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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168

Resenha
Dario de Araujo Cardoso*

HORTON, Michael. Calvino e a vida cristã. Trad. Jader Santos. São


Paulo: Cultura Cristã, 2017. 304p.

Calvino e a Vida Cristã é uma preciosa exposição do conceito de piedade


reformada descrita a partir do pensamento de João Calvino. A obra permite ver
a riqueza espiritual que dá sustentação a essa tão influente tradição teológica.
Sua tese principal é a afirmação de que havia uma íntima relação entre a teo-
logia e a prática na piedade de Calvino. Não obstante, em vários momentos
não há uma demonstração de como o pensamento teológico exposto produziu
reflexos concretos na prática cristã reformada. Na maior parte das vezes essa
relação ficou apenas em tese. Caberá ao leitor depreender ou, até mesmo, de-
senvolver as muitíssimas aplicações insinuadas pelo texto. A exposição é rica
e de leitura agradável e busca percorrer de modo abrangente o pensamento
teológico do reformador.
O autor, Michael Horton, reside na Califórnia, onde é professor de Teolo-
gia Sistemática e Apologética no Westminster Theological Seminary e pastor
auxiliar da Christ United Reformed Church. Tem o seu PhD pela Universidade
de Coventry e pelo Wycliffe Hall, em Oxford. É autor de mais de vinte livros,
grande parte deles publicados no Brasil pela Editora Cultura Cristã.
Horton divide sua exposição em 14 capítulos divididos em uma introdu-
ção e quatro partes intituladas Vivendo para Deus, Vivendo em Deus, Vivendo
no corpo e Vivendo no mundo. Apresentamos a seguir um breve resumo des-
sas seções e de seus capítulos. A Introdução tem dois capítulos e descreve o

* Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
manas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências
da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no
CPAJ.

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CALVINO E A VIDA CRISTÃ

contexto da piedade de João Calvino expondo o seu histórico ministerial e as


fontes do seu pensamento.
No capítulo 1 – Calvino sobre a vida cristã: uma introdução – Horton
mostra que o mundo em que Calvino vivia era moldado por uma cristandade
abrangente, mas em ruínas. A despeito disso, os reformadores não buscaram
criar uma nova igreja, mas renovar e aprofundar a piedade cristã. Isso foi feito
por meio da ampliação do sentido da piedade e pelo ensino do evangelho a
todos. Segundo Horton, Calvino compreendia a piedade como um termo que
abrangeria tanto a fé como a prática cristãs, pois toda a sua vida era vivida
na presença de Deus. Passa-se então a mostrar como foi o temor de Deus, e
não um projeto pessoal, que transformou Calvino no reformador de Genebra.
Também é interessante a descrição do desenvolvimento dos valores pastorais
de Calvino, o reconhecimento de suas próprias falhas e sua disposição para
auxiliar aqueles que precisavam de orientação e para buscar o consenso e a
unidade da igreja. Por fim, o capítulo discorre sobre as lendas e caricaturas
acerca da vida e das práticas de Calvino.
O capítulo 2 – Calvino sobre a vida cristã: em contexto – dedica-se a
expor as referências teológicas de Calvino. Em “O Calvino católico”, Horton
descreve o compromisso de Calvino com a tradição cristã, sua formação e seu
empenho em demonstrar a vinculação de sua teologia com os pais da Igreja
e os teólogos medievais. Em seguida, mostra que, a despeito das diferenças
de contexto e de temperamento em relação a Lutero, Calvino demonstrava o
mesmo anseio e compromisso com a pregação evangélica da justificação pela fé
em Cristo. Por fim, são apresentados três elementos determinantes da piedade
de Calvino: a exclusividade das Escrituras para o estabelecimento da fé e da
prática cristãs; o modelo de distinção sem separação do Credo de Calcedônia
(451 d.C.) e a teologia pactual.
Os três capítulos seguintes formam a parte 1 do livro, intitulada “Viven-
do diante de Deus”. Eles tratam do conhecimento de Deus, da mensagem das
Escrituras e da obra de Cristo, sempre mostrando a correspondência entre o
divino e o humano.
O capítulo 3 – Conhecendo a Deus e a nós mesmos – mostra a profunda
relação entre o pensamento teocêntrico de Calvino e sua antropologia. O que
pensamos de Deus afeta diretamente o que pensamos de nós mesmos, de forma
que conhecer a Deus e experimentar a Deus são coisas inseparáveis. Verifi-
camos que, para Calvino, “conhecer a Deus [...] requer conteúdo intelectual,
certamente, mas é, acima de tudo, um relacionamento de amor e confiança
com base em uma comunicação confiável” (p. 50). Nesse aspecto, Calvino
mostra que o conhecimento de Deus como criador é universal e universalmente
suprimido pelos homens. Daí a necessidade de uma revelação especial, que
nos conduza no correto e redentor conhecimento de Deus em Jesus Cristo.

