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D IR E IT O E JU R IS P R U D Ê N C IA 83

0 funcionário público e o direito de greve


A. N o g u e ir a de Sá

Sum ário -— O art. 158 da Constituição — R e­ matéria não ficasse aos azares de atos administra­
gulamentação do direito de greve — Le­ tivos formais, embora normativos. Enquanto não
gislação anterior — Funções públicas e votada, pois, a lei, nem por isso deixam de viger os
atividades privadas — O Estatuto e a preceitos constitucionais que praticamente já asse­
sindicalização — Associação de funcio­ gurem as garantias decorrentes dêles. As normas
nários — A experiência francesa e o que preexistirem, pois, e que acaso já cuidem da
exemplo norte-americano — Proteção e matéria, até à edição da lei especial, continuarão
garantia aos direitos dos funcionários — a ser aplicadas se facilitarem a completa realiza­
Sanções contra a. greve no direito compa­ ção da finalidade objetivada por aquêles preceitos
rado — Conclusão. constitucionais. E se acontecesse haver omissão
delas, nem per isso, é claro, encontraria fundamento
constitucional a recusa das certidões requeridas
§ S O fato de haver sido reconhecida a greve como para defesa de direito. Legitimado o pedido, não há
um direito pela Constituição Federal vigente como denegá-lo. Enfim, o preceito não submeteu,
(art. 158) seria possível concluir que êsse direito propriamente, o exercício dessa garantia, à disci­
se estende aos funcionários públicos ? E ’ interes­ plina da lei ordinária.
sante e oportuno considerar o assunto.
Bem diverso é o que ocorre com o art. 158
Em primeiro lugar, não nos parece que mesmo da citada Constituição. Neste dispositivo se reco­
em relação àqueles a quem se dirige a norma, nhece o direito de greve — é uma declaração — e
isto é, os que estão vinculados à relação de traba­ se condicionam, praticamente, os efeitos dela à pro­
lho (Consolidação das leis do trabalho, arts. 1 a 12) mulgação de lei ordinária que regulará o exercício
se aplique, desde logo, o preceito constitucional. do direito que foi declarado. E há, até, disposições
E ’ claro o texto: “E ’ reconhecido o direito de expressas de lei que proibem aos funcionários tanto
greve, cujo exercício a lei regulará (Art. 158 da sindicalizarem-se como fazerem greve.
Constituição). E quanto aos efeitos criminais ? N ão temos
Enquanto não fôr promulgada, portanto, a lei dúvida de que subsiste o art. 200 do Código Penal.
O ilícito criminal da paralisação do trabalho não se
própria à qual -compete regular o exercício dêsse
configura pela simples paralisação pacífica do tra­
direito, a faculdade que êle envolve, na hipótese
balho, mas seguida de violência ou perturbação da
de omissão do Decreto-lei n.° 9.070, de 15 de
ordem. A abstenção pura e simples de trabalhar
março de 1946, ou normas legais semelhantes, exis­
não justificaria a repressão penal (1 ), salvo a hipó­
tiria, apenas, potencialmente, pois é o próprio as­
tese do art. 201 do Código Penal.
sento constitucional que subordinou o exercício dêle
à disciplina da lei ordinária. Não é, conseqüen­ Ora, a declaração de liceidade da greve não
podendo, evidentemente, compreender a violência
temente, auto-aplicável o preceito. Demanda lei
ou a perturbação da ordem, mas a greve pacífica,
que o complete. Verificado que fôsse o fato no
que o Código Penal não pune, subsistirão as duas
interregno de expectativa da lei, isto é, não havendo
normas, a constitucional e a penal, por haver com­
norma legal alguma, com a provocação dos órgãos patibilidade entre uma e outra. Demais, êsse enten­
judicantes suscitar-se-ia problema jurídico dos mais dimento é o que se coaduna, perfeitamente, com o
tormentosos. A conivência humana, porém, pede Decreto-lei n.° 9.070, de 5 de m arço'de 1946, lei
impor aos membros do agregado social certos li­ de indiscutível sabedoria política e da melhor
mites de ação. Êsses limites seriam, no caso, consi­ técnica.
derados pelo poder competente. Consultando-se o elemento histórico, verifica-
E ’ verdade que as garantias e os direitos fir­ se que, se de uma parte, não se preordenaram, no
mados na Constituição independem, em princípio, texto, limitações formais ao direito de greve, acei­
do legislativo ordinário. Assim por exemplo, no tando-se, porém, como solução de rigor técnico, a
caso do § 36 do art. 141 da mesma Constituição, cláusula que confiava à lei ordinária regular-lhe o
não se vai sustentar que sem a lei acenada não exercício, de outra parte regeitaram-se, no plenano,
se haverá como líquida e certa, é o caso, a obten­ tôdas as emendas eliminatórias dessa mesma cláu-
ção das certidões requeridas para defesa de direito.
Mas, nessa hipótese, entendemos ainda — e
é um entendimento ao nosso ver irrecusável — que (1) Cf r. a lição de Tuozzi citada por Bento de Faria
o legislador constituinte o que visou foi que tal “Cod. Penal” , vol. IV, pág. 419 e s. E d . 1943.
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sula (2 ). Evidentemente, colimavam tais emendas de direitos, que é a parte substancialmente política,
uma amplitude tal para êsse direito que êste resul­ porém na que compreende, apenas, a matéria eco­
taria quase incondicionado. Absurdo tamanho não nômica e social, portanto à que é estranha a rela­
podia prevalecer, pois a greve incondicionada ou ção de emprêgo público.
absoluta não seria possível, já de si, num Estado Se, mesmo, quando se trata de serviço de ca­
de direito. Nem mesmo na Constituinte francesa ráter privado, mas mediante o qual se acode àque­
que elaborou a vigente Constituição, que reflete, las “necessidades comuns de primeira necessidade”
aliás, a influência dos partidos da esquerda, predo­ (5 ) repugna admitir a greve, — que não se dirá
minou tão estremada orientação. Em um dos seus quando em causa o serviço público em cujos graus
dispositivos preambulares firmou ela o princípio de de hierarquia se dá a incorporação do funcionário?
