Você está na página 1de 11

12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches


EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda
Abranches

textos sobre artes visuais

ARTIGO . CRÍTICA E HISTÓRIA DA ARTE BRASILEIRA

(IV) Mário Pedrosa e os “artistas do


Engenho de Dentro”

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 1/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

Data: 27 de setembro de 2017 Autor: fernandaabranches  0 Comentários


Em 1947 o crítico de arte Mário Pedrosa entrou em contato com desenhos, esculturas e
pinturas criados por internos do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II (CPNPII),
localizado no bairro carioca Engenho de Dentro. O encontro foi possível graças a uma
exposição realizada no Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro (de 21 de
fevereiro a 31 de março) que obteve grande repercussão nos jornais[1]. A mostra, que
antes estava instalada nas dependências do CPNPII, foi intitulada Exposição de Pintura dos
Alienados do Centro Psiquiátrico Nacional, coletiva de trabalhos realizados entre 1946 e 1947
no Ateliê de Pintura e Modelagem, um dos braços do Setor de Terapia Ocupacional
(STO), dirigido pela psiquiatra Nise da Silveira.

A ideia de criar um ateliê de pintura e modelagem partiu do jovem Almir Mavignier,


artista que trabalhava no hospital para custear sua atividade como pintor. Mavignier e
Nise foram grandes parceiros e, como veremos, a dedicação de ambos frutificou em
importantes debates no campo da arte e da psiquiatria. Após um ano de trabalho no
ateliê os “clientes” – como Nise chamava os pacientes – já haviam produzido uma grande
quantidade de obras e, aos olhos de Mavignier, com grande relevância plástica.

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 2/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

Assim que reuniram uma significativa produção, organizaram a mostra, surpreendente


pelo contexto onde foram geradas e, talvez por isso, capazes de mobilizar a atenção e a
discussão sobre os benefícios do tratamento humanizado que Nise[2] propunha naquele
hospital. Mavignier foi fundamental para a transposição daqueles “produtos” do
trabalho terapêutico para dentro do circuito de artes, dando visibilidade e chamando a
atenção de críticos como Mário Pedrosa. Vejamos trecho de uma matéria veiculada pelo
jornal O Globo quando a mostra ainda estava reservada ao espaço do CPNPII:

A primeira sensação de quem penetra na sala é de uma exposição moderna ou futurista: a


maneira de realização e as cores são as mesmas dos pintores filiados a tais correntes artísticas,
que muitos consideram “revolucionária”. Examinados com atenção os trabalhos dos adultos
esquizofrênicos e das crianças débeis-mentais e retardadas, a exposição ganha em valor, logo
que o visitante se convence de que está em face de trabalhos saídos da concepção de vida, de
movimento e de colorido de cérebros perturbados pela loucura ou retardados apenas […]. E
fica-se a pensar que serão alguns dos pintores modernistas que comparecem ao Salão oficial, ou
expõem em salas particulares, tão diferentes dos moldes clássicos que fizeram a glória dos
Ticianos, Murilos, Sanzzios, Goyas e dos nossos Pedro Américo e Vitor Meireles, para só falar
no passado (O GLOBO, 6 jan. 1947 apud AMIN e REILY, 2012, p.145).[3]

Além dos termos pejorativos, à época aceitos e naturalizados, a matéria compara, de


maneira indicativa, a produção daqueles internos às obras oriundas das vanguardas
estéticas europeias. Neste ponto não fica claro se tal associação se deve a certo
alinhamento com a ideia de “arte degenerada”, difundida pelo nazismo, ou se toca na
questão da livre expressão, atitude observada com apreço por correntes da pintura
moderna como o Expressionismo, Der Bleue Reiter, Surrealismo e Dadaísmo.

