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A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS POVOS DE

ANGOLA1
Eugénio Ginga2
(Dekaneto de Njinga a Mbandi)

RESUMO:

O Direito existe em toda e qualquer sociedade. Portanto, há, também, um


Direito latente na alma do povo angolano, e este, com certeza, não é o Direito
que os nossos juristas mais renomados foram aprender em Portugal. Os povos
de Angola apresentam uma composição pluriétnica com diferentes sinais
identitários, estes sinais têm sido alvo de abordagens diferenciadas. Os povos
pertencentes a estes espaços milenares possuem, desde então, tal como nas
demais sociedades pretas de Áfrika, uma idiossincrasia-mãe com absoluta
relevância jurídica comum a toda a raça preta do nosso continente, imanente
ao próprio homem preto-afrikano. A expressão institucionalização tem sido
definida como sendo o processo pelo qual um conjunto de normas de
comportamento, que orientam uma actividade social que se mostra relevante,
adquire regulamentação jurídica formal. Nós aplicamos esta expressão ao
nosso estudo precisamente para compreendermos que não basta que a lei, tal
como se procede, faça referência superficial ao que chamam de Costume, é
preciso que se institucionalize o Direito dos povos de Angola.

O presente estudo é delimitado, no espaço, pelo terreno fértil da antropologia


jurídica das sociedades afrikanas, no geral, e angolana em particular; no plano
teórico, o estudo vai encarregar-se de reflectir criticamente o Direito praticado
em Angola no campo aberto da epistemologia jurídica vertida aos autores e
valores ético-jurídicos afrikanos. A intenção deste estudo é dar continuidade ao
ideário de construção de nações fortes e verdadeiramente independentes em
Áfrika, o que, com certeza, passa pela autonomização e valoração do
pensamento jurídico próprio do muntu afrikano.

Palavras-chave: Institucionalização; Direito; Povos; Angola.

1
Comunicação apresentada na Conferência Académica organizada pela Associação
Académica dos Estudantes do Instituto Superior Politécnico Dom Cardeal Alexandre do
Nascimento sobre “Os 6 anos de Ensino do Direito em Malanje”, realizada no auditório da
Biblioteca Provincial de Malanje, Angola, no dia 16 de Abril de 2023.
2
Estudante do 5.º ano do curso de Direito do Departamento de Ciências Sociais, Económicas e
Humanas no Instituto Superior Politécnico Dom Cardeal Alexandre do Nascimento em Malanje,
onde já leccionou, como Monitor, a cadeira de História das Ideias Políticas e Jurídicas.
Investigador nas áreas de Estudos Africanos, História e Pensamento Sócio-político africano.
N.º de investigador internacional (ORCID): https://orcid.org/0000-0002-8659-4537
Email: decanetorainhanjinga@gmail.com/
N.º/Telemóvel: 921145148
1. INTRODUÇÃO
Em quase todos os materiais universitários do curso de Direito, não existem
referências sobre o Direito dos nossos povos: não porque nunca tivemos
Sistemas Jurídicos, até porque os temos, mas porque não estamos
interessados em conhecer a nós mesmos; também porque pensamos, tal como
disse Marcelo Rebelo de Sousa (2000, p. 302-203), que os sistemas afrikanos
são absolutamente estranhos e não esclarecem em nada a essência do Direito
«deles».
Ora, os povos de Angola apresentam uma composição pluriétnica com
diferentes sinais identitários, estes sinais têm sido alvo de abordagens
diferenciadas. A composição pluriétnica de que falamos tem conhecido
tendências de narrativas antagônicas e classificações segundo sua
destribuição geográfica. Na verdade, é sempre complexo e controverso falar
sobre os povos de Angola. O MAAFA3 (o colonialismo) complicou demais o
estudo sobre a organização étnica dos grupos afrikanos, sobretudo aquelas
nações que tiveram uma doze a mais de azar por serem colonizadas pelos
franceses e portugueses.
Para compreendermos a etnografia dos povos de Angola, nós entendemos ser
mais importante obedecer a uma classificação segundo os espaços sócio-
culturais do que aquela que obedece meros critérios geográficos. Assim, tal
como diz Luiz da Costa (apud Chicoadão, 2015, p.37), os espaços sócio-
culturais dos povos de Angola têm sido classificados em 3 (+1), que são: o
espaço sócio-cultural Khoisan (ou Hotentote-Bochimane), o espaço sócio-
cultural Vâtwa (ou pré Bantu) e o espaço sócio-cultural Bantu (ou kongo-níger).
Há ainda quem considere também o espaço sócio-cultural latino-luso-ocidental
(onde se inscrevem os brancos, mestiços, e alguns pretos ocidentalizados até
à medula).
Por agora, importa referir que os povos pertencentes a estes espaços
milenares possuem, desde então, tal como nas demais sociedades pretas de
Áfrika, uma idiossincrasia-mãe com absoluta relevância jurídica comum a toda
a raça preta do nosso continente, imanente ao próprio homem preto-afrikano.
Antes de tentarmos desenhar o figurino do Direito dos povos de Angola é
imprescindível sublinhar que o Direito é um pressuposto inseparável da vida
em comunidade. O Direito existe em toda e qualquer sociedade. Portanto, há,
também, um Direito latente na alma do povo angolano, e este, com
certeza, não é o Direito que os nossos juristas mais renomados foram
aprender em Portugal.