que “o direito de greve se exerce dentro do quadro O princípio capital da distinção entre o operário
das leis que o regulam”. Mais explícito, ainda, do (ou empregado privado) e o funcionário repousa,
que a nossa em conter e limitar o exercício dêsse antes de tudo, lembrava Stainof (6 ), sôbre duas
direito. Os seus limites, as condições e regras de idéias que estão, ao mesmo tempo na base de dois
forma da atuação sindical que requer, serão os elementos fundamentais da noção de funcionário:
previstos pelas diversas leis que regulem a matéria. a idéia da incorporação nos graus da hierarquia e
Conseqüentemente, não se pode, em absoluto, falar, á idéia de serviço público. Assim, pois, o funcioná­
desde já, em direito de greve de funcionário público. rio estaria incorporado nos graus permanentes da
E, conclusão contrária, não seria possível, ainda que hierarquia de um serviço público,' enquanto que o
faltassem o art. 3.°, n.° 28 do Decreto-lei n.° 431, operário é contratado por uma emprêsa privada, ou
de 18-5-938, o citado Decreto-lei n.° 9.070 e o se êle é contratado pelo Estado, não é incorporado
inciso V II (primeira parte) do art. 266 do Decreto- por graus permanentes da hierarquia administra­
lei n.° 1.713, de 28-10-1939 (na esfera federal) tiva, mas e, tão somente, engajado como um auxi­
e inciso V I I (primeira parte) do art. 224 do De­ liar assalariado que não é senão um operário pri­
creto-lei n.° 12.273, de 28-10-941, na esfera esta­ vado da Administração Pública.
dual. Por isso e ainda porque o sindicato é um ins­
Mas, pergunta-se, poderá a lei que vai regular trumento de defesa s reivindicação de interêsses
o exercício do direito de greve estendê-lo aos agen­ econômicos ( pois resultou da luta de classes) é
tes da Administração Pública ? sempre forçando o regime jurídico do funcionário
e o seu próprio status que se lhe estende o direito
Parsce-nos que não poderá fazê-lo. Poder-se-ia
sindical.
responder desde logo, com Jèze, que “greve e ser­
viço público são noções antitéticas” ( 3 ) . Do exame do art. 159 da Const. Federal nada
se infere quanto aos funcionários públicos. So­
A greve compreende-se no âmbito da relação mente mediante disposição expressa dé lei se lhes
do emprêgo privado porque : estenderia o direito de sindicalizarem-se.
a ) é de natureza privada e econômica o E ’ o que acaba de acontecer, agora, na França,
interêsse que dá origem a essa relação jurídica, por fôrça do art. 6.° e alínea do seu Estatuto do
que, por isso mesmo, é contratual; Funcionário (Lei n.° 46-2-294, de 19-10-1946). D u ­
b ) é de paridade jurídica a situação de em­ rante 40 anos encontrou essa idéia, ali, impugnação
pregador e empregado; da doutrina e jurisprudência.
J á advertia Nézard em suas preciosas notas
c) a proteção jurídica que a relação de tra­
acrescidas aos “Elements de D roit Const.”, de A.
balho reclama do Estado, como exigência do equi­
Esmein (7 ) que “os agitadores de sindicatos de
líbrio social, não desvirtua a natureza do interêsse
funcionários enxergam com maus olhos o projeto
que explica a mesma relação, portanto, não atinge
de lei sôbre o Estatuto dos funcionários.
a extremo do Estado substituir ao empregador
como solução perfeita ou ideal nos casos de dis­ Pleiteiam o que êles chamam o direito comum
sídio; integral, isto é, o benefício da Lei de 1884 sôbre
os sindicatos com tôdas as suas conseqüências,
d ) no âmbito do emprêgo privado, a greve inclusive a possibilidade de declararem greve. Não
pacífica e “Justificada no seu fim e nos seus meios” querem — dizem — ser cidadãos diminuídos pelo
(4 ) pode ser, mesmo, tais as circunstâncias, a fato de serem funcionários. O sindicato e a greve
única solução para o dissídio. bastatão, segundo êles, para assegurar-lhes um
Ora, êsses pressupostos não existem, em abso­ estatuto conveniente e êsse Estatuto resultará de
luto, na relação de emprêgo público e muito menos, contratos de direito comum, debatidos e passados
ainda, nos países como o nosso em cuja Constitui­ entre as organizações sindicais e o Estado”. E
ção o instituto figura não no elenco da declaração termina Nézard lembrando que essa pretensão dos
funcionários se choca, entretanto, com esta proposi­
ção evidente: que êles não são cidadãos de direito
(2) José D uarte “A Const. Brasil, de 1946” — comum: as leis fazem dêles cidadãos especiais que
Vol. 2.°, pág. 216 e s.
gozam de privilégios particulares (vencimentos,

(3) “Les P r. G én. du D r. A d m .” vol. I I , pág. 246


(Ed. 1930). (5 ) Ibidem.
(4 ) A expressão entre aspas é tomada do item 101 (6 ) “Le Fonctionnaire” — pág. 88 e s.
do Cód. Social de M alinas. (8) 8 .a ed. pág. 147.
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aposentadorias) e sujeitando-se, em compensação, Aliás, sòmente depois de longo e penoso es­


a obrigações especiais. A função é criada pela lei forço (11), assinalando-se o malogro de vários
no interêsse da Nação; e é uma pretensão para­ projetos, é que a França conseguiu ver promulgado
doxal e absurda querer recusar ao órgão que repre­ (em 1946) o Estatuto em questão. No Brasil,
senta a Nação o direito de regulamentar seus ser­ principalmente em São Paulo, o Estatuto veio de­
viços. Ninguém, aliás, é obrigado a aceitar a pois de reclamá-lo, em memoráveis campanhas, o
honra e o encargo de servir o país. Que os que lhe Funcionalismo público, mediante a atuação ele­
aceitam o proveito se submetam às condições fixa­ vada de suas associações, que, primeiro, se esfor­
das no interêsse geral e cessem de pretender orga­ çaram denodamente, tendo em vista os interêsses
nizar os serviços segundo a medida de seus interês- morais da carreira pública, em conseguir se con­
ses particulares. sagrasse, na Constituição federal (1933-1934) todo
O próprio Nézard reconhece, entretanto (8 ) um título aos funcionários públicos. Até então, o
que recusar aos funcionários o direito de se associa­ regime jurídico do funcionário público no Brasil
rem, lamentar as concessões que os governos e os era quase uma ficção, a começar da estabilidade no
juizes lhes têm feito neste sentido não é o mesmo serviço público que não existia. E isto tudo foi
que negar haver qualquer fundamento em suas conseguido sem se pensar, sequer, em sindicali­
queixas. Não há dúvida de que é por outros meios zação. As comissões de serviço civil do tipo da
que se lhes há de dar satisfação. introduzida no serviço municipal graças à clari­
vidência e cultura do prefeito Anhaia Melo (12), e
Entre nós, da cautela do art. 53 do Decreto- na qual se reflete o pensamento da classe, são os
lei n.° 1.402, de 5-7-39 (que regulava a associa­ órgãos indicados para se promover o melhor regime
ção em sindicato ) que impedia a sindicalização de entendimento, colaboração e disciplina (sem
dos servidores públicos, passou-se (e foi uma ino­ recorrer-se à rígida forma corporativa como a que­
vação) ao extremo do art. 220 do Estatuto Federal ria Duguit) entre o funcionalismo e o Estado.
