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FENÔMENO POLÍTICO: UM DIÁLOGO COM O PROFESSOR

NELSON DE SOUSA SAMPAIO (1914­1985)

Gabriel Dias Marques da Cruz*

1 . Introdução. 2. Professor Nelson Sampaio: Breve Biografia 3. Sobre


o Prólogo à Teoria Geral do Estado: um diálogo com o Professor
Nelson Sampaio 3.1 Papel do Estado e das Associações Políticas 3.2
Papel do Poder e Fenômeno Político 3.3 Judicialização da Política 4.
Conclusões 5. Referências

1. INTRODUÇÃO. A CIÊNCIA POLÍTICA BRASILEIRA DEVE


SEMPRE SE PAUTAR PELO RESGATE E VALORIZAÇÃODOS
GRANDES NOMES QUE INTEGRAM A SUA HISTÓRIA.
Os numerosos desafios que envolvem a disciplina – desde a
sua própria concepção como domínio autônomo do conhecimento,
passando pelos mais diversos temas que alimentam a curiosidade do
estudioso do poder e das suas manifestações – devem ser
enfrentados não apenas pelas análises dos que se dedicam à
exploração hodierna do assunto, mas, também, a partir da
reconstrução da relevante contribuição trazida pelos que nos
antecederam.
Este breve artigo inspira-se nesta percepção para resgatar o
relevante papel do Professor Nelson de Sousa Sampaio, Catedrático
de Teoria Geral do Estado da Universidade da Bahia e um dos mais
importantes cientistas políticos baianos.
O recorte aqui eleito para a abordagem contemplará,
particularmente, o seu pensamento a propósito do objeto da Ciência
Política, discussão de cunho epistemológico que será alvo de um
diálogo com as temáticas atuais do campo de estudo, direcionado à
compreensão do fenômeno político.
* M ESTRE E D OUTOR EM D IREITO DO E STADO – USP. P ROFESSOR ADJUNTO DE D IREITO C ONSTITUCIONAL DA
U NIVERSIDADE F EDERAL DA B AHIA (UFBA) E DA F ACULDADE B AIANA DE D IREITO. E-MAIL:
gabriel_dmc@yahoo.com.br.

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Proponho, pois, o estabelecimento de uma espécie de diálogo
com um tópico específico da teoria do Professor Nelson Sampaio: a
sua definição de fenômeno político e sua classificação acerca das
associações políticas. A partir de tal inspiração, buscar-se-á a
demonstração da vitalidade de suas conclusões acerca do tema e a
sua aplicabilidade às temáticas que hoje examinamos.
Cabe esclarecer que tal diálogo tem sido realizado ao longo
das primeiras aulas de cada semestre em que leciono e pesquiso a
disciplina Ciência Política. Neste sentido, os debates orais travados
com os alunos, somados à algumas reflexões e investigações
pessoais, constituem o material que serviu de alimento à presente
redação, passível, naturalmente, de aperfeiçoamentos posteriores.
Sendo assim, o artigo encontra-se dividido em dois pontos
centrais.
Em primeiro lugar, examina-se, brevemente, a biografia do
Professor Nelson Sampaio, situando o seu pensamento no contexto
de produção de sua teoria acadêmica.
Após, a análise será voltada para uma obra específica do
Professor – o seu celebrado Prólogo à Teoria Geral do Estado
(Ideologia e Ciência Política), com o qual obteve a Cátedra de Teoria
Geral do Estado na Universidade da Bahia, em 1 953.
A hipótese de trabalho aqui escolhida contempla a percepção
de que a teoria do Professor Nelson Sampaio, nos anos 50 do século
passado, já trazia contribuições relevantes para a discussão do
fenômeno político, devendo, portanto, ocupar um lugar de destaque
nas referências da doutrina brasileira acerca do tema.
Comecemos, então, a travar este breve diálogo, o que exige,
inicialmente, o resgate do perfil biográfico do Professor Nelson
Sampaio.
