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Dos erros sobre o Sacramento da

Eucaristia— uma resposta do cardeal


Caetano às acusações de um certo
deformador
Este opúsculo é uma resposta do cardeal Caetano ao ensinado por Zwinglio em seu livro
"de vera et falsa religione commentarius" (1525), que pode ser lido aqui:
https://archive.org/details/huldreichzwingli0003zwin/page/773/mode/1up (a parte em que ele
fala sobre a eucaristia).

O texto do cardeal foi traduzido de:


https://books.google.com.br/books?id=B0NKAAAAcAAJ&printsec=frontcover&source=gbs_g
e_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

Traduzido por Belarminho :)

Sugestões, críticas ou correções: dominicus326@gmail.com

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I- De que forma em João 6 o Senhor não somente falou da fé formada que se deve ter
nele, mas também da própria manducação espiritual no Sacramento da Eucaristia

I- De que forma em João 6 o Senhor não somente falou da fé formada que se deve ter
nele, mas também da própria manducação espiritual no Sacramento da Eucaristia

II- Que aquilo que o Senhor diz em João 6, «a carne de nada aproveita», não exclui do
Sacramento da Eucaristia sua carne, nem a verdadeira manducação espiritual do seu
corpo

III- Que é falso que os teólogos opinam corporalmente sobre o Sacramento da


Eucaristia, ou que se receba o corpo de Cristo de forma perceptível

IV- De que forma não falsamente, mas verdadeiramente os teólogos ensinam que a fé
pertence ao juízo e ao entendimento humano e estende-se até o sensível

V- Que não há oposição entre a presença do verdadeiro corpo de Cristo na Eucaristia


e a manducação apenas espiritual

VI- De que forma os teólogos dizem que não se deve pensar sobre o sacramento da
Eucaristia

VII- O modo católico de expor as palavras da forma do sacramento da Eucaristia

VIII- Que é absolutamente verdadeiro que os pecados são perdoados por esse
sacramento

IX- Do sacrifício eucarístico e de sua instituição por Cristo e pelos apóstolos


X- De que não é idolatria adorar o santíssimo sacramento da eucaristia

XI- Que nenhum santo doutor jamais ensinou que o corpo de Cristo esteja na
Eucaristia como em sinal

XII- Que aos que têm fé no Sacramento da Eucaristia, não há dois, mas um só
caminho para a salvação

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I- De que forma em João 6 o Senhor não somente falou da fé formada que se deve ter
nele, mas também da própria manducação espiritual no Sacramento da Eucaristia¹

Discute-se primeiro se o Senhor, em João 6, falou sobre a Eucaristia.

Pois parece que não, seja porque Ele fala sobre a fé e sobre a confiança que os homens
precisam ter nEle, seja porque diz duas vezes: "Aquele que come a minha carne e bebe o
meu sangue permanece em mim e eu nele." (Jo 6, 56)— quando consta que há muitos que
recebem o Sacramento da Eucaristia e que, contudo, não permanecem em Cristo pela fé
formada pela caridade.

Com relação a isso, deve-se dizer ao leitor que há algo de verdadeiro e algo de falso nessa
opinião. Certamente, é verdade que o Senhor, em João 6, falou sobre a fé formada pela
caridade que se deve ter nEle— por isso que o sermão foca primeiramente na fé em Sua
divindade e em Sua morte pela vida do mundo. Contudo, é falso que Cristo também não
tenha falado sobre o Sacramento da Eucaristia nessa mesma passagem.

Para provar isso, relembro ao leitor que há três coisas na Eucaristia, a saber: o próprio
Sacramento, que adoramos; em segundo lugar, a manducação sacramental, que é comum
aos bons e aos maus, como diz o Apóstolo em I Cor. 11: "Quem come e bebe indignamente
etc"— donde se vê claramente que os indignos comem e bebem sacramentalmente, ou
seja, recebem a hóstia consagrada como Sacramento; não como pão, mas crendo que ela é
o Sacramento do corpo de Cristo; por fim, há a manducação espiritual, exclusiva aos bons,
que ocorre através da fé formada pela caridade e que é a refeição da alma segundo a vida
espiritual, a vida da qual se diz: "Vivo já não mais eu, mas Cristo vive em mim" (Gal. 2).

Dessa forma, de que neste capítulo o Senhor não esteja falando de uma dessas coisas— a
saber, da manducação sacramental— não se infere que as outras duas sejam excluídas.

Porque Ele fala da manducação espiritual quando diz: "Aquele que come a minha carne e
bebe meu sangue permanece em mim e eu nele", pois manducar espiritualmente o
Sacramento da Eucaristia é permanecer em Cristo e ter Cristo habitando em si através da fé
formada pela caridade.
Além do mais, fica claro que o Senhor também falou do próprio Sacramento, tanto porque
Ele diz no futuro "o pão que eu hei de dar" (v. 51)— pois ainda não havia instituído o
Sacramento da Eucaristia, já que disse isso em uma sinagoga em Cafarnaum, enquanto a
Eucaristia foi instituída em Jerusalém, na noite em que foi traído; mas também porque Ele
distingue comer e beber, dizendo: "Se não comerdes a carne do filho do homem e não
beberdes o seu sangue não tereis vida em vós" (v. 53). Dessa forma, se quisesse falar
apenas da fé em Sua morte pela vida do mundo, seria suficiente explicá-la pela separação,
que aconteceu na cruz, da carne e do sangue. Mas visto que não falou apenas dessa
separação senão que também disse para comer a Sua carne e beber o Seu sangue, se
quiséssemos ter vida nEle, vê-se claramente que insinua o Sacramento de Seu corpo e
sangue, que instituiria tempos depois sob forma de comida e de bebida. Assim se entende,
então, o que foi dito: se não receberdes espiritualmente a carne e o sangue que serão
imolados na cruz e que estarão contidos no Sacramento da Eucaristia, de maneira alguma
terão vida em vós mesmos-- ensinando também assim que crer no Sacramento da
Eucaristia é necessário para a salvação [de necessitate salutis].

