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Friedrich Nietzsche

Fral!mentos
I Póstumos
1887-1889
Volume VII

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Fraementos
Póstumos
1887-1889
Volume VII
***
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slo reforçados pela naturcu educacional de nossa atividade, sem comprometer o crc.s-
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Friedrich Nietzsche
Fraementos
Póstumos
1887-1889
Volume VII

Tradução
Marco Antônio Casanova

Rio de Janeiro
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Nacltgdaut:nc Fragmente /887-1889
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Fragmcnlos Póstumos 1887-1889 (Volume Vil)
ISBN 97g.g5.309.3539.9
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1• cdiçto brasilci ra - 20 12
Tradução: MMOO António Casanovo
CIP- Brasil. Ca11logoçlo-na,rontc.
Sindicato Nacional dos Editores de Livro.s, RJ.
NS8I(

NiCW1Che, Friodrloh \Vllhclm, 1844-1900


F,.gmcntos pclSlumos: 1887-1889: volume VII / Frlodrlch Nie12schc: [traduçllo
MarooAnt6n.io Cuanova]. - RJo de Janeiro: Forense Un(vcrsiui.ria, 2012.
TraduçAo de: NIIOhgelassene Ffflgmcnte 1887-1889
ISBN 978-8S,309·3S39·9
1. filosofia alcml. 1. Titulo.

12-3043. CDD: 193


CDU: 1(43)
Índice Sistemático

Texto estabelecido a panlr da edição crítica de estudo organliada por


Glorglo Colll e Maulno Montlnari • .. . . . . • • • . • • .. .. . • . • • • . . Vll
(11 • W 11 3. Novembro de 1887- Março de 1888) • • • . • • • • • . . • . • • • . . 1
(12 • w 11 4. Inicio de 1888) . . . . . .. .. . . .. • . . . . • .. .. . .. • .. . . .. • . . 179
(13 • Zll 3b. lnfclo de 1888 até a primavera de 1888)............ .. .. 194
(14 • W 115. Com<!lX) do ano 1888).. • . . . .. • . . . . .. • . . .. .. • . . . .. • . . 197
(15 • Inverno li 6a. Início do ano 1888) • • .. • . . . . .. .. • • .. .. . . . • .. . . 360
(16 • WII 7a Inici o do ano - Verão de 1888) • . . . . • • • . • • • • .. . • . • • • . . 433
(17 • MP XVII 4. MP XVI 4a W 11 8a. W 119a. Maio-Junho de 1888).,. ,, 466
(18 • MP XVII 5. MP XVI 4b. Julho-Agosto de 1888) • • . • • • • • . . • . • . • . . 477
(19 • MP XVII 6. MP XVI 4c. W 119b. WOl 6b. Setembro de 1888) , • , . , • 484
(20 • Wll lOa. Verão de 1888) . . .. .. . .. .. • . . . . • .. .. .. .. • . .. .. • .. 492
(21 • N VII 4. Outono de 1888). . . . .. . . . .. • . . . . . • .. • • .. .. . . . . . • . . S19
(22 • W 11 8b. SetembrC>-Outubro de 1888). • . . . . • • • . • • .. .. . . . • • • . • 523
(2.3 • MP XVI 4d. MP XVll7. Wll 7b. Zlll.b. Wll 6c. Outubro de 1888) . . . S3S
(24 • W 11 9c. D 21. Outubro-Novembro de 1888) • . • . • • .. • . . . . • • • . • S49
(2.S • W II lOb. W 119d. MP XVI S. Mp XV 118. O 2S. W 11 gc, Dezembro de
1888-lnlclo de Janeiro de 1889)..... .... ... . ...... ... ... .. 568
Os fragmentos póstumos do outono de 1885 ao outono de 1887
(Grupos 1-8).. . . . .. • . . . . .. .. • .. .. • . . . • .. .. . • .. .. . . .. • . . 577
Os fragmentos póstumos do outono/hwerno de 1887-1888
(Grupos 9-12) . ... ... .... ... . • . .. • . . . . • .. . . . .. .. • . . .. • . . 582
Os fragmentos póstumos do Inicio de 1888 até Janeiro de 1889
(Grupos 13-25).............. • .. .. . . . . • .. .. . .. .. • . . .. • . . 591
Texto estabelecido a partir da edição critica
de estudo organizada por Giorgio Colli
e Mazzlno Montinari

Observação preliminar

O volume 7 da edição crí:tica de estudo (KSA) contém a


segunda parte dos fragmentos póstumos oriundos do período
que vai do outono de 1885 ao início do ano 1889. Ele corres-
ponde aos seguintes volumes e páginas da edição critica conjun-
ta (KGW): Vlll/2, p. 249-455 (Berlim, 1970); VTW3, p. 3-461
(Berlim/Nova Iorque, 1972) e contém, com isso, os fragmentos
de novembro de 1887 até o início de janeiro de 1889. A obser-
vação preliminar ao volume 12 comenta a significação da obra
póstuma de Nietzsche.
Ao final deste volume, os posfácios que Giorgio Colli escre-
veu para a edição italiana dos fragmentos póstumos de Nietzsche
do outono de 1885 até o início de janeiro de 1889 (publicados
cm 1971 , 1974 e 1975 pela edi,tora Adelphi, em Milão) foram
traduzidos,

Mazzino Montinarí
(11 = W li 3. Novembro de 1887- Março de 1888)

Nice, 24 de novembro de 1887.

11 (1)
(301) Não devemos querer nada de nós que não possamos
realizar. Costumamos nos perguntar: tu queres ir à frente? Ou tu
queres ir por ti? No primeiro caso, nós nos tomamos, na melhor
das hipóteses, pastores, ou seja., uma necessidade causada pela
indigência do rebanho. No outro caso, precisamos poder fazer
outra coisa - poder-andar-por-si a partir de si - precisamos po-
der-andar-de-outro-modo e para-um-outro-lugar. Nos dois casos,
é preciso podê-lo e, se podemos fazer uma coisa, não temos o
direito de querer a outra.

11 (2)
Contentar-se com um homem e manter a casa aberta com
o seu coração: é liberal, mas não nobre. Reconhecemos os cora-
ções, que são capazes de uma hospitalidade nobre, nas muitas
janelas cobertas e persianas fechadas: eles mantêm ao menos os
seus melhores espaços vazios, ,eles esperam hóspedes, com os
quais não nos contentamos...

11 (3)
(303) O preço que se paga por ser artista é sentir aquilo
que todos os não artistas denominam "forma" como conteúdo,
como "a coisa mesma". Com isso, pertence-se naturalmente a
um mundo às avessas: pois desde então o conteúdo se toma algo
meramente formal - inclusive a nossa vida.

11 (4)
Uma carta lembra-me dos jovens alemães, dos Siegfrie-
des chifrudos e de outros wagnerianos. Com todo respeito pela
sobriedade alemã! Há inteligênc.ias modestas no norte da Alema-
nha, para as quais é suficiente até mesmo a inteligência das pa-
2 fRIEDRICH NIETZSCHE

lavras cruzadas. Alguém que se encontrasse de fora poderia por


vezes suspeitar se o jovem império, em seu apetite por colônias e
por tudo de africano que a terra ·possui, não teria engolido inopi-
nadamente as duas célebres ilhas mestiças, Homeo e Borneo...

11 (5)
Se se é filósofo como sempre se foi filósofo, então não se
têm olhos para aquilo que foi e que será: - só se vê o ente. No
entanto, eomo não há nenhum ente, só resta ao filósofo o imagi-
nãrio eomo o seu "mundo".

li (6)
Vai-se ao fundo (perece-se), quando não se vai aos funda-
mentos.

11 (7)
Uma lagarta entre duas primaveras, para a qual já cresce
uma pequena asa: - - -

11 (8)
"Um ímpeto para o melhor' - Fórmula para "bater em re-
tirada"

11 (9)
(304) Saime-Beuve: Nada de um homem; cheio de um ódio
mcndaz contra todos os espíritos másculos: vagueia por ai, covarde,
curioso, entediado, caluniador - no fundo uma personalidade femi-
nina, com uma vingança feminina e uma sensibilidade feminina (-
essa sensibilidade o retém na prox.imidade dos mosteiros e de outros
foeos da mística, temporariamente mesmo na proitimidade de saint-
simonistas). Aliá.~ um real gênio da médisance, inesgotavelmente
rico cm meios para tanto, capaz, por CJ(Cmplo, de elogiar de uma
maneira fatal; não sem a prontidão gentil de um virtuoso para expor
a sua arte, onde quer que haja um lugar para tanto: a saber, diante
de toda espécie de audiência, na qual se tem de temer algo. Natu-
ralmente, ele também se vinga em seguida de seus espectadores, de
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 {Vol. VII) 3

maneira secreta, pequena, impura; cm particular, todas as naturezas


imperiosamente nobres precisam pagar por terem veneração por si
mesmas - uma tal veneração ele não possui! Já o elemento más•
culo, orgulhoso, total, seguro de si o irrita, o abala até a revolta. -
Isso significa, então, o psicélogo comme il faut: a saber, segundo
a medida e a necessidade do esprit/rançais atual, que é tão tardio,
tão doente, tão curioso, tão envolto em questiúnculas, tão cobiçoso
quanto ele; farejando mistérios oomo ele; buscando instintivamente
travar conhecimento com os homens de baixo e de trás, não muito
diverso do que fàzem os cães entre si (que ao seu modo também
são certamente psicólogos). No fundo, plebeu e aparentado com os
instintos de Rousseau: consequen.temente romântico - pois sob todo
romantismo a plebe grunhe e baba avidamente por "nobreza"; revo-
lucionário, mas por medo mantido nas rédeas. Sem liberdade diante
de tudo o que possui força (opinião pública, academia, corte, mesmo
Port-Royal). Enfastiado consigo mesmo até o último fundamento,
por vezes já sem crença cm seu direito de existir; um espirita que
se dissipou desde a juventude, que se sente dissipado, que se toma
cada vez mais tlbio e velho para si mesmo. Alguém assim continua a
viver, por fim, de um dia para o outro, apenas por covardia; alguém
assim se irrita com tudo o que há de grande no homem e nas coisas,
contra tudo o que acredita em si, uma vez que é infelizmente poeta
e meio efeminado, para continuar sentindo o que é grande como
poder; alguém assim se curva constantemente, como aquele céle-
bre verme, porque se sente constantemente pisado por alguma coisa
grande. Como critico sem critério, espinha dorsal e postura, com a
língua do libertin cosmopolita para muitas coisas, mas sem a cora-
gem para a libertinage autônoma, consequentemente se submetendo
a um classicismo indetenninado. Como historiador sem filosofia e
sem o poder da visão, recusando instintivamente a tarefa do julga-
mento em todas as coisas principais e mantendo a máscara da obje-
tividade (- com isso, um dos piores exemplos que a última França
possui): abstraindo-se, como de costume, das coisas pequenas, para
as quais um gosto sutil e gasto se mostra como a instância suprema
e nas quais ele possui realmente a coragem para si mesmo, o prazer
consigo mesmo (- neste ponto, ele possui um parentesco com os
4 FRIE0RICH NIETZSCHE

pamasianos, que representam como ele a forma mais refinada e mais


vã do desprezo por si e da alienação de si). "Sainte-Beuve a vu une
fois /e premier Empereur. C'était à Boulogne: il était en train de pis-
ser. N'est-ce pas un peu dans ceife posh,re-/à, qu 'i/ a vu e/ jugé de-
puis tous les grands hommes?"1 (Journal des Goncourts, 2. p. 239)
- assim contam os seus inimigos mais maldosos, os Goncourts.

11 (1 O)
Tipos da décadance.
Os românticos.
Os "espíritos livres" Sainte-Beuve.
Os atores.
Os niilistas.
Os artistas.
Os brutalistas.
Os delicados.

11 (1 1)
En amour. la seu/e victoine est /afuite. 2 - Napoleão.

11 (12)
canis reversus ad vomitum suum

11 (13)
Les philosophes ne sont pas faits pour s 'aimer. Les aigles
ne volent poi11t en compagnie. lifaut laisser cela aux perdrix, aux
étourneaux... Planer audessus et avoIrdes grijfes, voi/à /e /ot des
grands génies. 1 - Galiani.

1 N,T.: Em francês no original: Salnte-Beuve viu um dia o primeiro Impero•


dor. Ele estava em Bolonha, a ponto de mijar. Não foi um pouco com essa
postura que ele viu e Julgou todoi os grandes homens?
2 N.T.: Em francês no original: No amor, a única vitória é a fuga.
3 N.T.: Em francês no original: Os filósofos não são feitos para se amar. As
t
águias nunca voam acompanhadas. preciso deixar um tal voo para as
perdizes, para os (estornlnhos) ... Planar acima e ter garras, els o (destino)
dos grandes g~nlos.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 5

11 ( 14)
Le hasard, pere de la fortune et souvent beau-pere de la
vertu.• - Galiani.

11 ( 15)
(Ni / 'amour ni les dieux; ce double mal nous tue.5 Sully
Prud-homme.)

11(16)
Por delrás de toda a escrivi.nhação dessa moçoila campestre
que se chama G. Eliot, sempre escuto a voz excitada de todas as
debutantes literárias: 'Ye me ver:rai, je me lirrai, je m 'extasierai
etje dirai: Possible, quej'ai eu ranr d 'esprir?...'"'

11(17)
vomitus matutinus dos jornais

11 ( 18)
si horrum cum bibliotheca habes. nihil deeril. Cícero.

11 (19)
notum quidfoeminafurens. Virgílio. Eneida. V. 6.

11 (20)
"un mo,istre gai vaut miewc 'qu 'un sentimental ennuyeux"'1

11(21)
come l 'uom s 'éterna (lnf. XV, 85)

4 N.T.: Em francês no original: O acaso, pai da sorte e com frequência avõ da


virtude.
5 N.T.: Em francês no original: Nem o amor nem os deuses; esse duplo mal
nos mata.
6 N.T.: Em francês no original: Eu me veria, eu me lirla, eu me extasiaria e
diria: é posslvel que eu tenha tanto espírito?
7 N.T.: Em francês no original: Um monstro alegre vale mais do que um sen-
timental entediado.
6 FRIEDRICH NIETZSCHE
················•······························ ·········································.. ·····

11 (22)
"Yo me sucedo a mi mesmo", digo eu como aquele velho
homem em Lope de Vega, rindo, como ele: pois não sei mais sim-
plesmente o quão velho já sou e o quão jovem ainda serei...

11 (23)
- mesmo então ainda se têm razões suficientes para se
estar satisfeito e mesmo agradecido, ainda que apenas como
aquele velho brincalhão que tamquam re bene gesta voltou para
casa de uma entrevista apaixonada. Ut desins vires, disse ele
para si mesmo com a mansidão de um santo, tame11 est laudan•
da voluptas.

11 (24)
(305) Georg Sand. Li as primeiras /e/Ires d 'un voyageur:•
como tudo aquilo que provém de Rousseau, falso, desde o seu ín-
timo, moralmente mcndaz, tal como ela mesma, a "artista". Não
suporto esse estilo colorido de tapeçaria, assim como essa ambi-
ção excitada da plebe por paixões ''nobres", atitudes heroicas e
ideias que atuam como atitudes. O quão fria ela precisa ter sido
aí - fria como Victor Hugo, como Balzac, como todos os român-
ticos propriamente ditos - : e o quão vaidosamente ela deve ter se
esparramado al, essa larga vaca frullfera, que tinha algo alemão
em si, como o próprio Rousseau, e que, em todo caso, tomou
possível por fim pela primeira vez todo o gosto e esprit francês ...
Mas Emest Renan a venerava...

11 (25)
(306) Homens, que silo destinos e que, na medida em que
suportam a si mesmos, suportam destinos, todo o tipo dos carre-
gadores heroicos: 6, com que pr.azer eles gostariam de descansar
um dia de si mesmos! O quanto eles não têm sede de corações e de
costas fortes, para se verem livres ao menos por algumas horas da-

8 N.T.: Em francês no original: cartas de um viajante.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 7

quilo que os oprime! E como é vã essa sede! ... Eles esperam; eles
olham para tudo o que passa ao largo: ojoguém vem ao seu en-
contro, nem mesmo apenas com um milésimo de dores e paixões,
ninguém desvenda em que medida eles esperam... Finalmente,
finalmente eles aprendem a sua primeira esperteza na vida - não
esperar mais; e, então, logo em seguida a sua segunda esperteza:
ser afável, ser modesto, a partir deste instante suportar qualquer
um, suportar todos os tipos de gente - em suma, carregar ainda
um pouco mais do que eles já tinham carregado até então.

11 (26)
(307) - e quem contabilizar sem preconceito as condições
segundo as quais qualquer perfeição é alcançada na terra não dei-
xará de perceber quantas coisas estranhas e ridículas estão entre
essas condições. Parece que são necessários lixo e estrume de
todo o tipo para todo grande crescimento. Para tomarmos um
caso paradoxal, uma autoridade que talvez não devêssemos su-
bestimar neste ponto espinhoso, o duque de Momy, o mais ex-
periente e "vivido" conhecedor de mulheres da última França,
afirma com vistas ao aperfeiçoamento da mulher moderna que
mesmo um vicio poderia servir ·para tanto, a saber, a tribaderie:
"qui raffine lafemme, la parfait, /'accomp/if'. - 9

Nice, 25 de novembro de 1887.

11 (27)
(308) A senhora Cosima Wagner é a única mulher de um
estilo maior que conheci: mas imputo a ela o fato de ter estragado
Wagner. Como isso aconteceu? Ele não "merecia" tal mulher: em
agradecimento por tê-la, decaiu até ela. O Parsival de Wagner foi,
antes de mais nada e desde o seu despontar mais inicial, uma con-
descendência do gosto de Wagner ante os instintos católicos de sua

9 N.T.: Em francês no original: quem refina a mulher, a aperfeiçoa, a completa.


8 FRIEORICH NIETZSCHE

mulher, a filha de Liszt, uma espécie de agradecimento e humilda-


de por parte de uma criatura mais: fraca, mais multifacetada e mais
sofredora em relação a uma criatura que sabia proteger e encorajar,
ou seja, em relação a uma criatura mais forte, mais limitada: por
fim, mesmo um ato daquela covardia eterna do homem ante todo
o "eterno feminino". - Não é possivel que todos os grandes artis-
tas até aqui tenham sido estragados por mulheres veneradoras?
Quando esses macacos absurdamente vaidosos e sensiveis - pois
é isso que quase todos eles são - vivenciam pela primeira vez e na
mais imediata proximidade a idolatria, que a mulher sabe realizar
cm tais casos com todos os seus anseios mais baixos e mais eleva-
dos, então tudo se aproxima bem rápido do fim. O último resto de
critica, o desprezo por si, a modéstia e a vergonha diante do que é
maior: tudo isso se perde: - a partir de então, eles são capazes de
qualquer degeneração. Esses artistas que, oo periodo mais seco e
mais fone de seu desenvolvimento, teriam razões suficientes par.i
desprezar completamente os seus seguidores, esses artistas que se
tomaram taciturnos tomam-se inevitavelmente as vítimas de todo
primeiro amor inteligente (- ou muito mais de toda mulher que
é suficientemente inteligente prura se fazer passar por inteligen-
te no que diz respeito ao que há de mais pessoal do artista, para
"compreendê"-lo como sofredor, para "amá"-lo ...).

11 (28)
O homem sucumbe à mulher que ele não merece.
Como idólatra nata, a mulher estraga os ídolos - o marido.

11 (29)
Não se pode encontrar a causa para o fato de haver efetiva•
mente desenvolvimento uma vez mais sobre o caminho da pesquisa
sobre desenvolvimento; niio se deve querer compreender essa cau-
sa como "vindo a ser", nem tampouco como já tendo vindo a ser...
a "vontade de poder"'º não pode ter vindo a ser

10 N.T.: Existe Já certo Mbito sedimentado nos trabalhos sobre Nietzsche no


Brasil de traduzir a expressão niet.zschlana W/1/e zur Mocht por "vontade
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 9

11 (30)
(309) Conquistar uma altura e uma visão de pássaro, onde se
concebe como tudo acontece realmente tal como deveria aconte-
cer. assim como todo tipo de "imperfeição" e como o padecimento
com ela pertence conjuntamente :à mais elevada desejabilidade ...

11 (31)
(3 1O) Visão conjunta do europeu futuro: temos aqui o mais
inteligente animal escravo, muito trabalhador, no fundo muito
modesto, curioso até as raias do excesso, múltiplo, mimado, vo-
litivamente fraco - um caos de afetos e de inteligências cosmo-

de potência•, seguindo o modo como os franceses normalmente tradu-


z.em essa expressão. No entanto, essa tradução não me parece adequada
por algumas razões. Em primeiro lugar, o termo ut ilizado por Nietzsche
simplesmente não é o termo potência. Em alemão há pelo menos duas
palavras que podem ser usadas para designar potênfla: flotenz e Le/stung.
Todavia, a palavra utilizada por Nietzsche é Mocht, que significa, literal•
mente, poder. Susca--se normalmente justificar essa alternativa de tradu•
çilo pela nec,essldade de escapar dos sentidos Indesejáveis da noção de
poder, sentidos que nada têm a ver com o conceito nletzschlano proprla•
mente dito. No entanto, se esse fosse efetivamente o Intuito de Nietzsche,
o próprio fllósofo deveria ter tentado evitar esse efeito também no origi-
nal, porque o mesmo problema se apresenta em alemão. Em segundo,
a argumentação propriamente filosófica também nilo me parece multo
convincente. Multas vezes, apela-se para a proximidade entre o conceito
de poder em Nietzsche e a noçilo de potência (dynomls) em Arl.stóteles.
Vontade de poder teria, assim, algo em comum com posslbllldade, e não
com a Instauração tática de relações de poder. Se nos aproximamos mais
cuidadosamente dos textos de Nietzsche, contudo, vemos que o que está
em questão para ele não é nunca uma estruturo de possibilidade, mas
justamente o poder que certas perspectivas exercem sobre outras pers•
pectlvas no Interior das configurações vitais em geral. E é nesse ponto
que encontramos, então, um derradeiro argumento. Nietzsche substitui
em muitos aforismos publicados e em Inúmeros fragmentos póstumos
poder (Mocht) por domínio ou domlnaçfo (Herrschoft ou Beherrschung),
o que significa o seguinte: quem opta por traduzir Mocht por potência
se vê diante de um problema em melo àquelas passagens que lnequlvo•
camente envolvem dimensões de domlnlo, ou seja, se vê forç~do o uma
Incoerência com sua própria opção. Por tudo Isso, traduzo aqui, contra
certa corrente, Wi//e zur Mocht por vontade de poder.
10 FRIEDRICH NIETZSCHE

polita. Como é que um tipo mais forte poderia vir à tona a partir
dele? Um tipo dotado de um gosto clássico? O gosto clãssico:
trata-se da vontade de simplificação, intensificação, da vontade
de visibilidade da felicidade, de âutificabilidade, da coragem
para a nudez psicológica (- a simplificação é uma consequência
da vontade de intensificação, o deixar que a felicidade se torne
visível, assim como a nudez é uma consequência da vontade de
âutificabilidade...). Para arrancar em combate um caminho as-
censional a partir desse caos até essa configuração - para tanto
carece-se de uma imposição: é preciso que se tenha a escolha de
ou bem perecer ou bem se impor. Uma raça dominante só pode
surgir de inícios âutíferos e violentos. Problema: onde estão os
bárbaros do século XX? Evidentemente, eles só se tomarão vi-
síveis e se consolidarão depois de crises socialistas descomunais
- eles serão os elementos capazes da maior rigidez em relação a
si mesmos e que poderão garantir a mais longa vontade...

11 (32)
(3 11) Sobre a psicologia dos "pastores". Os grandes me-
dianos
Podemos esconder de nós o fato de um espírito e de um
gosto precisarem ser médios, para que possam deixar para trãs
efeitos populares profundos e extensos, e de, por exemplo, ainda
não se poder usar como algo que desonra a Voltaire o fato de
o Abade Troblct o ter designado com a melhor das razões "la
perfecJion de la médiocrité"?" (- se ele não o tivesse sido, ele
teria sido uma exceção, tal como o foi, por exemplo, o napolitano
Galiani, o mais profundo e mais meditabundo palhaço produzido
por aquele sereno século. De onde provém, então, a sua força
para condrizir? De onde a sua preponderância sobre o seu tem-
po?) Poder-se-ia, aliás, afirmar o mesmo com vistas a um caso
ainda muito mais popular: também o fundador do cristianismo
precisa ter sido algo similar a essa "perfection de la médiocrité".
Se concretizarmos, p0rém, em uma pessoa os princlpios daquele

11 N.T.: Em francês no orl.glnal: perfeição da mediocridade.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol, VII) 11

célebre evangelho do sermão d!a montanha, então não teremos


mais depois disso nenhuma dúvida quanto à razão pela qual pre-
cisamente um tal pastor e pregador da montanha produziu um
efeito tão sedutor sobre todos os tipos de animais de rebanho.

11 (33)
(312) - "une croyance presque instinctive chez moi e 'est
que tout homme puissant ment quand i/ parle, e/ à plus fort rai-
son quand il écrif' 12 - $tendal.

11 (34)
(313) Flaubert não suportava nem Mérimée nem $tendal;
para deixá-lo irado, bastava citar o nome do "Senhor Beyle" em
sua presença. A diferença reside no fato de Beyle provir de Vol-
taire; Flauben, de Victor Hugo.
Os "homens de 1830" (- Homens? ... ) produziram urna in-
sana divinização com o amor: Alfred de Musset, Richard Wag-
ner; também com o excesso e o ·vício ...
"Je suis de 1830. moi! J'ai appris à líre dans Hemani,
et j'aurai ,;ou/u êlre Lara! J'execre toutes les láchetés contem-
poraines, l'ordinaire de l'existence et l'ig11omi11ie des bonheurs
faciles." 13 Flauben.

11 (35)
(314) A sexualidade, a busca de domínio, o prazer com a
aparência e com o engodo, a grande gratidão alegre pela vida e por
seus estados típicos - tudo isso é essencial ao culto pagão e tem a
boa consciência ao seu lado. - A antinatureza (já na Antiguidade
grega) luta contra o elemento pagão, como moral, como dialética.

12 N,T.: Em francês no original: uma crença quase Intuitiva em mim é a de


que todo homem POtente mente quando fala, e, com maior r.iião, quan•
do escreve.
13 N.T.: Em francês no original: Sou de 18301 Aprendi a ler com Emanl egos-
taria de ter sido Laral Acho execrável todas as lassldOes contemporâneas,
o elemento ordinário da existência e a lgnonlmla das fellcldades fáceis.
12 FRIEORICH NIETZSCHE

Nice, 15 de dezembro de 1887.

11 (36)
O que decide a tua posição é o quantum poder que tu és; o
resto é covardia.

11 (37)
Aquele que busca instintivamente uma posição hierárquica
odeia as construções intermediárias e os produtores de constru-
ções intermediárias: tudo aquilo que é médio é o seu inimigo.

11 (38)
(3 15) Da pressão da abundância, da tensão das forças que
crescem constantemente em nós ,e que ainda não sabem se descar-
regar emerge wn estado similar .ao estado que precede wna tem-
pestade: a natureza que somos escurece. Isso também é pessimis-
mo... Uma doutrina que põe fim a tal estado, na medida em que
ordena algo, uma transvaloraçã.o dos valores, graça.~ aos quais
se indica um caminho às forças acumuladas, um "para onde", de
modo que elas explodem em raios e em ações - não precisa de
modo algum ser uma doutrina da felicidade: na medida em que
desencadeia a força que estava comprimida e represada até um
ponto torturante, ela traz felicidade.

11 (39)
- com estes tenho pouca compaixão. Para mim, eles estão
entre os caranguejos. Em primeiro lugar: quando nos ve-
mos às voltas com eles, eles beliscam; e, então, andam
para trás.

11 (40)
- corações quentes como o leite que acaba de sair da vaca.

11 (41)
- um viandante cansado, que percebe o latido forte de um
cão.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 13

11 (42)
- um desgarrado, que passou um longo tempo na prisão,
com medo do bastão de um carcereiro: agora segue temeroso o seu
caminho, a sombra de um cajado jâ o faz tropeçar.

11 (43)
- virtude no sentido do renascimento, virtu, virtude livre
de toda moral.

11 (44)
O fato de se colocar em jogo sua vida, sua saúde, sua hon-
ra, é a consequência do excesso de coragem" e de uma vontade
dissipadora transbordante: não por amor ao homem, mas porque
todo grande perigo desafia a nossa curiosidade em relação à me-
dida de nossa força, de nossa coragem.

11 (45)
(3 17) Emerson, muito mais esclarecido, múltiplo, refina-
do, feliz, um homem que se alimenta instintivamente de ambró-
sia e deixa para trâs o indigesto nas coisas. Carlyle, que o amava
muito, diz dele apesar disso que "ele não nos dá o suficiente para

14 N.T.: O termo alemão utilizado po< Nietzsche no fragmento acima é o ter•


mo Obermut, Em seu sentido corrente, Übermut significa petulâncla, arro•
gãncla. No contexto acima, porém, não é difícil perceber como Nietzsche
reavalia o sentido mesmo do termo. Em verdade, a gênese da slgnlflcaç3o
de Ob1trmut cm alem:lo aponta p.1ra D compreensão de que um excesso
de coragem só pode provir de uma falta de consideração adequada de
si mesmo e de sua situação e de que equivaleria, assim, ao que normal•
mente temos em vista com a palavra arrogãncio. No entanto, o excesso
de coragem também pode ser pensado a partir de uma entrega total de
si mesmo à sua própria configuração e participação plena na lóglca do
acontecimento. Há aqui um claro paralelo, que se verlflca, aliás, em quase
todas as construções em que Nietzsche emprega o prefixo /Jber•, com o
termo Obl!rmensch (além-do-hom cm) e ,om o concepçfo do além do ho•
mem como o homem que superou a alienação produzida pela lnstauraçfo
do suprasscnsfvel e Integrou plenamente a totalidade em seu horizonte
exlstenclal. Exatamente por Isso, decidimos troduzlr etlmologkamente o
termo Übermut por excesso de co ragcm.
14 FRIEORICH NIETZSCHE

morder": o que talvez tenha sido dito com razão, mas que não foi
dito de maneira alguma em favor de Emerson.
Carlyle, um homem das palavras fortes e das atitudes ex-
cêntricas, um retórico por necessidade, alguém que irrita cons-
tantemente pela e,cigência por uma crença forte e pelo sentimen-
to da incapacidade para tanto (- justamente com isso um típico
romântico). A exigência por uma crença forte não é a prova de
uma crença forte, mas muito mais o contrário: se temos uma tal
crença, então essa posse se revela justamente pelo fato de po-
dermos nos permitir o luxo da postura cética e da descrença frí-
vola - se é rico o bastante para tanto. Carlyle anestesia algo em
si por meio da rigidez de sua veneração por homens de crença
forte e por meio de sua fúria contra todos aqueles que são menos
unilaterais: essa constante falta de probidade apaixonada em re-
lação a si mesmo, para falar mo:ralmente, me enjoa. O fato de os
ingleses admirarem nele precisamente a sua probidade é caracte-
risticamente inglês; e, levando em conta que eles são o povo do
tiple perfeito, até mesmo barato e não apenas compreensível. No
fundo, Carlyle é um ateu que não o quer ser. -

11 (46)
Nesses ensaios polêmicos, nos quais dei prosseguimento
à minha batalha contra o mais fatídico julzo de valor até aqui,
contra a superestimaçào da moral -
Uma tal palavra de paz encontra-se como de costume ao
final dos ensaios belicosos, com os quais abri minha batalha con-
tra um de nossos mais fatídicos juízos de valor, contra a nossa
avaliação até aqui e contra a nossa super-estimação da moral.

11 (47)
- ideais úmidos e outros ventos degelantes

11 (48)
(318) Um espirito que quer algo grande e que também quer
os meios para tanto é necessariamente cético: com o que não se
está dizendo que ele também precisaria parecer cético. A liber-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 15

dade diante de todo tipo de convicção pertence à sua força, o


poder olhar livremente. A grande paixão, o fundamento e o poder
de seu ser ainda são mais esclarecidos e despóticos do que ele
mesmo o é - ela toma todo o seu intelecto a seu serviço (e não
apenas sob sua posse); ela elimina toda hesitação; ela lhe dota
da coragem para lançar mão de meios profanos (até mesmo de
meios sagrados), ela alimenta convicções, ela mesma usa e con-
some convicções, mas não se submete a elas. Isso faz com que
ela apenas se saiba como soberana. Inversamente: a carência por
crença, por qualquer sim e não incondicionados, é uma carência
da fraqueza; toda fraqueza é fraqueza da vontade; toda fraqueza
da vontade provém do fato de nenhuma paixão, nenhum impe-
rativo categórico comandar. O !homem da crença, o "crente" de
todo tipo, é necessariamente um tipo dependente de homem, ou
seja, um tipo que não se estabelece a partir de fins, nem pode
estabelecer de modo algum fins a partir de si mesmo - um tipo
que precisa deixar que o consumam como meio ... Esse tipo de
homem entrega instintivamente a honra suprema a uma moral da
dissolução do si próprio; tudo o cativa para uma tal dissolução,
a sua perspicácia, a sua experiência, a sua vaidade. E mesmo a
crença é ainda uma forma de dissolução do si próprio. -

11 (49)
(319) A partir do âmbito descomunal da arte, um âmbito
que é antialemão e do qual jovens alemães, Siegfrieds comudos
e outros wagnerianos, estão excluídos de uma vez por todas: - a
obra de gênio de Bizet, uma obra que fez ressoar uma nova sen-
sibilidade- ah, uma tão antiga - que ainda oão tinha tido até aqui
nenhuma linguagem na música erudita da Europa, uma sensibili-
dade mais meridional, mais bronzeada, mais queimada, que não
pode ser naturalmente compreendida a partir do idealismo úmido
do norte. A felicidade africana, a serenidade fatalista, com um
olhar que mira de maneira sedutora, profunda e terrivel: a me-
lancolia lasciva da dança mourisca; a paixão reluzindo, aguda e
repentina como uma adaga; e aromas que flutuam até nós vindos
da tarde amarela do mar, aromas junto aos quais o coração salta
16 fR IEDRICH NIETZSCHE

como se se lembrasse de ilhas esquecidas, onde ele outrora se


demorava, onde ele deveria ter se demorado eternamente...
Antialemão: o bujão, a dança mourisca
As outras delicias antialemães do gozo estético

11 (50)
O "mundo verdadeiro", como quer que ele tenha sido con-
cebido até aqui - foi sempre o mundo aparente uma vez mais.

11 (51)
É preciso ter coragem no corpo, para se permitir uma per-
fídia: a maioria é covarde demais para tanto.

11 (52)
"César entre piratas"

11 (53)
e dentre esses poetas encontra-se Hengste, que relincha de
uma maneira casta

11 (54)
(320) Do domínio
da virtude.
Como se ajuda a virtude a dominar.

Um tractatiJs politicus.
De
Friedrich Nietzsche.

Prefácio

Este tractatus politicus não é para o ouvido de qualquer


um: trata-se da política da virtude, de seus meios e caminhos para
o poder. O fato de a virtude aspirar ao dominio, quem poderia ne-
gar-lhe tal aspiração? Mas como ela o alcança - ! nilo se acredita...
Por isso, este tractatus não é para o ouvido de qualquer um. Nós
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 17

o definimos para o auxilio daqueles que estão interessados em


aprender não como alguém se toma virtuoso, mas como alguém
torna virtuoso - como se leva a virtude ao domínio. Quero até
mesmo demonstrar que, para querer essa única coisa, o domínio
da virtude, não se tem fundamentalmente o direito de querer a
outra; justamente com isso abdica-se de se tomar virtuoso. Esse
sacrifício é grande: mas uma tal meta talvez valha o sacrifício. E
mesmo sacrifícios ainda maiores!. .. E alguns dos grandes mora-
listas arriscaram tanto. A verdade já foi reconhecida e antecipada
por eles, a verdade que deve ser ensinada pela primeira vez com
este tratado: o fato de só se poder simplesmente atingir o domí-
nio da virtude através dos mesmos meios, com os quais se atinge
qualquer domínio, em todo caso não por meio da virtude ...
Como dissemos, este tratado gira em tomo da política da
virtude: ele estabelece um ideal dessa politica, ele a descreve tal
como ela precisaria ser, caso pudesse existir algo perfeito sobre a
Terra. Pois bem, nenhum lilôsofo terá duvidas quanto ao que sig-
nifica o tipo da perfeição na política; a saber, o maquiavelismo. O
maquiavelismo, porém, pur, sans mélange, cm, vert, dans toute sa
force, dans toute son âpreté, 15 é algo próprio ao além-do-homem,
algo divino, transcendente, ele nunca é alcançado pelos homens,
ele é no máximo tocado tangencialmente por eles... Mesmo nesse
tipo mais restrito de política, na política da virtude, o ideal pare-
ce nunca ter sido alcançado. Mesmo Platão não tocou nesse ideal
senão tangencialmente. Contanto que se tenham olhos para coisas
escondidas, descobrem-se mesmo ainda nos moralistas mais livres
e mais conscientes (e esse é o nome para tais pol!ticos da moral,
para todo tipo de fundador de novas forças morais) rastos do fato
de eles também terem pago um tributo alto à fraqueza humana.
Todos eles aspiravam, ao menos cm seu cansaço, à virtude também
para si mesmos: o prinleiro erro capital de um moralista - que tem
de ser como tal imoralista da ação. O fato de ele não poder deixar
isso transparecer é outra coisa. Ou talvez não seja outra coisa: uma

15 N.T.: Em francês no original: puro, sem mistura, cru, verde, em toda a sua
força, em toda a sua afetação.
18 FRIEORICH NIETZSCHE

tal autonegação fundamental (expresso cm tennos morais, uma tal


dissimulação) também faz parte de um cânone do moralista e de
sua mais própria doutrina dos deveres: sem ela, ele nunca alcançará
o seu tipo de perfeição. Liberdade em relação à moral, mesmo em
relação à verdade, em função daquela meta que compensa todo
sacrificio: domínio da moral - assim se chama esse cânone. Os mo-
ralistas necessitam da atitude da virtude, mesmo a atitude da verda-
de; seu erro só começa onde eles cedem à virtude, onde eles perdem
o domínio sobre a virtude, onde eles mesmos se tornam morais, se
tomam verdadeiros. Um grande moralista também é, entre outras
coisas, um grande ator; o seu risco está em manter afastados o seu
esse e o seu operari de uma maneira divina; tudo o que ele faz, ele
precisa fazer sub specie boni- o seu ideal elevado, distante, exigen-
te! Um ideal divino!. .. E de fato vale o discurso de que o moralista
não imita com isso nenhum modelo menos imponente do que o
próprio Deus: Deus, o maior imoralista da ação que já houve, mas
que também sabia permanecer o que é, o bom Deus ...

11 (55)
(321) Não se deve perdoar jamais o cristianismo por ter
anuinado um homem como Pascal. Não se deve deixar jamais
de combater no cri.stianismo o fato de ele ter tido a vontade de
destroçar justamente as almas mais fortes e mais nobres. Nunca
poderemos ter paz enquanto este elemento não for absolutamente
destruldo: o ideal de homem que foi inventado pelo cristianismo.
Todo o resto absurdo que se compõe a partir de uma fábula cristã,
de uma produção infinda de teias de aranha conceituais e de teo-
logia não nos diz respeito; ele ainda poderia ser mil vezes mais
absurdo que não levantariamos um dedo contra ele. Mas comba-
temos aquele ideal que, com sua beleza doentia, com sua sedução
feminina e com sua eloquência secretamente caluniadora, procura
persuadir almas que se cansaram de todas as covardias e vaidades
- como se tudo aquilo que pode parecer em tais circunstâncias o
mais útil e desejável, a confiança, a ingenuidade, a despretensão,
a paciência, o amor para com seu igual, a submissão, a entrega a
Deus, uma espécie de desatrelamento e de abdicação de todo o seu
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 19

eu, fosse mesmo em si o mais útil e desejável. Como se a pequena


e modesta disformidade da alma., o animal mediano e virtuoso e a
ovelha de rebanho não tivessem apenas o primado ante o homem
mais forte, mais malévolo, mais cobiçoso, mais obstinado, mais
dissipador e mesmo por isso 100 vezes mais exposto ao perigo,
mas fornecesse o ideal, a meta, o critério, a mais elevada desejabi-
lidade precisamente para o homem em geral. Esse estabelecimento
de um ideal foi até hoje a mais :sinistra tentação à qual o homem
se viu exposto: pois com ele as exceções e os acasos felizes mais
intensamente recomendáveis dentre os homens, as exceções e os
acasos nos quais a vontade de poder e de crescimento de todo o
tipo homem deu um passo adiante, passaram a se ver ameaçados
pelo declinio; com seus valores, o crescimento daqueles mais-
-homens deveria ser fomentado nas raízes daqueles homens que,
em virtude de suas requisições e tarefas mais elevadas, também
aquiescem voluntariamente a uma vida mais perigosa (expresso
em termos econômicos: elevação dos custos de empreendimento,
assim como da improbabilidade do sucesso). O que combatemos
no cristianismo? O fato de ele querer destroçar os fortes, o fato de
ele querer desestimular sua coragem, explorar suas piores horas e
seus piores cansaços, de ele querer inverter sua segurança Oll,'lliho-
sa e tr.insformá-la em inquietação e em conflito de consciência, de
ele saber envenenar os instintos nobres e tomá-los doentes, até que
sua força, sua vontade, sua vontade de poder se voltam para trás,
contra si mesmo - até que os fortes perecem ante as desmedidas
do desprezo por si e da autoviolentação: aquele tipo horrível de
perecimento, cujo exemplo mais célebre é dado por Pascal.

11 (56)
(322) Zola: - certa compe'tição com Taine, um aprendizado
de seus meios de produzir uma espécie de ditadura em um mi-
/ieu16 cético. Pertence a esse aprendizado o recrudescimento dos
princípios, para que eles atuem como comando.

16 N,T,: Em francês no original : melo.


20 fRIEDRICH NIETZSCHE

11 (57)
Conceber - será que isso significa avalizar? -

11 (58)
(323) Não conhecer a si mesmo: a esperteza do idealista. O
idealista: wn ser, que tem razões para permanecer no escuro no
que diz respeito a si mesmo e que é esperto o suficiente para tam-
bém permanecer no escuro no que diz respeito a essas razões.

11 (59)
(32,4) A fêmea literária, insatisfeita, excitada, seca no co-
ração e nas vísceras, obedecendo todo o tempo com uma curio-
sidade dolorosa ao imperativo de ser categórica do fundo de sua
organização: a femea literária, suficientemente culta para com-
preender a voz da natureza, mesmo quando a natureza fala latim;
e, por outrO lado, ambiciosa o suficiente para ainda falar secre-
tamente francês consigo mesma: "je me verrai, je me /irai, je
m 'extasierai etje dirai: possible quej'ai eu tant d 'esprir?"" ...
A mulher perfeita comete literatura como se comete wn
pequeno pecado, por experiência, en passam, olhando à sua volta
para ver se alguém nota e para que alguém note: ela sabe como
cai bem na mulher perfeita uma pequenina mancha de podridão e
de uma degeneração marrom - ela sabe ainda melhor como todo
fazer literário produz um efeito na mulher, como um ponto de in-
terrogação com relação a todos os outros pudeurs 11 femininos ...

11 (60)
(325) A obscuridade moderna. -
Não sei o que se quer fazer com o trabalhador europeu. Ele
se acha bem demais, para não exigir mais agora passo a passo, para
não exigir de maneira cada vez mais imodesta: ele tem em última
instância o número a seu favor. Não há mais absolutamente nenhu-

17 N,T.: Em francês no original: eu me veria, me leria, me extasiaria e diria:


ser, possfvel que eu tenha tanto esplrllo?
18 N.T.: Em francês no original: pudor.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1837-1889 {Vol. VII) 21

ma esperança de que se fonne aqui wn tipo modesto e acomodado


em sua parca situação, uma escravidão no sentido mais atenuado
da palavra, em resumo, uma classe, algo que possua imutabilida-
de. As pessoas tomaram o trabalhador apto para o serviço militar:
deram-lhe o direito de voz, o direito de coalizão: fez-se tudo para
estragar os instintos, nos quais poderia se fundar um dinastia chi-
nesa de trabalhadores: de modo que o trabalhador hoje jâ sente e
deixa que sintam a sua existência como wn estado de emergência
(expresso cm termos morais: como uma injustiça ...)... Mas peri,>un-
tcmos wna vez mais: o que se quer? Se se quer uma meta, é preciso
que se queiram também os meios: se se quer escravos - e precisa-se
deles - , então não se podem educá-los para serem senhores.

