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EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda
Abranches
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12/03/2024, 10:35 (IV) Mário Pedrosa e os “artistas do Engenho de Dentro” – EMKOMUM : interseções em arte / Por Fernanda Abranches
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Foi com essa interlocução que Mário Pedrosa precisou lidar após posicionar-se favorável
à produção plástica dos artistas do Engenho de Dentro, retomando, dentro daquele
contexto, as possibilidades da livre expressão plasmada em obra de arte. Em conferência
promovida pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI)[4], em função dessa mostra,
Mário Pedrosa disse considerar a criação artística acessível a pessoas das mais diversas
origens, podendo ser o resultado de uma prática desinteressada que adquire valor de
obra de arte por sua qualidade plástica. Afirmou ainda que o ser humano, independente
de seu estágio de desenvolvimento (adulto, criança, doente mental ou primitivo), possui
apelo criador e capacidade de expressão formal independente de quaisquer cânones.
Precisamos destacar que Pedrosa não estava sozinho: Rubem Navarra, outro importante
crítico de arte brasileiro, colaborador do Diário de Notícias, também conferiu valor
artístico à mostra, segundo ele de qualidade muito superior às exposições escolares já
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em arte / Por Fernanda
realizadas naquele mesmo local. Em fevereiro Pedrosa escreve em artigo para o jornal A
Notícia, respondendo a notas da imprensa que, de modo geral, estavam lidando com a
mostra como exposição da extravagância de loucos. A defesa de Pedrosa em nome da
iniciativa baseava-se na importância de divulgar a produção daquele grupo
estigmatizado pela doença, vítima do isolamento e da violência.
[…] esses jovens e esses homens que se encontram “asilados” existem também como nós, têm
os seus problemas que não são muito diferentes dos nossos, são sensíveis como nós outros
normais, têm o que dizer até de que nos instruir, e podem viver absorvidos em atividades
externas como qualquer funcionário, comerciante, doutor ou cozinheiro. Já é tempo em que
todos compreendem que os limites entre o normal e o ligeiramente anormal, entre o equilibrado
e o pouco equilibrado é muito facilmente transposto. (PEDROSA, 1947 apud DIONISIO,
2012, p.61).
Uma exposição de débeis mentais tem o seu interesse no plano limitado em que pode e deve ser
apreciada. […] a obra de arte perdurará num plano muito outro, graças ao rigor da disciplina
de instinto que o artista se obriga, sem jamais abdicar da autoridade que a natureza lhe faculta
sobre a própria consciência. (CAMPOFIORITO, 1947, apud REILY e SILVA, 2012).
[…] o Dr. Paternostro passou em revista vários tipos de psicoses, em que as tendências
artísticas aparecem com caráter mais acentuado. Deteve-se na análise dos padrões estéticos
demonstrados por certos esquizofrênicos, atingindo alguns, rasgos de verdadeira genialidade.
Produzindo sem a severa censura da consciência a que estão submetidos os indivíduos normais,
seus trabalhos refletem os impulsos espontâneos de uma individualidade que se exterioriza na
pintura, na música, na poesia e no romance, com a força de um verdadeiro transbordamento
orgânico (GUIMARÃES, 1947, p.5 apud AMIN e REILLY, 2012, p.148).
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Em 1949 o Museu de Arte Moderna de São Paulo realizou a mostra 9 artistas do Engenho
de Dentro, com curadoria do diretor Leon Degand e Mário Pedrosa. Participaram da
coletiva: Emygdio de Barros, Raphael Domingues, Carlos Pertuis, Adelina Gomes, José
Kleber Leal, Lucio, Vicente e Wilson. Na mostra de 1947, os artistas não eram
identificados por seus nomes, mas pelas iniciais, procedimento comum em relato de
casos clínicos. O MAM de São Paulo, ao identificar os artistas pelo primeiro nome,
apresentando-os como criadores e não como pacientes, indicava importante mudança
frente os espectadores – como o próprio título da mostra indicava –, passo definitivo para
a adesão do circuito de arte ao trânsito daquela produção. Nise escreveu para o catálogo:
A polêmica sobre a validade artística daquelas obras foi retomada através da imprensa
por uma provocação feita por Pedrosa. Citando o texto de Nise para o catálogo, afirmou
que a médica “passa a explicar para os Campofioritos espantados a razão de ser daquela
atribuição [de valor]” (PEDROSA, 1949, apud AMIN e REILLY, 2012, p.157). Em contraste
à exaltação de Pedrosa à tela intitulada Municipal, de Emygdio de Barros – cuja
sensibilidade artística seria comparável à de Paul Klee ou Henri Matisse – Campofiorito
responde:
Nunca nos opusemos a que se chamasse de artistas aos enfermos do C.P.N. e apenas nos
batemos para que fossem seus trabalhos apreciados dentro da mediocridade artística que
demonstram. São caracteristicamente trabalhos provenientes de ocupações terapêuticas. Bem
normais no gênero. O mais que se diga dessas obras será pura exploração literária com
intenções à margem da arte. (CAMPOFIORITO, 1949, apud apud AMIN e REILLY, 2012,
p.158).