(Decreto-lei n.° 1.713 citado) e 218 do Estadual Entre nós não seria de pensar (quando se tratasse
(citado Decreto-lei n.° 12.273) que, permitindo- de reforma constitucional) em restabelecer a re­
lhes expressamente, fundar associações beneficen­ presentação política das classes. Pelo menos em
tes, recreativas e cooperativas, excluiu, por omissão, São Paulo, foi um descalabro a sua prática.
a possibilidade de qualquer outra representação,
Duguit, que em trabalho antigo (“Le droit
ainda que as associações puramente civis, sejam
social, le ('.o it indiv. et les transi, de L ’E tat” ) não
de regime jurídico irredutível ao do sindicato. A
se mostrara infenso ao movimento sindicalista dos
própria hipótese da sua colaboração com o Poder
funcionários públicos, o que chegara a desejar se
público, ainda que se trate dos interêsses morais viesse a conseguir no futuro, porque entrevia nesse
da carreira pública, excederia aos limites daquela sindicalismo a possibilidade de um sistema de des­
restrição, que, realmente, na prática não tem preva­ centralização nova, sendo, ainda, mais explícito ao
lecido . Foi tão profunda a transição que o D.A.S.P., afirmar que o sindicalismo dos funcionários era um
em acertado parecer, esclareceu que verbis: “o movimento profundo e intenso que o legislador
que a lei proibe aos funcionários é sindicalizar-se não podia coarctar nem dirigir e que era correlato
como tal, mas não impede que façam parte de (e complementar) ao desaparecimento da potes-
associação de classe a que correspondam as ativi­ tade pessoal e soberana do Estado, constituindo
dades particulares que exerçam, ressalvadas as res­ um dos aspectos do grande movimento sindicalista
trições estatutárias” ( 9 ) . Teria sido preferível, em caminho de reorganizar a sociedade (13)
parece ter-se rendido à observação supra e à pró­
então, que se adotasse outro texto, por exemplo,
pria lição dos fatos, aqusla ao apontar êsse sistema
aquéle que mais tarde veio a constituir o a rt 566
de descentralização como “mais inquitante ainda
da Cons. das Leis do Trabalho (Decreto-lei nú­ do que a «descentralização política outrora criada
mero 5.452, de 1-5-943). pela Assembléia Constituinte em 1789, quando esta
Razão tinha Lefas (10), que versou o assunto atribuiu às administrações eletivas o encargo de
com o maior conhecimento de causa, quando aplicar as leis de interêsse geral, o que seria, por­
escreveu, há quase 40 anos, que a “grave questão tanto, não uma descentralização, mas o desloca-
não teria sido suscitada (na França) se se houvesse
dado desde logo, um estatuto aos agentes da Adm i­
nistração pública; porque foi a necessidade, a falta (11) J á em 1905-1908 Demartial e em 1910 Jacques
Busquet, em seus conhecidos estudos, tinham demonstrado
de garantias individuais — acrescentou — que os
a necessidade do regime estatutário. Confiram-se, do pri­
levara, sobretudo, a se agruparem. Para muitos era meiro, principalmente, “Le Stafut des fonctionnaires” —
indiferente a existência de associações e de sindi­ 1909 — ed. Col. de 1.® Grande Revue; e do segundo, o co­
catos. Não vieram a procurá-los senão como o nhecido livro “Les Fonctionnaires et la Lutte pour le
Droit — La question du Statut” — ed. 1910 — Arthur
único meio de fazer ouvir suas queixas e de obter
Rousseau — Paris.
satisfação”. (12) E m 1938 propugnamos por essa solução. C R .
“R ev. de Administração” , pág. 48 e s. Ano I, março de
1947, n.° 1 — Publicação do In s t de Adm. da Univ. de
(8 ) Lugar citado, pág. 138. São Paulo.
(9 ) Ed. P. Pes. Sob.: — “Man. dos Serv. do E s t.” (13) A pud Esmein: obr. c it., tomo 2.°, pág. 132
tomo I, 344 — Ed. 47. (Nota de Nézard). Ver, ainda: Recaredo F . de Velasco
(10) A l ex a n d r e L efas — “L ’Etat et les fonction­ Calvo: “Res. de Der. A dm . y C . de la Adm .” — vol. 1.°
naires” , págs. 136 e s . — 19)3 — Paris. pág. 404.