11 (61)
(326) "A soma do desprazer é preponderante em relação
à soma do prazer: consequentemente, o não ser do mundo seria
melhor do que o ser", um falatório desse gênero é chamado hoje
de pessimismo.
"O mundo é algo que de maneira racional não seria, porque
ele causa ao sujeito sensientc mais desprazer do que prazer."
Prazer e desprazer são coisas secundârias, não são coisas
originárias (causas); 19 eles são juízos de valor de um segundo
nível, de um nlvel que se deriva primeiramente de um valor que
governa; um valor que fala sob a forma do sentimento "útil",
"nocivo", e, consequentemente, que é absolutamente fugaz e de-
pendente. Pois sempre precisamos perguntar junto a todo "útil" e
"nocivo" 100 "para quês" diversos.
Desprezo esse pessimismo da sensibilidade: ele mesmo é
um sinal do profundo empobrecimento de vida. Nunca pennitirei

19 N.T.: Há, aqui, um Jogo de palavras presente no original. Em verdade, o


termo alemão para causa (Ursoche) slgn!Oca literalmente coisa (•soche)
originária (Ur•). Assim, às causas como coisas originárias correspondem
elementos secundários que se der'lvam dessas coisas originárias. Para que
essa relação não se perdesse, resolvemos traduzir ao pé da letra o termo
Ursocht e Inserir entre parênteses o seu sentido vernacular.
22 fRIEDRICH NIETZSCHE

que um macaco tão magro quanto Hartmann fale de seu "pessi-


mismo filosófico". -

11 (62)
(327) Talma disse:
Oui, norLY devons étre sensib/es, nous devons éprouver
/ 'émotion, mais pour mieux /'imiter, pour mieux en saisir te caracte-
re par /'étude et la réjlexion. Notre ar/ e11 exige de profondes. Point
d'improvisation possib/e sur la scéne, sous pei11e d'échec. Tout est
calcu/é, tout doit étre prévtt, et /'émotion, qui semb/e soudaine, et
/e trouble, qui paraft involontaire. - l 'intonation, /e geste, /e rega,rJ
qui semblent inspirés, ont été répé.tés centfois. le poete rêveur cher-
che un beau vers, /e musicien une mélodie, /e géometre une démons-
tration: auctm d'eux n '.Y attache pltlS d'intérêt que nous à trouver
/e geste e/ / 'accent, qui rend /e mieux /e sens d 'un seu/ hémistiche.
Cette étude suit en tous lieux / 'acteur épris de son art. - Faut 'i/ vous
dire p/us? Nous nous sommes à nous-mêmes, \.tlyes vous, quand
nous aimons notre art, des sujets d 'observation. J'ai fait despertes
bien crue//es; j 'ai souvent ressenti des chagrins profo11ds; hé bie11,
apres ces premiers moments ou la douleur se fait jour par des cris
et par des /armes, je sentais qu 'involontaireme/1/ je faisais un re-
tour sur mes souffeances eJ qu 'en moi, à mon insu. /'acteur étudiait
/ 'homme et prenait la nature sur Je fail Vaiei de que/te façon nous
devons éprouver /'émotion pour être un jour en état de la remire;
mais non à /'improvise et sur la scime, quand tous /es yeux so111fixés
sur nous; rien n 'exposerait plus notre situation. Récemme/1/ encore,
je jouais dans Misanthropie et repentir avec 1me admirab/e actrice;
son jeu si réjléchi et pourtant si naturel et si vrai, m 'entraínait. Elle
s 'en aperçut. Que/ triomphe/ E pourtant e//e me dit tout bas: "Pre-
nez ga,rJe, Ta/ma, vous êtes émuJ" C'est qu 'en effet de l'émotion
naíl /e trouble; la voix résiste, la mémoire manque, les gestes sont
faux, l 'ejfet est détn1it! Ah! Nous ne sommes pas la naturo, nous ne
sommes que / 'art, quine peut tendre qu 'à imiter. 20

20 N.T.: Em francês no original: Sim, nós deVt?mos ser senslVt?ls, nós deVt?mos
experimentar a emoção, mas para, melhor Imitá-la, para melhor dominar
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 23

11 (63)
Lessing colocava Moliêre abaixo de Destouches
Minna von Barnhelm - "un marivaudage raisonné".

11 (64)
Chinês: "como meu amado está alojado em meu coração,
tomo cuidado para não comer coisas quentes: este calor não deve
ser chato para ele".
"Se tu mesmo vires tua mãe morrer de fome, não faça nada
que seja contra a virtude."
"Se tu, como a tartaruga que recolhe os seus cinco mem-
bros no casco, recolheres os teus cinco sentidos em ti mesmo,
então esse ato ainda virá a teu favor depois da morte: tu obterás a
bem-aventurança celeste."

o tar.lter da emoção por melo do estudo e da reflexllo. Nossa arte o exi-


ge profundamente. Nenhuma Improvisação é passivei em cena, sob pena
de fracasso. Tudo é calculado, tudo deve ser previsto, a emoç3o, que pa-
rece repentlna, tanto quanto o tul!'Vamento, que parece Involuntário. - A
entonação, o gesto, o olhar, que parecem Inspirados, foram repetidos mil
vezes. O poeta sonhador buscil um verso bonito, o músico, uma melodia,
o geômetra, uma demonstração: nenhum deles coloca aí mais Interesse do
que nós ao buscar o sesto e o aeento, que torna melhor o sentido de um
hemlstfqulo. Este estudo sesue por toda parte o ator apabconado por sua
arte. - t preciso dizer-vos mais? Vede, quando amamos nossa arte, somos
para nós mesmos sujeitos da observação. Tive perdas bem cruéis; com fre-
quência, senil aflições profundas; e, apesar disso, depois desses primeiros
momentos em que a dor vem à tona por melo de srltos e de lásrlmas, eu
sentia que estava me voltando Involuntariamente sobre os meus sofrimen-
tos e que em mim, com o meu conhecimento, o ator estudava o homem e
tomava a natureza pelo fato. Els de que modo nós dc,vemos experimentar
a emoção para um dia estarmos em condições de produzl-la; mas não de
Improviso e em cena, quando todos os olhos estiverem rixados sobre nós;
nada exporia mais a nossa situação. Multo recentemente, cu estovti cnce•
nando Mlsanrhraple et repentlr com uma atriz admirável; sua atuaçao tfo
refletida e, no entanto, tão natural e tão verdadeiro funcionou para mim
como um aprendizado. Ela o percebeu. Que trlunfol E, contudo, me disse
t
bem baixinho: "Tomai cuidado, Talma, vós estais emocionado!• que, oom
efulto, da cmoçllo nasec o turvan>ento; a voz resiste, a memória falta, os
gestos são fal.sos, o efeito é dcstruí:dol Ahl Nós nllo somos a natureza, nós
não somos senão a arte, que n3o pode buscar outra coisa além de Imitar.
24 FRIEDRICH NI ETZSCHE

11 (65)
"As pessoas ficam espantadas com as muitas hesitações
e vacilações na argumentação de Montaigne. Colocado no ín-
dex do Vaticano, porém, há muito tempo suspeito para todos os
partidos, ele talvez coloque voluntariamente sobre sua perigosa
tolerância, sobre sua caluniada isenção, a surdina de uma es-
pécie de questão. Isso já era muito em sua época: humanidade
que duvida ..."

11 (66)
Mérimée, supérieur comme joaillier en vices et comme ci-
seleur en difformítés, pertence ao movimento de 1830, não por
meio dapassion (ela lhe falta-), mas por meio da novidade do
procédé calculado, a escolha ousada das matérias-primas.

11 (67)
"bains inrérieurs", para me expressar de modo cultivado
como a Madame Valmore

11 (68)
"rien ne porte ma/heur comme une bonne action"2'

11 (69)
(328) Saintc-Bcuve: "lajeunesse est trop ardent po11ravoir
degoút.
Pour avoir du goüt, il ne suffit pas d'avoir en soi lafa-
culté de goúter les bel/es et douces choses de /'esprit, il faut
encore du loisir, une áme libre et vacante, redevenue comme
innocente, 11011 livrée aux passions, 110n affairée, 110n bourrelée
d'ápres soins et d'inquiétudes positives; une áme désintéres-
sée et méme exemple du feu trop arde111 de la composition, non
en proie à propre verve insolente; ilfaut du repos, de l 'oubli,
du silence, d 'espace autour de sol. Que de condilions, méme

21 N.T.: Em franoês no original: nada faz tanto mal quanto uma boa aç3o.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 25

quand on a en soi lafaculté de les trouver. pour jouir des cho-


ses délicates !"22

11 (70)
Na apresentação da Cristine (de A. Dumas): Joanny tem
um passaporte assinado pela rainha. No instante de se servir dele,
ele muda de opinião e coloca o papel em seu bolso, dizendo: ré-
servons en l'effet pour de plus grands besoins."

11(71)
(329) Desprazer e prazer são os meios mais estúpidos de
expressão de juí.zos que podemos pensar: com o que não se está
dizendo que os juizos que ganham voz desse modo precisariam
ser estúpidos. O abandono de toda fundamentação e logicidade,
um sim ou não na redução a um querer-ter ou repelir apaixona-
dos, uma abreviação imperativista, cuja utilidade é inconfundí-
vel: é isso que é o prazer e o desprazer. Sua origem estâ na esfera
central do intelecto; sua pressuposição é uma percepção, uma
ordenação, uma verificação, uma dedução infinitamente acele-
radas: prazer e desprazer são sempre fenômenos conclusivos,
nunca ºcausasº...
A decisão quanto àquilo que deve provocar desprdzer e
prazer depende do grau de poder: o mesmo que, em vista de um
quantum de poder pequeno, se mostra como perigo e intimação
à defesa mais ràpida posslvel pode ter como consequência junto

22 N.T.: Em franc~s no original: a juventude é ardente demais para ter gosto.


Para ter go$1o, não é suficiente ter em si a faculdade de gowr das belas
e doces coisas do espírito, mas também é necessário ócio, uma alma li•
vre e desocupada, resurglda como Inocente, sem estar entregue às pai•
xões, sem estar atribulada, sem estar atormentada por preocupações e
lnquletudes positivas; uma alma desinteressada e mesmo Isenta do fogo
ardente demais da composição, não aflita por sua própria vela Insolente;
é preciso repouso, esquecimento, sll~nclo e espaço à sua volta. Mesmo
quando se possui em sl a faculdade de encontrar coisas delicadas, essas
são condições para que se possa gozar dessas coisas!
23 N.T.: Em francês no original: deixemos o efeito para momentos de maior
necessidade.
26 FRIEDRICH NIETZSCHE

a uma maior consciência de plenitude de poder um estímulo vo-


luptuoso, um sentimento de prazer.
Todos os sentimentos de prazer e desprazer já pressupõem
uma medição segundo a utilidade conjunta, a nocividade con-
junta; ou seja, uma esfera, na qual tem lugar o querer uma meta
( um estado) e a escolha dos meios para tanto. Prazer e desprazer
nunca são "fatos originários".
Sentimentos de prazer e desprazer são reações volitivas
(afetos), nas quais o centro intelectual fixa o valor de certas trans-
formações acontecidas em relação ao valor conjunto, ao mesmo
tempo como introdução de ações contrárias.

11 (72)
(330) Se o movimento do mundo tivesse um estado final,
então esse estado jã precisaria ter sido alcançado. O único fato
fundamental, porém, é o de que o mundo não possui nenhum
estado final: e toda filosofia ou hipótese cientifica (por exemplo,
o mecanicismo), nas quais tal estado final se toma necessário,
são refutadas pelo fato único ... Busco uma concepção do mun-
do que faça jus a este fato: o devir deve ser explicado, sem que
nos refugiemos em tais intenções finais: o devir precisa aparecer
justificado a cada instante (ou impassível de ser avaliado: o que
dâ no mesmo); o presente não pode ser absolutamente justi fi.
cado por causa de algo futuro ou o passado em virtude do pre-
sente. A "necessidade" não se mostra sob a forma de uma força
conjunta sobrepujante, dominadora, ou de um primeito motor;
ainda menos como necessária, para condicionar algo valoroso.
Para tanto é necessário negar uma consciência conjunta do devir,
um "Deus", a fim de não inserir o acontecimento no ponto de
vista de um ser que tudo sente e conhece concomitantemente e
que não quer nada: "Deus" é inútil, se ele não quer algo, e, por
outro lado, cstabele-se com ele uma soma de desprazer e ilogici-
dade que reduziria o valor conjunto do "devir": felizmente falta
precisamente tal poder somador (- um deus sofredor e vigilante,
um "sensório conjunto" e um "esplrito do todo" - seria a maior
objeção contra o ser).
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol, VII) 27

Dito de maneira mais rigorosa: não se tem o direito de ad-


mitir nada que seja - porque nesse caso o devir perde seu valor e
se mostra precisamente como sem sentido e supérfluo.
Consequentemente, precisamos perguntar como a ilusão
do ente pode (precisa) ter surgido.
Do mesmo modo: como todos os juízos de valor, que re-
pousam nessa hipótese de que haveria algo que é, são desvalo-
rizados.
Com isso, porém, reconhece-se que essa hipótese do ente é
a fonte de toda difamação do mr:mdo
"o mundo melhor, o mundo verdadeiro, o mundo do 'além',
a coisa em si"
1) o devir não possui nenhum estado final, ele não desem-
boca em um "ser".
2) o devir não é nenhum estado aparente; talvez o mundo
essente seja uma aparência.
3) o devir possui o mesmo valor a cada instante: a soma de
seu valor permanece igual a si mesma: expresso de outro
modo: ele não possui nenhum valor, pois falta algo a
partir do que ele poderia ser medido e em relação ao que
a palavra "valor" teria um sentido.
O valor conjunto do mundo é inavaliável; consequente-
mente, o pessimismo filosófico está entre as coisas cósmicas.

11 (73)
(331) O ponto de vista do "valor" é o ponto de vista das
condições de conservação-elevação no que diz respeito a configu-
rações complexas de duração relativa de vida no interior do devir:
- : não há nenhuma unidade derradeira duradoura, nenhum
átomo, nenhuma mônada: aqui também "o ente" é pri-
meiro introduzido por nós (por razões práticas, úteis,
perspectivísticas)
- : "construções de domlnio"; a esfera daquilo que é domi-
nante constantemente crescendo ou periodicamente en-
colhendo, aumentando; ou, sob o favor ou desfavor das
circunstãncias (da alimentação-)
28 FRIEDRICH NIETZSCHE

-: "valor" é essencialmente o ponto de vista para a amplia-


ção ou o encolhimento desses centros dominantes ("plu-
ralidades" em todo caso, mas a "unidade" não está de
maneira alguma presente na natureza do devir)
-: um quantllm poder, um devir, na medida cm que nada
possui a! o caráter do "ser"; desse modo
-: os meios expressivos da língua são inúteis para expressar
o devir: pertence à nossa carência indissolúvel por conser-
vação posicionar constantemente um mundo mais tosco
de algo permanente, de "coisas" etc. Relativamente, pode-
mos falar de átomos e mõnadas: e, com certeza, o menor
mimdo em termos de duração é o mais duradouro...
Não há nenhuma vontade: há pontuações volitivas, que
constantemente ampliam ou pemem seu poder.

11 (74)
(322)-que no "processo do todo" o trabalho da humanidade não
interessa, porque não há de maneira alguma um proces-
so conjunto (esse processo pensado como sistema - ):
- que não há nenhum "todo", que toda depreciação da
existência humana e das metas humanas não pode ser
feita com vistas a algo que de modo algum existe...
- que a necessidade, a causalidade, a conformidade a fins
são aparências
- que a meta não é a ampliação da consciência, mas a ele-
vação do poder, uma ellevação na qual é concomitante-
mente computada a util idade da consciência, tanto com
o prazer quanto com o desprazer
- que não se tomam os meios para o supremo critério de
medida (ou seja, não estados da consciência, tal como
prazer e dor, se a própria consciência é um meio - )
- que o mundo não é de maneira alguma um organismo,
mas o caos: que o desenvolvimento da "espiritualidade"
é um meio para a duração relativa da organização...
- que toda "desejabilidade" não possui nenhum sentido em
relação ao caráter conjunto do ser.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 29

11 (75)
(333) a causa do prazer não é a satisfação da vontade: que-
ro lutar particularmente contra essa teoria maximamente superfi-
cial. A absurda falsificação psicológica das coisas imediatas...
mas antes o fato de a vo·ntade querer seguir adiante, as-
senhorear-se sempre uma vez mais daquilo que se encontra em
seu caminho: o sentimento de prazer reside precisamente na in-
satisfação da vontade, no fato de ela não estar suficientemente
satisfeita sem os limites e as resistências ...
"O homem feliz": o ideal de rebanho.

11 (76)
(334) A normal insatisfação de nossos impulsos, por exem-
plo, da fome, do impulso sexual, do impu.lso motor, ainda não
contém em si de modo algum algo desanimador; ela age muito
mais de forma instigante sobre o sentimento de vida, assim como
todo ritmo de pequenos estímulos dolorosos o fortalece: o que
mesmo os pess<imistas> podem ratificar: essa insatisfação, ao
invés de nos fazer perder o gosto pela vida, é o grande estimu-
lante da vida.
Poder-se-ia, talvez, designar o prazer em geral como um
ritmo de pequenos estímulos de desprazer...

11 (77)
(335) De acordo com as resistências que uma força busca
para delas se assenhorear, precisa sempre crescer a medida de
insucesso e de fatalidade que são provocados: e uma vez que toda
força só se manifesta junto àquilo que lhe oferece resistência, há
em toda ação um ingrediente de desprazer. Só que esse desprazer
atua como um estímulo à vida: e fortalece a vontade de poder!

11 (78)
(336) Os homens mais e.s,piritua/izados, supondo que se-
jam os mais corajosos, também vivenciam de longe as tragédias
mais dolorosas: por isso, porém., eles honram a vida, porque ela
lhes confronta com o maior amagonismo ...
30 FRIEORICH NIETZSCHE
··············································· ················································

11 (79)
(337) Os meios, com os quais Júlio César se defendeu do ado-
ecimento e da dor de cabeça: marchas descomllllélis, um modo de
vida simples, permanência ininterrupta ao ar livre e fainas cons1antes:
por alto, essas são as condições de conservação do gênio em geral.

11 (80)
(338) Cautela diante da moral: ela nos desvaloriza para nós
mesmos -
Cautela diante da compaixão: ela nos sobrecarrega com a
penúria de outros -
Cautela diante da "espiritualidade": ela estraga o caráter,
na medida cm que deixa extremamente solitário: solitário, isto é,
solto, desatrelado ...

11 (81)
- somente o devir é sentido, mas não a morte (?)

11 (82)
O sentido do devir precisa ser preenchido, alcançado, con-
sumado a cada ins1ante.

11 (83)
(339) Aquilo que é denomiinado uma boa ação não passa de
uma incompreensão; tais ações não são absolutamente possíveis.
O "egoísmo" tanto quanto o "altruísmo" não passam de
uma ficção popular; assim como o individuo, a alma.
Em meio à pluralidade descomunal do acontecimento no
interior de um organismo, a parte de que temos consciência é um
mero cantinho: e o pouco de "virtude", "altruísmo" e ficções si-
milares são punidos de uma maneira radical como mentiras pelo
conjunto do acontecimento restante. Nós fazemos bem cm estu-
dar nosso organismo em sua perfeita imoralidade...
As funções animais são por principio infinitamente mais
importantes do que todos os estados belos e do que todas as al-
turas da consciência: esses estados e essas alturas não são senão
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 31

um excesso, enquanto eles não precisam se mostrar como instru-


mentos para aquelas funções animais.
Toda a vida consciente, o espírito juntamente com a alma,
juntamente com o corpo,juntamente com a bondade,juntamente
com a virtude: a serviço de que afinal ela trabalha? A serviço do
maior aperfeiçoamento possível dos meios (meios de conserva-
ção, meios de elevação) das funções animais fundamentais: antes
de tudo da elevação da vida.
Há, portanto, indizivelmente mais naquilo que se chamou
"corpo", "carne": o resto é um pequeno acessório. A tarefa de
tramar toda a cadeia da vida de tal modo que o fio fique cada vez
mais poderoso - essa é a tarefa. Mas vê-se agora como o coração,
a alma, a virtude, o espírito conspiram formalmente para inverter
essa tarefa principiai: como se eles fossem a meta ... A degenera-
ção da vida é essencia.lmente condicionada pela extraordinâria
capacidade de errar da consciência: ela é a que menos se deixa
frear pelos instintos e que, por isso, se engana por mais tempo e
de maneira mais fundamental.
Julgar pelos sentimentos agradáveis ou desagradáveis
dessa consciência se a existência possui um valor: é possível
pensar em um excesso mais absurdo da vaidade? A consciência é
apenas um meio: e sentimentos agradáveis ou desagradáveis são
também apenas meios! - A partir do que se mede objetivamente
o valor? Apenas a partir do quantum de poder elevado e organi-
zado, segundo o qual aquilo que em todo acontecimento acontece
é uma vontade de mais ...

11 (84)
O "espírito" estabelecido como essência do mundo: a logi-
cidade como essencial

11 (85)
(340) Por meio do álcool e do haxixe, nós retomamos a es-
tágios da cultura que tinham sido superados (aos quais se tinha ao
menos sobrevivido). Todas as comidas fornecem uma revelação
qualquer sobre o passado, do qual surgimos.
32 f RIEORICH NIETZSCHE

11 (86)
Mesmo o sábio faz com frequência o mesmo que aque-
las mulheres estúpidas que não consideram o leite um alimento,
mas, sim, os nabos:

11 (87)
(341) Quero exigir de volta como propriedade e produto
do homem toda a beleza e toda a sublimidade que emprestamos
ás coisas reais e imaginárias: como a sua mais bela apologia. O
homem como poeta, como pensador, como Deus, como amor,
como poder - : ó, sobre a sua generosidade imperial, com a qual
ele presenteou as coisas, a fim de se empobrecer e se sentir mi-
serável! Esse foi até aqui o seu maior altruísmo, o fato de ele ter
admirado e louvado e ter sabido se esconder, o fato de ter sido ele
quem criou o que ele admirava. -

li (88)
(342) O quanto a mistura sentimental da música alemã não é
devedora da satisfação inconfessa e mesmo inconsciente de antigas
necessidades religiosas! O quanto de oração, de virtude, de unguen-
to, de virgindade, de incenso, de caprichos e de "cubiculos" não
continua ganhando voz ai! O fato de a própria música se ab~'l:rair da
palavra, do conceito, da imagem: ó, como ele sabe se aproveitar dis-
so, o "eterno-feminino" malicioso e feminino! A mais proba consci-
ência não precisa se envergonhar, quando esse instinto se satisfaz-
ela permanece de fora. Isso é saudável, inteligente e, na medida em
que mostra vergonha ante a mesquinhez de todo juízo religioso, um
bom sinal... Apesar de tudo isso, ela permanece urna hipocrisia ...
Em contrapartida, se se coloca de lado o simbolismo re-
ligioso, tal como Wagner o fez em seus últimos dias com uma
perigosa mendacidade, tal como acontece no Parsifal, em que
ele alude e não apenas alude ao disparate supersticioso da última
ceia: então tal música provoca indignação...

11 (89)
(343) Os homens sempre entenderam mal o amor: eles
acreditam que sejam af altruístas, porque querem o proveito de
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 33
··············································· ·······················•························

outro ser, com frequência contra o seu próprio proveito: mas para
tanto eles querem possuir esse outro ser... Em outros casos, o
amor é um parasitismo mais fino, o perigoso aninhar-se de uma
alma em outra alma - às vezes também na carne... Ah! O quanto
isso não se dã às custas "do dono da casa"!
Quanta vantagem o homem sacrifica, o quão pouco ele
é "egoísta"! Todos os seus afetos e paixões querem ter sua
razão - e o quão distante da astuta utilidade não se encontra
o afeto!
Não se quer sua "felicidade"; é preciso ser inglês para po-
der acreditar que o homem sempre busca seu proveito; nossos
desejos querem se apropriar das coisas em uma longa paixão -
sua força acumulada busca as resistências.

11 (90)
O primeiro a fazer o melhor uso possível de R<ichard>
W<agner> nos dirá o quanto ele vale. Por vezes tenta-se acreditar
em um valor de W<agner>, no qual ele mesmo poderia ter gosta-
do muito de acreditar.

11 (91)
(344) Enobrecimento da prostituição, não extinção...
O casamento teve durante muitíssimo tempo a mã cons-
ciência contra si: devemos acreditar nisso? Sim, nós devemos
acreditar. -
Para a honra das mulheres velhas -

11 (92)
Tomo a liberdade de me esquecer. Depois de amanhã quero
estar de novo cm casa.

11 (93)
(345) tudo aquilo com o que o homem até aqui não soube
lidar, tudo aquilo que nenhum homem até aqui digeriu, os "excre-
mentos da existência" - para a sabedoria, ao menos, ela continua
sendo o melhor esterco...
34 fRIEDRICH NI ETZSCHE

11 (94)
(346) Aquele imperador mantinha diante de si constante•
mente a perecibilidade de todas as coisas, a fim de não consi-
derá-las tão importantes e de permanecer tranquilo junto a elas.
Para mim, ao contrário, tudo parece ser valioso demais, para que
pudesse ser assim tão fugidio: busco uma eternidade para tudo:
temos o direito de jogar os unguentos e os vinhos mais deliciosos
ao mar? - e meu consolo é que tudo aquilo que foi é eterno: - o
mar o lança de volta à superficie

11 (95)
(347) Como se sabe, as pessoas continuaram amolando
Voltaire em seus últimos instantes: "Vós acreditais na divindade
de Cristo?", perguntou-lhe seu cura; e, não satisfeito com o fato
de Voltaire ter dado a entender que queria ser deixado em paz,
ele repetiu sua pergunta. Furioso, Voltaire repeliu o impertinente
questionador: "au nom du dieu! - ele gritou em sua face - ne
me parlez pas de cet-homme là!"" - últimas palavras imortais,
nas quais está resumido tudo aquilo contra o que esse espírito de
todos o mais corajoso tinha lutado. -
Voltaire emitiu o juizo: ''Não hã nada divino nesse judeu de
Nazaré": foi assim que o gosto clássico julgou a partir dele.
O gosto clássico e o gosto cristão empregam o conceito
do "divino" de maneiras fundamentalmente diversas; e quem
tem o primeiro no corpo não pode sentir outra coisa em relação
ao cristianismo senão que ele é foeda <supersticio> e, cm rela-
ção ao ideal cristão, que ele é uma caricatura e urna degradação
do divino.

11 (96)
(348) O fato de se colocar o agente uma vez mais na ação,
depois de tê-lo extraído da ação conceitualmente e, com isso,
esvaziado a ação;

24 N.T.: Em francês no original: em no me de deus! Não me fale nesse homem!


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 35

O fato de se retirar o fazer-algo, a "meta", a "intenção", o


"fim", colocando-os uma vez mais na ação, depois de tê-los ex-
traído artificialmente da ação e, com isso, esvaziado a ação;
O fato de todo "fim", toda "meta", todo "sentido" não se-
rem outra coisa senão expressão de uma vontade, que é inerente a
todo acontecimento, a vontade de poder; o fato de fins, metas, ter
intenções, querer em geral significarem o mesmo que querer-vir-
-a-ser-mais-forte, e também querer os meios para tanto;
O fato de o instinto mais universal e mais inferior em toda
ação e em todo querer ter permanecido justamente por isso o
menos conhecido e o mais velado, porque nós sempre seguimos
em verdade seu comando, porque somos esse comando... Todos
os juízos de valor são apenas consequências e perspectivas mais
estreitas a serviço dessa vontade una: o próprio avaliar é apenas
essa vontade de poder; uma critica do ser a partir de algum desses
valores é algo absurdo e urna i·ncompreensão; mesmo supondo
que se introduza ai um processo de decllnio, esse processo conti-
nua a serviço dessa vontade...
Avaliar o pr6prio ser: mas o próprio avaliar ainda é esse
ser- : e, na medida em que dizemos não, continuamos sempre fa.
zendo o que somos ... É preciso que percebamos o absurdo desse
gesto condenador da existência; busquemos ainda desvendar o
que se dâ propriamente com ele. Ele é sintomático.

11 (97)
(349) O niilismo filosófico é a convicção de que todo aconte-
cimento é sem sentido e em vão; e que não deveria haver mais ne-
nhum ser sem sentido e vão. Mas de onde provém esse: não deveria?
Mas de onde se retira esse "sentido"? Essa medida?- 0 niilista pen-
sa no fundo que a visão de ta.1ser ârido e inútil age sobre um filósofo
de maneira insatisfatl>ria, árida, desesperada; uma tal compreensão
contradiz nossa sensibilidade mais sutil como filósofos. Esse fato
conflui para a avaliação absurda: o caráter da existência precisaria
agradar ao filósofo, se é que ela deve subsistir com razão ...
Agora, é fácil compreender que o agrado e o desprazer no
interior do acontecimento só podem ter o sentido de meios: res-
36 fRIEORICH NIETZSCHE

taria perguntar, se nós poderíamos efetivamente ver o "sentido" e


a "meta", se a questão da ausência de sentido ou de seu contrário
não é insolúvel para nós. -

11 (98)
(350) Valor da perecibilidade: algo que não possui nenhu-
ma duração, que se contradiz, possui pouco valor. Mas as coisas,
nas quais acreditamos como duradouras, são como tais puras fic-
ções. Se tudo flui, então a perecibilidade é uma qualidade (a "ver-
dade"), e a duração e a perecibilidade, apenas uma aparência.

11 (99)
(35 J) Crítica do niilismo. -
1.
O niilismo como estado psicológico precisará entrar em
cena em primeiro lugar, quando tivermos buscado um "sentido"
em todo acontecimento, que não está aí: de modo que aquele que
busca perde finalmente o ânimo. Niilismo é a conscientização da
longa dissipação de força, a agonia do "em vão", a insegurança,
a falta de oportunidade de descansar, de ainda se aquietar quanto
a alguma coisa - a vergonha diante de si mesmo, como se tivés-
semos nos enganado por um tempo longo demais... Esse sentido
poderia ter sido: a "realização" de um cânone ético supremo em
todo acontecimento, a ordem ética do mundo; ou o acréscimo do
amor e da harmonia no trânsito entre os seres; ou a aproximação
de um estado de felicidade geral; ou mesmo o arremetimento di-
reto para um estado de nada - uma meta é sempre ainda um sen-
tido. O que há de comum em todos esses tipos de representação é
o fato de algo dever ser alcançado por meio do próprio processo:
- e, então, compreende-se que com o devir nada é obtido, nada
é alcançado ... Ou seja, a desilusão quanto a uma suposta meta do
devir como causa do niilismo: seja com vistas a uma meta total-
mente determinada, seja, em termos genéricos, a compreensão do
caráter insuficiente de todas as hipóteses ligadas até aqui a metas
que dizem respeito a todo o "desenvolvimento" (- o homem não
é mais colaborador, para não falar de o ponto central do devir).
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 37

O niilismo como estado psicológico entra em segundo


lugar em cena, quando se estabelece uma totalidade, uma sis-
tematização, mesmo uma organização em todo acontecimento
e sob todo acontecimento: de modo que a alma sedenta de ad-
miração e veneração regala-se com a representação conjunta de
uma forma de domínio e de administração supremas (- caso se
trate da alma de um lógico, a absoluta consequência e dialética
real já são suficientes para que ele se reconcilie com tudo...).
Uma espécie de unidade, uma forma qualquer de "monismo":
e, em consequência dessa crença, o homem em um profundo
sentimento de conexão e de dependência cm relação a um todo
infinitamente superior, um modo da divindade ... "O bem-estar
do universal exige a entrega do singular"... mas, veja, não há ne-
nhum universal como tal! No fiundo, o homem perdeu a crença
em seu valor, caso não atue através dele uma totalidade infini-
tamente valorosa: ou seja, ele concebeu uma tal totalidade a fi.m
de poder acreditar em seu valor.
O niilismo como estado psicológico tem ainda uma tercei-
ra e de"adeira forma. Dadas essas duas intelecções, a de que
com o devir nada é obtido e a de que não vigora por debaixo de
todo devir nenhuma grande unidade, na qual o singular pudesse
submergir completamente como em um elemento de um valor
supremo: então ainda resta como refúgio condenar todo o mundo
do devir como uma ilusão e inventar um mundo que se encontra
para além desse mundo do devir, um mundo verdadeiro. Con-
tudo, logo que o homem descobre como esse mundo só ganhou
espaço por necessidades psicológicas e como ele não tinha razão
alguma para tanto, surge a última forma do niilismo, que encerra
em si a descrença em um mundo metafisico - que se proíbe a
crença em um mundo verdadeiro. Sob esse ponto de vista, admi-
te-se a realidade do devir como a única realidade, prolbe-se todo
tipo de atalhos para trasmundos e falsas d.ivindades - mas não se
suporta esse mundo que íá não se quer negar. ..
- O que aconteceu, no fundo? O sentimento da ausência
de valor foi alcançado, quando se compreendeu que o caráter
conjunto da existência não pode ser interpretado nem com o con-
38 FRIEORICH NIETZSCHE

ceito de "meta", nem com o conceito de "unidade", nem com o


conceito de "verdade". Nada é obtido e alcançado; falta a uni-
dade abrangente na pluralidade do acontecimento: o caráter do
acontecimento não é "verdadeiro", é falso ..., não se tem mais
simplesmente nenhuma razão para tentar se convencer de um
mundo verdadeiro ...
Em suma: as categorias "meta", "unidade", "ser", com as
quais tínhamos inserido um valor no mundo, foram retiradas
uma vez mais por nós - e agora o mundo parece sem valor...

2.
Supondo que nós reconhecemos em que medida o mundo
não pode ser interpretado com essas três categorias e que, se-
gundo essa compreensão, o mundo começa a se tornar sem va-
lor para nós: precisamos nos pe.rguntar de onde provém a nossa
crença nessas três categorias - tentemos ver se não é possível
reiirar-lhes a crença. Se desvalorizarmos essas três categorias,
então a prova de sua inaplicabilidade não é mais nenhuma razão
para desvalorizarmos o todo.

Resultado: a crença nas categorias da razão é a causa do


niilismo - nós medimos o valor do mundo a partir de categorias
que se ligam a um mundo puramente fictício .
....
Resultado final: todos os valores com os quais procuramos
tornar primeiramente o mundo apreciável para nós até agora e
que por fim desvalorizamos justamente por isso, quando se re-
velaram como impassíveis de serem estabelecidos - todos esses
valores são, computados psicologicamente, resultados de deter-
minadas perspectivas de utilidade voltadas para a manutenção
e a elevação de construções humanas de domínio: e falsamente
apenas projetadas para o interior da essência das coisas. Trata-se
sempre ainda da ingenuidade hiperbólica do homem <estabele-
cer> a si mesmo como o sentido e a medida das coisas...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 39

11 (100)
(352) Os valores supremos, em cujo serviço o homem deve-
ria viver, sobretudo se eles dispusessem do homem de maneira por
demais pesada e dispendiosa: esses valores sociais foram construí-
dos sobre o homem com a finalidade de fortalecer o tom, como se
eles fossem comandos de Deus, como "realidade", como mundo
"verdadeiro", como esperança e como um mundo faturo. Agora, no
momento em que fica clara a proveniência mesquinha desses valo-
res, o todo nos parece desvalorizado, ele parece ter se tomado "des-
provido de valor"... mas esse é apenas uni estado intennediário.

11 (101)
Não gostaria de maneira alguma de tomar parte na comé-
dia desprezível, que continua sendo chamada hoje, sobretudo na
Prússia, de pessimismo filosófioo; não vejo nem mesmo a neces-
sidade de tàlar sobre ele. Nós já deveríamos ter nos afastado há
muito tempo com nojo desse espetáculo teatral que nos é ofere-
cido pelo macaco magro que é o senhor von Hartmann: a meu
ver, não se pode levar em consideração ninguém que coloque ao
mesmo tempo na boca o nome de Hartmann e de Schopenhauer.

11 (102)
(353) Que não cometamos nenhunia covardia contra suas
ações. Que não as abandonemos na mão cm seguida... O remorso
é indecente.

11 (103)
(354) Que recoloquemos, finalmente, os valores humanos uma
vez mais bem comportados em seus cantos, nos únicos espaços em
que eles têm razão: como valores marginais." Muitas espécies ani-
mais já desapareceram; supondo que o homem também venha a de-
saparecer, não faltaria nada oo mundo. É preciso ser suficientemente
filósofo para poder admirar também esse nada (- Nil admirari - ).

25 N,T.: O t ermo alemão eckensteher significa, literalmente, aquilo que se


encontra no canto,
40 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (104)
(355) Se não temos probl,ema algum com o "por quê?" de
nossas vidas, então levamos na flauta o seu "como?". Quando
o valor do prazer e o do desprazer ganham o primeiro plano e
damos ouvidos a doutrinas hedonistas e pessimistas, isso já é por
si só um sinal de descrença no "por quê?", na meta e no sentido,
uma falta de vontade; e renúncia, resignação, virtude, "objeti-
vidade" já podem se mostrar no mínimo como um sinal de que
começa a faltar o principal.
Que saibamos nos dar uma meta - - -

11 (105)
N.B. Um homem-plebe, um homem do rancor, um
Rankunke/...

11 (106)
Não se pode confundir. - a descrença como incapacidade
de chegar efetivamente a acreditar e, por outro lado, como in-
capacidade de ainda acreditar cm algo: no último caso simples-
mente como sintoma de uma nova crença -
É próprio da descrença como incapacidade a inaptidão para
negar - ela não sabe se defender nem de um sim nem de um não ...

11 (107)
O ócio está no começo de toda filosofia. - Por conseh>uinte
- a filosofia é um vício?...

11(108)
Um filósofo descansa de modo diverso e com coisas di-
versas. A crença em que não há, nenhuma verdade, a crença dos
niilistas, é um grande espregu.içar-se para alguém que, como
guerreiro do conhecimento, está incessantemente em luta com
verdades extremamente feias. Pois a verdade é feia.

11(109)
Se deduzimos da música a música dramática: ainda resta
muita coisa da boa música.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 41

li (110)
Nós também acreditamos na virtude: mas na virtude no es-
tilo da renaissance, virtu, virtude livre de toda moral.

li (Ili)
Como é possível que o artigo de fé fundamental de toda
psicologia sejam as mais graves dctUipações e falsificações? "O
homem aspira à felicidade", por exemplo - o que há de verdade
ai! Para compreender o que é a vida, que tipo de aspiração e de
tensão a vida é, a fórmula precisaria ser igualmente válida para
ãJvores, plantas e animais. "Ao que aspira a planta?" - mas jã
erigimos aqui uma falsa unidade, uma unidade que não há: o fato
de um crescimento milionésimo com iniciativas próprias e semi-
próprias ser escondido e negado, quando antepomos a unidade
maciça "planta". O fato de os menores "individuos" derradeiros
não serem compreensíveis no se·ntido de um "indivíduo metafisi-
co" e de um átomo, o fato de suas esferas de poder se deslocarem
continuamente - é isso que é antes de tudo visível: mas será que
cada um deles, se eles se transformam dessa maneira, aspira à
''felicidade"? - Mas todo expandir-se, incorporar, crescer é uma
aspiração contra algo que resiste, o movi<mento> é essencial-
mente algo ligado a estados de desprazer: em todo caso, aquilo
que impulsiona aqui precisa querer algo diverso, se é que ele
quer c busca incessantemente desse modo o desprazer. - Pelo que
as ãJvores de uma floresta virgem lutam umas com as outras? Por
"felicidade"? - Por poder...
O homem, que se tomou senhor sobre as forças naturais,
sobre a sua selvageria e desenfreamento: os desejos possuem
consequências, aprenderam a ser úteis.
O homem, cm comparação com um pré-homem, represen-
ta um quantum de poder descomunal - não um plus de "felicida-
de": como é que se pode afirmar que ele aspirava à felicidade?

li (112)
(357) O homem mais elevado distingue-se do homem ilife-
rior com vistas ao destemor e à exigência da infelicidade: trata-se
42 FRIEDRICH NIETZSCHE

de um sinal de retrocesso, quando critérios de valor eudaimonis-


tas começam a ser considerados como critérios supremos (- can-
saço fisiológico, empobrecimento da vontade -). O cristianismo
com sua perspectiva de "venturança" é um modo de pensar típico
de um gênero humano sofredor e empobrecido: uma força plena
quer cri.ar, sofrer, sucumbir sofrendo: para ela, a ladainha cristã
da salvação é música ruim c os gestos hieráticos um enfado

11(113)
(358) Para a psicologia e a doutrina do conhecimento.
Fixo também a fenomenalidade do mundo interior: tudo
aquilo de que temos consciência é primeiro inteiramente retifica-
do, simplificado, esquematizado, interpretado - o processo real
da "percepção" interna, a unificação causal entre pensamentos,
ideias, desejos, assim como entre sujeito e objeto, nos é absoluta-
mente velada - e talve-z uma pura fantasia. Esse "mundo interior
aparente" é tratado com as mesmas formas e procedimentos que
o mundo "exterior". Nós nunca deparamos com "fatos": prazer e
desprazer são fenômenos intelectuais tardios e derivados ...
A "causalidade" nos escapa; supor um laço causal imediato
entre pensamentos, tal como a lógica o faz - essa suposição é
a consequência da observação mais tosca e grosseira de todas.
Entre dois pensamentos, todos os afetos possíveis jogam o seu
jogo: mas os movimentos são rápidos demais, por isso não os
compreendemos, por isso os negamos ...
O "pensar", tal como estabelecem os epistemólogos, é algo
que não se dá absolutamente: trata-se de uma ficção totalmente
arbitrária, alcançada pelo destaque de um elemento do processo
e pela subtração de todos os outros, uma retificação anificial com
a finalidade de tomar comprecn:slvcl. ..
O "espírito", algo que pe11sa: possivelmente quiçá "o espí-
rito absoluto, puro" - essa concepção é uma segunda consequên-
cia derivada da auto-observação falsa que acredita no "pensar":
"o pensar" e, cm segundo lugar, um sujeito-substrato imaginado
no qual cada ato desse pensar e: nada além disso possui sua ori-
gem: ou seja, tanto a ação quanto o agente são fictícios.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 43

li (114)
"querer" não é "desejar", aspirar, exigir; ele se distingue
dessas noções por meio do afeto de comando
não há nenhum "querer", mas apenas um querer-algo: não
é necessârio destacar a meta do estado: tal como o fazem os epis-
temólogos. Como o "pensar", o "querer", tal como eles o com-
preendem, também não se dá: ele é uma pura ficção.
o fato de algo ser comandado penence ao querer (: com
isso não está dito naturalmente que a vontade é "efetuada"...)
Aquele estado geral de tensão, em vinude do qual uma
força busca ser desencadeada - não é "vontade"

11(115)
(359) Em um mundo que é essencialmente falso, a veracidade
precisaria se mostrar como uma tendência antil1fltural: tal tendência
só teria sentido como meio para WJJa potência panicular mais eleva-
da de falsidade; para que um mundo do verdadeiro, do ente, tenha
podido ser imaginado, o homem veraz precisou ser primeiro criado
(incluindo aí o fato de tal homem vcraz se acreditar "veraz")
Simples, transparente, sem estar em contradição consigo
mesmo, duradouro, permanecendo igual a si mesmo, sem do-
bras, voltas, cortinado, forma: um homem desse tipo concebe um
mundo do ser como "Deus" segundo sua imagem.
Para que a veracidade seja passivei, toda a esfera do ho-
mem precisa estar bem limpa, pequena e respeitável: a vantagem
precisa estar em todos os sentidos do lado do veraz. - Mentira,
perfídia, fingimento precisam causar espanto...
O ódio à mentira e ao fingimento par orgulho, por um con-
ceito de honra irritável; mas também há tal ódio oriundo da co-
vardia: porque a mentira é proibida. - Em outro tipo de homem,
toda moralização própria ao "t\l não deves mentir" não ajuda
nada contra o instinto, que necessita constantemente da mentira:
testemunho o novo testamento.

li (1 16)
(360) Há aqueles que buscam lugares onde há algo imoral:
quando eles julgam: "isto é injusto", acred.itam que se precisa
44 FRIEORICH NIETZSCHE

acabar com isto e transformá-lo . Inversamente, ao tratar de uma


coisa, não tenho paz em parte alguma enquanto não tenho clareza
quanto à sua imoralidade. Se trago essa imoralidade à tona, então
se produz uma vez mais meu equilíbrio.

11 (117)
Um espírito relaxado, par.a o qual a dança é o movimento
mais natural, um espírito que adora tocar toda realidade com a
ponta dos pés, odeia se entregar a coisas tristes.

11 (118)
(361) nós hiperbóreos
Minha conclusão é: que ,o homem real possui um valor
muito mais elevado do que o homem "desejável" de algum ideal
qualquer até aqui; que todas as "coisas desejáveis" em relação ao
homem foram digressões absurdas e perigosas, com as quais um
tipo particular de homem quis pendurar como lei suas condições
de conservação e de crescimento sobre a humanidade; que todas
as "coisas desejáveis" oriundas de tal origem que se tomaram até
agora dominantes reduziram o valor do homem, sua força, sua
certeza de futuro; que a mesquinhez e a intelectualidade angulosa
do homem se expõem na maioria das vezes, quando ele deseja;
que a capacidade do homem de instaurar valores foi muito pouco
desenvolvida até aqui, para fazer jus ao valor fático, não apenas
desejável, do homem; que o ideal até agora foi a força realmente
amaldiçoadora do homem e do mundo, a fumaça tóxica sobre a
realidade, a grande sedução para o nada ...

11(119)
(362) Prefácio
Eu descrevo o que virá: a ascensão do niilismo. Posso
descrevê-la aqui, porque algo necessário está se dando aqui - os
sinais desse acontecimento estão por toda parte, só continuam
faltando os olhos para esses sinais. Não elogio, nem repreendo
aqui o fato de que ele vi.rã: creio que há uma grande crise, um ins-
tante da mais profunda automedjtação do homem: é uma questão
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 45

de sua força saber se ele se restabelecerá dal, se ele se tomará


senhor dessa crise: é possível...
O homem moderno acredita experimentalmente ora nesse,
ora naquele valor e o deixa, em seguida, cair: a esfera dos valo-
res que sobreviveram e que tombaram fica cada vez mais cheia;
o vazio e a pobreza em termos va/orativos silo cada vez mais
sentidos; o movimento é impassível de ser detido - apesar de se
buscar o adiamento em grande estilo -
Finalmente, ele ousa uma crítica dos valores em geral; ele
reconhece a sua proveniência; ele reconhece o suficiente para
não acreditar mais em valor algum; o pathos se faz presente, o
novo horror...
O que narro é a história dos próximos 200 anos ...