2. PROFESSOR NELSON SAMPAIO: BREVE BIOGRAFIA
Nelson Sampaio nasceu no dia 26 de julho de 1 91 4, no interior
do Estado da Bahia. Desde cedo revelou notória inclinação para os
estudos, o que sempre foi reconhecido pelos seus familiares. Viria a
trilhar uma vitoriosa carreira acadêmica, profundamente vinculada à
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
Na época em que Nelson Sampaio começou a ter contato com
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Estudos em Teoria do Estado e Constituição
a Faculdade ela possuía outro nome: era conhecida como Faculdade
Livre de Direito da Bahia. A Faculdade foi a terceira instituição de
ensino superior na área do Direito do Brasil, tendo sido a primeira
reconhecida após a Proclamação da República. Veio a juntar-se aos
dois primeiros Cursos Jurídicos do Brasil, em funcionamento, desde
1 827, em São Paulo e em Olinda (VENÂNCIO FILHO, 1 982).
A Faculdade Livre de Direito da Bahia deve a sua fundação aos
intensos esforços do Professor José Machado de Oliveira, uma das
personalidades mais marcantes em sua história. Cabe conhecê-lo
com maior atenção.
Era muito comum, no curso do século XIX, que os alunos da
Bahia interessados em cursar Direito se dirigissem a Pernambuco
para consumar seu desejo, tendo por base, inclusive, a maior
facilidade de deslocamento geográfico. Embora tenha sido fundado
em Olinda, o Curso de Direito foi posteriormente transferido para
Recife, o que ocorreu em 1 854 (VENÂNCIO FILHO, 1 982). Era
possível, inclusive, dirigir-se ao local apenas para fazer as avaliações
de cada disciplina em que os alunos estivessem
matriculados.Contudo, eles sentiam a necessidade de uma
preparação mais cuidadosa para os exames das disciplinas,
demanda que contaria com uma atuação decisiva do Professor José
Machado de Oliveira.
José Machado de Oliveira – também Bacharel pela Faculdade
do Recife – decidiu, então, fundar um Curso preparatório que
ajudasse os alunos baianos em sua preparação para os exames em
Pernambuco. A sua dedicação e esforço, somada à percepção de
que a Bahia já tinha condições de ter o seu próprio Curso de Direito,
fez com que fundasse a Faculdade Livre de Direito da Bahia, tendo
sido, também, o seu Primeiro Secretário (GIDI, 1 991 ). A Faculdade
surgiria, portanto, a partir do desenvolvimento do Curso particular por
ele mantido.
João Glicério de Oliveira Filho assim retratou as origens do
Curso mantido por Machado de Oliveira, embrião da Faculdade Livre
de Direito da Bahia (OLIVEIRA FILHO, 201 6, pp. 225-226):
Passaram a residir em Salvador, onde Machado de Oliveira,
nos idos de 1 890, implementou um Curso Particular de Ensino
Jurídico, com o fito de preparar os jovens soteropolitanos para
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os exames da faculdade do Recife, na qual a presença era
facultativa. Valendo-se da fama que conquistou pelo seu
brilhantismo, ensinava todas as disciplinas, contando com
grande satisfação do alunado, cuja frequência superou a sua
capacidade de, sozinho, levar adiante o Curso, passando,
então, a se aliar a outras figuras ilustres.
(...).
Em 1 5 de abril de 1 891 , foi oficialmente inaugurada a primeira
Faculdade Livre de Direito do Brasil, em sessão solene da qual
participaram grandes nomes da sociedade baiana. Dizia-se
Livre porque não mais se encontrava sob o jugo do Governo,
podendo, autonomamente, deliberar sobre seus diretores,
estatutos e currículos, carecendo apenas de reconhecimento
estatal, que adveio em 1 8 de outubro do mesmo ano.
Já em 1 6 de abril de 1 891 , Machado de Oliveira veiculou em
todos os jornais de Salvador a data de início do curso e o
quadro de horários.
Criava-se então, em 1 891 , a Faculdade Livre de Direito da
Bahia.