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mento do poder, ou atribuir a soberania aos fun­ mento do serviço público que lhe é confiado (1 5 ).
cionários subalternos; e esta, porque revelou, não Não pode, sob nenhum pretexto, recusar-se a exe­
poucas vêzes, como a sindicalização é a porta cutar os atos que se ligam à sua função. Não pode
aberta ao extremismo, à greve mais incompreensí­ fazê-lo, agindo individualmente, a fortiori, não o
vel, porque atentatória dos interêsses da N a­ pode, agindo de concêrto com seus colegas. A
ção” (1 4 ). greve dos funcionários, qualquer que seja o pre­
texto é sempre uma violação da lei; é sempre falta
São do seu último livro — “Léçons de Droit
Public Général” (1926-pág. 242 e s.) estas pala­ disciplinar, e a mais grave das faltas disciplinares;
vras de impressionante advertência: “ . . . A esta é antinômica à própria noção do serviço público.
teoria do caráter objetivo e legal atribuído à situa­ Tem êste por fundamento e razão de ser uma ati­
ção do funcionário, objetou-se, várias vêzes, que vidade de interesse geral de uma importância tal
ela é errônea, porque o funcionário tem, verdadei­ que não pode ser interrompida um só instante sem
ramente, um direito subjetivo, pois, por um ato que a própria vida coletiva se encontre em perigo.
unilateral de sua vontade êle pode, ao pedir exone­ As coalizões e greves dos funcionários têm, preci­
ração, fazer cessar sua atuação de funcionário. samente, por fim, fazer pressão sôbre o Governo e
Não colhe a observação porque é o resultado de a opinião pública, paralisando essas atividades
um êrro. Não é verdade, em nenhum país, que o indispensáveis à vida social. Agindo assim, os
funcionário possa, mediante um ato unilateral, ao funcionários violam a lei, cometem uma falta disci­
pedir exoneração, fazer cessar a sua função e sub­ plinar, mais ainda, a meu ver, cometem o maior dos
trair-se às obrigações legais que a ela se ligam. crimes, assassinam a coletividade, o que é mais
grave do que um assassínio individual. A greve,
O funcionário pode, é certo, requerer exone­ nas relações de empregado e empregador pode ser,
ração a qualquer momento, mas êste ato não pro­
em alguns casos, legítima; a recusa concertada de
duz, por si mesmo, o efeito de cessar a função. Não assegurar o funcionamento de um serviço público
opera êsse efeito senão depois de acolhido pela da parte dos funcionários é sempre um crime”. E
autoridade superior. O funcionário que requerer mais adiante, demonstrando que essa -teoria se
exoneração é ainda funcionário; não pode cessar aplica a todos os agentes da administração pública,
o exercício do cargo senão quando o deferimento do critica a conhecida distinção de Berthelemy e rea­
pedido lhe seja oficialmente notificado. O funcio­ firma: “ . . . os funcionários de gestão estariam
nário que. após êsse pedido, largasse o serviço sem exatamente, na mesma situação dos empregados
aguardar, portanto, o despacho da autoridade com­ privados — poderiam formar associações profis­
petente, abandonaria o cargo e cometeria uma
sionais sujeitas à legislação especial relativa aos
falta disciplinar grave, suscetível de levar à sua
sindicatos; poderiam, legitimamente, se meter em
demissão, ou ao menos ao seu comparecimento pe­
greve, quando, ao contrário, os funcionários de auto­
rante um Conselho de disciplina.
ridade não teriam nenhum dêsses direitos. Bastam
Se prerrogativas numerosas cabem aos fun­ essas conseqüências, por si sós, para se evidenciar
cionários em virtude da lei, impõe-lhes esta, como que a pretendida distinção de funcionários de auto­
contrapartida, rigorosas obrigações. Êle é obrigado ridade e funcionários de gestão é absolutamente
por fôrça de lei, a executar todos os encargos que inadmissível. Como disse antes, uns e outros as­
se prendem à sua função, a assegurar o funciona- seguram o funcionamento de um serviço público
e a situação dos funcionários e conseqüência direta
(14) Confira-se no lugar citado a crítica aduzida por e necessária disso. As razões em virtude das quais
Nézard. Aliás, Duguit mesmo, no final da parte em que os funcionários não adquirem a sua situação de um
apreciou /o que êle chamava “Le syndicalisme foncticn- contrato do trabalho ou outro, nem podem sindica­
nariste (págs. 134 e 143 do livro editado em 1911 2.a ed. e
lizar-se, existem sempre com a fôrça, qualquer que
no qual reuniu, sob o título “Le Droit Social, le Droit
indiv. et les transi, de 1’E tat”, as conferências que fizera seja o serviço de que estão encarregados”. (O grifo
na Escola de Altos Estudos sociais) foi o primeiro a fazer é da citação). 1
severa advertência aos funcionários para que se prevenis­
sem, a fim de Ee não confundir a sua situação com a dos “Ainda uma vez, tudo isso é a conseqüência
outros. Convém transcrever-!he as palavras: “ . . . Mais do caráter que lhes pertence em razão mesma do
que les fonctionaires prennent garde et se mé- serviço público. Essa pretensa distinção produziu
fient des meneurs et des demagogues, que veulent les graves e nefastos resultados. Foi invocando-a, in­
entrainer dans 1’scticn rév.:lutn.nm.ire de ia Csnfê 'er-tion
genérale du travail. Q u ’ ils resten étrangers au syndicalisme
vocando a autoridade daqueles que a defendiam,
revolutionnaire; qu’ils soientconvaicus que rien ne pourait que, na França, particularmente, numerosos fun­
être plus nuisible à leurs propes intérêts que de partiquoi cionários pretenderam o direito à greve e a coris-
qu’on dize !a violence et la haine ne fondent rien de
durable. Q u ’ils n ’oublient pas non plus qu’ils ne peuvent
pas invoquer, eux fonctionnaires, le m ith de la greve gene- (15) A doutrina não só é antiga, mas perfeitamente
rale, parce qu’ils scnt par définition, acs:ciés a un service pacífica. Consultem-se: Bielsa ( “Dere-cho Adm .” , vol. 2.°,
public, c’est-a-dire, àune ativite don l ’acomplissement cons- n.° 377 — Ed. 1938); Bulltich (“Princ. ge. de Der. Adm .” ,
titue une devoir juridique poLr ceux que en sont en fout pág. 385 — Ed 1942); Hauriou ( “Précis de Dr. Adm. et
investis. Recourrira la gréve serait pour les fonctionnaires de Dr. Public.” , 12.a ed. — 1939 — pág. 755); G. Jèze
lemoyen le plus sur de restaurer 1’arbitraire sans limite (“Cours de D r. Publ. — Le Statut des fonctionnaires pu-
dun gouvernement omnipotent. .
blics” — 1928, pág. 178); Julia n M. Ruiz y Gomez
Como se vê (e os sindicatos propugnados por Duguit ( “Princ. Gen, de Der. Adm.” — 1.® ed. 1935 — pág. 488);
eram da natureza corporativa, portento da feição mais poli Matoello Csetano ( “Manual de Dir. Adm .” —- 1.* ed. pa­
tica da ano ecocômios-secial) ficou proscrita, em absoluto, gina 275); Orlando ( “Frincipii di D iritto A n a . ” , ed. ds
3 idáia ds um ragima comum da sindicalização, isto ó, 1892, págs. 130-131); Santi Romano ( “Princ. di Diritto
tanto para o operário como para o funcionário. A m m .” Ed. de 1912 (3.a ed. rev.) pág. 119-120.