Deve-se dizer, ademais, que São João Evangelista, cujo trabalho foi o de escrever sobre os
mais altos mistérios da vida de Cristo pouco explicados pelos outros evangelistas, ao narrar
a ceia do Senhor, não disse nada sobre o Sacramento da Eucaristia, porque seu uso
sacramental já fora descrito pelos demais evangelistas, enquanto seus efeitos foram
assinalados por ele, quando escreve: "Aquele que come a minha carne e bebe o meu
sangue tem a vida eterna".

Dessa forma, se João não compreendesse a grandeza de tal Sacramento, de forma alguma
teria se preocupado em fazer uma distinção tão clara entre o ato de comer e o de beber e
em dizer que os dois produzem um mesmo efeito, isto é, permanecer em Cristo, e
vice-versa. Mais ainda: ele nem mesmo teria tido toda diligência em declarar o efeito
perpétuo de ambos os atos, ou seja, a vida eterna, ou em afirmar a importância deles,
dizendo: "Se não comerdes a carne do filho do homem e não beberdes o seu sangue, não
tereis vida em vós mesmos".

Por tudo que foi coletado até aqui, pode-se ver que o evangelista, ao falar do comer e do
beber espirituais, não estava se referindo apenas à morte de Cristo, mas também ao
Sacramento da morte do Senhor sob forma de comida e de bebida.

Por fim, comparando o que foi dito com o que está escrito nas narrativas evangélicas, podes
compreender, leitor erudito, que embora seja verdade que o sermão de Cristo em João 6
fale da fé formada pela caridade e de sua morte pela vida do mundo, e não da manducação
sacramental, é falso, todavia, que nele não esteja incluído também o ensinamento da
manducação espiritual da Eucaristia.

Isto quanto ao primeiro.


Cap. II- Que aquilo que o Senhor diz em João 6, «a carne de nada aproveita», não
exclui do Sacramento da Eucaristia Sua carne nem a verdadeira manducação
espiritual do Seu corpo

Com relação ao segundo, parece que Cristo quis excluir do Sacramento da Eucaristia a
presença real de Sua carne, ao dizer, também em João 6, "a carne de nada aproveita". Pois
o sentido primário dessa passagem é: a carne recebida como alimento de nada aproveita.
Assim, que esse seja o sentido natural do texto vê-se pelo fato de que ele foi uma resposta
à interrogação dos judeus, que se perguntavam como era possível que aquele homem, ou
seja, Jesus, desse sua carne para comer. Dessa forma, como a questão e o sermão
giravam em torno da manducação, segue-se que foi da carne enquanto relativa à
manducação que se disse "a carne de nada aproveita", que é o mesmo que dizer "a carne
recebida como alimento de nada aproveita"— disso se segue que carne nenhuma é
recebida nesse Sacramento.

Acerca dessa interpretação, que é tomada por fundamento de todo o erro e é repetida
diversas vezes, deve-se dizer que não é correto supor que o sentido literal de "a carne de
nada aproveita" seja "a carne recebida como alimento de nada aproveita", porque isso
contradiz expressamente o texto evangélico. Pois no mesmo texto e no mesmo contexto o
Senhor fala que Sua carne, recebida como comida, daria a vida eterna, dizendo: "Aquele
que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna" (v. 54). Portanto,
interpretar desta forma não é ir somente contra o sentido natural do texto, mas contra
palavras expressas do próprio Senhor.

Agora, se alguém ainda quiser justificar essa posição dizendo que não se deve interpretar o
texto como falando da manducação espiritual mas, sim, da sacramental, então concordará
conosco. Pois as palavras do Senhor assim interpretadas não excluem do Sacramento a
presença de Sua carne, porquanto a Igreja não ensina que a carne de Cristo é recebida
«carnalmente» nesse Sacramento. Assim, pois, se a carne que é excluída desse
Sacramento é aquela que é comida de maneira «carnal», então ela é perfeitamente
excluída dele. Mas não se deve concluir que a carne de Cristo não esteja presente neste
Sacramento, pois ela está verdadeiramente presente nele de modo espiritual, e, sendo
recebida de maneira espiritual, dá a vida eterna. Dessa forma, podemos com razão dizer
que, se a carne de Cristo não for recebida de maneira espiritual neste Sacramento, então
ela de nada aproveita.

Em segundo lugar, tenha-se em mente que o sentido correto dessa passagem pode ser
explicado duplamente, sendo ambos os sentidos verdadeiros.

¶Primeiro, Cristo, com essas palavras "a carne de nada aproveita", não fala especificamente
de Sua carne ou de uma outra qualquer, mas diz absolutamente [simpliciter] "a carne". Ele
não diz "minha carne de nada aproveita", senão que "a carne de nada aproveita". Por sua
vez, Ele fala de «carne» em oposição a «espírito», como atesta o contexto evangélico, ao
dizer: "O espírito é que vivifica; a carne de nada aproveita [para vivificar]".
Assim, então, se deve entender o que foi dito: "a carne sozinha de nada aproveita", em que
«sozinha» exclui o «espírito», como se se tivesse dito "a carne sem o espírito de nada
aproveita para a vida eterna, porque é o espírito que vivifica". E essa interpretação funda-se
tanto na palavra «carne» absolutamente tomada— pois consta que a carne simpliciter e por
si mesma, sem o espírito, de nada serve para a vida eterna—; tanto na oposição feita pelo
Senhor entre carne e espírito.