Muitos anos depois de sua fundação, a Faculdade passaria a
integrar os quadros da Universidade Federal da Bahia, criada em
1 946. Tendo por base a limitação de espaço deste artigo e o breve
recorte adotado, esta sintética exposição tem unicamente por
finalidade contextualizar um pouco da história do local em que
Nelson Sampaio iniciou a sua trajetória de estudos jurídicos.
Nelson Sampaio ingressou nos quadros da então Faculdade
Livre de Direito da Bahia, tendo colado grau no ano de 1 937, ocasião
em foi Orador da Turma. Após a colação de grau veio a exercer
diversas funções, que não serão aqui exploradas com maior
profundidade, por conta do recorte adotado.
Cursou, passados alguns anos, uma Especialização nos
Estados Unidos, o que ocorreu na Northwestern University, em
1 946 1 . A experiência nos Estados Unidos teve grande influência na
percepção que o Professor teria da Ciência Política, como seus
futuros escritos revelarão.
Posteriormente veio a lecionar na Faculdade, sendo que
ingressou como Professor na gestão em que um dos Professores
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Estudos em Teoria do Estado e Constituição
que mais admirava exercia a função de Diretor (GIDI, 1 991 ). Tratava-
se do Professor Aloysio de Carvalho Filho, famoso Professor de
Direito Penal à época. É possível dizer que a carreira de Nelson
Sampaio possui grande vinculação aos nomes de dois docentes, em
especial: Aloysio de Carvalho Filho, profundo inspirador da trajetória
de Nelson; e, posteriormente, Ary Guimarães, que viria a ser o seu
maior discípulo intelectual.
A passagem de Nelson Sampaio como Professor da Faculdade
foi de grande sucesso. Teve com ela uma relação de muito amor e
admiração. Viria a obter os graus de Docente-Livre e Professor
Catedrático, e a ter com a Casa de sua formação acadêmica uma
relação afetiva até o final de sua vida.
O Professor Nelson Sampaio notabilizou-se, em especial, no
âmbito da Ciência Política e da Teoria Geral do Estado. Publicou
diversos livros e artigos de grande relevo em sua área de atuação.
Após o seu falecimento, veio a ser reconhecido na condição de
Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, distinção que
premia apenas poucos nomes de sua história.
Professor Nelson Sampaio também exerceu diversas outras
atuações de relevo; além da Faculdade de Direito, também veio a
lecionar em outros Cursos da Universidade. Foi também, entre os
anos de 1 947 e 1 959, Deputado Estadual na Assembleia Legislativa
da Bahia, tendo alcançado a posição de Líder da então UDN.
Após anos de vitoriosa carreira acadêmica, o Professor Nelson
Sampaio faleceu no dia 20 de dezembro de 1 985. Uma das provas
da sua generosidade pode ser visitada ainda hoje em dia: trata-se da
sua Biblioteca pessoal, acessível no acervo da Faculdade de Direito
da UFBA, fruto de doação da sua esposa, a Senhora Aída Sampaio,
à instituição que tanto representou um papel significativo na vida do
Professor.
O Professor Nelson Sampaio recebeu diversas homenagens
após o seu falecimento, tendo sido lembrado em inúmeros artigos
que, com todo o mérito, reverenciam a sua trajetória pessoal e
profissional, marcados por extrema dedicação ao ensino e à
pesquisa.
Uma das homenagens mais sensíveis partiu de um Professor
com o qual travou relação de amizade próxima, de tal forma que se
considerava seu filho intelectual, anteriormente mencionado neste
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Cruz
trabalho: o Professor Ary Guimarães. Ele publicou, no dia 25 de
janeiro de 1 986, um artigo em reverência à memória do Professor
Nelson Sampaio, merecendo destaque o trecho a seguir
(GUIMARÃES, 1 986):
Naquela tarde do dia 20 de dezembro, perdeu-se um grande
homem. Uma das figuras maiores do seu tempo, de sua
geração, que foi das mais importantes da Bahia moderna,
dominadora até hoje. Um “scholar” sem defeitos. Um cientista
da melhor categoria que se tornou na raiz de todos os estudos
de Ciência Política entre nós. Fez escola pela sua seriedade,
pela objetividade de suas aulas, pela profundidade de seus
ensinamentos e, sobretudo, pela honestidade que imprimia a
tudo.