ENTÃO, QUE DIREITO É ESTE QUE ESTÁ LATENTE NA ALMA DOS


POVOS DE ANGOLA?

3
Expressão da Língua Swahili que significa “O GRANDE DESASTRE”, utilizada por Marimba
Ani para designar a colonização a que os afrikanos foram submetidos.
Os juristas ocidentais/ocidentalizados (incluindo juristas afrikanos) chamam a
este Direito de “Costumeiro e Usual”. O nosso entendimento, enraizado no
contexto epistemológico e na perspectiva de defesa afrikana, é diferente!
Ao tentar explicar este assunto, o professor Chicoadão (2015, pp. 93-95)
introduz que os homens, desde a sua génese, possuem características raciais
e psicossomáticas conforme sua localização geográfica e, igualmente,
encontram-se dotados das correspectivas formas próprias de fala, da língua, do
ser, do estar, do agir, do pensar, do sentir e do fazer. Tais formas constituem
aquilo que o autor chama de Idiossincrasia-Mãe ou Idiossincrasia-Padrão (ou
ainda de Idiossincrasia-Tronco ou Regra). Em concordância com o autor,
acreditamos que esta Idiossincrasia-Mãe é o elo da imensa diversidade
antropojurídica de toda a Áfrika Preta, é o que torna comum as manifestações
sociais e transcendentais da própria raça.
Assim, a Idiossincrasia-Mãe seria uma autêntica Constituição para a raça preta
do nosso continente cuja natureza, princípios e objecto destinam-se a regular
as relações e o comportamento das pessoas e entidades que compõem o
TODO SOCIAL. Esta Idiossincrasia-Mãe não é só por e simplesmente vertida à
pretensões religiosas ou filosóficas, mas à verdadeiras pretensões jurídicas –
não só pela sua natureza ordenadora mas também pelo conjunto sistematizado
de suas normas (que não precisam, necessariamente, de serem escritas)4.
Mais adiante, Chicoadão refere que esta Idiossincrasia-Mãe incorpora os Usos
(de natureza teosófica/divina) e o Costume (de natureza filosófica e profana).
Entretanto, o contexto da aplicação das expressões Uso e Costume
apresentados aqui não compreendem a mesma natureza conceptual que
aprendemos nas academias5. Aquelas definições, fortemente influenciadas
pelas doutrinas ocidentais, nos parece inqualificáveis em se tratando do Direito
dos povos de Angola.
Nesta tendência desconstrutiva de saberes não-afrikanos, os Usos aparecem
definidos como sendo o conjunto das manifestações e formas espirituais do ser,
pensar, estar, agir, crer etc., dos seres humanos desde então, que resultam da
acção psíquica e criadora da criatura espiritual de que o homem é revestido
dentro das comunidades ancestrais; já o Costume, é o conjunto das formas
materiais do agir, fazer e executar dos seres humanos desde então, resultantes
da acção física da criatura material. E a idiossincrasia, nesta ordem de ideias,
seria a junção dos dois.
Numa variante dual e complementar, o primeiro elemento (os usos)
corresponde ao carácter espiritualista, as formas espirituais do Ser, próprios
4
No próximo subtema vamos reflectir sobre a a inerência oral do Direito dos povos de
Angola/Áfrika.
5
O costume, seguindo a tradição romana, tem sido definido como sendo “uma prática social
reiterada e acompanhada por uma convicção de obrigatoriedade” (Dono, 2013, p. 49). O Direito
Costumeiro, nestes termos, seria o Direito regulador destas práticas reiteradas, ou seja, o
conjunto dos valores, preceitos e comportamentos que regulam, existindo o Estado ou não, e
com convicção de obrigatoriedade, a conduta das comunidades com critérios normativos
distintos das leis “positivas”.
dos espíritos dos antepassados e sua ligação com os vivos – o DAD (Direito
Ancestral Divino); já o segundo elemento (de natureza profana), corresponde
às pretensões político-civis, à disciplina legal criada para os próprios homens –
o DAP (Direito Ancestral Político-Civil). Se quisermos ser mais claros, estamos
perante a grande divisão do Direito Ancestral – o Direito dos povos pretos à
sul do Saara. E é este o Direito que está latente na alma dos povos de Angola.

