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INTRODUÇÃO

A Ceia do Senhor, um dos sacramentos fundamentais da fé cristã, tem sido objeto


de intensos debates e interpretações ao longo dos séculos. Neste trabalho, abordaremos
as principais vozes que contribuíram para a compreensão dessa prática, como os
principais reformadores do século XVI, João Calvino, Ulrico Zwinglio e Martinho
Lutero.
As Institutas da Religião Cristã", escritas por João Calvino, nos oferece uma visão
profunda e equilibrada sobre esse sacramento central do cristianismo, denominado “a
Ceia do Senhor”. Sua abordagem, marcada por uma profunda reverência pelas Escrituras
e uma cuidadosa consideração teológica, oferece uma vasta compreensão da Ceia do
Senhor, que ainda ressoa nos círculos teológicos contemporâneos.
Abordaremos também o pensamento de Zwinglio, Lutero e o catolicismo, em
relação ao pensamento de Calvino, e suas perspectivas em relação a esse sacramento tão
importante para os cristãos. Veremos também fatos relevantes ao longo da história que
moldaram o pensamento e conceitos em relação a Ceia do Senhor.
Neste contexto, examinaremos as diversas correntes do pensamento cristão, desde
as primeiras controvérsias teológicas até as questões contemporâneas que desafiam e
enriquecem a compreensão da Ceia do Senhor. Ao mergulhar nesse estudo, poderemos
entender as camadas do pensamento cristão em relação ao nosso tema, e sua relevância
ao longo da história, e no mundo moderno.