Sabiam todos que o que Nélson Sampaio dizia era verdadeiro.
O que não dominava – e era tão pouco – confessava sem pejo
ou meias palavras. E, em pouco tempo, trazia a resposta da
questão que se lhe tinha proposto. Citava das fontes – e não
por terceiros, o que é muito comum fazerem – e de fontes
estudadas meticulosamente. Daí ter-se tornado um sábio,
reconhecido em todos os ambientes que freqüentava – e
praticamente só freqüentava ambientes culturais.
Eram a dedicação de sua vida, dedicação apaixonada, as
coisas do espírito. Daí, muito antes de ter sido instituído, ele
dedicar-se em regime exclusivo à Universidade e à sua
Faculdade de Direito, a quem amou com um fervor que já não
se encontra hoje em dia e que marca os grandes espíritos
universitários de sua geração.
Mais recentemente foi, mais uma vez, Nelson Sampaio foi
merecidamente lembrado por artigos constantes no livro Os nomes
das salas (DIDIER JÚNIOR, 201 6).
Trata-se de uma Coletânea que reuniu escritos dos atuais
Professores da Faculdade de Direito da UFBA, escrevendo artigos
em homenagem aos Docentes falecidos, cujos nomes estão
imortalizados nas Salas da Faculdade. A obra prestou um bonito
reconhecimento a tantos nomes ilustres, cujas histórias ajudaram a
construir a história da própria Faculdade.
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Estudos em Teoria do Estado e Constituição
Nelson Sampaio foi lembrado duplamente na referida obra,
porquanto alvo de dois artigos publicados na mesma Coletânea.
Em artigo intitulado “Nelson Sampaio: o pensador do Estado”,
o Professor Manoel Jorge e Silva Neto assim retratou o biografado
(SILVA NETO, 201 6, pp. 251 -252):
Sim, NELSON SAMPAIO não se acomodou aos louros
acadêmicos provincianos; lançou-se, em verdade,
prolificamente, à missão de escrever, e, escrevendo, produziu
uma das melhores páginas da teoria constitucional que se tem
notícia: o seu “Prólogo à Teoria do Estado”, cuja lucidez e
percuciência intelectuais bem demonstram ser ele justíssimo
destinatário desta homenagem agora concretizada pelo
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal da Bahia, sob a competente
coordenação do Professor-Doutor HERON SANTANA.
A seguir, sintetizou o perfil do Professor Nelson Sampaio
(SILVA NETO, 201 6, p. 253):
O Professor NELSON SAMPAIO, cuja memória é enaltecida
por este Programa, é exemplo perene de quem se integrou e
se entregou à missão transformadora do mundo pela palavra,
pela inteligência, pelo estudo. E é por tal motivo que, ao me
debruçar para escrever estas linhas, o fiz com o espírito pleno
em alegria, pois estou certo que salvação alguma pode existir
para os que desprezam a experiência positiva do passado,
desdenham o esforço altaneiro e idealista por sociedade
menos desigual, deploram a sinergia científica em favor de
generalizada melhoria da vida das pessoas, tal como realizou
o Professor NELSON SAMPAIO – o Pensador do Estado.
Por sua vez, em artigo que escrevi a respeito do Professor
Sampaio, o retratei como um brilhante nome de sala, tendo em vista
a riqueza, diversidade e qualidade de sua caminhada intelectual
(CRUZ, 201 6).
Desde 201 6 tenho me dedicado a pesquisar mais o seu legado
e a enaltecer as suas contribuições relevantes para o
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Cruz
desenvolvimento da Ciência Política no Brasil. Além de ter sido autor
de um dos artigos anteriormente citados, escrevi uma biografia
retratando a trajetória intelectual do Professor, material ainda
pendente de publicação.