Firma-se também essa interpretação por ser coerente com o propósito de todo o texto.
Primeiro porque já deixa claro que a carne de Cristo, que é descrita como sendo a comida
que dá a vida eterna, sem o espírito não pode atingir seu propósito— e assim o é, pois que
a carne de Cristo, mesmo tendo sido crucificada por nós, de nada aproveita se não tivermos
o espírito de adoção dos filhos de Deus. Além disso, ao que os judeus perguntavam como
era possível que o Senhor desse Sua carne como alimento, responde-se diretamente que
afirmações como "minha carne é verdadeira comida etc" e "se não comerdes a carne do
filho do homem etc" não falam apenas sobre «carne» (pois ela sozinha de nada aproveita
para a vida eterna), mas, sim, de «carne» juntamente com «Espírito», pois é Ele quem
vivifica, para que assim os judeus pudessem entender que a carne de Cristo seria
realmente comida, mas com o Espírito auxiliando na manducação, pois só através da
moção dEle é que se cumpre o dito: "Aquele que come a minha carne tem a vida eterna".

O outro modo de entender esse texto é supondo a palavra «carne» não como substância,
mas como fazendo referência a um ofício e a uma comida carnais, em que o sentido, então,
seria: "a carne [comida] 'carnal' de nada aproveita". Essa interpretação procede da mesma
fonte que a anterior, porque o Senhor diz de «carne» absolutamente, sem fazer referência
alguma à sua em particular, e também porque onde se fala em manducação o sentido de "o
espírito é que vivifica; a carne de nada aproveita" é "a comida carnal de nada aproveita;
mas a espiritual vivifica". E dessa forma responde-se diretamente à interrogação dos
judeus, que não perguntavam sobre a substância, mas sobre o modo da manducação, ao
dizerem: "Como [lat. quomodo, de que modo] pode este homem nos dar sua carne para
comermos?". Eles tinham em mente a carne e queriam saber a maneira pela qual ela seria
consumida, ao que o Senhor responde que o modo não seria carnal, mas espiritual: porque
"a carne", isto é, a comida carnal, "de nada serve para a vida eterna; mas a comida
espiritual é que vivifica a alma".

Que constantemente na Escritura a palavra «carne» seja tomada por «ofícios carnais» e
não simplesmente por uma substância vê-se no Apóstolo, que em 1° Coríntios 15 diz: "A
carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus" (v.50)— quando se sabe que as
substâncias «carne» e «sangue» não são excluídas do reino de Deus (pois ressuscitaremos
com carne e ossos, tal qual Cristo), mas os ofícios carnais, sim.

Agora, que no texto evangélico a palavra «carne» não se toma por substância, fica evidente
pelo próprio contexto. Pois no mesmo lugar o Senhor diz da substância da sua carne:
"Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna"; de onde
claramente se vê que a substância da carne dele, espiritualmente recebida, de muito
aproveita e vivifica, porque dá a vida eterna. Portanto, não foi da mesma substância
«carne» que Ele disse "a carne de nada aproveita".
Ademais, que se deva entender o que foi dito como fazendo referência a um ofício carnal,
percebe-se duplamente:

¶Primeiro porque aos judeus que perguntavam "como pode este homem nos dar sua carne
para comermos?" Responde diretamente que a carne, isto é, as comidas carnais, para nada
serve, mas a comida espiritual dá a vida eterna. Dessa forma, eles poderiam entender que o
que foi dito antes, a saber, "se não comerdes a carne do filho do homem" e "minha carne é
verdadeira comida etc", fazia referência à comida espiritual, e não carnal.

¶Segundamente porque, da mesma forma que quando Cristo falara com Nicodemos acerca
da geração espiritual, logo após ter dito: "Quem não renascer da água e do Espírito [Santo],
não pode entrar no reino de Deus" (Jo III, 5), imediatamente acrescenta "O que nasceu da
carne, é carne, o que nasceu do Espírito, é espírito" (v. 6): assim também aos judeus que
perguntavam Ele diz "o espírito é que vivifica; a carne de nada aproveita", significando que
a comida carnal não serve de nada (senão à carne), mas que a espiritual é a que vivifica.
Pode-se, então, compreender em uma única sentença esses dois modos de expor o texto: a
carne 'carnalmente' de nada aproveita para a vida eterna, mas, quando acoplada ao
espírito, vivifica.

Percebes assim, sábio leitor, que, conquanto seja verdade que o Senhor falou de «carne»
relacionada à manducação em "a carne de nada aproveita", é falso, contudo, que Ele esteja
falando dela enquanto comida, pois como já se viu é dela enquanto «comida carnal» que
Ele diz isso. Também é falso que por essa fala se exclua da Eucaristia a verdadeira carne
de Cristo. E se quiseres convencer os insolentes pelas palavras do Evangelho,
pergunte-lhes se a carne de Cristo espiritualmente recebida é útil para a vida eterna. Se a
resposta for sim, então a verdadeira carne de Cristo recebida como comida é também útil
para a vida eterna; de onde se vê que o que o Senhor disse sobre a inutilidade da carne
não exclui que a Sua carne espiritualmente manducada seja proveitosa para a vida eterna.
Agora, se a resposta for não (já que "a carne de nada aproveita"), então o Senhor disse
algo falso, pois no mesmo lugar Ele diz: "Aquele que come a minha carne e bebe o meu
sangue tem a vida eterna".

Do segundo basta.

Cap. III- Que é falso que os teólogos opinam corporalmente sobre o Sacramento da
Eucaristia, ou que se receba o corpo de Cristo de forma perceptível

Quanto ao terceiro capítulo, alguns dizem que os teólogos ensinam que o corpo de Cristo é
recebido corporalmente e de maneira perceptível na Eucaristia, segundo aquela confissão
feita por Berengário, citada no Decreto de Graciano, de consecratione, dist. II, cap. 42, "Ego
Berengarius"
[https://geschichte.digitale-sammlungen.de/decretum-gratiani/kapitel/dc_chapter_3_3884].
Com relação a isso, deve-se dizer que é absolutamente falso que os teólogos ensinam que
o corpo de Cristo é recebido de forma corporal e perceptível. Na verdade, ensina-se que é
espiritualmente— não «percebendo» (seja pelos sentidos ou pelo intelecto), mas crendo—
que o corpo de Cristo é recebido, e que as espécies sacramentais, sim, são recebidas
corporalmente e de maneira perceptível.

