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O instituto da autoridade tradicional na Angola como meio de justiça: O

método de justiça do povo originário

The institute of traditional authority in Angola as a way of justice: The method


of justice of the native people

Vítor Santos de Godoi1

Apresentado no Grupo de Trabalho 02: Acesso, Controle Social e Expansão Política da


Justiça

Resumo

A autoridade tradicional é um instituto composto por um conjunto de líderes dos povos


originários, reconhecidos pelo Estado formal, autorizados a operar a resolução de
determinados conflitos, tendo como base o entendimento de sua cultura e antepassados. A
Angola adota o pluralismo jurídico, na medida em que convive com o direito positivado de
matriz europeia e com as decisões das ditas autoridades tradicionais. Tendo os costumes como
fonte do direito reconhecidos no artigo sétimo da Constituição Angolana. O objeto do
presente estudo está na análise das autoridades tradicionais como meio de justiça, visando
apresentar o instituto em debate, demonstrando a utilização ampla de um sistema que baseado
nos costumes para superar os óbices trazidos pela utilização do direito positivado europeu, o
qual não se preocupa efetivamente com a legitimidade daquelas regras pela população,
promovendo usualmente um sistema contraditório com a cultura do povo originário daquela
terra. A metodologia do estudo se dará por meio de pesquisa bibliográfica de publicações
acadêmicas sobre o tema. O presente debate deve despertar questionamentos acerca da
utilização do conhecimento do povo originário como modo legítimo de alcançar as soluções
dos litígios judiciais, sem se esquivar dos problemas ocorridos na implementação do instituto
na Angola, como a existência de autoridades tradicionais inventadas. A relevância do estudo
está nas reflexões para o modelo de justiça brasileiro, que utiliza massivamente do direito
positivado europeu, convivendo com uma legislação que não dialoga com as realidades
culturais existentes.
Palavras chaves: Autoridade tradicional, costumes e direito positivado.

Abstract

Traditional authority is an institute composed of a set of leaders of the native people,


recognized by the formal State, authorized to operate the resolution of certain conflicts, based
on the understanding of their culture and ancestors. Angola adopts legal pluralism insofar as it
coexists with the positive law. European matrix and with the decisions of these traditional
authorities. Having the customs as the source of law recognized in the seventh article of the

1
Graduado em direito pelo Centro Universitário de Brasília (2009), especialista em Economia do Trabalho e
Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (2017), mestrando em Direito pela Faculdade de Direito
da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: vitorsgodoi@gmail.com.
Angolan Constitution. The object of the present study is the analysis of traditional authorities
as a means of justice, aiming to present the institute under discussion, demonstrating the wide
use of a system based on customs to overcome the obstacles brought about by the use of
positive European law, which is not really concerned with the legitimacy of those rules by the
population, usually promoting a system that contradicts the culture of the people of that land.
The methodology of the study will be through bibliographic research of academic
publications on the subject. The present debate should raise questions about the use of
knowledge of the native people as a legitimate way to reach the solutions of legal disputes,
without avoiding the problems that occurred in the implementation of the institute in Angola,
such as the existence of invented traditional authorities. The relevance of the study lies in the
reflections for the Brazilian model of justice, which uses massively European, living with
legislation that does not dialogue with existing cultural realities.
Key Words: Traditional authority, consuetudinary and positive law.

Introdução

O continente Africano é marcado por uma ruptura histórica. O que se viu foi a
transformação de um continente multicultural e multifacetado em territórios divididos sem
qualquer compromisso com o povo nativo e sua forma de cultura.
Para que fosse possível a dominação do povo e a melhor aplicação dos valores
legislativos, especificamente pelo Estado português em suas colônias na África, foi utilizado o
sistema de autoridades tradicionais.
O sistema em teoria consiste na legitimação do povo originário. Trata-se do
reconhecimento dos usos e costumes como fonte de direito. Permite que as autoridades
originárias possam realizar a resolução de determinados conflitos, tendo como base o
entendimento daquele povo.
O objeto do presente estudo está na análise das autoridades tradicionais como meio de
justiça, precisamente na forma de atuação e seus problemas. Através de revisão bibliográfica
sobre a temática.
Quanto a estrutura da presente pesquisa, em um primeiro momento será estudado o
contexto histórico para formação do referido instituto. Seguindo pela a forma de atuação pelas
autoridades tradicionais. Por último, será apresentada a análise das autoridades tradicionais,
os problemas e as questões que rondam o tema, principalmente no que concerne nas principais
características.