11 (120)
(363) Que tenha lugar entre o sujeito e o objeto uma espécie
de relação adequada; que o objeto seja algo que se mostraria como
o sujeito visto de dentro: essa é uma invenção benevolente que,
como penso, teve o seu tempo. A medida daquilo que nos é cons-
ciente é totalmente dependente da tosca utilidade da conscienti-
zação: como é que essa perspectiva angulosa da consciência pode
nos permitir construir de algum modo enunciados sobre "sujeito"
e "objeto" enunciados com os quais a realidade seria tocada!

11(121)
(364) Não se pode deduzi.r a mais baixa e mais originária
atividade no protoplasma de uma vontade de autoconservação:
pois ele recolhe em si de uma maneira insana muito mais do que
a conservação condicionaria: e, antes de tudo, justamente com
isso ele não "se conserva", mas se decompõe ... O impulso que
aqui vigora precisa explicar precisamente o não-querer-se-con-
servar: a "fome" é já uma nova interpretação, segundo organis-
mos que não possuem o mesmo grau de complicação (- a fome é
uma forma especializada e tardia do impulso, uma expressão da
divisão do trabalho, a serviço de um impulso mais elevado que
vigora sobre esse último impulso).
46 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (122)
(365) - não é isso o que ncs separa: o fato de não reencon-
tronnos nenhum Deus, nem na história, nem na natureza, nem por
detrás da natureza - mas o fato de aquilo que foi venerado como
um deus se mostrar para o nosso sentimento não como "divino",
mas como uma deformidade sagrada, como movimento de mana-
da, como uma ninharia absurda e deplorável, como princípio de
difamação do mundo e do homem: em suma, o fato de negarmos
Deus enquanto Deus. O ãpice da mendacidade psicológica do
homem estã em extrair pelo cálculo a existência de um ser como
início e como o "em-si", segundo o critério anguloso daquilo que
se lhe apresenta como bom, sábio, poderoso, valoroso - e alijar aí
toda a causalidade, em virtude da qual efetivamente subsiste uma
bondade qualquer, uma sabedoria qualquer, um poder qualquer.
Em suma, estabelecer elementos da mais tardia e mais condi-
cionada proveniência não como tendo surgido, mas como sendo
"em si", se possível até mesmo como causa de todo surgimento
em geral. Se partirmos da experiência, de todo caso no qual um
homem se elevou significativamente acima da medida do huma-
no, então veremos que todo grau elevado de poder encerra cm
si a liberdade em relação ao "bem" e ao "mal", assim como em
relação ao ''verdadeiro" e ao "falso", não podendo levar em conta
nada que queira a bondade: nós concebemos o mesmo uma vez
mais para todo grau elevado de sabedoria - a bondade é suprimi-
da nessa sabedoria tanto quanto a veracidade, a justiça, a virtude
e outras veleidades populares da avaliação. Por fim, cm relação a
todo grau elevado da própria bondade: não é evidente que ele já
pressupõe uma miopia e um.a falta de refinamento intelectuais?
Assim como distinguir a uma grande distância verdadeiro e falso,
útil e nocivo? Para não falar do fato de que um grau mais elevado
de poder nas mãos da bondade suprema implicaria as mais funes-
tas consequências ("a supressão do mal")? - De fato, é preciso
considerar atentamente que tendências o "Deus do amor" inspira
em seus crentes: eles arruinam a humanidade em favor do "bem"
- Na prática, em face da constituição real do mundo, o mesmo
Deus se mostrou como o Deus da mais extrema miopia, do mais
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18117-1889 (Vol. VII) 47

extremo diabolismo e da mais extrema impotência: de onde se


segue quanto valor a sua concepção possui.
O saber e a sabedoria não possuem em si nenhum va-
lor; tampouco a bondade: ainda é preciso ter primeiro a meta
a partir da qual essas propriedades obtêm valor ou se mostram
como desprovidas de valor - poderia haver um valor a partir do
qual um saber extremo representaria uma elevada falta de valor
(por exemplo, se a ilusão extrema fosse uma das pressuposi-
ções para a elevação da vida; do mesmo modo, se a bondade,
por exemplo, conseguisse paralisar e desencorajar as molas do
grande desejo ...
Dada nossa vida humana, tal como ela é, então toda "ver-
dade", toda "bondade", toda "sacralidade", toda "divindade" no
estilo cristão até agora se mostram como o grande perigo - a
humanidade ainda continua correndo perigo de perecer por conta
de uma idealidade hostil à vida.

11 (123)
(366) A ascensão do niilismo
O niilismo não é apenas uma consideração sobre o "em
vão"!, nem apenas a crença em que tudo merece perecer: partici•
pa-se ativamente, leva-se a pique ... Se quisermos, isso é ilógico:
mas o niilista não acredita na necessidade de ser lógico ... Trata•
-se do estado de espíritos e vontades fortes: e para tais espíritos e
vontades não é possível ficar parado junto ao não do "juizo" - o
não da ação emerge de sua natureza. A a-niquilação por meio do
juizo auxilia a a-niquilação por meio da mão.

li (124)
(367) Se estamos "desiludidos", não o estamos em rela-
ção à vida: mas estamos porque abrimos os olhos para todos
os tipos de "desejabilidades". Nós consideramos com uma ira
trocista aquilo que significa um "ideal": nós nos desprezamos
por não podermos reprimir a q,ualquer momento essa emoção
absurda, que se chama " idealismo". O mimo é mais forte do que
a ira do desiludido ...
48 fRIEORICH NIETZSCHE

11 (125)
(368) A completa minoridade dos moralistas, que exigem
de nosso si próprio de muitas peles e velado que ele seja simples;
alguns dizem "mostra-te como tu és": como se não se precisasse
para tanto ser primeiro algo que é ...

11 (126)
(369) IV. N.B. A escolha dos iguais, o extrato, o isola-
mento

11 (127)
(370) N.B. Contra ajustiça... Contra J. Stuart Mil!: eu me
distancio de sua baixeza ao dize:r que "o que é direito para um é
bom para o outro; não faça a ninguém aquilo que tu não queres que
façam oontigo etc."; querer fundamentar todas as relações humanas
na reciprocidade da realização, de modo que toda ação se mostra
como uma espécie de pagamento per algo que nos cabe. Aqui, o
pressuposw é vil no sentido mais baixo possível: pressupõe-se aqui
a equivalência dos valores das ações em mim e em ti; aqui, o valor
pessoal de um.a ação é simplesmente anulado (aquilo que não pode
ser oompensado e pago por nada - ). A "reciprocidade" é uma gran-
de baixeza; o fato de aquilo que eu faço não ter o direito de ser feito
e não poder ser feito per outro, o fato de não poder haver nenhuma
equiparação - a não ser na esfera maximamente seleta dos "meus
iguais", interpares -; o fato de, em um sentido mais profundo, nunca
restituirmos nada,porqueseéalgo único es6 sefazalgo único-essa
convicção fundamental contém a causa da separação aristocrática
em relação à multidão, porque a multidão acredita em "i&rualdade"
e, oonsequentemente, em compensação e "reciprocidade".

11 (128)
(371) É o sentimento de parentesco que une as crianças en-
tre si: esse parentesco é mil vezes mais forte em tennos psicológi-
cos do que nonnalmente se supõe. Llngua, hâbitos, comunhão de
interesses e destinos - tudo isso é pouco comparado com aquele
poder-se-compreender com base no mesmo procedimento.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 49

11 (129)
o declfnio do espírito alemão, que está à altura do ufanis-
mo e do nacionalismo -

11 (130)
Não se fala sobre veracidade com uma mulher: quando di-
zemos a uma mulher "mostra-te como tu és", essa expressão sig-
nifica quase o contrário daquilo que ela significa enquanto uma
requisição ao homem

11(131)
- ele não foi queimado por sua crença, com pequenas va-
retas verdes: mas pelo fato de não possuir mais coragem
alguma para a sua crença.

11 (132)
- um homem, como ele deve ser: isso nos soa tão insípido
como "uma árvore tal como ela deve ser"

11 (133)
N.8. Reconhece-se a superioridade do homem grego, do
homem do renascimento - mas gostar-se-ia de tê-los sem suas
causas e condições: falta até hoje uma compreensão mais pro-
funda dos gregos

11 (134)
"Coisas que possuem em si uma constituição" - uma re-
presentação dogmática, com a qual se precisa absolutamente
quebrar

11 (135)
Para uma critica das grandes palavras. Estou cheio de sus-
peita e maldade em relação àquilo que se denomina um "ideal": é
aqui que se acha o meu pessimismo, cm ter reconhecido como os
"sentimentos mais elevados" são uma fonte de desgraça, isto é,
de amesquinhamento e de degradação valorativa do homem.
50 FRIEDRICH NIETZSCHE

- as pessoas sempre se eoganam quando esperam o "pro-


gresso" de um ideal: a vitória do ideal sempre foi até
aqui um movimento retrógrado.
- cristianismo, revolução, suspensão da escravidão, direitos
iguais, filantropia, amor à paz, justiça, verdade: todas essas
grandes palavras só possuem valor na luta, como estandar•
tes: não como realidades, mas como palavras pomposas
para designar algo completamente diferente (sim, oposto!)

11 (136)
Crítica às grandes palavras
"Liberdade" para a vontade de poder
"Justiça"
"lgualdade de direitos"
"Fraternidade"
"Verdade" (cm sectos etc.)

11 (137)
A "crescente autonomia do indivíduo": esses filósofos pari-
sienses falam sobre isso, filósofos como Fouillé: mas eles só deve-
riam considerar a race moutonniere,26 que eles mesmos são! ...
Abri os olhos, senhores sociólogos do futuro!
O "indivíduo" tomou-se forte sob condições inversas:
vós descreveis o enfraquecimento e o estiolamento extremos do
homem, vós os quereis e precisais para tanto de todo o aparato
mendaz do antigo ideal! Vós sois do tipo que sente realmente as
vossas necessidades de animal de rebanho como um ideal!
A falta completa de honradez psicológica!

11 (138)
(372) A proveniência do ideal. Investigação do solo, sobre
o qual ele cresce.
A. Partir dos estados "estéticos", nos quais o mundo é visto
de maneira mais plena, mais esférica, mais perfeita -

26 N.T.: Em francês no original: raça d'e Imitadores.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 51

o ideal pagão: aí a autoafumação predominante desde Buffo


- o tipo supremo: o ideal clássico - como expressão da boa
constituição de todos os instintos principais
- aí uma vez mais o estilo supremo: o grande estilo como
expressão da própria "vontade de poder" (o instinto mais
temido ousa se declarar)
- renuncia-se -
B. Partir de estados nos quais o mundo é visto como mais
vazio, mais esvaecido, mais diluído, nos quais a "espiritualiza-
ção" e o caráter não sensível assumem a posição daquilo que é
perfeito; nos quais o brutal, o diretamente animal, o imediato são
maximamente evitados: o "sábio", "o anjo" (sacerdotal = virgem
= ignorante) - caracterização psicológica de tais "idealistas"...
- subtrai-se, escolhe-se
C. Partir de estados nos quais sentimos o mundo como
mais absurdo, como pior, como mais pobre e mais ilusório do que
seria permjtigo pi1rn que supusé:.semos 01,1 desej~sernos que ele
contivesse o ideal: a projeção do ideal para o interior do elemen-
to antinatural, antifactual, alógico. O estado daquele que julga
assim (- o "empobrecimento" do mundo como consequência do
sofrimento: toma-se, não se dá mais - )
: o ideal antinatural
- nega-se, aniquila-se -
( O ideal cristão é um conslruto intermediário entre o se-
gundo e o terceiro, ora preponderantemente com esta, ora com
aquela figura)

os três ideais

A. Ou uma intensificação
(pagã)
B. ou uma diluição da vida
(anêmica)
C. ou uma renegação
a "divinização" sentida na mais elevada plenitude
na mais delicada escolha
na destruição e desprezo pela vida.
52 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (139)
O grau de tensão, de resistência, de perigo, de desconfiança
legítima; o grau no qual vidas humanas são sacrificadas, no qual
a probabilidade do insucesso é grande e, apesar d.isso, ousamos
correr o risco: -

11 (140)
Os ideais do onimal de rebanho - culminando agora como
a s11prema avaliação da "sociedade": tentativa de lhe dar um
valor cósmico, sim, metafisico
defendo contra ela o aristocratismo.
Uma sociedade que preserva cm si aquela consideração
e aquela delicadeza em relação à verdade precisa se sentir
como exceção e ter em relação a si mesma um poder contra o
qual ela se levanta, contra o qual ela é hostil e para o qual ela
olha de cima
- quanto mais direitos eu concedo e quanto mais eu me
equiparo, tanto mais recaio sob o domínio do mediano,
por fim, sob o domínio dos mais numerosos
- o pressuposto que uma sociedade aristocrática possui em
si, para manter o mais elevado grau de liberdade entre os
seus membros, é a tensão extrema que emerge da presen-
ça do impulso oposto j unto a todos esses membros: da
presença da vontade de domínio ...

11 (141)
se vós quereis eliminar as fortes oposições e a diversidade
de stahlS, então suprimi o amor forte, a atitude elevada, o senti-
mento do ser-por-si.

11 (142)
Para a psicologia real da sociedade da liberdade e da igual-
dade:
O que está diminuindo? A vontade da responsabilidade por
si - sinais do dccllnio da autonomia
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 53

a capacidade de se defender e de
se armar, mesmo no que hã de mais
espiritual - a força de comandar
o sentido da veneração, da subordi-
nação, do poder-silenciar.
a grande paixão, a grande tarefa, a
tragédia, a serenidade

11 (143)
Capítulo:
Critica das grandes palavras.
Da proveniência dos ideais.

o ideal do animal de rebanho Como se faz com que a virtude


domine
A circe dos filósofos
o ideal ascético O ideal religioso.
Fisiologia do ideal 1. Il. III
o ideal dos senhores O ideal político.
"ciência,.
o ideal da espiritualidade

111 o ideal do animal de rebanho


III o ideal dos senhores
I o ideal da antinatureza
Il o ideal da espiritualidade
I o ideal pagão
III o ideal do eremita (estoa etc.)
ll o ideal da scnsorialização

Tábua:
Da proveniência do ideal

A. o ideal do an.imal de rebanho


o ideal do animal senhorial
o ideal do animal eremita
54 FRIEDRICH NI ETZSCHE

B. o ide a1pagão
o ideal da antinatureza
C. o ideal da sensorialização
o ideal da espiritualização
o ideal do afeto dominante

Critica das grandes palavras


Verdade
Justiça
Amor
Paz
Virtude
Liberdade
Bondade
Honradez
Gênio
Sabedoria

11 (1 44)
Pascal: le pire mal est celui, qu 'onfait par bonne intention.2'

11 (145)
Papel da "consciência"
É importante que não nos confundamos quanto ao papel
da "consciência": foi a nossa relação com o "mundo exterior"
que a desenvolveu. Em contrapartida, a direção ou a proteção e
o cuidado em relação à composição das funções corporais não
nos são conscientes; assim como o armazenamelllo espiritual:
não se deve duvidar de que hâ Wlla instância suprema para tanto:
uma espécie de comitê diretor no qual os clivcrsos desejos princi-
pais fazem valer sua voz e seu poder. "Prazer" e "desprazer" são
acenos vindos dessa esfera:... assim como o ato volitivo. Assim
como as ideias

27 N.T.: em francês no original: o pior mal é aquele que cometemos por boa
Intenção.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol, VII) ss

Em suma: aquilo que se torna consciente encontra-se sob


relações causais que nos são totalmente veladas - a sequência
de pensamentos, sentimentos, id.eias na consciência não expressa
nada sobre o fato de essa sequência ser uma sequência causal:
mas as coisas são aparentemente assim, em um grau maxima-
mente elevado. Nessa aparência fundamos toda a nossa repre-
sentação de espírito, razão, lógica etc. (nada disso existe: trata-
-se de sínteses e unidades fictícias)... e essas sínteses e unidades
são uma vez mais projetadas nas coisas, por derrás das coisas!
Habitualmente se c-onsidera a própria consciência como
um sensório conjunto e uma instância suprema: apesar de ela
ser apenas um meio da comunicabilidade: ela é desenvolvida no
trânsito e com vistas aos interesses do trânsito ... "Trânsito" tam•
bém compreendido aqui a partir dos efeitos do mundo exterior
e das nossas reações necessárias; assim como a partir de nossos
efeitos sobre o que se encontra fora. A consciência não é a dire-
ção, mas um órgão da direção -

11 (1 46)
Os meios, em virtude dos quais um tipo mais forte se con-
serva.
Conceder-se um direito a ações de exceção; como tentativa
de autossuperaçào e de liberdade
Dirigir-se para situações nas quais não é permitido não ser
bárbaro
Criar para si um excesso de poder e uma certeza por meio
de todo tipo de ascese com vistas à sua força de vontade
Não se comunicar; o silêncio; a cautela diante da gentileza.
Aprender a obedecer, de tal modo que se coloque auto-
manutenção à prova. Casuistica do ponto de honra refinada ao
extremo.
Nunca concluir que "o que é direito para um é bom para o
outro" - mas o inverso!
Tratar a desforra, o poder restituir como um privilégio,
adirniti-lo como distinção -
Não ambicionar a virtude dos outros.
56 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (147)
Teoria do impulso sexual: "os 'homúnculos• que desejam
entrar na existência unificam sua exigência de vida em uma exi-
gência por um coletivo que a consciência nota e toma como a sua
própria necessidade" -
Palavras de Renan Hartley Fouillée, p. 217.

11 (1 48)
Estã chegando o momento em que teremos de pagar por
termos sido cristãos por 2.soo, anos: nós estamos perdendo o
fiel da balança (o peso pesado)'u que nos permitia viver - não
sabemos há algum tempo de omde saímos, nem aonde estamos
entrando. Nós caímos de repente em avaliações opostas, com a
mesma medida de energia, com a qual fomos cristãos - como a
qual vivemos o excesso absurdo da ...... cristã - - -
1) a "alma imortal"; o valor etemo da "pessoa" -
2) a solução, a direção, a valoração no "além" -
3) o valor moral como valor supremo, a "salvação da alma''
como interesse cardinal
4) ''pecado", "terreno", "carne'\ ''desejos" - estigmatiza-
dos como "mundo"
Agora, tudo se mostra como inteiramente falso, como "pa-
lavra", como confuso, fraco ou exagerado

28 N.T.: Essa é uma passagem de dlfí(II traduç3o. Em verdade, Nietzsche va•


le-se aqui de um t ermo que funciona como t itulo de um aforismo centrol
de A gafa cilncla: o termo Schwergewfchr. Traduzido ao pé da letra, o ter•
mo slgntnca o peso pesado. No aforismo 341 de A gafa ciência, Intitulado
das grllssre Schwergewlcht, ele se refere ao peso esmagador do pensa,.
mento do eterno retorno do mesmo e ao papel transformador que esse
peso pode desempenhar. No que concerne a esse papel transformador,
um sentido básico da palavra alemã é decisivo. Schwergewlcht é o fiel da
balança, o peso que funciona como medida para a pesagem de todos os
outros pc-sos. Na passagem atlmo, esse sentido é nitidamente visado por
Nietzsche. No entanto, para não perder a ligação com o aforismo 341 de A
gala cl~ncla, Inseri entre par~ntes,es uma trodução literal do termo.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 57
............................................... ................................................

a) tenta-se uma espécie de solução terrena, mas no mesmo


sentido do triunfo final da verdade, do amor, da justiça:
o socialismo: "igualdade entre as pessoas"
b) tenta-se do mesmo modo fixar o ideal moral (com o
primado do não egoísmo, da autonegação, da negação da
vontade)
c) tenta-se fixar mesmo o "além": ainda que apenas como
um x antilógico: mas e'le é imediatamente revestido de
tal forma que é possível retirar dele um consolo metafi-
sico de estilo antigo
d) tenta-se extrair do acontecimento a direção divina de
estilo antigo, a ordem das coisas que se mostra como
gratificante, punitiva, educativa e que conduz ao que é
melhor
e) continua-se acreditando como antes em bem e mal: de
modo que se sente como tarefa a vitória do bem e a ani-
quilação do mal (- isto é inglês, um caso tipico da falta
da cabeça chata de John Stuart Mill)
1) o desprezo da "naturalidade", dos desejos, do ego: a ten-
tativa de compreender a espiritualidade suprema e a arte
como consequências de uma despersonalização e como
désintéressement
g) permite-se à Igreja continuar se imiscuindo em todas as
vivências essenciais e em todos os pontos principais da
vida particular, a fim de dar-lhes consagração, um senti-
do mais elevado: nós também temos um "estado cristão",
o "casamento" cristão -

11 (1 49)
O niilismo perfeito
seus sintomas: o grande desprezo
a grande compaixão
a grande destruição
seu ponto de culminação: uma doutrina que mobiliza pre-
cisamente a vida, o nojo, a compaixão e o prazer nades-
truição, que os ensina como absolutos e eternos
58 FRIEORICH NIETZSCHE

11 (J 50)
Para a história do níilismo europeu
O período da/alta de clareza, das tentativas de todos os tipos de
conservar o antigo e não deixar seguir o novo.
O período da clareza: compreende-se que o antigo e o novo
constituem oposições fundamentais: os antigos valores nasceram
da vida declinante, os novos da vida ascendente - <que> o co-
nhecimento da natureza e a história não nos permitem mais tais
"esperanças" - que todos os antigos ideais são ideais hostis à
vida (nascidos da décadence e determinantes para a décadence,
por mais que no suntuoso adorno de domingo da moral) - nós
compreendemos o antigo, mas e.stamos longe de sermos fortes o
suficiente para algo novo.
O período dos três grandes afetos
do desprezo
da compaixão
da destruição
O período da catástrofe
a ascensão de uma doutrina que seleciona os homens ...
que impele os fracos a resoluções, assim como os fortes

11 (151)
lntelecção que/alta aos "cspiritos livres": a mesma disci-
plina, que fortalece mesmo uma natureza forte e a capacita para
grandes empreendimentos, destroça e estiola os medianos.
: a dúvida
: la la,geur <de coeur>
: o experimento
: a interdependência.

11 (152)
meu ufuturo"
a formação robusta de um politécnico
serviço militar: de modo que medianamente todo homem
das classes mais elevadas é oficial, não importa o que ele faça
além disso
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 59

11 (153)
Os perversos e os libertinos: sua influência depressiva so-
bre o valor dos desejos. É a horrível barbárie dos hábitos que,
principalmente na Idade Média, impele a um verdadeiro "laço
da virtude" - ao lado de excessos ib'llalmcnte horríveis quanto
ao que constitui o valor do homem. A "civilização" combativa
(domesticação) necessita de todo tipo de ferro e tortura, para se
manter contra a fertilidade e a natureza de animal de rapina.
Há aqui uma confusão completamente natural, apesar de
essa confusão trazer consigo a mais terrível consequência: aquilo
que homens do poder e da vontade podem exigir de si também
confere uma medida para aquilo qu.e eles podem conceder a si
mesmos. Tais naturezas são o oposto dos perversos e libertinos:
apesar de, em certas circunstâncias, eles fazerem coisas em fun-
ção das quais um homem inferior teria comprovada a culpalidade
por seu vício e por sua desmedida.
Aqui, o conceito de "equivalência dos homens perante
Deus" é extremamente nocivo: interditam-se ações e atitudes
que, em si, pertencem às prerrog.ativas dos que se mostram como
fortes - como se elas fossem em si indignas do bomem. Difa-
mou-se toda a tendência do homem forte, na medida em que se
apresentaram os meios de proteção dos mais fracos (dos mais
fracos mesmo em relação a si mesmos) como norma valorativa.
A confusão chega a tal ponto que se estigmatizaram preci-
samente as grandes virtuoses da vida (cuja autocracia representa
a mais aguda oposição em relação aos perversos e "libertinos")
com os nomes mais ignominiosos. Ainda hoje se acredita que é
preciso censurar um César B6rgia: isso é ridículo. A Igreja baniu
imperadores alemães com base em seus vicios: como se um mon-
je ou um padre pudessem ter voz na discussão daquilo que um
Frederico II tem o direito de exigir de si. Um Don Juan é manda-
do para o inferno: isso é muito ingênuo. Já se notou que não há
no céu nenhum homem interessante?... Apenas um aceno para a
mocinha no melhor lugar para eles encontrarem a salvação... Se
pensarmos o que é um "grande homem" de maneira um pouco
consequente e, além disso, com um entendimento mais profundo,
60 f RIEORICH NIETZSCHE

então não restará a menor dúvida de que a Igreja precisa mandar


para o inferno todos os "grandes homens" - ela Juta contra todos
os "grandes homens" ...

11 (154)
O "conceito de honra": repousando na crença na "boa so-
ciedade", nas principais qualidades cavalheirescas, no compro-
misso de se representar constantemente. Em essência: o fato de
não se levar a sério sua vida; o rato de se obedecer incondiciona-
damente às maneiras mais respeitosas, por parte de todos aqueles
com os quais se entra em contato (ao menos até o ponto em que
eles não "nos" pertencem); o fato de não se ser nem familiar, nem
benevolente, nem engraçado, nem modesto, a não ser interpares;
o fato de sempre se representar .a si mesmo ...

11 (155)
N<ovo> T<cstamcnto>
A guerra contra os nobres e os poderosos, tal como ela é
conduzida no Novo Testamento, é uma guerra como aquela da
raposa e com os mesmos meios: só que com a unção sacerdotal e
com a recusa decidida, a fim de saber de sua própria esperteza.

li (156)
Fala-se da "profunda injustiça" do pacto social: como se
o fato de uns terem nascido em padrões favoráveis e outros em
padrões desfavoráveis fosse uma injustiça; ou mesmo o fato de
uns terem nascido com estas propriedades e outros com aquelas...
Precisamos combater isso incondicionadamente. O falso conceito
de "individuo" conduz a esse absurdo. Isolar de um homem as cir-
cunstâncias a partir das quais ele cresce, inserindo-o meramente ai
ou deix.ando-o tombar por assim dizer como uma "mônada aními-
ca", 6 uma consequência da míse:ra metafisica das almas. Ninguém
lhe deu propriedades, nem Deus nem seus pais; ninguém é respon-
sável pelo fato de que ele é, de que ele é de tal e tal modo, de que
ele se encontra sob tais circunstâncias... O fio da vida, que ele agora
representa, não pode ser destacado de tudo aquilo que foi e precisa
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 61

ser: na medida cm que ele não é o resultado de uma longa intenção,


de absolutamente nenhuma vontade de um "ideal de homem", de
um "ideal de felicidade" ou de um "ideal de moralidade", é absur-
do querer se "insurgir" e se "lançar" em direção a algum lugar:
como se houvesse em algum lugar uma responsabilidade.
A revolta dos "sofredores" contra
Deus
Sociedade
Natureza
Antepassados
Educação etc.
imagina responsabilidades e formas da vontade que simplesmen-
te não hã. Não se deve falar de wna injustiça em casos nos quais
não estão de maneira alguma presentes as condições prévias para
ajustiça e a injustiça. O fato de uma alma ser- ou dever ser- em
si igual a todas as almas é o pior tipa possível de exaltação oti-
mista. O inverso é o desejável, a máxima dissemelhança possível
e, consequentemente, atrito, luta, contradição: e o desejável é,
felizmente, o real!

11 (157)
A intenção de estabelecer direitos iguais e, finalmente, ne-
cessidades iguais, uma consequência quase inevitável de nosso
tipo de civilização da ação e da equivalência politicados votos,
traz consigo a exclusão e a lenta extinção dos homens superiores,
dos homens mais perigosos, mais estranhos e, em suma, mais no-
vos: interrompe-se por assim dizer a experimentação e se alcança
certo estado de inércia.

li (158)
O pessimismo da revolta (ao invés do pessimismo da in-
dignação)

11 (159)
Do "grande nojo": em parte sofrendo dele, em parte geran-
do-o por si mesmo.
62 FRIEORICH NIETZSCHE

A literatura erótica católica e nervosa


A literatura do pessimismo da França / Flaubert. Zola.
Goncourt. Baudelaire.
Os diners chez Magny. 29
Da "grande compaixão"
Tolstoi, Dostoiévski
Parsifal

11 (160)
A verdadeira civilização consiste, segundo Baudelaire,
dans la dimin11ition du péché or:iginet. 30 B<audclaire>

11(161)
Le français est un animal de basse-cour si bien domesti-
qué, q11 'il 11 'osefra11chir aucu11e palissade. B<audelaire>-3 1
C'est 11n animal de race /atine: l'ord11re ne /ui déplaít pas,
dans son domicile, et, en liltéraiure, il est scatophage. li ra}J'ole
des excréme11ts... B<audelaire>-3 2

11 (162)
Tartufo. Não uma comédia, mas um panfleto. Um ateu,
se ele for por acaso um homem de boa educação, pensará, em
relação a essa peça, que não se devem oferecer certas questões
dificeis à canalha. B<audelaire>

29 N.T.: Em francês no original: os Jamares no restaurante de Magny. Trota-se


de um restaurante parlense famoso por abrigar vários literatos no final do
século XIX.
30 N,T.: Em fran9ês no original: a diminuição do pecado original.
31 N.T.: Em francês no original: O francês é um animal adestrado tão bem
domesticado que não ousa pular nenhuma cerca.
32 N.T.: Em francês no original: Tratasse de um animal de raça latina: a sujeira
n3o o desagrado, cm suo coso, e, em termos de llteraturo, ele é cscotófo•
go. Ele adora excrementos.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 63

11 (163)
Em relação a Petrõnio, Baudelaire fala de ses terrifiantes
impuretés, ses boujfoneries attristantes3l
Absurdo: mas sintomático...

11 (164)
genus irritabile vatum 3'

11 (165)
Como Trimalquion, que l.impa suas mãos nos cabelos de
seus escravos...

11(166)
Livres vécus, poemes vécus.l'

11 (167)
Byron: falastrão. Mais en revanche, ces sublimes défauts,
q11i font /e grand poete: la mélancholie, toujours inséparable du
sentiment du beau, et une personnalité ardente, diabo/ique, un
esprit salamandrin.36

11 (168)
"... il n 'y a de grand parmi les hommes que /e poete, /e prêtre
et /e soldar: l'homme q11i chante, l'homme q11i bénit, l'homme q11i
sacrifie et se sacrifie. Le reste n 'est /ait que pour/ouet..."31

33 N.T.: Em franch no original: suas terrivels Impurezas, suos bufonadas en•


trlstecedoras.
34 N.T.: Em latim no original: o gênero Irritável dos poetas.
35 N.T.: Em francês no original: Livros vividos, poemas vividos.
36 N.T.: Em franoês no original: Mas, em contrapartida, temos esses defeitos
sublimes que fazem o grande poeta: a melancolia, sempre Inseparável do
sentimento do belo, e uma personalidade ardente, diabólica, um espírito
salamandrino.
37 N.T.: Em francês no original: não há, nado de grande entre os homens senão
o poeta, o padre e o soldado: o homem que canta, o homem que abençoa e o
homem que sacrifica e se saalflca. O resto não serve scnfto para o chicote ...
64 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (169)
"li II y a de gouverneme111 raisonnable et assuré que
l'aristocratique. Monarchie ou république, basées sur la démo-
cratie, sonl égalemenl absurdes etfaibles. "38

11(170)
"avant tout être un gran.d homme et un saint pour soi
méme."39

11 (171)
"Dieu est le seu/ être qui, po11r régner, n 'a même pas be-
soin d 'exister. """

11 (172)
Para a teoria da "entrega"...
L 'amour, e 'est /e go11t de la prostit11tion. /1 n 'est même
pas de plaisir noble, quine puisse êlre ramené à la pros/ilulion.
L'étre /e plus prostihlé, c'est /'étre par excellence, c'est Dieu.
Dans un spectacle, dans un bal chacun Jouit de tous. Qu 'est-ce
q11e l'art ? Prostitution
L 'amour peut dériver d'1111 sentime111 généreux: le goút de
la pros1i111tion. Mais il est bientôt corromp11 par le goíit de la
propriété."

38 N.T.: Em francês no original: Nilo há nenhum governo racional e seguro


senão o governo aristocrático. Monarquia ou república, baseadas na dl!-
mocracla, são Igualmente absurda$ e fracas.
39 N.T.: Em francês no original: antes de tudo ser um grande homem e um
santo para .sl mesmo.
40 N,T.: Em francês no original: Deus é o único ser que, para reinar, não há
nem mesmo necessidade de exls!l'r.
41 N.T.: Em francês no original: O amor é o gosto da prostituição. Não há nem
mesmo prazer nobre que nfo possa ser reduzido /J prostituição. O ser
mai s prostltuldo é o ser por excelência : Deus. Em um espeMculo, cm um
baile, cada um goza de todos. O que é a arte? Prostltulçllo / O amor pode
se derivar de um sentimento generoso: o gosto pela prostituição. Mas ele
é cedo corrompido pelo gosto da IP"OPrledade.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 65

11 (173)
De lafeminéité de /'église comme raison de son omnipuis-
sance.'2

11 (174)
O fato de o amor equivaler ã tortura ou a uma operação cirúr-
gica. O fato de um dos dois ser sempre o carrasco ou o operador.
Perguntou-se na presença de Baudelaire: em que consiste
o maior prazer do amor? Um respondeu: no receber; outro: no
dar-se. O segundo disse: volúpia do orgulho, o primeiro: volúpia
da humildade (vo/11pté d'humilité). Todos esses homens sórdidos
falavam como a imiratio Cristi. Por fim, apareceu um utopista
descarado, que afinnou que o grande prazer do amor consistiria
em formar cidadãos para a terra pátria.
Moi, )edis: la volupté unique et suprême de /'amour git
dans la certitude de faire /e mal. Et I 'homme et la femme savent,
de naissance, que dans /e mal se trouve toute volupté.' 3

11 (175)
Nós amamos as mulheres pelo fato de elas nos serem estra-
nhas. A imer les femmes intelligentes est 1111 plaisir de pédéraste."

11 (176)
A magreza é mais crua, mais indecente do que a gordura.

11 (177)
L 'enthou.riasme quis 'applique à autre chose que les abs-
tractions est un signe defaib/asse et de ma/adie.••

42 N,T.: Em francês no orlglnol: Da femlnllldade da Igreja tomo rat3o de sua


onipotência.
43 N.T.: Em francês no original: Eu digo: a única e suprema volúpia do amor
reside na cer1eu de later o mal. E o homem e a mulher sabem, de nas-
cença, que no mal se encontra toda volúpia.
44 N.T.: Em francês no original: Amar mulheros Inteligentes é um prazer de
pederasta.
45 N.T.: Em francês no original: O entusiasmo que se aplico o outro coisa que
n3o as abstrações é um sinal de lraqucu e de doença.
66 FRIEORICH NIETZSCHE

11 (178)
A oração. Connais donc les jouissances d'une vie âpre e/
prie, prie sans cesse. La priere est réservoir deforce.46

11 (179)
Os povos fazem tudo para não terem nenhum grande ho-
mem. Para existir, portanto, o grande homem precisa ter em mãos
uma força que é maior do que a força de resistência que é desen-
volvida por milhões de indivíduos.

11(180)
No que diz respeito ao so·no, aventure sinistre de tous les
soirs," pode-se dizer: os homens adormecem com uma ousadia
que seria incompreensível, se não soubéssemos que ela provém
da ignorância do perigo.

11(181)
Esses navios grandes e belos, oscilando sem serem notados
sobre a água calma, esses fortes meios de transporte, com um
gesto enfadado e falando de saudade, não nos dizem em uma
linguagem muda: "quando partimos pour /e bonheur?".48

li (182)
En politique, /e vrai sain t est ce/ui, qui fouette et tue /e
peuple, pour /e bien du peuple.' 9

li (183)
O belo, tal como Baudelaire o compreende (e Richard
Wagner-). Algo ardente e triste, um pouco inseguro, dando es-
paço para a suposição.

46 N,T.: Em francês no original: Conhece, então, as alegrias de uma vida rude


e reza, reza Incessantemente. A or~ção é um reservatório de força.
47 N.T.: Em francês no original: avenhua sinistra de todas as noites,
48 N.T.: Em franoês no original: para a felicidade.
49 N.T.: Em franoês no original: Em política, o verdadeiro santo é aquele que
flagela e mata o povo, para o bem do povo.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 67

li (184)
une tête séduisa111e et bel/e, une tête de femme, e 'est une
tête quifait rêver à /a/ois, mais d'une maniere confuse, de volup-
té et de tristesse; qui comporte une idée ccntraire, e 'est-à-dire
une ardeur, un désir de vivre, associés avec une amertume rejlu-
ante, comme venant de privation ou de désespérance. Le myste-
re. /e regrei sont aussi des caracteres du Beau.$1)

11 (185)
Uma bela cabeça de homem não precisa (a não ser talvez
aos olhos de uma mulher) conter essa ideia da volúpia que, em
um rosto de mulher, se mostra como uma provocação tanto mais
atraente quanto mais melancólico é esse rosto. Mas mesmo essa
cabeça terá algo ardente e triste, oriundo de necessidades espi-
rituais, de ambições, que são mantidas obscuras, a ideia de um
poder que no fundo gronde" e não possui nenhuma aplicação,
por vezes a ideia d'une insensibi/iié vengeresse, 52 por vezes - no
caso mais interessante - o segredo e, por fim, /e malheur.jJ

11 (186)
Auto-ido/âtrie. Harmonia poética do caráter. Euritmia do
caráter e das capacidades. Conservar todas as capacidades. Faz.er
crescer todas as capacidades. Um culto.

11 (187)
O que encanta na mulher e constitui a beleza.

50 N.T.: Em francês no original: um rosto sedutor e belo, um rosto de mulher,


é um rosto que nos fut ao mesmo tempo sonhar, mas de uma manelra
confusa, por volúpia e por trlste:a; que comporta uma Ideia de melanco•
lia, de lassidão, mesmo de sociedade - ou uma Ideia contr4rla, ou seja, um
ardor, um desejo de viver, associados com um amargor refluente, como
vindo da prlvaç3o ou do desespero. O mistério, o arrependimento tam•
bém são características do belo.
51 N.T.: Em franoes no original: cresce.
52 N.T.: Em fronoês no original: uma lnsenslbllldodc vingativa.
53 N.T.: Em francês no original: a lnfellcldado.
68 FRIEDRICH NIETZSCHE

L 'air blasé. /'air ennuyé. l'air évaporé, I 'air impudent,


l 'air froid, l'air de regarder en deda11s, l 'air de domi11ation, /'air
de volonté, /'air méchant, /'air ma/ade, /'air chat, enfantillage,
non-chalance et malice mê/ées.s-.

11 (188)
Nos países protestantes làltam duas coisas que são indis-
pensáveis para a felicidade de um homem bem educado, la ga-
lanterie et la dévotion. 55

11 (189)
O elemento embriagante mo mau gosto: desagradar o pra-
zer aristocrático.

11(190)
O estoicismo, que s6 possui um sacramento: o suicídio...

11(191)
Lafemme est naturel/e, e 'est-à-dire abominab/e. Aussi est-
-el/e toujours vulgaire, e 'est-à-dire /e contraire d11 dandy. 56

11 (192)
li y a da11s rout cha11gement que/que chose d 'i11f{ime er
d 'agréable à la fois, quelq11e chose, qui tient de /'infidélité et d11
déménagement. 51

54 N.T.: Em franoês no original: O ar blasé, o ar entediado, o ar evaporado, o


ar Impudente, o arfrfo, o arde olhar para dentro, o ar de dominação, o ar
de votade, o ar cruel, o ar doente, o ar de gato, lnfantlllsmo, mistura de
Indolência e mallcla.
55 N.T.: Em francês no original: a galanteria e a devoção.
56 N,T.: Em francês no original: A mul her é natural, ou seja, abominável. Ela
também é sempre vulgar, ou seja, o contrário do dãndl.
57 N.T.: Em francês no original: Hd cm toda mudança algo de lnf3ml.l ede ogra•
dável ao mC$mo tempo, algo que wbc à lnfidelldodc e ao deslocamento.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 69

11 (193)
li y a de gens, qui ne peuvent s 'amuser qu 'en troupe. Le
vrai héros s 'amuse tout seu/. ss

11 (194)
Precisa-se uabalhar, se não por gosto, ao menos por deses-
pero, uma vez que, tudo bem pesado, trabalhar é menos entcdian-
te do que se divertir.

11 (195)
Quando ainda era bem criança, experimentei dois sen-
timentos contraditórios em meu coração: l 'horreur de la vie et
l 'extase de la vie. C'est bien lefait d'un paresseux nerveux. 59

11 (196)
Baudelaire diz de si mesmo: "De Maistrc e Edgar Poe me
ensinaram a raciocionar."
11(197)
A pena de morte, resultado de uma ideia mística, que é
hoje totalmente inconcebivel. A pena de morte não tem por meta
sauverm a sociedade, matériellement:61 ela quer sauver espiri-
tuel/ement62 a sociedade e o culpado. Para que a vitima seja per-
feita, é preciso que haja concordância e alegria por sua parte. Dar
cloroforme a um condenado à morte seria uma heresia: pois isso
subtrairia sa grandeur comme victime"1 e as chances de conquis-
tar o paraíso.

58 N.T.: Em francês no original: Há pessoas que nllo se divertem senllo em


bando. O verdadeiro herói se diverte completamente sozinho.
59 N.T.: Em francês no original : O horror da vida e o êxtase da vida. Trata-se
efetivamente de uma preguiça nervosa.
60 N.T.: Em francês no original: salvar.
61 N.T.: Em franoês no original: materialmente.
62 N.T.: Em francês no original: salvar esplrltualmente.
63 N.T.: Em francês no original: sua grandeza como vitima.
70 FRIEDRICH NIETZSCHE

No que diz respeito à tortura, ela provém da partie infãme du


coeur de/ 'homme,"' que tem sede de volúpia. Cruauté er vo/upté,6s
sensações idênticas, como o calor extremo e o frio extremo.

11 (198)
Ce qu 'il y a de vil dans une fo11ction quelconque.
Un dandy ne fait rie11. Vous figurez-vous un dandy parlanl
au peuple, excepté par /e bafouer?"'
Só há três seres respeitáveis: padres, guerreiros, poetas.
Savoir, tuer et créer.61
Os outros homens são taillables ou corvéables, faits pour
l 'écurie, e 'est-à-dire pour exercer ce qu 'on appelle des profes-
sions.68

11 (199)
Lafemme Sand foi uma moralista.
- el/e a lefameux style coulanL cher a,ix bourgeois.
- elle est la bête, elle est lourde, elle est bavarde.69 Nas
coisas relativas à moral a mesma profundidade do juizo,
a mesma delicadeza do sentimento, que os concierges et
les filies entretenues. 'º
- uma velha ingênua que não quer largar o osso
- ela se convenceu a se fier à son bon coeur et à son bon
sens71 e convenceu outras grandes bêtes a fazer o mesmo.

64 N.T.: Em francês no original: da parte Infame do coração do homem.


65 N.T.: Em francês no original: Crueldade e volúpia.
66 N.T.: Em francês no original: O que h,I de vil em uma função qualquer. /
Um dândl não faz nada. Vós sois capazes de Imaginar um dãndl falando ao
povo, exposto ao rldlculo?
67 N,T.: Em franoês no original: Saber.. matar e criar.
68 N.T.: Em francês no original: que podem se ver obrigados a pagar a tlllha
e a realliar a corvela, feitos para o curral, ou seJa, paro exercer aqulto que
denominamos profissões.
69 N.T.: Em francês no original: ela possui o famoso esr/lo corrente, caro aos
burgueses, / ela é estulta, pesada, tagarela.
70 N.T.: Em franoês no original: os po rtelros e as moças entretidas.
71 N.T.: Em francês no original: seu bom coração o seu bom-senso.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol, VII) 71

- não posso pensar nessa s rupide créaturen sem um frêmi-


to de horror.

11 (200)
Entedio-me na França, porque todo mundo quer ser ai igual
a Voltaire. Voltaire ou Antipoéte (esqueci-me de Emerson), le roi
de badauds, le principe des superficiels, l 'antiartiste, le prédica-
teur des concierges.13

11(201)
O escárnio de Voltaire sobrc a alma imortal que, durante
nove meses, reside entre excrementos e urina. Baudelaire desc-o-
brc nessa localização "une malice ou une satire de la Providence
contre l'amour et, dans le mode de la génération, un signe du
péché originei. Defait. nous ne pouvonsfaire l'amour qu'avec
des organes excrémentiels".14

11 (202)
Desinfecção do amor por meio da Igreja: o casamento.

11 (203)
Dandismo. Que é o homem superior? Ele não é nenhum es-
pecialista. C'est /'homme de loisir et d'éducation générale. Être
riche et aimer le travai/. ,s

11 (204)
Isso é entediante no amor'. ele é um crime, no qual não se
pode evitar ter um cúmplice.