Publicidade

Mitsubishi’s new HV factory

Mitsubishi Motors starts producing


Hybrid Vehicles (HVs) in Thailand in
2024. HV’s sales are growing more
than BEVs, so this move looks good

Foi com essa interlocução que Mário Pedrosa precisou lidar após posicionar-se favorável
à produção plástica dos artistas do Engenho de Dentro, retomando, dentro daquele
contexto, as possibilidades da livre expressão plasmada em obra de arte. Em conferência
promovida pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI)[4], em função dessa mostra,
Mário Pedrosa disse considerar a criação artística acessível a pessoas das mais diversas
origens, podendo ser o resultado de uma prática desinteressada que adquire valor de
obra de arte por sua qualidade plástica. Afirmou ainda que o ser humano, independente
de seu estágio de desenvolvimento (adulto, criança, doente mental ou primitivo), possui
apelo criador e capacidade de expressão formal independente de quaisquer cânones.

Precisamos destacar que Pedrosa não estava sozinho: Rubem Navarra, outro importante
crítico de arte brasileiro, colaborador do Diário de Notícias, também conferiu valor
artístico à mostra, segundo ele de qualidade muito superior às exposições escolares já
https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 3/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Máriog q do Engenho de Dentro” – EMKOMUM
Pedrosa e os “artistas p p
: interseções j Abranches
em arte / Por Fernanda

realizadas naquele mesmo local. Em fevereiro Pedrosa escreve em artigo para o jornal A
Notícia, respondendo a notas da imprensa que, de modo geral, estavam lidando com a
mostra como exposição da extravagância de loucos. A defesa de Pedrosa em nome da
iniciativa baseava-se na importância de divulgar a produção daquele grupo
estigmatizado pela doença, vítima do isolamento e da violência.

[…] esses jovens e esses homens que se encontram “asilados” existem também como nós, têm
os seus problemas que não são muito diferentes dos nossos, são sensíveis como nós outros
normais, têm o que dizer até de que nos instruir, e podem viver absorvidos em atividades
externas como qualquer funcionário, comerciante, doutor ou cozinheiro. Já é tempo em que
todos compreendem que os limites entre o normal e o ligeiramente anormal, entre o equilibrado
e o pouco equilibrado é muito facilmente transposto. (PEDROSA, 1947 apud DIONISIO,
2012, p.61).

O debate se acirra com tais colocações, relativizadoras das diferenças entre a


normalidade e loucura. Aquela afronta ao senso comum deu munição para ataques de
outro crítico, Quirino Campofiorito, à tentativa de elevar a produção dos internos ao
status de obra de arte. Para ele o único mérito daqueles trabalhos era oferecer meios para
estudos científicos sobre a saúde mental. Escreveu Campofiorito:

Uma exposição de débeis mentais tem o seu interesse no plano limitado em que pode e deve ser
apreciada. […] a obra de arte perdurará num plano muito outro, graças ao rigor da disciplina
de instinto que o artista se obriga, sem jamais abdicar da autoridade que a natureza lhe faculta
sobre a própria consciência. (CAMPOFIORITO, 1947, apud REILY e SILVA, 2012).

Como desdobramento da exposição foram realizados debates e palestras sobre as obras e


seu contexto clínico. A fala de especialistas despertou interesse da imprensa, cuja
cobertura possibilitou a transferência de temas estético-científicos para um veículo de
massa. Ainda que o aspecto nosográfico da mostra tivesse preponderado nas discussões,
sua presença em meios de comunicação foi fundamental para a divulgação dos
progressos obtidos no tratamento desenvolvido por Nise da Silveira[5] e para elevar a
discussão sobre aspectos artísticos daqueles trabalhos. Vejamos trecho de matéria
elaborada por Leal Guimarães para o Jornal do Brasil:

[…] o Dr. Paternostro passou em revista vários tipos de psicoses, em que as tendências
artísticas aparecem com caráter mais acentuado. Deteve-se na análise dos padrões estéticos
demonstrados por certos esquizofrênicos, atingindo alguns, rasgos de verdadeira genialidade.
Produzindo sem a severa censura da consciência a que estão submetidos os indivíduos normais,
seus trabalhos refletem os impulsos espontâneos de uma individualidade que se exterioriza na
pintura, na música, na poesia e no romance, com a força de um verdadeiro transbordamento
orgânico (GUIMARÃES, 1947, p.5 apud AMIN e REILLY, 2012, p.148).

