Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MIGRAÇÕES EM
SÃO PAULO
FASES E FACES DO FENÔMENO
MIGRATÓRIO NO ESTADO DE
Rosana Baeninger
Rosana Baeninger
organizadora
SÃO PAULO
organizadora
Imigração
7. Imigração, concentração/dispersão e vida
associativa em São Paulo no pós-Segunda por esse contingente imigrante.
Guerra Mundial: período 1947-1980
Boliviana no Brasil
8. A presença imigrante nos bairros da cidade
de São Paulo
9. Migrações e urbanização em São Paulo no
século 21
10. Migração interna e mercado de trabalho
em São Paulo
Foto capa:
11. Família, trabalho e migração
Antônio Scarpinetti
12. Trajetórias sociais dos trabalhadores Memorial da América Latina, SP.
migrantes na agroindústria paulista Fila de imigrantes. Anistia 2009.
13. Migração latino-americana e asiática em
São Paulo
14. Migrantes refugiados em São Paulo no
século 21
15. Emigração de paulistas para o exterior
Reitor
Fernando Ferreira Costa
Vice-Reitor
Edgar Salvadori de Decca
Pró-Reitor de Pesquisa
Ronaldo Aloise Pilli
Pró-Reitor de Graduação
Marcelo Knobel
Pró-Reitora de Pós-Graduação
Euclides de Mesquita Neto
OBSERVATÓRIO DAS
MIGRAÇÕES EM
SÃO PAULO
FASES E FACES DO FENÔMENO
MIGRATÓRIO NO ESTADO DE
SÃO PAULO
Rosana Baeninger
organizadora
Imigração
Boliviana no Brasil
Núcleo de Estudos de População (Nepo) - Unicamp
Av. Albert Einstein, 1.300 – CEP: 13081-970 – Campinas, SP – Brasil
Fone (19) 3521 5890 – Fax: (19) 3521 5900
www.nepo.unicamp.br
Apoio
Projeto: Observatório das Migrações em São Paulo
Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Unfpa – Fundo de População das Nações Unidas
FICHA CATALOGRÁFICA
ISBN 978-85-88258-29-7
7 Introdução
9 O Brasil na rota das migrações latino- 179 A segunda geração de bolivianos na cidade
americanas de São Paulo
Rosana Baeninger Gabriela Camargo de Oliveira e Rosana
Baeninger
19 Bolivianos em São Paulo. Dinâmica cultural
e processos identitários 195 Discurso, negação e preconceito:
Sidney A. da Silva bolivianos em São Paulo
Szilvia Simai e Rosana Baeninger
35 Presença boliviana na construção de
Corumbá – Mato Grosso do Sul: 211 Estudantes bolivianos na Unicamp:
espaço de fronteira em perspectiva histórica migração, formação qualificada e trabalho
Roberta Guimarães Peres Débora Mazza
*
Esta é uma versão ampliada do texto apresentado no ciclo de palestras: São Paulo: seus povos e suas
músicas, organizado pela Biblioteca Mário de Andrade em 19 de março de 2011, onde foi discutido as
contribuições da presença andina na cidade.
1
Ver Costurando Sonhos, trajetória de um grupo de imigrantes bolivianos em São Paulo. São Paulo, Ed.
Paulinas, 1997.
19
Bolivianos em São Paulo
2
Vale notar que a inserção do pesquisador no grupo se deu mediante o trabalho de militância realizado por
ele na Pastoral do Migrante por vários anos. Sobre a questão da proximidade do antropólogo com os seus
sujeitos de pesquisa, ver: Observação participante e participação militante. O trabalho antropológico entre
os imigrantes bolivianos. In: DEMARTINI, Z. F.;TRUZZI, O. M.S. (Orgs.). Estudos Migratórios. São Carlos:
Editora da Universidade Federal de São Carlos, 2005.
20
Sidney A. da Silva
21
Bolivianos em São Paulo
objetivo de mudar esta realidade desfavorável para o grupo. Entre elas, destacam-
se a Associação de Residentes Bolivianos - ADRB, a mais antiga, a qual foi fundada
em 1969 por profissionais liberais residentes em São Paulo, com o objetivo
de divulgar a cultura boliviana na cidade. A imagem negativa dos bolivianos,
veiculada com frequência pela mídia local, tem gerado constrangimentos entre
eles e, muitas vezes, posicionamentos radicais em relação à vinda de novos
imigrantes, segundo os quais, só deveriam vir, caso tivessem uma proposta de
trabalho definida.