Com relação às palavras de Berengário, elas devem ser entendidas no contexto em que
foram ditas. Porque Berengário era adepto de um erro, o qual os modernos hereges têm
tentado ressuscitar, que consistia em dizer que a carne de Cristo estava somente como em
sinal [signo] no Sacramento da Eucaristia (quando a Igreja Católica ensina que o
Sacramento não somente significa a carne de Cristo mas a contém), então os padres do
sínodo [o VI de Roma, sob Gregório VII] decretaram que na detestação de tal erro
Berengário confessasse que o corpo de Cristo é tocado sensivelmente pelas mãos dos
sacerdotes e é mordido pelos dentes, para que assim os fiéis cristãos entendessem que na
Eucaristia não se recebe somente um sacramento (isto é, um sinal sagrado da carne de
Cristo) senão que a própria carne de Cristo contida nas espécies, o que era veementemente
negado e combatido por aquele herege. E não entendiam nem queriam entender os padres
que a carne de Cristo é em si mesma sentida, tocada, mastigada pelos dentes; os fiéis não
ousam sequer pensar nisso! Toda a diferença, então, consiste em que aquele que antes
ensinava que a carne de Cristo era recebida somente em sinal é agora impelido pela fé
católica a crer que a carne de Cristo não é recebida somente dessa forma, mas que ela está
verdadeiramente contida no sacramento.

Isto com relação ao terceiro.

Cap. IV- De que forma se deve entender o ensino dos teólogos de que a fé tem origem
no juízo e no entendimento humano e estende-se até ao sensível

No quarto capítulo, discute-se aquilo que é supostamente o ensino dos teólogos. Pois
parece que eles erram em duas coisas: primeiro, que a fé vem ao homem através de seu
juízo e escolha; segundo, que a fé se estende às coisas sensíveis (o que seria um erro,
visto que ninguém acredita naquilo que vê ou sente).

Neste quarto capítulo, deves saber, leitor erudito, que é falso que os teólogos ensinam o
primeiro. Pois eles, seguindo aquilo que diz o apóstolo Paulo em Efésios 2, confessam que
a fé é um dom de Deus, dada não contra a vontade do homem, mas àquele que está
disposto a recebê-la através de uma adesão voluntária ao cristianismo. Portanto, vê-se que
a fé depende «dispositivamente» da vontade do homem.

Quanto ao segundo, pode-se entendê-lo de maneira boa ou de maneira má.

Pois se se entende que a fé estende-se às coisas sensíveis como se elas fossem o objeto
da crença, então é falso, porque se sabe que as coisas nas quais se crê não se sentem.
Mas não é nesse sentido que os teólogos dizem que a fé se estende às coisas sensíveis,
pois eles afirmam juntamente com Paulo que a fé é das coisas que não se vêem ( cf. Hebr.
11).

Agora, se se entende que a fé estende-se às coisas sensíveis como se elas estivessem de


alguma forma unidas às coisas nas quais se crê, então é perfeitamente exposta e não se
deve repreender essa sentença, porquanto há muitas coisas que nós cremos que consistem
em uma união entre coisas sensíveis e não sensíveis; dessa forma, porque se deve crer
nessa conjunção entre coisas sensíveis e não sensíveis, da mesma forma a fé deve se
estender à coisa sensível como o outro «extremo» da conjunção na qual se crê. Tudo isso
que dissemos fica claro no mistério da encarnação. Pela fé, nós cremos que o Verbo se fez
carne, e que esse mistério consiste na conjunção do Verbo a uma carne sensível (não se
pode crer nessa conjunção a não ser que a fé se estenda também à carne). Isto posto, se
víssemos Cristo aqui presente, não creríamos na carne, a qual vemos, mas na conjunção
da divindade com a carne: e dessa forma nossa fé se estenderia também à carne vista, não
enquanto objeto da visão, mas na medida em que é o extremo de uma conjunção invisível
com a divindade. Donde podes ver que aquele que nega que a fé se estenda às coisas
sensíveis nega que o mistério do Verbo incarnado seja de fé cristã. Analogamente no atual
propósito: visto que não cremos, mas vemos as espécies do sacramento da Eucaristia,
cremos, todavia, na presença de Cristo sob elas, de forma que a conjunção inexplicável
entre essas espécies e o corpo de Cristo que é o objeto da fé, não as próprias espécies,
que são palpáveis e visíveis.

Cap. V- Que não há oposição entre a presença do verdadeiro corpo de Cristo na


Eucaristia e a manducação apenas espiritual

Com relação ao quinto capítulo, vê-se que estas duas coisas— a presença real do corpo de
Cristo no sacramento da Eucaristia e sua manducação espiritual— não podem existir
simultaneamente, porque o espírito difere de tal forma do corpo, que não se pode atribuir
um ao outro, e dizer que a carne corporal é espiritualmente manducada não é senão dizer
que o espírito é corpo e vice-versa.

Aqui, leitor prudente, podes ver perfeitamente, através desse argumento ridículo, a
confusão feita por quem não diferencia alguma coisa do seu modo de ser. Ninguém é
insano de ensinar que o espírito é corpo: mas dizemos que o corpo de Cristo tem um modo
de ser espiritual neste Sacramento [corpus Christi habere modum essendi spirituale in hoc
Sacramento], pois certamente há neste Sacramento um verdadeiro corpo. Contudo, Cristo
não está nele em modo de corpo— porque assim Ele se encontra somente no céu—, pois
não existe nele como que ocupando um espaço, mas de um modo espiritual,
incompreensível ao intelecto humano, da mesma forma que a união do Verbo de Deus com
a natureza humana ou que a unidade de essência das três pessoas em Deus são coisas
incompreensíveis para nós. Cremos, todavia, em todas essas coisas, conquanto não as
entendamos. De igual modo, o verdadeiro corpo de Cristo é recebido no Sacramento, não
corporalmente, mas espiritualmente.

