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Introdução
“[...] E viveram felizes para sempre” é um clichê comum, facilmente reconhecido por
qualquer um, adulto ou criança, que tenha consumido produtos de mídia voltados a público
infantil em algum momento da vida - em especial produtos Disney. Alguns temas são
frequentemente notados em filmes da Disney: Amor verdadeiro entre uma princesa boa e
gentil e um príncipe alto, rico e bonito; Um beijo que quebra a maldição ou abençoa a
princesa; Um final feliz onde todas as pontas narrativas se amarram perfeitamente, onde cada
vilão recebe o fim que merece e os protagonistas vivem felizes para sempre. Porém, o
conteúdo e as mensagens contidas nos aparentemente inocentes filmes animados vão além
dos chavões amplamente conhecidos dos contos-de-fadas modernos: nestas mídias tão
frequentemente consumidas e amadas pelas crianças, uma série de padrões, mensagens,
conceitos e preconceitos são constantemente reafirmados e naturalizados. Não é necessário
ser um pai ou mãe preocupado, pesquisador da área ou educador para que essa conjuntura
suscite uma série de perguntas, como: De onde vem estes padrões visuais e sociais
representados nos filmes voltados a audiência infanto-juvenil? De que forma eles se fazem
perceber nestes produtos de mídia e como se manifestam no inconsciente e no consciente
infantil? De que forma estes padrões e conceitos, tão amplamente reproduzidos, representam
e moldam a sociedade em que vivemos? Qual seu papel e influência na construção da cultura
visual, e qual o papel da arte-educação em abordar e explorar estas conjunturas? Neste artigo,
alguns destes questionamentos serão colocados em análise na tentativa de discorrer sobre e
quem sabe elucidar questões relacionadas a esse setor tão expressivo da indústria cultural e
do entretenimento infanto-juvenil.
● O oligopólio Disney
Um gigante no setor cultural, a Walt Disney é uma das empresas mais bem-sucedidas, em um
dos setores mais poderosos de qualquer economia: o entretenimento. Somente inovando
constantemente e ampliando os limites de sua animação e dos negócios, a empresa conseguiu
passar de um estúdio de animação de sucesso moderado para uma experiência de
entretenimento completa – contando com parques temáticos, merchandising, navios de
cruzeiro e muito mais, alcançando o exorbitante valor de mercado de US$ 238,9 bilhões.
Em The Postman Always Rings Thrice: Visual Culture, Disney and Technology in Society,
McMaster questiona, ainda sobre tais representações:
Concordamos com Cunha (1995) que ensinar “[...] a ver o implícito e o velado é uma das
atribuições do ensino de arte”. Nesse sentido, os Estudos da Cultura Visual propõem
relacionamentos, sobreposições e somas de conteúdos, técnicas e abordagens de diferentes
áreas do conhecimento, se tornando elementares na formação infantil, ampliando o escopo da
arte-educação e se estendendo desde o que vestimos até o que assistimos, incluindo artes
visuais, belas-artes, publicidade, arte folclórica.
Aqui citamos Baliscei (2018) em sua dissertação PROVOQUE, quando infere que:
Apesar da satisfação e dos significados que as imagens da cultura da mídia provocam aos
indivíduos infantis, no espaço escolar, essas visualidades continuam sendo “[...] rotuladas
com uma tarja de censura, jogadas numa espécie de limbo, sacralizadas ao avesso -
demonizadas - e classificadas como inadequadas para as salas de aula. Em vez de serem
vistas como um conjunto complexo de narrativas que possibilitam construções de sentidos e
interpretações críticas dos fenômenos nos quais estão inseridas, tais
criações/produtos/imagens são, muitas vezes, entendidos como fúteis/alienadoras feitas para
um aglomerado de corpos subestimados, massa homogênea, passiva, ignorante, recipientes
que veem/desejam/consomem sem pensar ou refletir (Berté e Tourinho, 2014).”