É, justamente, imbuído do intuito de valorizar a sua trajetória e
o seu legado que dedicarei, neste pequeno artigo, uma análise à
abordagem que Nelson Sampaio fez, em 1 953, a propósito do
fenômeno político, tema que tanto atraiu a sua atenção e que foi bem
retratado em sua obra Prólogo à Teoria Geral do Estado (Ideologia e
Ciência Política).
Optei por elaborar este artigo propondo uma espécie de
diálogo com a teoria do Professor Sampaio. Uma vez sinteticamente
exposto o seu perfil biográfico, analisarei os trechos centrais do tema
à luz de controvérsias que a Ciência Política tem trazido para o
assunto.
É preciso evidenciar, de logo, uma opção metodológica a
propósito da própria Ciência Política. Os assuntos versados pela
matéria e a própria forma de sua exposição possuem grande
variação de acordo, naturalmente, com a formação do Professor por
ela responsável. Em meu caso específico, a formação jurídica
evidentemente repercute na abordagem da Ciência Política, mais
aproximada – segundo o recorte aqui eleito – da Teoria do Estado e
do Direito Constitucional.
Tal recorte não desmerece qualquer outra abordagem, mas
deve ser revelado para que seja possível compreender o porquê dos
temas selecionados para este breve diálogo, na perspectiva de um
enriquecimento de um campo de estudos tão valioso para todos os
que desejam bem compreender o próprio exercício do poder.
3. SOBRE O PRÓLOGO À TEORIA GERAL DO ESTADO: UM
DIÁLOGO COM O PROFESSOR NELSON SAMPAIO
Dentre as diversas obras de relevo produzidas pelo Professor
Nelson Sampaio – assumindo destaque especial, por exemplo,
oPoder de Reforma Constitucional e o Processo Legislativo – este
artigo terá como recorte a análise de um aspecto específico de um
livro chamado Prólogo à Teoria Geral do Estado (Ideologia e Ciência
Política).
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Estudos em Teoria do Estado e Constituição
Trata-se de uma Tese apresentada pelo Professor para
concorrer à Cátedra de Teoria Geral do Estado, o que ocorreu no ano
de 1 953 (SAMPAIO, 1 953).
O talento do Professor Nelson Sampaio aqui aparece com
grande profundidade: nota-se uma clara dedicação, ao longo de toda
a obra, no sentido de expor e analisar, com um olhar crítico e
cuidadoso, diversos pensadores e correntes no âmbito da Ciência
Política.
A obra evidencia um passeio histórico de profundidade
exemplar e se depara com um grande desafio, que preenche parte
significativa do seu conteúdo: seria a Ciência Política possível? Seria
viável a construção de uma “Ciência” dos fatos políticos? Trata-se de
uma indagação de cunho epistemológico que chamou atenção do
Professor em diversas das suas produções intelectuais.
Esta preocupação perseguiu o Professor Nelson Sampaio
nesta obra e em diversos outros momentos de sua trajetória.
Tendo por base o recorte aqui adotado, cabe perceber, em seu
livro, a menção a uma valorização da Ciência Política – tarefa
desenvolvida, segundo o Professor, pela UNESCO – ao traçar um
levantamento, à época, das condições de ensino das mais diversas
disciplinas no mundo (SAMPAIO, 1 953).
Segundo o Professor Nelson Sampaio, os mais diversos
autores não conseguiram demonstrar a irracionalidade do objeto e do
sujeito do conhecimento político (SAMPAIO, 1 953), o que autorizaria,
portanto, o reconhecimento de natureza científica à Ciência Política.
Tal conclusão foi alcançada a partir de todo uma análise dedicada a
respeito do assunto, que pode ser consultada, com a devida atenção,
na obra citada.
Nelson Sampaio traz, então, uma definição própria do que
seria o fenômeno político (SAMPAIO, 1 953, p. 236), nos seguintes
termos: “A política pode ser definida, portanto, como a conservação,
distribuição, ou a transformação das relações de poder dentre de
uma associação política ou entre associações políticas”.
