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Resumo
Abstract
1
Graduado em direito pelo Centro Universitário de Brasília (2009), especialista em Economia do Trabalho e
Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (2017), mestrando em Direito pela Faculdade de Direito
da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: vitorsgodoi@gmail.com.
Angolan Constitution. The object of the present study is the analysis of traditional authorities
as a means of justice, aiming to present the institute under discussion, demonstrating the wide
use of a system based on customs to overcome the obstacles brought about by the use of
positive European law, which is not really concerned with the legitimacy of those rules by the
population, usually promoting a system that contradicts the culture of the people of that land.
The methodology of the study will be through bibliographic research of academic
publications on the subject. The present debate should raise questions about the use of
knowledge of the native people as a legitimate way to reach the solutions of legal disputes,
without avoiding the problems that occurred in the implementation of the institute in Angola,
such as the existence of invented traditional authorities. The relevance of the study lies in the
reflections for the Brazilian model of justice, which uses massively European, living with
legislation that does not dialogue with existing cultural realities.
Key Words: Traditional authority, consuetudinary and positive law.
Introdução
O continente Africano é marcado por uma ruptura histórica. O que se viu foi a
transformação de um continente multicultural e multifacetado em territórios divididos sem
qualquer compromisso com o povo nativo e sua forma de cultura.
Para que fosse possível a dominação do povo e a melhor aplicação dos valores
legislativos, especificamente pelo Estado português em suas colônias na África, foi utilizado o
sistema de autoridades tradicionais.
O sistema em teoria consiste na legitimação do povo originário. Trata-se do
reconhecimento dos usos e costumes como fonte de direito. Permite que as autoridades
originárias possam realizar a resolução de determinados conflitos, tendo como base o
entendimento daquele povo.
O objeto do presente estudo está na análise das autoridades tradicionais como meio de
justiça, precisamente na forma de atuação e seus problemas. Através de revisão bibliográfica
sobre a temática.
Quanto a estrutura da presente pesquisa, em um primeiro momento será estudado o
contexto histórico para formação do referido instituto. Seguindo pela a forma de atuação pelas
autoridades tradicionais. Por último, será apresentada a análise das autoridades tradicionais,
os problemas e as questões que rondam o tema, principalmente no que concerne nas principais
características.
A CRA ainda foi cristalina em apontar o costume como fonte de direito, em seu art. 7,
dispôs: “É reconhecida a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à
Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana”.
Após a promulgação da CRA, é que se pode começar a aceitar as decisões das
autoridades tradicionais como forma de justiça, pois apenas naquele momento, se admite o
costume como fonte de direito.
2 – Modo de funcionamento das Autoridades Tradicionais
O primeiro ponto para que se perceba a complexidade do tema, é saber que inexiste na
legislação angolana qualquer forma de legislação acerca do direito material e processual dos
costumes aplicados pelas autoridades tradicionais. A realidade é que a autoridade tradicional
atua baseada no contexto histórico de sua comunidade. Nesse sentido, a Dra. Maria Menezes,
explica:
A partir do momento em que “direito costumeiro” foi definido como a lei da
tribo – e a tribo, por sua vez, como um grupo de pessoas partilhando um
“direito costumeiro (tradicional)” próprio -, não foi possível ter apenas um
“direito costumeiro” que abrangesse todos os indígenas, pelo contrário, havia
vários sistemas de “direitos costumeiros” dos grupos chamados
genericamente de tribos. Mais ainda, a partir da multiplicidade de
instituições que se encarregavam da governação da África tradicional –
chefes administrativos, líderes hereditários, concelhos de anciãos, grupos
etários, grupos de gênero – foi emergido um única instituição (LOPES,
MENEZES, 2012, fl. 231).