O PENSAMENTO DE JOÃO CALVINO SOBRE A CEIA DO SENHOR

O pensamento de Calvino explora profundamente o significado e a importância


do sacramento da Ceia do Senhor na tradição reformada. Ele enfatiza que após a admissão
na família de Deus como filhos, somos nutridos continuamente por Deus ao longo de
nossas vidas. Deus não apenas nos deu um penhor, mas também instituiu a Ceia do Senhor
como um banquete espiritual, no qual Cristo se revela como o pão da vida, nutrindo nossas
almas para a verdadeira imortalidade.
Calvino define a Ceia do Senhor como “[...] o sacramento da comunhão mística e
vital com Cristo, provisão divina em virtude da qual somos espiritualmente nutridos.”
(Calvino, 1541, cap. XVII).
A cerimônia da Ceia do Senhor é apresentada por Calvino como um sacramento
simbólico, onde pão e vinho representam o alimento invisível que recebemos da carne e
do sangue de Cristo. Para ele, assim como o batismo nos regenera e nos incorpora à
comunidade da igreja, a Ceia do Senhor atua como um sustento contínuo providenciado
por Deus, mantendo-nos na vida que Ele nos deu através de Sua Palavra.
Calvino destaca que Cristo é o único alimento para nossas almas, e Deus nos
convida a participar da Ceia para extrair vigor incessante, alimentando-nos de forma
espiritual até alcançarmos a imortalidade celestial. Ele ressalta a natureza misteriosa e o
profundo significado da Ceia do Senhor, na união de Cristo com os crentes, sendo
representada de maneira acessível através dos sinais visíveis do pão e do vinho. Esses
elementos visíveis servem como símbolos, permitindo-nos contemplar o mistério da
comunhão com Cristo de uma forma que nossa compreensão limitada possa assimilar. A
promessa de Deus, expressa nas palavras "Tomai, este é meu corpo que é dado por vós",
reforça a ideia de que ao participarmos da Ceia, nos tornamos participantes do corpo de
Cristo, experimentando a eficácia do sacrifício de Cristo em nós. A menção da aliança no
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sangue de Cristo também destaca a renovação contínua dessa aliança, fortalecendo nossa
fé sempre que bebemos do sangue redentor de Cristo. Segundo Calvino, as Palavras:
"Tomai, comei, bebei: este é meu corpo, que é entregue por vós; este é meu sangue que é
derramado para remissão dos pecados" [Mt 26.26-28], encontra uma confirmação tão
sólida de todas essas verdades, que podemos ter certeza, de que são apresentadas a nós da
mesma forma como se o próprio Cristo estivesse diante de nós, visível aos nossos olhos
e tocável por nossas mãos, conferindo um sentido espiritual a Ceia do Senhor.
O propósito principal do sacramento da Ceia do Senhor de acordo com Calvino,
não é apenas nos apresentar o corpo de Cristo, mas, acima de tudo, selar e confirmar a
promessa de que Sua carne é verdadeiramente nosso alimento, e Seu sangue, nossa
verdadeira bebida [Jo 6.55, 56]. É por meio desses elementos que somos nutridos para a
vida eterna [Jo 6.54]. Esse sacramento nos leva de volta à cruz de Cristo, onde essa
promessa foi genuinamente realizada e totalmente cumprida.
No processo de apropriação efetiva de Cristo como o Pão da Vida, a fé
desempenha um papel crucial. Isso ocorre não apenas através da pregação do Evangelho,
mas de maneira mais concreta na Ceia do Senhor, segundo Calvino. Neste sacramento,
Cristo não apenas nos é oferecido com todos os seus benefícios, mas também é recebido
por nós através da fé.
Calvino afirma que a Ceia do Senhor é um mistério tão profundo e complexo que
as palavras e conceitos humanos falham em expressá-lo adequadamente. É difícil
abranger em algumas palavras um mistério tão grandioso, que não pode ser totalmente
compreendido pela mente humana.
O pensamento de Calvino também denota que Cristo, a fonte da vida, ao assumir
a nossa natureza humana, se revelou a nós através de seu corpo e sangue, os quais foram
oferecidos por nós como meio de propiciar-nos vida. O que ocorre também no sacramento
da Ceia do Senhor. (Calvino, 1541, cap. XVII, p. 350).
Calvino afirma que a participação real do corpo e do sangue de Cristo na Ceia do
Senhor é operada pelo Espírito Santo, não pode ser descartado como uma mera expressão
figurada, onde o nome da coisa representada é transferido ao sinal. Embora seja aceitável
reconhecer que a fração do pão é um símbolo e não a própria substância, é essencial
compreender que, ao exibir esse símbolo, a realidade que ele representa também é
apresentada. Acreditar que Deus, o autor dessa instituição, permitiria um símbolo vazio
de significado é acusá-Lo de engano, o que seria uma afirmação imprópria. Portanto,
quando o Senhor utiliza o pão como símbolo para representar a participação verdadeira
de Seu corpo, não há dúvida de que a realidade está presente. (Calvino, 1541, cap. XVII,
p. 351)
Para Calvino, o sacro mistério da Ceia do Senhor é composto por dois elementos
distintos: os sinais corpóreos, que são visíveis aos olhos e representam realidades
invisíveis de acordo com a compreensão limitada da nossa fraqueza, e a verdade
espiritual, que é simultaneamente simbolizada e revelada pelos próprios sinais. (Klein,
2005, p. 92)
A apropriação de Cristo na Ceia do Senhor não resulta da presença física Dele no
pão, como alegam os adeptos do catolicismo romano, mas é efetuada diretamente pela
operação do Espírito Santo, segundo Calvino. 1
Calvino não cria na transubstanciação, na qual a matéria do pão se converte no
corpo de Cristo, isso não foi ensinado pelos primeiros autores cristãos. Essa ideia fictícia
surgiu como uma tentativa de explicar como o corpo de Cristo poderia estar presente
juntamente com a substância do pão, sem resultar em absurdos lógicos. Os primeiros