1 – Contexto histórico das autoridades tradicionais


Antes da ocorrência da colonização, o território onde se localiza Angola, era composto
por grandes reinos como Congo, Ndongo, Matamba, Kwanyama, Kassanje, Bailundo e povos
menores.
Após a invasão portuguesa, os reinos não detinham mais o poder econômico e
administrativo. A forma de colonização consistia na dominação por homens brancos,
destituindo o poder dos chefes tribais locais. Nesse sentido, o Soba (uma das designações de
um líder tradicional) Sebastião Garcia, descreve a situação da Angola no momento
supracitado “(…) o momento de ocupação quando os colonos vieram, tirou-nos o nosso
poder, nossas terras, nosso direito (...)” ( Mangala, 2018, fl. 14). Entretanto, o tempo fez
surgir a necessidade de inclusão da administração tradicional, em face da sua real legitimação
entre os povos nativos. Existiu a compreensão da impossibilidade de manutenção e poder sem
a legitimação dos costumes.
Ainda visando maior controle social, a Angola no processo de colonização moderna
acabou por dividir as pessoas em cidadanias diferentes. Houve a divisão entre cidadãos de
primeira, que são os brancos nascidos nos grandes centros. Os cidadãos de segunda, brancos
oriundos do interior do país. Os assimilados, que eram nativos que eram aprovados no sistema
de cidadania. Por fim, os indígenas, regido por uma administração indireta, com corpo
jurídico legal próprio, pautado pela figura da autoridade tradicional.
A autoridade tradicional possui como fundamento que os povos originários deviam ter
sua cultura progressivamente incluída no ordenamento social local. O que se observou foi a
utilização das autoridades tradicionais como método de gestão da colônia. Essas autoridades
locais foram escolhidas por Portugal, baseado em diversos critérios, sendo comumente
escolhidos pelo status de elite local, mantendo em síntese as ordens emanadas pelos
colonizadores.
Dessa forma, o que se depreende, é a utilização das autoridades tradicionais não
necessariamente como representantes dos costumes, sim, como peças fundamentais para
manutenção do poder pela colônia. Nesse ponto, o doutor em estudos africanos, Fernando
Florêncio, aponta:

Neste modelo é claramente assumida a duplicidade política e jurídica da


sociedade colonial, sendo vedada a uma parte significativa dessa mesma
sociedade, às populações “indígenas”, a integração plena na sociedade
colonial, devendo assim continuarem a reproduzir-se segundo os seus
modelos tradicionais de organização social. É neste sentido que assumem
especial relevo as instituições políticas tradicionais, nomeadamente as
autoridades tradicionais. Elas são, por um lado, a garantia da continuidade
desse modelo de organização e, por outro lado, constituem a “ponte”
institucional entre esses dois universos, colonizados e colonizadores, bem
assim como a subordinação dos colonizados ao Estado português.
(FLORENCIO, 2011, fl. 103).
Após a independência de Angola, o que apenas ocorreu em 1975. Houve uma ideia de
centralismo institucional, onde se primava pela unificação dos sistemas de gestão pública. As
autoridades tradicionais permaneciam beirando a informalidade, uma vez que não havia a
efetiva participação no arcabouço institucional. O Dr. André Mangala assim se posiciona:
Em suma, as autoridades tradicionais no período que se seguiu à
proclamação da independência foram consideradas como uma triste herança
do passado colonial, suspeitas de desempenhar um papel influenciador
negativo no seio das populações, contribuindo para a inviabilização do poder
instituído em 1975. Por isso, foram significativamente menosprezadas.
(MANGALA, 2018, fl. 18)
No final do século XX, com a série de guerras internas, a estrutura do Estado era
deficiente as demandas da sociedade. Houve a necessidade de maior conexão do poder
público com as pessoas, evidente, com interesse de maior controle sobre a sociedade. Nesse
cenário que houve a promulgação do Decreto Conjunto nº 39/92, que incluía as autoridades
tradicionais como ente do Estado, atribuindo salários a seus participantes, pelo sentido exato
de maior sintonia com os indivíduos. Mesmo com o pagamento do salário, a ausência de
regulação legal do instituto e suas atribuições, acabou por manter as autoridades tradicionais
como um ente apartada da estrutura centralizada do Estado.
A real inclusão das autoridades tradicionais no arcabouço do Estado, apenas ocorreu
com a promulgação da Constituição da República de Angola (CRA) em 2010. Onde houve a
inclusão no art. 213,1 e 2, da autoridade tradicional na estrutura autárquica, vejamos:

Artigo 213.º (Órgãos autónomos do Poder Local)


1. A organização democrática do Estado ao nível local estrutura-se com
base no princípio da descentralização político-administrativa, que
compreende a existência de formas organizativas do poder local, nos termos
da presente Constituição.
2. As formas organizativas do poder local compreendem as Autarquias
Locais, as instituições do poder tradicional e outras modalidades específicas
de participação dos cidadãos, nos termos da lei.

