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SEÇÃO LIVRE

A memória na ornitologia:
desafios na identificação
de espécies
Arthur Macarrão* Vejamos o clássico exemplo dos representantes do gêne-
ro Elaenia (Tyrannidae): um grupo de aves visualmente
Até que ponto conseguimos nos lembrar da vocalização muito parecidas, cuja identificação deve ser feita predo-
de um ave ouvida no campo? Constantemente surgem na minantemente pelas vocalizações. Se a pessoa já as conhe-
internet fotografias de aves em campo, onde o autor afirma ce e tem experiência com elas, fica um pouco mais fácil,
que depois que chegou em casa escutou a vocalização nos apesar de demandar muito critério (cada espécie tem mais
sites especializados e conseguiu identificar a ave, apenas de uma vocalização e o seu repertório é muito rico; ver
pela lembrança de sua voz. Um feito admirável, mas que Sick 1997). Se a ave vocalizar, é possível identificá-la na
talvez aconteça com menos frequência do que os observa- mesma hora. Mas se o observador nunca escutou ou estu-
dores declaram, uma vez que não é tão simples assim. dou as vozes de Elaenia, a ave vocalizou e a voz não foi gra-
Geralmente, uma pessoa que não tem experiência vada, isso é quase impossível. É muito complicado esperar
nenhuma com vocalizações de aves (ou pelo menos com chegar em casa, ouvir diversos tipos de vozes de várias
aquele grupo de aves) após algum tempo pode não mais se espécies do gênero e determinar qual delas você ouviu no
lembrar da vocalização que escutou. Passadas algumas campo. A falta de familiaridade do observador com os
horas, muitas coisas terão acontecido e ela terá vivenciado repertórios das espécies em questão, aliada à grande quan-
outras situações, ouvido outros sons e seu cérebro proces- tidade de espécies no grupo e à eventual semelhança de
sado outras informações. Chegando em casa, a lembrança algumas vozes de espécies distintas, representam uma
daquele som provavelmente não será precisa (lembrando potencial armadilha para os observadores despreparados
ainda que somos seres guiados tipicamente pela visão). O que optarem por tentar esta identificação a posteriori com
que dizer então se ela ouviu o som no dia anterior, na sema- base na memória. Não podemos ser tendenciosos para ter
na anterior ou no mês anterior? Alguns se julgam capazes uma espécie a mais em nossa coleção de avistamentos (li-
de lembrar. felist) ou de fotos. É importante termos em mente que a Figura 2. Elaenia spectabilis e Elaenia flavogaster. Fotos: Arthur Macarrão

identificação é algo sério e deve ser criteriosa para evitar mente quais as características da voz que se ouviu em cam-
erros. Temos que nos conformar com o fato de que, espora- po. Analogamente, eu posso até lembrar da música que
dicamente, a identificação de algumas aves registradas meu professor tocou, mas não saberei qual o tom que foi
não poderá ser feita em nível de espécie e teremos que nos tocado, se não me for informado. Dessa forma, poderei
restringir a níveis menos específicos, como gênero ou mes- eventualmente reproduzi-la, porém meio tom, um tom, ou
mo família. Ornitólogos profissionais e observadores de mais, abaixo ou acima. Claro que algumas pessoas podem
aves experientes fazem isso, o que é normal e, além de ter “ouvido absoluto” (capacidade de formar uma imagem
tudo, demonstra a seriedade com que o praticante encara a auditiva de qualquer tom musical, podendo identificar
atividade. qualquer tom acusticamente apresentado), mas isso é
Um exemplo: um professor de música toca ao piano uma raro.
melodia que o aluno jamais ouviu. Quanto mais tempo se A mesma coisa pode acontecer com cores ou formas.
passar, mais difícil será de se lembrar da composição. Uma Uma vez um colega me informou que havia um tucano que
música ouvida uma única vez no rádio é a mesma coisa. Se visitava o seu quintal. Ele afirmava que tinha o peito ver-
pegar a partitura e reproduzir em seu instrumento, aos pou- melho e a barriga amarela. Eu perguntava se não era o con-
cos a pessoa irá relembrando. Mas passarinho não fornece trário, mas ele insistia que não era, e reforçava que era pei-
partitura. to vermelho e barriga amarela. Pedi para ele ficar atento.