Mário Pedrosa passou a frequentar o Ateliê de Pintura e Modelagem do Engenho de


Dentro inteirado-se dos processos criativos vividos naquele espaço. Com a propriedade
de um crítico de arte respeitado, alimentou a possibilidade de outras exposições nos anos
que se seguiram. Não fosse o reconhecimento dado por Pedrosa, talvez aquela produção
ficasse limitada ao espaço hospitalar ou levasse mais tempo para chegar ao público
brasileiro. O interesse do crítico por aqueles artistas permitiu ainda que Almir Mavignier
o apresentasse aos amigos Ivan Serpa e Abraham Palatnik, jovens pintores figurativos
apropriados da poética modernista. Impactados pelas imagens de grande qualidade
pictórica e liberdade expressiva produzidas no ateliê do Engenho de Dentro, Mavignier,
Serpa e Palatnik mudaram radicalmente seus percursos na pintura, tendo Mário Pedrosa
como mentor intelectual[6].

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 4/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

Publicidade

Mitsubishi’s new HV factory

Mitsubishi Motors starts producing


Hybrid Vehicles (HVs) in Thailand in
2024. HV’s sales are growing more
than BEVs, so this move looks good

Em 1949 o Museu de Arte Moderna de São Paulo realizou a mostra 9 artistas do Engenho
de Dentro, com curadoria do diretor Leon Degand e Mário Pedrosa. Participaram da
coletiva: Emygdio de Barros, Raphael Domingues, Carlos Pertuis, Adelina Gomes, José
Kleber Leal, Lucio, Vicente e Wilson. Na mostra de 1947, os artistas não eram
identificados por seus nomes, mas pelas iniciais, procedimento comum em relato de
casos clínicos. O MAM de São Paulo, ao identificar os artistas pelo primeiro nome,
apresentando-os como criadores e não como pacientes, indicava importante mudança
frente os espectadores – como o próprio título da mostra indicava –, passo definitivo para
a adesão do circuito de arte ao trânsito daquela produção. Nise escreveu para o catálogo:

O diretor do Museu de Arte Moderna de S. Paulo visitou o estúdio de pintura e escultura do


Centro Psiquiátrico do Rio e não teve dúvida em atribuir valor artístico verdadeiro a muitas
das obras realizadas por homens e mulheres aí internados. Talvez esta opinião de um
conhecedor de arte deixe muita gente surpreendida e perturbada. É que os loucos são
considerados comumente seres embrutecidos e absurdos. Custará admitir que indivíduos assim
rotulados em hospícios sejam capazes de realizar alguma coisa comparável às criações de
legítimos artistas – que se afirmem justo no domínio da arte, a mais alta atividade humana
(SILVEIRA, 1949).[7]

A polêmica sobre a validade artística daquelas obras foi retomada através da imprensa
por uma provocação feita por Pedrosa. Citando o texto de Nise para o catálogo, afirmou
que a médica “passa a explicar para os Campofioritos espantados a razão de ser daquela
atribuição [de valor]” (PEDROSA, 1949, apud AMIN e REILLY, 2012, p.157). Em contraste
à exaltação de Pedrosa à tela intitulada Municipal, de Emygdio de Barros – cuja
sensibilidade artística seria comparável à de Paul Klee ou Henri Matisse – Campofiorito
responde:

Nunca nos opusemos a que se chamasse de artistas aos enfermos do C.P.N. e apenas nos
batemos para que fossem seus trabalhos apreciados dentro da mediocridade artística que
demonstram. São caracteristicamente trabalhos provenientes de ocupações terapêuticas. Bem
normais no gênero. O mais que se diga dessas obras será pura exploração literária com
intenções à margem da arte. (CAMPOFIORITO, 1949, apud apud AMIN e REILLY, 2012,
p.158).