AGORA, COMO COMPROVAR QUE ESTE DIREITO NÃO É MERAMENTE


COSTUMEIRO?
1.1. Sobre os antecedentes de um Direito Escrito em Áfrika
A partir do século XX, o pensamento jurídico dominante no ocidente ficou
associado ao Estado liberal de legalidade sob o fundamento do positivismo
jurídico (normativo/metodológico) e sociológico.
O iluminismo iniciado séculos antes proclamou o abandono do que eles
consideravam não ser moderno e a emancipação da racionalidade humana
(europeia) como o único fundamento para o Direito. Nestes termos, só pode ser
Direito aquele que é criado e positivado (escrito) pelo homem. Um Direito
elitista por ser demasiado técnico e extremamente maliável pelos interesses do
detentor.
Esta conclusão fez emergir a Lei escrita (sob os critérios deles) como o topo da
hierarquia da manifestação prática do Direito, e legitimou o afastamento do
acervo jurídico de outros povos – sobretudo o dos povos afrikanos – por não
seguirem a mesma caracterização técnica. Digo “sob os critérios deles” porque
nunca esteve em causa se o tal Direito Positivo é ou não escrito, mas se segue
ou não o alinhamento da racionalidade que os seus teóricos extremamente
racistas (Hegel, Kelsen, Kant etc) impuseram no campo científico. Pois, desde
há muito, existiram/existem muitas Leis escritas em Áfrika, como veremos a
seguir.
Mas antes, vale referir que este Direito Positivo onde a utopia (o dever ser) se
sobrepõe à realidade (o ser/ o que é) serviu também para fortalecer a
hegemonia do ocidente por força da criação das Declarações Humanas6 mais
conhecidas. Entretanto, a necessidade de se ter um Direito escrito com
validade universal (sem prejuízo à pertinência do Direito Oral) já foi pensado
pelos afrikanos muito antes dos ocidentais.
Sem precisar descer até ao Kêmet (antigo Egipto), 5 séculos antes dos
europeus terem sonhado com uma Constituição ou Declaração Universal, o
império do Mali, em 1236, proclamou a Carta de Kurukan Fuga – uma espécie
de Constituição e Declaração Universal (escrita) que estabeleceu os princípios
que devem reger o povo mandinga. Esta Carta não esqueceu nenhuma área
da vida social, tendo resistido a todas as adversidades do tempo e, com efeito,
continua a reger até hoje todos os povos que pertenciam ao Grande Reino. A

6
A Francesa ( Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos, de 1798) e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, das Nações Unidas.
Carta é composta por 44 Artigos, onde, no seu Artigo 5.º, estipula que “toda a
pessoa tem direito à vida e à preservação da sua integridade física”. Portanto,
não foi o Ocidente quem, desde cedo, pensou o Direito numa tendência global
e reduzida à escrito.
1.2. Sobre a concepção e a natureza do Direito Ancestral
Mais acima nós trouxemos a grande divisão do Direito Ancestral, porém não o
definimos. Já o dissemos também que, no cômpto geral, a corrente jurídica dos
povos de Angola é a mesma que a dos povos pretos em geral. Esta corrente
jurídica caracteriza-se pela sua amplitude. Portanto, não reconhece a
separação do Direito em relação ao costume. Ou seja, o Direito Ancestral não é
um sistema imune à interferências transcendentais ou culturais. Aliás, a cultura
é sobre “os processos que dão às pessoas um desígnio geral para a vida e os
padrões para interpretar a sua realidade” (Nobles, 1985, p. 103), e a norma
jurídica, dentro das comunidades ancestrais, é parte integrante destes padrões.
Assim, tal como diz Chicoadão, o Direito Ancestral:
É aquele que subjaz das normas coercitivas que, desde então, a
criatura espiritual cria através da teosofia e a criatura material as
sistematiza, estrutura e codifica com o objectivo de regular a
conduta das pessoas nas comunidades antropossemióticas7
(…).(idem, p. 107).