72 N.T.: Em francês no original: estúpida erlatura.


73 N.T.: Em francês no original: Voltaire ou antlpoet.a, o rei dos basbaques, o
prlnclpe dos superficiais, o antiartista, o pregador dos porteiros.
74 N.T.: Em francês no original: uma mallcla ou uma sátira da providência
contra o amor e, sob o modo da geraç3o, um signo do pecado original. De
fato, nós não podemos fazer amor senão com os órgãos excremenclals.
75 N.T.: Em francês no original: to homem do ócio e da educação geral. Ser
rico e amor o trabalho.
72 FRIEORICH NIETZSCHE

11 (205)
Sí tu étais jesuite et révo/utionnaire, comme tout vrai poli-
tique doit l'être ou l'estfata/ement...16

11 (206)
Os ditadores são les domestiques du peuple, 77 nada mais; e
a fama é o resultado da adaptação -1 'adaptation d 'un esprit à la
sottise naliona/e78 -

11 (207)
Que é o amor? Uma necessidade de sair de si.
O homem é un animal adorateur. Adorer e 'est se sacrifier
et se prostituer. Aussi tout amour est-il prostitution.
L 'indestructible, éternelle, universe/1 et ingénieuse féroci-
té humaine. 79 Amor ao sangue, l'ivresse du sang. /'ivresse des
foules.,;,

11 (208)
N.B. Défions-nous du peuple, du bon sens. du caiu,; de
/ 'inspiration et de l'évidence.11
Como se pode deixar as mulheres entrarem na igreja? Que
tipo de conversa elas pOderiam ter com Deus?
l 'éternel/e Vénus (caprice, hystérie,fa111aisie) est une des
formes séduisantes du diable.82

76 N.T.: Em francês no original: Se tu fosses jesulta e revoluclonórlo como


todo verdadeiro polltlco deve ser e é fatalmente..•
77 N.T.: Em franoês no original: os criados do povo.
78 N.T.: Em francês no original: a adaptação de um espírito /J tolice nacional.
79 N.T.: Em francês no original: um animal adorador. Adorar é se sacrlflcar e
se prostituir. Todo amor também é prostituição. / A ferocidade humana
Indestrutível, eterna, universal e engenhosa.
80 N.T.: Em francês no original: febre do sangue, febre dos loucos.
81 N.T.: Em francês no original: Desconfiemos do povo, do bom-senso, do
coração, da Inspiração e da evidência.
82 N.T.: Em francês no original: A Vênus eterna (capricho, histeria, fontaslo) é
uma das formas sedutoras do diabo.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 73

11 (209)
No amor, l 'entente cordiale83 é o resultado de uma incom-
preensão. Ce malentendue c'est /e plaisir. 84 O fosso pennanece
sem ser ultrapassado.

11(210)
"Soyons médiocres!85" Sa'int-Marc Girardin, por um ódio
apaixonado contra /e sublime.

11(211)
Não se devem atribuir aos príncipes regentes os méritos e
os vícios do povo, que se encontra sob seu domínio. Esses méri-
tos e esses vícios pertencem quase sempre à a1mosfera do gover-
no precedente.
Luís XIV herda o povo de Luís XIII: gloire.86
Napoleão herda o povo da república: gloire.
Napoleão herda o povo de Luís Filipe: déshonneur. 81

11 (212)
Gosto inesgotável de la prostilution no coração do homem:
daí seu horreui& diante da solidão. -II veut être deux.'9
O gênio (l'homme de génle) veut être un, donc so/itaire.
La gloire, c'est rester un, et se prostituer d'ime maniere
particuliêre.90

83 N,T.: Em franoês no original: o entendimento cordial.


84 N.T.: Em francês no original: Esse mal-entendido é o pro1er.
85 N.T.: Em francês no original: Sejamos medíocres.
86 N.T.: Em francês no original: glória.
87 N.T.: Em franoês no original: desonra.
88 N.T.: Em francês no original: da prostituição/ horror.
89 N.T.: Em francês no original: Ele quer ser dois.
90 N.T.: Em francês no original: (o homem de gênio) quer ser um, portanto soll•
tArlo. / Aglória é permanecer um e se prostituir de uma maneiro particular.
74 FRIEDRICH NIETZSCHE

11(213)
C 'est ceue horreur de la so/itude, le besoin d 'oublier son
moi dans la chair extérieure, que I 'homme appelle noblement
besoin d 'aimer.9'

11 (214)
De la nécessité de battre lesfemmes. 92

11 (215)
O comércio é, segundo sua essência, satânico. le com-
merce, c'est le prêté-rendu, c'est /e prêt avec /e sous-entendu:
Remis-mo/ plus queje ne te donne,93
- O espírito de todo comerciante é completamente vicié.9".
- Le commerce est naturel, donc il est infãme.9•
- O menos infame dentre todos os comerciantes é aquele
que diz: sejamos vinuosos, a fim de ganharmos muito
mais dinheiro do que os tolos que são viciosos. Para o
comerciante, a própria honestidade é uma especulação
com vistas ao lucro.
- le commerce est sata11ique, parce qu 'il est une des for-
mes de l 'égoisme96 -

11(216)
Não é senão por meio de incompreensões que o mundo
todo se encontra em ressonância. Se as pessoas, infelizmente, se
entendessem, então elas nunca se compreenderiam.

91 N.T.: Em francês no original:~ esse horror pela solidão, a necessidade de


se esquecer de seu si pr6prfo na carne exterior, que o homem denomina
de maneira nobre a neC11ssldode de amar.
92 N,T.: Em francês no original: Sobre a necessidade de bater nas mulheres.
93 N.T.: Em francês no original: O comércio é a Justa represália, é o empréstl•
mo com o subentendido: devolva-me mais do que eu te dou.
94 N.T.: Em francês no original: viciado.
9S N.T.: Em francês no original: O comércio é natural, logo ele é Infame.
96 N.T.: Em francês no original: O comércio é sat~nlco, porque ele é uma das
formas do egoísmo.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 75

Um homem de espírito, ou seja, aquele que nunca se enten-


derá com alguém, precisa fazer um esforço para gostar de con-
versar com homens tolos e de ler livros ruins. Ele retirará dai um
prazer amargo, que o compensará amplamente pelas fadigas.

11 (217)
Um funcionário, um ministro- podem ser pessoas apreciá-
veis: mais ils ne sont jamais divins. 91 Pessoas sem personalidade,
seres sem originalidade, nascidos para a função, ou seja, pour la
domesticité publique. 98

11 (218)
Todo jornal fornece os sinais da mais tcrrivel perversidade
humana: 1m tissu d'horreurs.99 Com este dégoutant apéritif, 100 o ho-
mem civilizado toma o café da manhã. Tout, en ce monde, sue te cri•
me: te joumal, la muraille et te visage de l'homme. 'º' Como é que
uma mão pura pode tocar um jomal sem uma convulsão de nojo?
11 (219)
Sons la charité, je ne suis qu 'une cymbale retentissante."n

11 (220)
Mes humiliations ont été des grâces de Dieu. 103

11(221)
Je 11 'ai pas e11core connu Je plaisir d'un plan réalisé.'04

97 N.T.: Em franoês no original: mas eles nunca são divinos.


98 N.T.: Em franoês no original: para., domesticidade pública.
99 N.T.: Em francês no original: um tecido de horrores.
100 N.T.: Em fraMês no original: aperitivo enojante.
101 N.T.: Em francês no original: Tudo neste mundo tem o sabor do crime: o
jornal, a muralha e o rosto do homem.
102 N.T.: Em francês no original: Sem a caridade, eu nllo sou senão um dmba•
lo retumbante.
103 N.T.: Em francês no original: Minhas humllhaçl!cs foram as graças de Deus.
104 N.T.: Em franQês no O<ÍfJlnal: Alndo não conheci o prozcr de um pl.Jno rcalil'.óldo.
76 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (222)
Tout recu/ de la volonté est une pareei/e de substance
perdue.•0s

11 (223)
Como B<audelaire> que sentiu um dia /e vent de /'aí/e de
/ 'imbécilité 106 roçando a sua pele.

11 (224)
Pour guérir de 10111, de la misere, de la ma/adie et de la
mélancolie, il ne manque absolument que /e goilt du travail. •07

11 (225)
"Ridentem ferient ruinae" escrito em seu retrato.

11 (226)
L.
Ainda é bem recente a ideia por demais obscura e arbitrária
de que a humanidade possui uma tarefa conjunta, de que ela vai
como um todo ao encontro de uma meta qualquer. Talvez chegue-
mos a nos livrar dela, antes de ela se tomar uma "ideia fixa" ... Ela
não 6 nenhuma totalidade, esta humanidade: ela é uma pluralida-
de indissolúvel de processos vitais ascendentes e descendentes -
ela não possui uma juventude, em seguida uma maturidade e, por
fim, uma velhice. Em verdade, as camadas se acham misturadas
umas sobre as outras - e pode continuar havendo em alguns mi-
lênios tipos mais jovens de homens do que podemos apresentar
hoje. A décadence, por outro lado, pertence a todas as épocas da
humanidade: por toda parte, há matéria-prima para a expelição e

105 N.T.: Em francês no original: Todo recuo da vontade é uma parcela de


subst.\ncla perdida.
106 N,T.: Em franoês no original: o vento da vela da Imbecilidade.
107 N,T.: Em francês no original: Para se curar de tudo, da miséria, da doen•
ça e da melanoolla, não é absolutamente necess.!rlo senão o gosto pelo
trobolho.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 77

para o declínio; trata-se de um processo vital mesmo, a exclusão


das formas de decadência e lixo.

2.
Sob a força do preconceito cristão, não havia de maneira
alguma esta questão: o sentido residia na salvação da alma sin-
gular; a maior ou menor duração da humanidade não era consi-
derada. Os melhores cristãos desejavam que tudo chegasse ao
6m o mais rápido possivel: - não havia a menor dúvida quanto
ao que era necessãrio para o singular. A tarefa colocava-se agora
para todo singular, como em um futuro qualquer para um homem
do futuro: o valor, o sentido, a esfera dos valores era 6xa, incon-
dicionada, eterna, idêntica a Deus... Tudo aquilo que se desviava
desse tipo eterno era pecaminoso, diabólico, condenado ...
Para toda alma, o peso mais pesado (o fiel da balança) do
valor residia em si mesmo: salvação ou condenação! A salvação
da alma eterna! A mais extrema forma da mesmização ... Para to-
das as almas havia apenas um aperfeiçoamento; apenas um ideal;
apenas um caminho para a redenção ... A mais extrema forma da
igualdade de direitos, articulada com uma ampliação otimis-
ta da própria importância até o disparate... Almas importantes
de uma maneira completamente absurda, girando em tomo de si
mesmas com um medo horrível...

3.
Pois bem, nenhum homem acredita mais nessa presunção ab-
surda: e nós filtramos a nossa sabedoria por meio de uma lente de
deSprezo. Apesar disso, permanece inabalado o hábito ótico de bus-
car um valor do homem a partir da aproximação a um homem ideal:
mantêm-se no fundo tanto a perspectiva da mesmização quanto a
igualdade de direitos ante o ideal. Em suma: acredita-se saber o
que, com vistas ao homem ideal, é a derradeira desejabilidade...
Essa crença, porém, é apenas a consequência de um hábi-
to corruptor descomunal produzido pelo ideal cristão: um ideal
que, sempre que se coloca cautelosamente à prova o "tipo ideal", é
imediatamente subtraído wna vez mais. Acredita-se, em primeiro
78 FRIEDRICH NIETZSCHE
............................................................ ,................................. .

lugar, que a aproximação em relação a um tipo é desejável; em se-


gu111io, acredita-se que se sabe qual o modo de ser desse tipo; em
terceiro, que todo desvio em relação a esse tipo é um retrocesso,
um bloqueio, uma perda de força e de poder... sonhar situações,
nas quais esse homem perfeito tem para si a maioria numérica
gigantesca: mesmo os nossos socialistas, mesmo os senhores uti-
litaristas não conseguiram levar esse sonho a um ponto mais ele-
vado. - Com isso, parece se inserir uma meta no desenvolvimento
da humanidade: em todo caso, a crença em um progresso rumo
ao ideal é a única forma na qual uma espécie de meta é pensada
hoje na história da humanidade. Em suma: transpôs-se a chegada
do "roino de Deus" para o futuro, para a Terra, para o elemento
humano - mas se manteve no fundo a crença no antigo ideal...

11 (227)
Para compreender:
O fato de toda decadência e de todo adoecimento terem
incessantemente colaborado com os juízos de valor conjuntos:
o fato de nos juízos de valor que se tomaram dominantes a dé-
cadence ter se tornado até mesmo preponderante: o fato de nós
não termos de lutar apenas contra os estados derivados de toda
a miséria atual em tennos de degeneração, mas o fato de toda a
décadence até aqui ter permanecido devedora, isto é, viva. Tal
errância conjunta da humanidade em relação aos seus instintos
fundamentais, tal décadence conjunta do julzo de valor é o ponto
de interrogação par excellence, o enigma propriamente dito, que
o animal "homem" apresenta ao filósofo -

11 (228)
Os tipos principais de pessimismo, o pessimismo da sen-
sibilidade (a sobrexcitação com uma preponderancia dos senti-
mentos de desprazer)
O pessimismo da "vontade cativa" (dito de outro modo: a
falta de forças bloqueadoras dos estlmulos)
O pessimismo da dúvida (: o pudor ante tudo aquilo que é
firme, ante todo pegar e tocar)
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 79

Os estados psicológicos pertinentes podem ser todos con-


juntamente observados em manicômios, ainda que com certo
exagero. O mesmo acontece com o "niilismo" (o sentimento per-
furante do "nada")
Mas onde pertence, porém, o pessimismo moral de Pascal?
o pessimismo metafisico da filosofia vedanta?
o pessimismo social do anarquista (ou de Shelley)?
o pessimismo compassivo (como o de Tolsto~ Alfred de
Vigoy)?
- todos esses não são igualmente fenômenos característicos
da decadência e do adoocimento?... Dar uma importância
excessiva aos valores morais, às ficções do "além", aos es-
tados sociais de emergência ou aos sofrimentos em geral:
todo e qualquer exagero como esse de um ponto de vista
particular já é em si um sinal de adoecimento. O mesmo
se dá com a preponderância do não em relação ao sim!
O que não pode ser confundido aqui: o prazer cm dizer e
em razer não oriundo de urna força e de uma tensão descomunais
do dizer sim - peculiar a todos os homens e épocas ricos e pode-
rosos. Por assim dizer, um luxo: do mesmo modo, uma forma da
coragem que se contrapõe ao medonho; urna simpatia pelo terrí-
vel e pelo questionável, porque se é, entre outras coisas, terrível e
questionável: o dionisíaco na vontade, no espírito, no gosto.

11 (229)
Leopardi se queixa, tem razões para se queixar: com isso,
porém, ele não pertence ao tipo perfeito do niilismo.

11 (230)
J'écris pour une dizaine d'âmes queje ne verrai pelll-être
jamais, mais que j 'adore sa11s les avoir vues. 'º' Stendhal.

108 N.T.: Em francês no original: Eu escrevo para uma dezena de almas que
talvez nunca venha a ver, mas que adoro sem tê-las visto.
80 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (231)
1844 e. Baudelaire dependente de Saint Beuve (Joseph De-
lorme) diz... Saint Beuve diz para ele: " Vous dites vrai, ma poésie
se rattache à la vótre. J 'avais goúté du mêmefruit ame,; plein de
cendres, aufond." 109

11 (232)
Baudelaire: ("Volupté" l'histoire d'Amaury)
et devant le miroir,j'ai perfectionné
/ 'art cruel, qu 'un démon, en naissanl, m 'a donné,
- de la douleur pour faire une volupté vraie -
d 'ensenglater son mal et de gratter sa plaie. "º

11 (233)
Concevoir u11 canevas pour une boujfonerie lyrique - et
traduire cela en un roman sérieux. Noyer le tout dans une at-
mosphére anormale et songeuse, - dans l 'atmosphére des grands
jours - Que ce soit que/que chose de berçant et même de serein
dans la passíon. - Régions de la poésie pure. 111 -

11 (234)
O desenvolvimento ulterior da humanidade segundo a re-
presentação de Baudelaire. Não que estivéssemos nos aproxi-
mando uma vez mais do estado selvagem, por exemplo, ao modo
da désordre boujfon 112 das repúblicas sul-americanas, nas quais,

109 N.T.: Em francês no original: Vós diteis a verdade, minha poesia se figa à
vossa. Provei do mesmo fruto amargo, cheio de cintas, no fundo.
110 N.T.: Em francds no original: Baudelaire: (•volvplo" o hlst6rlo de Amoury)
/ e diante do espelho, eu aperfeiçoei / a arte cruel, que um demõnlo, ao
nascer, me deu,/- da dor para fazer uma vohlpla verdadeira -/ de ensan•
guenta r seu mal e raspar sua ferida.
111 N.T.: Em francês no original: Conceber um esboço para uma bufonarla
lírica - e tradutl•la em um romanoe sério. Mergulhar tudo em uma atmos-
fera anormal e sonhadora- na atmosfera dos grandes d/os- que ha)a algo
de acalentador e sereno na paldo. -Regiões da poesia pura.
112 N.T.: Em fninoês no original: a desordem cômica.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 81

armas na mão, se procura comida entre as ruínas de nossa civi-


lização. Isso ainda pressuporia certa energia vital. A mecânica
nos americanizará de tal modo que o progresso atrofiarâ em tal
medida a parte espiritualizada em nós, que toda a insanidade, que
foi sonhada pelos socialistas, ficará aquém da realidade positiva.
Nenhuma religião, nenhuma propriedade; mesmo nenhuma revo-
lução mais. Não é nas instituições políticas que se mostrara a ru-
ína geral (ou /e progres universeJ: 113 os nomes importam pouco).
Será que preciso dizer que o pouco de política que resta se dé-
battra péniblemenr dans les étreintes de 1'animalité générale,11 '
e que os governantes políticos serão obrigados, para se manter e
para criar um fantasma de ordem, a se refugir em meios qui fe-
raient frissoner notre humanité actuelle, pourtant si endurciel '"
(Arrancando os cabelos) Então, o filho fugirá da família, com 12
anos, émancipé par sa précocité gloutonne, 116 a fim de se enri-
quecer, a fim de fazer concorrência ao seu pai infame,fondateur
et actionnaire d 'unjourna/, 111 a foz se difunde etc. - Então, mes-
mo as prostituas terJo uma sabedoria implacável, qui condamne
tout,fors /'argent, tout, même les erreurs des sensl 111 Então, tudo
aquilo que a virtude significa para nós será considerado enorme-
mente ridículo - tudo aquilo que não é ardeur vers Plutus. 119 A
justiça é vedada a cidadãos que não sabem produzir a sua felici-
dade etc. - avi/issement' 20 -
No que me diz respeito, a mim que sinto por vezes a pre-
sença do caráter ridículo de um profeta, sei que nunca encontrarei

113 N,T.: Em francês no original: o progresso universal.


114 N.T.: Em francês no original: se debaterá penosamente nos enlaces da
anlmalldade geral.
115 N.T.: Em francês no original: que fariam tremer a nossa humanidade atual,
no entonto, t6o endurecida,
116 N.T.: Em francês no original: emancipado por seu caráter precoce glutão.
117 N.T.: Em francês no original: fundador e acionista de um Jornal.
118 N.T.: Em francês no original: que condena tudo, afora o dinheiro, tudo,
me.smo os e"os dos sentidos.
119 N.T.: Em frnnc!s no original: ardor ,em direção a Plutão.
120 N.T.: Em francês no original: cnvlleclmcnto.
82 fRIEOR ICH NIETZSCHE

a.í la charité d'un médecin. 121 Perdido neste mundo deplorável,


coudoyé par les foules, 122 sou como um homem cansado, que,
olhando para trás, não vê nada, senão désabusement et amertu-
me'" em anos longos e profundos e que tem diante de si uma
tempestade na qual não há nada de novo, nem aprendizado nem
dor. Le soir, ou cet homme a volé à la destinée quelques hores de
plaisir - a noite, na qual esse homem roubou uma hora de prazer
ao destino - , bercé dans sa digestion, oublieux autant que possi-
ble du passé. contem du présenl et résigné à l 'avenir. enivré de
son sang-froid et de son dandysme, fier de n 'être pas aussi bas,
que ceux qui passem, il se dit, en contemplant la famée de son
cigare: "Que m'importe, oü vont ces consciences ?"124

11 (235)
Um pouco de ar puro! Este estado absurdo da Europa não
pode durar mais! Há algum pensamento por detrás dessa vaca chi-
fruda do nacionalismo? Que valor poderia ter, agora em que tudo
aponta para interesses maiores e conjuntos, incitar esse orgulho
malcriado?... E isso se autodenomina "estado cristão"! E na proJti•
midade da mais suprema crise a canalha dos capelões da corte!... E
o "novo império", fundado uma vez mais sobre a ideia mais gasta e
mais deSprezível do mundo, a igualdade dos direitos e dos votos ...
E isso em uma situação na qual a ausência de autonomia
espiritual e a desnacionalização saltam aos olhos e consistem em
um mútuo amalgamar-se e frutificar-se dos valores propriamente
ditos e do sentido da cultura atual!
A unificação econômica da Europa acontece necessaria-
mente - do mesmo modo, como reação, os partidos de paz ...

121 N.T.: Em francês no original: a caridade de um médico.


122 N.T.: Em francês no original: acotovelado pelos loucos.
123 N.T.: Em francês no original: desengano e amargura.
124 N.T.: Em francês no original: embalado em sua digestão, esquecido tanto
quanto possível do passado, contente com o presente e resignado em relação
ao futuro, embriagado com seu sangue frio e com seu dandismo, confiante
de n3o ser tão babco quanto aqueles que passam, ele se dl:, contemplando a
fumaça de seu cigarro: •que me Importa para onde vão essas consdênclas?•
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 83

A luta por um primado no interior de um estado que não


serve para nada: essa cultura das grandes cidades, dos jornais, da
febre e da "ausência de metas".

11 (236)
Um partido de paz, sem sentimentalidade, que proíbe a si
e a seus filhos de realizar gueITaS; que proíbe que se sirva de
tribunais; que provoca a luta, a contradição, a perseguição contra
si; um partido dos oprimidos, ao menos por um tempo; logo o
maior de todos os partidos. Opositor em relação aos sentimentos
de vingança e aos sentimentos nostálgicos.
Um partido de guerra, com o mesmo caráter principiai e
com o mesmo rigor, procedendo em relação a si mesmo na dire-
ção contrária.

11 (237)
Budismo e cristianismo: luta com o ressentimento.

11 (238)
Supressão da "pena". O "equilíbrio" no lugar de todos os
meios da violência.

11 (239)
O cristianismo originário é a abolição do Estado:
Ele proíbe o juramento
o serviço militar
os tribunais
a autodefesa e a defesa de qualquer totalidade
a diferença entre companheiros de povo e estrangeiros; as-
sim como a ordem de classes.
O modelo do Cristo: ele não sente repugnância por aqueles
que lhe fazem mal (ele proíbe a defesa); ele não se defende; ele
faz mais do que isso: "ele oferece a outra face" (à questão "tu és
o Cristo?" ele responde "e a partir de agora vós vereis etc.")
- ele pro!be que seus discípulos o defendam; ele chama a aten-
ção para o fato de que ele poderia ter ajuda, mas não o quer.
84 FRIEDRICH NIETZSCHE

- o cristianismo também é a abolição da sociedade: ele


privilegia tudo aquilo que é repudiado por ela, ele cres-
ce a partir dos mal-afamados e condenados, dos exclu-
!dos de todo tipo; ele cresce a partir dos "pecadores",
dos "alfandegãrios" e prostitutas, do povo mais estúpido
possível (dos "pescadores"); ele desdenha os ricos, os
eruditos, os nobres, os virtuosos, os "corretos"...

11 (240)
Sobre o problema psicológico do cristianismo
A força impulsionadora continua sendo: o ressentimento,
o levante popular, o levante daqueles que desvalidos
(com o budismo as coisas são diversas: ele não nasceu de
um movimento do ressentimento. Ele combate o mesmo, porque
ele impele à ação)
esse partido de paz compreende que a realização da re-
núncia à hostilidade em pensamentos e ato é uma condição de
diferenciação e conservação
: ai está a dificuldade psicológica, que impediu que se en-
tendesse o cristianismo.
O impulso que ele criou impõe um combate a si mesmo -
É só como partido da paz e da inocência que esse movi-
mento insurrecto possui uma possibilidade de sucesso: ele preci-
sa vencer por meio da ternura extrema, da doçura, da mansidão,
seu instinto compreende isto -
Artificio: negar, condenar o impulso que se é, expor constante-
mente a contraparte desse impulso por meio da ação e da palavra -

11 (241)
Um direito à existência, ao trabalho, à felicidade!!!

11 (242)
Un doux rê11e du "charmant docteur""'- Renan

125 N,T,: Em francês no original: O doce sonho do "charmoso doutor•.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 85

11 (243)
Os cristãos nunca praticaram as ações que lhes foram pres-
critas por Jesus: e o falatório descarado sobre a "fé" e sobre a 'jus-
tificação por meio da fé", assim como sua significação suprema e
única, é apenas a consequência do fato de a Igreja não ter tido nem
a coragem nem a vontade de se entregar às obras que Jesus exigia.

11 (244)
O budista age de maneira diversa do não budista; o cristão
age como todo mundo e possui um cristianismo das cerimônias
e dos afetos -

11 (245)
A profunda e desprezível mendacidade do cristianismo na
Europa: nós merecemos realmente o desprezo dos ãrabes, dos
hindus e dos chineses... Escutam-se os discursos do primeiro
estadista alemão sobre aquilo que vem ocupando propriamente
a Europa agora há 40 anos ... escuta-se a linguagem do tartufo
capelão da corte.

11 (246)
- não resistir "ao mal"...
Mas, se não acreditamos em bem e mal, o que isso signi-
fica, afinal?

11 (247)
- o antigo direito, que resiste ao mal e paga o mal com o
mal, e o novo, que não paga, que não se defende

11 (248)
- S6 melhora, quando se paga tudo o q11e há de ruim com
algo bom - e não faz mais nenhuma diferença da pessoa

11 (249)
Jesus nega Igreja, Estado, sociedade, arte, ciência, cultura,
civilização
86 FRIEDRICH NI ETZSCHE

Todos os sábios negaram do mesmo modo em seu tempo o


valor da cultura e da organização estatal. -
Platão, Buda,

11 (250)
Precisamos destruir esse templo e construí-lo novamente
em três dias.

11 (251)
Não fui cristão nem mesmo um único segundo de minha
vida: considero tudo o que vi como cristianismo como uma am-
biguidade desprezível das palavras, uma verdadeira covardia em
relação a todos os poderes que se mostram de outro modo como
dominantes...
Cristãos que falam do serviço militar universal obriga-
tório, do direito parlamentar ao voto, da cultura do jornal e,
cm meio a tudo isso, do "pecado", da "redenção", do "além"
morte na cruz -: como é que se pode suportar viver em uma tal
economia suja!

11 (252)
Vós todos não tendes a coragem de matar um homem ou
mesmo apenas de chicoteá-lo ou mesmo apenas - mas a loucu-
ra descomunal no Estado se apodera do sinb'lllar, de modo que
ele rejeita a responsabilidade por aquilo que ele faz (obediência,
compromisso etc.)
- Tudo o que um homem faz a serviço do Estado vai contra
a sua natureza...
- do mesmo modo, tudo o que ele aprende com vistas ao
futuro serviço no Estado vai contra a sua natureza
Isso é alcançado por meio da divisão do trabalho: de modo
que ninguém possui mais toda a responsabilidade.
: o legislador e aquele que aplica a lei
: o mestre da disciplina e aquele que se tomou duro e rigo-
roso na disciplina
O Estado como a violentação organizada ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 87

11 (253)
O fato de Jesus ter dito algo, tão obscuro e místico que pre-
cisa da fé, mesmo que se possa apenas tomã-lo por verdadeiro:

11 (254)
"o que é elevado entre os homens é um horror diante de
Deus".

11 (255)
O estado intelectual da EW'opa: nosso barbarismo
o disparate desprezível e mesquinho de uma continuação
do particular: um ponto de vista,. para além do qual se encontram
os hindus, os judeus e os chineses
a féem Deus

11 (256)
A entrada na vida verdadeira -
- salva-se a sua vida pessoal da morte, na medida em que
se vive a vida u11iversal -

11 (257)
- a igreja é eitatamente aquilo contra o que Jesus pregou -
e o que ele ensinou seus. discípulos a combater.

11 (258)
- a reciprocidade, a intenção velada de querer ser pago:
uma das fonnas mais insidiosas de rebaiitamento do ho-
mem. Isso traz consigo aquela "igualdade" que avalia o
fosso da distância como imoral...

11 (259)
- não se tem direito algum, nem à eitistência, nem ao traba-
lho, nem à "felicidade": as coisas não se comportam em
relação ao homem singular de maneira diversa do que
em relação ao verme mais inferior.
88 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (260)
- "o que fazer para acreditar?" - uma questão absurda.

11 (261)
O que falta no cristianismo é a observação de tudo aquilo
que o Cristo mandou fazer.
Ele é a vida mesquinha, mas interpretada com um olho do
desprezo

11 (262)
Deus criou o homem feliz, ocioso, inocente e imortal: nos-
sa vida real é uma existência falsa, decaída, pecaminosa, uma
ellistência de punição... O sofrimento, a luta, o trabalho, a morte
são avaliadas como objeções e pontos de interrogação em relação
à vida, como algo não natural, algo que não deve durar; algo con-
tra o que se precisa de remédios - e contra o que se os tem! ...

11 (263)
A humanidade acha-se desde Adão até hoje em um estado
anormal: Deus mesmo ofereceu seu filho pela culpa de Adão, para
põr um fim a esse estado: o caráter natural da vida é uma maldição;
Cristo devolve àquele que acredita nele o estado nonnal: ele o toma
feliz, ocioso e inocente. - Mas a terra não começou a se tomar fru.
ti fera sem trabalho; as mulheres não dão a luz às crianças sem dor,
a doença não cessou: os mais crentes acham-se nesse ponto tão mal
quanto os mais descrentes. Com a única diferença de que a Igreja
afirmou tanto mais deterrninadamenre que o homem se livraria com
isso da morre e do pecado, afirmações que não admitem nenhum
controle. "Ele está livre do pecado" - não por meio de sua ação,
não por meio de uma luta rigorosa conduzida por sua parte. Ao
contrário, ccmpra-se a sua liberdade por meio do ato da redenção
- consequenremente de maneira perfeita, inocente, paradisíaca...
A vida verdadeira é apenas uma crença (isto é, uma autoi-
lusão, uma loucura). Toda a existência real, combativa, guerreira,
cheia de brilho e trevas é apenas uma existência ruim, falsa: a
tarefa é ser redimido dela.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 89

11 (264)
A religiãofa/sijicou a concepção da vida: a ciência e a filo-
sofia nunca se fizeram senão servas dessa doutrina ...
Quer se acredite ou não em Cristo ou em Adão: concorda-
-se que a vida seria apenas uma .ilusão, nada verdadeiro, real -

11 (265)
A vida é ruim: mas não depende de nós tomá-la melhor. A
transforma.ção parte das leis que se acham fora de nós. - O deter-
minismo da ciência e a crença no ato da redenção encontram-se
aí no mesmo solo.
O mesmo vale para o fato de eles concederem ao homem
um direito à felicidade; o fato de eles condenarem com esses
critérios a vida atual -

11 (266)
Todos pergunlllm: "por que a vida não é tal como deseja-
mos e quando ela o será?"

11 (267)
N.B. "o homem, inocente,, ocioso, imortal, feliz" - é essa
concepção da "mais elevada desejabilidade" que precisa ser an-
tes de tudo criticada.
Por que a culpa, o trabalho, a morte, o sofrimento (e, falan-
do em termos cristãos, o co11hecime11to ... ) são co11trários à mais
elevada desejabilidade?
Os pérfidos conceitos cristãos "venturança" "inocência",
"imortalidade" - - -

11 (268)
A "paz dos homens entre si": como o mais elevado bem
pensável: o reino de Deus

11 (269)
estai em paz com todo mundo, não considereis ninguém
como se fosse um nada ou como se fosse insano! Se a paz for
90 FRIEDRICH NIETZSCHE

ferida, fazei de tudo para reproduzi-la. A veneração de Deus


acha-se totalmente na eliminação da inimizade entre os homens.
Reconciliai-vos junto à menor discussão, a fim de não perder a
paz interior que é a vida verdadeira. O que turva sobretudo a
paz? Por um lado, os desejos sexuais: contra isso a monogamia e,
em verdade, indissolúvel. A segunda tentação é o juramento: ele
coloca o homem em pecado: não faça a ninguém em circunstân-
cia alguma um juramento, para que tu não tenhas nenhum senhor
sobre ti além de Deus. A terceira tentação é a vingança, que se
chama justiça: suportai as intempéries e não retribuís o mal com
o mal! A quarta tentação é a distinção entre os concidadãos e os
estrangeiros; não quebrais com ninguém a paz com base em vos-
sa nacionalidade e origem!
A prática desses cinco comandos produz o estado ao qual
aspira o coração humano: todos irmãos entre si, cada um cm paz
com todos os outros, cada um d.esfrotando dos bens da terra até
o seu fim ...
Luc. TV, 18
"o ano agradável do senhor" - as palavras gentis que saiam
de sua boca-

11 (270)
O homem não tem direito a nada, ele tem compromissos
com as boas ações que ele recebeu: ele não pode contar com nin-
guém. Mesmo que ele desse sua vida, não devolveria tudo o que
recebeu: por isso, seu Senhor niio pode ser injusto para com ele.
Mas, se o homem faz va.ler o seu direito à vida, se ele conta com
o princípio de tudo, de onde ele tem a vida, ele s6 demonstra uma
coisa - ele não compreende o sentido da vida. Os homens, depois
de terem recebido uma boa ação, ainda exigem outra coisa. Os
trabalhadores da parábola achavam-se em uma situação ociosa,
infeliz: o Senhor deu-lhes a mais elevada felicidade da vida - o
trabalho. Eles acolheram a boa ação e continuaram insatisfeitos.
Eles chegaram com a sua falsa teoria sobre o direito ao trabalho,
consequentemente com um pagamento pelo trabalho. Eles não
compreendem que receberam o mais elevado bem de graça, que
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 91

eles têm de se mostrar reeonhecidos por isso - e não exigir um


pagamento. Mateus XX, 1 Luc. 17, 5, 1O.
A doutrina consiste na renúncia à vida pessoal: e vós exigis
a fama pessoal - um pagamento pessoal... No mundo, hã fama
e pagamento pessoal; vós, meus discípulos, deveis saber que o
verdadeiro sentido da vida não se acha na felicidade pessoal, mas
no fato de se servir a todos e de se rebaixar diante de todos. O
Cristo não lhes aconselha a acreditar: ele lhes ensina a verdadeira
distinção entre bem e mal, importante e secundário...
Pedro não entende a doutrina: por isso a sua falta de crença. O
pagamento proporcional ao trabalho só tem uma imponância com
vistaS à vida pessoal. A crença no ·pagamento pelo trabalho, em pro-
porção ao trabalho, é uma consequência da teoria da vida pessoal...

11 (271)
A fé não pode vir da confiança em suas palavras: ela só
pode vir da compreensão de nossa situação. Não se pode criá-la
por meio da promessa de recompensa e de punição - a fé "remove
montanhas" só pode se fundar na consciência de nosso naufrágio
inevitável, se não aceitarmos a salvação que ainda se acha aberta
para nós ... - a vida conforme a "'°ntade do senhor -

11 (272)
Mateus 21, 18
- mas quando ele pela manhã foi uma vez mais à cidade,
ele sentia fome. E ele viu uma figueira no caminho, foi para lã
e não encontrou nada além de folhas. Assim, ele fa lou para a fi-
gueira: que a partir de agora não nasça nunca mais nenhum fruto
de ti. E a figueira secou imediatamente. E como os disc!pulos vi-
ram o que tinha acontecido, eles se espantaram e falaram: como
é que a figueira secou tão rãpido? -

11 (273)
Os cinco mandamentos: Tião vos zangais; não cometeis
adultério; não prestais nenhum juramento; não vos defendeis por
meio da força; não entrais em guerra: vós podeis, por um ins-
92 fRIEOR ICH NI ETZSCHE

taote, falhar em relação a esses mandamentos como vós falhais


em relação aos artigos do código civil e do código mundano. No
entanto, em momentos de paz, vós não fareis então o que fazeis
agora: vós não organizareis uma existência que tome tão difícil a
tarefa de não se zangar, de não cometer adultério, de não jurar, de
não se defender com violência, de não entrar em guerra. Organi-
zai-vos antes uma existência que tornaria difícil fazer isto!

11 (274)
Para esta vossa vida atual - diz T<olstoi> aos descrentes, aos
filósofos - vous n 'avez actue//em ent aucune régie, saufcelles. qui
sont redigées par des hommes qui vous n 'estimez pas et mises en
vigueur par la police. La doctrine de Jésus vous donne ces régles,
qui, assurément, sont d 'accord avec votre loi, parce que votre /oi
de "l'al1111isme" ou de la volonté unique n 'est pas autre chose
qu 'une mauvaise paraphrase de cette même doctrine de Jésus.
Tolsiol, ma religion. 1UI Moscou, 22 de janeiro de 1884.

11 (275)
Nenhum Deus morreu por nossos pecados; não há nenhuma
redenção pela fé; nenhuma resswreição depois da morte - todas
essas coisas são falsificações do próprio cristianismo, pelas quais
se precisa responsabilizar aquele ser incuravelmente obtuso;
A vida modelar consiste no amor e na humildade; na pleni-
tude do coração, que também não exclui os seres mais baixos; na
recusa formal ao querer ter razão, à defesa, à vitória no sentido
do triunfo pessoal; ela consiste na fé na bem-aventurança aqui,
na terra, apesar da miséria, da adversidade e da morte; na reeon-
ciabilidade, na ausência da ira, do desprez.o; não querer ser re-

126 N.T.: Em francês no orlglMI: vós não possuis atualmente nenhuma regra,
a não ser aquelas que são redigidas por homens que vós n3o apreciais e
postas em vigor pela policia. A doutrina de Jesus vos dá essas regras que,
certamente, estllo de acordo com a vossa lel, porque vossa lei do •attru•
Ismo• ou da vontade única não é outra coisa senão uma paráfrase ruim
dessa mesma doutrina de Jesus./ Tolstoi, minha religião,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 93

compensado; não ter se vinculado a ninguém; ela implica a mais


intensa ausência de senhores eclesiástico-espirituais; uma vida
muito orgulhosa sob a vontade dia vida pobre e serviçal.
Depois de a Igreja ter se apossado de toda a prática cris-
tã e sancionado de maneira totalmente própria a vida no Esta-
do, aquele tipo de vida que Jesus tinha combatido e condenado,
ela precisou transpor o sentido do cristianismo para outro lugar
qualquer: para a crença em coisas que não são dignas de serem
acreditadas, para o cerimonial da oração, do louvor, festa etc. Os
conceitos de "pecado", "perdão", "castigo", "recompensa" - to-
dos completamente insignificantes e quase excluídos do primeiro
cristianismo ganham agora o primeiro plano.
Uma mistura horrivel de filosofia grega e judaísmo: o
ascetismo; o julgamento e a condenação constantes; a ordem
hierárquica; - - -

11 (276)
Se não se compreende que a Igreja não é apenas a carica-
tura do cristianismo, mas a guerra organizada contra o cristia-
nismo: - - -

11 (277)
Tolstoi, p. 243
"La doctrine de Jésus ne peut pas contrarier en aucune fa-
çan /es hommes de narre siecle sur /eur maniére d'envisager /e
monde; elle est d 'avance d'accoro avec leur métaphysique, mais
elle leur danne ce qu'ils n 'ont pas, ce qui /eurs est indispensable et
ce qu 'ils cherr:hent: elle /eur donne /e chemin de la vie, non pas un
chemin inconnu, mais un chemin expioré e/ familíer à chacun ...,2:1

127 N.T.: Em francês no original: A doutrina de Jesus nllo pode contrariar de


modo algum os homens de nosso século sobre a maneira de considerar o
mundo; ela estl! de antemão de acordo com a sua metafisica, mas ela lhes
dá o que eles não possuem, o que thes é Indispensável e que eles buscam:
ela lhes dá o caminho da vida, nã.o um caminho desconhecido, mas um
caminho explorado e famlllar a cada um.
94 FRIEDRICH NIETZSCHE

p.236
L 'an1ago11isme e111re /es explicalions de l'Église, qui pas-
sent pour la foi, et la vrai foi de notre généralion, qui consiste
à obéir aux /ois sociales et à ce//e de 1'État, est entré dans une
phase aiguii, et la majorité des gens civilisés n 'a pour régler sa
vie que la foi dons /e sergent de vil/e e/ la ge11darmerie. Cette si-
tuation serait épouvantable. si elle était complétement telle: mais
heuresement i/ y a des gens, les mei/leurs de notre époque, qui
ne se conte/1/ent pas de cette religion, mais qui ont u11e foi toute
différente, re/ativement à ce que doit étre la vie des hommes. Ces
hommes sont considérés comme les plus malfaisants, les plus
da11gereux et pri11cipalement /e plus incroya11ts de tous les étres:
et pourtant ce s0111 les seules hommes de notre temps croyant à
la doclrine évangélique, si ce n 'est pas dans son ensemble, au
moi11s en partie... Souvent même ils haissent Jésus ... On aura
beau les persécuter et les calomnier, ce sont les seuls. qui ne se
so11met11mt point sans prctester aux ordres d11 premir wm11: par
conséquent, ce sont les seuls à notre époque, qui vivent d'une vie
raisonnée, 11011 pas de la vie a11imale; ce s0111 /es seuls. qui aient
delafoi. m

128 N.T.: Em francês no original: O anuigonismo entre as explicações da Igreja


que passam pela fé e a verdadeira fé de nossa geração que consisto em
obedecer às leis sociais e bs leis do Estado entrou em uma fase aguda, e
a maioria das pessoas clvllltadas não tem como ordenar sua vida senão
por melo da fé no agente de polícia e na guarda republicano. Essa situação
seria espantosa, se fosse completamente assim; mas, felizmente, há pes•
soas, as melhores de nossa époa,, que se contentam com essa religião,
mas que possuem uma fé totalmente diversa, no que concerne àquilo
que deve ser a vida dos homMs. Esses homens são oonslderados os mais
daninhos, os mais perlsosos e principalmente os mais descrentes de to-
dos os seres; e, contudo, etes s3o ,os únicos homens de nosso tempo que
creem na doutrina evangélica, ainda que não em seu todo, ao menos cm
parte... Com frequência, mesmo eles odeiam Jesus... Por mais que possa-
mos persegui-los e c:.1lunlá•los, eles são os únicos que não se submetem
às ordens do primeiro que aparece; por conseguinte, eles são os únicos
em nossa época que vivem uma vi do racional; nllo a vida animal; eles são
os únicos que têm fé.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 95

11 (278)
N.B. Não hã como ter consideração suficiente por um ho-
mem, ao vermos como ele sabe se impor, se manter, aproveitar as
circunstâncias, derrubar adversârios; não obstante, por mais dis-
tante que queiramos lançar o nosso olhar em direção ao homem,
ele se mostra como a besta mais absurda ... Tudo se dá como se
ele precisasse de uma arena da covardia, da fraqueza, do adociea-
mento e da sujeição ao descanso para as suas virtudes fortes e vi-
ris: vede as desejabilidades humanas, os seus "ideais". O homem
desejante restabelece-se daquilo que é eternarnente valoroso nele,
de sua ação: no iniquo, absurdo, desprovido de valor, infantil. A
pobreza espiritual e a falta de inventividade são terríveis junto a
esse animal tão criativo e tão cheio de informações. O ideal é, por
assim dizer, a expiação que o homem paga pelo gasto descomu-
nal que tem de contestar em todas as tarefas reais e urgentes. Se
cessa a realidade, então vem o sonho, o cansaço, a fraqueza: "o
ideal" é precisamente uma forma de sonho, cansaço, fraqueza...
As naturezas mais fortes e mais poderosas equiparam-se, quando
esse estado se abate sobre eles: eles idolatram a interrupção do
trabal.ho, da luta, das paiJ<ões, da tensão, das contradições, da
"realidade", em suma ... do combate pelo conhecimento, do es-
forço do conhecimento
Inocência: assim eles chamam o estado ideal do emburre-
cimento
Bem-aventurança: o estado ideal da preguiça
Amor: o estado ideal do animal de rebanho, que não quer
ter nenhum inimigo
Com isso, tem-se tudo aquilo que rebaixa e avilta o homem
elevado ao âmbito do ideal

11 (279)
Jesus contrapõe uma vida real, uma vida na verdade,
àquela vida comum: nada lhe ê mais estranho do que um "Pe-
dro eternizado", do que uma eterna continuação pessoal. O que
ele combate é a arrogância da "pessoa": como é que ele poderia
querer eternizá-la?
96 FRIEDRICH NIETZSCHE

Ele combate do mesmo modo a hierarquia no interior da


comunidade: ele não promete uma proporção qualquer de paga-
mento relativo ao desempenho: como é que ele pode ter pensado
em um castigo e em uma retribuição no além!

11 (280)
Não vejo contra o que o levante comandado por Jesus es-
tava dirigido senão contra a Igreja judaica - Igreja entendida pre-
cisamente no sentido que compreendemos a palavra... Foi um
levante contra "os bons e os justos", contra a "sagrada Israel",
contra a hierarquia da sociedade - não contra a sua ruína, mas
contra a ti.rania da casta, do costume, da fórmula, da ordem, do
privilégio, do orgulho eclesiástico, do puritanismo no âmbito
eclesiástico- foi a descrença nos "homens superiores", a expres-
são entendida de modo eclesiástico, que conduziu aqui à indig-
nação, a um atentado contra tudo aquilo que diz respeito ao padre
e ao teólogo. A hierarquia, porém, que foi colocada assim em
questão, era a construção fundamental, sobre a qual continuava
subsistindo o povo judeu em geral, a últíma possibilidade ardua-
mente conquistada de continuar existindo, a relíquia de sua anti-
ga existência política particular: um ataque a essa possibilidade
foi um ataque ao instinto nacional mais profundo, à vontade de
autoconservação judaica. Esse santo anarquista, que conclamou
o povo mais baixo, os excluídos e "pecadores", a se opor ao "es-
tado dominante" - com uma linguagem que ainda hoje levaria
à Sibéria - , foi um criminoso político, até onde um criminoso
político ainda era possível sob tais circunstâncias. Isso o levou à
cruz: a prova disso é a inscrição na cruz: o rei dos judeus. Falta
toda base para que afirmemos com Paulo que Jesus morreu "pe-
los pecados dos outros"... ele morreu por seus próprios ''peca-
dos". Transposto para outras relações, por exemplo, para o meio
da Europa de hoje, o mesmo tipo de homem viveria, ensinaria
e falaria como niilista: e mesmo, nesse caso se ouviria por parte
de seu partido que o seu mestre teria morrido pela justiça e pelo
amor entre os homens - não por causa de sua inocência, mas por
causa de nossa culpa (- pela culpa das classes agora regentes: a
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 97

saber, na medida em que, para o,s anarquistas, governar jâ é con-


siderado uma culpa).