Apesar das tentativas de Campofiorito desqualificar os trabalhos dos internos por sua
origem – não eram fruto da criação de artistas em sentido estrito, plenamente conscientes
de sua produção – a aceitação dos “artistas do Engenho de Dentro” prevalece no seleto
meio da arte e reverbera na imprensa paulistana. Segundo Amin e Reilly, “O
deslocamento dos debates para São Paulo promove a entrada de novos interlocutores,
https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 5/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa p p de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches
e os “artistas do Engenho

como Sérgio Milliet (Estado de São Paulo), Quirino da Silva (Diário de São Paulo) e Flávio de
Aquino (Diário de Notícias)[8]” e, assim como Pedrosa, “articulam o lugar do inconsciente
na arte e a proximidade (ou não) da arte do louco com a produção de crianças, artistas de
vanguarda e povos primitivos” (AMIN e REILLY, 2012, p.158). O sucesso da exposição
significou sua continuação no Rio de Janeiro, no Salão Nobre da Câmara Municipal. A
consequente repercussão por meio da imprensa, pela mobilização de intelectuais e
jornalistas, contribuíram sobremaneira para o reconhecimento da obra de Nise da
Silveira, cujas pesquisas encaminhavam-se para as teorias psicanalíticas do suíço Carl
Gustav Jung e se consagrariam com a criação do Museu de Imagens do Inconsciente
(MII), em 1952.

Nise colocava-se a par das “imagens arquetípicas” do “inconsciente coletivo” – conceitos


criados por Jung – passando a conhecer profundamente a simbologia daquelas imagens
primordiais, advindas de “pulsões instintivas”. A médica se assenhorou de importantes
princípios analíticos, passando a estabelecer relações entre tais padrões imagéticos e as
obras produzidas no ateliê do hospital: as mais variadas tragédias pessoais, registradas
em fichas de internação, certificavam ou eram complementadas por suas hipóteses
interpretativas[9], ajudando-a a acompanhar evoluções ou mesmo retrocessos no
tratamento clínico. Dessa forma, além do propósito terapêutico em melhorar as condições
psíquicas dos pacientes pelo trabalho expressivo e manual, as atividades no ateliê
estimulavam a criação de imagens riquíssimas para os estudos diagnósticos de Nise,
cujas observações e conclusões desdobrariam no livro Imagens do Inconsciente, publicado
em 1981.

As genuínas “imagens do inconsciente” produzidas por aquele grupo de pintores e


escultores suis generis, sem qualquer formação artística e livres dos temas adotados pelo
modernismo brasileiro, puseram em relevo o esgotamento do figurativismo moderno que
predominava no país. Como já mencionado, jovens artistas como Mavignier, Palatnik e
Serpa não viam mais sentido em seguir com suas referências pictóricas, aventurando-se,
junto com Pedrosa, na luta pela “guinada da abstração”. O final dos anos 1940 foi
marcado pelo forte investimento em um “verdadeiro” modernismo, apropriado de uma
linguagem universal e formalista, capaz de tirar a arte brasileira do regionalismo que
reforçava sua condição periférica.