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As Escrituras e o seu conteúdo são o tema do capítulo 4 – Atores e enredo.


Nas Escrituras o Senhor revela e aplica o plano da salvação. Nelas conhecemos
a Deus em sua plenitude trinitária, a condição humana como imagem e seme-
lhança de Deus e o significado da história humana na tríade criação, queda e
redenção. Dessa forma, Calvino fundamenta uma visão realista, mas altamente
valorizadora, acerca da natureza e do potencial humanos restaurados pela obra
de Cristo. Temas como pecado original, graça comum, graça especial e pro-
vidência são apresentados para mostrar o modo como Deus atua restaurando
a ordem no mundo criado e a piedade no coração dos homens, mesmo nos
momentos de aflição e de dor.
A parte 2 é denominada “Vivendo em Deus” e trata da mediação de Cristo
e de nossa união com ele. O capítulo 5 – Cristo, o mediador – propõe-se a de-
monstrar como Calvino apontava Jesus Cristo como o único modo de superar
a diferença existente entre o Deus santo e as criaturas pecaminosas. Quando
estamos em Cristo não apenas vivemos perante Deus, mas vivemos em Deus.
Horton mostra como Calvino descreveu a pessoa e o triplo ofício de Cristo,
bem como os resultados de sua obra. Neste capítulo, vemos como a cristologia
que propunha distinção sem separação, tomada do Credo de Calcedônia, foi
decisiva para a visão de Calvino acerca da vida cristã e para o enfrentamento
dos problemas de sua época. Calvino também enfatizou a suficiência de Cristo
para a nossa salvação. Uma vez que Cristo uniu-se a nós em sua encarnação,
nós fomos unidos a ele em sua morte, ressurreição e ascensão, e experimen-
tamos todos os seus efeitos e benefícios.
Os efeitos e os benefícios de nossa união com Cristo são o tema do ca-
pítulo 6 – Dádivas da união com Cristo. Para Calvino, a vida cristã consiste
em alimentar-se das ricas verdades do evangelho e em crescer nesse solo que
produz o fruto do amor e das boas obras. Horton descreve o pensamento de
Calvino sobre o chamado eficaz, a justificação, a santificação e a adoção,
privilégios que podem ser descritos como um banquete preparado por um pai
generoso. É muito interessante o ponto em que Horton afirma que, em Calvino,
a doutrina da predestinação, conhecida desde Agostinho, deixou de ser uma
questão especulativa e passou a ser tratada como “um artigo da alegria do
evangelho” (p. 118), um benefício que recebemos em decorrência de nossa
união com Cristo.
A parte 3 recebe o nome “Vivendo no corpo” e busca superar a visão
medieval na qual a vida cristã era vista como dependente do compromisso e do
esforço do crente, como se a piedade fosse um atributo humano. Na piedade
reformada o esforço e as boas obras não são o conteúdo, mas o resultado da
piedade que a obra de Cristo gera em nós.
No capítulo 7 – Como Deus entrega sua graça –, a piedade é apresenta-
da como o fruto da pregação da palavra e da participação nos sacramentos.
Horton afirma que Calvino considerava a pregação como palavra sacramental

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de Deus. Por meio dela, Deus não apenas anuncia, mas realmente produz a
vida da igreja. Destaca, no entanto, que a pregação da palavra não se resumia
ao sermão, mas estava presente em todo o culto por meio das leituras, orações
e cânticos. No pensamento de Calvino, as bênçãos comunicadas pela palavra
eram distribuídas pelos sacramentos. Eles são, portanto, um ato primariamente
de Deus e não dos homens. Através do batismo, Deus confirma que nos fez
participantes da morte e da ressurreição de Cristo. Na Ceia do Senhor, Cristo
se faz presente dando-se a si mesmo com todos os seus benefícios. Por fim,
Horton demonstra que os benefícios espirituais da piedade cristã são experi-
mentados na vida comunitária.
Diante disso, o culto público é o tema do capítulo 8 – O culto público como
um “teatro celestial” da graça. Para Calvino, no culto público a igreja militante
e a igreja triunfante se reúnem para apreciar as obras de Deus e compartilhar
as dádivas que recebemos dele. Em seguida, Horton faz uma descrição do
pensamento do Calvino acerca do uso das artes visuais e da música no culto.
Em ambos, a principal preocupação de Calvino era que o foco do crente não
fosse desviado da verdadeira adoração a Deus.
O capítulo 9 – Aceso com ousadia: oração como “o exercício principal
da fé” – tem a oração como foco. Aqui é mostrado que a oração é tanto um
exercício público quanto particular e que essas esferas não devem ser separa-
das. A oração é descrita como o primeira e principal parta de piedade. Todas
as demais ações piedosas derivam de invocar o nome do Senhor. Para Calvi-
no, a oração precisa ser cheia de emoção e de confiança no Senhor e deve ser
reconhecida como o meio pelo qual Deus realiza os seus propósitos e mostra
sua generosidade para conosco.
Lei e liberdade na vida cristã é o título do capítulo 10. Aqui o problema
da relação entre lei e evangelho é tratado sob a perspectiva dos três usos da lei
propostos por Melanchton e adotados por Calvino. Dessa forma, a salvação
somente pela graça e por meio da fé não entra em conflito com uma vida de
santidade movida pela gratidão e orientada pelos mandamentos da Palavra
de Deus.
No capítulo 11 – A nova sociedade de Deus – o tema é a igreja. Para os
reformadores, o que caracteriza a igreja não é o seu vínculo institucional, nem
a santidade dos seus membros (afirmação que à primeira vista nos surpreende),
mas o evangelho que, como foi visto no capítulo 7, é a manifestação visível
de Deus na palavra pregada e nos sacramentos. Horton mostra que na visão de
Calvino a verdadeira igreja é aquela que está transformando e não afastando
pecadores. Para Calvino, a disciplina não era uma marca da igreja, mas uma
aplicação da palavra e dos sacramentos promovida por pastores e presbíteros.
Discussão polêmica que vale a pena ler. Nela encontra-se também uma palavra
aos contemporâneos desigrejados. O capítulo traz uma boa apresentação do
pensamento do Calvino sobre generosidade e hospitalidade dos crentes, unidade