A CRA ainda foi cristalina em apontar o costume como fonte de direito, em seu art. 7,
dispôs: “É reconhecida a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à
Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana”.
Após a promulgação da CRA, é que se pode começar a aceitar as decisões das
autoridades tradicionais como forma de justiça, pois apenas naquele momento, se admite o
costume como fonte de direito.
2 – Modo de funcionamento das Autoridades Tradicionais
O primeiro ponto para que se perceba a complexidade do tema, é saber que inexiste na
legislação angolana qualquer forma de legislação acerca do direito material e processual dos
costumes aplicados pelas autoridades tradicionais. A realidade é que a autoridade tradicional
atua baseada no contexto histórico de sua comunidade. Nesse sentido, a Dra. Maria Menezes,
explica:
A partir do momento em que “direito costumeiro” foi definido como a lei da
tribo – e a tribo, por sua vez, como um grupo de pessoas partilhando um
“direito costumeiro (tradicional)” próprio -, não foi possível ter apenas um
“direito costumeiro” que abrangesse todos os indígenas, pelo contrário, havia
vários sistemas de “direitos costumeiros” dos grupos chamados
genericamente de tribos. Mais ainda, a partir da multiplicidade de
instituições que se encarregavam da governação da África tradicional –
chefes administrativos, líderes hereditários, concelhos de anciãos, grupos
etários, grupos de gênero – foi emergido um única instituição (LOPES,
MENEZES, 2012, fl. 231).

Ante a pluralidade existente na forma de atuação das autoridades tradicionais, para


sua análise como forma de justiça, imprescindível o recorte de um grupo específico. Por tal
razão, será utilizado o estudo organizado pela Dra. Maria Paula Menezes e pelo Dr. Julio
Lopes em que se pesquisou o método utilizado pelas autoridades tradicionais na formulação
de suas decisões em Luanda (LOPES, MENEZES, 2012).
O âmbito material de aplicação pela autoridade tradicional percorre os temas
referentes a família, o que engloba as relações com os vizinhos, assim como, os casos
denominados de feitiçaria. Dessa maneira, observa-se a existência de uma limitação no que
concerne a atuação dessa forma de resolução de conflito. Não encontrando o instituto em
estudo a competência para solucionar todas as formas de litígios existentes. Ficando reservado
as situações das relações mais usuais entre os indivíduos (briga com vizinhos, familiares,
acusações de feitiçaria e limites do terreno).
Interessante pontuar ainda que além da resolução de conflitos, as autoridades
tradicionais possuem outras atribuições. O Dr. Aslak Osrra aponta que o PNUD (Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento) realizou estudo apontando as atividades
desenvolvidas pelas autoridades tradicionais que costumam ser exclusivos do Estado:

Gestão do uso e distribuição da terra; Gestão de assuntos comunitários como


trabalho agrícola e actividade comercial; Gestão de assuntos de habitação e
distribuição geográfica de residências; Controle da população e fornecimento
de dados para censos e estatística e recrutamento militar. Estabelecimento de
normas sociais e jurídicas; Contenção e resolução de litígios e conflitos
locais; Reforçar e promover a construção e manutenção das infra-estruturas
públicas; Orientar a população sobre informação e decisões
governamentais;Negociação com os agentes externos (Estado, ONG,
negociantes, partidos, etc.) em nome da população local, inclusivamente
sobre os recursos naturais. (ORRE, 2012, fls. 158-159)