Entre as mais recentes temos a Associação Gastronômica Cultural e Folclórica
Boliviana Padre Bento e a Associação Cultural de Grupos e Conjuntos Folclóricos
Bolívia/ Brasil, essa última formada em 2006, com o objetivo de organizar os grupos
que se apresentam nas festas pátrias e devocionais realizadas no mês de agosto.
Essas duas organizações surgiram com o intuito de organizar as manifestações
culturais da comunidade para fora dela, a primeira na Praça Kantuta3 (Pari), e
a segunda, no Memorial da América Latina (Barra Funda). Esses dois lugares
passaram a ser espaços que buscam criar um canal de diálogo com o contexto
local, em geral, averso a tudo o que vem de imigrantes pobres e com fenótipos
indígenas. Nesse sentido, a Praça Kantuta, onde acontece a feira gastronômica
aos domingos, passou a ser também o palco de grandes manifestações culturais
bolivianas, como é o caso da festa de Alasitas, uma tradição da Região de La Paz,
a qual acontece no dia 24 de janeiro.
Nesta festa se cultua uma deidade andina denominada de Ekeko, ou “deus
da abundância”, à qual se pede tudo o que se deseja alcançar. Segundo Paredes
(1973), esta tradição remonta ao período anterior à conquista espanhola e estaria
relacionada às festividades do solstício de verão. Sua representação era feita em
ouro, prata, estanho, pedra e até mesmo em barro, com traços indígenas e não
usava roupas, já que ostentava um proeminente falus, simbolizando a fertilidade
e a virilidade. Na época colonial a Igreja Católica tentou erradicar esta “idolatria”,
porém, sem grande sucesso. Na verdade, a tradição foi “reinventada”, ganhando
3
Vale lembrar que antes de 2002 os bolivianos ocupavam a praça Pe. Bento, localizada em frente à igreja
Matriz do Pari. Com o aumento dos frequentadores, os conflitos começaram a ocorrer e os bolivianos
passaram a ser acusados de sujar o local, atrair assaltantes e o tráfico de drogas. Incomodados com
esta presença os moradores fizeram um abaixo assinado pedindo a remoção destes intrusos, inclusive,
colocaram uma faixa na praça com a seguinte mensagem: “A praça é nossa! Exigimos respeito estamos aqui
há mais de cem anos”. Depois de um longo processo de negociação a prefeitura ofereceu aos bolivianos um
outro local no mesmo bairro, denominado então por eles de Praça Kantuta, nome de uma flor do Altiplano
que tem as três cores da bandeira boliviana, o vermelho, o amarelo e o verde (Silva, 2003:232).
22
Sidney A. da Silva
4
A reprodução das notas é tão perfeita que segundo Ruth Camacho, a advogada que atende os imigrantes
na Pastoral do Migrante (Glicério), um boliviano foi acusado e preso por falsificação de dinheiro, por ter
algumas notas de dólares (alasitas) em sua carteira. Este mal entendido lhe custou dois dias de prisão. A
questão é que em razão do preconceito enfrentado pelos bolivianos, já os torna suspeito. Já uma boliviana
teria tido mais sorte ao enganar um ladrão, que teria levado os falsos dólares de sua casa, pensando que
eles eram verdadeiros.
5
Em 2011 a festa foi realizada no Clube de Regatas Tietê, na Av. Santos Dumont, 843 (próximo ao metrô
Armênia), com a apresentação de grupos musicais, comidas típicas, feira de artesanato e cerimônia religiosa
católica.
23
Bolivianos em São Paulo
6
Em agosto de 2008 o espaço do Memorial foi cedido para outra atividade e as festas bolivianas tiveram
que ser realizadas em outro lugar. O local escolhido foi o Parque do Trote, na Vila Guilherme. Entretanto,
como as festividades coincidiram com um fim de semana chuvoso, o grande número de pessoas que por
lá passou produziu danos em partes do gramado. Num relatório, a diretoria do referido parque exigiu dos
organizadores do evento a reparação dos danos, o que foi feito de imediato. Tal fato suscitou reações
preconceituosas de moradores do bairro que veicularam na Internet mensagens depreciativas em relação
aos bolivianos e sua cultura.