1
Institutas, IV, 10,11,12.
3

defensores da presença física de Cristo não conseguiam explicar como o corpo de Cristo
poderia se misturar à substância do pão sem levar a conclusões absurdas. Por isso, eles
recorreram a uma ficção: afirmaram que o pão se transforma no corpo de Cristo. No
entanto, essa transformação não ocorre literalmente; em vez disso, a ideia é que a
substância do pão desaparece para que o corpo de Cristo possa estar presente sob a forma
do pão. Essa concepção, apesar de adotada por alguns grupos religiosos, não encontra
respaldo nos ensinamentos dos primeiros séculos da igreja cristã.
Antes de tudo mais, temos que rejeitar a opinião que resultou dos sonhos dos
sofistas no tocante à transubstanciação (assim chamada por eles) como uma coisa
prodigiosa. 2
O que eles dizem, que o corpo está de tal modo mesclado com o pão
que ambos se tornam substancialmente uma só coisa, não somente
causa repulsa ao juízo comum dos homens em geral, mas também é
contrário à fé. Não é lícito, porém, dizem eles, glosar ou explicar dúbia
e temerariamente as coisas que estão claramente expressas na
Escritura.3
Outra posição que não é mais sustentável, segundo Calvino, é aquela que sugere
que o pão está invisivelmente unido ao corpo de Cristo, conhecida como
consubstanciação e defendida pelo luteranismo. Alguns observam que não é possível
ignorar a analogia entre o sinal (pão) e a coisa significada (corpo de Cristo) sem
comprometer a verdade do mistério. Eles reconhecem que o pão usado na Ceia é de fato
a substância de um elemento terreno e corruptível. No entanto, eles não concordam que
ocorre qualquer mudança real na substância do pão; ao invés disso, acreditam que o corpo
de Cristo está de alguma forma presente juntamente com o pão, sem que haja alteração
na natureza do pão em si. (Klein, 2005, p. 81)
João Calvino destaca a presença real de Cristo na Ceia do Senhor como uma
comunhão com o Cristo integral, e não apenas uma parte dele. Em sua visão, embora
Cristo esteja fisicamente ausente da terra, na Ceia, os participantes são verdadeiramente
alimentados do seu corpo e sangue. Calvino rejeita a ideia de uma presença corporal de
Cristo, enfatizando que a distância física não é um obstáculo para receber a carne que foi
crucificada. Ele ressalta que a presença de Cristo na Ceia não se manifesta de forma física,
mas sim em um relacionamento espiritual.4
Eu digo que, embora Cristo esteja ausente da terra com
respeito à carne, todavia na Ceia nós somos
verdadeiramente alimentados de seu corpo e sangue, e
possuindo a secreta virtude do Espírito, desfrutamos da
presença de ambos. E digo que a distância de lugar não é
obstáculo para apresentar a carne, que uma vez foi
crucificada, que é dada a nós como comida.5
Calvino argumenta que a comunhão com Cristo na Ceia não implica na
conversão dos elementos em seu corpo, tampouco na presença física de Cristo nos
elementos. Em vez disso, ele enfatiza a comunhão de relacionamento, em que os
participantes são elevados à presença de Cristo pela obra secreta do Espírito. Ao rejeitar

2
Institutas, IV, 8,9.
3
Institutas, IV, 12.
4
Institutas, IV 14.
5
Calvin, John. The Clear Explanation of Sound Doctrine Concerning the True Partaking of the Flesh and
Blood of Christ in the Holy Supper. Library of Christian Classics, vol. XXII, Calvin: Theological Treatises.
London: SCM Press, 1954, p. 309.
4

a teoria luterana de trazer Cristo até os participantes na Ceia, Calvino destaca a obra
interna e misteriosa do Espírito que une os crentes a Cristo.6
Para Calvino, a presença de Cristo na Ceia é evidenciada pelo poder e força
espirituais, sempre presente entre seu povo. Ele destaca que Cristo sustenta, fortalece,
desperta e protege seus seguidores, demonstrando sua presença de maneira espiritual e
eficaz. Em resumo, Calvino argumenta que a Ceia do Senhor é um meio pelo qual os
crentes participam espiritualmente do corpo e do sangue de Cristo, através da comunhão
proporcionada pelo poder do Espírito Santo.7