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tituir sindicatos e federações de sindicatos que a ninguém recrudesça, ali, a posição doutrinária
foram e são, ainda, para o govêrno, causa de gra­ que essa idéia suscitou e continua suscitar (1 8 ).
ves dificuldades, já não falando das perturbações
O instituto, quanto possa caber no âmbito da
que levaram ao funcionamento dos serviços pú­
blicos”. relação de emprêgo privado é estranho à do em­
prêgo público, sempre porque tem êste como pres­
Velasco Calvo lembra a advertência de Renel- suposto nec2ssário o interêsse público por exce­
letti em artigo doutrinário de 1920, de que “é um lência e que vem a ser a causa, a razão de ser do
contra-senso tal sindicalização. O Estado, bom ou serviço que o Estado cria, regula livremente e
mau — escreve — constitui um regime jurídico e, mantém de todo infenso à mais longínqua idéia de
portanto, não pode dispensar proteção aos seus lucro.
próprios funcionários, para que o modifiquem. Ao Entretanto, a união de esforços dos funcioná­
menos, implicaria isso um absurdo, num regime rios, animada pelo espírito de classe, é fato obser­
que tem seus órgãos adequados de impulsão, modi­
vado em todo o mundo. Não obstante a diferença
ficação e progresso” (1 6 ). entre as duas relações de emprêgo, como se viu,
Ainda quando os funcionários possam sindica­ nem por isso se proscreve, em absoluto, a possibili­
lizar-se, qual acontece no México, onde, aliás, dade de sob a égide do Código Civil formarem as
tanto para os operários, como para os funcionários suas associações de classe. H á interêsses legítimos
vige o mesmo Estatuto, tem suscitado censura a que lhes podem ser próprios, e de repercussão até
extensão a êstes do direito de sindicalizar-se e o de moral cuja satisfação pode ser encaminhada com
greve. o concurso da entidade associativa junto aos po­
deres públicos. Podem tais associações contribuir,
O notável professor L . Mendieta y Nunes, da
mesmo, para os mais nobres fins, principalmente
Universidade Nacional daquele país, não encontra
tendo-se em vista os interêsses morais da carreira
fundamento jurídico na extensão dêsse instituto,
pública, tantas vêzes sacrificados pelos maus go­
da esfera que lhe é própria, para a da relação de
vernos. Podem chegar até a ser reconhecidas de
emprêgo públicb — e que sem embargo de adotar
utilidade pública. Foi, aliás, o que, por exemplo,
conceito da relação entre o Estado e o funcionário
se verificou no Estado de S. Paulo ao se propugnar
em que esta se resolve com um critério econômico
pela inclusão, na Carta Constitucional de 34 e de­
é o primeiro a reconhecer que desde o ponto de
pois na do Estado de 35, de um título referente ao
vista econômico (16) a relação existente entre
Funcionalismo Público, assim como pela preser­
o Estado e o funcioná;rio não é a mesma entre
vação e observância do princípio relevantíssimo da
o operário e o patrão, pois, “no caso do Estado,
prova púbüca da capacidade como preliminar da
predomina a idéia de serviço, e o interêsse social
admissão do serviço público, norma procrastinada
se sobrepõe aos interêsses particulares” . E, ainda,
e afinal descumprida sempre pelos governos locais,
que “a associação sindical dos empregados públi­
ainda mesmo sob o regime da Constituição de 34
cos, que careceria de base econômica segundo se
e, de modo mais abominável ainda, pela Adminis­
tem dito somente teria por objeto obstruir o nor­
tração entregue às mãos dos fautores da memorável
mal desenvolvimento dos serviços públicos em um
Revolução Constitucionalista de 32 que olvidaram
momento dado mediante a greve” (1 7 ).
depressa de mais as razões que levaram àquele
Na França, atualmente, foi depois da liberta­ movimento, isto é, a reivindicação do regime cons­
ção do jugo dos alemães que se acentuou a tendên­ titucional, o império da lei.
cia a essa sindicalização, tendência que acabou
Diferem muito os sistemas adotados relativa­
vitoriosa graças ao art. 6.° e alínea do citado Esta­ mente a tais organizações de funcionários (1 9 ).
tuto (Lei n.° 46-2294, de 19-10-946) e que foi
uma das primeiras conseqüências (embora indi­ A experiência, no serviço público francês, do
reta) do dispositivo preambular de sua Constitui­ direito sindical dos funcionários, é uma lição que
ção (de 28-9-946) que firmou o princípio de que vale por advertência. A sindicalização pura dos
“qualquer homem pode defender seus direitos e agentes da Administração pública já está demons­
interêsses pela ação sindical e aderir ao sindicato trando, ali, tão freqüentes, graves e extensas as
de sua escolha”. perturbações verificadas, que parece não ser ela
outra coisa do que uma solicitação constante para
Como os expositores de direito público francês
os movimentos grevistas e porta aberta à influ­
combateram, sempre, a greve no serviço público,
ência comunista.
escudados, principalmente, no princípio absoluto da
regularidade e continuidade de funcionamento do Nos Estados Unidos, conforme esclarece o
serviço dessa natureza, e sendo certos os resultados Prof. White (20) ainda que até 1912 não hou­
profundamente maléficos de política legislativa que vesse lei federal reguladora do direito de se or-
se abstraia dêsse princípio, não poderá surpreender
(18) B o n n a r d — “Précis” — ed. 35, pág. 405
W alline — “Man. de Dr. Adm .” — 4.a ed. 1946, págs. 302;
(16) Volume citado, pág. 405.
318 — Paris.