Outra coisa é ouvir o tom do assobio. Algumas vocaliza- Até que um dia ele me confirmou: havia olhado bem e era
ções são muito parecidas, como por exemplo Elaenia spec- peito amarelo e barriga vermelha.
tabilis e Elaenia chilensis (Figura 1). Estas espécies As pessoas se confundem muito com cores e formas,
podem ter um assobio muito semelhante, ascendente e des- quando veem um bicho pela primeira vez no campo e nun-
cendente. Porém, a nota de E. spectabilis possui uma ca haviam atentado às características presentes nos guias e
amplitude de frequência maior e é mais longa. Uma outra fotos. Isso não acontece somente com leigos, mas também
espécie, Elaenia chiriquensis, emite uma nota parecida, com ornitólogos experimentados, se não tiverem uma visu-
Figura 1. Espectrogramas das vocalizações de Elaenia spectabilis, E. chilensis e E. chiriquensis.
sendo em geral mais curta e mais aguda. Sem uma grava- alização privilegiada. Afinal, o que se conhece biologica-
(Gravações: Arthur Macarrão, Fabrice Schmitt e Wagner Nogueira, respectivamente). ção, é impossível chegar em casa e determinar precisa- mente como coloração disruptiva, tem exatamente essa

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finalidade: confundir eventuais predadores. Podemos estu- riência de identificação dos animais selvagens varia muito
dar as características típicas de alguns grupos de forma ex e grande parte do público não tem experiência e habilida-
situ, mas, em geral, elas só passarão a se fixar em nossa des suficientes de identificação dos animais selvagens.
memória quando os encontramos no campo. Claro que * Nota: Muitos biólogos que trabalham em campo já
isso tudo varia de pessoa para pessoa, mas esse tipo de puderam testemunhar moradores locais afirmarem que
“identificação posterior” tem que ser feita com muito cui- determinadas espécies são muito comuns, mesmo as mais
dado. raras, ou até algumas que sequer existem na região.
Outro problema é a questão do tamanho. É possível dife- • Capacidade de memória. Algumas pessoas têm uma
renciar tamanhos em campo? Um gavião voando ao longe, melhor atenção aos detalhes e melhor memória do que
sem nada por perto: pode-se afirmar que ele é enorme? outras.
Será que ele é enorme mesmo e está longe, ou é menor e • Contaminação da memória por informações adquiri-
está mais perto? Sem uma escala como referência próxima das desde que um evento foi testemunhado. Muitas pessoas
à ave, fica difícil afirmar algo. Isso ocorre também quando admitem que estudaram a espécie por fotos, livros ou na
um animal passa rapidamente, mesmo perto do observa- internet somente depois de seu encontro com a espécie. Os
dor. O mesmo ocorre com pequenos pássaros. Então, vol- detalhes que a pessoa precisaria ter prestado atenção na
temos às Elaenia. hora só foram aprendidos depois.
Algumas pessoas identificam Elaenia spectabilis e E. fla- • Contexto vivencial. O animal pode não ter sido obser-
vogaster pelo tamanho, afirmando, por exemplo, que iden- vado em condições ideais; o clima, a iluminação, a distân-
tificou E. spectabilis pois observou que esta era grande (Fi- cia e os eventos do momento podem afetar a precisão.
gura 2). Mas não é fácil distinguir uma diferença de dois • A natureza das perguntas feitas por um entrevistador.