O PENSAMENTO CATÓLICO SOBRE A CEIA DO SENHOR

A compreensão da Ceia do Senhor na Igreja Católica tem sido uma parte central
da sua teologia e prática litúrgica ao longo dos séculos. O entendimento católico sobre a
Ceia do Senhor chamada pelos católicos de Eucaristia, é profundamente enraizado na
tradição, e foi formalizado em dogmas e ensinamentos ao longo dos anos.
Nos primeiros séculos da Igreja Cristã, as crenças e práticas em torno da Eucaristia
começaram a tomar forma. A ideia de uma presença real de Cristo no pão e no vinho foi
gradualmente desenvolvida. No século IX, com o crescimento do escolasticismo, a
teologia da transubstanciação foi formulada, afirmando que o pão e o vinho realmente se
tornam o corpo e o sangue de Cristo.
Tomás de Aquino: O famoso teólogo medieval contribuiu significativamente para
a formulação da doutrina da transubstanciação. Sua obra "Summa Theologica" aborda
extensivamente a Eucaristia. (Aquino, 1225, questão 73, p. 3462)
O Concílio de Trento (1545-1563) foi crucial na definição da doutrina católica
sobre a Eucaristia. O catecismo do Concílio de Trento (ou Catecismo Romano)
estabeleceu as bases para o entendimento católico da Ceia do Senhor. Segundo essa
doutrina, durante a Missa, o pão e o vinho são transformados na substância do corpo e
sangue de Cristo, mantendo apenas as aparências de pão e vinho.
Catecismo da Igreja Católica: Este catecismo oficial da Igreja Católica contém
uma seção dedicada à Eucaristia, detalhando a doutrina da transubstanciação e seu
significado na vida dos católicos. (McGrath, 1953, p. 116)
As obras dos Padres da Igreja Católica, como Inácio de Antioquia e Justino Mártir,
fornecem informações sobre as crenças e práticas eucarísticas nos primeiros séculos do
cristianismo. É importante notar que, além desses ensinamentos formais, a devoção à
Eucaristia na Igreja Católica é uma parte crucial da espiritualidade católica. A adoração
ao Santíssimo Sacramento e as celebrações eucarísticas são práticas centrais para os
católicos, refletindo a profunda importância que a Eucaristia tem na vida da igreja e de
seus fiéis.
O pensamento de João Calvino sobre a Ceia do Senhor e a perspectiva da Igreja
Católica Romana representam duas abordagens teológicas distintas e, por vezes,
conflitantes. Neste trabalho vamos abordar as diferenças e semelhanças, desde o contexto
histórico até o teológico, destacando as nuances de cada posição.
No século XVI, durante a Reforma Protestante, as divergências teológicas em
torno da Ceia do Senhor tornaram-se um ponto crucial de contenda. Calvino, um líder
reformado, e a Igreja Católica estavam inseridos nesse contexto de reforma e reafirmação
doutrinária.

6
Institutas, IV, 28.
7
Institutas, IV, 28,29,30.
5

A diferença central reside na interpretação da presença de Cristo nos elementos.


A Igreja Católica defende uma mudança substancial (transubstanciação), enquanto
Calvino acreditava numa presença espiritual mais simbólica.
Calvino sustentava uma visão simbólica da Ceia do Senhor, conhecida como a
doutrina da Presença Espiritual. Para ele, o pão e o vinho eram símbolos que ajudavam
os cristãos a lembrarem da morte sacrificial de Cristo. Embora a presença real de Cristo
estivesse presente espiritualmente, não havia transformação substancial dos elementos.
A Igreja Católica Romana adere à doutrina da Transubstanciação, que afirma que,
durante a Missa, o pão e o vinho se transformam literalmente no corpo e sangue de Cristo,
mantendo apenas as aparências físicas. Esse entendimento está enraizado na tradição,
especialmente reforçado pelo Concílio de Trento no século XVI. (McGrath, 2005, p. 591)
A Igreja Católica fundamenta sua doutrina na tradição e autoridade da igreja,
enquanto os reformados, incluindo Calvino, baseiam-se principalmente na Escritura.
Para Calvino, a participação na Ceia do Senhor era um ato espiritual por meio da
fé, enquanto para a Igreja Católica, a Missa é vista como um sacrifício propiciatório
continuado.
Na Igreja Católica, há um foco significativo na adoração ao Santíssimo
Sacramento (hóstia consagrada), enquanto os reformados geralmente não praticam essa
forma de adoração direta.
Quanto as semelhanças, ambas as perspectivas reconhecem a importância
sacramental da Ceia do Senhor na vida da igreja. Tanto Calvino quanto a Igreja Católica
enfatizam a centralidade da morte e ressurreição de Cristo na celebração da Eucaristia.
Assim, essas diferenças e semelhanças refletem as complexidades teológicas e
históricas da Ceia do Senhor ou Eucaristia, mostrando como as interpretações em relação
a esse tema divergiram durante a Reforma, e continuam a ser pontos de distinção entre
tradições teológicas. (McGrath, 2005, p. 589-591)