Por estarmos habituados à dicotomia da racionalidade ocidental, poderá


parecer confuso, nesta definição, não separarmos o mundo espiritual do mundo
material, porém, a estrutura da filosofia de organização jurídica das nações
ancestrais não é reducionista como a ocidental, razão pela qual não podemos
delimitar a concepção do Direito Ancestral numa tendência meramente natural.
No Direito Ancestral, esta missão é impossível, pois, o Direito Ancestral é, no
todo, o conjunto das normas de natureza teosófica e material que regulam a
realização das manifestações espirituais do Ser, bem como as suas
correspectivas formas materiais, constituindo aquilo que chamamos de
idiossincrasia dos povos que conformam as nações ancestrais.
Por assim ser, o Direito Ancestral distingue-se do Direito Natural pelo facto de
este tratar dos fenómenos jurídicos numa perspectiva dual em relação ao
Direito Material (escrito pelo homem). Já naquele (no Direito Ancestral), a base
do sistema exige que pensemos o Direito Material e o Direito Divino como
parte integrante do mesmo corpo, por isso é que este sistema não é
alterizante (isto é, construído à base das diferenças entre o “Eu” e o
“Outro”) mas pensado a partir da ética do ubuntu (“Eu” sou porque o
“Outro” é).
Portanto, o Direito Ancestral não pode ser percebido como subcategoria do
jusnaturalismo divino ou transcendental que fora defendido por alguns autores
ocidentais da idade média, nem tampouco deve o Direito Ancestral ser

7
Mais adiante havemos de falar sobre as comunidades antropossemióticas.
percebido como subcategoria do jusnaturalismo racionalista (baseado na
simples razão humana) como também era defendido.
Por outro lado, continuamos contra uma categorização totalmente constumeira
do Direito Ancestral. É evidente que, para justificar a costumeirização do Direito
das nações ancestrais, muitos autores «positivistas» sustentam que este
Direito possui meras afeições teo-filosóficas e nunca pretensões jurídicas
propriamente ditas.
Isto, para nós, é uma conclusão irrefletida, visto que todos os tipos de Direito,
incluindo o dito Positivo, nasceram de pretensões religiosas e filosóficas, numa
só palavra, a CULTURA. Mesmo o Sistema de Direito que mais predomina na
Europa, o Romano-germânico, tal como aflorou Marcelo Rebelo de Sousa
(2000, p. 303), tem a Grécia como berço, a Roma como razão de maturidade e
a religião judaico-cristã como herança cultural, mas nem por isso aceitam que
chamem o seu Direito, no todo, de Direito Costumeiro. Então, porquê chamar o
Direito Ancestral dos povos de Áfrika/Angola de “Costumeiro” por terem
pretensões espirituais afrikanas?
1.3. Sobre a sistematização do Direito Ancestral
É verdade que o Direito Ancestral difere do Direito estrangeiro actualmente
aplicado em Angola pela recusa da excessiva sistematização, do paradigma
dos códigos e do culto às normas escritas, dando relevância ao Costume
(pensado na perspectiva de Chicoadão) e à criatividade na tomada de decisões.
Entretanto, isso não faz com que o Direito Ancestral não seja sistematizado,
antes pelo contrário!
Assim como no Sistema de Direito ocidental existe a grande divisão entre o
Direito Público e o Direito Privado, e dentro destes os seus ramos e sub-ramos,
no Direito Ancestral “Geral” existe também suas grandes divisões.
Ora, o Direito Ancestral não é um sistema antropocêntrico baseado em normas
jurídicas que limitam a multidimensionalidade do sentido e alcance da
experiência existencial. Ele é intemporal, além-homem, e com incidência em
todos os aspectos da vida em comunidade. Tal como já dissemos, a grande
divisão do Direito Ancestral resume-se em duas:
(i) A primeira incide sobre os aspectos relativos à existência, à
conservação da vida das pessoas, dos animais, das plantas e à
regulação de toda manifestação teosófica que busca a intervenção
espiritual nos actos praticados pela criatura espiritual de que é
revestido o homem8;