Assim é que se diz que na manducação corporal não se mastiga o corpo de Cristo, embora
por meio dela as espécies sacramentais, sob as quais a verdadeira carne de Cristo está
contida, sejam recebidas. Mas através da manducação espiritual, que se dá na alma, é que
se achega à carne do Senhor existente no Sacramento.

Cap. VI- de que forma os teólogos dizem que não se deve pensar sobre o sacramento
da Eucaristia

No sexto capítulo, diz-se que os teólogos ensinam que os cristãos não devem pensar nos
mistérios da Eucaristia (eles ensinariam isso para que a verdade sobre este sacramento
não viesse à tona).

Com relação a isso, é ridículo responder. Pois todos sabem que os teólogos dão conselhos
tendo em vista as qualidades das pessoas a quem os dão. Assim, aos mais simples e rudes
aconselha-se somente a crer nos assuntos relativos à Santíssima Trindade, à Eucaristia, à
predestinação e a outros mistérios semelhantes, segundo aquilo da Escritura: "Não busque
coisas mais altas que você." (Sab. 3, 22); mas aos homens mais capazes de perceber os
mistérios da fé exorta-se que os meditem e estudem, buscando-os nas sagradas letras,
assim como se deve fazer com relação ao sacramento da Eucaristia.

Cap. VII- o modo católico de expor as palavras da forma do sacramento da Eucaristia

O sétimo capítulo é sobre as palavras da consagração. Pois parece que em "isto é o meu
corpo", a palavra «é» não deve ser entendida segundo seu sentido próprio e literal. Assim,
«é» estaria sendo colocado no lugar de «significa», onde o sentido do texto seria: "isto
significa o meu corpo"; donde se vê que o corpo de Cristo estaria neste Sacramento apenas
como em sinal.

Para provar isso, costumam os adversários dizer quatro coisas.

Primeiro, que nas Escrituras muitas vezes o verbo «é» se toma por «significa», como se vê
em Gênesis 41, 26, Mateus 13, 38 e Lucas 8, 12.14.

A segunda razão é que uma destas duas coisas é verdadeira: ou Cristo mentiu quando
disse que "a carne de nada aproveita" (o que seria uma impiedade afirmar), ou então «é»
deve ser entendido como «significa». A conclusão é evidente, porque se «é» deve ser
tomado em seu sentido próprio, então a carne—que dá a vida eterna!— de Cristo estaria
verdadeiramente nesse Sacramento, e assim Ele teria dito falsamente "a carne de nada
aproveita".

Em terceiro lugar, prova-se o mesmo por conta da natureza da fé, na medida em que tudo o
que é corpo, tudo que pode ser tocado e sentido, não pode de maneira alguma estar
relacionado com a fé.

Por fim, ao entender «é» por «significa» as coisas ficam perfeitamente coerentes: faz
sentido que Cristo tenha dito: "fazei isto em memória de mim" (1 Cor. 11, 24), e também
aquilo que diz o apóstolo Paulo: "todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste
cálice anunciais a morte do Senhor etc" (1 Cor. 11, 26), e também se pode entender os
costumes da igreja primitiva, descritos em 1 Coríntios 11, com relação à ceia.

Vamos, então, examinar cada uma dessas coisas.

Com relação ao primeiro ponto, é verdade que a Escritura comumente toma o verbo «ser»
pelo verbo «significar». Mas erram os adversários ao não distinguir perfeitamente os
diversos modos de falar da Escritura, que ora fala de modo metafórico, ora de modo próprio.
Dessa forma, quando o sentido do texto for metafórico, então o verbo «ser» se toma por
«significar», como em: "e a pedra era Cristo" (1 Cor. 10, 4), "eu sou a videira verdadeira"
(Jo. 16, 1), "eu sou a porta" (Jo 10, 7) e em outros lugares semelhantes. Nessas passagens,
as regras do discurso figurado indicam que se deve entender "é", "ser", "sou", "era", "foi",
não segundo seu sentido próprio, mas segundo uma certa semelhança. Nesse gênero de
discurso estão incluídas todas as passagens bíblicas alegadas no argumento adversário.
Porém, quando a Escritura fala, não segundo semelhanças, mas utilizando-se da
significação própria das palavras, ela nunca toma o verbo "ser" em sentido figurado e
impróprio. Ora, é evidente que no caso em questão Cristo não estava falando do seu corpo
figurativamente, segundo alguma semelhança, mas do seu próprio corpo ali presente,
quando diz "isto é o meu corpo" (isso até mesmo os adversários admitem). Portanto, erram
aqueles que dizem que este "é" aqui é tomado figurativa e metaforicamente só porque ele
pode sê-lo em outras ocasiões.

O segundo argumento não necessita de maiores explanações. Já ficou demonstrado no


capítulo 2 que Cristo, ao dizer que "a carne de nada aproveita", quer por isso dar a entender
que a carne sozinha, recebida como comida carnal, não é proveitosa para a vida eterna.
Com isso concorda perfeitamente a verdade expressa em "isto", ou seja, a substância
contida nestes acidentes, "é o meu corpo", porque o corpo de Cristo contido neste
sacramento não é nem comida carnal nem é proveitosamente recebido sem o espírito.

O que se diz no terceiro argumento é absolutamente falso. Como assim nada do que se
refere ao corpo pode ser matéria da fé, quando o próprio Símbolo da fé (o Credo) contém
muitos mistérios relativos à realidades corpóreas? Cremos que Cristo foi crucificado, morto
e sepultado; confessamos que Ele ascendeu aos céus. Cremos também na ressurreição da
carne. Todas essas coisas são corpóreas. Como, então, alguém é capaz de dizer que
coisas corpóreas não dizem respeito à fé?

