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Obra de conservação e manutenção das fachadas do


antigo prédio da Bolsa Oficial do Café – Museu do
Café – Santos/SP
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I Cristiane de Souza Py Vieira I

Qualquer restauração coloca, a todo o instante, questões novas e imprevistas, que é necessário resolver se conformando
mais ao espírito do que à letra da teoria e mantendo rigorosamente o método. [1]

Apresentação

A Bolsa Oficial do Café, localizada na cidade de Santos, estado de São Paulo, inaugurada em 1922 em comemoração ao
Centenário da Independência, a fim de centralizar, organizar e controlar as operações do mercado cafeeiro, traduzia-se como
arquitetura típica do ecletismo que caracterizou as mais importantes obras daquele período [2].

O edifício, que dispõe de três pavimentos e de ricas fachadas ornadas (Fig. 1), ocupa um terreno que faceia as ruas Tuiuti,
Frei Gaspar e XV de Novembro (Fig. 2), no centro histórico santista, tendo sido construído, portanto, em um dos lugares
mais tradicionais desse município.

Fig. 1. Fachadas do antigo prédio da Bolsa Oficial do Café – Museu do Café. (fonte: acervo Py Vieira
Arquitetura)

Fig. 2. Situação sem escala e fases da obra; Imagem área. (fonte: acervo Py Vieira Arquitetura; Google Map) [3]

Tombada pelas instâncias municipal, estadual e federal [4], a edificação passou nos anos 1990 por ampla intervenção de
restauro e desde 1998 abriga o Museu do Café.

Em 2019, a pedido do Instituto de Preservação e Difusão da História do Café e da Imigração – INCI, foi finalizado o projeto
de conservação e manutenção das fachadas históricas, sob responsabilidade do escritório Bolanho Arquitetura e Construção;
em junho de 2020, o Estúdio Sarasá Conservação e Restauração S/S Ltda. foi contratado para executar a obra e a empresa
Py Vieira Arquitetura Ltda. para fiscalizá-la.

Logística
Os primeiros desafios encontrados foram a instalação do canteiro e a montagem do andaime para a execução dos serviços.
Foi preciso desenvolver uma logística e infraestrutura de apoio à obra que respeitassem não apenas o dia a dia do Museu e
de sua Cafeteria, pois estes permaneceriam abertos ao público, mas também as exigências feitas pela prefeitura de Santos
para a montagem do andaime sobre o passeio público.

Para o canteiro de obras, foram cedidas, pela equipe de manutenção do Museu, duas salas, uma de apoio para a instalação de
escritório e almoxarifado e outra destinada à oficina de esquadrias de madeira (Fig. 3), bem como foi autorizado o
compartilhamento do refeitório e dos vestiários já existentes. Além disso, um terreno vazio, adjacente à construção, também
foi cedido para apoio da obra. Para fornecimento de água e de energia elétrica, foram instalados hidrômetros e quadros robôs
para controle do consumo e posterior reembolso ao Museu.

Fig. 3. Oficina de esquadrias de madeira e escritório/almoxarifado instalados em espaços cedidos pelo Museu.
(fonte: acervo Py Vieira Arquitetura)

O projeto de arquitetura dividiu a obra em três fases (Fig. 2). Para atender à primeira fase, que compreendeu a rua XV de
Novembro, rotunda e parte da rua Frei Gaspar, foi montada uma estrutura de andaime multidirecional até o nível da cimalha.
Esse tipo de andaime, apesar de ser mais oneroso que o convencional andaime “fachadeiro”, é um equipamento que possui
muito mais versatilidade, pois é de fácil montagem e permite diversas angulações e avanços em balanço, imprescindíveis
para se ter acesso às reentrâncias de fachadas ricamente ornamentadas. Na área da rotunda, em que se localiza o acesso do
público, foi deixado um túnel para passagem dos visitantes e também foi instalada uma rampa metálica provisória para o
acesso de pessoas com deficiência – PCD, haja vista que o acesso existente específico para este público ficou inacessível em
função da estrutura instalada. Na galeria do térreo foi montada uma estrutura de tapume a fim de separar a área dos
visitantes daquela em que estavam sendo executados os trabalhos (Fig. 4 e 5).

Além do diário de obras e do Diálogo Diário de Segurança – DDS, é realizada fiscalização quinzenal, bem como enviados
mensalmente relatórios com fotos, tanto pela equipe de obra como pela fiscalização.

Fig. 4. Andaime multidirecional que permite angulações e balanços; túnel de passagem de visitantes sob o
andaime da rotunda e rampa provisória de acesso para público PCD. (fonte: acervo Py Vieira Arquitetura)
Fig. 5. Vista geral do andaime multidirecional da fase 1 com tela de proteção e placas de identificação da obra;
tapume para isolamento das áreas de trabalho e de visitantes. (fonte: acervo Py Vieira Arquitetura)

Conhecendo o patrimônio e o início dos trabalhos

Com a logística devidamente implementada e as instalações provisórias finalizadas, deu-se início à obra. Primeiramente,
procedeu-se à coleta de amostras de acabamentos e de argamassas para a realização dos testes laboratoriais, bem como
foram feitas limpezas superficiais.