(18) “La Adm. Pub. en México" _ págs 157 e (19) E m nosso artigo doutrinário já citado, da
162 — (Ed. 1942) Gabino Fraga ( “Der. Adm.” , pág. 390 “R ev. de Adm .” , apresentamos uma resenha de tais asso­
e s. (3.a ed. 1944) limita-se a informar do direito legislado ciações.
e de pontos de vista de R uiz y Gomez. Não faz exposição (20) “In t. to the Study of A d m .” — pág. 434 e s.
crítico do assunto. (E d . 39).
88 R E V IST A DO S E R V IÇ O P Ú B L IC O AGÔSTO DE 1949

ganizarem os funcionários do serviço civil em tais (21) . Depois de estudar a natureza da greve, suas
associações, várias delas e importantes já existiam causas e conseqüências, informa, em síntese, que
há muitos anos. Reconhecido aos componentes os governos de todos os países a negaram aos fun­
do Serviço Civil classificado, não foi com apro­ cionários, adotando métodos vigorosos para evitá-la
vação geral que decorreu a sua prática, sendo que e reprimi-la, recebendo o aplauso dos juristas e o
a legislação estadual a omitiu, proibindo-a, ou apoio popular e que são acordes as opiniões, em
restringindo-a em muitas cidades as leis municipais. regra geral, em negá-la aos funcionários públicos e
De um modo geral, informa, ainda, o eminente aos que trabalham em serviços públicos, chegando
administrativista norte-americano, há poucas bar­ algumas legislações a castigar, penalmente, as
reiras contra a formação de tais uniões, mas a opi­ greves dêstes servidores, assim manifesta a sua
nião pública lhe é hostil em muitas comunidades. opinião: (pág. 288) — “ . . . A greve que não
Nos Estados as condições não são favoráveis ao acarreta a renúncia do emprêgo por parte do fun­
desenvolvimento de tais associações (pág. 431). cionário, nem o propósito de abandoná-lo, pois o
desejo do grevista é continuar nêle, melhorando
Sumariando a exposição do assunto (pág. 440-
sua situação, não deixa de ser uma suspensão ou
-441) assim esclarece, em resumo, sôbre o estado
paralisação temporária da atividade que se
atual da questão, ali: — O exame da lei referente
obrigou desempenhar no cargo, com manifesta
a essas associações evidencia que a atitude do Es­
infração dos deveres nascidos da lei ou do regime
tado ao tratar dos problemas que a elas dizem res­ legal, de respeitar dita organização jurídica e de
peito é diversa da que assume em relação aos atuar segundo o exige o serviço público; infração
empregados particulares. A relação de emprêgo que deve ter sanções jurídicas: do ponto de vista
privado admite convenção coletiva mediante a qual administrativo por faltar aos deveres do cargo,
se fixam os têrmos e condições do emprêgo. Na do ponto de vista civil, por causa do dano que se
de emprêgo público a lei os prevê, podendo, ainda cause ao Estado ou aos particulares, e do ponto de
operar êsse efeito as determinações oficiais. No vista penal, se a greve é de tanta gravidade ou um
âmbito da primeira o poder paralisar o trabalho mal tão constante que lese ou perturbe os funda­
fortalece a influência das organizações operárias mentos básicos da solidariedade social.
no mundo industrial. No da segunda, essa medida A sanção da greve, do ponto de vista adminis­
extrema, quando não é proibida por lei, o é pelos trativo, deve ser o afastamento do funcionário, da­
costumes . Enquanto no mundo industrial há com­ das a sua gravidade e transcendência. Esta cor­
pleta liberdade de organização e seja livre aos ope­ reção disciplinar não impede as sanções civis e
rários filiarem-se a elas, no emprêgo público êsses penais que caibam pelas responsabilidades desta
direitos são reconhecidos somente em certas juris­ índole e de acôrdo com as leis.
dições, sendo justamente vedados a determinadas E passa a informar do assunto no direito de
classes. sua pátria (Cuba). Em Cuba (pág. 289) a greve
Os direitos políticos dos trabalhadores não são de funcionários e empregados públicos não cons­
atingidos pela lei, enquanto que os funcionários tituiu um problema nem para os governantes, nem
públicos, no sistema do mérito, são proibidos de para os juristas, por ausência do fenômeno no país.
participar ativamente da política. Afirma o notá­ Atribui o fato à circunstância de que a Lei do Ser­
vel professor W hite que é indubitável o direito viço Civil (que em Cuba vem a ser o Estatuto dos
constitucional do Estado em impor tais restrições. funcionários públicos) constitui uma garantia de
A manutenção regular do serviço público não pode estabilidade para funcionários e empregados pú­
ser perturbada pelos conflitos oriundos da disputa blicos, pois,' embora, na realidade, tenha sido cons­
partidária. Isso não importa em prejuízo do direito tantemente burlada pelos governantes, os Tribunais
que têm os funcionários de fazer conhecidas as suas de Justiça têm procurado aplicá-la lealmente. O
pretensões, ainda quando mediante ação coletiva. problema surgiu ali, recentemente (o autor escreve
Termina o autor informando que nos últimos vinte em 1935) com a greve suscitada pelo Sindicato de
anos, em Washington, a influência de grupos de fun­ Trabalhadores do Ensino, por não obterem tôdas
cionários postais e amanuenses permite concluir ter as reivindicações apresentadas, em favor dos pro­
sido ela construtiva e benéfica. O sistema do mé­ fessores, ao Govêrno revolucionário de Grau San
rito, a legislação sôbre a aposentadoria e os direitos Martin; não chegou, porém, a têrmo, por haver
de classificação tanto condizem com o interêsse cessado a paralisação com a queda de dito govêrno
público quanto com o interêsse dos empregados. e ao subirem ao poder os sectários da revolução
Não se assinala, claramente, êsse fato no govêrno congregados em tôrno do presidente Carlos Men-
dieta, cujo govêrno elevou os vencimentos dos pro­
local, mas, entretanto, a Sociedade dos funcionários
fessores. E termina: — Na atualidade e desde a
municipais de Chicago e a de Cleveland apresentam época de Grau San Martin, os preceitos da Lei
comprovações de perfeita orientação e saudável Civil relativos à inamovibilidade dos funcionários
influência. As tradições de honesto e inteligente e empregados públicos se encontram suspensos.
govêrno tornam mais fácil a essas associações pros­ Esta medida e mais o assalto aos postos públicos,
seguirem a sua marcha com vantagem tanto para sem outro mérito senão os antecedentes políticos ou
cs funcionários como para os governos. o favoritismo e ainda a tendência sindicalista de
Nenhum expositor do regime jurídico dò fun­ nossos tempos, obrigarão os funcionários e empte-
cionário público versou o assunto mais desenvolvi- (21) “Princ. Gen. de Der. Adm.” , págs. 281 e f . —
damente do que o ilustre professor Ruiz y Gomez Ed. 1935 — H av an a.