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e catolicidade da igreja, aspectos essenciais da propagação da mensagem do


evangelho do Reino no mundo.
A vida no mundo é o tema da quarta e última seção. No capítulo 12 – Cristo
e Cesar –, Horton trata da visão de Calvino sobre a relação entre a igreja e o
estado. Para Calvino, o reino de Cristo e os reinos deste mundo são distintos,
mas não antagônicos. Para ele a igreja não deve buscar o poder temporal para
si, mas deve cooperar para o bem da sociedade. Tão pouco o estado deve gover-
nar sobre a igreja, antes deve contribuir para que ela livremente cumpra a sua
missão. De acordo com Horton, Calvino também rejeitou a ideia de uma cultura
redentora ou de um estado fundado sobre as leis mosaicas, mas apoiou-se na
graça comum como o modo como Deus conduz a sociedade humana, fazendo
com que esta reflita sua sabedoria, bondade, verdade, justiça, beleza e amor.
O capítulo 13 – Vocação: onde se encaixam as boas obras – mostra que
as boas devem ser entendidas no contexto da vocação e não da justificação.
Elas não são dirigidas a Deus para alcançar mérito, mas ao próximo como um
serviço de Deus em nós. “A piedade bíblica, de acordo com Calvino, orienta
nossa fé em direção a Deus e nosso amor em direção ao próximo” (p. 251).
Dessa forma, Horton mostra como Calvino, de modo particular, incentivou o
trabalho como uma resposta ao chamado de Deus. Outra importante observação
é que a preocupação do reformador era com o serviço ao próximo e não com
uma transformação na sociedade. Ainda assim, sua visão teve um impacto
inegável sobre a cultura, tanto na ciência, quanto nas artes.
O último capítulo – Vivendo o hoje a partir do futuro: a esperança da
glória – apresenta o olhar de Calvino sobre a vida futura e o seu impacto sobre
a vida cristã. A perspectiva da restauração deste mundo faz com que a autone-
gação assuma posição de destaque não como um meio de salvação, mas como
o anseio de algo maior que Cristo conquistou para nós. A piedade de Calvino
faz ver que a nossa salvação não está desvinculada da restauração de toda a
realidade. Este capítulo termina com um tocante registro das ações e palavras
de Calvino nos meses que antecederam sua morte.
Recomendamos fortemente a leitura do livro. Ele será muito útil para
aqueles que estão iniciando seus passos na teologia reformada e os ajudará a ter
uma visão mais abrangente da teologia e do sistema de pensamento propostos
por Calvino. Será de grande valor também para aqueles que possuem maior
experiência com a tradição reformada e lhes dará a oportunidade de vislum-
brar a teologia de Calvino numa abordagem mais direta, revisando conceitos
e reforçando posicionamentos.
A publicação feita pela Editora Cultura Cristã é apresentada sob o selo
“Série Teólogos e a Vida Cristã”, dando início ao que parece ser uma promissora
linha editorial. A tradução de Jader Santos é muito competente e apenas uma ou
duas vezes suscitou dúvida sobre o sentido das frases ou o desejo de verifica-
ção do texto original. A diagramação é muito bem feita e propicia uma leitura

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confortável. A nota negativa fica para a capa escura que dá um tom soturno
(fruto de um estereótipo) que destoa da perspectiva ampla e luminosa que a
obra apresenta sobre a piedade de Calvino. Expressamos nossos cumprimentos
à Editora Cultura Cristã pela iniciativa e nossa expectativa pela publicação de
outras obras na série Teólogos e a Vida Cristã.

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