centímetros em campo, tanto entre espécies grandes, como “Será que o animal tinha uma cauda longa?”. “O animal era
em espécies pequenas, que se movimentam muito, normal- preto?”. O melhor seria: “Qual o tamanho da cauda do ani-
mente estão no alto ou em meio aos galhos. E, claro, na situ- mal?”. “Qual era a cor do animal?”. A maneira como são fei-
ação que ocorre na maioria das vezes, uma não estará ao tas as questões podem influenciar e induzir a testemunha
lado da outra para que possamos compará-las. O melhor, ao erro.
então, é ouvir sua vocalização: esperar ela vocalizar ou • Confiabilidade. A falta de honestidade normalmente é
tocar o playback e aguardar sua reação vocal. um problema, mas esse assunto adentra o campo da ética.
Em um trabalho sobre a onça-parda (Puma concolor) nos Dessa forma, a identificação posterior de uma vocaliza-
EUA, o autor discorre que 90 a 95% dos relatos de avista- ção pode ser muito complicada. E o contexto visual, tem-
mentos desse animal provenientes do público estão erra- poral e vivencial, excesso de autoconfiança e capacidade
dos (McCollough 2011). Afirma ainda, baseado em traba- de memória, podem da mesma forma induzir ao erro. Um
lhos com testemunhas oculares em crimes, que registros avistamento rápido pode enganar, especialmente quando
visuais podem estar errados em 20 a 60% dos relatos. Os se almeja ver uma determinada espécie.
psicólogos têm documentado que os seres humanos muitas Sendo assim, recomendo fortemente que os observado-
vezes usam a inferência para preencher detalhes que fal- res de aves tentem documentar a voz dos indivíduos regis-
tam em suas lembranças, e esses detalhes inferidos vêm trados sempre que possível, pois muitas vezes essa é a úni-
junto à memória de maneira tão precisa que acaba levando ca maneira de se chegar a uma identificação inequívoca.
a conclusões errôneas. Assim, um animal parcialmente ou As gravações são importantes, por isso existem diversas
mal visualizado, pode ser completado e interpretado como coleções e arquivos sonoros onde é possível depositá-las.
algo que não corresponde à realidade pelo cérebro humano Ao ser depositada em uma coleção, esta forma de docu-
(ver McCollough 2011). mentação pode ser posteriormente acessada, não somente
Estudos psicológicos tentam avaliar a confiabilidade para corrigir eventuais erros, mas permitindo também pes-
dos relatos e identificar os fatores que originam estes vie- quisas e estudos, como biogeográficos e bioacústicos, e
ses. Segundo Stern & Dunnig (1994 apud McCollough ainda possíveis reidentificações posteriores em casos de
2011), aqui adaptados, são eles: rearranjos taxonômicos.
• Hora do dia. Os animais selvagens são mais difíceis de
identificar durante a noite do que durante o dia. Agradecimentos
• Duração do tempo de um evento testemunhado. Um ani- Sou imensamente grato a Wagner Nogueira, Natalia Dan-
mal observado por alguns segundos é muito mais difícil de tas Paes, José Fernando Pacheco e dois revisores anônimos
identificar corretamente do que um animal parado e bem pela leitura crítica e sugestões.
visualizado por vários minutos.
• A duração do tempo desde o evento até as testemunhas Referências bibliográficas
serem consultadas. Os avistamentos são relatados muitos McCollough, M. (2011) Eastern puma (=cougar) (Puma concolor cou-
dias, semanas ou meses após o evento, quando os detalhes guar) 5-year review: Summary and Evaluation. Orono: U.S.
da observação já foram esquecidos. O mesmo vale para Fish and Wildlife Service.
uma tentativa de identificação. Sick, H. (1997) Ornitologia brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
• Nível de experiência e confiança na sua capacidade
para identificar corretamente os indivíduos e recordar *Departamento de Biologia Animal - Instituto
eventos com exatidão. Quase todos relatores afirmam que de Biologia, UNICAMP – Campinas, SP.
possuem larga experiência em campo. Na realidade, a expe- amacarrao@gmail.com

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