24
Sidney A. da Silva
eram marcadas por uma nítida segmentação social, passaram a ser celebradas num
único fim de semana e abertas a um público mais amplo. A primeira reúne um grande
número de pacenhos, muitos deles donos de oficinas de costura, sobretudo, a partir
de 2001, quando o festeiro escolhido foi um influente oficinista no setor da confecção
boliviana. Já a segunda, reúne os cochabambinos, em geral, profissionais liberais e
pequenos empresários. Nesse sentido, poderíamos dizer que o novo local teve um
efeito nivelador do ponto de vista social, isto porque, em tese, todos os bolivianos
são convidados a participar das festividades, independentemente de sua condição
social, até porque estas festas passaram a ter também um significado cívico, já que
a data da independência da Bolívia coincide com os festejos da padroeira nacional.
Isto nos permite dizer que a Pastoral do Migrante, antes promotora das festas no seu
espaço, perdeu o monopólio de sua organização, o qual passou a ser reivindicado
pelo consulado boliviano na cidade, como seu principal patrocinador.
Os festejos no espaço do Memorial estariam veiculando, portanto, uma
identidade nacional enquanto positividade, já que a idéia de nação enquanto uma
“comunidade imaginada”, nos termos de Anderson (2008), estaria assegurada
naquele momento, pois, apesar das diferenças socioculturais (profissionais x
costureiros), regionais (collas x cambas)7, e étnicas (aimarás x quéchuas), todos
se reconhecem e são reconhecidos pelos brasileiros como bolivianos. Porém, a
proposta é que a sociedade paulistana os veja “con otros ojos”, ou seja, a partir
de um outro prisma, como dizia o lema das festividades de 2010.
7
As categorias collas e cambas são utilizadas em geral para diferenciar os bolivianos originários do Altiplano,
então denominados pelos originários da região de Santa Cruz de La Sierra, de collas e estes, por sua vez,
denominam aqueles de cambas. Vale notar que estas categorias assumem, às vezes, um tom depreciativo
e acusativo, pois cambas rotulam collas de “índios” e camponeses, ou seja, “gente de pouca cultura” (Silva,
1997: 73).
25
Bolivianos em São Paulo
8
Para Klein, o Presterío surgiu nos Ayllus tradicionais como uma forma de equalizar os desequilíbrios no
interior da comunidade, a qual é denominada por ele de “empobrecimento ritual”. Os mais afortunados
eram obrigados a patrocinar as festas religiosas locais, recebendo em troca o reconhecimento e prestigio
locais ( Klein, apud Silva, 2003;170).
26
Sidney A. da Silva
27
Bolivianos em São Paulo
9
A cueca é uma dança mestiça que recebeu tanto influências africanas quanto hispânicas. Antes ser
denominada cueca teria sido zamba-clueca, ou seja, dança que se refere à fase pela qual passa a galinha
quando deixa de pôr ovos, tornando-se agressiva. Retrata, portanto, o cortejamento do homem para com
a mulher, com gestos sensuais e, para convencê-la, o pretendente chega ao ponto de ajoelhar-se diante de
sua pretendida (cf. Silva, 2003: 188).
10
Um dos grupos que apresenta esta dança na cidade é a Morenada Bolívia Central, que completou dez
anos de atividades em 2011. Este grupo, fundado no dia 12 de maio de 2001, já congrega cerca de 700
componentes, em sua maioria donos de oficinas de costura. A festa de aniversário foi realizada no dia 14 de
maio no Clube de Regatas Tietê, num salão de festas que está localizado no mesmo prédio onde funciona
a Faculdade Zumbi dos Palmares. Coincidência ou não, a festa dos “morenos” bolivianos encontrava se na
casa dos “morenos” brasileiros. Nesse dia, todos os “prestes” da Virgem de Copacabana dos anos anteriores
foram condecorados, e a festa foi animada por bandas de metais e grupos musicais da comunidade e vindos
da Bolívia para a comemoração.
28
Sidney A. da Silva
29
Bolivianos em São Paulo
11
Forma carinhosa de dirigir-se à mulher boliviana que é fruto da mistura étnica entre mestiços e indígenas
(Silva, 1997: 68).
12
Numa chamada do site Bolívia cultural dizia: “Carnaval 2011 é no Memorial. Eu vou, aceite essa idéia e
divirta-se com moderação”. www.boliviacultural.com.br/ver_noticias, acessado no dia 09/03/2011.
