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A Ceia do Senhor

A afirmação “isto é o meu corpo”, feita por Jesus pouco antes da sua paixão (Mt 26.26) é uma
das frases que mais têm originado debates ao longo da história da igreja. Na época da Reforma
Protestante, a falta de acordo acerca do seu real significado foi a causa do rompimento das
relações entre Lutero e Zuínglio, após o malfadado Colóquio de Marburgo (1529) e ainda hoje
o meio cristão permanece dividido acerca do modo como a Ceia do Senhor deve ser entendida,
tanto no tocante à sua natureza como no que diz respeito aos efeitos que produz sobre os que
participam dela.

Num dos extremos da discussão estão os que entendem a frase de Jesus de modo figurado,
dizendo que se trata apenas de uma metáfora, como se o Mestre tivesse dito simplesmente “Isto
representa o meu corpo”. No outro extremo do debate, há intérpretes que propõem uma visão
absolutamente literal, ensinando que os elementos da Ceia são, de fato, o corpo e o sangue reais
de Cristo, num sentido que encerra a sua mais completa essência. Entre esses dois polos há
interpretações intermediárias, propostas por teólogos que tentam compor uma opinião mais
equilibrada, fazendo uso de argumentos usados pelos dois extremos.

Basicamente, quatro são as concepções acerca da Ceia do Senhor dominantes do meio cristão:
transubstanciação, consubstanciação, presença espiritual e memorial. Cada uma dessas
propostas será brevemente apresentada a seguir.

A doutrina da transubstanciação é esposada pela Igreja Católica Apostólica Romana, sendo um


dos temas centrais de sua teologia e prática litúrgica. De acordo com essa visão, a ceia deve ser
ministrada ao povo num só elemento, a hóstia, nome dado a um pequeno pão sem fermento, de
formato arredondado. Esse elemento, dizem, após ser consagrado pelo sacerdote ministrante,
passa por uma transformação em sua substância (daí o termo transubstanciação), tornando-se,
literalmente, carne, sangue, ossos, unhas e cabelos de Cristo. Os católicos entendem que essa
transformação não é visível porque ocorre apenas na substância do pão e não nos
seus acidentes. Assim, conforme entendem, o elemento eucarístico, ainda que apresente em sua
forma e aparência os atributos do pão, é, na verdade, em sua essência, carne humana!

Uma das implicações da doutrina da transubstanciação é que sempre que a eucaristia é celebrada
no culto católico (e isso acontece em todas as missas), o sacrifício de Cristo se repete. Portanto,
se três missas forem realizadas num só domingo numa mesma catedral, naquele dia o sacrifício
de Cristo se repetirá ali três vezes, o mesmo ocorrendo em outras igrejas romanistas ao redor do
mundo. É essa suposta repetição contínua do sacrifício do Senhor que dá o motivo pelo qual as
igrejas católicas celebram sua ceia num altar e não numa mesa como fazem as igrejas
evangélicas.

A doutrina da transubstanciação também explica porque os padres, pelo menos há alguns anos,
orientavam os fiéis a não morder a hóstia, mas sim deixá-la dissolver-se na boca. Essa era uma
forma de tentar infundir nas pessoas ignorantes um entendimento maior acerca do suposto
mistério presente no “corpo eucarístico de Cristo”. Essa doutrina é ainda o fundamento pelo
qual os sacerdotes católicos tendem a fazer o “sepultamento” de hóstias consagradas que
sobraram após encerrada a missa. No seu entender, jogá-las fora seria sacrilégio cometido
contra o próprio corpo de Cristo e armazená-las não seria o modo digno de lidar com um
cadáver tão santo.

Os católicos acreditam que é somente graças ao milagre da transubstanciação que o homem


pode efetivamente conhecer Cristo como o pão da vida e se alimentar dele para viver
eternamente (Jo 6.48-58). Segundo eles, comer a hóstia consagrada ajudará o fiel a conquistar a
salvação, sendo imensos os benefícios espirituais que emanam da eucaristia.