Também merece destaque aqui o conceito que associa ao
Estado, exposto a seguir (SAMPAIO, 1 953, p. 253):
Cremos aproximar-nos mais da realidade, se definirmos o
Estado como uma associação política de base territorial, com
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Cruz
capacidade jurídica interna e externa, cujo govêrno é dotado
do poder originário de sanção direta e incondicionada, bem
como da atribuição de conferir a pessoas e bens a condição de
nacionalidade que os distingue na órbita internacional.
Após rebater muitas críticas a propósito do reconhecimento da
Ciência Política como disciplina autônoma, sugere o emprego,
exatamente, da própria expressão Ciência Política na denominação
do conhecimento a propósito dos fatos políticos – nomenclatura que
seria melhor que a expressão Teoria Geral do Estado. Tal mudança
de nomenclatura e enfoque foi, inclusive, alvo de sérios debates
travados pelo Professor ao longo de sua carreira.
Seria, então, a Ciência Política voltada para “(...) uma
sistematização de conjunto ou uma visão geral dos temas políticos
sob todos os seus aspectos, - espécie de introdução àquelas
disciplinas especializadas” (SAMPAIO, 1 953, p. 309).
A abordagem acerca do tema pelo Professor permite a
realização de um diálogo enriquecedor.
Embora tenha sido escrito nos anos 50 do século passado – e
precise ser lido, por óbvio, à luz de sua época e contexto – os
escritos do Professor Nelson Sampaio revelam, ao menos, dois
cuidados evidentes: (1 ) em primeiro lugar, é notável a sua dedicação
à construção de um statusde autonomia para a Ciência Política,
tarefa que empreende após examinar uma diversidade
impressionante de pensadores que escreveram, desde a
Antiguidade, a respeito; (2) ademais, em segundo lugar, além de
evidenciar o referido cuidado, o Professor também busca esclarecer
qual seria o objeto em si desta área de conhecimento, revelado pelo
fenômeno político.
Ao menos três elementos podem ser aqui lembrados na
construção de um diálogo com a teoria do Professor Nelson
Sampaio. Não são os únicos, mas ocupam um patamar especial
nesta análise.
São os seguintes aspectos:
(1 ) a discussão do papel do Estado no âmbito das demais
associações políticas;
(2) a discussão acerca do papel do poder no âmbito do fenômeno
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Estudos em Teoria do Estado e Constituição
político;
(3) a discussão acerca da judicialização da política.
Examinemos, então, os elementos que integram este diálogo.
3.1 . Papel do Estado e das Associações Políticas
Inicialmente, cabe destacar que o conceito de fenômeno
político trazido por Nelson Sampaio contempla uma explicação mais
cuidadosa a propósito do que chamou de associações políticas.
Vislumbrou uma diversidade de associações, que dividiu em
pré-estatais, estatais, intra-estatais, inter-estatais e supra-estatais, e
nas quais mencionou uma série de exemplos práticos.
Nota-se, portanto, uma classificação meticulosa, e que possui,
de logo, dois méritos: (1 ) evidencia a presença destacada do Estado
como fenômeno político de maior relevo, a ponto de servir de
referência para a construção da própria classificação; (2) também
assegura o reconhecimento de que também é possível falar em
fenômeno político sem a figura do Estado, o que vem a ser relevado
pelas associações políticas pré-estatais.
A classificação feita pelo Professor Nelson Sampaio pode ser,
atualmente, utilizada como base para uma explicação didática do
assunto.
Compartilho dois exemplos que revelam a sua utilidade
hodierna.
Em primeiro lugar, nota-se a viabilidade de examinar com
detido cuidado os partidos políticos como exemplo de associações
políticas intra-estatais de grande relevo. No caso, além de explicar a
sua função e dinâmica de funcionamento, a teoria do Professor
permite que se faça, a partir de então, um aprofundamento
normativo, dedicado a examinar o significado do artigo 1 7 da
Constituição Federal de 1 988 no âmbito do pluralismo político –
presente no artigo 1 º da nossa Constituição como um dos
fundamentos da nossa República.