Cap VIII- que é absolutamente verdadeiro que os pecados são perdoados por esse
sacramento

Segundo os adversários, seria falso dizer que esse sacramento apaga os pecados, porque
só a morte de Cristo pode fazê-lo.
Facilmente podemos perceber o erro desse argumento se examinarmos a razão dada. De
que "somente a morte de Cristo nos perdoa os pecados" não se segue que sua aplicação
em nós não tenha o mesmo efeito. Pois assim como do fato de que somente o artista faz
determinada obra não se excluem os instrumentos utilizados para esse fim, do mesmo
modo dizer que somente a morte de Cristo apaga os nossos pecados não se excluem os
sacramentos da Igreja, que são os instrumentos pelos quais a morte de Cristo nos é
aplicada. De outra forma, seria necessário excluir este artigo do Credo: «professo um só
batismo, para a remissão dos pecados». Pois se somente a morte de Cristo perdoa os
nossos pecados, excluindo, assim, a necessidade dos sacramentos, o batismo também
seria desnecessário à remissão dos pecados. Donde se vê que nem o batismo nem os
demais sacramentos são excluídos de efetivar a remissão de pecados.

A razão aduzida é, portanto, inútil.

Isso sobre o oitavo ponto.

Cap. IX- do sacrifício eucarístico e de sua instituição por Cristo e pelos apóstolos

No nono ponto diz-se que é falso que a Eucaristia seja um sacrifício. Primeiro porque o
sacrifício de Cristo realizado na cruz foi suficiente para sempre, como diz São Paulo aos
hebreus 10, 14: "Por uma única santificação consumou para sempre os santificados" e no
capítulo 9, 12: "Pelo seu próprio sangue entrou para sempre no santuário, tendo
conquistado uma redenção eterna". Depois, porque é falso que Cristo é oferecido na
eucaristia, pois Ele não pode ser oferecido em sacrifício senão pela efusão de sangue,
tendo que morrer para isso, como diz o mesmo apóstolo Paulo no capítulo supracitado da
epístola aos hebreus: "Nem para que constantemente se ofereça a si mesmo, de outro
modo teria de padecer muitas vezes desde a origem do mundo etc" (v. 25). Ora, consta
claramente que Cristo não morre, nem poderia, neste sacramento. Em terceiro lugar, a
Missa não foi instituída nem por Cristo nem pelos apóstolos.

Para responder a esse ponto, convém primeiro dizer que é um erro acreditar que o sacrifício
do altar seja um sacrifício diverso daquele que Cristo realizou na cruz. Na verdade, é o
mesmíssimo sacrifício, assim como é o mesmo corpo e o mesmo sangue de Cristo que
estão presentes no altar, na cruz e agora no céu. A diferença consiste apenas no modo de
oferecer: então, Cristo se ofereceu corporalmente; agora, espiritualmente. Na cruz, Cristo
morreu verdadeiramente [oblatum in re morte]; aqui, ele é oferecido em mistério [in mysterio
mortis]. Para entendê-lo, deve-se referir o oferecimento (oblação) tanto à coisa contida
quanto à coisa significada neste sacrifício. Digo isso pois se se refere às espécies
sacramentais, a oblação é evidentemente corporal e sensível. Todavia, esse oferecimento
espiritual não torna o sacrifício de Cristo insuficiente, mas o faz ser perpetuamente
relembrado em mistério, segundo o mandado do mesmo Senhor: "fazei isto em memória de
mim" (Luc 22,19; 1 Co 11, 24).

Donde fica evidente que as razões aduzidas do texto de Paulo aos hebreus são fruto de
equívocos— pois o Apóstolo fala do oferecimento corporal de Cristo, que nós cremos ter
sido único e suficientíssimo para sempre, enquanto que quando se fala de sacrifício
eucarístico temos em mente o oferecimento espiritual de Cristo. Deve-se notar, contudo,
isto: nós não dissemos que o corpo espiritual de Cristo é oferecido no sacrifício do altar,
mas que seu corpo natural é oferecido neste sacrifício por uma oblação espiritual. E isso,
leitor erudito, deves entender com relação à coisa contida neste sacrifício, isto é, o corpo e
o sangue de Cristo. Pois se o sacrifício do altar se refere à morte de Cristo, encontra-se aí
somente o sinal e não a realidade [signum tantum et non res invenitur], já que nem o Cristo
morto ou sua morte estão presentes por si. Cristo vive e reina no céu, e,
consequentemente, sua morte é apenas significada neste sacrifício e não está nele contida.

Deve-se entender, ademais, isto: Cristo está contido e é significado neste sacrifício; sua
morte, no entanto, é apenas significada e não está nele contida. Dessa forma, não é
necessário que Cristo morra todas as vezes que esse sacrifício é oferecido, conquanto
esteja nele contido e seja oferecido nele como coisa contida e oferecida. Mas a morte de
Cristo é significada neste sacrifício não somente porque as palavras da consagração a
expressam— pois é dito: "que por vós e por muitos é derramado" —, mas também porque o
sangue é consagrado separadamente do corpo. Essa separação sacramental significa a
separação real do sangue e do corpo de Cristo por ocasião de sua morte na cruz.

Quanto ao que se diz que nem Cristo nem os apóstolos estabeleceram a Eucaristia como
sacrifício, é digno de nota que pelas palavras do apóstolo Paulo em 1 coríntios 11
deduzimos exatamente o oposto. Assim diz o Apóstolo: "Porque eu recebi do Senhor o que
também vos entreguei: que o Senhor Jesus Cristo, na noite em que ia ser entregue etc" (11,
23). Aqui Paulo diz aos coríntios que lhes entregou, antes mesmo de escrever a primeira
epístola, o que havia recebido do próprio Cristo a respeito da eucaristia. Podemos perceber,
então, duas coisas.