Se Raphael é desenhista acima de tudo, Emygdio é pintor sobre tudo o mais. O primeiro tece
seu universo com a linha, o segundo constrói o seu mundo pela cor. A criação neste é por
sucessividade; são camadas de imaginação que vêm e vão como ondas. Pode-se dizer que ele
pinta de perto e imagina de longe. Suas paisagens, mesmo quando ao natural, não copiam a
realidade, resultando de formas tiradas do local e entrelaçadas a outros elementos imaginários.
Esses motivos naturais, ele os apanha dia a dia, e as vai acumulando na lanterna mágica de sua
imaginária. Daí em quase todos os seus quadros notar-se sempre a junção de elementos de um
passado longínquo e de impressões recentes. Graças a essa independência e relação ao modelo
ou ao motivo natural externo é que ele consegue ordenar a riqueza da imaginação plástica e da
fantasia, dentro de telas em geral povoadíssimas.Tudo ele subordina ao plano inflexível do
quadro. A consciência do retângulo é a primeira das obediências de todo pintor autêntico.
Emygdio é uma placa sensível. Nada passa diante de sua retina com interesse pictórico sem
ficar. Depois, na hora de transferir para a tela essas visões, o artista faz a depuração. Selciona
dentro desse caleidoscópio que é sua imaginária interior, o que deve e o que não deve ser
transformado em forma e cor. Nesse esforço de seleção é que se esconde o drama de sua
elaboração; a razão dessa sucessividade de quadros, por assim dizer, que ele vai pintando um
por cima do outro, até encontrar a ordem final, relações plásticas que o satisfaçam.
(PEDROSA, 1994, p.62).

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 6/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

Em 1959 Pedrosa publica no Jornal do Brasil o texto Da abstração à autoexpressão, no qual


se ocupa da pintura gestual e informal, representada pelo Expressionismo Abstrato
(Estados Unidos) e pelo Tachismo (França). Para o crítico brasileiro, alguns daqueles
trabalhos eram resultados da “autoexpressão” pura, da projeção da subjetividade do
artista, que abriu mão da “simplificação e cristalização da expressão” (PEDROSA, 1996,
p.316) para somente falar de si. Ao não investirem nessa segunda etapa, suas obras não se
distanciavam da vida do criador e tendiam a uma comunicação direta dos seus dramas
com o espectador: o valor artístico advindo das qualidades próprias da forma resultante
ficaria completamente comprometido. Tal atitude, para Pedrosa, era antiartística e
antiestética já que o pintor “dá mais importância ao seu retrato que à sua obra” (ibidem,
p.319).

Os processos vividos pela pintura moderna, descolando-se da figuração e da narrativa


que operavam a comunicação com o espectador, deram importância à qualidade pura da
forma e tenderam à geometria e à abstração, trabalhando as formas em diálogo com
bidimensionalidade do quadro. Certos frutos da “arte informal” estariam, de maneira
contraditória, liberando-se das imagens sem dar autonomia ao quadro, mero suporte
para projeções subjetivas.

Pedrosa não era contra a arte figurativa em geral, mas sua fatura teria que abrir mão do
quadro como representação do mundo exterior, onde é identificado como “janela”, para
entrar no jogo das formas e com elas se relacionar. Sua anuência à figuração é
exemplificada na pintura de Kandisnky, em certo momento híbrida entre a representação
e a abstração, cujo imaginário particular compunha-se pela tensão espacial entre as
formas e o seu suporte. “Na verdade tratava-se de velhas leis também, mas leis
imemoriais, cósmicas, por assim dizer, e que nada tinham com as limitações artificiais da
composições acadêmicas tradicionais” (Ibidem, p.322).

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 7/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

Emygdio de Barros, Universal, 1948, óleo sobre papel. Museu de Imagens do Inconsciente
(MII).

Mas se a produção de artistas com transtornos mentais era mais suscetível ao limite da
“autoexpressão”, como Pedrosa podia dar valor estético a desenhos, pinturas e esculturas
de artistas como Raphael, Emygdio e Adelina, cujo processo espontâneo e irrefletido
muitas vezes fora presenciado por ele? Para o crítico aqueles criadores eram tomados por
uma “força plasmadora” (Klages), “elemento ou fator antimecânico, anti-habitual,
antiinstintivo indispensável para contrabalançar a atividade exercida necessariamente até
alcançar a velocidade máxima, a destreza” (Ibidem, p.328).