Ademais, também é viável aproveitar o item para evidenciar o
comportamento dos partidos no âmbito dos sistemas eleitorais
acolhidos pelo Brasil, explicando as distinções entre os sistemas
proporcional e majoritário, por exemplo. Neste caso merece atenção
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mais detida o teor do artigo 1 4 da nossa Constituição, associado às
sempre usuais propostas de aperfeiçoamento da sistemática eleitoral
brasileira.
Por sua vez – na condição de um segundo exemplo da
utilidade da construção teórica aqui examinada – nota-se a
oportunidade de examinar as associações políticas inter-estatais. O
tema permite a exploração das diferenças entre as Federações e as
Confederações, citando o exemplo histórico norte-americano, datado
do final do século XVIII, e que registra, justamente, o intuito de
elaboração de uma Constituição a partir da experiência fracassada
dos Artigos da Confederação.
Há, ainda, a oportunidade de contextualizar as distinções entre
Federação e Confederação tendo por base a Constituição Brasileira,
examinando, no caso, o caráter indissolúvel do vínculo federativo e o
caráter pétreo de nossa forma de Estado, nos termos dos artigos 1 º,
caput, e 60, §4º, inciso I, respectivamente.
Também é possível explicar o assunto analisando a viabilidade
de alteração do perfil da Federação Brasileira por meio da criação de
novos Estados e Municípios, nos termos do artigo 1 8 da Constituição,
desde que se tenha preservado o vínculo constitutivo da forma de
Estado acolhida pelo Brasil.
O conceito do Professor Nelson Sampaio traz, portanto, uma
classificação útil para uma exploração rica das projeções dos
fenômenos políticos, cenário em que a análise sobre os partidos
políticos e sistemas eleitorais, assim como acerca das distinções
entre Federação e Confederação formam bons exemplos.
3.2. Papel do Poder e Fenômeno Político
Também é possível aproveitar o conceito trazido pelo autor
para uma análise detida sobre as relações de poder.
No caso, a construção por ele apresentada permite que se
note a presença de relações de poder em diversos âmbitos da
sociedade. Nota-se que há experiência de poder no âmbito das
famílias, nas escolas, nas instituições religiosas, nas relações de
trabalho, nos sindicatos, nos mais diversos espaços sociais.
O conceito trazido também pode servir de provocação para o
exame das relações de poder nas mais diversas óticas, seja
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Estudos em Teoria do Estado e Constituição
contemplando o debate sobre legalidade e legitimidade, assim como
a propósito dos regimes políticos. Permite, ainda, refletir sobre
grupos de pressão e opinião pública, assim como sobre questões
mais recentes, tais como a exploração dos espaços de poder
ocupados pelas mídias sociais e as suas peculiaridades.
É possível, no caso, desde a realização de uma análise mais
objetiva sobre a matéria, contemplando, até mesmo, a realização de
uma análise histórica mais cuidadosa e crítica sobre o assunto.
3.3. Judicialização da Política
Por fim, o conceito de fenômeno político trazido pelo Professor
pode ser atualizado para uma análise mais contemporânea sobre o
processo de judicialização dos fatos políticos, o que pode conduzir,
muitas vezes, à deflagração de um ativismo judicial.
Neste caso, existe uma viabilidade de analisar o processo
histórico – no caso brasileiro, mais intenso após a passagem da
Constituição Federal de 1 988 e o correlato processo de
redemocratização – de encaminhamento de temas de natureza
política ao Judiciário.
Tal fenômeno complexo possui diversas explicações,
motivadas seja pela abertura no acesso ao Judiciário com a
Constituição, seja em razão da frustração de expectativas do povo
brasileiro, medida pelos notoriamente baixos índices de confiança
nas instituições representativas usuais.