O PENSAMENTO DE MARTINHO LUTERO SOBRE A CEIA DO SENHOR

O pensamento de Martinho Lutero sobre a Ceia do Senhor é central na teologia


luterana, e tem influenciado profundamente o protestantismo. Vamos abordar suas ideias
desde o contexto histórico até o teológico, destacando as nuances de sua posição.
Lutero viveu no século XVI, um período de intensa controvérsia teológica e
reforma na igreja ocidental. Suas ideias foram fundamentais para o movimento da
Reforma Protestante, que buscava reformar e, em alguns casos, romper com as práticas
da Igreja Católica Romana. (McGrath, 2005, p. 101).
Lutero acreditava na presença real de Cristo na Ceia do Senhor, uma posição
conhecida como Consubstanciação. Ele rejeitava a ideia da Transubstanciação católica,
mas também não concordava com a visão simbólica da Ceia do Senhor, defendida por
reformadores como Ulrico Zuinglio. (Klein, 2005, p. 72).
Para Lutero, a Ceia do Senhor era uma dádiva de Deus aos crentes. Ele acreditava
que, juntamente com o pão e o vinho, os fiéis recebiam o corpo e o sangue de Cristo
espiritualmente. Essa presença real não envolvia uma mudança física nos elementos, mas
uma presença genuína de Cristo, que se unia espiritualmente aos crentes durante a
celebração da Eucaristia.
Lutero escreveu algumas obras relacionadas ao tema em questão, as quais
podemos citar:
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"A Liberdade de um Cristão" (1520): Nesta obra, Lutero defende sua visão da fé
justificadora, que está profundamente ligada à sua compreensão da Ceia do Senhor como
um ato de graça divina. (McGrath, 2005, p; 102)
"Da Ceia do Senhor" (1525): Neste texto, Lutero elabora sua teologia sobre a Ceia
do Senhor, explicando sua visão da presença real de Cristo nos elementos.
Lutero foi profundamente influenciado pelos escritos de Agostinho,
especialmente em relação à graça e à presença de Cristo na Ceia do Senhor.
Martinho Lutero acreditava que a Ceia do Senhor era um meio pelo qual os crentes
eram fortalecidos na fé e consolados em sua relação com Deus. Sua compreensão da
presença real de Cristo na ceia do Senhor continua a ser uma parte fundamental da
teologia luterana até os dias de hoje.
As visões de João Calvino e Martinho Lutero sobre a Ceia do Senhor, embora
compartilhem algumas semelhanças, apresentam diferenças teológicas distintas. Vamos
abordar as diferenças e semelhanças, destacando pontos cruciais de cada perspectiva.
Ambos Calvino e Lutero viveram durante a Reforma Protestante no século XVI,
uma época marcada por intensos debates teológicos e mudanças significativas na igreja
ocidental. Suas ideias sobre a Ceia do Senhor foram moldadas por esse contexto histórico.
Lutero defendia uma visão da Ceia do Senhor conhecida como
"consubstanciação". Ele acreditava na presença real de Cristo nos elementos da Ceia, mas
não defendia uma mudança substancial dos elementos. Para Lutero, o pão e o vinho
permaneciam, mas também estavam espiritualmente unidos ao corpo e ao sangue de
Cristo. Ele enfatizava a fé como o meio pelo qual os crentes recebiam o verdadeiro corpo
e sangue de Cristo na Ceia do Senhor. (McGrath, 2005, p. 594)
Calvino sustentava uma visão diferente, conhecida como "presença espiritual".
Ele via a Ceia do Senhor como um memorial simbólico do sacrifício de Cristo. Calvino
acreditava que, enquanto Cristo estava verdadeiramente presente na Ceia, essa presença
era espiritual e simbólica. Ele enfatizava a importância da participação espiritual e da
comunhão dos crentes com Cristo durante a Ceia. (Calvino, 1541, cap. XVII)
A diferença central residia na natureza da presença de Cristo. Lutero defendia uma
presença real, embora misteriosa e espiritual, enquanto Calvino enfatizava uma presença
espiritual e simbólica.
Para Lutero, a fé era crucial para receber o verdadeiro corpo e sangue de Cristo.
Calvino, embora reconhecesse a fé como importante, enfatizava mais a natureza
simbólica e espiritual da Ceia do Senhor.
Calvino colocava grande ênfase na comunhão espiritual com Cristo, enquanto
Lutero enfatizava a presença misteriosa e espiritual de Cristo nos elementos.
Quanto as semelhanças, ambos acreditavam em uma forma de presença de Cristo
na Ceia, embora suas interpretações diferissem.
Ambos viam a Ceia do Senhor como um sacramento significativo, um meio pelo
qual os crentes são lembrados do sacrifício de Cristo.
Em suma, enquanto ambos acreditavam na presença de Cristo na Ceia do Senhor,
suas interpretações variavam em termos da natureza e modo dessa presença, refletindo
diferenças fundamentais em suas teologias sacramentais. (Klein, 2005, p. 78)