8
Poderão, eventualmente, existir várias designações para este aspecto em sede da
abordagem antropojurídica dos povos identificados neste sistema. Contudo, o nosso trabalho
elege a doutrina de Chicoadão como a prefencial, na qual designamos esta primeira divisão do
Direito Ancestral como «Direito Ancestral Divino» (p. 108).
(ii) A segunda9 incide sobre às criações materiais do homem, desde a
estruturação da comunidade (evitemos dizer «sociedade»), suas
etnias e grupos, bem como as relações interpessoais que são
reguladas pelas normas jurídicas dentro dos territórios
antropossemióticos10.
Neste ponto, vamos dar maior atenção ao Direito Ancestral Político-Civil
(doravante DAP) em relação ao primeiro (Direito Ancestral Divino, doravante
DAD), por ser menos complexo e mais compreensível dentro da actual
consciência jurídica. Todavia, é imprescindível referir que tanto o (i) quanto o (ii)
ramos do Direito Ancestral não são fracções tendentes a uma rivalidade
dicotómica, tal como o são os jusnaturalistas VS os juspositivistas no Direito
ocidental, antes pelo contrário, são complementares, funcionam, mais ou
menos, como Direito de primeira instância (o DAP) e o de segunda instância (o
DAD).
Dentro do DAP existem sub-ramos que abrangem a totalidade dos aspectos
intrassistemáticos da vida dos membros destas comunidades ancestrais, tanto
no âmbito cível como no público, e se apresentam como incontornáveis
paradigmas comunitários.
Os ramos no âmbito cível compreendem, tal como no Direito Ocidental, o
Direito da Família, das Coisas, das Sucessões, das Obrigações etc etc. Na
nação dos Kimbundu, no Direito da Família – que abrange todas as fases
intermédias do homem desde o seu nascimento – existe o instituto do KU
SOKANA (equivalente ao casamento) em que coexistem pequenos actos
antenupciais e nupciais como o KU TANGESA (namorar), KU BHINGA (pedir a
mão a uma mulher) e o KU LEMBA (dar lembamento), bem como os «post-
nupciais» que chamamos de KU SENGA (separação temporária do lar)11.
No âmbito público, além da extrema organização político-administrativa dos
reinos da Áfrika Clássica, temos a destacar alguns aspectos jurídico-penais e
do procedimento Penal. Neste viés, sempre que um acto anti-normas fosse
considerado relevante para a comunidade, abria-se o procedimento criminal
composto por fases: (i) o brado (abertura), a convocação dos vivos, a
convocação dos espíritos (em casos em que se precisa a intervenção do DAD)
e a de um Musákidi para uma sessão de «sekalamento» (técnicas para se
descobrir a verdade material), a apresentação de provas, a detenção12 do
culpado e outras fases subsequentes.

9
Chicoadão chama de Direito Ancestral Político-Civil.
10
Mais atrás já abordamos sobre esta expressão dentro da consciência jurídica das nações
ancestrais.
11
Até onde estudamos, a expressão “Divórcio” não tem equivalência em nenhuma língua das
nações ancestrais de Áfrika. Portanto, até prova em contrário, o Divórcio não existe no Sistema
Jurídico Ancestral.
12
Não existiam prisões dentro das comunidades ancestrais. A palavra das autoridades era de
cumprimento obrigatório, portanto, a detenção era verbal para obrigar o “arguido” a fornecer
provas.
As principais penas eram as indemnizações, a morte, a servidão, as penas
corporais, a maldição e o banimento. Vale dizer que este procedimento
abservava também as circunstências atenuantes e agravantes, bem como um
sistema de juízo baseado em provas (Chicoadão, 2015, p. 160).
Ora, dito isto, é óbvio que o Sistema Jurídico Ancestral não comporta a mesma
filosofia jurídica dos sistemas ocidentais. Então, ninguém pode esperar que os
princípios formadores dos procedimentos técnicos destes Sistemas sejam
fundamentos de um Sistema de Direito tão complexo como o das nossas
comunidades.
Finalmente, vale dizer que este sistema (que não precisa necessariamente ser
“escrito”) era operacionalizado por entidades – equivalentes aos Ministros da
Justiça, Procuradores etc – e instituições judiciais – Tribunais (ibdem, p. 168).
Além dos Tribunais Divinos (de instância Superior), existiam os Tribunais que
cuidavam das questões jurídicas político-civis (de instância inferior). Portanto,
até um sistema de recurso das decisões judiciais existia.
1.3.1. A Oralidade no Direito Ancestral
Mais acima já demonstramos que a escrita, mesmo no âmbito jurídico, nunca
foi novidade entre os afrikanos. Contudo, é inegável que a oralidade (ou
Tradição Viva, como prefiro chamar) seja a base de todos os aspectos da vida
nas comunidades afrikanas, incluindo a produção de normas jurídicas. A
oralidade não torna apenas a memória mais desenvolvida, mas também a
ligação entre o homem e a Palavra é mais forte. Como nos ensinou Amadou
Ambâté Bâ, a respeito das comunidades orais:
“(…), o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido por ela.
Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A
própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela
palavra”13.
A escrita enquanto factor sine qua non do Direito é fruto da racionalidade
epistemológica do Direito Romano-germánico. Neste sistema, predomina aquilo
que chamamos de Princípio da Legalidade que se desdobra em quatro: a
norma jurídica tem que ser Praevia (anterior), Stricta (curta), Certa (justa) e
Scripta (escrita). Ou seja, neste sistema (que Angola importou) tem-se a
escrita como pressuposto para se garantir a certeza e a segurança jurídica
enquanto fins do Direito. Existe ainda quem justifique a necessidade de a Lei
ser escrita com o argumento de que se quer erradicar o analfabetismo para
cumprir com a agenda das Nações Unidas.
Todavia, a propósito destas conclusões, a epistemologia jurídica nos permite
ser mais criativos. Na verdade, a «papelização» das normas jurídicas não é,
em si, o factor sine qua non para que exista o Direito, nem tampouco garante a

