo.

PIO-GONÇALO ALVES DE SOUSA

Quando foi realizado este trabalho, o Autor era bolseiro da Fundação Calouste
Gulbenkian.

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