Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O MERCADOR DE VENEZA
Maria Clara Versiani Galery*
Resumo Bassânio, para que este pudesse cortejar a bela e rica her-
Este trabalho propõe uma discussão do Mercador deira Pórcia. Esta louvável generosidade, como indica W.
de Veneza, de William Shakespeare, enfocando caracteri- H. Auden em seu ensaio sobre a peça, é compreendida prin-
zações de Shylock no palco e no cinema. A análise aqui cipalmente sob a ótica de que o mercador estava apaixona-
desenvolvida aborda os temas de anti-semitismo e do por Bassânio e era incapaz de negar qualquer coisa a
homoerotismo. ele.1 Assim, o contrato que rege as condições do emprésti-
mo ressalta, de um lado, o altruísmo de Antônio e, do outro,
Palavras-chave Shakespeare anti-semitismo a truculência do judeu. É preciso ter em mente, no entanto,
homoerotismo teatro que Antônio é o personagem que mais demonstra hostilida-
de em relação à Shylock na peça. Assim, o contrato absur-
Abstract do que exige uma libra de carne pode ser visto como res-
This essay proposes a discussion of William posta ao ódio que o mercador manifestara em relação ao
Shakespeare’s The Merchant of Venice, focused on stage judeu. Mas o contrato também ratifica a devoção de Antô-
and film characterizations of Shylock. The analysis nio para Bassânio, criando um elo entre os dois, ambos
developed here deals with the themes of anti-Semitism and endividados: a dívida que Antônio contrai com o judeu tam-
homoeroticism. bém compromete Bassânio, tornando-o endividado com
Antônio. Assim, é significativo o papel de Shylock como
Key Words: Shakespeare anti-Semitism homoeroticism mediador do triângulo amoroso em que Antônio ama
theatre Bassânio que ama Pórcia.
Este trabalho tem como objetivo lançar um olhar so-
Impossível falar sobre “O Mercador de Veneza”, uma bre caracterizações de Shylock no palco e no cinema,
das mais complexas comédias de Shakespeare, sem abor- enfocando, sobretudo, o papel do judeu na mediação do tri-
dar a questão do anti-semitismo que permeia o enredo e a ângulo amoroso que impulsiona O Mercador de Veneza.
recepção da obra. O estereótipo do judeu usurário que Como o homoerotismo é um dos componentes deste triân-
Shylock representa na peça passou a ser, especialmente de- gulo amoroso, este trabalho pretende também examinar a
pois do Holocausto, o foco principal da atenção crítica. No relação entre as figuras de Antônio e Shylock, personagens
cerne do enredo desta obra está o contrato selado entre que configuram duas expressões do interdito: o homoe-
Shylock e Antônio, o mercador, em que o judeu concede um rotismo e a usura.
empréstimo de três mil ducados a Antônio, sem cobrança de É preciso considerar, assim, o contexto em que a peça
juros, impondo uma única cláusula formalmente registrada de Shakespeare está situada, principalmente no que diz res-
em documento legal: caso o devedor não pagasse a dívida peito às normas impostas pela igreja. A usura ou o emprés-
dentro do prazo estipulado, Shylock teria o direito de cortar timo de dinheiro com cobrança de juros, “ato antinatural de
uma libra de carne de seu peito. O valor deste empréstimo, reprodução”, já era prática condenada na Idade Média, proi-
contraído em circunstâncias tão drásticas, tinha um único bida aos cristãos.2 Ao contrário da terra, o dinheiro era visto
destino: Antônio iria repassar o dinheiro a seu amigo como estéril, incapaz de gerar frutos. Desta maneira, a usu-
* Professora adjunto de Literatura de Expressão Inglesa, Departamento de Letras, Universidade Federal de Ouro Preto.
1
AUDEN, W. H. Irmãos e estranhos. In: ___ A mão do artista. Trad. José Roberto O’Shea. São Paulo: Siciliano, 1993, p. 169-183.
2
HELIODORA, Bárbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 226.
3
Ibiden, p. 226.
4
Apud DOLLIMORE. Shakespeare understudies: the sodomite, the prostitute, the transvestite and their critics. In: DOLLIMORE, Jonathan;
SINFIELD, Alan. Political Shakespeare: Essays in Cultural Materialism. Londres: Manchester University Press, 1994, p. 133.
5
AUDEN, W. H. Irmãos e estranhos, p. 178.
6
Ibidem, p. 178.
7
Minha tradução. Citação no original: “Antonio hates Shylock not because he is a more fervent Christian than others, but because he recognizes
his own alter ego in this despised Jew, who because he is a heretic, can never belong to the state. . . . He hates himself in Shylock: the
homosexual self that Antonio has come to identify symbolically as the Jew”. Seymour Kleinberg, apud SINFIELD, Alan. How to read The
Merchant of Venice without being heterosexist. In: HAWKES, Terence. Alternative Shakespeares. Londres: Routledge, 1996. Vol 2, p. 139.
8
Confira, por exemplo, este ensaio: ROSENBAUM, Ron. Sanitizing Merchant : Pacino Plays Shylock Like A Grouchy Tevya. Nov. 2005.
AvailablefromWorldWideWeb: http://www.JewishWorldReview.com
9
CHERNAIK, Warren. William Shakespeare: The Merchant of Venice. Horndon: Northcote House Publishers Ltd., 2005, p. 21
10
SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice.In: HARBAGE, Alfred. General Editor. The Complete Pelican Shakespeare . Harmondsworth:
Viking Penguin, 1977, p. 215-242.