13
O texto Tradição Viva, de onde extraímos este excerto, consta do livro Ki –Zerbo, J. (Ed).
(2010). História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / – 2.ed. rev. – Brasília :
UNESCO, (p. 168).
consciencialização ou o cumprimento das normas. O que a experiência
histórica nos ensina é que quando uma sociedade é excessivamente escrita, o
respeito pela palavra é reduzido; ao invés, numa sociedade em que predomina
a oralidade, o respeito pela palavra é tudo!
O juízo sobre a segurança e o valor da palavra não podem ser mensurados
com base no histórico de uma sociedade desvirtuada como a ocidental. É
preciso abrirmos contextos de análises. Nesta senda, “nas tradições africanas,
a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um
carácter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela
depositadas” (Bâ, 2010, 169). A palavra era um “Agente mágico por excelência,
grande vetor de “forças etéreas”, não era utilizada sem prudência” (ibdem).
As normas jurídicas, mesmo as escritas, nascem de critérios valorativos. Estes
valores não são – e não precisam ser – universais. As comunidades ancestrais
eram/são donas de uma produndidade epistemológica muito incompreendida.
Como dizia Aristóteles (se é que foi ele a dizer), o ideal é criar cidadão bons
para que a sociedade seja boa. A escrita permanece fora do homem, mas a
palavra permanece com ele onde quer que vá.
Portanto, é falsa a ideia segunda a qual o Sistema de Direito das comunidades
afrikanas não reune condições necessárias para que vinque como verdadeiro
sistema de Direito.