Primeiro, os apóstolos entregaram muitas coisas a serem guardadas pela Igreja que não
consta nos livros da Escritura terem sido por eles transmitidas. Nesse caso em específico,
nós não saberíamos que Paulo entregara aos coríntios o que Cristo o havia ensinado sobre
a eucaristia a não ser que ele o tivesse dito nesta epístola e, entretanto, como ele mesmo
afirma, já havia ensinado aos coríntios essa doutrina antes de escrever a carta.

Depois, o que ele transmitiu aos coríntios foi aquilo que relembrou no capítulo
imediatamente anterior como sendo um rito já conhecido na Igreja, dizendo: "Por isso, meus
caríssimos, fugi da idolatria [...] Porventura o cálice de bênção, que benzemos, não é a
comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a participação do corpo do
Senhor? Visto que há um só pão, nós, embora muitos, formamos um só corpo, nós todos
que participamos do mesmo pão. Considerai Israel, segundo a carne: os que comem das
vitimas, porventura não têm parte no altar? Mas que digo? Digo que o que foi sacrificado
aos ídolos é alguma coisa? Ou que o ídolo é alguma coisa? Antes digo que as coisas que
os gentios sacrificam, as sacrificam aos demônios e não a Deus. Ora não quero que tenhais
sociedade com os demônios. Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios;
não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios." (1 Cor. 10,
14.16-21, tradução padre Matos Soares, 1956).
Por essas palavras, o Apóstolo indica, pelo texto e pelo contexto, um rito que era, e ainda é,
observado pela igreja, ou seja, que aqueles que recebem a Eucaristia participam do
sacrifício do altar. Assim, por participarem de um sacrifício de coisas imoladas a Deus, o
Apóstolo ordena aos coríntios que se abstenham do culto aos ídolos, porque, segundo o rito
da antiga lei, «aqueles que comem das vítimas do sacrifício são dele participantes», e por
isso os gentios seriam participantes da mesa dos demônios, pois a eles imolavam.

Desse impressionante texto se depreende que no tempo dos apóstolos o cálice e o pão do
Senhor eram entendidos como sacrifício—a não ser que alguém ouse dizer que todas essas
coisas tão cuidadosamente colocadas foram ditas inutilmente pelo Apóstolo. Assim, ao
juntarmos esse texto com o que se diz logo depois: "Eu recebi do Senhor o que também vos
entreguei" (1 Cor. 11, 23), fica evidente que Cristo instituiu não só esse sacramento, mas
também esse sacrifício, entregue por Cristo aos apóstolos e pelos apóstolos à Igreja.

Se se toma o testemunho de autores de fora da Escritura, encontramos Tiago, irmão do


Senhor, estabelecendo a celebração da Missa, como refere o sexto concílio [o terceiro de
Constantinopla]² (de consecr., d. I, cap. 47, Iacobus:
https://geschichte.digitale-sammlungen.de/decretum-gratiani/kapitel/dc_chapter_3_3815).
Sabemos também que no tempo do papa Telésforo, o oitavo depois de São Pedro, Missas
deveriam ser celebradas na noite de Natal (de consecr. d. I, cap. 48, Nocte:
https://geschichte.digitale-sammlungen.de/decretum-gratiani/kapitel/dc_chapter_3_3816).
Note-se que o sexto sínodo não é evocado aqui como se ele tivesse instituído a Missa, mas
apenas como testemunho de uma adição feita por Tiago, irmão do Senhor, com relação a
ela. Não foi o romano pontífice nem a igreja latina, mas a igreja grega, ou oriental, que
testificou, através dos 150 padres reunidos em Constantinopla no tempo do papa Agatão e
do imperador Constantino IV, Missa foi ordenada pelo apóstolo Tiago. Se o testemunho de
apenas um historiador é suficiente para confirmar algum evento passado, quanto mais não
se deve crer em 150 padres! Nem preciso dizer mais a respeito do testemunho do papa
Telésforo, oitavo depois de São Pedro, quando a Igreja romana não gozava de nenhum
governo temporal, mas do triunfo do martírio, a respeito da celebração da Missa na noite de
Natal, como diz o texto supracitado.

Se os adversários acreditam nas atas dos mártires guardadas pela Igreja, temos que o
sacrifício da eucaristia já era conhecido antes do tempo de Constantino (quando a Igreja
florescia, não pela glória temporal, mas pelo martírio), como se vê pelas palavras de
Lourenço a Sisto³: "Porque estás tu, santo sacerdote, saindo sem um diácono? Não é vosso
costume oferecer o Sacrifício sem o auxílio de um ministro."— ou seja, Sisto costumava
oferecer um sacrifício; certamente o da eucaristia. Continua o diácono, falando de si:
"Escolhas um ministro idôneo, a quem possas confiar a administração do sangue do
Senhor".

Por último, deve-se saber que mesmo que nada tivesse sido escrito a respeito do sacrifício
da Missa e de sua instituição por Cristo e transmissão pelos apóstolos, a tradição sucessiva
da Igreja universal espalhada por toda parte já seria testemunho suficiente, uma vez que a
autoridade da Igreja é suficiente para resolver questões de maior importância. Certamente,
é pela autoridade da Igreja que temos todos os livros da sagrada Escritura, pois não
saberíamos mais a respeito da autenticidade do evangelho de João do que da autenticidade
do evangelho de Bartolomeu se a autoridade da Igreja não nos tivesse advertido. O mesmo
se dá com os outros. Se somente a Igreja latina tivesse esse sacrifício, ou se ele fosse
introduzido na Igreja de Deus como uma novidade, poderíamos suspeitar de que ele fosse
uma invenção romana. Mas porque gregos, latinos, bárbaros e outros o têm desde sempre,
sem um certo início determinado no tempo, esse testemunho é suficiente, mesmo que não
houvesse nada na Escritura a respeito do sacrifício cristão. Quanto mais, então, não se
deve crer nos inúmeros textos sobre ele.