E não se trata de saber se foram ou não incorporados pela ordem jurídica estatal
angolana, nem se deveriam sê-lo, porque de fato o foram. O que importa é
abordar a forma como a função dessas autoridades pode ser acomodada com a
nova realidade, uma vez que efetivamente parece dever sê-lo, proporcionando-
se mecanismos de congruência entre os comportamentos de vários atores
jurídicos responsáveis pela produção e aplicação do Direito: de um lado, as
instituições estatais e, do outro, chefes locais, autoridades com aura de
legitimidade pré-colonial – espécie de legitimidade carismática de Weber (1979
[1956]) – mas, na verdade, modernamente reavivados ou confirmados pelo
próprio Estado. (REMY, 2014, fl. 11)
O que interessa para o presente estudo é percebermos qual forma desse direito. Observa-
se em um primeiro momento que a autoridade tradicional tem como fonte os provérbios daquele
povo. O que se caracteriza pelas experiências daquela comunidade e os aprendizados para uma
paz social coerente com a cultura do povo. O pesquisador Moisés Mbambi, assim caracteriza os
provérbios:
As condutas prescritas na linguagem proverbial servem para mostrar ao homem
o caminho certo para evitar males, problemas, infortúnios e, acima de tudo,
castigos! Daí o seu necessário acatamento por toda a gente. E os provérbios que
encerram comandos jurídicos formam o que chamamos direito proverbial.”
(MBAMBI, 2007, fl. 2)
Dessa forma, trata-se de uma fonte que não possui registro escrito ou alguma evidência
cientifica nos padrões europeus. Trata-se de uma forma de direito baseado nas tradições e da
oralidade. Inexiste qualquer codificação ou uma fonte direta de aplicação.
Nesse sentido, importante ressaltarmos que a forma de resolução de conflitos pela
Autoridade Tradicional, embora haja um caminho normalmente perseguido, é feito de maneira
individual. A inexistência de uma base legislativa específica, permite que as ações das
autoridades sejam amplas.
Assim, imprescindível ter em mente que diferente do sistema jurídico europeu, em que se
propaga uma necessidade de uniformização de jurisprudência, inexiste aqui qualquer
compromisso com uma unidade centralizada. Fazendo com que as decisões se comprometam
apenas com a observância das tradições daquela comunidade. Evidentemente, que existe uma
preocupação com a legitimidade das decisões, uma vez que a resolução de conflito pela
autoridade tradicional seja voluntária, o Soba, para que haja necessidade na manutenção de suas
atividades, deve se preocupar com a recepção de suas decisões pela sociedade.
A principal característica no que toca a legitimidade da modalidade de resolução de
conflitos em atenção, é a alta quantidade de autoridades ligadas a movimentos e partidos
políticos.
O direito não está excluído dos atores e fatores políticos, muito pelo contrário, muitas
vezes se manifesta com interesse partidário. Nesse debate, imprescindível observar como o
MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional para
Independência Total de Angola), dialogaram com as autoridades tradicionais.
No que concerne ao MPLA, notou-se a clara instrumentalização do partido nas
autoridades tradicionais. Sobretudo, existia uma pressão para que as autoridades se filiassem ao
partido, isso visando que aquela comunidade estivesse sobre a influência do grupo em questão.
Caso o Soba não estivesse articulado em promover o partido, verificou a existência de ameaças,
espancamentos e retiradas de privilégios.
A institucionalização partidária pelo MPLA é tão notória, que era comum que ao lado da
residência do soba houve a bandeira do partido, invés da bandeira da própria nação. Com esse
ato, resta claro que havia uma perseguição dos opositores pelas autoridades. Outro fator que nos
interessa é a necessidade de prestação de informações para os secretários do partido.
Por outro lado, o que se observou é que a UNITA, com a perda da guerra civil, embora
tenha acertadamente tentado o apoio dos Sobas, a ausência de capital financeiro e político, fez
com que não fosse expressiva a instrumentalização das autoridades tradicionais por esse grupo.
No que se refere a instrumentalização partidária das autoridades tradicionais, importante
que fique clara a sua ocorrência de maneira deliberada. Quanto ao tema, Aslak Orrre, aduz:
O que podemos destacar da notória interferência política para análise das autoridades
tradicionais como forma de direito, é a total ausência do princípio da imparcialidade, ponto nodal
em nossa estrutura jurídica.
No sistema de autoridade tradicional, não houve a preocupação e/ou necessidade, de que
o julgamento e o funcionamento das formas de resolução de conflito fossem orientados pela
proibição de interferência política nas decisões. Nesse contexto, a realidade como ela é, se
conecta com todos. A autoridade é ao mesmo tempo, ente político partidário, decisor e gestor
administrativo. Esse conjunto de atribuições, faz com que seja uma excelente máquina de
manutenção de poder pelos partidos maioritários, assim como, atrai um crivo ideológico nas
decisões realizadas.