2. A INSITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS DOS POVOS


A noção dicotómica existente entre o Direito Costumeiro (consuetudinário) e o
Direito Positivo (as Leis estatais) é formulada largamente pela Doutrina. Na
Constituição e no Código Civil vigentes em Angola, não consta taxativamente
uma epígrafe atestando a separação entre um ramo e outro. É olhando para o
historial do sistema jurídico (de origem estrangeira) adoptado por Angola,
assim como nalgumas poucas referências feitas pela Lei, que os pensadores
(doutrinadores) do Direito chegaram à conclusão de que todas as práticas
habitualmente seguidas, com convicção de obrigatoriedade, formam o Direito
Costumeiro, parte do Direito cuja institucionalização para a sua efectiva
aplicação, nos países afrikanos (sobretudo Angola), encontra-se falsificada na
ideia de reconhecimento. Senão vejamos:
2.1. O Direito (dito) Costumeiro na ordem jurídica angolana: entre o
reconhecimento e a ideia de institucionalização
Uma análise acurada ao artigo 7.º da CRA14, consagração constitucional, e os
artigos 1.º, 3.º e 348.º do Código Civil15, consagração infraconstitucional, torna-
14
Constituição da República de Angola.
15
Com a epígrafe “Direito Consuetudinário local ou estrangeiro”, diz o seguinte: “Àquele que
invocar o Direito Consuetudinário, local ou estrangeiro, cumpre fazer prova da sua existência;
mas o Tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento (…).
se imprenscindível para desmascararmos a hipocrisia tolhida na ideia de
«reconhecimento» do Direito próprio das comunidades do território angolano.
Em primeiro lugar, somos obrigados a reconhecer que, com o advento da
Constituição da República de Angola de 2010, a narrativa a respeito do
costume alterou o enquandramento legal e doutrinal que vinham desde o
primeiro Código Civil português (ainda em vigor em Angola), com a seguinte
descrição:
“É reconhecida a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário
à Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana” (artigo 7.º).
Contemplando, assim, conforme afirma Carlos Burity da Silva (2014), “a certeza
de que passou a vigorar uma novidade no ordenamento jurídico angolano, pois,
doravante, a Lei (ordinária) deixa de ser considerada a única fonte directa e
imediata do Direito no ordenamento jurídico angolano, passando a ter,
igualmente, a mesma dignidade jurídica como meio idóneo de criação do
Direito” (p. 50).
Acrescenta ainda Carlos Maria Feijó (2012), “trata-se, assim, de uma verdadeira
confirmação – e não da criação ex tunc (desde então) – de um novo lugar
jurídico para o costume” (p. 394). Com base nisto, os autores afirmam que o
costume ganhou uma verdadeira tutela jurisdicional, estando a sua validade
condicionada apenas pela Constituição e pelo princípio da dignidade da pessoa
humana.
Dito isto, as perguntas que não se querem calar são: como se concebe o
costume dentro desta visão doutrino-constitucional? O espírito da Constituição
se refere ao verdadeiro Direito Ancestral dos povos de Angola ou às meras
práticas reiteradas ex nunc (de agora em diante)? Se o (dito) costume é igual à
Lei, por que é que o “Lembamento”, por exemplo, rotulado sociologicamente
como “casamento tradiconal”, não tem a mesma força jurídica que o casamento?
Ora, analisar o costume na ordem jurídica angolana é, com certeza,
compreendê-lo dentro do espírito do sistema que assim o consagrou.
Reconhecer a validade do costume dentro de um sistema de Direito cujo
espírito atrelado à correspectiva família jurídica é estrangeiro, obriga-nos a
interpretar o costume segundo os padrões conceituais estrangeiros.
Logo, o costume referenciado na Constituição da República de Angola e nas
demais Leis não é o Direito Ancestral dos povos de Angola, mas sim aqueles
(ka)actos com convicção de obrigatoriedade resultantes das pulsações diárias
da sociedade, pelo que em nada dignifica a consciência jurídica dos povos de
Angola.
Primeiro é que a força jurídica do costume, pensada a partir daqueles artigos,
se posiciona em paridade com a lei numa relação meramente dialética e formal.
Uma abordagem epistemológica facilmente nos levaria a entender que as
narrativas dos referidos artigos são subjectivas e em nada esclarecem sobre a
incidência das normas ancestrais que são diferentes das normas que
importamos dos povos colonizadores.
Segundo é que os principais Códigos de Direito Privado, de onde provêem as
normas ainda coloniais, são meras cópias desactualizadas dos Códigos de
Direito Privado Português. Tanto o Direito da Família, cujas bases foram
desenhadas pela portuguesa Maria do Carmo Medina, como as normas dos
Direitos Civil, Sucessório e todos os outros sem excepção, que até já deixaram
de vigorar em Portugal, são meros arquivos histórico dos países colonizadores.
Em nada se relacionam com a antropogénese da consciência jurídica dos
nossos povos.
Por outro lado, a adopção de certas categorias de instituições tradicionais em
nada dignificam o espaço antropossemiótico16 da consciência jurídica cabível
aos povos ancestrais. A Constituição, nos termos do artigo 225.º, atribui à Lei –
que paradoxalmente estaria em paridade com o Costume – a regulação das
atribuições, competência, organização, regime de controlo, da responsabilidade
e do património das instituições do poder tradicional, as relações institucionais,
bem como a tipologia das autoridades tradicionais.
2.2. A NOSSA POSIÇÃO
A expressão institucionalização tem sido definida como sendo o processo pelo
qual um conjunto de normas de comportamento, que orientam uma actividade
social que se mostra relevante, adquire regulamentação jurídica formal. Nós
aplicamos esta expressão ao nosso estudo precisamente para
compreendermos que não basta que a lei faça referência superficial ao que
chamam de Costume, é preciso que se institucionalize um sistema alternativo
para fazer cumprir a expectativa de realização da justiça nas sociedades
afrikanas, que vai muito além das normas contidas nos Códigos e Decretos em
vigor.
Esta falta de institucionalização do Direito (dito) Costumeiro, pelo menos do
ponto de vista instrumental, belisca a expectativa de realização da Justiça,
enquanto principal fim do Direito, se olharmos para a antropogénese da
consciência jurídica dos povos afrikanos, no geral, e angolano em particular.
Assim, a institucionalização do Direito (dito) Costumeiro significaria um
processo de padronização/cristalização de procedimentos e práticas de
natureza “costumeira”, o que inclui a sua aplicação imediata nas correspectivas
matérias jurídico-políticas, bem como o seu estudo aprofundado, promoção e a
consequente sistematização. A arrogância institucional com que se tratam os
problemas sociais que seriam da esfera jurídica das normas de conduta
humana não inscritas nos diplomas aprovados pelo Estado (Governo) faz com
que as resoluções determinadas para aqueles problemas não sejam justas.