Evidentemente, não há como sustentar essa concepção da ceia, nem lógica nem tampouco
biblicamente. Primeiro porque não faz sentido propor a hipótese de uma mudança de substância
sem uma consequente alteração nos acidentes, pois os acidentes de determinada substância
pertencem necessariamente a ela. Assim, não há como um pedaço de pão deixar de ser pão e
continuar com as células do pão. Negar isso seria contrariar as mais elementares noções de
lógica.

O absurdo dessa concepção também é percebido quando se leva em conta a própria história da
instituição da ceia. Ora, é óbvio que, quando o Senhor disse “isto é o meu corpo”, não estava
segurando um pedaço dele próprio. Com efeito, naquele momento o pão estava nas mãos de
Jesus, não era uma extensão de seus dedos.

A doutrina da transubstanciação, com todos os seus desdobramentos, também não leva em conta
ensinos fundamentais da Palavra de Deus. As Escrituras ensinam que o sacrifício de Cristo
ocorreu uma vez por todas, não havendo necessidade de que se repita (Rm 6.9-10; Hb
7.27; 9.12, 26, 28; 10.10; 1Pe 3.18).

Ademais, quando o Senhor afirmou ser o pão da vida, sendo necessário comer o seu corpo e
beber o seu sangue para ser salvo (Jo 6.48-58), não pretendia com isso ensinar algum tipo de
antropofagia, como entenderam seus ouvintes naquela ocasião (Jo 6.52). O que Jesus quis
ensinar no discurso registrado em João 6 deve ser entendido à luz do versículo 35. Esse
versículo revela a que Jesus se referiu quando fez alusão aos atos de comer sua carne e beber
seu sangue. De fato, João 6.35 apresenta Jesus como o Pão da Vida, destacando que quem vai a
ele se alimenta, e quem crê nele mata a sede. Logo, comer a carne de Cristo é buscá-lo;
enquanto beber seu sangue é crer nele. Alimenta-se, pois, do Senhor, o indivíduo que o busca e
deposita nele sua confiança para ser salvo. Este faz de Cristo sua comida e sua bebida, jamais
tendo fome ou sede outra vez.

Lutero e a consubstanciação

A doutrina da transubstanciação tem sua irmã gêmea no conceito de consubstanciação. Esse


segundo modo de interpretar a ceia do Senhor foi proposto inicialmente por Martinho Lutero
(1483-1546). Ele rejeitou a transubstanciação por considerá-la uma doutrina irracional e
também condenou o ensino de que o sacrifício de Cristo se repete na eucaristia. Porém, Lutero
não via possibilidade de interpretar a fórmula “Isto é o meu corpo” de outro modo que não fosse
o literal. Por isso, propôs que mesmo o pão continuando a ser pão e o vinho continuando a ser
vinho, a presença física de Cristo é real na ceia, sendo seu corpo recebido por todos os
participantes da mesa do Senhor.

Para Lutero, portanto, o corpo de Cristo estava nos elementos e com os elementos, sem que o
pão e o vinho se transformassem em carne e sangue. Assim, por propor que na ceia a substância
dos elementos é recebida pelo crente junto com a substância do corpo físico do Senhor, a
doutrina ensinada pelo reformador recebeu posteriormente o nome de consubstanciação.

A concepção de Martinho Lutero acerca da ceia estava atrelada à sua proposta acerca
da ubiqüidade do corpo de Cristo. Na verdade, a doutrina da consubstanciação depende
exclusivamente desse conceito. Ubiqüidade significa onipresença. Lutero ensinava, pois, que o
corpo físico de Cristo tinha atributos divinos, podendo estar em vários lugares ao mesmo tempo
e não somente sentado à direita do Pai nas alturas. Daí a possibilidade de estar junto aos
elementos da ceia e servir de alimento para os cristãos.