Pela pesquisa de Lopes e Menezes, no que concerne a atividade de resolução de


conflito, o início da participação da autoridade tradicional começa na realização de uma
queixa pelo reclamante ao líder da daquela comunidade. Posteriormente, é processada as
convocatórias das partes, permitindo que sejam trazidas testemunhas para a defesa. A adesão
para a participação da instrução do feito é voluntária. Sendo que a sua não participação
incorre em envio do ocorrido para a polícia.
Nesse ponto, interessante entender que o processo tradicional, também se calca na
importância do contraditório e da ampla-defesa. Ao convocar as partes, permitindo a
apresentação de defesa e da possibilidade de trazer testemunhas, demonstra que seu processo
também entende a necessidade de análise dos fatos ocorridos apresentado por pessoas sem
interesse no litígio.
Lopes e Menezes deixam claro que a forma utilizada no direito tradicional é baseada
na oralidade. Assim, a queixa e a audiência são feitas oralmente. Agora, a convocação, defesa
e decisão, são elaboradas por escrito.
O momento da instrução do conflito queixoso, denominado como auditório relevante
entre as partes, o Soba, munido de sua experiência e conhecimento da sabedoria ancestral,
conduz a audiência com a participação de escolha das partes e idioma definidos no momento.
A condução feita pelo Soba tende é calcada nas manifestações das partes. Caso acredite ser
necessário, pode antes da decisão, consultar a equipe. Existe também a figura do secretário,
que faz os registros dos depoimentos e das conclusões existentes.
A pesquisa elaborada por Lopes e Menezes apontam que a decisão normalmente é
feita baseada na mediação entre as partes, tentando que ambas as partes não se sintam
totalmente lesadas. A forma da decisão é usualmente realizada de três formas: pedido de
opinião das partes envolvidas para a resolução do conflito, demonstrando que existe um
entendimento da importância da legitimidade dos seus atos; Realização de decisões
intermediárias, em que testa-se a eficácia da decisão, para depois torna-la definitiva ou altera-
la; Baseadas nas leis do Estado.
Pelo que podemos observar, a forma como o litígio é resolvido pelas autoridades
tradicionais, não divergem muito das regras gerais de processos. São observados ditames
fundamentais, como a participação das partes, a efetiva convocação, possibilidade de defesa,
tentativas de resoluções voluntárias e a decisão por escrito.
Tendo sido demonstrado o processo histórico das Autoridades Tradicionais, e, agora, a
demonstração de como ocorre a interferência por esse instituto, resta as análises da sua
existência como forma de justiça.

3 . Análise das autoridades tradicionais como meio de justiça


É importante para começarmos o debate, que a solução da utilização das autoridades
tradicionais como forma de justiça, é fruto de um percurso histórico, onde a invasão e
dominação pelos europeus gerou uma ruptura com as relações entre as pessoas no continente
africano. Como visto acima, as autoridades tradicionais não tiveram sempre mantidos seus
poderes, houve uma necessidade do Estado se aproximar de regiões e de situações que não
eram de seu controle.
Acima de tudo, faz-se imprescindível que se compreenda que não existe debate acerca do
caráter de resolução de conflitos, melhor dizendo, de forma de direito, pelas autoridades
tradicionais, trata-se de um fato. Elucidando o exposto, o pesquisador Dr. Alain Souto Remy,
ensina:

E não se trata de saber se foram ou não incorporados pela ordem jurídica estatal
angolana, nem se deveriam sê-lo, porque de fato o foram. O que importa é
abordar a forma como a função dessas autoridades pode ser acomodada com a
nova realidade, uma vez que efetivamente parece dever sê-lo, proporcionando-
se mecanismos de congruência entre os comportamentos de vários atores
jurídicos responsáveis pela produção e aplicação do Direito: de um lado, as
instituições estatais e, do outro, chefes locais, autoridades com aura de
legitimidade pré-colonial – espécie de legitimidade carismática de Weber (1979
[1956]) – mas, na verdade, modernamente reavivados ou confirmados pelo
próprio Estado. (REMY, 2014, fl. 11)