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Os espaços antropossemióticos referem-se aos povos de línguas milenares, bem como aos territórios de
povos cujos actos e práticas da fala são comuns.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em razão de tudo que foi dito, tecemos as seguintes considerações finais:
Os povos, desde a sua génese, possuem características conforme sua
localização geográfica encontram-se dotados das correspectivas formas
próprias de fala, da língua, do ser, do estar, do agir, do pensar, do sentir e do
fazer. Tudo isto constitui uma Ideossincrasia-mãe. Esta Idiossincrasia-Mãe é
uma autêntica Constituição para a raça preta do nosso continente cuja
natureza, princípios e objecto destinam-se a regular as relações e o
comportamento das pessoas e entidades que compõem o TODO SOCIAL.
Somos contra uma categorização meramente constumeira do Direito dos povos
de Angola. Esta expressão encerra um Direito que é fruto das pulsações diárias
da sociedade, ou seja, é meramente resultado da dinâmica da sociedade civil,
o que nada tem a ver com “os Direitos” das Nações Ancestrais Afrikanas,
sendo que são Sistemas de Direito autênticos. A constante atribuição desta
expressão aos Sistemas jurídicos das sociedades afrikanas visa, precisamente,
colocar estes Sistemas abaixo das Leis que importamos do ocidente.
O costume referenciado na Constituição da República de Angola e nas demais
Leis não é o Direito Ancestral dos povos de Angola, mas sim aqueles (ka)actos
com convicção de obrigatoriedade resultantes das pulsações diárias da
sociedade, pelo que em nada dignifica a consciência jurídica dos povos de
Angola. A falta de institucionalização do Direito dos povos de Angola belisca a
expectativa de realização da Justiça, enquanto principal fim do Direito, se
olharmos para a antropogénese da consciência jurídica dos povos afrikanos, no
geral, e angolano em particular.
Assim, a institucionalização do Direito dos povos de Angola significaria um
processo de padronização/cristalização de procedimentos e práticas de
natureza “costumeira”, o que inclui a sua aplicação imediata nas correspectivas
matérias jurídico-políticas, bem como o seu estudo aprofundado, promoção e a
consequente sistematização. É preciso que se institucionalize um sistema
alternativo para fazer cumprir a expectativa de realização da justiça nas
sociedades afrikanas, que vai muito além das normas contidas nos Códigos e
Decretos em vigor.

REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Curi, M. V. (jul./dez.2012). O Direito Consuetudinário dos Povos Indígenas e o
Pluralismo Jurídico. Espaço Ameríndio.
Chicoadão. (2015). Direito Costumeiro e Poder Tradicional dos Povos de
Angola. 2.ª Edição. Mayamba Editora.
Dono, J. S. S. (2013). Introdução ao Direito Angolano. Escolar Editora.
Feijó, C.(2012). A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades
Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolana. Almedina.
Feijó, C.; Paca, C.(2013). Direito Administrativo. 3ª Ed. Mayamba Editora.
Guerra, J. A. M. (2003), Em Defesa do Direito Consuetudinário Angolano, In:
OLIVEIRA, Ana Maria de (Coord.), 1º Encontro sobre a Autoridade Tradicional
em Angola, Ministério da Administração do Território. Editorial Nzila.
Rodrigues, A. N. R. (Ag.2018). Reflexões sobre a influência do direito
costumeiro no direito administrativo angolano à luz da constituição da república
de angola de 2010. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da
Universidade do Porto para obtenção do grau de Mestre em Direito (Ciências
Jurídico-Administrativas);
Viana, C. (2003). A Autoridade Tradicional em Angola. In: OLIVEIRA, Ana Maria
de (Coord.), 1º Encontro sobre a Autoridade Tradicional em Angola, Ministério
da Administração do Território. Editorial Nzila.

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