O maior oponente de Lutero nesse assunto foi o reformador suíço Ulrico Zuínglio (1484-1531).
Ele combateu a consubstanciação dizendo que os benefícios da ceia eram puramente espirituais,
não havendo sentido nem necessidade de qualquer presença corporal de Cristo no pão e no
vinho. Além disso, Zuínglio rejeitou o conceito de ubiqüidade exposto por Lutero, afirmando
que a encarnação não ocorreu de tal modo que a natureza humana de Cristo, em seu aspecto
corporal, se tornasse onipresente. Com base em João 6.63, ele frisou que “a carne para nada
aproveita” e insistiu que a fórmula “Isto é o meu corpo” devia ser interpretada como uma
metáfora.

Zuínglio estava certo em tudo isso. De fato, nunca existiu qualquer fundamento racional ou
bíblico para a doutrina da consubstanciação, sendo evidente que Lutero a elaborou por estar
ainda fortemente ligado a tradições romanistas, sendo-lhe difícil romper radicalmente com elas,
depois de ter vivido tanto tempo sob o papismo. Aliás, vários argumentos expostos
anteriormente e usados contra a crença católica acerca da transubstanciação podem ser usados
também contra as noções de Lutero, o que comprova o notável grau de semelhança entre as duas
posições.

A despeito disso, a doutrina da consubstanciação seguiu seu curso dentro do luteranismo. Ela
apareceu na primeira edição da Confissão de Augsburgo (1530), escrita por Filipe Melanchton,
foi claramente afirmada na Fórmula da Concórdia (1577), um documento produzido para por
fim às controvérsias que haviam surgido dentro do luteranismo, e continua sendo defendida
pelas igrejas luteranas ao redor do mundo, através da confiante afirmação, presente em seus
credos, de que a ceia do Senhor “é o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo
para ser comido e bebido por nós, cristãos, sob o pão e o vinho”.
Calvino e o virtualismo

A concepção acerca da ceia conhecida como presença espiritual foi ensinada pelo grande
reformador francês João Calvino (1509-1564). Seu conceito quanto à mesa do Senhor é que não
se trata de um ritual em que o corpo de Cristo está presente de alguma maneira física, como
ensinam os católicos e os luteranos. Para Calvino, a ceia é um sacramento em que a carne e o
sangue do Salvador estão espiritualmente presentes, sendo exibidos nos elementos, de modo
que os que participam do pão e do cálice alimentam-se em espírito do próprio Senhor. É nesse
sentido que Calvino afirma que, ao receber o símbolo do corpo, o crente deve confiar que a ele
está sendo dado também o próprio corpo.

Na concepção calvinista, o sacrifício de Cristo não se repete durante a Eucaristia, mas os


benefícios de sua morte substitutiva (redenção, justiça, santificação e vida eterna) são renovados
e reforçados em prol dos comungantes. Isso, porém, só acontece com quem come e bebe com fé.
Os que o fazem na incredulidade não recebem tais benefícios. Antes, são condenados por sua
indigna aproximação da mesa do Senhor.

É importante frisar que a doutrina da presença espiritual esposada por Calvino tem relação
direta com seu conceito de sacramento. Segundo ele, há somente dois sacramentos: o batismo e
a ceia. Em ambos, Cristo e seus benefícios são representados. Porém, o valor desses sinais
supera o simples objetivo simbólico. Neles há uma relação espiritual entre o símbolo e a coisa
simbolizada, de tal forma que os efeitos do que é simbolizado são comunicados ao símbolo,
graças à atuação do Espírito Santo e a virtude da palavra que instituiu os sacramentos.

É, pois, por causa dessa visão que, no tocante à ceia, Calvino insiste em afirmar que o corpo de
Cristo está fisicamente presente no céu, mas, por meio do poder do Espírito, durante a
Eucaristia os cristãos participam da sua carne e do seu sangue, unindo-se desse modo ao Senhor
e recebendo seus benefícios. Ele diz expressamente: “Sustentamos que Cristo desce até nós,
tanto pelo símbolo exterior, quando por seu Espírito, para que nossas almas verdadeiramente
vivifiquem com a substância de sua carne e de seu sangue.” Uma vez que, segundo o
reformador, isso ocorre pelo misterioso poder (arcana virtus) do Espírito, esse ensino é também
chamado de “virtualismo”.