O que interessa para o presente estudo é percebermos qual forma desse direito. Observa-
se em um primeiro momento que a autoridade tradicional tem como fonte os provérbios daquele
povo. O que se caracteriza pelas experiências daquela comunidade e os aprendizados para uma
paz social coerente com a cultura do povo. O pesquisador Moisés Mbambi, assim caracteriza os
provérbios:
As condutas prescritas na linguagem proverbial servem para mostrar ao homem
o caminho certo para evitar males, problemas, infortúnios e, acima de tudo,
castigos! Daí o seu necessário acatamento por toda a gente. E os provérbios que
encerram comandos jurídicos formam o que chamamos direito proverbial.”
(MBAMBI, 2007, fl. 2)
Dessa forma, trata-se de uma fonte que não possui registro escrito ou alguma evidência
cientifica nos padrões europeus. Trata-se de uma forma de direito baseado nas tradições e da
oralidade. Inexiste qualquer codificação ou uma fonte direta de aplicação.
Nesse sentido, importante ressaltarmos que a forma de resolução de conflitos pela
Autoridade Tradicional, embora haja um caminho normalmente perseguido, é feito de maneira
individual. A inexistência de uma base legislativa específica, permite que as ações das
autoridades sejam amplas.
Assim, imprescindível ter em mente que diferente do sistema jurídico europeu, em que se
propaga uma necessidade de uniformização de jurisprudência, inexiste aqui qualquer
compromisso com uma unidade centralizada. Fazendo com que as decisões se comprometam
apenas com a observância das tradições daquela comunidade. Evidentemente, que existe uma
preocupação com a legitimidade das decisões, uma vez que a resolução de conflito pela
autoridade tradicional seja voluntária, o Soba, para que haja necessidade na manutenção de suas
atividades, deve se preocupar com a recepção de suas decisões pela sociedade.
A principal característica no que toca a legitimidade da modalidade de resolução de
conflitos em atenção, é a alta quantidade de autoridades ligadas a movimentos e partidos
políticos.
O direito não está excluído dos atores e fatores políticos, muito pelo contrário, muitas
vezes se manifesta com interesse partidário. Nesse debate, imprescindível observar como o
MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional para
Independência Total de Angola), dialogaram com as autoridades tradicionais.
No que concerne ao MPLA, notou-se a clara instrumentalização do partido nas
autoridades tradicionais. Sobretudo, existia uma pressão para que as autoridades se filiassem ao
partido, isso visando que aquela comunidade estivesse sobre a influência do grupo em questão.
Caso o Soba não estivesse articulado em promover o partido, verificou a existência de ameaças,
espancamentos e retiradas de privilégios.
A institucionalização partidária pelo MPLA é tão notória, que era comum que ao lado da
residência do soba houve a bandeira do partido, invés da bandeira da própria nação. Com esse
ato, resta claro que havia uma perseguição dos opositores pelas autoridades. Outro fator que nos
interessa é a necessidade de prestação de informações para os secretários do partido.
Por outro lado, o que se observou é que a UNITA, com a perda da guerra civil, embora
tenha acertadamente tentado o apoio dos Sobas, a ausência de capital financeiro e político, fez
com que não fosse expressiva a instrumentalização das autoridades tradicionais por esse grupo.
No que se refere a instrumentalização partidária das autoridades tradicionais, importante
que fique clara a sua ocorrência de maneira deliberada. Quanto ao tema, Aslak Orrre, aduz:

Primeiro, há a instrumentalização partidária directa e aberta que ocorre a nível


local quando as autoridades tradicionais (as que sejam reconhecidas pelo
Estado) assumem o papel de agentes políticos do partido no poder – actuando
de maneira a favorecer o partido e/ou inibindo e impedindo as actividades
políticas de partidos da oposição (a situação típica de Angola). O outro
processo de instrumentalização partidária é mais subtil ou oculto. Isto se refere
às situações criadas pela configuração das instituições do Estado local, que
muitas vezes são elaboradas usando a linguagem da descentralização e
desconcentração, e a tendência a enquadrar as autoridades tradicionais em
instituições que privilegiam o monopólio de poder do partido-estado (a situação
típica de Moçambique, embora também aconteça em Angola). Para os neo-
chiefs – ou seja, os indivíduos que se constituem, ou pretendem candidatar-se,
como autoridades tradicionais reconhecidas pelo Estado – a instrumentalização
partidária constitui uma pressão política forte. (ORRE, 2012, fl. 161)