Apesar das tentativas de Campofiorito desqualificar os trabalhos dos internos por sua
origem – não eram fruto da criação de artistas em sentido estrito, plenamente conscientes
de sua produção – a aceitação dos “artistas do Engenho de Dentro” prevalece no seleto
meio da arte e reverbera na imprensa paulistana. Segundo Amin e Reilly, “O
deslocamento dos debates para São Paulo promove a entrada de novos interlocutores,
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e os “artistas do Engenho
como Sérgio Milliet (Estado de São Paulo), Quirino da Silva (Diário de São Paulo) e Flávio de
Aquino (Diário de Notícias)[8]” e, assim como Pedrosa, “articulam o lugar do inconsciente
na arte e a proximidade (ou não) da arte do louco com a produção de crianças, artistas de
vanguarda e povos primitivos” (AMIN e REILLY, 2012, p.158). O sucesso da exposição
significou sua continuação no Rio de Janeiro, no Salão Nobre da Câmara Municipal. A
consequente repercussão por meio da imprensa, pela mobilização de intelectuais e
jornalistas, contribuíram sobremaneira para o reconhecimento da obra de Nise da
Silveira, cujas pesquisas encaminhavam-se para as teorias psicanalíticas do suíço Carl
Gustav Jung e se consagrariam com a criação do Museu de Imagens do Inconsciente
(MII), em 1952.
Se Raphael é desenhista acima de tudo, Emygdio é pintor sobre tudo o mais. O primeiro tece
seu universo com a linha, o segundo constrói o seu mundo pela cor. A criação neste é por
sucessividade; são camadas de imaginação que vêm e vão como ondas. Pode-se dizer que ele
pinta de perto e imagina de longe. Suas paisagens, mesmo quando ao natural, não copiam a
realidade, resultando de formas tiradas do local e entrelaçadas a outros elementos imaginários.
Esses motivos naturais, ele os apanha dia a dia, e as vai acumulando na lanterna mágica de sua
imaginária. Daí em quase todos os seus quadros notar-se sempre a junção de elementos de um
passado longínquo e de impressões recentes. Graças a essa independência e relação ao modelo
ou ao motivo natural externo é que ele consegue ordenar a riqueza da imaginação plástica e da
fantasia, dentro de telas em geral povoadíssimas.Tudo ele subordina ao plano inflexível do
quadro. A consciência do retângulo é a primeira das obediências de todo pintor autêntico.
Emygdio é uma placa sensível. Nada passa diante de sua retina com interesse pictórico sem
ficar. Depois, na hora de transferir para a tela essas visões, o artista faz a depuração. Selciona
dentro desse caleidoscópio que é sua imaginária interior, o que deve e o que não deve ser
transformado em forma e cor. Nesse esforço de seleção é que se esconde o drama de sua
elaboração; a razão dessa sucessividade de quadros, por assim dizer, que ele vai pintando um
por cima do outro, até encontrar a ordem final, relações plásticas que o satisfaçam.
(PEDROSA, 1994, p.62).
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Pedrosa não era contra a arte figurativa em geral, mas sua fatura teria que abrir mão do
quadro como representação do mundo exterior, onde é identificado como “janela”, para
entrar no jogo das formas e com elas se relacionar. Sua anuência à figuração é
exemplificada na pintura de Kandisnky, em certo momento híbrida entre a representação
e a abstração, cujo imaginário particular compunha-se pela tensão espacial entre as
formas e o seu suporte. “Na verdade tratava-se de velhas leis também, mas leis
imemoriais, cósmicas, por assim dizer, e que nada tinham com as limitações artificiais da
composições acadêmicas tradicionais” (Ibidem, p.322).
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Emygdio de Barros, Universal, 1948, óleo sobre papel. Museu de Imagens do Inconsciente
(MII).
Mas se a produção de artistas com transtornos mentais era mais suscetível ao limite da
“autoexpressão”, como Pedrosa podia dar valor estético a desenhos, pinturas e esculturas
de artistas como Raphael, Emygdio e Adelina, cujo processo espontâneo e irrefletido
muitas vezes fora presenciado por ele? Para o crítico aqueles criadores eram tomados por
uma “força plasmadora” (Klages), “elemento ou fator antimecânico, anti-habitual,
antiinstintivo indispensável para contrabalançar a atividade exercida necessariamente até
alcançar a velocidade máxima, a destreza” (Ibidem, p.328).
Pedrosa dedicou diversos textos críticos sobre as obras dos artistas de Engenho de
Dentro, qualificando as pinturas pela estrutura do espaço, obtida por linhas, volumes,
planos e cores, independente das questões subjetivas trazidas pelos imagens e suas
composições, elementos que só interessavam à análise psicanalítica de Nise da Silveira.