Isto do nono.

Cap. X- de que não é idolatria adorar o santíssimo sacramento da Eucaristia

No décimo ponto se diz que adorar a eucaristia é idolatria, seja porque não se deve adorar
a humanidade de Cristo em si mesma [pura humanitas Christi non est adoranda], ou porque
se deve adorar somente a Deus, visto jamais por ninguém—aqueles que adoram a
eucaristia adoram algo visível, ou ainda porque não se lê nos evangelhos que os apóstolos
tenham adorado a Eucaristia na última ceia.

O erro da primeira razão é evidente. Neste sacramento não se adora somente a


humanidade de Cristo, mas o Cristo, verdadeiro Deus, que tem uma carne verdadeiramente
assumida. Daqui se segue o erro da segunda razão, porque não adoramos, na Eucaristia,
os acidentes visíveis do pão e do vinho, mas Cristo contido sob esses acidentes.

Com relação ao terceiro ponto, tenho a dizer duas coisas. Primeiramente, não lemos nos
evangelhos que os apóstolos tenham adorado o mesmo Cristo presente na ceia. Não é de
se espantar, pois, que não se fale de uma adoração ao sacramento. Assim, se esse
argumento tivesse realmente alguma força, então não deveríamos adorar nem mesmo a
Cristo, já que não há registro de que os apóstolos o tenham adorado na última ceia. Em
segundo lugar, o argumento universalmente tomado— "não lemos que os apóstolos fizeram
tal coisa, logo também não devemos fazer"— já não prossegue. Pois não lemos em nenhum
lugar da Escritura que eles tenham composto o Credo, e, todavia, eles o fizeram. Não se lê
em nenhum lugar da Escritura que eles tenham aprovado os evangelhos de Lucas e de
Marco, e, todavia, cremos que eles o fizeram.

XI- Que nenhum santo doutor jamais ensinou que o corpo de Cristo esteja na
Eucaristia como em sinal

O décimo primeiro capítulo é sobre o dito por alguns doutores. Pois parece que Tertuliano,
Orígenes, Agostinho e Hilário concordam conosco sobre a presença meramente em sinal do
corpo de Cristo na eucaristia.

Neste ponto, no qual o autor diz muitas coisas facilmente refutáveis por alguém que tenha
entendido que foi dito até agora, tenha-se em mente que estes autores falam a verdade
quando dizem que o sacramento é figura ou sinal do corpo de Cristo, ou algo semelhante.
Todavia, eles não negam que com esse sinal esteja contida também a coisa significada, ou
seja, a carne de Cristo. É em razão das espécies sacramentais que os doutores chamaram
e chamam este sacramento de sinal, figura e de outras coisas semelhantes, sem com isso
negar a coisa contida sob esses sinais.

Atenha-se também que muito sabiamente os santos doutores prefiram o exercício das
virtudes à frequência aos sacramentos, pois as virtudes são bens próprios aos homens
bons; os sacramentos, por outro lado, são comuns aos bons e aos maus.

XII- Que aos que têm fé no Sacramento da Eucaristia, não há dois, mas um só
caminho para a salvação

Por último, diz-se que haveria dois caminhos para a salvação se se devesse crer na
Eucaristia: um seria o caminho pela fé em Cristo, o outro, pela fé no sacramento.

Leitor erudito, percebes que esse capítulo é ridículo. Não há, na pessoa que trabalha com
ouro, duas artes: uma de trabalhar com o ouro e outra de utilizar os instrumentos para fazer
obras com o ouro. Não há duas fés: uma em Cristo, outra nos sacramentos de Cristo,
mediante os quais Ele aplica a nós sua virtude salvífica. Os sacramentos da Igreja são os
instrumentos de Cristo para a nossa salvação e foram instituídos pelo próprio Cristo. E se
alguém negar a fé nos sacramentos, arranque do evangelho: "Quem não renascer por meio
da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus" (Jo 3, 5).

1525

Notas:

1- O cardeal Caetano parece ter mudado de opinião a respeito da interpretação eucarística


de João 6. Em seu comentário à terceira parte da Suma Teológica [q. 80, a. 12], e em seu
comentário ao sexto capítulo de João, o cardeal ensina que João 6 é sobre a manducação
espiritual ou sobre a fé em Cristo. Ele defendeu essa interpretação contra os hussitas, que
usavam esse texto como argumento para a necessidade da comunhão sob ambas as
espécies. São Roberto Belarmino, em suas controvérsias sobre a eucaristia, lib. I, cap. 5,
enumera o cardeal Caetano entre os defensores da interpretação não eucarística da
passagem de São João [cf.
https://books.google.co.uk/books?id=HG5TEd2HYFIC&printsec=frontcover&source=gbs_ge
_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false]. Deixo aqui a tradução do que diz o Santo
Doutor no final do parágrafo: "Há muita diferença entre católicos e hereges, embora
pareçam concordar na mesma sentença. Os católicos entenderam isso dessa forma [João 6
como não sendo sobre manducação sacramental] tendo uma ótima intenção, porque
queriam defender mais facilmente a verdade; os hereges, por outro lado, para a
impugnarem mais facilmente. Ademais, os católicos submetem a si mesmo e a suas
sentenças ao juízo dos concílios e dos pontífices, o que não fazem os hereges".

2- https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=njp.32101078252119&seq=492 O texto do concílio


de Constantinopla citado fala sobre a mistura de água e vinho na celebração da Missa.

3- História do martírio de São Lourenço. Santo Ambrósio relatou essa história no livro
primeiro, capítulo 41 do "de officiis": https://la.m.wikisource.org/wiki/De_officiis_ministrorum

Deo gratias

Gaude, Maria virgo, cunctas haereses sola interemisti

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