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Transgressão de gênero como ativismo,

Teoria Queer e crítica feminista


Trecho do livro “Unpacking Queer Politics” (2003), capítulo “Queer Theory and Politics and the
Lesbian Feminist Critique” – Tradução: Aline Rossi – https://medium.com/@feminismoclasse

A transgressão é um tipo confortável de “ativismo de clube noturno”. Consiste na realização de


práticas sexuais vistas como proibidas sob os costumes convencionais, como
o sadomasoquismo e o sexo público, ou o uso da roupa convencionalmente atribuída a uma
classe sexual, enquanto membro de outra.

A transgressão não exige que se mudem as leis, que se compareça em manifestações ou escreva
cartas. Ela pode ser conseguida fazendo algo que alguns homossexuais e lésbicas podem ter
gostado sempre, enquanto rotula-se como algo politicamente transformador por si só. Assim,
as festas noturnas, se em roupas de latex ou roupas “discordantes” do seu gênero, podem ser
vistos como ações políticas.

O sociólogo Stephen O. Murray, em sua crítica incisiva à Teoria Queer, é particularmente crítico
às noções queer de que jogar com os gêneros é revolucionário e a ideia de que “qualquer coisa
que um subalterno faça seja “resistência” – em particular, que “brincar de” ou “brincar com”
gênero corrompa a organização social de dominação de gênero. (Murray 1997). Ele sugere que
deveria haver menos celebração da “transgressão” e mais consideração de como os
comportamentos que estão sendo celebrados podem emergir do auto-ódio internalizado dos
‘subalternos’.

A transgressão tem um longo histórico entre os machos da classe alta. No século XVIII,
os gentlemen se divertiam performando suas versões sadomasoquistas no Hellfire Club.
Algumas morais podem ter sido ultrajadas, mas a estrutura social da Inglaterra heteropatriarcal
nem tremeu.

A transgressão é um deleite dos poderosos, que podem se imaginar deliciosamente atrevidos.


Ela depende da manutenção da moral convencional. Se uma séria mudança social acontecesse,
não haveria nada para ultrajar e o delicioso atrevimento desapareceria. Os transgressores e os
moralistas dependem mutuamente uns dos outros, presos numa relação binária que mais anula
do que possibilita a mudança.

Além disso, a transgressão depende da existência de subordinados sobre quem os transgressores


sexuais possam agir, na maioria mulheres prostituídas e meninos (Kappeler 1990). Não é uma
estratégia disponível para a dona de casa, a mulher prostituída ou a criança abusada. Elas são
o objeto da transgressão e não os sujeitos.

A ideia de que as diferenças convencionais de gênero podem ser transgredidas pela


performance leva Judith Butler e outros teoristas queer a celebrar e incluir nas fileiras de
ativistas queer os homens gays que se vestiam de drag, travestis, transsexuais, afeminados e
machonas e todos aqueles que apresentavam características ou vestimentas diferentes
daquelas que eram habitualmente atribuídas à sua classe sexual.
Essas ideias levaram à noção de que deveria haver um reconhecimento da existência de muitos
“gêneros”. Os muitos gêneros poderiam incluir, nesse entendimento, uma lésbica machona ou
uma lésbica afeminada, uma drag queen ou um gay masculino sadomaso dominante, bem como
uma mulher heterossexual feminina ou um homem heterossexual masculino, mais outras
combinações. Essa abordagem separa o gênero da sua base material na opressão das mulheres.
O problema se torna simplesmente a escassez de uma das oportunidades de gênero.

A abordagem do feminismo radical/lésbico não podia ser mais diferente. Invés de ver a criação
de mais variedades e igual oportunidades de atuação da masculinidade e feminilidade, o
feminismo radical/lésbico busca abolir o que vem sendo chamado de “gênero”, todos eles.

Não sou fã da palavra “gênero” e preferia aboli-la em favor de expressões que refiram
diretamente à fundação política da dominação masculina. Assim, prefiro descrever a
masculinidade como “comportamento dominante macho” e a feminilidade como
“comportamento subordinado fêmea”. Nenhuma multiplicidade de gêneros pode emergir dessa
perspectiva.

Christine Delphy, teórica feminista radical, expressa esse ponto de vista mais claramente
(Delphy 1993). Ela explica que é muito errado ver o problema com gêneros como sendo o de
uma atribuição rígida de certas qualidades e comportamentos que podem ser resolvidos pela
androginia, na qual os comportamentos de masculinidade e feminilidade podem ser misturados.

Os dois gêneros atuais, ela diz, são na verdade os comportamentos da dominação masculina e
da submissão feminina. Com o fim da dominação masculina, esses comportamentos não teriam
substância. Eles se tornariam inimagináveis e seres humanos precisariam imaginar novas formar
de se relacionar que não incluíssem comportamentos que não aflorassem de um sistema político
suplantado.

O entendimento de gênero como formas de comportamento dominante e subordinado põe em


cheque a ideia de que podem existir muitos “gêneros”. Só podem existir formas de expressar a
dominação e submissão por outros que não os atores atuais. Os gêneros continuam dois. A
abordagem queer que celebra a “performance” de gênero e sua diversidade necessariamente
mantém os dois gêneros em circulação. Invés de eliminar comportamentos dominante e
submissos, ela os reproduz.

Assim, todos os teóricos e ativistas queer que buscam performar o gênero podem ser vistos
como lealistas de gênero com participação na manutenção do sistema de gênero da supremacia
masculina. Todos os abarcados pela política queer cuja inclusão assenta na performance da
dominação masculina e submissão feminina de atores incomuns, drag, machona/afeminado,
travestis ou transsexualismo estão engajando em comportamentos que são estritamente
limitados no tempo.

Seus comportamentos de escolha, aos quais empenham grande atenção, investimentos


financeiros e partes de seus corpos, não são imagináveis em um mundo além do domínio
masculino. Invés de ser algo revolucionário de alguma forma, são anacronismos históricos. Essas
pessoas também estão engajando em comportamentos que são opostos ao projeto feminista de
eliminação do gênero, portanto, ajudando a manter a vigência do gênero.

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