11(281)
Paulo, com um instinto para as necessidades dos não ju-
deus, traduziu aquele grande slmbolo do primeiro movimento
cristão no elemento palpãvel e não simbólico: por um lado, a par-
tir da oposição entre a vida verdadeira e a vidafalsa, ele construiu
a oposição entre essa vida terrena e aquela vida celestial no além,
para a qual a morte funciona como ponte (- ele a inseriu no movi-
mento do tempo, como agora e como um dia porvir-). Para esse
fim, ele roubou o coração do paganismo e assumiu a imortalida-
de pessoal, algo tão antijudeu quanto anticristão. Mas, em todo
mundo, onde havia cultos secretos, acreditava-se no prossegui-
mento da vida, e, cm verdade, sob urna perspectiva de pagamento
e castigo. Esse obscurecimento do paganismo por meio da sombra
da liquidação da culpa no além foi, por exemplo, o que Epicuro
combateu... O artifício de Paulo foi transformar exageradamente
a crença em que Cristo teria sido visto uma vez mais depois da
morte (isto é, os fatos de uma alucinação coletiva) em uma lógica
teológica, como se a imortalidade e a ressurreição fossem fatos
centrais e por assim dizer o fecbo da abóbada da ordem sagrada
de Jesus (- para tanto, toda a doutrina e toda a prática da antiga
comunidade precisou ser colocada de ponta-cabeça)
Esse é o tom humorístico da coisa, o tom dotado de um
humor trágico: Paulo erigiu uma vez mais cm grande estilo prc-
ci.samente o que Jesus tinha anulado por meio de sua vida. Por
fim, quando a Igreja ficou pronta, ela assumiu sob sua sanção até
mesmo a existência do Estado.

11 (282)
N.B.: uma abordagem ingênua de um movimento de paz bu-
dista, no cerne da proveniência do rebanho propriamente dito do
ressentimento... mas invertida por Paulo cm urna doutrina pagã
dos mistérios, que aprende por fim a se compatibilizar com toda a
organização estatal... e faz guerras, condena, tortura, jura, odeia.
98 FRIEDRICH NIETZSCHE

Paulo parte da necessidade de mistérios da grande multidão


religiosamente excitada: ele busca uma vítima, uma fantasmago-
ria sangrenta, que suporte a luta com as imagens do culto secreto:
Deus na cruz, o beber o sangue, a u11io mystica com a "vítima"
Ele procura inserir em uma ligação causal a continuação
da existência (a continuação bem-aventurada, desprovida de pe-
cados da alma singular) como ressurreição e aquela vítima (se-
gundo o tipo de Dioniso, Mitras, Osiris)
Ele precisa colocar no primeiro plano o conceito de culpa e
castigo, não uma nova práxis (como o próprio Jesus a mostrou
e ensinou), mas um novo culto, uma nova fé, uma fé cm uma
transformação milagrosa ("redenção" por meio da fé)
Ele compreendeu a grande necessidade do mundo pagão
e fez uma escolha completamente arbitrária dos fatos relativos
à vida e à morte de Cristo, acentuando tudo de maneira nova,
alterando por toda parte o fiel da balança... ele anulou de manira
principiai o cristianismo originário...
O atentado aos padres e teólogos desembocou, graças a
Pau.lo, em um novo sacerdotismo e em uma nova teologia - em
uma classe dominante, em uma Igreja também.
O atentado à arrogância desmedida da "pessoa" desembocou
na crença na "pessoa eterna" (no cuidado com a "salvação eterna"),
no exagero maximamente paradoxal do egoísmo pessoal.
Vê-se o que aconteceu com a morte na cruz. Como o de-
mônio do desangelho aparece Paulo ...

11 (283)
O fato de a nocividade de um homem já dever se mostrar
como uma objeção contra ele!. .. Como se não houvesse também
um lugar entre os grandes fomentadores da vida para o grande
• • l
cnmmoso ....
Deixamos os animais intocados com os nossos desejos; tam-
bém a natureza; mas os homens queremos simplesmente diversos ...
Os homens mais cxtraordinârios, supondo que seriam nc-
cessârias para o seu surgimento uma vontade, uma resolução,
uma votação, nunca seriam almejados ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 99

Compreendi ao menos o seguinte: se se tivesse tornado o


surgimento de homens grandes e raros dependente da concordân-
cia dos muitos (incluindo a.i o fato de que esses muitos saberiam
quais são as propriedades que pertencem ao grande e, do mesmo
modo, a que custo toda grandeza se desenvolve) - então, isso
jamais teria impedido um homem significativo ...
O fato de o curso das coisas tomar o seu caminho indepen-
dentemente da concordância da grande maioria: é por isso que algu-
mas coisas espantosas puderam se imiscuir furtivamente na terra ...

11 (284)
No Marrocos, as pessoas aprendem a Idade Média; na Cór-
sega, a história judaica e árabe do tempo de sua construção; na
arábia, a época patriarcal; - - -

11 (285)
Semir-se mais forte - ou, expresso de outro modo: a ale-
gria - sempre pressupõe uma comparação (todavia, não neces-
sariamente com outros, mas consigo, cm meio a um estado de
crescimento, sem que se soubesse primeiramente em que medida
se compara - )
- o fortalecimento artificial: seja por meio de uma química
estimulante, seja por meio de erros estimulantes ("aluci-
na.ções")
Por exemplo, o sentimento de segurança, tal como o cris-
tão o possui. Ele sente-se fone em seu poder ter confiança, em
seu poder ser paciente e sereno: ele deve esse fortalecimento ar-
tificial à ilusão de estar protegido por um Deus
Por exemplo, o sentimento de superioridade; por exemplo,
quando o califa do Marrocos só via globos terrestres, nos quais
os seus três impérios unificados tomavam 4/5 da superfície
Por exemplo, o sentimento de unicidade; por exemplo,
quando o europeu imagina que o curso da cultura se realiza na
Europa e quando ele parece para si mesmo como uma espécie de
processo mundial resumido; ou o cristão que faz toda a existência
em geral girar em torno da "salvação do homem" -
100 fRIEORICH NIETZSCHE

Tudo depende de onde se sente a pressão, a falta de liber-


dade: de acordo com isso vem ã tona outro sentimento relativo
ao ser mais forte. Em meio à ginâstica abstracional mais ousada
e transmontante, o filósofo sente-se como um peixe na água:
por outro lado, cores e sons o oprimem, para não falar dos dese-
jos abafados - para não falar da.quilo que os outros denominam
"o ideal".

11 (286)
Morfologia dos sentimentos próprios
Primeiro ponto de vista
A: em que medida os sentimentos compassivos e comu-
nitários formam o nivel mais baixo, preparatório. Por
vezes, ele se dá onde o sentimento próprio pessoal, a ini-
ciativa da instauração de valores no singular ainda não é
de modo algum possível
B: em que medida a grandeza do sentimento próp,•io cole-
tivo, o orgulho pela distância do clã, o sentir-se desigual,
a aversão em relação à mediação, à igualdade de direitos,
à reconciliação é uma escola do sentimento próprio sin-
gular: a saber, na medida em que ela obriga o singular a
representar o orgulho do todo... Ele precisa falar e agir
com uma consideração extrema por si, na medida em que
representa a comunidade em pessoa...
do mesmo modo: quando o indivíduo se sente como ins-
trumento e porta-voz da divindade
C: em que medida essas formas de perda de si próprio con-
ferem efetivamente à pessoa uma importância descomu-
nal: na medida em que forças mais elevadas se servem
delas: pudor religioso ante si mesmo é o estado do profe-
ta, do poeta...
D: em que medida a responsabilidade pelo todo atrai
<educa> e permite ao singular uma visão ampla, uma
milo rigorosa e terrível, uma prudência, uma ousadia e
uma grandiosidade da postura e dos gestos que ele não
se permitiria em virtude de si mesmo
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 101

Em suma: os sentimentos próprios coletivos são a grande


escola preparatória para a soberania pessoal
O estado nobre é aquele que herda esse exercício -

11 (287)
No conceito de poder, seja o poder de um deus, seja o po-
der de um homem, está sempre ao mesmo tempo contabilizada a
capacidade de usar e de prejudicar. Assim junto aos árabes; as-
sim junto aos hebreus. Assim junto a todas as raças fortalecidas.
Trata-se de um passo fatídico, quando se cinde dualistica-
mente a força para uma coisa da força para a outra ... Com isso, a
moral transforma-se em envenenadora da vida...

11 (288)
Meus amigos, hoje jã é preciso se arrastar com as quatro
patas por esse "estado" e gritar como um burro: é preciso fazer
com que a epidemia saiba que se é um asno - único meio de se
manter sem ser contaminado por essa loucura

11 (289)
Heva é a serpente: ela está na ponta da genealogia bíblica
(assim como a serpente também aparece com frequência junto
aos hebreus como nome próprio,)

11 (290)
O sentido da circuncisão é uma prova de masculinidade de
primeiro nível (um comprovante de maturidade antes que se pos-
sa casar): os árabes a denominam "desfloramento". A cena tem
lugar ao ar livre: o pai e os amigos se colocam à volta do jovem.
O tonsurador puxa a faca e, depois de seccionar o prepúcio, des-
poja o membro (as partes pudendas) de toda a pele, assim como
a barriga desde o umbigo até o quadril. O jovem agita ai com a
mão direita uma faca e grita: "corta sem medo!" Ai de o tonsador
hesitar e de sua mão tremer! No entanto, se o filho grita de dor,
o pai o mata imediatamente. Po:r fim, o jovem entoa uma gloria
Deo e se dirige para a barraca, onde cai no chão de dor. Alguns
102 fRIEORICH NI ETZSCHE

morrem de uma enorme supuração, de 10 pennanecem no máxi-


mo oito: os que ficam não possuem mais pécten e a sua barriga é
coberta por uma pálida pele. (junto aos Asir)

11(291)
bárbaro = não circuncisado é tanto judeu quanto árabe

11 (292)
O cristianismo não compreendeu a ceia: a communio pela
carne e a bebida, que se transubstanciam naturalmente em carne
e sangue -
Toda comunidade é comunidade de sangue. Essa comuni-
dade não é apenas inata, mas também adquirida; assim como o
sangue não é meramente inato, mas também é adquirido. Aqueles
que comem e bebem juntos renovam o seu sangue a partir da
mesma fonte, trazem o mesmo sangue para as suas veias. Um
estrangeiro, até mesmo um inimigo, que compartilha a nossa re-
feição (mesmo sem e mesmo contra a nossa vontade) é acolhido
por meio dai, ao menos por um tempo, na comunidade de nossa
carne e de nosso sangue.

11 (293)
Um gozo conjunto do sangue, o meio mais antigo da alian-
ça, o meio mais antigo de firmar um pacto. A sociedade da comi-
da é uma comunidade sacra). O animal que fornece o sangue da
aliança é uma vitima; o pacto é :firmado por meio dessa vitima.

11 (294)
O "cristianismo" tomou-se algo fundamentalmente diver-
so daquilo que seu fundador fez e daquilo que ele queria
Ele é o grande movimento antipagão da Antiguidade, for-
mulado com o aproveitamento da vida, da dout.rina e das "pala-
vras" do fundador do cristianismo, mas em uma interpretação
absolutamente arbitrária segundo o esquema de necessidades
fundamenta/mente diversas: traduzido na língua de todas aquelas
religiões subterrâneas já existentes -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 103

Ele é a emergência do pessimismo, enquanto Jesus quis


trazer a paz e a felicidade das ovelhas
: e, em verdade, o pessimismo dos fracos, dos inferiores,
dos sofredores, dos oprimidos
seu inimigo mortal é 1) o poder em termos de caráter, cspirito
e gosto; a ''mundaneidade", 2) a ..felicidade" clássica, a frivolidade
nobre e o ceticismo, o duro orgulho, o excesso excênbico e a ousada
autossuficiência do sábio, o refinamento grego em gestos, palavra e
forma - seu inimigo mortal é o romano tanto quanto o grego.
Tentativa do antipaganismo de se fundamentar e tomar
possível filosoficamente: faro para as figuras ambíguas da cul-
tura antiga, antes de tudo para Platão, esse anti-heleno e semita
por instinto... Do mesmo modo para o estoicismo, que é essen-
cialmente obra de semitas (- a "dignidade" como rigor, como lei,
a virtude como grandeza, autorresponsabilidade, como a mais
elevada soberania pessoal - isso é semjta:
o estoico é um xeique árabe enrolado nas fraldas e concei-
tos gregos

11 (295)
O cristianismo converteu desde o princípio o simbólico cm
crudezas:
1) a oposição entre "vida verdadeira" e vida "falsa": mal
compreendidas como "vida no aquém" e "vida no além"
2) o conceito de "vida eterna" como "imortalidade pesso-
al" em oposição à vida pessoal Ligada à perecibilidade
3) segundo o hábito arábico-hebreu, a confraternização
como gozo conjunto de comida e bebida se mostra como
"milagre da trans-substanciação"
4) a "ressurreição" - como entrada na "vida verdadeira",
como "renascimento" - por isso: uma eventualidade
histórica que entra em cena em algum momento depois
da morte
5) a doutrina do filho do homem como o "filho de Deus",
a relação vital entre homem e Deus - por isso: a "se-
gunda pessoa da divindade" - precisamente este ponto é
104 FRIEDRICH NIETZSCHE

eliminado: a relação do filho de todo homem com Deus,


mesmo do filho do homem mais inferior
6) a redenção por meio da fé, a saber: não há nenhum outro
caminho para a filiação de Deus senão a práxis da vida
ensinada pelo Cristo - o contrário se dá nas crenças em
que se pode acreditar em algum pagamento milagroso
pelos pecados, um pagamento que não é realizado pelo
homem, mas pela ação de Cristo
: com isso, o Cristo na cruz precisou ser reinterpretado.
Essa morte não foi em si de maneira alguma a coisa principal...
ela não passou de mais um sinal de como precisamos nos com-
portar em relação à autoridade, em relação às leis do mundo -
não nos defendendo... Aí estava o modelo.
O cri.stianismo só acolhe a luta que já existia contra o ideal
clássico, contra a religião nobre
De fato, toda essa transformação é uma tradução nas ne•
cessidades e no nível de compreensão da massa religiosa de ou-
trora: aquela massa que acreditava em Ísis, Mitras, Dioniso, "as
grandes mães", e que exigia uma religião
1) a esperança no além
2) a fantasmagoria sangrenta do animal sacrificial, "o
mistério"
3) o aro redentor
4) o ascetismo, a negação do mundo, a "purificação" su•
persticiosa
5) uma hierarquia, uma forma da cultura da comunidade
em suma: o cristianismo adapta-se ao antipaganismo já
existente encravado por toda p3lrte, aos cultos que são combati•
dos por Epicuro... mais exatamente, às religiões das massas infe•
riores das mulheres, dos escravos, das classes não nobres.
Portanto, temos como incompreensão:
1) a imortalidade da pessoa
2) o suposto 011/l'O mundo
3) a absurdidade do conceito de pena e do conceito de pe-
cado no centro da interpretação da existência
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 105

4) a desdivinização do homem ao invés de sua divinização,


a abertura do mais profundo fosso, que somente o mi-
lagre, somente a prostração do mais profundo desprezo
por si próprio ajuda a ultrapassar
5) todo o mundo da imaginação degradada e do afeto do-
entio, ao invés da práxis simples e afetuosa, ao invés de
uma felicidade budista alcançável na terra ...
6) uma ordem eclesiástica, com sacerdotes, teologia, culto,
sacramentos; em suma, 'tudo aquilo que Jesus de Nazaré
tinha combatido
7) o milagre em tudo e cm cada coisa, a superstição: en-
quanto o traço distintivo do judaísmo e do cristianismo
mais antigo era precisamente a sua repugnância pelo mi-
lagre., sua relativa racionalidade

11 (296)
Journal des Goncourl J.
"um Deus à /'américaine, '" que é um Deus de uma manei-
ra totalmente humana, que porta óculos, sobre o qual há testemu-
nhos dos pequenos jornais" - um Deus em fotografia -
... ela exige novidades sobre Sua alma "o Senhor está em esta-
do de graça?", como se ela perguntasse: "o Senhor está resfriado?"
Joubert: falta em suas ideias a detenninação francesa. Elas
não são nem claras nem francas. Elas cheiram à pequena escola
de Genfer: Mad, Necker, Tracy, Jouffroy. O pé,fuio Sainte-Beuve
vem daí. Joubert gira as ideias como se gira du buis. 1>0
- tem-se de tempos em tempos a necessidade de um enca-
nai/lement de l'esprit11 1
- falta a pincelada ampla em seu diálogo; coisas extrema-
mente bonitas, pequenas, tímidas (de Sainte-Beuvc)
- será que os antigos trabalharam cm uma realidade bela?
Será que eles não foram de maneira alguma "idealistas"?

129 N.T.: Em francês no original: à moda americana.


130 N.T.: Em francês no original: a grama.
131 N.T.: Em francês no original: aviltamento do esplrlto.
106 FRIEORICH NIETZSCHE

- eles buscam um zero, para decuplicar seu valor


- na tenra juventude, quando toda a vitalidade da expansão
se retrai por meio de uma grande solidão -
- "as pessoas se sentem na sinagoga como no Oriente, em
uma religião feliz. Uma espécie de familiaridade com
Deus, nenhuma oração, tal como na Igreja cristã, onde se
quer sempre perdoar algo ...
Os "quatro mandatários" de Rembrandt;os mártires de São
Marco de Tinrorel/o - os mais belos quadros do mundo para os
Goncourt.
O conforto inglês uma compreensão maravilhosa pelo bem-
-estar corporal, mas de uma espécie de felicidade, da qual os cegos
podem precisar: os olhos não encontram aí nenhuma satisfação.
N.B.: rien de si mal écrit qu 'un beau discours. " 2
Em Salambõ, Flaubert vem à tona, empolado, declamató-
rio, melodramático, apaixonado pelas cores gordas
- o único que fez a descoberta de uma lingua, com a qual
se pode falar dos tempos antigos: Maurice de Guérin em
"Centauro"
- o povo não ama nem a verdade nem o simples: ele ama o
romance e o charlatão.
É muito estranho que quatro homens les plus purs de tout mé-
tier et de tout industrialisme, /es quacre plumes /es p/us entiéremenl
vouées à l 'art'" tenham sido levados justamente para diante dos ban-
cos da police correctione//e: Baudelaire, Flaubert e os Goncourt.
Nós decuplicamos todos os meios de transporte em sua ve-
locidade: ao mesmo tempo, porém, nós centuplicamos em nós a
necessidade de velocidade...
Je hais tout ce qui est coem imprimé, mis sur du papier. 13'
Gavarni.

132 N.T.: Em francês no original: nada U!o mal escrito quanto um belo discurso.
133 N.T.: Em francês no original: os mais puros de todo o oficio e de todo o
Industrialismo, as quatro penas mais Inteiramente devotadas à arte.
134 N.T.: Em francês no original: Eu odeio todo coroç/Jo Impresso, colocado
sobre o papel.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 107

Uma corrupção de antigas civilizações, só continuar en-


contrando prazer nas obras do homem e à s 'embêter des oeuvres
de Dieu."'
Nós somos /e siécle des chefs-d'oeuvre de l 'irrespect. 'l6
A felicidade com a luz da Argélia, a espécie lisonjeira de
luz: como se respira serenidade...
A mélancholie contemporaine francesa, une mélancolie
suicidante, non blasphématrice, non désespérée : une tristesse,
qui n 'est pas sons douceuret ou ril un coin d 'ironie. 137 Melanc.o-
lias de Hamlet, Lara, Werter, René mesmo representam as melan-
colias dos povos mais nórdicos do que nós somos.
O tipo de 1830: traços cn érgicos, expressão doce, um riso
suave que vos toca; habituado com a batalha, com lutas nobres,
com simpatias ardentes, com a concordância ruidosa de um públi-
co jovem; e suportando ai no fundo de si a tristeza e o remorso de
não se consolar, coração di.laeerado; as ideias pol!ticas de 1848 o
tomaram por um instante uma vez mais febril. Desde então, o tédio
e a não ocupação de seus pensamentos e aspirações. Um espirito
distinto, sofrendo de uma nostalgia pacífica por um ideal em políti-
ca, literatura, arte, queixando-se :a meia-voz e só se vingando de si
mesmo pela visão da imperfeição das coisas aqui embaixo.
No código moderno, no code, a honra é tão esquecida
quanto la fortune. Pas un mor de l 'arbitrage de l'honneur:' 33 o
duelo etc. No que diz respeito à.fortune de hoje, qui est presque
1ou1e13~ em operações da bolsa <dans des opérations de bourse>,
de courtage, d 'agiotage, de coulisse ou d'agences de change, 140
não há nenhuma previsão de protegê-la e defendê-la: nenhuma

13S N.T.: Em franoês no original: e se entediar com as obras de Deus.


136 N.T.: Em francês no original: o sécu:lo das obras-primas da falta de respeito.
137 N.T.: Em francês no original: uma melancolia não suicidante, não blasfe-
madora, não desesperada : uma triste:a, que não deixa de possuir doçura
e onde ri uma dose de Ironia.
138 N.T.: Em francês no original: a fortuna. Não há uma palavra sobre a arbl•
tragem da honra.
139 N.T.: Em francês no original: que é quase totalmente.
140 N.T.: Em francês no original: cm operações da bolsa, de corretagem, de
agiotagem, de moeda, de agentes de c3mblo.
108 fRIEDRICH NIETZSCHE
·······························································································
regulamentação des ces rrafics journaliers; ••• os tribunais são in-
competentes para todas as transações da bolsa; o agente de câm-
bio não dá nenhum reçu. 142
la bruyére: "on peut se servirdes ooquins, mais l 'usage en
doit être discret". 143
Como se tem coragem de falar a um público de teatro?
A peça é avaliada por meio de uma masse d 'humanité réunie,
une bêtise agglomérée... ,... (Toma-se conhecimento do livro em
solidão - )
"Quando se é bom, parece-se covarde: é preciso ser mau, para
que se seja considerado corajoso": um tema para Napoleão m
"Diante de uma boa paisagem, eu me sinto mais à la cam-
pagne'" do que no espaço livre ,e no meio do mato." Nós somos
civilizados demais, velhos demais, apaixonados demais pelo fac-
ticiel e artificiei, 146 para nos divertirmos com o verde da terra e
o azul do céu.
O mesmo para Ftaubert: horreur no Rigi.
Literatura do século XX: louca e matemática ao mesmo
tempo, analítico-fantástica: as coisas - mais importantes e em
primeiro plano, não mais as essências; eliminação do amor (já
em Balzac, o dinheiro ganha o primeiro plano): narrando mais
sobre a história na cabeça do que sobre a história no coração.
Ces désespérances, ces doutes, non de nous, ni de nos am-
bitions, mais du moment et des moye,is, au lieu de nous abaisser
vers les concessio,is, font en nous, plus entiere, plus intraitable,
plus hérissée, la consciencc littérairc. Et, un instant, nous agitons
si nous ne devrions pas penser et écrire absolument pour nous,

141 N.T.: Em francas no original: desses tr~nsltos diários.


142 N,T.: Em francês no original: recibo.
143 N.T.: Em fr;incês no original: Podemos nos servir dos patifes, mas o uso
deve ser discreto.
144 N.T.: Em fr;incês no original: uma massa de humanidade reunida, uma
tolice ;iglomerada.
145 N.T.: Em francês no original: mais no campo.
146 N.T.: Em francês no original: factlclal e artificial.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 109
......................................................................•........................

laissant à d'autres le bruil, /'éditeur, le public. Mais, comme dit


Gavarni: on n 'esr pas parfait. Journal des Goncourt !, p. 147. "'
O café um estado rudimentar: por 40 ct. Serenidade, com
um gás talvez (gas exhilarant): une demi-tasse de paradis"8
Gavami: isto é cruel, mas assim são as coisas, não tenho
para dois sous vénération'" em mim. (mas certamente sensitivi-
dade-)
Flaubert: de la forme naft / 'idée, uo fórmula suprema da es-
cola, de acordo com Teófilo Gautier
II faut à des hommes comme nous, une femme peu élevée,
peu éduquée. qui ne soir que gaieté et esprir naturel, parce que
celle-là nous réjouira et nous charmera ainsi qu 'un agréable
animal, auquel nous pourrons nous attacher. ,s,
No tempo, em que todos os homens souberem ler e todas
as mulheres tocarem piano, o mundo estará em plena dissolução;
esse tempo terá esquecido uma frase do testamento do cardeal
Richelieu: "ainsi qu 'un corps q.u i auroil des yeux en toutes ses
parties, seroit monsrrueux, de m.éme un Étar le seroir, si tout les
sujeis étoient savants. On y verroit aussi peu d 'obéissance que
l'orgueil et la présomption y seroient ordinaires". ' 52

147 N.T.: Em !rances no original: Essas desesperanças, essas dúvidas, não de


nós, nem de nossas ambições, mas do momento e dos meios, ao fnvé-s de
nos rebaixar em direção às concessões, produzem em nós, de maneira
mais Integral, mais lntratóvel, mos agitada, o conscléncio /iter6rlo, E, um
Instante, nós agiríamos, se não devêssemos pensar e escrever absoluta•
mente para nós, deixando aos outros o barulho, o editor, o público. Mas,
como diz Gavarnl: nl!o somos perfeitos. Jornal dos Goncourt 1.
148 N.T.: Em francês no original: gás ex-hilariante: uma mela-xlcara de paraíso.
149 N.T.: Em francês no original: sob veneraçllo.
150 N.T.: Em francês no original: da forma nasce a Ideia.
151 N.T.: Em lrancês no original: t necessário, paro homens como nós, umo
mulher pouco cul ta, pouco educada, que nl!o seja senão alegria e espírito
natural, pois uma tal mulher nos o'legrará e nos encantará como um agra-
dável animal, ao qual nós podemos nos ligar.
152 N.T.: Em francês no original: assim como um corpo que tivesse olhos em
todos os suas portes seria monstn,oso, um Estado também o seria, se to•
dos os sujeitos lessem sábios. Verfamos ar tão pouca obediência quanto o
orgulho e a presunção seriam ordl nárlos.
FRIEDRICH NIETZSCHE
················•······························ ·········································.. ·····

Nenhum pintor mais. Um exército de chercheurs d 'idées


ingénieuses. De /'esprit, non de touche, mais dans le choix du
sujeJ. •n Literatura do pincel.
Rafael encontrou o tipo cláss<ico> da virgem por meio da
consumação do tipo vulgar - por meio de uma oposição absoluta
ante a beleza, tal como Da Vrnci a tinha procurado nos requintes
do tipo e na raridade da expressão. Um tipo de serenidade hu-
mana, uma beleza esférica, uma saúde quase junoniana. Esse tipo
permanecerá eternamente popufar.
Voltaire o último espírito da velha França, Diderot o pri-
meiro da nova. Voltaire levou para o túmulo a epopeia, a fábula,
o pequeno verso, a tragédia. Diderot inaugurou o romance mo-
derno, o drama e a critica de arte.
Ser cético, confessar-se itartidário do ceticismo - um mau
modo de trilhar o seu caminho! O meio do ceticismo é a ironia,
a fórmula que é menos acessível aux épais, aux obtus, aux sois,
aux niais, aux masses?1s, Em seguida, essa negação, essa dúvida
em relação a tudo, flerta com as ilusões de todos, ao menos com
as ilusões que se ligam a todos: a autossatisfação da humanidade
consigo mesma, que pressupõe a satisfação consigo - essa paz da
consciência humana, que o burguês pretende afetadamente apre-
sentar como a paz de sua consciência pessoal. -
No fundo desse monólogo metafisico sinto a preocupação
- "la préocupation et la terreur du au-delà de la mort, que donne
aux esprits les plus émancípés / 'éducation religieuse". 155
O homem fez a mulher, na medida em que ele lhe dá todas
as suas poesias... Gavami
Com palhaços e funârnbulos seu oficio seu dever: os úni-
cos atores, cujo talento é incontestável e absoluto, tal como o ta-

153 N.T.: Em franoês no original: pesq ulsadores de Ideias engenhosas. Oe es•


pfrlto, n3o de toque, mas na escolha do sujeito.
154 N.T.: Em francês no original: aos grossos, aos obtusos, aos tolos, aos sim-
plórios, às massas.
155 N.T.: Em francês no original: a preocupação e o terror do além da morte,
que d' aos espíritos mais emancipados a educação religiosa.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 111

lento dos matemáticos ou mais ainda comme le saut périlleux. 156


Pois não há ai nenhum indicio falso de talento: ou bem se cai ou
não se cai.
Rien de plus charmant, de·plus ex(Juis que l'espritfrançais
des étrangers, l 'esprit de Galiani, du prince de Ligne, de Henri
Heine.'"
Flaubert: "aprês tout, le travai/, c'est encere le meilleur
moyen d 'escamoter la vie".•SP.
O que choca em Victor Hugo, que tem a ambição de ser
considerado um pensador, é a ausência do pensamento. Ele não é
nenhum pensador, ele é um ser natural (um naturalista, diz Flau-
bert): ele tem o suco das árvores nas veias -
De /'amoreux à la mode. I 830 le ténébreux, 159 segundo a
influência de Antony. O ator dominante dá o tom para a sedução
no amor. 1860 é o/arceur160 (segundo o modelo de Grasso!)
Não hâ mais pobres para o trabalho no campo. A educação
destrói a raça dos trabalhadores e, por conseguinte, os campos...
Uma verdadeira liberdade, para o individuo só há na medi-
da em que ele a.inda não é arregimentado em uma sociedade com-
pletamente civilizada: nela, ele perde toda a posse de si, de seus
bens, do que é bom para si. O Estado absorveu, a partir de 1789,
de maneira diabólica os direitos de todos, e eu me pergunto se,
em nome do completo domlnio do Estado, o futuro ainda não nos
reserva uma tirania totalmente diversa, servi par le despotisme
d'une bureaucratie/rançaise' 6' -

1S6 N,T.: Em franoês no original: como o salto perigoso.


157 N,T.: Em francês no original: Não há nada de mais charmoso do que o es•
pírlto francês dos estrangeiros, o espírito de Gallanl, do príncipe de Llgne,
de Henri Helne.
158 N.T.: Em francês no original: antes de tudo, o trabalho é ainda o melhor
melo de e~amotear a vida.
159 N.T.: Em francês no origino!: Do amoroso à moda. 1830 o tenebroso.
160 N.T.: Em francês no original: galhofeiro,
161 N.T.: Em franoês no original: servido pelo despotismo de uma burocracia
francesa.
112 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (297)
A habilidade parcial: ou o bom homem.
Corresponde a uma tentativa de eliminar da divindade to-
das as propriedades "más" uma tentativa de reduzir o homem à
metade, que constitui suas boas propriedades: em circunstância
alguma ele deve causar danos, querer causar danos ...
O caminho para tanto: a castração da possibilidade para
a inimizade, o desenraizamento, do ressentimento, da paz como
o único estado interno e como o estado interno unicamente ad-
missível. ..
O ponto de partida é completamente ideológico: estabele-
ceu-se "bem" e "mal" como uma contradição e se considera des-
de então consequente que o bem. renuncie e resista "ao mal" até a
sua última raiz - pensa-se, com isso, que se retoma à totalidade,
à unidade, à força e que se põe um fim em sua própria anarquia e
autodissolução internas entre impulsos valorativos opostos.
Mas: toma-se a gue"a como má - e continua-se, contudo,
a conduzir a guerra! ... Em outras palavras: com maior razão, não
se deixa agora de odiar, de dizer não, de fazer o não: o cristão,
por exemplo, odeia o pecado (não o pecador: tal como a astúcia
casta não cansa de distinguir) - E precisamente por meio dessa
falsa cisão entre "bom" e "mau", o mundo do odioso, daquilo
que precisa ser eternamente combatido cresceu enormemente.
Na prática, "o bem" se vê envolto pelo mal, vê em toda ação algo
mau - ele termina, com isso, compreendendo a natureza como
má, o homem como degenerado, o ser bom como a graça.
- Assim, surge um tipo sobrecarregado com ódio e des-
prezo que, contudo, afastou de si os meios de conduzir a
guerra com ações e com armas: um tipo carunchoso de
"escolhidos", apóstolos da paz

1. O perfeito "touro chifrudo"


O tipo estoico. Ou: o perfeito touro chifrudo. A firmeza,
o autodominio, o elemento inabalável, a paz como inflexibi-
lidade de um longa vontade - a calma profunda, o estado de
defesa, a montanha, a desconfiança guerreira - a firmeza dos
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 113

princípios; a unidade de vontade e saber a elevada estima por


si. O tipo do eremita.
O tipo consequente: aqui se compreende que também não
se poderia odiar o mal, que não se pode resistir a ele, que tam-
bém não se pode conduzir uma guerra contra si mesmo: que não
se acolhe apenas o sofrimento que uma tal práxis traz consigo;
que se vive totalmente nos sentimentos positivos; que se toma o
partido dos adversários com palavras e ações; que se empobrece
o solo dos outros estados por meio de uma superfctação dos esta-
dos pacíficos, benévolos, conciliadores, sotlcitos e carinhosos...
que se necessita de uma práxis incessante
o que se alcança aqui? - O tipo budista: ou a vaca perfeita
Esse ponto de vista só é possível se nenhum fanatismo mo-
ral é dominante, isto é, se o mal não é odiado por causa de si
mesmo, mas apenas porque ele cede o caminho para os estados
que nos machucam (inquietude, trabalho, cuidado, complicação,
dependência).
Este é o ponto de vista budista: não se odeia aqui o pecado,
aqui falta o conceito de "pecado".

II.
O tipo inconsequente: conduz-se uma guerra contra o
mal - acredita-se que a guerra. em virtude do bem não tem a
consequência moral e de caráter que a guerra de outro modo
traz consigo (e em virtude da qu.al as pessoas a abominam como
mã). De fato, uma tal guerra contra o mal degenera de uma ma-
neira muito mais fundamental do que qualquer hostilidade en-
tre pessoas; e, normalmente, "a pessoa" chega até mesmo a se
imiscuir uma vez mais ao menos de maneira imaginária como
opositora (o diabo, os espíritos maus etc.) O comportamento,
a observação, a espionagem hostil em relação a tudo o que nos
é terrível e que poderia ter uma origem terrível termina com
a constituição mais torturante e inquieta: de modo que agora
"milagre", pagamento, êxtase, solução da transcendência se
tomam desejáveis ...
O tipo cristão: o resmungão perfeito.
114 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (298)
O quão falsos, o quão meodazes não foram sempre os ho-
mens quanto aos fatos fundamentais de seu mundo interior! Não
ter aqui nenhum olho, fechar aqui a boca ou abrir a boca -

11 (299)
As grandes palavras
Os grandes homens
Os grandes tempos.

11 (300)
"Objetividade" junto ao filósofo: indiferentismo moral em
relação a si mesmo, cegueira em relação às consequências boas e
ruins: ingenuidade no uso de meios perigosos; advinhar e explo-
rar a perversidade e a variedade do caráter como vantagem -
Minha profunda indiferença em relação a mim mesmo:
não quero nenhuma vantagem oriunda de meus conhecimentos
e tampouco me desvio das desvantagens que eles trazem consigo
- está contabilizado aí aquilo que se poderia denominar degene-
ração do caráter; essa perspectiva encontra-se fora: cu manipulo
o meu caráter. No entanto, não penso nem em compreendê-lo,
nem em transformá-lo - o cálculo pessoal da virtude não me veio
à cabeça um único instante. Parece-me que fechamos as portas
ao conhecimento logo que nos interessamos por seu caso pessoal
- ou mesmo pela "salvação" da alma! ... É preciso não considerar
tão importante a nossa moralidade e não deixar que usurpem de
nós um direito ao seu oposto...
Uma espécie de riqueza hereditária de moralidade talvez seja
pressuposta aqui: fareja-se que se pode dissipar e jogar pela janela
muito dessa riqueza, sem que se empobreça, com isso, de maneira
especial. Nunca se sentir tentado a admirar "belas almas". Saber-se
sempre superior a elas. Ir ao encontro dos monstros da virtude com
um escárnio interior; déniaiser la vertu '62 - prazer secreto.

162 N.T.: Em francês no original: desembrutecer a vlnude.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 115

Girar em tomo de si mesmo; nenhum desejo de se tomar


"melhor" ou apenas efetivamente "diverso"; por demais interes-
sado, para não lançar tentáculos e redes de toda e qualquer mora-
lidade em direção às coisas -

li (301)
Essa figura não provém de um gozo. O pior não é apenas
que a tenhamos revestido com todo o tipo de sabedoria e de sen-
tenças pequeno-burguesas, de modo que ela foi quase vulgarizada
e transfonnada em um "moralista": o pior é que não deixamos o
próprio tipo intocado. Ê possível advinhar o quão precocemente
essa figura precisa ter servido desde o princípio a intuitos diver-
sos: cm pouco tempo não havia mais do que uma mera tradição
dessa figura já retificada. Parece que o velho profeta típico de Is-
rael tinha influenciado intensamente esse desenho: os traços não
evangélicos, a ira, as maldições, toda a profecia tão improvável
do "juízo final", todo o tipo desértico, a linguagem desenfreada
contra fariseus e especialistas nas escrituras, a expulsão do tem-
plo
- Também a maldição da figueira - o caso típico, onde e
como não se deve fazer um milagre
Tu não deves amaldiçoar. Tu não deves usar de magia. Tu
não deves te vingar. Tu não deves mentir (- pois é uma mentira
dizer que uma coisa, só porque é tomada por verdadeira, faria o
obséquio de ser verdadeira: vivencia-se a demonstratio ad absur-
dum todo dia três vezes -

11 (302)
Aqui, toda palavra é slmbolo; não há, no fundo, mais ne-
nhuma realidade. Hâ um perigo extraordinário de se enganar
quanto a esses símbolos. Quase todos os conceitos e avaliações
eclesiásticos induzem em erro: aão se pode entender de maneira
mais fundamentalmente equivocada o Novo Testamento do que a
Igreja o fez. Faltam-lhe todos os pressupostos para uma compre-
ensão: a neutralidade do historiador que, olhando para o diabo, se
preocupa em saber se a "salvação da alma" depende da palavra.
116 FRIEDRICH NIETZSCHE

A Igreja nunca teve a boa vontade de compreender o Novo


Testamento: ela quis se afirmar com ele. Ela buscava e continua
buscando por detrás dele um sistema teológico: ela o pressupõe
- ela acredita em Uma verdade. Precisou-se do século XIX - /e
siecle de l'irrespectll>l - para reconquistar uma vez mais algumas
das condições prévias para ler o livro como livro (e não como
verdade), para não reconhecer essa história como "história sagra-
da", mas como uma diabolia de fábula, preparação, falsificação,
palimpsesto, confusão, em suma, como realidade ...
Não se prestam contas suficientemente quanto a em que
barbarismo dos conceitos nós europeus ainda vivemos.
N.B.: Que se tenha podido acreditar que a "salvação da
alma" dependia de um livro!. .. E as pessoas me d.izem que se
continua acreditando ainda hoje.
De que nos ajuda toda a educação científica, toda a critica
e toda a he.rrnenêutica, se um tal <disparate relativo à interpretação
da Bíblia, tal como a Igreja o retém, ainda não produziu nenhum
enrubescimento?

11 (303)
Amor
Vede: esse amor, essa compaixão das mulheres - há algo
mais egoísta?... E se elas se sacrificam, sua honra, sua fama, a
quem elas os sacrificam? Ao homem? Ou será que elas os sacri-
ficam a uma necessidade desenfreada?
- esses são desejos exatamente tão egoistas: por mais que
eles façam o bem do outro e cultivem gratidão ...
- em que medida uma supcrfetação desse gênero pode san-
tificar uma valoração de todo o resto!

11 (304)
Nós teríamos razões suficientes para estarmos chocados
com isto: um entusiasmo tal como o de Teocleia é algo que não

163 N.T.: Em franoês no original: o século da falta de respeito.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol, VII) 117

se pode de modo algum aprovar, em princípio. Podemos nos dei-


xar enlevar pelo talento do artista a simpatizar com um indivíduo
particular, que o experimenta: mas ele não pode servir de base
para um sistema geral, e nous n 'aimons en France que ce qui
peut être d 'une application universelle. 164
A moral teatral na França é muito mais rigorosa do que
na Alemanha. Cela tient à ce, que les Allemands prennent /e
sentiment pour base de la mora/e, tandis que pour nous ceife
base est la raison. Un sentiment sincere, complete, sans bor-
nes, leur paraít, non seulement excuser ce qu 'i/ inspire, mais
/'ennoblir et, sij'ose emp/oyer cel/e expression, /e sanctifier. 161
Nós temos princípios muito mais rígidos e jamais nos d.istan-
ciamos deles na teoria. O sentimento, que desconhece um de-
ver, parece-nos apenas um erro a mais; perdoaríamos mais fa.
cilmente o interesse, porque o interesse depõe mais habilidade
e decência em seus exageros. O sentimento evoca a opinião,
brave /'opinion, e ela é estimulada por meio daí; o interesse
procura iludi-la, na medida em que a poupa, e, mesmo quando
ela descobre a ilusão, ela sabe conceder sua gratidão para essa
espécie de homenagem.

11 (305)
Nous n 'envisageons l 'amour que comme les paissons hu-
maines, e 'est-à-dire ayant pour ejfet d'égarer notre raison, ayant
pour but de nous procurer des jouissances. 166 B. Constant

164 N.T.: Em francês no original: não amamos na França senão aquilo que
pode ter uma aplicação universal.
165 N.T.: Em francês no original: Isso se deve ao fato de que os alemães to-
mamo sentimento como a base da moral, enquanto para nós a base é a
ratão. Um sentimento slnoero, completo, sem barreiras, lhes parece não
apenas desculpar aquilo que ele Inspira, mas enobrecê-lo e, se posso ou•
sar usar essa expremo, santlficá•lo,
166 N.T.: Em francês no original: Nós não consideramos o amor senão como
as paixões humanas, quer dizer, como tendo por efeito nos desgarrar da
razão e tendo por finalidade propiciar-nos gotos.
118 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (306)
A regra das unidades toma a composição muito diflcil:
elles circonscrivent les tragédies, surtout historiques, dans un
espace. 161 - Elas impõem com frequência ao poeta descuidar, nos
acontecimentos e nas personagens, da verdade da gradação, da
delicadeza das nuanças; há lacunas, passagens bruscas demais.
Os franceses pintam apenas um fato ou uma paixão. Eles
possuem uma necessidade de unidade. lls repoussent des carac-
teres tout ce que ne sert pas à faire ressortir la passion qu 'ils
veulent peindre; ils suppriment de la vie antérieure de leurs hé-
ros rout ce qui ne s 'enchaine pas nécessairement au fait, qu 'ils
ont choisi.'68
O sistema francês apresenta lefait quiforme le sujei""' e, do
mesmo modo, la passion, qui est /e mobile de chaque tragédie,"º
cm um perfeito isolamento. Unidade do interesse, da perspecti-
va. O espectador reconhece que não se trata de uma personagem
histórica, mas de un héros factice, une créature d;invention 111 -

11 (307)
Carece o amor da inquietude e dos temores? O ciúme é
necessário para ele como estrume? Ele aspira ao ar puro e pa-
cífico dos sonhos? - No outro caso, seria um egolvmo hábil e
desinteressado a primeira das virtudes, le plus raisom1ab/e des
devoirs 172 -

167 N,T,: Em francês no original: elas circunscrevem as tragédlos, sobretudo


históricas, em um espaço.
168 N,T.: Em francês no original: Eles afastam das personagens tudo aquilo
que não serve para fazer vir à tona a palxllo que eles querem capturar;
eles suprimem da vida anterior de seus heróis tudo aquilo que não se
encaixa necessariamente no fato que eles escolheram.
169 N.T.: Em francês no original: o lnto que formo o sujeito.
170 N.T.: Em franch no original: a palx!lo que é o motor de todas as tragédias.
171 N.T.: Em francês no original: um herói fictício, uma criatura Inventado.
172 N.T.: Em francês no original: o mais razo~vel dos deveres.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 119

11 (308)
Les circonstances sont bien peu de chose, /e caractere
est tout. 11l

11 (309)
On change de situation: on ne se corrige pas en se dé-
plaçant.1 14

11(310)
Toda a concepção da hierarquia das paixões; como se o
correto e moral fosse ser dirigido pela razão - enquanto as pai-
xões seriam o anormal, perigoso, quase animal; além disso, se-
gundo sua meta, nada além de desejos de prazer...
A paixão é degradada: 1) como se ela só fosse o motor de
urna maneira indecorosa, e não necessariamente e sempre; 2) na
medida em que ela projeta algo que não possui nenhum valor
elevado, um divertimento ...
O desconhecimento de paixão e razão, como se a razão
fosse uma essência por si e não se mostrasse inversamente como
estado relacional de paixões e desejos diversos; e como se toda
paixão não tivesse em si o seu quantum razão ...