O PENSAMENTO DE ULRICO ZWINGLIO SOBRE A CEIA DO SENHOR

Ulrico Zwinglio foi uma figura proeminente durante a Reforma Protestante no


século XVI, particularmente na Suíça. Sua visão sobre a Ceia do Senhor foi uma das mais
influentes durante esse período de intensos debates teológicos.
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Zwinglio defendia uma visão memorialista da Ceia do Senhor, considerando os


elementos (pão e vinho) como meros símbolos que representam o corpo e o sangue de
Cristo. Ele rejeitava a ideia de uma presença real ou espiritual de Cristo nos elementos e
via a Ceia como uma ordenança simbólica destinada a lembrar o sacrifício de Cristo.
Em suas obras "Ato ou uso da Santa Ceia" (1525) e “Um claro ensinamento sobre
a Ceia de Cristo” (1526): Zwinglio apresentou sua visão sobre a Ceia do Senhor,
argumentando que os elementos eram símbolos para lembrar os crentes do significado da
morte de Cristo. (Klein, 2005, p. 52)
Zwinglio foi influenciado pelo pensamento humanista e pelas ideias de Erasmo
de Roterdã, que enfatizavam a razão e a interpretação racional das Escrituras. Ele também
se baseou nas Escrituras para defender sua visão memorialista.
Zwinglio teve um famoso debate com Martinho Lutero sobre a Ceia do Senhor
durante o Colóquio de Marburgo em 1529. Esse debate destacou as profundas diferenças
teológicas entre suas visões, com Zwinglio defendendo a natureza simbólica dos
elementos. (Calvino, 1541, cap. XII, p. 4)
Calvino sustentava uma visão conhecida como "presença real espiritual", que
estava entre a visão memorialista de Zwinglio e a visão da consubstanciação de Lutero.
Calvino acreditava na presença espiritual de Cristo nos elementos da Ceia, mas via essa
presença como uma realidade espiritual, acessível pela fé.
Quanto as semelhanças sobre o pensamento da Ceia do Senhor, ambos Zwinglio
e Calvino rejeitaram a doutrina católica da transubstanciação, que ensina que os
elementos da Ceia do Senhor se transformam literalmente no corpo e sangue de Cristo.
Também concordavam que os elementos da Ceia eram símbolos que
representavam o corpo e o sangue de Cristo, em vez de conterem uma presença física ou
substancial.
Em relação as diferenças, Zwinglio via a Ceia como um simples memorial
simbólico, enquanto Calvino acreditava numa presença real espiritual de Cristo nos
elementos, acessível pela fé. (Matos, 2008, p. 147).
Enquanto Zwinglio enfatizava a importância da fé como meio de participação na
Ceia, Calvino também enfatizava a soberania divina na eleição dos crentes, que eram
capacitados pela fé para participar da presença de Cristo na Ceia.
A visão de Calvino sobre a Ceia teve uma influência significativa na teologia
reformada subsequente, especialmente nas tradições presbiterianas e reformadas,
enquanto a visão de Zwinglio também continuou a influenciar várias denominações
reformadas, mas especialmente aquelas que se alinhavam mais estreitamente com suas
ideias memorialistas.
Em suma, enquanto ambos rejeitaram a transubstanciação e compartilharam uma
visão simbólica dos elementos da Ceia, a principal diferença entre as teologias de
Zwinglio e Calvino reside na natureza da presença de Cristo e na forma como a fé dos
crentes os capacita a participar deste sacramento. (Klein, 2005, p. 49-70).