30
Sidney A. da Silva
Concluindo
A presença boliviana em São Paulo é “boa para pensar”, por um lado, a forma
como a cidade tem lidado com as diferenças etnoculturais e, por outro, como
os próprios imigrantes reagem às diferentes formas de preconceitos que lhes
são atribuídos por grupos locais. Diferentemente de outras metrópoles globais,
onde as diferenças culturais são toleradas, porém mantidas no confinamento dos
guetos, em São Paulo teríamos, segundo Martins (2008) uma “multiculturalidade
transitiva”. Isto significa, que apesar dos estranhamentos e da tendência ao
confinamento, há sempre uma possibilidade de diálogo com aquilo que nos
parece estranho e distante.
Tal transitividade, segundo o mesmo autor, se deve ao fato de que a cidade
“foi recriada urbanística, arquitetônica e populacionalmente ao menos três vezes
na época contemporânea: na década de 1880, na de 1910 e na de 1960. Foram
momentos culturalmente cataclísmicos que agregaram novos personagens ao
cenário e, ao mesmo tempo, anularam velhos enredos” (Martins, 2008: 06). Se no
âmbito da convivência cotidiana há uma certa abertura à pluralidade cultural, o
mesmo não pode ser dito no âmbito do privado, onde a rigidez dos costumes e a
força das crenças tendem a bloquear qualquer forma de abertura à uma possível
mudança cultural. Contudo, no caso que estamos focando, a presença boliviana em
São Paulo, é preciso considerar que tanto eles (bolivianos), quanto nós (brasileiros),
temos em comum influências das três matrizes formadoras de nossas culturas
latino-americanas, a saber, a iberoamericana, a indígena e a africana. É evidente que
os processos de formação culturais foram marcados pela dominação e discriminação
da parte dos colonizadores, classificando os “nativos” e os que vieram depois do
continente africano como escravos, de inferiores e de gente sem “cultura”.
Por certo, a herança nefasta dessas escravidões ainda se faz sentir no
cotidiano da cidade, discriminando tudo aquilo que vem de lugares considerados
periféricos, como é o caso de imigrantes oriundos de países pobres e com tradições
culturais indígenas, entre eles os bolivianos. Tais estranhamentos que aqui foram
remarcados, como nos casos dos episódios da Praça do Pari e do Parque do Trote,
e por que não acrescentar a recente onda de bullying contra crianças bolivianas
31
Bolivianos em São Paulo
constatadas em algumas escolas da capital paulista, não são casos isolados e uma
exceção na história de São Paulo. São, na verdade, uma expressão de que nela
como em qualquer outra metrópole a multiculturalidade é marcada por tensões
e resistências.
No caso paulistano, as chances de um diálogo intercultural podem ser
maiores, em razão da existência de elementos culturais comuns entre bolivianos
e brasileiros, os quais se fazem perceptíveis nos costumes, nas crenças, na
música, na gastronomia e nas formas estéticas e corporais que foram sendo
incorporadas e resignificadas ao longo da história dos povos latino-americanos.
Nessa perspectiva, não é difícil ver semelhanças entre danças bolivianas de origem
africana, como é o caso da Morenada e dos Caporales, com outras no contexto
brasileiro, como é o caso das Congadas, do Maracatu e do Bumba-meu-boi.
Tal riqueza e diversidade já reconhecidas como parte do patrimônio imaterial
latino-americano, agora são também parte do patrimônio intangível da
humanidade, como é o caso do carnaval de Oruro, cujo reconhecimento foi
declarado em 2001.
É por isso que as festas bolivianas, com toda sua beleza e diversidade
cultural, realizadas em alguns locais de visibilidade, como é o caso do Memorial da
América Latina, tornaram-se um promissor canal de diálogo com a cidade de São
Paulo, veiculando uma nova imagem do grupo que as celebra, pois no disputado
jogo identitário, existir socialmente é ser reconhecido enquanto diferente.
Referências
ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
BOERO ROJO, Hugo. Fiesta Boliviana. La Paz/Cochabamba, Editorial Los Amigos del
Libro, 1991.
32
Sidney A. da Silva
MONTES, Maria Lúcia. Posfácio. In: MAGNANI, José G C; TORRES, Lilian de Luca (org).
Na Metrópole, São Paulo, Edusp, 1996.
_________. Práticas culturais urbanas: o caso das festas populares. In Amazônia e outros
temas: coleção de textos antropológicos. PPGAS/Museu Amazônico. EDUA, 2010.
33
Bolivianos em São Paulo
34