11(311)
Na medida em que se retrata apenas uma paixão (e não
todo um caráter individual), obtêm-se efeitos trágicos, porque
os caracteres individuais, que são sempre mistos, prejudicam a
unidade da impressão. Mas a verdade perde ai. É de se pergun-
tar o que restaria dos heróis se eles não fossem movidos por
essa paixão: seguramente apenas pouco ... Há inúmeros caracte-
res. As paixões teatrais são de um número menor. "Polyphonte

173 N.T.: Em francês no original: As clrcunstinclas são multo pouco relevan•


tes, o caráter é tudo.
174 N.T.: em francês no original: Mudamos de situação: não nos corrigimos
mudando de lugar.
120 FRIEDRICH NIETZSCHE

/e ryran ('o tirano') est un genre: /e tyran Richard Ili un


individu."l?l

11 (312)
Algo por vir. Contra o romantismo da grande "passion".
O que precisamos conceber: como é que pertence a todo
gosto "clássico" um quantum de frieza, de lucidez, de dureza:
lógica sobretudo, felicidade na espiritualidade, "três unidades",
concentração - ódio contra o sentimento, o ânimo, o esprit, ódio
contra o múltiplo, inseguro, divergente, cheio de pressentimen-
tos, assim como contra o breve, agudo, bonito, bondoso.
Não se deve brincar com fórmulas artísticas: deve-se re-
criar a vida, de tal modo que ela, precise se formular depois ...
Trata-se de uma comédia serena, da qual só agora aprende-
mos a rir, que só agora estamos vendo: o fato de os contemporâ-
neos de Hcrdcr, Winckelmann, Goethe e Hegel terem pretendido
que tinham descoberto uma vez mais o ideal clássico... E na mes-
ma época que Shakespeare!
- e a mesma geração tinha se declarado livre da escola
clássica dos franceses de uma maneira impertinente!
- como se não se tivesse podido aprender o essencial tão
bem aqui quanto lá!
Mas se queria a "natlll'C?.a", a "naturalidade": 6, estulticia!
Acreditava-se que a classicidade seria uma espécie de naturalidade!
Pensar sem preconceito e sem amolecimento sobre que
solo um gosto clássico pode emergir.
Enrijecimento, simplificação, fortalecimento, intensifica-
ção do caráter mau do homem: essas coisas se compertencem. A
simplificação lógico-psicológica. O desprezo pelo detalhe, pelo
complexo, pelo incerto -
Os românticos na Alemanha não protestam contra o clas-
sicismo, mas contra a razão, o esclarecimento, o gosto, o século
xvm.

175 N.T.: Em francês no original: Pollfonte o tirano é um gênero: o tirano Ricar-


do Ili, um Individuo.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 121

A sensibilidade da música romântica wagneriana: oposi-


ção, a sensibilidade clássica...
A vontade de unidade (porque a unidade tiraniza: a saber,
os ouvintes, os espectadores), mas a incapacidade de deixar a
unidade tiranizar no principal, a saber, no que diz respeito à pró-
pria obra (à realização da renúncia, à sintese, à clarificação, à
simplificação).
O predomínio da massa (Wagner, Victor Hugo, Zola, Tai-
ne) e nunca com a grandeza.

11 (313)
"Th presumes, por exemplo, que cu deveria deixar a vida,
fugir para os desertos, porque nem todos os sonhos em flor ama-
dureceram?" - diz o Prometeu de Goethe.

11(314)
A arte wagneriana: um compromisso entre as três carências
mais modernas: a carência de algo doentio, de algo brutal e de
algo inocente (idiótico) ...

11 (315)
Por que a música alemã culmina na época do romantismo
alemão? Por que falta Goethe :na música alemã? O quanto de
Schiller, mais exatamente, o quanto de "TekJa" não há, em con-
trapartida, cm Beethoven!
- Schumann tem Eichcndorf, Uhland, Heine, Hoffinann,
Tieck cm si
- Richard Wagner tem F:reischütz, Hoffi:nann, Grimm, a
saga romântica, o catolicismo mlstico do instinto, o simbolismo,
a "bazófia dos pretensos espiritos livres promovidos pela pai-
xão", os intuitos de Rousseau
O "Holandês voador" tem o gosto da França, onde /e téné-
breux 1830 era o tipo sedutor.
Culto da música: o romantismo revolucionário da forma
Wagner resume o romantismo, o alemão e o francês -
122 FRIEDRICH NIETZSCHE

11(316)
As grandes palavras:
"Paz da alma"
O Hamor"
O "gosto clássico"

li (317)
O nacionalismo degradou. na França, o caráter; na Alema-
nha, o espirito e o gosto: para suportar uma grande derrota - e,
em verdade, uma definitiva - , é preciso ser mais jovem e mais
saudável do que o vencedor.

11 (318)
O exotismo de Wagner entre os adeptos do "germanismo"

li (319)
O humor da cultura europeia: considera-se isso verdadeiro,
mas se faz aquilo; por exemplo, de que vale toda a arte da leitura
e da crítica, se a interpretação eclesiástica da Bíblia (tanto a pro-
testante quanto a católica) é mantida tal como antes!

11 (320)
O wagneriano, com a sua admiração precipitada por tudo
aquilo que em Wagner não ê de maneira alguma admirável, mas
muito mais "wagnerista"

11 (321)
- Essa insana sobrecarga com detalhes, esse acento dos pe-
quenos traços, o efeito de mosaico:
Paul Bourget
A cobiça do grande estilo - e, nesse caso, não querer abdicar
daquilo que ele fazia melhor, do pequeno, do lnfimo; essa sobrecar-
ga com detalhes; esse trabalho de ,cinzelador em instantes, nos quais
ningu~m poderia ter olhos para algo pequeno; essa inquietude do
olhar, que deve ser colocada em jogo or.i em favor do mosaico, ora
em favor dos afrescos nas paredes esboçados de maneira ousada.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 123

A aflição peculiar que desperta em mim escutar a música


wagneriana é algo que me parece remontar ao fato de essa música
ser como um quadro, que não me permite permanecer em um úni-
co lugar... ao fato de o olhar, para compreender, precisar se posi-
cionar constantemente de maneira diversa: ora de maneira míope,
para que não lhe escape o mais refinado trabalho de cinzelador de
mosaicos, ora por conta de afrescos ousados e brutais, que pedem
para ser vistos a distância. O não-poder-fixar uma ótica determi-
nada constitui o estilo da música wagneriana: estilo aqui como
um termo usado no sentido da imeapacidade para o estilo.

11 (322)
Wagner: 1) não se deixar iludir pela tendência alemã
- sua sensibilidade é tão pouco alemã quanto possível; em
contrapartida, tanto mais alemão é seu tipo de espírito e
sua espiritualidade (con11ando aí o estilo)
- ele tem a mais profunda simpatia pelos grandes slmbolos
da Europa medieval e busca seus "portadores"
- o tipo de seus heróis é tão pouco alemão quanto possivel:
Tannhãuser, o holandês voador, Ricnzi, Lohengrin, Elsa
Tristão, Siegfried, Parsifal: tentemos de qualquer modo
- - -: resta o "Mestre cantor".
- o culto da "paixão" não é alemão
- o culto do "drama" não é alemão: ele tem um descomu-
nal poder de convencimento por meio do lmpeto e do
caráter terrível dos gestos
2) Que é alemão?
- o simbolismo incerto, o prazer com aquilo que é pensado
de maneira inexata, a falsa "profundidade", o arbitrário,
a falta de chispa, de humor e de graça, a incapacidade
para as grandes linhas, para o necessário em - - -
3) não podemos nos deixar enganar no principal: o drama
musical de Wagner é wn retrocesso, pior ainda, uma for-
ma de decadência da música -
- ele sacrificou tudo o que hâ de musical, ele sacrificou
a música, a fim de construir a partir dela uma arte da
124 FRIEORICH NIETZSCHE

expressão, da intensificação, da sugestão, do pitoresco-


psicológico
do mesmo modo, o extraordinário instinto cênico e teatral
não foi até aqui alemão (- não se compreende nada de Wagner se
não se concebe nesse instinto sua/acu/té maitresse, seu instinto
dominante)
a profundidade, a pluralidade, o arbítrio, a profusão, a in-
certeza alemães: os grandes símbolos e enigmas, vindo a ser com
um suave trovão a partir de uma distância descomunal: o céu ale-
mão cinza e c.ruel, que só conhece a felicidade como caricatura
e desejo -

11 (323)
De onde ele retira seus adeptos? Do grande número de pes-
soas desprovidas de musicalidade, semimusicais, com tr& quar-
tas partes de erudição, oriundas dos dois gêneros, pessoas cuja
vaidade ele adula dizendo que efas compreendem Wagner.
Vitória do entusiástico desprovido de musicalidade, semi-
musical, adulado pela grande atitude de Wagner, como se fosse
um sinal de superioridade "compreender" aqui
: ele apela para os belos sentimentos e para os peitos erguidos
ele estimula justamente aquilo que se mostra como uma
sensação natural entusiástica - a sensação natural - alemã - - -
- ele hipnotiza as mulheres mi.stico-eróticas, na medida em
que sua música torna sensível o espirito do magnetizador
até o cerne da medula (- observemos o prelúdio ao Lohen-
grin em seus efeitos fisiológicos sobre a secreção e ---
- ele alcança todas as veus a altura do páthos ao mesmo
tempo com uma amplitude e com uma extensão da cor-
rente, que o coloca em contraposição a todos os asmáti-
cos e dramaturgos do instante

11 (324)
as incompreensões da igrej a
a ceia
"o filho de Deus"
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 125

a morte na cruz como pagamento


a história do pecado original
da "fé"

11 (325)
Para a critica do homem bom
Capacidade de prestar contas, dignidade, sentimento de
dever, justiça, humanidade, sinceridade, retidão, boa consciên-
cia - será que com essas palavras tonitruantes se estã realmen-
te afirmando e aprovando certas propriedades em virtude delas
mesmas? Ou será que aqui propriedades e estados de coisa em si
indiferentes em termos valorativos não surgiram senão sob um
ponto de vista qualquer a partir do qual eles receberam um valor?
- O valor dessas propriedades reside nelas mesmas ou na utilida-
de, na vantagem, que se segue delas (que parece se seguir delas,
que se espera que se siga delas)?
Naturalmente, não tenbo em vista aqui uma oposição en-
tre ego e alter no julgamento: a questão é saber se é em virtude
dessas consequências, seja para o portador dessas propriedades,
seja para o entorno, para a sociedade, para a "humanidade", que
essas propriedades devem ter valor: ou se elas têm valor nelas
mesmas ...
Questionado de outro modo: será que é a utilidade que
convida a que se condene, combata, negue as propriedades opos-
tas (- não confiabilidade, falsidade, excentricidade, incerteza de
si, dcsuman.idade-)? O que é condenado é a essência de tais pro-
priedades ou apenas consequência de tais propriedades?
Dito de outro modo: seria desejável que homens desse se-
gundo grupo de propriedades não existissem? - É nisso em todo
caso que se acredita -
Mas aqui se acha o erro, a miopia, o caráter restrito do
egoísmo próprio ao canto.
Expresso de outro modo: seria desejável criar estados, nos
quais todo o preconceito estivesse do lado dos honestos - de tal
modo que as naturezas e os instintos opostos seriam desencoraja-
dos e lentamente desapareceriam?
126 FRIEORICH NIETZSCHE

- essa é, no fundo, uma questão de gosto e de estética:


seria desejável que a espécie mais "considerável", isto é,
a mais entediante de homem permanecesse? Os homens
quadrados, os virtuosos, os pequeno-burgueses, os bra-
vos, os diretos, os "touros chifrudos"?
- eliminemos a descomunal profusão dos "outros": nesse
caso, nem mesmo o honesto tem mais um direito à exis-
tência: ele não é mais necessário - e aqui se compreende
o fato de ter sido apenas a tosca utilidade que levou a
honrar uma tal virtude irresistível.
Adesejabilidade talvez residajustamente no lado inverso: criar
estados de coisa, nos quais o "homem honesto" é reprimido e obriga-
do a assumir a posição modesta de um "útil instrumento" - como o
"animal de rebanho ideal" ou, na melhor das hipóteses, como pastor
de rebanho: em suma, nas quais ele não chega mais a se encontrar
nas ordens superiores - : a qual ex:ige outras propriedades -

11 (326)
Rubricas
1. Para a crítica do "homem bom".
2. Vindo da escola dos fortes.
3. As grandes palavras.
4. Para a crítica da "cristandade".
5. Como se faz para que a virtude se torne dominante.
6. Os valores estéticos; sua proveniência e seu futuro.
7. O advento do niilismo.
8. Sobre a "modernidade".

11 (327)
Diãrio do niilista ...
o tremor diante da "falsidade" descoberta
vazio: nenhuma ideia mais; os afetos fortes em relação a
objetos que giram sem valor:
- espectadores para esses movimentos absurdos a favor e
contra
- refletir, sardonicamente, frio cm relação a si mesmo
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 127

- os movimentos mais fortes aparecem como mentirosos:


como se devêssemos aci:editar em seus objetos, como se
eles quisessem nos seduzir -
- tudo está aí, mas não há nenhuma finalidade -
o ateísmo como a ausência de ideais
Fase do não apaixonado e do negativismo: nele se descar-
rega o desejo acumulado por afirmação, por louvor...
Fase do desprezo mesmo contra o não ...
mesmo contra a dúvida ...
mesmo contra a ironia.. .
mesmo contra o desprezo ...
Catástrofe: será que a mentira não é algo divino ...
será que o valor de todas as coisas não reside no fato de
elas serem falsas? ...
será que o desespero não é meramente a consequência
de uma crença na divindade da verdade?
será que niio siio prccisamente o mentir e o tornar falso
(o falsificar) que inserem um sentido, um valor, um sen-
tido, uma meta?
será que deverlamos deixar de acreditar em Deus, não
porque ele é verdadeiro (mas porque ele éfalso -?

11 (328)
1.
Conceito do niilismo.
Para a psicologia do niilista.
Para a história do niilismo ,mropeu
Crítica à "modernidade"
As grandes palavras.
Da escola dos fortes.
O homem bom.
A cristandade
A genealogia do ideal
A Circe dos filósofos
Os valores estéticos: origem e crítica
Arte e artistas: novos pontos de interrogação.
128 FRIEORICH NIETZSCHE

11 (329)
N.B. Critica àpatrictagem (em relação à "modernidade).

11 (330)
Os gregos de Winckelmann e Goethe, os orientais de Vic-
tor Hugo, os personagens do &Ida de Wagner, os ingleses do sé-
culo XLU de W. Scott - algum dia se descobrirá toda a comédia:
para além de todas as medidas, tudo isso era historicamente falso,
mas - modernamente verdadeiro!

11 (331)
Bési.
Não acusar ninguém -
Meus desejos não têm força suficiente para me guiar -
invejosos mesmo em relação aos négateurs: invejosos de suas
esperanças- do fato de eles poderem levar tão a sério um ódio!
"Para que empregar essa força?" -
Não é o medo do ridículo que me impede de me unir a eles
- estou para além disso - , mas o ódio e o desprezo, que eles des-
pertam em mim. Tenho, apesar de tudo, os hábitos de um homme,
comme il faut, 176 e o contato com eles me provoca repulsa.
"Se eu tivesse sentido ainda mais ódio e inveja em relação
a eles, talvez eu tivesse me colocado de acordo com eles."
"Tenho medo do suicídio, pois receio demonstrar grandeza
de alma... Vejo que ele ainda seria uma tromperie 117 - uma derra-
deira mentira em relação a todas as inúmeras coisas de outrora!
- Que vantagem haveria em enganar a si mesmo unicamente para
bancar o grandioso? - Como sempre fui alheio à indit,'llação e à
vergonha, nunca mais conhecerei o desespero ..."
Notem, também, que não tenho nenhuma compaixão pelos
senhores ao chamar-vos; e não os estimo por esperar-vos... Não
obstante, cu vos chamo e espero -

176 N.T.: em francês no original: um homem tal como deve ser.


177 N.T.: em francês no original: um engodo.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 129

Tal como sempre pude, continuo podendo ter a necessi-


dade de fazer uma boa ação, e tendo prazer nisso; vez por outra,
porém, também desejo fazer o mal, e tenho do mesmo modo sa-
tisfação. Todas essas impressões, quando efetivamente surgem, o
que é bem raro, são, como sempre, muito sutis...
"On peut traverser une riviere sur une poutre e/ non sur u11
copeau."118 Experimentei em grande estilo a débauche 119 e esgo-
tei minhas forças aí; mas não a amo, ela não e.raminha meta.
Quando não nos apegamos mais à nossa terra pátria, perde-
mos todos os deuses, ou seja, todas as metas na existência...
Pode-se discutir infinitamente sobre tudo, mas de mim não
surgiu senão uma negação sem grandeza e sem/orça. Por fim, ba-
julo a mim mesmo falando assim. Tudo é sempre faible et mou. 180
O magnânimo Kirilov foi vencido por uma ideia: ele ati-
rou em si mesmo. Vejo a grandeza de sua alma no fato de ele ter
perdido a cabeça. Eu nunca poderia agir assim. Nunca poderia
acreditar de maneira tão apaixomada cm uma ideia... Mais ainda,
é impossível para mim ocupar-me com ideias a um tal ponto...
Nunca, nunca poderia atirar em mim...
Sei que deveria me matar, que eu deveria limpar a terra de
mim, tal como de um miserável inseto.

11 (332)
Para a psicologia do niilista
"o que hã de mais digno nos homens, segundo Goethe: - -
- consequência - algo que cabe .ao niilista.
Por volta dessa época, ele convenceu-se a se lançar no ca-
minho da digressão. Que as pessoas não subestimem a lógica que
hâ aí; é preciso ser filósofo para compreender isso. As ideias são
ilusionices; as sensações são a derradeira realidade ... É a última
fome de ''verdade", que aconselha à digressão - Não poderia ser

178 N.T.: Em francês no original: Pode atravessar um rio em uma viga, mas nao
em uma aresta.
179 N.T.: Em franoês no original: desorodem.
180 N.T.: Em franoês no original: fraco ,e mole.
130 fRIEORICH NIETZSCHE

"o amor": todos os véus e eufemismos, isto é, todas as falsifica-


ções precisam ser alijadas: por isso, é preciso que haja a digres-
são, a dor e a combinação de digressão e dor.
Uma intensificação: a dor é mais real do que o prazer...
O elemento afirmativo no prazer tem o caráter da avaliação, do
engodo e do exagero...
A dor não embriaga facilmente, sua sobriedade...
- Cuidado com a dor embriagante e inebriante...
- A dor, que se inflige, é mais real do que aquela que se
sofre-

11 (333)
A transformação absoluta que entra em cena com a nega-
ção de Deus -
Não temos mais absolutamente nenhum senhor sobre
nós; o antigo mundo valorativo é teológico - ele passa por uma
reviravolta -
Dito de maneira mais breve: não há nenhuma instância
mais elevada sobre nós: até o ponto em que pode haver Deus,
nós mesmos somos agora Deus...
Precisamos conferir a nós os atributos que atribulamos a
Deus...

11 (334)
A lógica do atelsmo
Se Deus existe, tudo depende de Sua vontade, e eu não sou
nada além de Sua vontade. Se Ele não existe, tudo depende de
mim, e eu preciso demonstrar a minha independência -
O suicídio como a forma mais completa de demonstrar sua
independência -
Deus é necessário, consequentemente, Ele precisa existir
Mas Ele não existe
Por1anto, não se pode mais viver.
Esse pensamento consumiu também Stavrogin: "quando
ele crê, ele não crê que crê. Quando ele não crê, ele não crê que
não crê".
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 131

A fórmula clássica de Kirilov em Dostoiévski: aos meus


olhos, não hã nenhuma ideia maior do que a negação de Deus.
O que é a história da humanidad.e? O homem não fez outra coisa
senão inventar Deus para não se matar. Eu sou o primeiro arejei-
tar a ficção de Deus.
Matar outro - essa seria a independência em sua forma mais
baixa: eu quero alcançar o ponto mais elevado da independência.
Os suicidas mais antigos tinham razões para tanto; eu,
porém, não tenho nenhuma razão, cu me mato unicamente para
demonstrar minha indepcndênciia -

11 (335)
o início do niilismo
o desligamento, a ruptura com a gleba
ela começa de maneira antinatural
ela term.ina de maneira ingente•~•

11 (336)
Se a própria natureza não poupou sua obra de mestre, se
ela deixou Jesus viver em meio ã mentira e por uma mentira (- e
a ele é que a terra deve tudo aquilo que ela deixa viver - ), a men-
tira que diz que sem ele o planeta, juntamente com tudo aquilo
que há nele, seria uma mera tolice, então o planeta se baseia em
uma menti.ra, em um estúpido escâmio. Consequentemente, as
leis mesmas da natureza são uma impostura e uma farsa diabóli-
ca. Por que, então, viver, se tu és um homem? ...
"Mas, e se vós estivéreis decepcionados? Se vós tiverdes
compreendido que todo o erro residia na crença no antigo Deus?"
A salvação da humanidade depende de que se lhe demons-
tre esse pensamento.

181 N,T.: Nlettsche joga aqui com duas expressões que têm o mesmo radical,
as expressões vnhelmlsch e vnhelmllch. Unhelmlsch significa, literalmente,
aquilo que não pertence a uma He/m, a uma terra natal, o que não é pró-
prio ao lugar, o que não é natural dai. Unhe/mi/eh, por sua vez, descreve a
estranheza oriunda da perda da terra natal, o car.lter Ingente de algo.
132 FRIEDRICH NIETZSCHE

Não consigo entender como é que um ateu pôde saber até


aqui que não havia Deus e não t,er se matado imediatamente.
"Sentir que não há Deus e não sentir ao mesmo tempo que
nós nos tomamos justamente com isso Deus é um absurdo: de
outro modo, nós não deixariamos de nos matar. Se tu sentes isso,
tu és um czar; longe de se matar, tu viverás no ápice da glória...
Sou Deus por compulsão e sou infeliz, pois tenho o de-
ver de demonstrar minha liberdade. Todos são infelizes, porque
temem demonstrar sua liberdade. Se o homem até agora foi tão
infeliz e tão pobre, então isso aconteceu porque ele não ousou
se mostrar livre no significado mais elevado da palavra, porque
ele se satisfez com uma insubordinação própria a meninos de
escola... Pois cu sou terrivelmente infeliz, pois tenho um medo
terrível. O medo é a maldição do homem -
Isso salvará todos os homens e transformará fisicamente a
geração seguinte: pois, a julgar por mim, sob a sua forma jisíca
atual, o homem não conseguirá escapar do antigo Deus... busco
há três anos o atributo de minha divindade: e eu o encontrei - a
índependéncía. Quero me matar, a fim de demonstrar minha in-
subordinação, minha nova e tcrrlvel liberdade" -

11 (337)
Cinco, seis segundos e não mais: nesse momento, vós sen-
tis repentinamente a presença da harmonia eterna. O homem, cm
sua casca mortal, não consegue suportar isso; ele precisa se trans-
formar fisicamente ou morrer. Trata-se de um sentimento claro
e indiscutível. Vós apareceis para vós mesmos em contato com
toda a natureza e vós dizeis: "sim, isso é verdadeiro!" Quando
Deus criou o mundo, ele disse ao final de cada dia: "sim, isso é
verdadeiro, isso é bom!" O que está em jogo aqui não é comoção,
mas alegria. Vós não amais mais - ó, esse sentimento é mais ele-
vado do que o amor. O mais terrível é a horrível determinação,
com a qual ele se expressa, e a alegria, com a qual ele preenche.
Se isso durasse um pouco mais, a alma não o conseguiria aguen-
tar, ela precisaria desaparecer - nesses cinco segundos, vivo toda
uma ex.istência humana, por ela cu entregaria toda a minha vida e
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 133

não estaria pagando um preço alto demais. Para suportar isso por
mais tempo, seria preciso se transformar fisicamente. Acredito
que o homem deixa de procriar. Para que crianças, se a meta
tiver sido alcançada? -
Compreensão do símbolo da ressurreição:
"Depois da ressurreição, as pessoas não irJ.o mais procriar,
as pessoas serão como os anjos de Deus", isto é, a meta terá sido
alcançada: para que crianças? ... Na criança se expressa a insatis-
fação da mulher...

11 (338)
Se os homens tivessem consequência no corpo vivo, eles
também teriam consequência na cabeça. Mas sua miscelânea ...

11 (339)
Onde é que mais experimentei enfado? Em ver que nin-
guém mais tem a coragem de pensar até o fim ...

11 (340)
Os presságios de uma grande revolta: um cinismo às ordens,
uma sede por escândalo, agaçant, irritation, lassitude. 1112 O público
perde seus nervos, ele não se reconhece mais por vias falsas.
Nos momentos de crise, sente-se uma grande quantidade
de indivíduos surgir das camadas mais profundas da população,
indivíduos que não possuem nenhuma meta, nenhuma ideia de
qualquer tipo, e que só se distinguem por meio do amor à désor-
dre. m Quase sempre, eles se encontram sob o ímpeto dos peque-
nos grupos dos "avancés", '" que fazem com eles o que querem ...
Os gens de rien 115 a.lcançaram repentinamente uma impor•
tância, eles passaram a criticar ,cm voz alta todas as coisas res-
peitáveis, eles, que até aqui não tinham ousado abrír a boca, e

182 N.T.: Em francês no original: enervante, Irritação, lassidão.


183 N.T.: Em francês no original: desordem.
184 N.T.: Em francês no original: avançados.
185 N.T.: Em francês no original: As pessoas de nada.
134 FRIEDRICH NI ETZSCHE

os mais talentosos os ouviram silenciosamente, com frequência


mesmo, com um pequeno sorriso de aquiescência.

11(341)
- buscando uma solidariedade criminosa e conquistando
seu domínio sobre ele?
A espionagem. Em seu sistema, todos os membros têm os
olhos cravados sobre os outros, a delação é compromisso. Cada um
pertence a todos e todos pertencem a cada um. Todos são escravos e
iguais na escravidão. A calúnia e o assassinato nos casos extremos,
mas por toda parte a "igualdade''. Antes de mais nada, rebaixar,
reduzir o nível da cultura científica e dos talentos! Um nível cientí-
fico só é acessível a inteligências mais elevadas; mas não pode ha-
ver nenhuma inteligência mais elevada. Homens com capacidades
elevadas sempre tomaram o poder e sempre se tornaram déspotas.
Eles não podem ser outra coisa senão déspotas, eles sempre fize-
ram mais mal do que bem; as pessoas os expulsam e os entregam
au suplice.'"" Cortar a língua de Cícero, cegar Copérnico, apedrejar
Shakespeare... Escravos têm o direito de ser iguais: sem despotismo,
nunca houve nem líberdade nem igualdade, mas em um rebanho a
igualdade pode imperar... É preciso aplanar as montanhas; abaixo
a aula e a ciência! Tem-se disso o suficiente por um século; mas é
preciso organizar o obediente, a única coisa que falta no mundo. A
sede por estudo é uma sede aristocrática. Com a família ou o amor,
desaparece a sede por propriedade. Nós mataremos essa sede: nós
aplacaremos a embriaguez, o barulho, a delação, nós propagaremos
uma digressão sem iguais, nós enforcaremos os gênios no be.rço.
"Redução de tudo au même dénominateur,'81 igualdade perfeita!"
"Nós aprendemos um oficio e somos homens honnête;"ª
não temos necessidade de nada além disso" - foi isso que disse-
ram jovens trabalhadores ingleses. Só o necessário é necessário:
esse deve se tornar a partir de agora o epíteto que rege o globo

186 N.T.: Em franQês no original: ao suplício.


187 N.T.: Em franQês no original: ao mesmo denominador.
188 N.T.: Em franQês no original: hones10s.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 135

terrestre. Mas também se precisa de convulsões, e nós cuidare-


mos disso, nós outros, lideres e condutores... Os escravos preci-
sam ter senhores. Obediência completa, despersonalização com-
pleta: mas a cada 30 anos se dará o sinal para convu.lsões, e todos
se entregarão repentinamente a elas, devorando-se mutuamente;
mas até certo ponto naturalmente, com a única finalidade de não
se entediar. O tédio é um sentimento aristocrático; no social ismo
não haverá desejos. Nós nos reservamos a dor e os desejos, os es-
cravos terão o socialismo. Pensei em legar o mundo ao papa. Ele
pode sair a pé de seu palácio e dizer ao povo: "foi a isso que me
reduziram!" - Tudo, mesmo o exército, se curvará aos seus pés.
O papa em cima, nós à sua volta e abaixo de nós o socialismo...
As Internacionais precisam se colocar de acordo com o papa: ele
logo concordará, ele não tem nenhuma outra saída ...
Vós sois belos! Vós esqueceis por vezes o que há de exóti-
co em vós! Mesmo a bonomia e a ingenuidade! Vós sofreis sem
dúvida, v6s sofreis profundamente, em razão dessa bonomia.
Sou niilista, mas amo a beleza - je suis nihilisre, mais j'aime la
beauré. Os niilistas não a amam? O que eles não amam são as
imagens idolátricas: eu, eu amo as imagens idolátricas, e vós sois
a minha imagem idolátrica.
Vós não insultais ninguém e sois em geral detestados; vós
considerais todos os homens como vossos iguais e todos vos te-
mem: é justo que seja assim. Ninguém ousará bater em vossos
ombros. Vós sois um terrível aristocrata, e quando o aristocrata
vai ter com democratas, então ele se mostra como um charmeur. 189
É-vos igualmente indiferente sacrificar vossa vida ou a vida dos
outros. Vós sois precisamente o homem de que se precisa...
Nós penetramos agora no próprio povo, nós nos encon-
tramos suficientemente fortes agora. Os nossos não são apenas
aqueles que estrangulam, incendeiam e dão co11ps 190 clássicos.
Esses acabam nos obstruindo ainda mais ... Não concebo nada
sem disciplina. Contei-os a todos: o mestre, que escarnece com

189 N.T.: Em franoês no original: alguém que exerce o poder de seu charme.
190 N.T.: Em franoês no original: golpes.
136 FRIEDRICH NIETZSCHE

seus alunos de seu Deus e seu berço; o advogado, que defende


um assassino traiçoeiro mu.ito culto e que prova que este teve uma
educação melhor do que sua vitima e que, para arranjar dinheiro,
não tinha nenhum outro meio aném de matar; os estudantes que,
para experimentarem uma situação, matam um camponês; os jura-
dos, que sistematicamente libertam todos os criminosos; o procu-
rador, que treme diante do tribunal, por não poder se mostrar sufi-
cientemente liberal... Em meio à administração, entre os eruditos
- quantos não pertencem ao nosso grupo! (- e eles não o sabem!)...
Por outro lado, por toda parte há uma vaidade imensurâvel, um
appéti/191 bestial... Os senhores sabem o quanto agradecemos às
célebres teorias? Quando deixei a Rússia, a teoria de Littré de que
o crime se aproximaria da loucura estava fazendo furor; volto, e o
crime não é mais uma loucura, mas o próprio bon seru, 192 quase
um compromisso, de modo algum um protesto nobre. "fie bien,
como é que um homem esclarecido não matarâ, se ele precisa de
dinheiro?" Mas isso ainda não é nada. O Deus russo abriu espaço
para a bebida; todos são beberrões, as igrejas estão vazias... Se for-
mos os senhores, nós os curaremos... em caso de emergência, os
relegaremos por 40 anos à Tebaida. Mas, por duas gerações, a dé-
bauche193 é necessâria, uma d<ébouche> ignob/e, inoui'e, safe, 19'
essa é que é necessária!... Até agora, o povo russo, apesar da ru-
deza de seu vocabulârio grimoso, não conheceu o cinismo. Os se-
nhores sabiam que o servo se respeitava mais do que Turgeniev se
respeitava?... As pessoas bateram <nele>, mas ele permaneceu fiel
aos seus deuses - e T<urgeniev> abandonou os seus...
O povo precisa acreditar que nós todos conhecemos a meta.
Pregaremos a destruição: essa ideia é tão sedutora. Nós pedire-
mos o auxílio do incêndio - e tiros de pistola... li se cache 19 $...
Carece-se de uma força inaudita...

191 N,T.: Em francês no original: apetlle.


192 N,T.: Em francês no original: bom•senso.
193 N,T.: Em francês no original: devassidão.
194 N.T.: Em francês no original: uma devassidão Ignóbil, desconhecida, sujo.
19S N.T.: Em francês no original: Ele se fecha,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 137

11 (342)
A teatromania

11 (343)
"Ceei tuera cela." 196

11 (344)
O decabrista (levante russo de 1825) buscou durante toda
a sua vida o perigo: o sentimento do perigo o inebriava e tinha se
tomado uma necessidade de sua natureza ... Os mais corajosos em
meio à legenda estavam certamente acessíveis ao medo em um
grau elevado: de outro modo, eles teriam sido muito mais calmos e
não teriam convertido o sentimento do perigo em uma necessidade
de sua natureza. Mas em si vencer a poltronnerie,'"' permanecer
com a consciência dessa vitória e pensar que nada a poderia ter
afugentado - era isso que os seduzia!. .. Estava incluida aí a luta
sob todas as formas; não era apenas na caça aos ursos e no duelo
que ele apreciava em si o estoicismo e as forças de caráter.
Mas a disposição nervosa da geração mais nova não admite
mais a necessidade dessas sensações livres e imediatas, sensações
essas que buscavam com tal ardor algumas personagens inquietas
dos bons e velhos tempos. N<icolas> teria sido tão corajoso cm
todas as situações quanto aquele decabrista: com a única diferença
de que ele não teria encontrado nenhuma satisfação nessa luta; ele
a teria aceitado com indolência e tédio, tal como nos submetemos a
uma necessidade desagradável. Ninb'llém poderia ser comparado
com ele em termos da ira: ele era frio, calmo, raisonnable''Jl8 - con-
sequentemente, ele era mais temvel do que qualquer outro.

11 (345)
Roma pregou um Cristo, que não resistiu à terceira tenta-
ção; ela declarou que não poderia escapar de um império terreno
e proclamou justamente por meio daí o Anticri.sto...

196 N.T.: Em francês no original: Isso matará aquilo.


197 N.T.: Em francês no original: a covardia.
198 N.T.: Em francês no original: ratoável.
138 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (346)
Deus como atributo da nacionalidade
O povo é o corpo vivo de Deus. Uma nação só merece esse
nome enquanto ela tem um deus próprio e enquanto afasta obs-
tinadamente todos os outros de si; somente enquanto ela conta
com o fato de que vai vencer com o seu deus e expulsa os deuses
alheios do mundo como um todo.
Os povos movimentam-se por meio da força de uma ne-
cessidade insaciãvel de chegar à meta: trata-se da afinnação
constante e incansâvel de sua ,existência e negação da morte.
"O espírito da vida", "a corrente da ãgua viva", o princípio es-
tético ou moral da filosofia, la "recherche de Dieu " 199• Em cada
povo, em cada fase de sua existência, a meta de seu movimento
é la recherche de Dieu, de um deus para si, no qual ele acredi-
ta como o único verdadeiro. Deus é a pessoa sintética de um povo
como um todo, con.siderado desde o seu início até o seu fim.
Quando os cultos começam a se generalizar, a destruição da
nacionalidade se acha próxima. Quando os deuses perdem o
seu carãter singular, eles morrem e, com eles, morrem os povos.
Quanto mais forte é uma nação, mais intensamente se distingue
seu deus. Nunca se encontrou um povo sem religião (isto é, sem
o conceito de bem e mal). Cada povo entende essas palavras à
sua maneira. Se essas ideias são compreendidas da mesma ma-
neira junto a muitos povos, então eles perecem, e a diferença
entre bem e mal começa a se extinguir e a desaparecer. A razão
nunca pôde definir tais conceitos, nem mesmo cindi-los de ma-
neira apenas aproximativa: ela sempre misturou-os da mesma
forma vergon.hosa: la science a conclu en faveur de la force
brutale.?110 Isso aconteceu justamente por meio da semiciência,
a maior maldição, o déspota, diante do qual tudo se curva, ela
mesma a ciência ...

199 N.T.: Em francês no original: a busca de Deus.


200 N,T,: Em francês no original: a ciência conolul em favor da força brutal.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 139

11 (347)
Os judeus só viveram para esperar o verdadeiro Deus; os
gregos divinizaram a natureza e legaram ao mundo sua religião,
ou seja, a filosofia e a arte. Roma divinizou o povo no Estado.

11 (348)
"Si un grand peuple ne croit pas qu 'en /ui seul se rrouve
la vérité, s 'il ne se croit pas seu/' appelé à ressusciter e/ à sauver
/ 'univers par sa vérité, i/ cesse immédiatement d'être u,1 grande
peup/e pour devenir une matiére éthnographique."201
Um povo verdadeiramente grande nunca se satisfez com
um papel secundário, um papel mesmo que influente não lhe sa-
tisfaz; ele precisa incondicionalmente do primeiro papel. A nação
que abdica dessa convicção abdica da existência...

11 (349)
i/ y a /à un audacieux défi au sens commun:m foi isso que
vos seduziu!...

11 (350)
A segunda metade da vida é constituída de hábitos que se
contraíram n.a primeira.

11 (351)
il faut être un grand hom me pour savoir rés ister au bon
sens: un grand homme ou un imbécile. 203

201 N.T.: Em francês no original: Se um grande povo não acredita que só em


si mesmo se encontra a verdade, se ele não acredita que só ele foi cha•
mado para ressuscitar e salvar o universo por melo de sua verdade, ele
deixa Imediatamente de ser um grande povo para se tornar uma matéria
etnográflca.
202 N.T.: Em francêsno original: há ai um desafio audacioso ao senso comum.
203 N.T.: Em francês no original: é preciso ser um grande homem para saber
resistir ao bom-senso: um grande homem ou um Imbecil.
140 FRIEORICH NIETZSCHE

11 (352)
Malebranche disse que Deus, por ser Deus, só teria podido
agir com os meios mais simples.
"Dieu, parce qu 'il était Dieu, ne pouvait agir que parles
voies les plus simples"
Consequentemente - não há Deus algum.

11 (353)
"Seguir ao seu sentimento?"
O fato de, cedendo a um sentimento mais generoso, se co-
locar em risco sua vida, e isso sob o impulso de um instante: isso
tem um valor pequeno... e não chega nem mesmo a caracterizar...
todos são iguais na capacidade para tanto - e na resolução em
nome de tal possibilidade, o criminoso, o bandido e o corso nos
excedem certamente a todos nós, homens honestos ...
O estágio mais elevado é: superar esse impela em si e não
realizar o ato heroico por impulso - mas de maneira fria, racio-
nal, sem o transbordar tempestuoso de sentimentos de prazer...
O mesmo vale para a compaixão: ela precisa ser primeiro
filtrada habitualmente peta raison; 2°' de outro modo, ela é tão
perigosa quanto qualquer afeto ..-
Ajlexibilidade cega contra um afeto, sem levar minima-
mente em conta se se trata de um afeto generoso ou compassivo
ou hostil, é a causa do maior dos males ...
A grandeza do caráter não consiste no fato de não se possuí-
rem esses afetos - ao contrário, as pessoas os possuem em um grau
terrível; mas no fato de as pessoas refreá-los... e mesmo isso sem
qualquer prazer por essa domesticação, mas meramente porque...

11 (354)
Incompreensões cristãs
O larápio na croz: - se o próprio criminoso, que sofre uma
morte dolorosa, julga: "o modo como esse Jesus sofre e morre,
sem revolta, sem hostilidade, benevolente, entregue, esse, sim, é

204 N.T.: Em francês no original: razão.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 141

o modo correto": então ele afirmou o Evangelho: e, com isso, ele


se encontra no paraíso ...
O reino dos céus é um estado do coração (- diz-se em rela-
ção às crianças "pois vosso é o reino dos céus"); nada que esteja
"sobre a terra".
O reino de Deus não "chega" histórico-eronologicamente,
não chega segundo o calendário, ele não é algo que se apresentaria
um dia e que no dia anterior ainda não estaria presente: mas trata-
-se de uma "transformação do sentido no singular'', algo que acon-
tece em qualquer tempo e todo tempo ainda não se apresenta...
Moral: o fundador do cristianismo precisou expiar o fato
de ele ter se voltado para a camada mais baixa da sociedade e da
inteligência judaicas.
- ela o concebeu de acordo com o espírito de acordo com
o espírito que ela compreendeu...
- trata-se de uma verdadeira vergonha que se tenha fabri-
cado uma história da graça, um Deus pessoal, um re-
dentor pessoal, uma imortalidade pessoal e que se tenha
mantido de resto toda a. mesquinharia da "pessoa" e da
"história" a partir de uma doutrina que contesta a reali-
dade de tudo o que é pessoal e histórico...
A lenda da graça no lugar do tempo simbólico do agora e
do sempre, aqui e por toda pa.rte, o milagre no lugar do símbolo
psicológico.

11 (355)
Se compreendo alguma coisa desse grande simbolizador,
então é o fato de ele ter visto e reconhecido roa/idades internas:
o fato de ele ter compreendido o resto (tudo o que é natural, his-
tórico, politico) apenas como sinal e oportunidade para a alegoria
- não como realidade, não como "mundo verdadeiro" ...
Ao mesmo tempo, o filho do homem (Adão) não é urna
pessoa concreta da história, mas um "fato eterno", um simbolo
psicológico não enclausu.rado na história ...
O mesmo é válido finalmente em grau maximamente ele-
vado ainda uma vez para Deus, esse tipico simbolizador... para o
Reino de Deus, para o ''Reino dos Céus"...
142 FRIEDRICH NIETZSCHE

o "Pai" e o "filho": este último expressa a entrada naquele


estado de transfiguração conjunta de todas as coisas, o primeiro
é justamente esse...
- e essa representação foi a tal ponto malcompreendida
que se colocou a história de Anfitrião (um adultério mal-
camuflado) no ápice da nova crença (ao lado da repulsi-
va representação de uma imaculada concepção: como se
a concepção fosse em si algo maculado-)
A profunda degradação:
1) por meio da vontade de compreender historicamente
2) por meio do querer ver milagres (- como se se tratasse
de leis naturais rompidas e superadas!)
3) ---

11 (356)
Não há como compreender pior o cristianismo do que quan-
do se supõe que no início se acharia a tosca história do milagrei•
ro e redentor e que a consideração espiritual e simbólica seria
apenas uma fonna tardia da metamorfose ...
Ao contrário: a história do cristianismo é a história da ne-
cessidade de incompreensão gradual cada vez mais tosca de um
simbolismo sublime ... : com cada expansão do cristianismo sobre
massas cada vez mais amplas e rudimentares, que se achavam
distantes dos instintos originários do cristianismo (- dos quais
provinham todos os pressupostos para compreendê-lo), sempre
veio à tona uma história de lendas, uma teologia, uma fundação
de igrejas - : a necessidade das camadas mais baixas, mais tarde
das camadas bárbaras, trouxe consigo a necessidade de vulgari-
zar o cristianismo, e, em seguida, de barbarizá-lo ...
A Igreja é a vontade de manter a linguagem vulgar e bárba•
ra do cristianismo como "a verdade" - ... e hoje ainda!
O paulinismo, o platonismo agostiniano - : até ficar final-
mente pronta essa caricatura vergonhosa de filosofia e rabinismo,
a teologia cristã...
os componentes indignos do cristianismo:
o milagre
a hierarquia das almas, o nível hierárquico
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 143

a história da graça e a crença nela...


o conceito do "pecado"
a história do cristianismo é a necessidade de que uma cren-
ça mesma seja tão baixa e tão Vl!llgar quanto o são os carecimen-
tos, que devem ser satisfeitos com ela -
... pensemos em Lutero! O que uma natureza sobrecarregada
com desejos tão toscos poderia fazer com o cristianismo originário!
o nível judaico da desnaturalização: "lixo, infelicidade,
expiação, reconciliação" como esquemas restantes - de resto
ódio contra o "mundo"
Jesus se dirige diretamentte para a situação, para o "reino
dos céus" no coração, e não encontra os meios para tanto na ob-
servância da Igreja judaica - ele mesmo não leva minimamente
em conta a realidade do judaísmo (sua urgência em se conser-
var); ele é puro internamente -
Do mesmo modo, ele tallilbém não se mistura com o con-
junto das fórmulas toscas no trânsito com Deus: ele se volta con•
tra toda a doutrina da expiação e da reconciliação; ele mostra
como é que se precisa viver para se sentir "divinizado" - e como
é que não nos livramos de nossos pecados com a expiação e com
a contrição: seu julgamento principal é o de que "não importa o
pecado". Para se tomar"divino", o principal é que se esteja farto:
nessa medida, o pecador é até mesmo melhor do que o justo...
Pecado, cxpiaçã.o, perdão - nada disso pertence a esse con-
texto... isso é judaísmo imiscuido, ou é pagão

11 (357)
o sentimento profundo acerca de como precisaríamos vi-
ver, para nos sentirmos "no céu", enquanto no outro caso não nos
sentimos de maneira alguma no céu... essa é a realidade psicoló-
gica do cristianismo

11 (358)
Nosso século XIX tem frnalmente os pressupostos para
compreender algo que 19 séculos não compreenderam - o
cristianismo...
144 FRIEORICH NIETZSCHE
·······························································································

Estava-se indescritivelmemte longe daquela neutralidade


adorável e consciente - desse estado cheio de simpatia e cultivo
do espírito-, de uma maneira vergonhosa, esteve-se durante todo
o tempo da Igreja por demais cego e egoísta, enxerido, sem ver-
gonha, sempre com a cara da mais submissa veneração

11 (359)
o simbolismo do cristianismo baseia-se no simbolismo ju-
daico, que jã tinha dissolvido também toda a realidade (história,
natureza) em uma antinaturalidade sagrada e em uma irrealidade
sagrada... que não queria mais ver a história efetivamente real -
que não se interessava mais pelo sucesso natural -

11 (360)
Não se deve resistír àquele que se zanga conosco nem por
meio da ação nem no coração.
Não se deve reconhecer nenhuma razão para se separar de
sua mulher. Talvez mesmo: "deve-se castrar-se".
Não se deve fazer nenhuma diferença <entre> estranhos e
pessoas da terra, estrangeiros e compatriotas.
Não se deve se enfurecer com nin!,'Uém, não se deve des-
pr~ar ninguém ... Dai esmolas escondidos - não se deve querer
ficar rico -
Não se deve jurar - não se deve julgar - deve-se reconci-
liar, deve-se perdoar - não oreis cm público -
Deixai que os outros vejam vossas boas obras, deixai vossa
luz brilhar! Quem chegará ao céu? Aquele que fizer a vontade de
meu Pai no céu...
A "bem-aventurança" não é nada prometido: ela está pre-
sente, quando se vive e age de tal e tal modo:
A Igreja não é precisamente isto: "falsos profetas em pele
de cordeiro, por dentro lobos ferozes?" ...
''Vaticinar, fazer milagres, exorcismar diabos - tudo isso
não é nada" ...
De wna maneira total.mente absurda, a doutrina da recom-
pensa e da punição é misturada: com isso, tudo é estragado.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 (Vol. VII) 145

Do mesmo modo, a práxis da primeira ecclesia militans,m


do apóstolo e seu comportamento,é apresentada de uma maneira to-
talmente falseadora como necessária, como finnada de antemãc...
a divinização ulterior da vida e da doutrina fãticas dos pri-
meiros cristãos: como se tudo se achasse assim prescrito ... e fos-
se meramente seguido ...
toda a atitude dos profetas e dos milagreiros, a ira, a evo-
cação do juízo final, tudo isso ê uma degradação aviltante (por
exemplo, Marcos 6, 11 , "e aqueles que não vos acolherem ... eu
vos digo, verdadeiramente, serã Sodoma e Gomorra etc.")
a figueira
''Não há nenhum lugar em que um profeta tenha menor
validade do que em sua terra natal, do que junto aos seus": dispa-
rate, o contrário é a verdade ...
Em segujda, temos até mesmo o cumprimento dos vati-
cÍllios: quantas coisas não foram falsificadas e justificadas por
meio dai!
11(361)
N.B. A partir de seu niilismo, Schopenhauer tinha toda ra-
zão em só manter a compaixão como virtude: com a compaixão
fomenta-se de fato da maneira mais intensa possivel a negação da
vontade de vida. A compaixão, a caritas, na medida em que per-
mite aos deprimidos e aos fracos continuar vivendo e ter suces-
sores, atrapalha as leis naturais do desenvolvimento: ela acelera a
decadência, destrói a espécie - ela nega a vida. Por que é que as
outras espécies animais se mantêm de maneira saudável? Porque
a compaixão não lhes diz respeito.