Argumenta-se aqui que a cultura visual e a mídia devem ser parte integrante de nossa
educação e que desempenham um papel crucial no desenvolvimento de gerações futuras
perspicazes e criticamente conscientes. Em particular, este papel vital deve ser elaborado no
campo da educação artística. A velocidade e o avanço da tecnologia tornam a inclusão dessa
função ainda mais central e com necessidade urgente de implementação. A integração da
cultura visual deve ser aplicada, em diferentes graus, aos currículos de todos os níveis de
ensino, uma vez que a cultura visual popular não se limita a empreendimentos comerciais ou
artísticos, ela abrange todos e cada um dos elementos dos signos e símbolos de nosso mundo
visual.
Diante da soberania que as imagens da Disney apresentam no universo escolar, citamos Valle
(2015) quando infere que, em salas de aulas, a partir de exercícios de investigação visual
crítica e inventiva, as imagens fílmicas, entre outras produções, podem “[...] converter-se em
aparatos para desencadear estudos instigantes e profícuos no campo social, envolvendo
discussões sobre questões de gênero, credo, liberdade, respeito, cidadania e educação.” Dado
o amplo apelo e autoridade que produtos culturais Disney detém sobre mentes jovens e
maduras, a ideia aqui é instrumentalizar essas mídias, transformá-las em discussões, análises
e problematizações que aguçem o olhar crítico; afastando o público infantil do lugar de
telespectador passivo esperado pela indústria cultural, onde o público a serve “[...] não apenas
para consumir seus produtos, mas também para comprar as sociologias fabricadas e os
retratos raciais e históricos fraturados que são apresentados como quase verdades
(McMaster).”
Ainda sobre a cultura visual e a construção de mundo ao redor desta, Tavin e Anderson
(2003) dizem:
E é assim que das lojas para os parques temáticos, dos parques temáticos para os programas
de TV e dos programas de TV para os filmes, como que em um processo retroalimentador, os
“locais” da Disney ajudam a promover uma visão particular do mundo que se torna
normalizada por meio do que Steinberg & Kincheloe (1997) chamam de “pedagogia
cultural”. Esta forma de pedagogia refere-se ao processo de ensino e aprendizagem por meio
de locais sociais, muitas vezes fora das instituições educacionais. A Disney fornece locais
poderosos para a pedagogia cultural onde aprendemos sobre o mundo e nosso relacionamento
social.
Essas experiências podem ajudar a forjar identidades individuais e coletivas. A Disney atrai
muitos de nós por meio de um processo afetivo complexo em que negociamos nossas
crenças, valores, desejos e expectativas no reino do prazer e significado. Além disso, nossas
identidades são fluidas e dependem de elaboradas conjunturas de histórias, eventos e relações
(Omer, 1992). No entanto, embora as identidades sejam sempre multidimensionais e
dependentes de numerosos fatores idiossincráticos, elas permanecem amarradas a sistemas
comunitários de discurso. Sendo assim , nossas identidades são moldadas e limitadas, em
parte, por códigos linguísticos disponíveis, signos culturais e representações. Esses códigos,
signos e representações podem promover ou apoiar preconceitos, limitar interesses sociais
particulares e frustrar as possibilidades de agência humana (Giroux, 1994).
Este trecho, retirado da tese Stereotypes in Disney 's Classics: A Reflection and Shaping of
American Culture, sumariza bem os estereótipos de gênero e sexualidade perpetuados pelas
personagens femininas nos filmes da Disney. Nele, Letaief (2015) sintetiza:
Seguindo esta análise, pode-se discorrer sobre estes padrões sendo notados em diversos
filmes, principalmente os em que protagonizam as princesas. Um exemplo é a posse de
habilidades domésticas quase como naturais e elementares nas personagens, principalmente
nas nomeadas princesas clássicas da Disney. Aurora limpa, coleta frutas no bosque e vive tal
qual uma camponesa; Branca de Neve limpa a Casa dos Anões inteira assim que a descobre;
e Cinderela vive como uma espécie de empregada para suas meia-irmãs e madrasta,
cozinhando, limpando e as servindo. Outras temáticas extremamente ocorrentes são o
auto-sacrifício em nome do amor (ou do interesse amoroso masculino) como visto no caso de
Ariel e Pocahontas, o instinto cuidador e materno inato como observado em Branca de Neve,
Jasmine, Cinderela e Dama, ou ainda a existência as sombras de um personagem masculino
cuja chegada parece parece dar sentido a sua vida, como notado em Ariel, Branca de Neve,
Aurora, e outras. Todos estes padrões são carregados de um machismo sistêmico que é
empurrado ao público infantojuvenil e influenciam e alteram suas ideias e identidades.