Pedrosa dedicou diversos textos críticos sobre as obras dos artistas de Engenho de
Dentro, qualificando as pinturas pela estrutura do espaço, obtida por linhas, volumes,
planos e cores, independente das questões subjetivas trazidas pelos imagens e suas
composições, elementos que só interessavam à análise psicanalítica de Nise da Silveira.
Vejamos o que escreveu sobre pinturas de Carlos Pertuis, um dos artistas presentes na
mostra Pintores da arte virgem, de 1963:

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 8/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

Carlos é velho conhecido nosso. Sua arte é feita de essência, límpida, e requer, acima de tudo,
ser inteligível. O apego, porém, às percepções externas já é bem rarefeito e longínquo. Continua
a construir, como outrora, de imaginação, paisagens e mundos de mais a mais transcendentes,
distantes das percussões terrenas. Parte, ao criar, de uma realidade mágica… platônica, cada
vez mais diáfana, à medida que interminável narrativa verbal escrita, que lhe consome ainda
agora grande parte do tempo, vai perdendo nexo, interrompida constantemente no seu fluxo
por uma espécie de sintaxe absurda, entrecortada, radical redução ao nome […]. Em sua
pintura, no entanto, a inteireza estrutural (e plasticamente lógica) ainda é perfeita. Estranha e
vocativa sonoridade espacial marca as suas cidades e paisagens. As que ora expõe com suas
torres mágicas, sem castelos, são tocadas de uma claridade mais que metafísica, alegórica. As
cores chapadas, ralas, não funcionam em si, como em Emygdio e Fernando, mas estão ali para
preencer espaços, hierarquizar planos, identificar as unidades significantes, fazer sobressaltar
em suma a fantasia apriorística (PEDROSA, 1996, p.89).

Podemos perceber que, assim como fala de Kandinsky, Pedrosa não se limita ao
formalismo puro, não é radical quanto à presença de motivos passíveis de interpretações
pelo espectador. No entanto, certas características visuais elementares precisariam estar
presentes, dando corpo à obra, para que esta pudesse ser chamada de Arte. Os elementos
do imaginário de Kandisnky e de Carlos, conforme quisemos explicitar, foram
constitutivos da estrutura do quadro, onde peso, equilíbrio e tensões foram provocadas
pelo uso hábil da tinta e do espaço da tela. A presença da tal “força plasmadora”, capaz
de dosar os impulsos da autoexpressão teriam na qualidade formal do quadro seu indício
mais patente.

Agrupar a produção de artistas a partir de sua condição psíquica ou social é de certa


maneira reforçar a ideia de uma evasão que ainda marginaliza tal produção. A
circunscrição dos artistas esquizofrênicos na noção de “artistas virgens” é facilmente
datável e condicionada ao conceito de razão ou loucura de uma época, mesmo que
Pedrosa tenha tentado relativizar essa diferença. A responsabilidade deste trabalho em
pontuar os problemas dessa categorização não diminui a importância da valorização que
Pedrosa conferiu ao Ateliê de Pintura e Modelagem do Engenho de Dentro,
reconhecendo grandes artistas que antes estavam alheios ao circuito tradicional da arte.
Esse momento também foi extremamente importante para a gênese de uma arte
brasileira emancipada das tendências internacionais do hemisfério norte, uma arte
constituída por um modo de pensar próprio. A atuação de um teórico com a envergadura
de Pedrosa junto aos artistas interessados nas questões da abstração, principalmente após
o contato com a produção do Engenho de Dentro, foi de fundamental importância para o
surgimento do movimento Concretista no Brasil

[1] A mostra foi iniciada em 23 dezembro de 1946 nas dependências do CPNPII como
uma das comemorações de fim de ano realizadas no hospital O intuito de Nise da
Silveira, psiquiatra responsável pelo Setor de Terapia Ocupacional onde o ateliê de
pintura e modelagem se encontrava, era mostrar os benefícios do processo terapêutico
que vinha sendo realizado naquele setor. Para AMIN e REILY, é provável que Helena
Antipoff – referência nacional no tratamento de crianças com deficiência – tenha tido
“papel preponderante na indicação de que esta mostra deveria ser amplamente
divulgada por meio de uma exposição no prédio do Ministério da Educação e Saúde
(AMIN e REILY, 2012, p144). Outro dado que não deve ser desprezado é o fato de Milton
Dacosta, artista moderno, então companheiro de Djanira, era o monitor das atividades
artísticas para as crianças frequentadoras do CNPPII. Essa rede de contatos dá pistas
para a divulgação da mostra entre profissionais da arte e da educação.