O que podemos destacar da notória interferência política para análise das autoridades
tradicionais como forma de direito, é a total ausência do princípio da imparcialidade, ponto nodal
em nossa estrutura jurídica.
No sistema de autoridade tradicional, não houve a preocupação e/ou necessidade, de que
o julgamento e o funcionamento das formas de resolução de conflito fossem orientados pela
proibição de interferência política nas decisões. Nesse contexto, a realidade como ela é, se
conecta com todos. A autoridade é ao mesmo tempo, ente político partidário, decisor e gestor
administrativo. Esse conjunto de atribuições, faz com que seja uma excelente máquina de
manutenção de poder pelos partidos maioritários, assim como, atrai um crivo ideológico nas
decisões realizadas.
O que é interessante de se pautar é que esse mesmo decisor que se baseia na mediação
como meio usual de resolução de conflitos, também é preso em uma rede política em que seus
atos devem ser analisados pela instituição partidária. A presente constatação faz perceber a
complexidade e a polêmica dessa forma de direito, que se calca pela autocomposição, sem a
existência de mecanismo de proibição de interferência entre os poderes.
Outro ponto que interessa para a análise em comento, é a interligação do direito
costumeiro, aplicado pela autoridade tradicional, com o sistema judiciário positivado pelo
Estado. Como já elucidado, a Angola, escolheu a utilização do pluralismo jurídico, resta entender
a forma de articulação entre os dois entes.
O pluralismo jurídico é conceituado segundo diversas áreas, referindo-se na existência
de mais de um sistema jurídico, implementado fora da exclusividade do Estado, fora dos
caminhos além dos normalmente descritas pelas fontes clássicas do direito. Fernando Kapoco e
Sergio Nojiri, apontam a importância do sistema em Angola, nos seguintes termos:

Nesse contexto, o pluralismo jurídico pode ser um dentre os vários


instrumentos possíveis para permitir um diálogo plural entre esses atores
sociais, para a realização constante e urgente da democracia em Angola,
porquanto ele é a negação da concepção de um Estado como centro único do
poder político e fonte exclusiva de toda produção do Direito. Dessa forma,
significa uma multiplicidade de manifestações ou práticas normativas num
mesmo espaço sóciopolítico, integradas por conflitos ou consensos, podendo
ser ou não oficial, tendo a sua razão de ser nas necessidades existenciais,
materiais e culturais (WOLKMER, 2001: 15- 16). Ou seja, o pluralismo
jurídico permite-nos visualizar, a partir do postulado básico da antropologia
jurídica, que “as regras são feitas a partir de bases sociais e econômicas e
precisam ser vistas em seu conteúdo social e que as burocracias jurídicas
formais são apenas algumas dentre as diversas instituições que podem
aplicar sanções aos indivíduos” (SHIRLEY, 1987: 12-13). Uma Outra
concepção de pluralismo jurídico “estabelece a pluralidade como a base das
relações sociais a partir da pressuposição da multiplicidade de pertenças dos
membros de uma sociedade a coletividades mais ou menos
institucionalizadas”. (KAPOCO e NORIJI, 2018, fl. 16)

Pelo apontado acima, é possível depreender a complexidade do pluralismo jurídico na


sociedade, já que abriga dentro de si sistemas distintos, em termos de forma e matéria. Todavia,
representa a multiculturalidade do povo e legitima uma forma de conduta existente naquela
territorialidade.
A concepção do pluralismo jurídico muitas vezes atrai o que já foi diagnosticado na
pesquisa em questão, a supremacia de um ordenamento jurídico sobre outro. No caso
Angolano, a Constituição foi clara em delimitar que os costumes devem ser limitados a própria
Constituição e aos direitos humanos.
Em verdade, o principal problema é ausência de independência financeira das autoridades
tradicionais, o que gerou um aparelhamento das instituições as forças políticas existentes no
Estado, como se percebe da análise de Fernando Kapoco e Sergio Nojiri:

A relativa incorporação das autoridades tradicionais à máquina estatal


angolana gerou uma forte dependência financeira que retirou autonomia e
independência suficientes das autoridades tradicionais para o
estabelecimento de uma relação horizontal com o Estado. Como
consequência, o modelo/sistema jurídico pluralista ficou prejudicado, assim
como o processo de democratização do país. Ocorreu, assim, um processo de
instrumentalização das autoridades tradicionais por forças estatais,
administrativas e partidárias, que visava torná-las meros auxiliares e
intermediários do Estado em sua capacidade de dominação, controle e
organização da população. Esta instrumentalização partidária fez com que as
autoridades tradicionais prestassem serviços para o partido com uma
recompensa inferior ao valor prestado (ORRE, 2009: 143-149). Todavia,
deve-se ressaltar “a capacidade das autoridades tradicionais em manipular a
relação com o Estado em seu favor, de acordo com o contexto específico”.
(KAPOCO e NOJIRI, 2018, fl. 23)