O QUE FOI O CONSENSUS TIGURINOS DE 1546?

O Consensus Tigurinus, também conhecido como Consenso de Zurique, foi um


documento teológico importante elaborado em 1549 para unificar as visões dos
reformadores suíços de língua alemã, principalmente seguidores de Ulrico Zwinglio, e os
reformadores franceses liderados por João Calvino. Este consenso procurou resolver as
divergências doutrinárias sobre a Ceia do Senhor, que eram uma questão crucial na
Reforma Protestante.
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Após a morte de Zwinglio em 1531, as igrejas reformadas na Suíça enfrentaram


desafios teológicos significativos, especialmente em relação à compreensão da Ceia do
Senhor. Além disso, havia um desejo de unificar as diversas facções dentro do movimento
reformado.
O Consensus Tigurinus foi redigido principalmente por Heinrich Bullinger, um
sucessor de Zwinglio em Zurique, e publicado em 1549. O documento defendia a visão
calvinista da Ceia do Senhor, que enfatizava a presença espiritual de Cristo nos elementos
(pão e vinho) para os crentes, acessível pela fé, em oposição à visão memorialista de
Zwinglio. Entre os principais pontos podemos destacar os seguintes:
Presença Espiritual: O Consensus Tigurinus defendia a presença espiritual de
Cristo na Ceia, significando que os crentes, pela fé, participavam espiritualmente do corpo
e do sangue de Cristo nos elementos.
Rejeição da Presença Física: Contrariamente à doutrina católica da
transubstanciação, o documento rejeitava a ideia de que os elementos se transformavam
fisicamente no corpo e no sangue de Cristo.
Participação pela Fé: O consenso enfatizava que a participação na Ceia e a
recepção dos benefícios espirituais dela derivados ocorriam pela fé, não pela presença
física dos elementos.
O Consensus Tigurinus foi crucial para unificar as comunidades reformadas suíças
e francesas sob uma compreensão teológica comum da Ceia do Senhor. Além disso,
influenciou outras igrejas reformadas na Europa e estabeleceu uma base teológica
importante para o desenvolvimento do calvinismo. A visão apresentada no documento é
fundamental para a compreensão da Ceia do Senhor nas tradições reformadas até os dias
de hoje. (Klein, 2005, p. 97-103)

ACUSAÇÕES LIBERAIS QUANTO À CELEBRAÇÃO DA CEIA NAS IGREJAS


HISTÓRICAS

As acusações liberais em relação à celebração da Ceia do Senhor nas igrejas


históricas geralmente estão relacionadas a interpretações mais simbólicas ou menos
teológicas sobre esse sacramento. Algumas interpretações liberais tendem a minimizar a
importância da expiação substancial de Cristo na cruz. Certas abordagens liberais podem
ver a Ceia como uma prática meramente comemorativa, negligenciando seu aspecto
espiritual. Muitas igrejas liberais tendem a ver a Ceia do Senhor como um símbolo ou
memorial simbólico do sacrifício de Cristo.
John Shelby Spong, autor do livro “Um novo cristianismo para um novo mundo”,
aborda em sua obra temas liberais sobre a fé cristã, entre esses está o sacramento da Ceia
do Senhor.
Spong parte do princípio Teísta de que Deus não é um ser sobrenatural, uma
divindade, com poder de intervir no mundo, na vida das pessoas, na guerra, ou na cura de
qualquer doença de uma pessoa. Da mesma forma não crê em Jesus como a encarnação
de um Deus sobrenatural, com poder para operar milagres de cura, para intervir no
sofrimento e na dor humana, nem tampouco crê no seu nascimento virginal, ou na sua
ressureição, conforme relatado nas Sagradas Escrituras.
O autor critica a interpretação tradicional da ceia do Senhor, chamada de
"sacrifício da missa" ou "eucaristia", que retrata o sacrifício de Jesus na cruz como um
meio necessário para apaziguar a divindade ofendida. Essa visão, segundo ele, é
questionada por diversas razões. Spong, sugere que essa interpretação representa Deus
9

