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MPBTRANS: A

TRANSFORMAÇÃO DA
MÚSICA BRASILEIRA
GÊNERO / CORPO / MÚSICA / DIVERSIDADE
Para o Deputado Federal Jean Wyllys, a música popular brasileira abriga um
novo movimento estético e político que é capaz de quebrar estereótipos sobre
gêneros e tabus

POR JEAN WYLLYS 27.10.2016


A música popular brasileira – e eu não me refiro apenas àquilo que se convencionou
chamar de MPB como contraponto a outra música supostamente “popularesca”,
“brega” ou “cafona” porque consumida pelas audiências das rádios comerciais e
programas de auditório na TV aberta – abriga um novo movimento estético-político,
que, embora tenha começado a emergir timidamente há alguns anos, apenas nos dois
últimos ganhou contornos mais claros, ainda que não definitivos. Sem querer ter a
pretensão de ser um novo Nelson Motta, que hoje se arvora de ter batizado de
Tropicalismo o movimento musical liderado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom
Zé, Gal Costa e Os Mutantes que sacudiu a cena brasileira nos anos 60-70 do século
passado com sua mistura antropofágica de referências das culturas erudita, popular e
de massa, herdeiros que eram das lições dos artistas modernistas da histórica Semana
de 22; sem querer ter essa pretensão, vou chamar o novíssimo movimento de
MPBTrans.

Assim como a bossa nova correspondeu, em termos de trilha sonora, às transformações


socioculturais do pós-guerra, e o Tropicalismo foi a expressão musical da chamada
contracultura dos anos 60-70, a MPBTrans é a música que resulta dos – e responde aos
– impactos políticos, sociais e estéticos das novas tecnologias da comunicação e da
informação (internet e redes sociais digitais) nessa segunda década do novo milênio; é
o movimento que se contrapõe, em termos artísticos, ao retorno dos discursos
conservadores, reacionários e fundamentalistas religiosos à hegemonia política no
país.

Três características marcantes e relacionadas entre si distinguem a MPBTrans: a) suas


estrelas pulverizam as fronteiras de gênero, adotando visual andrógino ou assumindo
identidades de gênero policiadas; b) compõem e cantam letras de músicas que evocam
a política do corpo e identitária, com referências mais ou menos explícitas às minorias
sexuais, étnicas e religiosas; e c) têm relação umbilical com a internet e as redes
sociais digitais (ou emergiram daí para abrir espaços nas mídias tradicionais ou
trocaram escassos espaços nestas por lugares de destaque entre os internautas). Suas
principais estrelas são Liniker (negro), Jaloo, Não Recomendados, Lineker (branco),
As Bahias e a Cozinha Mineira, Johnny Hooker, Filipe Sampaio, Valeria Huston,
Banda Uó, Deena Love, Rico Dalasam, Verônica Decide Morrer, MC Linn Da
Quebrada e Almério. Claro que podem haver outras estrelas dessa constelação que as
lentes de meu telescópio ainda não observaram – e cada uma dessas estrelas se espanta
à própria explosão! Elas todas têm origem na mesma nebulosa que, pouco antes,
produziu João Fênix e, mais anteriormente (pouco depois do Tropicalismo), Ney
Matogrosso. Todas elas já lotam casas de shows nas cidades onde vivem e algumas já
começam a atrair público considerável em outras.

Resultado de um mundo cada vez mais globalizado e interconectado por mercadorias,


vírus e ideias que circulam em e por redes numa velocidade vertiginosa, a MPBTrans
encontra, claro, ressonâncias em outras partes desse mundo, mas tem algo de
específico ou de singular que tem a ver com a nossa poderosa e sui generis tradição
musical. A estética e o discurso político evocados pela MPBTrans tampouco se
limitam à cena musical: aparecem também no teatro e na literatura: o espetáculo BR
Trans, de Silvero Pereira (ator que é ao mesmo tempo atriz), arrancou elogios do
público e da crítica, e Amara Moira vem despertando paixões com seu testemunho
literário E se eu fosse puta?. Nesse sentido, a MPBTrans repete algo que se deu
também em relação ao Tropicalismo, que se expressou no teatro de Zé Celso Martinez
Corrêa e na literatura de José Agrippino de Paula.

O prefixo trans se refere à condição de quem partiu, mas ainda não chegou; de quem
se deslocou deliberadamente de um lugar em direção a outro, mas ainda está a
caminho, em trânsito; de quem deixou uma casa, um ethos ou identidade para trás, mas
ainda está sem abrigo e em construção de uma nova casa ou identidade ou de um novo
ethos; de quem está em transformação. Além disso, é preferencialmente nas ruas de
passagem, nas estradas, nas BRs da vida que travestis e transexuais brasileiras fazem o
trottoir, “a pista”, ou seja, a prostituição itinerante. Sendo assim, o prefixo trans cabe
perfeitamente ao movimento que renova a música popular brasileira.

A MPBTrans demorou a ser identificada como um movimento; em parte porque a


indústria da música que pautava as rádios, os críticos e os segundos cadernos de
jornais está combalida diante das novas tecnologias da comunicação e da informação
que possibilitam às pessoas ter um estúdio no celular e divulgar sua música sem
intermediários nem jabá; em parte porque os críticos musicais de “cadernos culturais”
– com as honrosas exceções dos talentosos e autocríticos Mauro Ferreira, Leonardo
Lichote, Lauro Lisboa e Pedro Alexandre Sanches – não têm muita sensibilidade para
os fenômenos não ditados pela força da grana das gravadoras que ainda conseguem
transformam em “celebridades” da música talentos genuínos como Anitta, Ludmillah e
Karol Concá (as três, curiosamente, têm afinidades com a MPBTrans).

Se o Tropicalismo era mais musical e menos estético, a MPBTrans é o contrário,


embora a qualidade musical dos Não Recomendados (Daniel Chaudon, Caio Prado e
Diego Moraes), de Liniker, Jaloo e de Fenix não deva nada à dos tropicalistas quando
de seu início. A dimensão estética, entretanto, sobretudo no que diz respeito à
borragem ou ao embaralhamento das fronteiras de gênero, é a característica mais forte
do movimento. Produtores de shows em todo o Brasil já começam a reuni-los em
programações culturais; e as próprias estrelas já trocam colaborações entre si. Liniker
e Lineker, apesar da semelhança de nome e proposta musical, já fotografaram juntos
para delírio das redes sociais.

FOTO: Arquivo pessoal


A música é em essência libertária. A música popular brasileira sempre permitiu a
emergência de artistas – compositores e intérpretes – que cantam as liberdades
individuais e a justiça social, sobretudo quando estas estão ameaçadas. Sendo assim,
num momento em que as nuvens escuras do fundamentalismo religioso homofóbico e
contrário aos direitos das mulheres se concentram no céu do Brasil e que a fascismo
arrepia o corpo social, nada mais normal e esperado que um movimento musical como
a MPBTrans venha nos salvar dessas trevas. Evoé!

Jean Wyllys foi homenageado pelo Trip Transformadores de 2013

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