Dessa forma, o que se observa é a existência de um modelo que efetivamente é plural, no


sentido que realiza a resolução de conflitos com base dos seus costumes e com tribunais
oficiais. Todavia, a autoridade tradicional exerce suas atividades sem a autonomia política e
financeira para a existência a qual foi proposta, a manutenção e desenvolvimento de seus
conhecimentos e forma de viver.
As autoridades tradicionais representam uma forma de resolução de conflitos e de direito
muito diverso do nosso ordenamento europeu. No sentido das garantias, preserva muito do que
se baseia a forma europeia, com prevalência ao direito da ampla defesa e contraditório. O seu
funcionamento é calcado na melhor decisão para ambas as partes, estimulando a
autocomposição. Todavia, o aparelhamento como visto acima, pode acabar por centralizar
decisões que certamente destoa do entendimento de um ordenamento jurídico plural, já que as
limitações não permitem a sua independência.
Em complemento, o que se observa da análise é que as autoridades tradicionais são
fundamentais na participação de todos os elementos da sociedade na formação do Estado. É um
instrumento que pode gerar uma democracia altamente participativa, onde o Soba realiza
atividade de apoiador social, muito distinta da imagem social da justiça nas sociedades não
plurais. Sendo um elemento imprescindível para a construção de um direito calcado na paz
social de todas as pessoas, principalmente, aquelas cuja colonização o subjugou e ainda não
reparou as desigualdades promovidas.

Considerações finais
O continente Africano, incluindo especificamente a Angola, já existia como
civilizações antes da colonização europeia. Existiam sistemas de direito já enraizados
naquelas sociedades. O processo de ocupação pelos países europeus que interrompeu esse
processo. No decorrer da colonização foi usual a estratégia de conceder privilégios para parte
dos nativos, sendo que, para isso, imprescindível que houvesse uma legitimação social e uma
forma de conduta. A utilização das autoridades tradicionais tem como discurso a manutenção
da sabedoria cultural, o que, efetivamente, pode em parte ocorrer, todavia, decorreu de uma
estratégia para manutenção do poder pelo colonizador.
Após a independência de Angola, surgiu a necessidade da centralidade de poder, o que
não ocorria com as autoridades tradicionais, que permaneciam fora do corpo do Estado. Sendo
que apenas após a promulgação do decreto conjunto nº 39/92, houve o reconhecimento da
autoridade tradicional na forma de pagamento de salários. Aos poucos houve uma maior
integração no corpo do Estado. Sendo que apenas após a promulgação da Constituição da
República da Angola houve a equiparação no aspecto de fonte jurídica.
A autoridade tradicional opera no que se refere ao direito em situações envolvendo
família, propriedade e feitiçaria. Um procedimento não muito diverso do que entendemos de
funcionamento do processo. Existe apenas uma prevalência na utilização do meio oral.
Ocorrendo a queixa, convocação, defesa, audiência e decisão. Observa-se que mantém o
direito ao contraditório e ampla defesa, além, de estimular o processo de autocomposição.
A instituição das autoridades tradicionais é uma forma de direito baseada pela cultura
e ancestralidade daquele povo. É ainda descentralizado, no sentido de que permite várias
formas de decisão, já que representados por vários povos diferentes.
Existe ainda um fator político que interfere diretamente em seu funcionamento, qual
seja, o notório emparelhamento da instituição principalmente com o partido MPLA, havendo
uma estrutura que hierarquiza o partido acima do ente em estudo.
Outra característica que merece destaque é a utilização do pluralismo jurídico, em que
coexiste o direito costumeiro e o positivado. No caso em questão se observa a opção pela sua
utilização na forma de sobreposição do direito positivado sobre o direito tradicional. O direito
tradicional ainda é limitado a outras instituições e fontes de direitos, o que impede sua
aplicação de maneira independente.
Inexiste no direito tradicional uma série de independências que impedem sua
utilização mais efetiva. Sendo que a ausência de autonomia financeira impacta diretamente
em suas atribuições. Fazendo que a sua dependência a partidos políticos e outros atores do
Estado, diminua seu desenvolvimento no intuito em que é declarado.
A autoridade tradicional possui uma riqueza humana e de formas diversas de
resoluções de conflito. Sendo que o sufocamento de sua essência por instituições terceiras,
pode ter como efeito o silenciamento de tamanho conhecimento. É imprescindível que o
debate entenda a necessidade de observância dos costumes e sua ampla capacidade de
produzir novos desenvolvimentos, assim como, compreenda os efeitos da colonização,
primando pela reparação do povo africano.
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