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 9/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

[2] Desde 1944 o CPNPII contava com a atuação da Dra. Nise da Silveira, recém
chegada ao Rio de Janeiro após prisão seguida de clandestinidade, que a afastaram da
atuação profissional por 7 anos. Logo a “psiquiatra rebelde”, como depois ficou
conhecida, questionou os novos e violentos tratamentos aplicados aos doentes mentais,
como o eletrochoque, o coma insulínico e a lobotomia. Após negar a participação em um
desses procedimentos, Nise passou a dirigir o Setor de Terapia Ocupacional (STO) do
hospital, onde até então os pacientes se limitavam a faxinas e a realizar algum artesanato.
O desenvolvimento do seu trabalho no STO significou a ampliação de atividades e
tratamento mais humano e afetuoso aos doentes, chamados ali de “clientes”. Pelo menos
naquele tempo-espaço privilegiado dos 19 ateliês, os internos se liberavam do rótulo
atrelado à anulação e à passividade características do ambiente manicomial.

[3] O autor não foi identificado na citação.

[4] A conferência intitulada Arte, necessidade vital foi publicada no Correio da Manhã em
abril de 1947.

[5] A prática da “arte-terapia” já vinha sendo adotada no Brasil com o médico Osório
Cesar, no Hospital do Juquery (São Paulo). Lá, desde os anos 1920, os diversos ateliês
visavam a reabilitação dos pacientes e sua reintegração ao convívio social.

[6] Palatnik voltou-se para o conhecimento adquirido na escola técnica em Tel-Aviv e,


três anos depois, apresentou seus Aparelhos Cinecromáticos na 1º Bienal de São Paulo
(1951). Na ocasião recebeu Menção Honrosa pela obra inovadora e inclassificável nas
categorias estabelecidas para os prêmios. Ivan Serpa, que conhecera Mavignier na
Associação Brasileira de Desenho, à época, estudava gravura, pintura e desenho com Axl
Leskoschek e dava aula de artes para crianças. Em 1947 realizou sua primeira pintura
abstrata e interessou-se pela geometria. Ganhou o título de Melhor Pintor Jovem na
mesma Bienal de 1951 ao apresentar a pintura abstrata Formas. Nessa mostra Max Bill
vence o prêmio de escultura com sua Unidade Tripartida, obra emblemática para a
inserção de princípios matemáticos na arte, operação ensaiada desde os anos 1930 com o
Concretismo surgido na Europa. O marco desse movimento é o manifesto escrito por
Theo Van Doesburg, Arte Concreta, em que se opõe às vertentes abstratas e defende a
liberação da arte de qualquer referência ao mundo natural.

[7] Trecho extraído de documento digitalizado. Disponível em:


<http://bienal.org.br/post.php?i=362>. Acesso em: 13 set. de 2016.

[8] Parênteses meus.

[9] O cineasta Leon Hirszman realizou três filmes na série documental “Imagens do
Inconsciente” baseada em casos clínicos escritos por Nise da Silveira. Em 1984 lançou
Fernando Diniz: em busca do espaço cotidiano, Adelina Gomes: o reino das mães, e Carlos
Pertuis: a barca do sol.

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 10/11
12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches

Publicado por fernandaabranches

Ver todos os posts por fernandaabranches

© 2024 EMKOMUM : INTERSEÇÕES EM ARTE / POR FERNANDA ABRANCHES

SITE CRIADO COM WORDPRESS.COM.

https://fernandabranches.wordpress.com/2017/09/27/iv-mario-pedrosa-e-os-artistas-do-engenho-de-dentro/#_ftn7 11/11

Você também pode gostar