como uma divindade que exige um sacrifício humano para perdoar a humanidade, o que
é visto como problemático pelos padrões modernos.
Além disso, aponta para a ênfase excessiva no sangue de Jesus, levando a uma
abordagem quase fetichista do cristianismo, seja através de hinos ou da participação
sacramental.
Portanto, a interpretação litúrgica de Spong sobre a ceia do Senhor baseada em
sacrifício humano e redenção através do sangue de Jesus é vista como problemática e não
condizente com as compreensões científicas e éticas modernas. (Spong, 2006, p. 134-
139).

COMO A TEOLOGIA REFORMADA RESPONDE A ESSAS ACUSAÇÕES

A teologia reformada responde às críticas liberais sobre a ceia do Senhor


destacando a importância da fé, a natureza simbólica dos elementos, a livre oferta de
Cristo e a interpretação contextual e simbólica das passagens nas Sagradas Escrituras
relacionadas à Ceia.
Em primeiro lugar, a teologia reformada enfatiza a importância da fé na
compreensão da Ceia do Senhor. O ato de comer o pão e beber o vinho durante a ceia
simboliza a participação e aceitação espiritual dos benefícios do sacrifício de Cristo, em
vez de uma compreensão literal do corpo e sangue de Cristo presentes nos elementos da
ceia. A teologia reformada destaca a natureza simbólica da ceia, enfocando que os
elementos (pão e vinho) são símbolos que representam os ensinamentos bíblicos sobre o
sacrifício de Cristo. A ceia é uma ordenança instituída por Jesus [Mt 26.26-28] para
lembrar simbolicamente seu sacrifício, servindo como uma maneira de edificar a fé dos
crentes.
Em relação às objeções ao sangue de Cristo, a teologia reformada frequentemente
aponta para passagens nas Sagradas Escrituras que usam o termo "sangue"
simbolicamente para se referir ao sacrifício de Cristo. A linguagem do sangue é uma
metáfora que enfatiza a purificação espiritual, não uma compreensão literal do sangue de
Cristo.
Quanto às críticas sobre a visão de Deus como uma autoridade intransigente que
exige sacrifício humano, a teologia reformada através de uma correta interpretação das
Sagradas Escrituras, enfatiza a compreensão do sacrifício de Cristo como um ato
voluntário de amor divino. Cristo, ofereceu-se livremente para a redenção da humanidade,
como um ato gracioso para reconciliar a humanidade consigo mesma.

CONCLUSÃO

Este trabalho foi extremamente importante para lançar luz sobre o tema da Ceia
do Senhor. Ao explorarmos as complexidades da Ceia do Senhor no contexto do
pensamento cristão, é evidente que este sacramento central tem sido objeto de intensos
debates, reflexões e interpretações ao longo dos séculos.
A análise das perspectivas de Calvino, profundamente enraizada na reverência
pelas Escrituras e na teologia cuidadosa, destaca-se como uma interpretação marcante
que continua a influenciar os círculos teológicos contemporâneos. Juntamente com as
visões de Lutero, que enfatizam a presença real de Cristo nos elementos da Ceia, e ainda
as interpretações simbólicas de Zwinglio, vemos uma riqueza de pensamento que reflete
a diversidade do cristianismo.
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Esse estudo também revelou as críticas liberais sobre a celebração da Ceia nas
igrejas históricas, que muitas vezes questionam a natureza do sacrifício e a representação
simbólica. A teologia reformada, ao enfatizar a importância da fé, a natureza simbólica
dos elementos e a compreensão do sacrifício de Cristo como um ato gracioso, responde a
essas críticas de maneira sólida e contextualizada.
Concluímos, portanto, que este trabalho demonstra que a Ceia do Senhor não é
apenas um ritual litúrgico, mas um reflexo das complexidades teológicas e das diferentes
interpretações que permeiam o pensamento cristão. Ao compreender essas diversas
perspectivas, podemos apreciar a riqueza e a profundidade do pensamento cristão, porém
com a devida observância da fé e compreensão das Sagradas Escrituras.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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C. Galache e Fidel Garcia Rodrigues. São Paulo: Loyola. 2003.

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