D IR E IT O E JU R IS P R U D Ê N C IA 89

gados a defender-se contra a arbitrariedade da mas, desde que não se inclua entre os seus meios
perda do cargo, organizando os seus sindicatos, de ação, a greve (pág. 303) (2 2 ).
como sucedeu alhures, e em definitivo, ante o Para o saudoso professor Bulrich (23) o de­
desamparo em que se encontram os seus legí­ sempenho do cargo com as características de obe­
timos direitos, a empregar a greve como meio de diência, lealdade e fidelidade, fundamentais para o
lograr a sua estabilidade. Recentemente, em mesmo, exclui de forma absoluta o chamado direito
março de 1935, a greve dos funcionários e em­ de greve. E funda o seu argumento no princípio,
pregados públicos culminou em resultado nega­ sem contraste, da regularidade e continuidade de
tivo relativamente a graves conseqüências para funcionamento dos serviços públicos. E informa
os serviços públicos (pág. 290) — Quanto ao que na Argentina tal assunto não constituiu motivo
problema penal, observa o eminente jurista, que de preocupação para as autoridades porquanto ao
não se pode aplicar tão somente os argumentos se anunciar a possibilidade de uma greve, a demis­
de lógica estrita, sem considerar-se a situação são ( cesantia ) imediata de alguns empregados pôs
social e econômica que se atravessa. têrmo à questão. Não obstante isso, é voto do ilus­
É justo e respeitável êsse ponto de vista, tre mestre da Universidade de Buenos Aires que a
porque a realidade é essr rr^-ma. ou sejs, há legislação a discipline com energia, condenando-a
“um anela crescente e invencível das massas não em absoluto e cominando sanções penais para êsses
capitalistas para uma justiça sociaí maior.”. casos como se fêz em outros países. E exemplifica:
assim na Austrália, o Commonwelth Constitution
A repercussão dêsse movimento social se faz
sentir desde is discussões do projeto de Código Act dispõe no § 66- que qualquer funcionário que
Civil Alemão, no último quartel do século pas­ fomente greve ou tome parte em greve que afete
sado. Hoje, se alargou de modo que domina todo os serviços públicos da Confederação será destituído
o campo do di eito. Também na relação de em­ sumàriamente por haver cometido ato ilegal contra
prêgo pú) >lico <3 percebe claramente sua influ­ a paz e a ordem pública, sem prejuízo das sanções
ência: — ;j estabilidade, a aposentadoria, o regime penais cabíveis. Em sentido análogo à lei do Esta­
de licença, férias e outras regalias constituem ver­ tuto Civil da România. de 19 de junho de 1923,
dadeiros institutos de direito, sendo que os fun­ nos arts. 30, 31 e 32. No mesmo sentido a legisla­
damentais encontram assento na própria Cons­ ção alemã segundo o interpretou a jurisprudência
tituição política, como, por exemplo, se verifica ao estabelecer que a associação de funcionários
entre nós desde 1934. Expresso o regime jurídico contemplada nos artigos 130 e 159 da Lei respec­
do funcionário tão formalmente (basta considerar tiva não autorizava a greve, incompatível com a
o seu Estatuto) alarga-se, por assim dizer, nos função pública e que ela levava a incorrer em de­
sistemas de jurisdição única como o nosso, o lito. Na Noruega, o artigo 28 do Estatuto Civil
âmbito do recurso ao Poder Judiciário, juiz último autoriza a destituição sumária dos funcionários que
da legalidade dos atos da Administração. Ora, con­ intervierem na greve, quer dizer, sem os requisi­
sideradas essas circunstâncias, e mais a tendência tos e causas que normalmente condicionam a apli­
generalizada de se adotarem conselhos ou comissões cação de tal pena.
de serviço civil que, embora não sendo propria­ Na Suíça, de conformidade com o artigo 13
mente órgãos sindicais, refletem, de algum modo. do Estatuto dos seus funcionários (Lei federal
o interêsse de classe dos funcionários, não teria de 30 de junho de 1927), (item I ) o “direito de
lugar a recusa de sanção penal contra a greve de associação é garantido aos funcionários nos limi­
funcionários, que, ao contrário, então, do que parece tes fixados pela Constituição Federal”, (item I I )
ao notável administrativista cubano, não constitui­ “todavia, é interdito ao funcionário fazer parte de
ria aquela pretensão por èle anatematizada de afo­ uma associação que preveja ou se utilize da greve
gar-se, por meio da fôrça aquilo que constitui uma dos funcionários, ou que, de outro modo, vise
legítima aspiração. “A medida penal, de outra fins ou empregue meios ilícitos ou perigosos para
parte, — escreve — não daria o esperado resultadG. o Estado. A aplicação dêste dispositivo compete
por que em face da necessidade do sentimento de exclusivamente ao Conselho Federal” .
justiça jamais o homem se deteve, ainda que à custa Dispôs sôbre o assunto o recentíssimo
do sacrifício da própria vida”. E ’ verdade que o pró­ “Estatuto Orgânico de los Funcionários de la
prio autor aponta outro caminho a seguir, ou seia. Administración Pública” do Chile (Decreto nú­
aquêle sm que não façam os funcionários justiça mero 2.500, de 24 de junho de 1944) . Inscreveu-
pelas próprias mãos. “E ’ o dos tribunais, órgãos
criados para isso, criando-se, do mesmo modo, em (22) A Constituição Cubana promulgada depois de
primeiro lugar, os organismos adequados, os meios publicado o magnífico livro citado do Professor R uiz y
e processos de proteção para que os funcionários Gomez, isto é, promulgada em 10-10-40, reconhece somente
para os patrões e empregados privados e operários o direito
possam ver amparados os seus direitos, e, assim, a sindicalização (art. 69). A grevo é declarada como direito
sancionar-se penalmente a greve como meio profun­ tão-sòmente dos operário 9 dependendo o seu exercício de
damente perturbador da coletividade ao atacar sua lei complementar.
organização essencial o serviço público” . O autor (23) “Princ.. Gen. de Der. Adm.” , pág. 328 e s . —
é franco adepto da sindicalização dos funcionários, Ed. 19^2 — B . Aires.