Os testes laboratoriais, realizados pelo Estúdio Sarasá, verificaram o traço, componentes e granulometria das argamassas e
dos revestimentos históricos, com vistas à sua reconstituição no preenchimento de lacunas – conforme indicado no mapa de
danos do projeto de arquitetura –, e nas áreas em que os testes de percussão/som cavo (popularmente conhecido como “bate-
choco”), devidamente realizados pela equipe de obra, demonstraram existir argamassas que não se encontram mais aderidas
ao suporte (Fig. 6).

Fig. 6. Relatório de análise de argamassas e de amostras para a reconstituição de lacunas. (fonte: relatórios de
obra Estúdio Sarasá)

Posteriormente, foram feitas amostras da argamassa, dos acabamentos em argamassa raspada e também da argamassa de
revestimento que mimetiza o arenito rosa de Itu que reveste o conjunto de esculturas localizado no pórtico da rotunda. A
aprovação dessas amostras se deu conjuntamente pelas equipes de obra, de fiscalização e de manutenção do Museu. Faz-se
importante salientar que tanto as argamassas e os revestimentos para reconstituição assim como a água de cal utilizados na
obra foram produzidos na central de argamassas do Estúdio Sarasá, localizada na cidade de São Paulo, e transportados para a
obra, em Santos, em baldes de 18 litros (argamassa) e em galões (água de cal).

A fim de evitar a formação de ninhos de pombos, as áreas com sulcos mais profundos entre os ornatos também estão sendo
preenchidas com argamassa, deixando um suave caimento, de forma a não mais permitir que haja a formação desses ninhos,
nem o acúmulo de água – causa de algumas das patologias encontradas.
O acúmulo de guanos de pombos é uma das patologias mais presentes nas fachadas e galerias, sendo o que mais vem
causando danos a esse patrimônio edificado. Nesse sentido, o supracitado preenchimento dos sulcos auxiliará a impedir a
formação de ninhos, mas não o pouso e permanência dessas aves entre os ornatos. Algumas intervenções realizadas
anteriormente (espícula e gel), além de terem prejudicado a materialidade e a estética dos ornatos, não se mostraram
satisfatórias, portanto, estão sendo retiradas, conforme solicitado no memorial descritivo do projeto (Fig. 7).

Fig. 7. Ornatos com guanos; gel e espículas antes dos procedimentos de retirada e de limpeza. (fonte: acervo Py
Vieira Arquitetura)

Encontra-se em fase de estudos a implantação de um sistema de repelência eletromagnética de pombos nas galerias, rotunda
e fachadas. Tal sistema eletrônico emite um campo eletromagnético pulsante que é sentido apenas pelos pombos, o que faz
com que estes se afastem das áreas protegidas.

Os serviços realizados contemplaram não apenas limpeza, conservação e manutenção dos revestimentos das fachadas e das
esquadrias, mas também das calhas, bem como troca de telhas quebradas, retirada de toda fiação e equipamentos de
iluminação inadequadamente instalados (causa de algumas patologias). Ademais, foi realizada impermeabilização das
cimalhas e peitoris, restauro da cobertura em cobre da cúpula da rotunda e pintura de seu forro, impermeabilização dos pisos
dos balcões, inversão e instalação de barra antipânico nas portas localizadas nas rotas de fuga, retirada dos socos em
argamassa que avançam nas calçadas (com posterior colocação de acabamento em granito cinza andorinha), restauro das
luminárias, mapeamento dos pisos em cerâmica da galeria do térreo e também da galeria superior, mapeamento dos
condutores de águas pluviais e, ao término da obra, levantamento a Laser Scan para uma base de dados em nuvem de pontos
da fachada restaurada (Fig. 8).

Fig. 8. Impermeabilização das cimalhas; limpeza e conservação das calhas; restauro das luminárias (antes e
depois); prospecção e retirada dos socos. (fonte: acervo Py Vieira Arquitetura)

Adversidades no decorrer dos trabalhos

Com a estrutura e a logística esquematizadas e os testes realizados, novos desafios se impuseram. A equipe de obra e a de
fiscalização observaram que a pedra de arenito rosa de Itu que reveste a área da fachada do pavimento térreo possuía uma
camada de película esbranquiçada, supostamente de base acrílica aplicada em uma intervenção anterior; tal película já se
encontrava desgastada, mas ainda impregnada à pedra, o que impossibilitava o trabalho de tratamento de conservação e de
manutenção, conforme ditava o memorial descritivo do projeto de arquitetura.