11 (362)
N.B. A tendência antissocial, a destruição do espi.rito, o
pessimismo: as três formas tipicas da décadence. O cristianismo,
como uma religião da décadence, cresceu sobre um mesmo solo,
que pululava de degenerados de todos os três tipos

20S N.T.: Em latim no orlslnal: militância eclesiástica.


146 fRIEDRICH NIETZSCHE

11 (363)
Nós produzimos uma vez mais o ideal cristão: resta deter-
minar seu valor.
1) Que valores são negados por meio desse ideal: o que
contém o ideal oposto?
Orgulho, páthos da distância, a grande responsabilidade, a
alegria doida, a animalidade exuberante, os instintos guerreiros e
sequiosos de conquistas, a divinização da paixão, da vingança, da
astúcia, da ira, da volúpia, da aventura, do conhecimento...
: o ideal nobre é negado: beleza, sabedoria, poder, fausto e
periculosidade do tipo homem: do homem que estabelece metas,
o homem "p0r vir" (- aqui a cristandade se revela como conclu-
são final do judaísmo - )
2) esse ideal é realizáven
Sim, mas ele é climaticamente condicionado... De ma-
neira semelhante ao ideal indiano... Falta o trabalho ... - ele
vem à tona a partir do p0vo, do Estado, da comunidade cu 1-
tural, da judicabilidade, ele recusa a aula, o saber, a educação
para as boas maneiras, a aquisição, o comércio... ele substitui
tudo aquilo que constitui a utilidade e o valor do homem - apo-
litico, antinacional, nem agressivo nem defensivo - só posslvel
no interior da vida pública e da vida social mais firmemente
ordenada, que deixa pulular esses parasitas sagrados às custas
de todos ...
3) Resta uma consequência da vontade de prazer - e de
nada além disso! "A bem-aventurança" é considerada como algo
que comprova a si mesmo, que não precisa mais de nenhuma
justificativa ulterior - todo o resto (o modo de viver e de deixar
viver) é apenas meio para fim ...
- Mas isso é pensado de maneira baixa: o medo ante a
dor, ante a impureza, ante a degradação mesma como
motivo suficiente para deixar tudo correr... Esse é um
modo pobre de pensar... Sinais de uma raça esgotada ...
Não podemos nos deixar enganar ("tomai-vos como as
crianças") - as naturezas aparentadas: Francisco de As-
sis (neurótico, epilético, visionário como Jesus)
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 147

11 (364)
Para a história do cristianismo
Transfonnações constantes do meio: com isso, a doutrina
c.ristã altera constantemente seu peso mais pesado (seu fiel da
balança)...
o favorecimento das pessoas mais baixas e merwres ...
o desenvolvimento da caritas...
o tipo "Cristo" acolhe gradualmente tudo que ele tinha ini-
cialmente negado de novo (em cuja negação ele se encontrava - )
o Cristo toma-se burguês, soldado, funcionário do tribu-
nal, trabalhador, comerciante, erudito, teólogo, padre, filósofo,
agricultor, artista, patriota, político, "príncipe" ... ele assume de
novo todas as atividades que ele tinha abjurado (- a autodefesa,
o julgamento, o punir, o conjurar, o distinguir entre os povos, o
menosprezar, o zangar-se...)
Toda a vida do Cristo é, por fim, exatamente a vida da qual
o Cristo tinha pregado a separação...
A Igreja pertence tanto ao triunfo do anticristão quanto o
Estado moderno, o nacionalismo moderno...
A Igreja é a barbarização do cristianismo.
Assenhoreou-se do cristianismo: o judaísmo (Paulo), o
platonismo (Agostinho), o culto aos mistérios (doutrina da re-
denção, imagem sensível da "cll'UZ"), o ascetismo (- hostilidade
contra a "natureza", a "razão", os "sentidos", - Oriente...)

11 (365)
falta o conceito excêntrico da "sacralidade" -
"Deus" e "homem" oão são arrancados um do outro
falta o "milagre" - não há de modo algum aquela esfera...
- a única esfera que é co:nsiderada é a esfera "espiritual"
(ou seja, simbólico-psicológica) como décadence: parte
lateral do "epicurismo"... o paraíso, segundo o conceito
grego, também um "jardim de Epicuro"
falta a tarefa em uma tal vida
: não se quer nada ...
: uma fonna dos "deuses epicuristas" -
148 FRIEDRICH NI ETZSCHE

: falta todo fundamento para estabelecer ainda metas: ter


filhos ... tudo foi alcançado ...
O cristianismo ainda se mostra como possível a cada ins-
tante ... ele não está ligado a nenhum dos dogmas descarados que
se adornaram com o seu nome:· ele não precisa nem da doutri-
na do Deus pessoal, nem do pecado, nem da imortalidade, nem
da redenção, nem da crença, ele não tem pura e simplesmente
nenhuma necessidade da metafísica, menos ainda do ascetismo,
ainda menos de uma "ciência natural" cristã...
Quem dissesse agora "eu não quero ser soldado", "não me
preocupo com os tribunais", "não lanço mão dos serviços da po-
licia" - esse seria cristão... "eu não quero fazer nada que perturbe
a paz em mim mesmo: e, se precisar sofrer por isso, nada manterá
mais a minha paz do que o sofrimento" ...
Toda a doutrina cristã daquilo cm que devemos acreditar,
toda a "verdade" cristã" é uma pura mentira e um puro engodo:
e exatamente o contrârio daquilo que se deu no início do movi-
mento cristão...
Justamente aquilo que é o cristão no sentido eclesiástico
se mostra desde o princípio como o anticristão: coisas e pessoas
apenas, ao invés de símbolos, história apenas, ao invés dos fatos
eternos, f6nnulas somente, ao invés de uma práxis da vida ... cris-
tã é a completa indiferença em relação a dogmas, culto, padres,
Igreja, teologia.
A práxis do cristianismo não é uma criação fantástica,
assim como não o é a práxis do budismo: ela é um meio de
ser feliz ...

11 (366)
Nossa época está em certo sentido madura (a saber, déca-
dent), tal como aconteceu com o tempo de Buda...
Por isso, uma cristandade sem os dogmas absurdos não é
possivel...
Os abortos mais repulsivo,s do hibridismo antigo
A barbarização da cristandade
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 149

11 (367)
Christinanismi et buddhismi Essentia206
(Comparação do primeiro budismo e
da primeira cristandade)
Budismo e cristandade são religiões conclusivas: para além
da cultura, da filosofia, da arte, do Estado
A. Pontos em comum: a l.uta contra os sentimentos hostis
- esses sentimentos reconhecidos como fonte do mal. A "felici-
dade": só como interior - indiferença em relação à aparência e à
pompa da felicidade.
Budismo: querer se livrar da vida, clareza filosófica; emer-
giu de um grau elevado de espiritualidade, em meio às camadas
mais elevadas...
Cristandade: quer no fundo o mesmo (-já "a Igreja judai-
ca" é um fenômeno de décadence da vida); mas de acordo com
uma falta de cultura profunda, sem saber cm tomo daquilo que se
quer... pennanecendo presa à "bem-aventurança" como meta...
B. Os instintos mais fortes da vida não são mais sentidos
como prazerosos, mas, antes, como causas dos sofrimentos
Para o budista: na medida em que esses instintos impelem
à ação (mas o agir é considerado um desprazer. .. )
Para o cristão: na medida em que eles dão ensejo à hostili-
dade e à contradição (o ser inimigo, o causar dor, porém, é consi-
derado um desprazer, uma perturbação da ''paz da alma")
(Um soldado habilidoso não possui inversamente nenhuma
alegria fora da justa condução de uma guerra e da justa disposi-
ção hostil)

11 (368)
Sobre o tipo Jesus.
- O que resta para ser deduzido? Todo o tipo de motivação
da sabedoria de Cristo, assim como de seus atos vitais ... es-
ses atos devem ser emp=didos como obediência contra
as promessas; ele preenche, ele tem um esquema de tudo

206 N.T.: Em latim no original: Essência do cristianismo e do budismo.


150 FRIEORICH NIETZSCHE

aquilo que o messias tem de fazer e tem de sofrer, um pro-


grama... Por outro lado, todo "pois" na boca de Jesus é não
evangélico... Utilidade, esperteza, retribuição, punição...
- O que resta para ser deduzido: a medida abastada da bílis,
algo que fluiu do estado ,excitado da primeira propaganda
para o tipo de seu mestre... ela o fez segundo sua imagem,
ela justificou-se, na medida em que fez dele um profeta
judieativo, querelante, iracundo, odiento... ela precisava
de um tal "arquétipo" - : assim como da fé no "retomo",
no '1uizo final" (- isso é judeu, ver apocalipse)
A supersriçào e a conrradiçào psicológicas na a/ilude de
Jesus contra os clérigos e os teólogos da Igreja judaica...
Do mesmo modo, na história tipica da figueira -
O problema psicológico com vistas ao mestre de uma tal
doutrina é exato: "como é que ele se comporta em relação às ou-
tras doutrinas e aos outros mestres?"
Sua própria doutrina não surgiu da oposição e da contradi-
ção: duvido que uma tal natureza pudesse sa.ber algo sobre uma
oposição e uma contradição cm relação à sua doutrina ... Falta-lhe
absolutamente a imaginação livre, que é característica do poder-
-avaliar e do poder-querer de maneira diversa ... ela não pode se
imaginar julgando de modo oposto... Onde ela o faz, ela apenas
lastima com a mais Intima compaixão uma "cegueira", mas não
falarà contra tal "cegueira"...
Falta a dialética, falta a crença em uma demonstrabilidade
da doutrina, afora a demonstrabilidade por meio dos "efeitos in-
ternos" ("frutos", "demonstração da força"
Um tal mestre não pode contradizer... ele não sabe de modo
algum como se poderia combate.r o erro ... ele não se defende, ele
não ataca...
Em contrapartida, o explicar, o prosseguir, o tomar sutil, a
transfiguração do antigo: essa é a sua questão... a abreviação ...

11 (370)
uma religião niilista, surgida de um povo que tinha so-
brevivido a todos os instintos fortes, um povo tenaz, senil e
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 151

comedido- transportado passo a passo para outro meio, entran-


do, por fim, nos povos jovens, ,que ainda não tinham vivido de
modoalgum -
muito estranho! Uma bem-aventurança final, pastoril,
noturna, pregada para bárbaros, para os germanos! O quanto
isso não precisou ser primeiro germanizado, barbarizado! Para
aqueles que tinham sonhado uma valha/a ... -: os quais encon-
travam toda a felicidade na guerra! - uma religião supranacio-
nal, pregada em meio a um caos, no qual ainda não havia nem
mesmo nações -

11(371)
1 : essa religião niilista procura se recompor a partir dos

elementos de decadência e coisas semelhantes na Antiguidade,


a saber:
a) o partido dos fracos e malfadados ... (a escória do mun-
do antigo: aquilo que ele mais vigorosamente expelia
de si...
b) o partido dos moralizados e antipagãos...
c) o partido dos politicamente cansados e indiferentes (ro-
manos esnobes...), dos desnaturalizados, para os quais
restou um vazio
d) o partido daqueles que estilo fartos de si - que gostam de
trabalhar em uma conjuração subterrânea -

11 (372)
Na Antiguidade, o cristianismo foi o grande movimento
niilista, que terminou com a sua vitória: e desde então ele vem
governando...

11 (373)
Os dois grandes movimentos niilistas: a) o budismo, b) o
cristianismo: o cri.stianismo só alcançou mais ou menos agora
estados culturais, nos quais ele pode preencher sua determinação
originária - um nível, ao qual ele pertence ... no qual ele pode se
mostrar de maneira pura ...
152 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (374)
Nosso privilégio: nós vivemos na era da comparação, po-
demos computar como nunca se pôde computar até aqui: somos
a autoconsciência da história em geral...
Nós desfrutamos de outra fonna, sofremos de outra fonna:
a comparação de algo extraordinariamente plural é nossa ativida-
de instintiva...
Nós compreendemos tudo, vivemos tudo, não temos mais
nenhum sentimento hostil voltado para trás ... Por mais que pos-
samos sair mal daí, nossa curiosidade amãvel e quase afetuosa se
lança destemidamente rumo às coisas mais perigosas...
"Tudo é bom" - precisamos nos esforçar para negar...
Nós sofremos, quando nos tomamos algumas vezes tão
pouco inteligentes, que tomamos partido contra algo ...
No fundo, nós, eruditos de hoje, preenchemos da melhor
forma possível a doutrina de Cristo - - -

11 (375)
Para a cririca da filosofia grega
A aparição dos filósofos gregos a partir de Sócrates é um
sintoma de décadence; os instintos anti-helenistas ascendem ...
O "sofista" ainda é totalmente helênico - inclusive Anaxá-
goras, Demócrito, os grandes jônicos.
Mas como fonna transitó:ria: a pólis perde sua crença em
sua unicidade da cultura, em seu direito senhorial sobre todas as
outras pólis...
troca-se a cultura, isto é, "os deuses" - perde-se, nesse
caso, a crença no privilégio único do deus authochthonus207 •••
o bem e o mal de proveniência diversa se misturam: os
limites entre bem e mal se imiscuem ...
Isso é o "sofista" -
O "filósofo", cm contrapartida, é a reação: ele quer a an-
tiga virtude...

207 N.T.: Em latim no original: o deus autóctone.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 153

- ele vê as razões <da decadência> na decadência das ins-


tituições, ele quer as antigas instituições -
- ele vê a decadência na decadência da autoridade: ele
busca novas autoridades (viagens para o estrangeiro,
para literaturas estrangeiras, para religiões exóticas...)
- ele quer a pó/is ideal, depois de o conceito "pólis" ter so-
brevivido (mais ou menos como os judeus se mantiveram
como "povo", depois de terem caído em escravidão)
: eles se interessam por todos os tiranos: querem reproduzir
a virtude com force majeure -
- paulatinamente, tudo aquilo que é autenticamente hele-
no é responsabilizado pela decadência (e Platão é exa-
tamente tão ingrato em relação a Homero, à tragédia, a
Péricles, quanto os profetas em relação a David e Saul).
- o declínio da Grécia é ccmpreendido como objeção às ba-
ses da cultura helênica: erro fundamental dos filósofos -
Concl11siio; o m\l!!do gNgo pereçe, Ça~a; Homem, o
mito, a eticidade antiga etc.
O desenvolvimento anti-helênico do juízo de valor dos
filósofos:
: o egípcio ("vida depois da morte" como julgamento...)
: o semítico (a "dignidade dos sábios", dos "xeiques" -
: os pitagóricos, o culto subterrãneo, o silêncio, os meios
de amedrontamento oriundos do além; a matemática: avaliação
religiosa, um tipo de trânsito com o universo cósmico
: o sacerdotal, ascético, transcendente -
: a dialética - acho que se trata de uma literatice conceituai
desprezível e pedante já cm Platão?
Decllnio do bom gosto espiritual: não se sente mais o cará-
ter feio e /arame/ante de toda dialética direta.
Os dois movimentos de décadence e os dois extremos se-
guem um ao lado do outro:
a) a décade11ce exuberante, adoravelmente perversa, que
adora o fausto e a arte,
b) e o turvamento produzido pelo páthos religioso e moral,
o autoenrijecimento estoico, a condenação platônica dos
sentidos, a preparação do solo para o cristianismo...
154 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (376)
N.B. Nossas mais sagradas convicções, nosso imutável
com vistas aos valores supremos são juizos de nossos mrísculos.

11 (377)
De J. Wellhausen
Justiça como exigência social:
"a justiça do sermão da montanha só pode ter lugar se a
ordem jurídica burguesa é autoevidentc" ...
os judeus desprezaram o Estado com a arrogância de uma
aristocracia espiritual como o fundamento, sobre o qual se tornou
possível pela primeira vez a sua criação artificial da teocracia...
Sem o Estado não pode existir nenhuma "Igreja"... O domínio
estrangeiro retém o páthos da distância.
os níveis da desnaturalização:
: por meio da instituição da monarquia houve uma pri-
meira nação, uma unidade, uma autoconsciência conjunta: com
isso, p0rém, perdeu-se o "Deus do deserto", assim como o Deus
natural (de Canaã) adotado pelos agricultores e pelos criadores
de gado (Dioniso do Baal) - - O culto festivo permaneceu, em
verdade, durante muito tempo semipagão; mas passou a se ligar
cada vez mais com os destinos da nação e se desfez de seu cará-
ter natural. Javé em uma relação necessária com o povo e com
o reino: essa crença se achava firmada mesmo para os maiores
idólatras: a vitória e a graça não vieram de ninguém mais senão
dele. O Estado civil foi o milagre, foi "a ajuda de Deus": "a pro-
vidência da autoridade" permaneceu um ideal (- evidentemente
porque ela lhes faltava ... )
Quando o reino se viu esgarçado e em perigo, no momen-
to em que as pessoas começaram a viver em uma anarquia e cm
um esfacelamento extremos, em temor diante dos assírios, elas
passaram a sonhar tanto mais intensamente com o retorno do
regime completamente imperial, do Estado nacional em toda a
sua independência: esse tipo de fantasia é a fantasia profética.
Isaías é o tip0 mais elevado com as suas assim chamadas pro/e•
cias messiânicas - profetas eram críticos e satíricos, anarquistas;
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 155

no fundo, eles não tinham nada a dizer, a direção estava em outras


mãos; eles queriam o restabelecimento do Estado civil; eles não
queriam de modo algum uma "época de ouro", mas um regime
rígido e rigoroso, um príncipe com instintos militares e religio-
sos, que instituísse uma vez mais a confiança em Javé. Esse prín-
cipe é o "messias": todo soberano moderno teria feito bastante
pela nostalgia dos profetas, talvez mesmo coisas demais: como
se precisa recear...
Mas nada se cumpriu. Tinha-se a escolha de abdicar de seu
antigo Deus ou fazer com Ele outra coisa. Foi essa última alter-
nativa que tomaram, por exemplo, Elias e Amós: eles cortaram
o laço, mais exatamente a unidade entre povo e Deus; mas não
cortaram apenas esse laço, elevaram ao mesmo tempo um dos
lados e reprimiram o outro: eles conceberam uma nova relação
entre as duas partes, uma relação de reconciliação. Javé tinha
sido até então o Deus de Israel e, consequentemente, o Deus da
justiça; agora, ele se tomou em primeiro lugar é acima de tudo
Deus da justiça e, além disso então, o Deus de Israel. A Torá de
Javé, originariamente como todas as suas ações um auxílio, uma
recompensa, uma indicação de caminhos, uma resolução de pro-
blemas complexos, tomou-se a quintessência de suas exigências,
das quais dependia sua relação com Israel.
Uma lei passou por meiod:a! a ter força jurídica, de tal modo
que aqueles para os quais ela era válida se comprometiam a man-
tê-la. "Contrato" em favor da lei. Originariamente, os diversos
defensores do povo tinham se comprometido com a manutenção
da "lei", agora Javé e Israel devem se mostrar como as partes con-
tratantes ... Desde o ato festivo, por meio do qual Josias introduziu
a lei, a ideia do estabelecimento do laço entre Javé e Israel surgiu
no cerne da reflellão religiosa. O ex.ílio babilônico tanto quanto o
ex!lio assírio contribuíram para que as pessoas se familiarizassem
com a ideia da condicionalidade., da solução eventual.
O decllnio do império abriu o caminho para fantasias en-
tusiásticas: o sentimento de oposição em relação a todo o resto
difunde-se: desde o exílio imagina-se de maneira fantasiosa uma
unificação geral de todos os povos contra a "nova Jerusalém".
156 FRIEDRICH NIETZSCHE
...............................................................................................

Anteriormente, o Estado nacional tinha sido o desejo supremo,


agora se sonha com um domínio universal sobre o mundo, um
domínio que tinha de se elevar em Jerusalém a partir das ruínas
do império pagão.
O perigo era de que os exilados judeus, tal como tinha acon-
tecido anteriormente com os exilados samarianos, fossem absor-
vidos pelos pagãos. Organiza-se, então, o resto sagrado, para que
ele permaneça existindo como portador da promessa e para que
sobreviva às tempestades que se derem nesse interregno...
A igualdade de direito das partes contratantes não é essen-
cial: a palavra também fala da capitulação, cujas condições são
impostas pelo mais forte -

Prosseguimento: Wellhausen.
Com vistas ao que se podia realizar a organização? O
restabelecimento de um Estado real era impossível; o domínio
estrangeiro não permitia algo assim. Nesse caso, mostrou-se a
importância das instituições.
A antiga comunidade do [PCrlodo imperial encontrava-se
cm uma péssima fama junto aos homens da restauração: eviden-
temente, ela tinha sido rejeitada por Javé ... Lembremo-nos dos
profetas que diziam: fortificações, cavalos, guerreiros, reis, prín-
cipes - nada disso adianta...
O templo imperial judaico em Jerusalém - à sombra do
império, os sacerdotes de Jerusa'lém tinham se tomado grandes.
Quanto mais fraco se achava o Estado, tanto maior era a estima
do templo, tanto mais autônomo o poder dos sacerdotes. Prospe-
ridade do culto no século Vl 1, introdução de um material dispen-
dioso, por exemplo, incenso, preferência pelas pesadas realiza-
ções (sacrificio de crianças e de pecadores), seriedade sangrenta
no exercício do culto sagrado.
Quando o império entrou em colapso, na classe dos sacer-
dotes havia os elementos presentes para a organização da "comu-
nidade". Os usos e as ordenações estavam presentes em seus ele-
mentos principais: eles foram sistematizados, como meios para a
produção de uma organização d<> resto ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 157

A "constituição sagrada do judaísmo": o produto artifi•


cial... Israel reduzida à condição de "ser um reino de sacerdotes e
um povo sagrado". Anterionnemte, a ordem natural da sociedade
tinha seu apoio na crença em Deus; agora, o Estado de Deus de-
veria ser apresentado de maneira vis[vcl cm uma esfera artificial,
em todo caso, na vida popular habitual. A ideia que penetrou ante-
rionnente a natureza deveria ter agora um corpo sagrado próprio.
Uma oposição extrínseca entre sagrado e profano surgiu, tive-
ram lugar determinações, repeliu-se cada vez mais amplamente
o âmbito natural... (ressentimento ativo - ). A sacralidade, vazia,
antitética, toma-se o conceito regente: originariamente = divino,
agora significando o mesmo que sacerdotal, eclesiástico - como
se o divino fosse contraposto ao mundano, ao natural por meio
de traços distintivos externos -
Hierocracia. .. um produto artificial imposto sob condições
desfavoráveis com uma energia eternamente espantosa, de ma-
neira apolitica: a teocracia de Moisés, o residuo de um Estado
que tinha experimentado seu ocaso - ela tem por pressuposto o
domlnio alheio. Parentesco próximo com a antiga Igreja Católi-
ca, de fato a sua mãe...
No que se baseava o retrocesso. A lei de Jeová significava
a peculiaridade judaica em contraposição aos pagãos. Essa pecu-
liaridade não se baseava, em verdade, no culto: não há nenhum
modo de encontrar uma diferença essencial entre ritos gregos e
hebreus. O culto é o elemento pagão na religião de Israel: no có-
digo dos sacerdotes, ele se toma a questão principal. Não temos
nesse caso uma recaída no paganismo? - foi isso que os profetas
combateram da maneira mais fundamental possível. - Do mesmo
modo: o culto experimenta uma alienação em relação à sua pró-
pria essência por meio da legislação dos sacerdotes, sendo cm si
superado. As festas perderam toda a lembrança da colheita e da
criação de gado; elas denegam a sua proveniência da natureza,
elas festejam a instituição de uma religião sobrenatural e dos atos
da graça por parte de Jeová. O elemento universalmente huma-
no, o elemento que cresce livreJnente, se afasta daí, as festas se
tomam estatutárias e especificamente israelitas... Elas não atraem
158 FRIEDRICH NIETZSCHE

mais a divindade para a vida terrena, de tal modo que a divindade


tome parte em sua alegria e sofrimento, elas não se mostram mais
como tentativas de fazer algo de bom para a divindade e de animá-
-la à graça. Não resta nada senão os meios da misericórdia divi-
na, que Jeová aplicou como sacramentos da hierarquia. Elas não
se fundam no valor interno da coisa, em ocasiões tenras, mas no
comando exato e constrangedor de uma vontade não motivada. O
laço entre culto e sensibilidade é cortado. O culto - um exercício
da bem-aventurança divina; não um significado natural, mas ape-
nas um significado lranscendente, incomparável e impassível de
ser exposto. Seu principal efeito, o pecado. Desde o exilio, a cons-
ciência do pecad.o é pcnnanente; Israel alijada da face de Deus.
O valoroso nas exposições não estava nessas exposições
mesmas, mas na obediência em relação às prescrições; o fiel da
balança do culto passa para um reino que lhe é estranho, a moral
é instaurada. Sacrifícios e donativos retraem-se por detrás das re-
alizações ascéticas, as quais se e:ncontram em uma ligação ainda
mais simples com a moral. Prescrições, que tinham em vista origi-
nariamente em grande parte a santificação dos sacerdotes em meio
às funções de culto, foram estendidas aos leigos; a observação dos
mandamentos da pureza corpóre:a foi de um significado radical-
mente maior do que o b>Tande culto público e conduziu de maneira
direta para o ideal da sacralidade e do sacerdócio universal. Toda
a vida foi restrita a uma via divina, na medida em que sempre ha-
via um mandamento divino a realizar. Isso manteve afastados as
ideias próprias e os desejos do coração. Esse culto privado peque-
no, que sempre apresentava uma requisição aos homens, manteve
desperto e ativo o sentimento do pecado no particular.
O grande patologista do judafsmo tem razão: o culto trans-
formou-se em um meio de domesticação. Ele é alheio ao coração:
ele não se enraiza mais no sentimento ingênuo: ele é uma obra
morta, apesar de toda a importância, ou precisamente por causa
do caráter constrangedor e consciencioso. Os antigos usos são
compilados e transformados em um sistema, cm um sistema que
servia como fonna, como casca dura para salvar algo de nobre af.
O paganismo superado em seu P'.róprio âmbito, no culto: o culto,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 159

depois de a natureza ser morta ·nele, não passa da mera couraça


de um monoteísmo natural - co.nclusão.

11 (378)
Minha teoria acerca do tipo Jesus.
O tipo do "redentor" é degradado, sim, destruído ...
Causas: o nível espiritual, no qual tudo se toma constantemen-
te mais rudimentar, mais encobento, no qual tudo se adia, a cegueira
absoluta em relação a si mesmo (- aqui não se tem ainda nem mes-
mo o inlcio do autoconhecimento - ), a descomunal impossibilidade
de todos os sequaz.cs de pensar em se servir de seu mestre como de
sua apologia... a morte do criminoso Cristo como enigma...
No que concerne ao tipo, ele será retardado: a crueza do
espírito: não se caminha impunemente entre pescadores
: a falsa generalização no tipo de todos os mundos que é o
milagroso, o profeta, o messias -
: a história ulterior e a psicologia da jovem comunidade,
que inseriu seus mais fortes afenos na imagem de seu mestre -
: a sensibilidade e o mimo doentios e digressivos ao invés
de toda razão: de modo que os instintos se tomam de novo ime-
diatamente senhores - não há o, menor rastro de espiritualidade,
de cultivo e de rigor no âmbito espiritual, de conscienciosidade.
Pena que não havia um Dostoiévsky nessa sociedade: de
fato, toda a história se ajusta da melhor forma possível a um ro-
mance russo - algo doentio, algo tocante, traços particulares de
uma liberdade sublime, em meio ao deserto e ao elemento sórdi-
do-plebeu ... (como Maria de Madalena
Somente a morte, a morte inesperada e vergonhosa, somen-
te a cruz, que permanecia em geral poupada à canalha - somente
esse paradoxo de todos o mais tenível colocou os jovens diante do
enigma propriamente dito: "quem era esse?" "O que era isso?"
O sentimento abalado e ofendido da maneira mais profunda,
a suspeita de que tal morte poderia ser a refutação de uma coisa, a
terrível interrogação "por que assim?" - pois aqui tudo precisaria
ser necessário, tudo precisaria ter sentido, razão, uma razão supre-
ma - : o amor de um jovem não conhece nenhum acaso:
160 FRIEDRICH NIETZSCHE

Somente agora se abriu o fosso: "quem o matou?", "quem


era o inimigo natural?" Resposta: o judaísmo dominante, sua pri-
meira classe
- As pessoas se sentiram em meio a um levante contra a
"ordem 11

- As pessoas compreenderam, consequentemente, Jesus


como estando em meio a um levante contra a ordem
Até aí faltava esse traço guerreiro em Jesus: mais ainda,
esse traço era impossível com vistas ao seu modo de pensar.
Praticamente, seu comportamento em relação à condenação e à
morte era certamente o contrãrio: ele não resistia, ele não se de-
fendia, ele pedia por aqueles que o ofendiam. As palavras aos
ladrões na cruz não significavam outra coisa: se tu sentes, que o
correto é não resistir, não maldizer, não tomar responsável, mas
muito mais sofrer, compadecer, perdoar, rezar por aqueles que
nos perseguem e matam: então tu encontraste a única coisa que é
necessária, a paz da alma - assim. tu estás 110 paraiso -
Evidentemente, não se compreendeu precisamente o prin-
cipal: o modelo dessa liberdade de todo ressentimento:
Uma vez mais, a morte de Cristo não teve certamente ne-
nhum sentido senão ser o mais intenso modelo e a provação mais
forte de sua doutrina ...
Todos os seus discípulos estavam longe de se desculpar
por essa morte: o sentimento de todos o mais contrãrio ao evan-
gelho, a vingança, veio à tona...
Seria impossível que a coisa tivesse terminado: precisava-
-se de uma "retribuição", de um 'julgamento" (- e nada é menos
evangélico do que recompensa e punição!)
Somente nesse momento retomaram ao primeiro plano as
expectativas populares em relação a um messias: esperando por
um instante histórico, no qual "o juiz" dá o veredicto sobre seus
inimigos...
: somente agora se entende mal a vinda do "Reino de Deus"
como a profecia sobre um ato final da história
: somente agora se introduziu todo o desprezo e a acidez
contra os fariseus e os teólogos no tipo do mestre
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 161

: não se entendeu o principal: que justamente tal morte se


mostrava como a mais elevada vitória sobre o "mundo" (sobre
os sentimentos de hostilidade, vingança etc.) -sobre o mal, sobre
o homem mau; tudo isso nunca foi compreendido senão e.orno
realidade psicológica interior
: a veneração dessas almas que tinham perdido totalmente
o equilibrio não conseguiu acreditar naquela igualdade de direitos
vigente de todos os homens em relação ao "filho de Deus", tal
como essa igualdade tinha sido ensinada por Jesus: sua vingança se
constituiu na elevação de Jesus de uma maneira digressiva (- exa-
tamente do mesmo modo que os judeus tinham elevado o papel de
Israel às alturas, como se todo o resto do mundo fosse seu inimigo.
Origem da teologia absurda do Deus único e de seu único filho -
Problema: "como é que Deus pôde consentir em algo as-
sim?" Para essa pergunta, as pessoas encontraram a resposta ab-
surda de que "ele entregou seu filho para perdoar os pecados, como
sacriflcio". Como tudo foi mal compreendido!!! Nada é mais in-
compatível com o evangelho do que o sacrifício pela culpa; ainda
mais o sacrifício do inocente pellos pecados do culpado;
: mas Jesus tinha abolido efetivamente o pecado! - não por
meio da "crença", mas por meio do sentimento da divindade, da
igualdade de Deus.
Introduz-se no tipo:
a) a doutrina do juízo e do retorno
b) a doutrina da morte como sacriflcio
c) a doutrina da ressurreição: por meio da qual toda a "bcm-
aventurança", todo o sentido do evangelho é escamo-
teado de uma vez só em favor de um estado - "depois da
morteº ...
Paulo, com uma impertinência de rabino, torna lógica essa
concepção: "se Cristo não ressuscitar dos mortos, nossa crença
é vã!"
: por fim, até mesmo ainda a "imortalidade da pessoa"
E, assim, tudo aquilo que mais profundamente contrariava
os instintos do evangelho já tinha se determinado na segunda ge-
ração depois de Cristo como cristão
162 FRIEDRICH NIETZSCHE

O sacrif!cio, o sacrificio de sangue, como sacrificio do pri-


mogênito
punição, recompensa, julgamento ...
mantêm-se afastados o aquém e o além, o tempo e a eter-
nidade
uma teologia ao invés de uma práúca, uma "crença" ao
invés de um modo de vida
uma hostilidade profunda e mortal em relação a tudo o que
não é cristão
toda a situação de penúria do missionário foi transposta
para o interior da doutrina de Jesus: todas as coisas duras e mâs,
contra as quais seus missionários não se colocam, devem ser pro-
clamadas agora pelo mestre
depois de o julgamento, a punição e a recompensa terem sido
uma vez mais aceitos no que hâ de principal, toda a doutrina e toda
a sabedoria proverbial de Jesus foram impregnadas com isso ...

11 (379)
O 11i'ilista.
O evangelho: a notícia de que se encontra aberto aos bai-
xos e pobres um acesso à felicidade - de que não se precisa fazer
nada senão se libc.rtar da instituição, da tradição, da tutela das
classes mais elevadas: nessa medida, o despontar do cristianismo
não é outra coisa senão a típica doutrina socialista,
Propriedade, aquisição, pátria, classe e n.ivel social, tribu-
nal, polícia, Estado, Igreja, aula, arte, sistema militar: tudo, assim
como muitos empecilhos à felicidade, erros, enredamentos, obras
diabólicas, para as quais o evangelho anuncia o julgamento...
tudo isso é típico da doutrina dos socialistas.
No pano de fundo, a rebelião, a explosão de uma vonta-
de acumulada de se opor aos "senhores", o instinto para saber
quanta felicidade jâ residiria, depois de uma pressão tão longa,
no sentir-se-livre...
Na maioria das vezes, um, sintoma de que as camadas mais
baixas tinham sido tratadas de uma maneira por demais amistosa
cm termos humanos, de que elas jâ estão saboreando na ponta
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 163

da língua uma felicidade que lhes era proibida... Não é a fome


que gera as revoluções, mas o fato de o povo ter descoberto en
mangeant appetif1>8...

11 (380)
A suposrajuventude
As pessoas se iludem quando sonham com uma existência
popular ingênua e jovem, que se distinguiria de uma cultura an-
tiga; temos, aqui, a superstição de achar que, nessas camadas de
todas as mais baixas do povo, camadas nas quais o cristianismo
cresceu e fincou suas raizes, a fonte mais profunda da vida seria
impelida uma vez mais para cima: não se entende nada da psico-
logia da cristandade, quando se considera que ela seria expressão
de uma juventude popular emergente de maneira nova e de um
fortalecimento da raça. Ao contrário: trata-se de uma fonna tipica
de décadence; o enternecimento da moral e a histeria de uma po-
pulação mestiça e doentia que perdeu suas metas. Essa sociedade
espantosa, que se reúne aqui em tomo desse mestre da sedução do
povo, pertence propriamente e de resto a um romance russo: to-
das as doenças nervosas têm nela um rendez-vous ... a ausência de
tarefas, o instinto de que tudo estaria propriamente no fim, de que
nada mais valeria a pena, a satisfação em um dolcefar niente
: o poder e a certeza do futuro do instinto judeu, o desco-
munal de sua tenra vontade de existência e de seu poder reside
em sua classe dominante; as camadas que o jovem cristianismo
eleva não são marcadas por nada mais intensamente do que pelo
cansaço dos instintos. As pessoas estão fartas: isso é uma coisa
- e as pessoas estão satisfeitaS, ,consigo mesmas, em si, por si -
essa é outra.

11(381)
Incapacidade de expressar ideais políticos de outra forma
senão como fónnulas religiosas

208 N.T.: Em francês no original: um apetite voraz.


164 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (382)
Renan
No Oriente, o louco é um ser privilegiado; ele se apresenta
diante dos mais elevados conselhos, sem que alguém ouse pará-
•lo; as pessoas o ouvem, elas o interrogam. Trata-se de um ser
que se crê estar próximo de Deus, uma vez que se pressupõe que,
porquanto sua razão individual se dissipou, ele toma parte na ra-
zão divina. Falta na Ásia o espírito que descarta por meio de um
fino cscãmio cada erro do raisonnement.
Deu-se menos valor a esses escritos do que à tradição oral:
e isso ainda na primeira metade do século II. Por isso, a menor
quantidade de autoridade desses escritos: as pessoas os corrigi-
ram, os completaram, uns pelos outros -
No evangelho de João faltam as parábolas, os exorcismos...

11 (383)
Ego:
"Tive fome e vós não me alimentastes - afastai-vos de
mim, malditos etc." Mateus 25, -41 etc.
essa linguagem revoltante "o que vós não fizestes a um desses
mais ínfimos de meus irmãos, vó:s também não o fizestes a mim"
"o espírito da propaganda", que se apresenta como o espi-
rito de Cristo...
"o esplrito da sede de vin.gança", que pulula cm palavras,
maldições e predições diante das cenas dos tribunais ...
"o esplrito do ascetismo" ("a obediência aos mandamen-
tos" como meio de cultivo, como caminho para a recompensa no
além, tal como no judaísmo), ao invés daquela indiferença cristã,
que afasta de si todos esses bens, por "bem-aventurança"... os
cssêoios, João etc.
"O espírito do sentimento do pecado e a necessidade da
redenção"
Com a morte de Cristo e .a coação psicológica de não ver
aí nenhuma conclusão, tendências populares conjuntas foram re-
produzidas: todas as cruezas que aqueles típicos espiritualistas
tomaram como tarefa transformar em espírito -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 165

: o messianismo, a vinda do "reino de Deus", o espírito da


inímizade e a sede de vingança, a expectativa da "recompensa" e
da "punição", a soberba dos "escolhidos" (eles julgam, amaldiço-
am, condenam a ideia de sacriflcio do judaísmo... as tendências so-
cialistas em favor dos pobres, dos "desonestos", dos desprezados)
Jesus que viveu como o preenchimento de todas as eltpec-
tativas populares, que não fez outra coisa senão dizer: "aqui é
o reino dos céus", que transfonnou em espírito a crueza dessas
expectativas:
- mas, com a morte, tudo se esqueceu (dito de maneira
clara: tudo se refalou), mão se tinha nenhuma escolha, ou
bem retraduzir o tipo na representação popular do "mes-
sias", do "juiz" vindouro, do profeta na luta - - -
Como consequência dessa situação, para a qual esse bando
incerto e entusiástico não estava preparado, entrou em cena ime-
diatamente a completa degeneração: tudo foi em vão...
uma trivialização absurda de todos os valores e fórmulas
espirituais
os instintos anarquistas contra a classe dominante ganham
desavergonhadamente o primeiro plano.
: o ódio contra os ricos, os poderosos, os eruditos - che-
gou-se ao fim com a ideia do ''reino de Deus", da "paz na terra":
de uma realidade psicológica surge uma crença, uma expectativa
de uma realidade que chegará algum dia, "um retomo": uma
vida na imaginação é a forma eterna da "redenção" - ó, o quão
diversamente Jesus compreendeu tudo isso!

11 (384)
A primeira degeneração do cristianismo é a tomada do ele-
mento judaico - uma rearticulação com formas superadas ...

11 (385)
"Meu reino não é desse mundo"
"Destruirei o templo de Deus e o reconstruirei em três dias"
O processo contra o "sedutor" ( o instigador), que coloca a
religião em questão: o apedrejamento era previsto em lei
166 FRIEDRICH NIETZSCHE

<contra> todo profeta, todo milagreiro, que afastava o


povo da antiga crença -
"ce grand maitre en ironie"209
Renan acha trivial que el.e tenha pagado por esse triunfo
com a vida.

11 (386)
"ele s6 é um disputer,21 º quando argumenta contra os fa-
riseus: o adversário o obriga, como quase sempre acontece, a
aceitar seu próprio tom" -

11 (387)
Renan 1,346
Ses exquises moqueries, ses malignes provocations frap-
paient toujours au coeur. Stigmates éternelles, elles sont restées
figées dons la plaie. Celle tunique de Nessus du ridicule, que
/e juif. fils de pharislens, trafoe en /ambeaux apres /ui depuis
dix-huit siécles, c'est Jé.sus, qui' /'a tissée avec un artifice divin.
Chefs-d'oeuvre de haute raillerie, ses traits se sont inscrits en
lignes de/eu sur la chair de l 'hypocrile et dufaux dévot. Traits
incomparables, traits dignes d'unflls de Dieu! Un dieu Seul sair
tuer de la sorte. Socrate et Moliére ne font qu 'ejJleurer la peau.
Celui-ci portejusqu 'aufond des os /e/eu et la rage.211
E isso é o mesmo que pôde ser dito em Isaías 42, 2-311

209 N.T.: Em francês no original: esse grande mestre em Ironia.


210 N.T.: Em francês no original: querelante.
211 N.T.: Em francês no original: Suas requintadas brincadeiras, suas provo-
cações malignas sempre aterrorizavam o coração. Estigmas eternos, elas
permanecem crlslall,adas na ferida. Essa tônica de Nesso do rldlculo, que
o Judeu, filho dos fariseus, arrasta consigo aos farrapos depois de 18 sé•
culos, foi tecida par Jesus com um artificio divino. Obras,prlmas de alta
zombaria, seus traços se Inscrevem em linhas de fogo sobre a carne do hl•
pócrlta e do falso devo10. Traços lncomparilvels, traços dignos de um fllho
de Deusl Somente um deus sabe matar dessa maneiro. Sócrates e Moliêrc
não conseguem fazer outra coisa senão arranhar o pele. Jesus traz o fogo
e a raiva até o fundo dos ossos.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 167

11 (388)
Ele nunca teve um conceito de "pessoa", de "individuo":
somos um quando amamos a nós mesmos, quando vivemos ape-
nas do outro. Seus disclpulos e ele eram um.

11 (389)
O fato de ele ser Deus, de ele ser igual a Deus, foi exposto
como difamação dos judeus (cf. João V, 18; X, 33). Ele é menos
do que o Pai: o Pai não lhe revelou tudo. Ele resiste a ser chamado
de igual a Deus. Ele é o filho de Deus: todos podem se tomar fi.
lhos de Deus (- assim são as coisas em termosJudaicos: o caráter
de filho é atribuído no Antigo Testamento a muitas pessoas, em
relação às quais não se ergue de maneira alguma a pretensão de
que elas seriam iguais a Deus); "filho" nas línguas semitas é um
conceito extremamente vago, livre.

11 (390)
Todo o movimento úmbrico do século xm, de todos o
mais aparentado com o movimento da Galileia, aconteceu em
nome da pobreza:
Francisco de Assis: exquise bonté, sa communion délicate
fine et tendre avec la vie universelle. 212

11(391)
na llngua dos rabinos desse tempo, "céu" significa o mes-
mo que "Deus": cujo nome se evita dizer.

11 (392)
"O reino de Deus está entre nós." Lucas 17, 20

11 (393)
"Bem-aventurados são aqueles que ouvem as palavras de
Deus e agem de acordo com elas." Lucas 11, 27 etc.

212 N.T.: Em francês no original: bondade requintada, sua comunhão delicada


fina e tenra com a vida universal.
168 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (394)
falta totalmente o conceito de "na!UJ"eza", de "lei na!UJ"al":
tudo acontece moralmente, ''milagres" não são nada de "antina-
tural" (porque não há nenhuma na!UJ"eza)

11 (395)
"A lei é aniquilada: ele é que a aniquilará": divisão entre
seus discípulos, dos quais uma parte considerável permaneceu
judia... O processo contra ele nã.o deixa nenhuma dúvida...