90 R E V IST A DO S E R V IÇ O P U B L IC O -- AGOSTO D E 1949

se no elenco das proibições (artigo 97): — “a idéia a mais fundada oposição, baseada, antes de
greve ou suspensão coletiva do serviço é proibida tudo, na diferença substancial entre a relação de
aos funcionários, sob pena de destituição dos que emprêgo público e a de emprêgo privado, não
participarem dela ou incitarem a outros empre­ obstante se reconhecer universalmente que o
gados participar dela” . O Estatuto seguiu ou ideal de justiça social impõe, sem distinção, ao
manteve a orientação que propugnara quatro anos regime de trabalho, se informe dos princípios que
antes o ilustre administrativista Guilherme Varas o humanizam, o elevam e o dignificam; que o di­
C ., professor da Universidade Católica de San­ reito de greve é o mais condicionado dos direitos
tiago. (Cfs. “der. Adm . — Nociones Genera- tanto assim, que não pode ser exercido sem lei
les”, pág. 331 e s. — Editorial Nascimento — que discipline êsse mesmo exercício ainda que o
Santiago — 1940). assento constitucional faça êsse direito preceder
A legislação boliviana também proíbe expres­ à lei ordinária; qúe o direito de greve é instituto
samente a greve de funcionários, segundo informa condizente com a ordem econômica e social (por
o professor Alfredo Revilla Quezada (2 4 ). isso se inscreveu no título V da Constituição Fe­
deral vigente) e é absolutamente incompatível
Conclui-se destas breves notas de estudo que,
com a própria noção de serviço público; que além
embora se assinalei certa tendência para a sindi-
de reclamar sanção administrativa (disciplinar)
calização dos funcionários públicos, encontra a
a sua prática no serviço público deve ser punida
criminalmente como o é o abandono voluntário
(24) Cfr. “Curso de Derecho Administrativo Boli­ do cargo, sem prejuízo, é claro, da responsabili­
viano” , pág. 185 e ss. E d . 1945 -— Potosi — Bolívia. dade civil a que der lugar.

PARECERES

PR O C E SSO A D M IN IS T R A T IV O — C E R T I­ 2 . O assunto desperta o maior interêsse, e tem sido


D Ã O D E D E C IS Õ E S E P A R E C E R E S ventilado, controvertidamente, pelos órgãos da Adminis­
tração e pelos Tribunais.
— A Administração está obrigada a dar
ciência de despachos e informações a que 3. Dispõe a Constituição, ao enumerar direitos e
garantias individuais (art. 141, § 36):
êles se reiiram, aos _ interessados.
— ; Os interessados têm direito à obten­ “A Lei assegurará:
ção de certidão de tais atos de que já tive­ I — O rápido andamento dos processos nas reparti­
ram ciência, pelos simples iato de serem ções públicas;
interessados, isto é, partes no processo I I — a ciência aos interessados dos despachos e das
adm inistrativo. informações a que êles sé refiram;
— Em princípio, a Admiistração só está I I I — a expedição das certidões requeridas para de­
obrigada, seja à publicidade, seja ao for­ fesa de direito; j

necimento de certidões, de atos decisórios IV — a expedição das certidões requeridas para es­
( despachos), e informações a que êles se clarecimentos de negócios administrativos, salvo se o in­
terêsse público impuser sigilo” .
refiram .
— As certidões requeridas para defesa 4. Diante do texto constitucional, têm alguns enten­
dido necessária a promulgação de lei, para assegurar o
de direitos, por terceiros não interessados direito de obtenção de certidões, enquanto outros o julgam
diretos nos casos, devem explicitar, com ‘■'executório para os casos concretos”, — como o Senhor
clareza, os fins a que se destinam, e qual Ministro Artur Marinho, em voto vencido no Tribunal de
o direito que visam a defender a fim de Recursos (mandado de segurança n.° 2 — Relator Cunha
Vasconcelos, in “Revista Forense” abril de 1948, vol.
que a Administração possa julgar do fun­ C X V I, pág. 458).
damento do pedido.
5. Aliás, o julgamento do feito que acabamos de
— As certidões requeridas para “escla­
citar, e que poderíamos taxar de “ruling case” da jurispru­
recimentos de negócios administrativos” dência daquele Tribunal, esclarece bem certos aspectos
devem explicitar o fim a que se destinam, da questão, pelo que nos deteremos no seu exame.
e à Administração cumpre dizer se o inte­ 6 . Tratava-se de julgar mandado de segurança im ­
rêsse público impõe sigilo no assunto, o petrado por um Capitão, em virtude de o Ministério da
que, em caso afirm ativo, autoriza a recusa. Guerra lhe haver negado “o inteiro teor do opinamento
do General Góis Monteiro, então Ministro da Guerra,
M inistério da Justiça e Negócios Interiores sugerindo ao Govêrno da República a revogação do ato
Despacho do Ministro — Proc. n.° 40.449-48 — João de reforma do suplicante” .
Tertuliano de Almeida Lins — Pedido de certidão de
7. O Ministro relator, Cunha Vasconcelos, denegou
autos do Processo n.° 376-45 da extinta C E N E . — Pro­
o mandado, baseado em que inexistia direito líquido e certo
ceda-se neste caso, de acôrdo com o parecer.
do suplicante a obter a certidão, uma vez que o interessa­
Senhor Ministro, do dela carecia para propor ação judicial, e, nos têrmos
No presente processo, em tese, cogita-se de saber se do art. 224 do Código do Processo Civil, o Ju iz poderia
pode a repartição recusar certidão de pareceres existentes requisitar às repartições públicas as certidões que enten­
no ventre dos autos. desse ,

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