É possível, então, partir do conceito de Nelson Sampaio para
explorar a dinâmica do comportamento do Poder Judiciário neste
cenário. No particular, torna-se conveniente partir de uma análise
tradicional sobre a teoria clássica da tripartição de poderes de
Montesquieu, que pode ser atualizada a partir de um olhar mais rico
sobre a tripartição de funções, examinando o caráter típico e atípico
do desempenho de cada Poder.
Afinal de contas, qual seria o comportamento esperado do
Judiciário diante de temas dotados de grande interesse e impacto
político? A pergunta enseja uma questão complexa, que já chamou a
atenção de inúmeros teóricos, sendo exemplos, embora em
contextos diversos, as discussões entre Kelsen e Schmitt (KELSEN,
201 3), assim como, mais recentemente, entre Waldron e Dworkin
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Cruz
(MENDES, 2008).
Há, neste ponto, um campo vasto de atuação, que contempla
desde os autores clássicos que explicam as origens e o exercício do
poder, até alcançar uma visão contemporânea a respeito do assunto.
Neste contexto, assume importante papel a análise conjugada
entre os artigos 2º e 60, § 4º, inciso III, da Constituição. No primeiro,
tem-se a celebração da separação de poderes na condição de um
dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil; no
segundo caso, podemos encontra-la na condição de uma das
cláusulas pétreas de nossa Constituição, já que representa um limite
material explícito ao exercício do Poder Constituinte Derivado
Reformador.
4. CONCLUSÕES
O legado intelectual do Professor Nelson Sampaio deve ser
relembrado pelos estudiosos da Ciência Política no Brasil. Trata-se
de um Professor que produziu teorias disseminadas em vários
domínios do conhecimento, tendo alcançado um grau de
reconhecimento intelectual notável na época em que viveu.
No que diz respeito, particularmente, ao campo dos fenômenos
políticos, devem ser reconhecidos os seus esforços para o
reconhecimento de um caráter autônomo para a Ciência Política, já
que dedicada à análise das relações de poder em uma sociedade.
Proponho, então, ao menos três aspectos que podem ser
aprofundados a partir da exploração feita pelo Professor Nelson
Sampaio sobre fenômenos políticos e associações políticas, em uma
perspectiva de reunião de esforços em prol do avanço do processo
de aprendizagem e pesquisa: (1 ) a discussão do papel do Estado no
âmbito das demais associações políticas: (2) a discussão sobre o
papel do poder no âmbito dos fenômenos políticos; (3) a discussão a
respeito da judicialização da política.
São três pontos que, sem nenhuma pretensão de
exaustividade, podem ser atualmente explorados a partir das
provocações feitas pelo Professor Nelson Sampaio, realizadas em
1 953. Precisam ser, evidentemente, contextualizados, mas permitem
um bom enfrentamento didático a respeito da compreensão do
assunto.
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Estudos em Teoria do Estado e Constituição
Décadas após a sua elaboração, a obra do Professor Nelson
Sampaio revela toda a sua vitalidade, como é próprio ao processo de
construção do conhecimento e pesquisa.
Que saibamos, em novos tempos, sempre reconhecer o mérito
dos que nos antecederam, cujos erros e acertos integram a nossa
caminhada humana em busca de uma melhor compreensão do
mundo em que vivemos.
REFERÊNCIAS
CRUZ, Gabriel Dias Marques da. Nelson Sampaio: um brilhante
nome de sala. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (org.). Os nomes das
salas:homenagem aos 1 25 anos da Faculdade Livre de Direito da
Bahia. Salvador: JusPODIVM, 201 6: 229-250.
DIDIER JÚNIOR, Fredie (org.). Os nomes das salas: homenagem
aos 1 25 anos da Faculdade Livre de Direito da Bahia. Salvador:
JusPODIVM, 201 6.
GIDI, Antônio. Anotações para uma história da Faculdade de Direito
da Bahia. Salvador: Faculdade de Direito da UFBA, 1 991 .
GUIMARÃES, Ary. Um depoimento. Jornal A TARDE. Sábado, 25 de
janeiro de 1 986.
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins
Fontes, 201 3.
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