Vejamos o que escreveu sobre pinturas de Carlos Pertuis, um dos artistas presentes na
mostra Pintores da arte virgem, de 1963:
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Carlos é velho conhecido nosso. Sua arte é feita de essência, límpida, e requer, acima de tudo,
ser inteligível. O apego, porém, às percepções externas já é bem rarefeito e longínquo. Continua
a construir, como outrora, de imaginação, paisagens e mundos de mais a mais transcendentes,
distantes das percussões terrenas. Parte, ao criar, de uma realidade mágica… platônica, cada
vez mais diáfana, à medida que interminável narrativa verbal escrita, que lhe consome ainda
agora grande parte do tempo, vai perdendo nexo, interrompida constantemente no seu fluxo
por uma espécie de sintaxe absurda, entrecortada, radical redução ao nome […]. Em sua
pintura, no entanto, a inteireza estrutural (e plasticamente lógica) ainda é perfeita. Estranha e
vocativa sonoridade espacial marca as suas cidades e paisagens. As que ora expõe com suas
torres mágicas, sem castelos, são tocadas de uma claridade mais que metafísica, alegórica. As
cores chapadas, ralas, não funcionam em si, como em Emygdio e Fernando, mas estão ali para
preencer espaços, hierarquizar planos, identificar as unidades significantes, fazer sobressaltar
em suma a fantasia apriorística (PEDROSA, 1996, p.89).
Podemos perceber que, assim como fala de Kandinsky, Pedrosa não se limita ao
formalismo puro, não é radical quanto à presença de motivos passíveis de interpretações
pelo espectador. No entanto, certas características visuais elementares precisariam estar
presentes, dando corpo à obra, para que esta pudesse ser chamada de Arte. Os elementos
do imaginário de Kandisnky e de Carlos, conforme quisemos explicitar, foram
constitutivos da estrutura do quadro, onde peso, equilíbrio e tensões foram provocadas
pelo uso hábil da tinta e do espaço da tela. A presença da tal “força plasmadora”, capaz
de dosar os impulsos da autoexpressão teriam na qualidade formal do quadro seu indício
mais patente.
[1] A mostra foi iniciada em 23 dezembro de 1946 nas dependências do CPNPII como
uma das comemorações de fim de ano realizadas no hospital O intuito de Nise da
Silveira, psiquiatra responsável pelo Setor de Terapia Ocupacional onde o ateliê de
pintura e modelagem se encontrava, era mostrar os benefícios do processo terapêutico
que vinha sendo realizado naquele setor. Para AMIN e REILY, é provável que Helena
Antipoff – referência nacional no tratamento de crianças com deficiência – tenha tido
“papel preponderante na indicação de que esta mostra deveria ser amplamente
divulgada por meio de uma exposição no prédio do Ministério da Educação e Saúde
(AMIN e REILY, 2012, p144). Outro dado que não deve ser desprezado é o fato de Milton
Dacosta, artista moderno, então companheiro de Djanira, era o monitor das atividades
artísticas para as crianças frequentadoras do CNPPII. Essa rede de contatos dá pistas
para a divulgação da mostra entre profissionais da arte e da educação.
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[2] Desde 1944 o CPNPII contava com a atuação da Dra. Nise da Silveira, recém
chegada ao Rio de Janeiro após prisão seguida de clandestinidade, que a afastaram da
atuação profissional por 7 anos. Logo a “psiquiatra rebelde”, como depois ficou
conhecida, questionou os novos e violentos tratamentos aplicados aos doentes mentais,
como o eletrochoque, o coma insulínico e a lobotomia. Após negar a participação em um
desses procedimentos, Nise passou a dirigir o Setor de Terapia Ocupacional (STO) do
hospital, onde até então os pacientes se limitavam a faxinas e a realizar algum artesanato.
O desenvolvimento do seu trabalho no STO significou a ampliação de atividades e
tratamento mais humano e afetuoso aos doentes, chamados ali de “clientes”. Pelo menos
naquele tempo-espaço privilegiado dos 19 ateliês, os internos se liberavam do rótulo
atrelado à anulação e à passividade características do ambiente manicomial.
[4] A conferência intitulada Arte, necessidade vital foi publicada no Correio da Manhã em
abril de 1947.
[5] A prática da “arte-terapia” já vinha sendo adotada no Brasil com o médico Osório
Cesar, no Hospital do Juquery (São Paulo). Lá, desde os anos 1920, os diversos ateliês
visavam a reabilitação dos pacientes e sua reintegração ao convívio social.
[9] O cineasta Leon Hirszman realizou três filmes na série documental “Imagens do
Inconsciente” baseada em casos clínicos escritos por Nise da Silveira. Em 1984 lançou
Fernando Diniz: em busca do espaço cotidiano, Adelina Gomes: o reino das mães, e Carlos
Pertuis: a barca do sol.
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