Foram, então, empreendidos diversos testes e, para que houvesse a realização de um trabalho efetivo que respeitasse as boas
práticas de conservação e de restauro, fazia-se necessária a remoção da película por meio dos seguintes procedimentos:
aplicação de removedor pastoso em gel, com o auxílio de trincha; remoção do excedente com espátula, após tempo de
reação, e subsequente hidrojateamento com detergente. Para a remoção completa da película, foi necessária a repetição
desses procedimentos por duas vezes e, em algumas áreas, por três; após a remoção da película e a posterior limpeza, foi
realizada a aplicação de hidrofugante e recomposição dos rejuntes (Fig. 9).
Fig. 9. Película de aspecto esbranquiçado aderida ao arenito rosa de Itu; visão microscópica do granito antes e
depois da remoção da película; recomposição dos rejuntes. (fonte: relatórios de obra Estúdio Sarasá; acervo Py
Vieira Arquitetura)

Os trabalhos continuam – a tecnologia a favor do patrimônio

Para o início da segunda e da terceira fases da obra, que abrangem o restante da fachada da rua Frei Gaspar, a Torre e a
fachada da rua Tuiuti, além do andaime multidirecional, o serviço vem sendo realizado também por cordeiros profissionais,
em especial nas áreas de acesso mais difícil, tais como, por exemplo, a Torre do relógio. Uma câmera GoPro anexada ao
capacete do cordeiro-restaurador envia imagens em tempo real para a equipe que fica em terra, permitindo, desse modo, uma
avaliação por toda a equipe no que concerne às patologias encontradas e aos melhores procedimentos a serem adotados (Fig.
10).

Fig. 10. Cordeiro-restaurador com câmera GoPro anexada ao capacete. Transmissão de imagens, em tempo real,
para a equipe em terra. (fonte acervo Py Vieira Arquitetura)

Serviços Complementares

Em paralelo à obra de conservação e de manutenção das fachadas, a troca do Sistema de Proteção contra Descargas
Atmosféricas – SPDA também está em andamento, cujo projeto é da empresa Enerviz Engenharia Ltda. E, a execução, da
Vesse Engenharia. A nova instalação aproveitará parte da estrutura existente de SPDA, no entanto, complementará o sistema
e procederá a ajustes e trocas de peças, quando estes se fizerem necessários.

Conclusão

A fase 1 da obra se mostrou a mais desafiadora, pois foi o momento fulcral da implantação do canteiro de obras e da
logística, do entrosamento entre as equipes envolvidas (de obra, do Museu e de fiscalização), da compatibilidade entre os
projetos e os serviços a serem executados, de testes, vistorias, amostras, diagnósticos e de resolução das adversidades
encontradas no percurso. Enfim, o patrimônio dialogando com as equipes e estas o conhecendo. Uma interação diária entre
os envolvidos, a fim de preservar e de manter para as futuras gerações esse suporte da história, da memória e do afeto, tanto
local como nacional. É como afirmava Ruskin: “We may live without her [Architecture], and worship without her, but we
cannot remember without her” [5].

Equipe

Projeto: Bolanho Arquitetura e Construção.

Execução: Estúdio Sarasá Conservação e Restauração S/S Ltda.

Fiscalização: Py Vieira Arquitetura e Eventos Ltda.

Projeto SPDA: Enerviz Engenharia Ltda.

Execução SPDA: Vesse Engenharia

Notas

[1] GIOVANNONI, Gustavo. Textos Escolhidos. Tradução Renata Campello Cabral, Carlos M. de Andrade, Beatriz
Mugayar Kühl. Cotia: Ateliê Editorial, 2013, p.190.

[2] BARBOSA, Gino Caldatto; BARBOSA, Ney Caldatto; FERNANDÉZ ALVES, Jaqueline. O Palácio do Café. São
Paulo: Magma Cultural e Editora, 2004, p. 64.

[3] Imagem aérea com a localização do Museu do Café. Disponível em:


<https://www.google.com.br/maps/place/Museu+do+Café/@23.9325106,46.332264,1007m/data=!3m1!1e3!4m5!3m4!1s0x94ce0483a06d
23.9325106!4d-46.3300753>. Acesso em: mar. 2021.

[4] CONDEPASA – Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos. Resolução – SC número 1/90. Santos: 1990;
CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo.
Processo 00421/74. São Paulo: 1974; IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Processo 1514-T-03.
Brasília: IPHAN, 2003.

[5] RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture. New York: Dover Publications, 1989, p. 178.

Cristiane de Souza Py Vieira

Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (1996). Especialista em Gestão e Prática de
Obras de Conservação e Restauro do Patrimônio Cultural Edificado pelo Centro de Estudos Avançados da Conservação
Integrada – CECI/Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2016). Vencedora do concurso do Conselho de Arquitetura
e Urbanismo de São Paulo – CAU/SP de Boas Práticas de Preservação do Patrimônio Cultural, sob a categoria Projeto de
conservação e restauro arquitetônico, urbano e paisagístico (2020). Atua desde 2007 com desenvolvimento, gestão,
fiscalização e consultoria de projetos e de obras em geral e, desde 2014, com patrimônio cultural.

Contato: cris@cristianepy.com.br.

v.4, n.8 (2020)

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Internacional

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