A doutrina da presença espiritual de Cristo na ceia foi recepcionada pela Confissão de Fé de


Westminster (1646), um dos documentos mais importantes da fé reformada, e se constitui num
dos ensinos distintivos das igrejas presbiterianas. Ao longo dos séculos, essa doutrina tem se
imposto com notável força, não com base em sutilezas gramaticais que negam o sentido
figurado da frase “isto é o meu corpo”, mas, especialmente, pela ênfase no controvertido
enunciado de Paulo em 1Coríntios 10:16: “Porventura, o cálice da bênção que abençoamos, não
é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?”
É com o sentido dessas palavras que os oponentes da doutrina da presença espiritual são
desafiados a lidar.

O desafio de lidar com 1Coríntios 10 talvez não seja tão difícil. Na verdade, a leitura
do v.16 colocada sob a luz do contexto que abrange os vv. 14-22 mostra que, certamente, Paulo
não fala da presença espiritual de Cristo nos elementos da ceia, mas sim da comunhão especial
que o crente tem com o próprio Senhor durante a celebração dessa ordenança.

Na verdade, o próprio v. 16 fala de “comunhão” (κοινωνία) e não de alimentação ou sustento.


Ademais, nos vv. 20-21 fica claro que a preocupação de Paulo se centrava no campo da
associação. Com efeito, ele adverte os crentes no tocante à ligação que eles teriam com os
demônios caso participassem de festas pagãs. Isso, segundo o Apóstolo, seria inaceitável, uma
vez que, na ceia, uniam-se a Cristo, não havendo sentido em terem comunhão com o Senhor e
também com os espíritos malignos.

Assim, 1Coríntios 10.16 não ensina que Cristo está espiritualmente presente nos elementos da
ceia. Antes, revela que, ao participar da mesa do Senhor, o crente se associa com ele de forma
especial, nutrindo, no momento da celebração, uma comunhão mais íntima com o Senhor,
presente sim, de forma intensa durante o rito, mas não nos elementos do rito.

Conforme visto de início, a quarta concepção acerca da ceia é chamada memorial. Essa é a
visão segundo a qual a ceia é apenas uma ordenança do Senhor, útil para trazer à memória dos
crentes o sacrifício que Cristo realizou no Calvário. Geralmente, essa doutrina é atribuída ao já
mencionado reformador Ulrico Zuínglio. De fato, Zuínglio rejeitou qualquer noção sobre a
presença de Cristo nos elementos eucarísticos. Para ele, comer a carne do Senhor significava
crer nele, de modo que a expressão “isto é o meu corpo” devia ser entendida como uma
metáfora.

Deve-se dizer, contudo, que não é correto atribuir a Zuínglio uma concepção memorialista
extrema. Isso porque esse reformador via a ceia não apenas como um momento de recordação,
alegria e gratidão, mas também como um sinal mediante o qual, como no batismo, o crente
comprova sua fé e mostra para a igreja que pertence a Cristo.

Dentre as quatro visões sobre a ceia do Senhor, a que a concebe basicamente como um
memorial parece ser a que melhor se harmoniza com o ensino das Escrituras. O próprio Senhor,
ao instituir essa ordenança, afirmou: “Fazei isso, em memória de mim”. (1Co 11.23-25).

O memorialismo bíblico, porém, não é do tipo que despreza as realidades espirituais ligadas à
ceia. Na verdade, um enunciado que leve realmente em conta a totalidade da evidência
neotestamentária deve afirmar que a ceia do Senhor é um memorial que recorda o sacrifício de
Cristo, memorial este celebrado em meio a uma realidade espiritual que transcende a
experiência regular da igreja, à medida que proporciona aos crentes uma cumplicidade mais
plena com o próprio Senhor presente de forma intensa no momento da celebração. Ora, é
evidente que, desfrutar de uma cerimônia assim, provocará transformações nos participantes,
mais do que meras recordações.

Pr. Marcos Granconato


Soli Deo gloria

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