Da mesma forma pode-se notar os estereótipos visuais, onde a maioria das princesas
apresentam características fenotípicas anglo-saxônicas, e os quais até as princesas
não-brancas apresentam características “embranquecidas”; outras características também são
majoritárias e privilegiadas entre as protagonistas, como a jovialidade, a magreza, a
sexualização (muitas vezes precoce) e a adoção de características hiper-femininas como
cabelos longos, vestidos, olhos grandes, adereços delicados.
Uma forma final pela qual a Disney cria realidades falsas ou gera informações enganosas é
em sua representação de eventos históricos. Giroux (2001) afirma que a Disney reescreve a
história omitindo os aspectos sociais mais polêmicos, políticos e significativos que acabam
banalizando eventos históricos importantes como as relações entre os peregrinos e os nativos
americanos. Giroux define Pocahontas como um excelente exemplo, negligenciando os
detalhes pungentes do colonialismo e do genocídio em favor de uma espécie de propaganda
ou história “embranquecida” de uma perspectiva eurocêntrica.
A bondade é uma qualidade inerente aos protagonistas brancos. Estes últimos assumem a
tarefa de orientar e auxiliar os outros. Tarzan, um herói branco, é apresentado como o líder
das selvas africanas. Ele está ao lado de seu povo e é ele quem os salva no final. Em Peter
Pan, o jovem herói branco corajosamente liberta Tigrinha das garras dos piratas. Sendo o
“epítome da bondade”, os heróis se envolvem em lutas intermináveis contra os poderes do
mal que residem nos personagens de mulheres de meia-idade ou vilões homossexuais e,
eventualmente, triunfam.
Também vale notar que mesmo em suas tentativas mais recentes de representação étnica e
multicultural, a Disney falha em construir narrativas, personagens e situações que sejam
representativos destas culturas minoritárias de fato. Letaief (2015) afirma:
[...] um olhar mais atento aos novos clássicos revela que eles não tiveram
muito sucesso em seguir o multiculturalismo. A fraqueza do
multiculturalismo da Disney reside na adoção de heróis e heroínas étnicos
americanizados. No clássico Mulan, Li Shang, protagonista do filme, assim
como Mulan falam com sotaque americano perfeito. Os dois protagonistas
de Mulan parecem sino-americanos e não puramente chineses. Em Aladdin,
clássico inspirado em "As mil e uma noites", o herói árabe “parece e soa
como um americano de cara nova”. Jasmine, a heroína do último filme, tem
um tom de pele mais claro do que as outras mulheres do filme. Pocahontas,
a princesa nativa americana, exibe um conhecimento perfeito da língua
inglesa, e ela a domina bem. Americanizar os protagonistas pretende
impulsionar as pessoas que compartilham as mesmas etnias que eles a se
assimilar à cultura americana, o que vai contra os princípios do
multiculturalismo. Ver os heróicos protagonistas se parecerem com os
americanos visa espalhar os valores e o estilo de vida americanos e sugere
que os outros - personagens minoritários - são inferiores.
Referências:
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MCMASTER, Scott. The Postman Always Rings Thrice: Visual Culture, Disney, and Technology in
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BERTÉ, Odailson; TOURINHO, Irene. Entre Madonas virgens e eróticas: corpo, imagem e afetos
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narrativo/evocativo/pedagógico do cinema no contexto educativo. In: MARTINS, Raimundo;
TOURINHO, Irene (orgs.). Educação da Cultura Visual: aprender...pesquisar...ensinar. - Santa Maria:
Ed. da UFSM, 2015, p.222-238.
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