O que é interessante de se pautar é que esse mesmo decisor que se baseia na mediação
como meio usual de resolução de conflitos, também é preso em uma rede política em que seus
atos devem ser analisados pela instituição partidária. A presente constatação faz perceber a
complexidade e a polêmica dessa forma de direito, que se calca pela autocomposição, sem a
existência de mecanismo de proibição de interferência entre os poderes.
Outro ponto que interessa para a análise em comento, é a interligação do direito
costumeiro, aplicado pela autoridade tradicional, com o sistema judiciário positivado pelo
Estado. Como já elucidado, a Angola, escolheu a utilização do pluralismo jurídico, resta entender
a forma de articulação entre os dois entes.
O pluralismo jurídico é conceituado segundo diversas áreas, referindo-se na existência
de mais de um sistema jurídico, implementado fora da exclusividade do Estado, fora dos
caminhos além dos normalmente descritas pelas fontes clássicas do direito. Fernando Kapoco e
Sergio Nojiri, apontam a importância do sistema em Angola, nos seguintes termos:
Considerações finais
O continente Africano, incluindo especificamente a Angola, já existia como
civilizações antes da colonização europeia. Existiam sistemas de direito já enraizados
naquelas sociedades. O processo de ocupação pelos países europeus que interrompeu esse
processo. No decorrer da colonização foi usual a estratégia de conceder privilégios para parte
dos nativos, sendo que, para isso, imprescindível que houvesse uma legitimação social e uma
forma de conduta. A utilização das autoridades tradicionais tem como discurso a manutenção
da sabedoria cultural, o que, efetivamente, pode em parte ocorrer, todavia, decorreu de uma
estratégia para manutenção do poder pelo colonizador.
Após a independência de Angola, surgiu a necessidade da centralidade de poder, o que
não ocorria com as autoridades tradicionais, que permaneciam fora do corpo do Estado. Sendo
que apenas após a promulgação do decreto conjunto nº 39/92, houve o reconhecimento da
autoridade tradicional na forma de pagamento de salários. Aos poucos houve uma maior
integração no corpo do Estado. Sendo que apenas após a promulgação da Constituição da
República da Angola houve a equiparação no aspecto de fonte jurídica.
A autoridade tradicional opera no que se refere ao direito em situações envolvendo
família, propriedade e feitiçaria. Um procedimento não muito diverso do que entendemos de
funcionamento do processo. Existe apenas uma prevalência na utilização do meio oral.
Ocorrendo a queixa, convocação, defesa, audiência e decisão. Observa-se que mantém o
direito ao contraditório e ampla defesa, além, de estimular o processo de autocomposição.
A instituição das autoridades tradicionais é uma forma de direito baseada pela cultura
e ancestralidade daquele povo. É ainda descentralizado, no sentido de que permite várias
formas de decisão, já que representados por vários povos diferentes.
Existe ainda um fator político que interfere diretamente em seu funcionamento, qual
seja, o notório emparelhamento da instituição principalmente com o partido MPLA, havendo
uma estrutura que hierarquiza o partido acima do ente em estudo.
Outra característica que merece destaque é a utilização do pluralismo jurídico, em que
coexiste o direito costumeiro e o positivado. No caso em questão se observa a opção pela sua
utilização na forma de sobreposição do direito positivado sobre o direito tradicional. O direito
tradicional ainda é limitado a outras instituições e fontes de direitos, o que impede sua
aplicação de maneira independente.
Inexiste no direito tradicional uma série de independências que impedem sua
utilização mais efetiva. Sendo que a ausência de autonomia financeira impacta diretamente
em suas atribuições. Fazendo que a sua dependência a partidos políticos e outros atores do
Estado, diminua seu desenvolvimento no intuito em que é declarado.
A autoridade tradicional possui uma riqueza humana e de formas diversas de
resoluções de conflito. Sendo que o sufocamento de sua essência por instituições terceiras,
pode ter como efeito o silenciamento de tamanho conhecimento. É imprescindível que o
debate entenda a necessidade de observância dos costumes e sua ampla capacidade de
produzir novos desenvolvimentos, assim como, compreenda os efeitos da colonização,
primando pela reparação do povo africano.
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