11 (396)
"o próximo" em sentido judaico é o companheiro de fé

11 (397)
não há nenhum tipo menos evangélico do que o tipo do
erudito da Igreja grega, que impeliu o cristianismo a partir do sé-
culo IV para o caminho de uma metafisica absurda; e, do mesmo
modo, os escolásticos da Idade Média latina.

11 (398)
...le senliment que Jésus a introduit dans le monde est bien
le n6tre. Son parfait idéalisme est la plu haute regle de la vie déta-
chée et vertueitSe. II a créé /e ciel des âmes pures, 011 se trouve ce
qu 'on demande e11 vain à la /erre, la pa,faite noblesse des enfants
de Dieu, la sainte!é accomplie, la tola/e abstraction des souillures
du monde, la liberté enfin, que la société réelle exclut comme une
impossibilité et qui 11 'a toute sa amplitude que da11s /e domaine de
la pe1isée. le grand maitre de ceux qui se réfagient dans ce para-
dis idéal est encore Jé.sus. le premie,; il a proclamé la royauté de
/'esprit : le premier. il a dit, au moi11s par ses acles: "mon royaume
n 'est pas de ce monde". La fo11dalio11 de la vrai religion est bien
son at,vrn... m

213 N.T.: Em francês no original: ...o sentimento que Jesus Introduziu no mun-
do é certamente o nosso. Seu perfeito Idealismo é a mais elevada regra
da vida dlSUnclada e virtuosa. Ele criou o céu das almas puras, no qual se
encontra aquilo que demandamos em vão à terra, a perfeita nobreza das
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 169

11 (399)
"Cristianismo" tomou-se sinônimo de "religião": tudo aqui-
lo que se faz fora da grande e boa tradição cristã será infrutífero.

11 (400)
Nossa civili2ação, regida por uma policia minuciosa, não
oferece nenhum conceito referente àquilo que o homem faz em
épocas nas quais a originalidad,e possui um campo de jogo livre
para qualquer um.
Nos petites tracasseries préventives, bien plus meurtrieres
que /es supplices pour /es choses de /'esprit, n 'existaienr pas. 21 '
Jesus pôde levar uma vida durante três anos que o teria levado 20
vezes para a frente do tribunal em nossas sociedades...
Dégagées de nos conventions palies, exemptes de
1'éducation uniforme, qui nous raffine, mais qui diminue si for/
notre individualité, ces âmes entieres portaint dans 1'actüm une
énergie surprenanle... Le soujJle de Dieu éiail /ibre chez eux;
chez no11s, il est enchaíné par les liens de fer d 'une société mes-
q11ine et condamnée à une irrémédiab/e médiocríté.
Plaçons donc au plus haut sommet de la grandeur humaine
la personne de Jésus:215 é isso que exige de nós o senhor Renan.

crianças de Deus, a santidade comumado, a total abstração das máculas


do mundo, a liberdade, enfim, que a sociedade real exclui como uma lm•
posslbllldade e que não possui toda a sua amplitude senão no domlnlo do
pensamento. O grande mestre daqueles que se refugiam no paralso Ideal
ainda Jesus. O primeiro a ter proclamado a realeza do esplrlto: o primeiro,
ele dl.s.se, ao menos por seus atos: '"meu reino nOo é deste mundo"'. A
fundação da verdadeira relig/60 ó, sem duvida, alguma sua obra ...

214 N,T.: Em francês no oliglnal: Nossos pequenas Inquietações preventivas, mul-


to mais mortais do que os supllclos pelas coisas do esplrlto, não existem.
21S N.T.: Em francês no original: Apartados de nossas convenções polidas,
Isentos da educação uniforme que nos refina, mas que diminui de ma•
nelra tão Intensa nossa lndlvldual'ldade, essas almas Inteiras portavam no
ação uma energia surpreendente ... O sopro de Deus era livre neles; em
nós, ele é encadeado pelos laços de ferro de uma sociedade mesquinha
e condenada a uma mediocridade Irremediável./ Coloquemos, ent3o, no
mai s alto patamar da grandeza humana a pessoa de Jesus.
170 FRIEORICH NIETZSCHE
...............................................................................................

11 (401)
A medicina, que vê em certa delicadeza moral o inicio
d 'étisie...216 ( de phtisie?)

11 (402)
la philosophie ne suffit pas au grand nombre. II /ui faut la
sainteté.211 - Uma gentil crueldade de Renan.

11 (403)
Qui 11 'amerait mieux étre .ma/ade comme Pascal que bien
portant comme /e vulgaire?218 Rcnan

11 (404)
Qu'on se figure Jésus, reduit à porter jusqu 'à soixante ou
soixante-dix ans /e fardeau desa divinté, perdant sa jlamme cé/es-
te, s 'usant peu à peu sous les nécessités d'w1 role inoui'f2'9 Renan
Voué sans ré.serve à son idée, il y a subottfom1é toute chose
à un te/ degré que l 'univers n'exista plus pour /ui. C 'est par cet
accés de vo/011/é héroi'que, qu 'il a conquis /e ciel. II 11 'y a pas
eu d 'homme, Çakia-Mouni put--étre excepté, qui ait à ce point
/ou/é aia pieds la familie, /es joies de ce monde, 10111 soin tem-
porei... Pour nous, éternels enfants, condamnés à I'impuissance,
i11clino11-11ous devant ces demi-dieux!no Renan

216 N.T.: Em francês no original: Emagr-c<lmento externo é uma das formas da


tuberculose.
217 N.T.: Em francês no original: A nlosofla não é suflcfente para a massa. Ela
carece da santidade.
218 N.T.: Em francês no original: Quem não preferiria ser doente como Pascal
a ser bem saudável como o homem comum?
219 N.T.: Em francês no original: lmoginemos Jesus, reduzldo a arrostar con•
sigo até os 60 ou 70 anos o fardo de sua divindade, perdendo sua chama
celeste, desgastando-se pouco a pouco sob as necessidades de um pnpcl
entedlante 1
220 N.T.: Em francês no original: Devotado sem reservas à suo Ideia, ele subor-
dinou a essa Idei a todos as coisos a tnl grau que o universo passou a nfto
exi stir mais paro ele. Foi por esse acesso da vontade heroica que ele con•
qulstou o céu, Nlo houve nenhum homem, excetuando-se t1lvez Sokla•
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 171

11 (405)
Renan, p. 187.
Le mouvement démocratique /e plus exalté, dont / 'humanité
ait gardé /e souvenir, agitait depuis longtemps la race juive. La
pensée que Dieu est /e vengeu.r du pauvre et du faible contre
/e riche et /e puissant se retrouve à chaque page des écrits de
l 'Ancien Testament. L 'histoire d 'lsrai!I est de toutes les histoi-
res celle ou l'esprit populaire a /e plus constamment dominé.
Les propheies, vrais tribuns e/, on peut dire, /es plus hardis des
tribuns, avaient tonné sans cesse contre /es grands et établi une
étroire relation entre /es mots de "pauvre, doux, humble, pieux"
et de /'autre entre /e mots "riche, impie, violent, méchant". Sous
les Séleucides, les aristocrates ayant presque tous apostasié et
passe à/ 'hel/énisme, ces associations d 'idées ne firent que sefor-
tifier. Le livre d 'Hénoch contien.s des malédictions p/us violentes
encore que celles de l 'Évangile contre /e monde, les riches, les
puissants. Le nom de "pauvre" (ébion) était devenu synonyme de
"Saint", d "'ami de Dieu".221

Mounl, que tenha sacrificado a esse ponto a seus pés a famflla, as alegrias
desse mundo, toda preocupação temporal... Para nós, crianças eternas,
condenados à Impotência, nós nos curvamos diante desse semideus!

221 N.T.: Em francês no original: O movimento democrático mais e><.1itado, do


qual a humanidade tem memória, agitou por multo tempo a roça Judia. O
pensamento de que Deus é o vingador do pobre e do fraco contra o rico
e potente pode ser reencontrado em cada página dos escritos do Antigo
Testamento. A história de Israel ~ de todas as histórias aquela na qual o
espírito popular dominou mais constantemente. Os profetas, verdadei-
ros tribunos e, podemos dizer, os mnls astutos dos tribunos, vociferaram
sem cessar contra os grandes, estabelecendo uma estreita relação entre
as palavras "pobre, doce, humilde, pio" e, por outro lado, entre as pala-
vras "rJco, ímpio, violento, perverso"'. Entre os selêucldas, os arlst0<:ratas
tinham apostatado qu11sc tudo e passado ao helenismo, suas associações
de Ideias nllo flleram outra coiso senfo se fortalecer. O livro de Enoque
contém Imprecações ainda mais violentas do que aquelas do Evangelho
contra o mundo, os ricos, os poderosos. O nome "Pobre" tornou--se s1nõ..
nlmo de "sonto", de "omlgo de Deus".
172 FRIEDRICH NIETZSCHE

11 (406)
Pierre Loti, Pêcheurs d'Js"lande. 222

11 (407)
O Estado ou a imoralidade organizada...
Internamente: como polícia, como direito penal, como
classes, comércio, família
Externamente: como vontade de poder, de guerra, de con-
quista, de vingança
Como se chega a fazer com que uma grande massa realize
coisas, com as quais o particular jamais saberia se meter?
- p0r meio da divisão da responsabilidade
- do comando e da execução
- por meio da intermediação das virtudes da obediência,
do compromisso, do amor à pátria e ao príncipe.
A manutenção do orgulho, do rigor, da força, do ódio,
em suma, de todos os traços típicos, que contradizem o tipo de
rebanho ...
Os artifrcios para possibilitar ações, providências, afetos
que, medidos individualmente, não são mais "llcitos" - que tam-
bém não são mais de "bom gosto"
- a arte "os toma de bom gosto para nós", a arte que nos
faz entrar em tais mundos "alienados"
- o historiador mostra seu tipo de direito e de razão; as
viagens; o exotismo; a psicologia; d.ireito penal; manicô-
mio; criminosos; sociologia
- a "impessoalidade": de tal modo que nós nos permitimos
esses afetos e ações como meios de um ser coletivo (co-
legiados de juízes, júri, cidadão, soldado, ministro, prín-
cipe, sociedade, "crítico")... ela nos dá a sensação de que
estaríamos faze,uio um sacriflcio...
A manutenção do Estado militar é de todos o meio mais
derradeiro seja para acolher a grande tradição, seja para mantê-
-la com vistas ao tipo supremo homem. E todos os conceitos, que

222 N.T.: Em francês no original: Pecadores da 1s13ndla.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 173

eternizam a inimizade e a distância hierárquica entre os Estados,


podem se mostrar sancionados com vistas a esse ponto...
Por exemplo, nacionalismo, direitos alfandegários, - - -
O tipo forte é mantido como va/orativamente determinante...

11 (408)
Não se deve adornar e afastar a poeira do cristianismo (tal
como o faz esse senhor Renan de maneira ambígua): ele empre-
endeu uma batalha de morte contra o tipo forte de homem.
Ele baniu todos os instintos fundamentais desse tipo
Ele fabricou a partir desses instintos o mal, o homem mau
: o homem forte como o homem tipicamente reprovável e
reprovado
Ele tomou o partido de todos os fracos, baixos, fracassados
: ele construiu um ideal a partir da contradição em relação
aos instintos de conservação da vida forte ...
: ele estragou a própria razão do homem mais espiritual,
na medida em que ensinou a experimentar os instintos supremos
como pecaminosos, como induzindo cm erro, como seduções ...
o exemplo mais lastimável - a degradação de Pascal, que
acredita na degradação de sua razão por meio do pecado origi-
nal: enquanto esse pecado só o estragou por meio de seu cris-
tianismo...

11 (409)
Autores com os quais ainda se pode ter prazer hoje estão
de uma vez por todas comprometidos: Rousseau, Schiller, Georg
Sand, Michelet, Buckle, Carlyle, a imitatio

11 (410)
N.8. Desconfio de todos os sistemáticos e procuro fugir
deles. A vontade de sistema, ao menos para um pensador, é algo
que compromete, uma forma de imoralidade... talvez se des-
vende com uma vista d' olhos sobre esse livro e por detrás dele
de que sistemático ele mesmo se esforçou para se desviar - de
mim mesmo ...
174 FRIEDRICH NIETZSCHE

li (411)
Prefácio

1.
Coisas grandes exigem que nós nos silenciemos em rela-
ção a elas ou que falemos de maneira grande: grande significa
cinicamente e com inocência.

2.
O que narro é a história dos próximos 200 anos. Descrevo
o que estã por vir, o que já não pode se dar de outra fonna: a
ascensão do niilismo. Essa história já pode ser contada agora:
pois a necessidade mesma está. aqui em obra. Esse futuro fala
já em mil sinais, esse destino se anuncia por toda parte; todos
os ouvidos já estão aguçados para essa música do futuro. Toda
a nossa cultura europeia já se movimenta há muito tempo com
uma tensão torturante, que cresce de década a década, como que
em direção a uma catástrofe: inquieta, violenta, precipitadamen-
te: como uma torrente, que quer chegar ao fim, que não medita
mais, que tem medo de meditar.

3.
Inversamente, aquele que toma aqui a palavra não fez nada
até aqui senão meditar: como um filósofo e eremita por instinto,
que encontrou a sua vantagem na margem, no fora, na paciên-
cia, na hesitação, no ficar para trás; como um espírito ousado e
experimentador, que já se perdeu uma vez naquele labirinto do
futuro; como um espírito de Ullil pássaro vidente, que olha para
trás, quando narra o que virá; co:mo o primeiro niilista perfeito da
Europa que, porém, já viveu em si até o fim o próprio niilismo -
que o deixou para trás de si, sob si, fora de si. ..

4.
Pois as pessoas não se enganam sobre o sentido do titulo
com o qual esse evangelho do futuro quer ser designado. "A von-
tade de poder. Tentativa de uma transvalornção de todos os va-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 175

tores" - com essa fórmula expressa-se um contramovimento no


que tange ao principio e à tarefa: um movimento, que liberarà em
um futuro qualquer aquele niilismo perfeito; mas que pressupõe
esse niilismo, lógica e psicologicamente, que não pode surgir se-
não com vistas a ele e a partir dele. Pois por que a ascensão do
niilismo é a partir de agora necessária? Porque os nossos próprios
valores é que retiram nele a sua derradeira consequência; porque
o niilismo é a lógica pensada até o fim de nossos grandes valores
e ideais - porque precisaremos primeiro vivenciar o niilismo, para
que cheguemos a descortinar qua.l era propriamente o valor desses
"valores"... Algum dia teremos a necessidade de novos valores...

11(412)
Ler livros que poderiam ter sido escritos por muitos: eles
revelam da forma mais clara possível os hábitos intelectuais do
tipo de erudito de nosso tempo, eles são "impessoais".

11 (413)
O além-do-homem
Não é minha questão o que redime o homem: mas que tipo
de homem deve ser escolhido, querido, cultivado como dotado
de um valor mais elevado...
A humanidade não representa um desenvolvimento rumo
ao melhor; ou ao mais elevado; no sentido em que se acredita
hoje: o europeu do século XIX se encontra, no que tange ao seu
valor, muito abaixo do europeu do Renascimento; não há nenhu-
ma necessidade em equiparar desenvolvimento constante pura e
simplesmente com elevação, intensificação, fortalecimento...
Em outro sentido, há um êxito de casos particulares nas
mais diversas posições da terra e nas culturas mais diversas, ca-
sos nos quais se apresenta defato um tipo superior: algo que, em
comparação com o conjunto da humanidade, é uma espécie de
"além-do-homem". Tais casos felizes marcados por um grande
êx_ito sempre foram possíveis e talvez sempre continuem sendo
talvez possíveis. E mesmo estii;pcs, gerações, povos como um
todo podem, sob certas circunstâncias, representar tal acerto.
176 FRIEDRICH NIETZSCHE

Desde os tempos mais antigos por nós desvendãveis da


cultura indiana, egipcia e chines:a até hoje, o tipo de homem mais
elevado é mu.ito mais homogêneo do que se pensa.
Esquece-se o quão pouco a humanidade perte.nce a um úni-
co movimento, o quanto juventude, época, declinio não são de
modo algum conceitos que lhe cabem como um todo.
Esquece-se, para dar um exemplo, o quanto a nossa cultu-
ra europeia só hoje vem se aproximando uma vez mais daquele
estado de estafa filosófica e de epigonia, a partir do qual se torna
compreensível o surgimento de um budismo.
Se um dia se tomar possível traçar linhas culturais isocrô-
nicas através da história, então o conceito moderno de progresso
serã suavemente colocado de ponta-cabeça: - assim como o indi-
cc mesmo, segundo o qual ele é medido, o democratismo.

11(414)
Prefácio
....
O que é bom? - Tudo o que eleva o sentimento de poder, a
vontade de poder, o poder mesmo no homem.
O que é ruim? - Tudo o que provém da fraqueza.
O que é sorte? - O sentimento de que o poder cresce - de
que uma resistência foi superada.
Não satisfação, mas mais poder; não paz cm geral, mas
guerra; não virtude, mas capacidade (virtude no sentido do Re-
nascimento, virtu, virtude livre de toda moral).
Os fracos e malfadados devem perecer: primeiro princípio
da sociedade. E devemos ainda ajudã-los em tal perecimento.
O que é mais nocivo do que um vicio qualquer? - A
compaixão de fato por tudo o que é malfadado e fraco - "O
cristianismo..."
....
O meu problema - o problema que apresento aqui - não é
aquilo que deve redimir a humanidade na sequência dos seres;
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 177

mas qu.e tipo de homem deve ser cultivado, que tipo deve ser
querido, como o tipo de valor mais elevado, mais digno de viver,
mais alvissareiro em termos do futuro.
Esse tipo dotado de um valor mais elevado já se fez com fre-
quência presente: mas como um caso fortuito, como uma exceção
- nunca como querido. Ao contrário, foi ele até aqui que foi mais
temido, ele foi até aqui o pavoroso: e por temor se quis, se culti-
vou, se alcançou o tipo inverso: o animal doméstico, o animal dos
"direitos iguais", o animal.fraco chamado homem - o "cristão"...
....
A vontade de poder
Tentativa de uma transvaloração de todos os valores

11 (415)
A concepção do mundo, com a qual as pessoas deparam
no pano de fundo deste livro, é estranhamente sombria e desa-
&rradável: dentre os tipos de pessimismo que se tomaram co-
nhecidos até aqui, nenhum deles parece ter atingido tal grau de
crueldade. Fa.lta aqui a oposição entre um mundo verdadeiro e
um mundo aparente: só há um mundo, e esse mundo é falso,
cruel, contraditório, sedutor, sem sentido... Um mundo assim
constituido é o mundo verdadeiro ... Nós precisamos da mentira
para alcançarmos uma vitória sobre essa realidade, essa "verda-
de", ou seja, para vivermos ... O fato de a mentira ser necessária
para vivermos é constitutivo desse caráter terrível e questioná-
vel da existência...
A metafisica, a moral, a religião, a ciência - elas não são
consideradas neste livro senão como formas diversas da mentira:
com o seu auxílio, as pessoas passam a acreditar na vida. "A
vida deve inspirar confiança": a tarefa, assim apresentada, é des-
comunal. Para solucioná-la, o homem precisa ser já por natureza
um mentiroso, ele precisa ser mais ainda do que tudo artista ... e
ele o é também: metafisica, moral, religião, ciência - todas elas
não passam de abortos de sua vontade de arte, de mentira, de
fuga diante da verdade, de negação da "verdade''. A capacidade
178 fRIEDRICH NIETZSCHE

mesma, graças à qual ele violenta a realidade por meio da men-


tira, essa capacidade artística par excel/ence do homem - ele a
tem em comum com tudo o que é: ele mesmo é um pedaço de
realidade, verdade, natureza - ele mesmo também é uma parte
do génio da menrira ...
O fato de o caráter da existência ser desconhecido - o mais
profundo e mais elevado intuito <da> ciência, da devoção, da
atividade artística. Não ver nunca muitas coisas, ver de maneira
falsa, considerar atentamente muitas coisas... Ó, o quanto se é
esperto em se tomar por esperto em situações nas quais se está
longe de ser realmente como tal! O amor, o entusiasmo, "Deus"
- puras finezas do derradeiro autoengodo, puras seduções para a
vida! Em instantes nos quais o homem é enganado, nos quais ele
acredita uma vez mais na vida, nos quais ele se ilude: 6, como
ele se enche de si! Que encanto! Que sentimento de poder! Que
triunfo de artista no sentimento do poder! ... O homem tomou-se
uma vez mais senhor sobre a "matéria" - senhor sobre a "ver-
dade"!... E quando quer que o homem se alegre, ele é sempre o
mesmo em sua alegria: ele se alegra como artísta, ele goza de si
como poder. A mentira é o poder...
A arte e nada além da arte. Ela é a grande possibilita.dora da
vida, a grande sedutora, o grande estimulante para a vida ...

11 (416)
Transvaloraçao de todos os valores
Livro 1: O Anticristo.
Livro 2: O misósofo.
Livro 3: O imoralista.
Livro 4: Dioniso.
Transvaloraçao de todos os valores.

11 (417)
Dei aos alemães o livro mais profundo que eles possuem,
o meu Zaratustra - dou-lhes hoje o livro mais independente.
Como? É o que me diz a minha má consciência. Como é que tu
pretendes jogar pérolas para os alemães! ...
(12 = W 114. Início de 1888)

12 (1)
fndice do primeiro livro

{1) Toda a história do desenvolvimento da filosofia até


aqui como história do desenvolvimento da vontade
de verdade IV
(2) A preponderância temporária do sentimento de valor
social concebível para produzir wna subestrutura IV
(3) Crítica ao homem bom, não à hipocrisia dos bons ... II
(4) Valor de Kant I
(5) Para a caracterização do gênio nacional I
(6) Estética Ili
(7) "Espiritualidade", não meramente comandando e li-
derando III
(8) Formulação de Deus como ponto de culminação; re-
trocesso a partir dele Ili
(9) Música de Offenbach IV
(10) Sacerdotes II
(11) Para a critica à moral cristã do Novo Testamento rv
(12) Todo tipo fortalecido de !homem se encontrando no
nível de um tipo inferior IV
(13) Guerra contra o ideal cristão, não meramente contra
o Deus cristão II
(14) Francisco de Assis lutando contra a hierarquia II
(15) Sócrates contra os instintos nobres, contra a arte II
(16) Os vícios e a cultura u
(17) As grandes mentiras na nistória II
(18) A interpretação cristã do morrer li
(19) Aquilo que permanece eternamente igual, questão
acerca do valor UI
(20) S11bs1ituição da moral pela vontade de nossa finalidade
e, por consei,ruintc, de seus meios abdicar do elogio... IV
(21) Falsificações na psicologia. II
(22) Renan equivoca-se quanto à "ciência" 1
180 FRIEDRICH NIETZSCHE

(23) Correção do conceito de "egoísmo" !V


(24) Expressões militares
(25) Futuro da ascese IV
(26) Futuro do trabalhador TV
(27) Niilismo 1
(28) ''Verdade", nossas condições de conservação proje-
tadas como predicados do ser UI
(29) Medida da descrença, de "liberdade do espírito" ad-
mitida como medida de poder IV
(30) Crítica e recusa do conceito de "objetivo" m
(31) Fonna extrema do niilismo: em que medida um modo
de pensar divino IV
(32) Dionisíaco: novo caminho para um tipo do divino;
minha diferença em relação a Schopenhauer desde o
inicio
(33) "Para quê?" A questão do niilismo e a tentativa de
obter respostas 1
(34) Falta a ordem hierárquica. Causa do niilismo. A ten-
tativa de inventar tipos mais elevados ... 1
(35) O que custou o grande homem !V
(36) A vontade de verdade III
(37) Constatação e inserção de sentido UI
(38) Mais filho de seus avós
(39) Novo Testamento: cuidado! II
(40) Condenação moderna da vontade de poder IV
(41) A coragem como limite, no qual o ''verdadeiro" é re-
conhecido... III
(42) Música - a forte tradição. Offenbach; contra a músi-
ca alemã como uma música degenerada
(43) O valor de um homem mensurável não segundo os
seus efeitos. "Nobre" IV
(44) Filosofia arte da vida, não arte de descoberta da ver-
dade Epicuro.
Para a história da filosofia IV
(45) Boas expressões...
(46) Vontade de verdade: automcditação descomunal rv
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 181

(47) As posições fundamentais epistemológicas e sua re-


lação com os valores supremos III
(48) Filosofia de colagem. Sobre o ideal do psicólogo N
(49) Que sentido possui lransvalorar valores N
{50) La Rochefoucauld e J. Mil!: o último absolutamente
superficial, o primeiro, ingênuo... III
(51) "Utilidade" dependente de "metas": utilitarismo lll
(52) O medo de Deus diante do homem
Conhecimento como meio para o poder, para a
"igualdade divina". Valor.
Sobre a história da filosofia - m
(53) Aparência, ausência de sentido, o "efetivamente real" m
(54) Para a caracterização do ":forte" N
(55) Os "póstumos" - questão da compreensibilidade e da
autoridade II
(56) Pressuposto de uma transvalor-.ição de todos os valores N
(57) Como surge a fama da virtude n
(58) O elogio, a gratidão - como vontade de poder m
(59) As falsificações psicológicas sob o dominio do ins-
tinto de rebanho 11
(60) Instinto de rebanho: que estados e desejos ele elogia. II
(61) A desnaturalização da moral e seus passos II
(62) A moral reprimida II
(63) O Novo Testamento II
(64) Conhecimento e devir III
(65) Combate ao determinismo m
(66) Reprodução do ascetismo N
(67) Princípio de não contradição III
(68) Dedução de nossa crença na razão III
(69) Superstição do "gênero" 11
(70) Estética lll
(71) Sobre o plano 1
(72) "Sujeito", coisa cm si lll
(73) Futuro dos judeus
(74) O descritivo, o pitoresco - seu elemento niilista
(75) Estética III
182 FRIEORICH NIETZSCHE

(76) Sobre o plano


(77) O século XVIll I
(78) Futuro da arte IV
(79) O grande homem, o criminoso III
(80) Progresso da naturalização do século X1X I
(81) Meu "niilismo" I
(82) Moral como meio da sedução, como vontade de poder II
(83) Voltaire e Rousseau I
(84) Sintomas principais do pessimismo I
(85) Tensão critica: extremos em excesso.
Século XIX
(86) Crítica ao homem moderno, sua mendacidade psico-
lógica - sua atitude romântica 1
(87) Século XVIII 1
(88) Tierry, a própria rebelião popular na ciência I
(89) Futuro da educação: cultura da exceção IV
(90) "Responsável diante de sua consciência". Esperteza
de Lutero: sua vontade de, poder lJ
(91) Instinto da humanidade civilizada contra os grandes
homens III
(92) Todo bem é um mal de outrora que se tornou útil III
(93) Para a justificação da moral. Recapitulação IV
{94) Vícios modernos I
(95) "Cultura" cm oposição a "civilização" I
(96) Novo Testamento e Petrõoio II
(97) Para a aparência lógica lll
{98) Morfologia da vontade de poder II
(99) Contra Rousseau I
( 100) Como uma virtude chega ao poder II
{101) Metamorfoses e sublimações (a crueldade, mentira
etc.) íl
( 102) Como é que tendências hostis à vida são dignificadas IJ
( 103) Ótica da avaliação III
{104) Duplicidade, fisiologicamente, como consequência
da vontade de poder Til
( I05) Os fortes do futuro IV
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 183

(106) O crescimento em direção à altura e ao mal se com-


pertencem m
(107) Virtude sem avaliação h,oje: ora, alguém precisou
colocá-la em circulação como vício !V
(108) As grandes falsificações na psicologia II
(109) Falsificação principia] d.a história, para que ela for-
neça uma prova para a moral II
(11 O) Balanço conjunto com a moral: o que nela quer che-
gar ao poder? m
(111) Os valores morais na teoria d.o conhecimento III
( 112) Os valores morais se assenhoreiam d.os valores es-
téticos II
(113) Causas d.o surgimento d.o pessimismo I
(114) As grandes falsificações sob o domínio d.a moral:
esquema II
(115) Mod.emid.ad.e 1
(116) Clãssico: sobre a cstéticafatura IV
(117) Moderno: os comerciantes e as pessoas intermediárias I
( 118) Mod.emid.ade 1
(119) Século XVIII e Schopenhauer 1
(120) As moedas falsas modernas d.os artistas. 1
(121) Separação moderna d.e "Público" e "Cenáculo" J
( 122) Sobre prefácio.
Meditação maximamente profunda,
Prefácio
(123) Seu egoísmo encontra seu cálculo na manutenção d.a
tirania d.a moral II
(124) Visão retrospectivajustijicodora d.as terríveis conse-
quências da tirania da moral !V
(125) O patronato da virtude (cobiça, despotismo etc.) II
( 126) Espinoza como o sagrado de Goethe
(127) Em conclusão: uma visão goethiaoa cheia d.e amor,
efetiva superação d.o pessimismo !V
( 128) Os três séculos I
(129) A tentativa d.e Goethe de wna superação d.o século XVID IV
Por que Goethe falta como expressão d.o século XIX? !V
184 FRIEORICH NIETZSCHE
·······························································································

( 130) O tipo forte alemão IV


(131) Escárnio dos sistemãticos
(132) Schopenhauer como aquele que acolhe Pascal uma
vez mais I
(133) O século XVII e o século xvm I
(134) Rousseau e Voltaire por volta de 1760; influência de
Rousseau sobre o romantismo.
(135) O problema da "civilizaçã.o"
( 136) Questão acerca do valor do homem moderno?
Saber se seu lado forte e seu lado fraco pertencem
um ao outro
Segundo livro
(137) Meus cinco nã.os: para o prefácio? IV
{I 38) Meu novo caminho para o sim IV
( 139) Como as pessoas se assenhorearam do ideal do Re-
nascimento J
(140) Em honra do século XIX IV
(141) Envergonhar-se de ser cristão IV
( 142) Efeito da providência cristã
O que se deve ao cristianismo... J
(143) Para a justificação da moral IV
(144) Idealismo "reativo" e sua contraparte II
(1 45) A avaliação econômica dos ideais até aqui IV
(146) Cultivo do homem por meio da virtude: virtude de
mãquinas IV
(147) O altruísmo na biologia! 1ll
(148) Vantagem do continuo IV
( 149) Existência "inferior" e "superior"? IV
(150) Separação do excesso da humanidade. As duas con-
~~~ IV
( 151) "Modernidade" 1
( 152) Sujeito, substância W
( 153) Simpatia como falta de vergonha
Do mesmo modo, "objetividade" do critico
(154) Pessimismo da força
( 155) lotclccção conjunta sobre o niilismo
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18117-1889 (Vol. VII) 185

( 156) Intelecção conjunta sobre o caráter ambíguo de nos-


so mundo moderno I
(157) lutar com a arte contra a moralização IV
(158) Fortalecimento romântico: o falso fortalecimento I
(159) Justificar as regras IV
( 160) Ciência, dois valores IV
(161) Complexo cultural, não sociedade IV
(162) Barbarismo não é coísa do arbítrio IV
(163) Incremento do poder conjunto do homem: em que
medida ele condiciona todo tipo de declínio II
( 164) Para a política da virtude:
Como ela chega ao poder
Como ela impera quando o poder é alcançado II
(165) Artistas não são os homens da grande paixão
(166) Meios de fazer com que uma virtude vença II
(167) Melancolia lasciva da dança moura: o fatalismo
moderno l
(168) A arte moderna, como arte de tiran.izar I
( 169) Meios de fazer com que uma virtude vença li
( 170) Lnst.into de rebanhos: avali ação dos medianos li
(171) A mulher, a literatura, a arte (século XIX, enfeiamento) I
(172) Sobre 1. Niilismo. Plano 1
(173) Perfeição do niilista I
(174) Afetos corno valor e arma: o que será feito do ho-
mem sem a compulsão IV à defesa e às armas?
(175) Apequenamento regional da moral: progresso IV
(176) Estágios da desnaturalização da moral II
(177) Reprodução da "natureza" na moral li
(178) Crença ou obra? Lutero. Reforma. "Desprezadores
de si" li
( 179) Problema do criminoso IV
( 180) Metamorfoses da sensibilidade Ili
(181) Niilismo dos artistas I
( 182) A naturalização do homem do século XIX IV
( 183) Protestantismo no século XIX 1
(184) Sobre o ideal dojllósofo. Conclusão IV
186 FRIEORICH NIETZSCHE
...............................................................................................

(185) História da moralização e ,da des-moralização lll


(186) Plano do "plano" do primeiro livro I
(J 87) Nível hierárquico dos homens IV
( 188) Música contra palavra I
( 189) Onde se precisa buscar as naturezas mais fortes IV
( 190) Escãrnio do idealismo, que não quer ter a mediocri-
dade como medíocre: sobre a critica do "idealista" 1
(19 1) A época trágica IV
(192) O "idealista" (lbsen) I
(193) Não querer tomar "melhor", mas mais forte IV
(194) A arte de caluniamento cri.stã Il
(195) Não uniformizar! "Virtude" não é nada mediano,
algo irado IV
( 196) Casamento, relação sexual III
(197) A inteligência judaica dos primeiros cristãos Il
(198) O Novo Testamento como livro da sedução li
( 199) Os três elementos no cristiianismo. Seu progresso até
a democracia: como cristianismo naturalizado II
(200) O cri.stianismo como prosseguimento do judaismo II
(201) Ironia com os pequenos c.ristãos ll
(202) Individualismo como "vontade de poder"
Sobre as metamorfoses da vontade de poder Ili
(203) Ironia com os virtuosos
Critica ao "homem bom" lll
(204) O espectro da hipótese moral lll
(205) Critica ao "homem bom" II
(206) Contra Jesus de Nazaré como sedutor II
(207) A prova da força IV
(208) O casamento como concubinato II
(209) Princípio da ordem hierárquica IV
(210) Conceito de Deus, depois de um acerto de conta com
m~~ IV
(211) O cristianismo comojudalismo emancipado II
(212) A vida judaica como pano de fundo das primeiras
"comunidades cristãs" li
(213) Petrônio li
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 187

(214) Serâ que os príncipes podem prescindir de nós, imo-


ralistas? IV
(215) Cristo: Ideal do tipo não nobre de homem. Il
(216) Nós, homens do conhecimento - como imorais! IV
(217) Protesto contra Cristo como tipo humano: enquanto
ele é apenas uma caricatura... IV
(218) A desnaturalização do génio (Schopenhauer) sob a
influência da moral n
(219) O que reconcilia Schopenhauer com o Antigo Testa-
mento: o mito do pecado original II
(220) Fazer um registro de meus "sim", meus "não", meus
pontos de interrogação IV
(221) Tipo de meus "discípulos" IV
(222) Contra Schopenhauer que quer castrar malandros e
tolos. Sobre a "ordem hicrârquica" IV
(223) Sobre a força do século XIX IV
(224) Serâ que/12 mal à virtude? IV
(225) Contra o remorso IV
(226) Traduzir a virtude no elemento nobre IV
(227) Minha espécie de justificação da virtude IV
(228) Sobre a ordem hierârquica IV
(229) A força para a caricatura em toda avaliação social:
meios de sua vontade de poder li
(230) Para a crítica dos idealistas: como oposição a mim .IV
(23 1) Guerra contra "o nobre" no sentido mole-feminino-
efeminado IV
(232) Nossa música, sobre o conceito de "clássico", "ge-
nial" etc. IV
(233) Em que medida eu não desejo a aniquilação dos ide-
ais, que eu combato - eu quero apenas me tomar se-
nhor d.eles rv
(234) Minha posição e a d.e Schopenhauer - uma contro-
vérsia, em relação ao mesmo tempo a Kant, a Hegel,
a Comte, Darwin, aos historiadores etc. IV
(235) Articulo-me com os lados fortes d.o século IV
(236) O que significa a própria idiossincrasia moral junto a
um individuo extraordinário como Pascal? 11
188 FRIEDRICH NIETZSCHE
............................................................ ,..................................

(237) Em que medida eu proporciono novas honras à me-


diocridade N
(238) A escolástica moral é a que dura mais TIi
(239) A ingenuidade com vistas às derradeiras "coisas de-
sejáveis" enquanto não se. conhece o "por quê?" do
homem N
(240) Reprodução do conceito correto da "postura boa,
solícita e benevolente": não honrada em virtude da
utilidade, mas a partir daqueles que a acolhem m
(241) Contra o altruísmo da fraqueza Ill
(242) Contra a preocupação consigo e a "salvação eterna" m
(243) Incompreensão do amor, da compaixão, da justiça
sob a pressão da moral da supressão de si mesmo li
(244) Mandamentos do culto pa:ssando para mandamentos
do culto
(245) Todos os afetos são úteis: aqui não há nenhum crité-
~ mdda *
(246) Qual é o sentido que a perspectiva míope da socieda-
ill
de possui com vistas à "utilidade" n
(247) Onde o "caráter cristão" não tem mais absolutamente
nenhum direito...
Na política... TI
(248) Contra a supervalorização do "gênero" e a subesti-
mação do "indivíduo" na ciência natural rn
(249) O "mundo consciente" não pode ser considerado
como ponto de partida valorativo: necessidade de
uma "valoração objetiva" IV
(250) "Deus" como estado máximo IV
(251) Envergonhar-se da infelicidade N
(252) Nós, homens do conhecimento - nosso derradeiro
modo de autossuperação N
(253) As sublimações, por exemplo, da dispepsia li
(254) Meus pontos de vista dos valores N
(255) Não ser limitado demais para se afeiçoar por sistemas
(256) Moral como a mais extrema desvalorização mesma
ainda no niilismo de Schopenhauer
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 189

(257) Domínio absoluto da moral sobre todos os outros va-


lores: na concepção de Deus
(258) A perda de todas as coisas naturais por meio do esta-
belecimento de esferas supostamente mais elevadas
- até o domínio do "contranatural"
(259) Os resíduos da desvalorização da natureza por meio
da transcendência da moral
(260) Meu intuito, a homogeneidade absoluta de todo
acontecimento: a diferenciação moral é apenas uma
diferenciação perspectivística N
(261) Pessimismo musical 1
(262) Casamento, adultério N
(263) O castracionismo cristão-budista como "ideal": de
onde provém o estímulo s,edutor? Il
(264) O "caráter aparente" do pensamento... II!
(265) Arte do disfarce crescendo, na ordem hierârquica dos
seres. Para o "pensar"... m
(266) Os fanáticos da moral, depois de terem se emancipado
da religião: insistir no fato de que a moral equivale
ao Deus cristão...
(267) "O domínio do bem" como ironia, como não econô-
mico, como "bom tempo,.
(268) O que foi estragado pelo ideal cristão da ascese, do
jejum, do monastério, da festa, da crença em si, da
morte...
(269) Provas da arte de difamação moralista
(270) Para o surgimento do bel.o: critica a seus julzos de
valor III
(271) O artista trágico N
(272) A forma mais oculta do ideal cristão, por exemplo,
no culto à natureza, no socialismo, na "metafisica do
amor" etc.
(273) Nossa avaliação benevolente do homem, na relação
com a avaliação moralisticamcnte cristã.
A liberalidade moralista como sinal do acréscimo de
cultura N
190 fR IEORICH NIETZSCHE

(274) O homem mais moral como o mais poderoso, o


mais divino: o conhecimento conjunto buscava de-
monstrar isso.
Essa relação com o poder elevou a moral acima de
todos os valores íl
(275) O ideal cristão como judaicamente esperto li
(276) A autodivinização das peq_uenas pessoas (80a) li
(277} Paulo: justificação da história, a fim de demonstrar... li
(278) A realidade por detrás das <comunidades cristãs>: a
pequena familia judia 11
(279) Primeira impressão do Novo Testamento. Toma-se o
partido de Pilatos e, então, quase, dos eruditos nas
escrituras e dos fariseus... II
(280) Para a psicologia do Novo Testamento 11
(281) "Espirito" no Novo Testamento 11
(282) Em que medida o cristianismo pôde ser padronizado
pelas camadas dominantes Il
(283) Paulo 11
(284) Budismo e cristianismo li
(285) Não suporto nenhum acordo com o cristianismo rv
(286) Para o plano do primeiro livro I
(287) Pagão - cristão
(288) Forma da "desnaturalização": o bem cm virtude do
bem, o belo cm virtude do belo, o verdadeiro em vir-
tude do verdadeiro - 11
(289} A falsificação psicológica sob a necessidade de se
combater em nome de seu ideal fl
(290) Meu isolamento absoluto: como introdução rv
(291) Sê "natural"! I
(292) "Deixai as criancinhas": 6
(293) O pressuposto psicológico, do cristianismo li
(294) Crítica ao ideal do sermão da montanha II
(295) A burrice antiga em relação ao cr<istianismo> li
(296) "Coisa em si" - contrassensual IJJ
(297) A concepção dos deuses, por que moralizada? LI
(298) A imodéstia de também querer falar no Novo Testa-
mento li
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 191

(299) A ingenuidade de Kant ao afll1tlar a ex.istência Ili


(300) A intolerancia da moral julgada de maneira total-
mente genérica - expressão de fraqueza do homem IV
(301) Avançar? Não, seguir-por-si
(302) Contentar-se com os homens
(303) Artistas: forma: conteúdo
(304) Sainte-Beuve
(305) George Sand
lll.: 22
IV: 73
(306) Homens, que são destinos
(307) "Mulher moderna" Duc de Morny
(308) A mulher e o artista
(309) Ponto mais elevado da consideração
(31 O) O tipo mais forte na Europa do futuro
(311) "Pastor": o grande mediano
(312) Stendhal: "o forte mente"
(313) Para a história do Romantismo
(314) Pagão
(315) Nosso pessimismo (Para o livro de receitas)
(316) O fato de se colocar algo em jogo, por quê? (Para o
livro de receitas)
(317) Emerson, Carlyle
(318) Ceticismo, o grande homem (Para o livro de receitas)
(319) Bizet: a sensibilidade africana ("moura")
(320) Como se leva a virtude a dominar
(321) O cristianismo: como ele destruiu Pascal
(322) Taiae, Zola: a tirania
(323) O "idealista"
(324) A mulher literária
(325) O "trabalhador" moderno
(326) Contra o pessimismo do senhor von Ha.rtmann: pra•
zer como medida
(327) O ator (Talma) -
aquilo que deve se tornar verdadeiro não tem o direi-
to de ser verdadeiro...
192 fRIEDRICH NIETZSCHE

(328) O "bom gosto": juízo de Sainte-Beuve.


(329) Prazer e desprazer são secundários.
(330) Nenhuma meta - nenhum estado final: fazer frente a
esse fato!
(331) "Valores": com vistas ao quê!
(332) Valores: com vistas ao quê não?
(333) Não é "a vontade" que quer satisfação, não é isso que
é "prazer"
(334) A insatisfação como prazerosa
(335) A dimensão do desprazer necessário como sinal do
grau de força
(336) Por que nós vivenciamos tragédias (Livro de receitas)
(337) A higiene de César (Livro,de receitas)
(338) Livro de receitas: cuidado,
(339) Pelo que o valor se mensura? Não pela consciência
(340) As ordens dos pratos co,ntêm revelações sobre as
"culturas"
(341) A generosidade imperial do homem
(342) Carência religiosa mascar.ada como música
(343) Amor, desinteresse, vantagem -
(344) Prostituição, casamento
(345) "Fertilizantes": o que não conseguimos realizar -
(346) "Perecibilidade": valor -
(347) As últimas palavras de Voltaire: cristãs e clássicas
(348) Valor de toda depreciação
(349) Sentido oculto do niilismo filosófico
(350) Valor da "perecibilidade"
(351) Causas do niilismo! Resumo final!
(352) Niilismo como estágio intermediário
(353) Contra o remorso (Livro de receitas)
(354) "nir' admirari (Livro de receitas)
(355) Tipos da descrença: sintoma do niilismo emergente
(356) Não é à felicidade que aspira o homem! Mas ao poder!
(357) O desafio da infelicidade (Livro de receitas)
(358) Sobre a doutrina do conhecimento: fenomenalidade
interna
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 193

(359) Veracidade - que é isso?


(360) Alegria de deseobrir uma vez mais por toda parte a
imoralidade
(361) O homem real é mais valoroso do que o homem de-
sejável!
(362) Prefácio: origem do niilismo
(363) Sujeito, objeto
(364) "Fome" no protoplasma
(365) O eontrassenso no eonceito de Deus: negamos
"Deus" em Deus
(366) O niilista prático
(367) Nós - desiludidos com o "ideal"
(368) Escárnio: "Sê simples!"
(369) Escolha dos iguais, o "êxodo", o isolamento (Livro
de receitas)
(370) Contra a "justiça" (Livro de receitas)
(371) Povo: instlnto de familiari.dade
(372) Os três ideais
pagão; anêmico; antinatural

12 (2)
12.4. Receitas de vida para nós
1. 1. O niilismo pensado perfeitamente até o fim
2.1. Cultura, civilização, a ambi,guidadc do "moderno"
3 .2. A ascensão do ideal
4.2. Critica ao ideal cristão
5.2. Como é que a virtude se toma vitoriosa
6.2. O instinto de rebanho
10.4. O "eterno retorno"
11.4. A grande política
7. 3. A ''vontade de verdade"
8.3. Moral como Circe do filósofo
9.3. Psicologia da "vontade de poder" (Prazer, vontade, concei-
to etc.)
(13 = ZII 3b. Início de 1888 até a primavera de 1888)

13 (!)
Devir e ser.
O ponto de vista do valor. O que são valo.res?
Em que medida prazer e desprazer não são critérios de
valor derradeiros.
Como se faz com que a virtude se tome vitoriosa.
Caracterização do cristianismo
da filosofia grega
O egoísmo como incompreensão.
O europeu futuro.
Metamorfoses do niilismo:
A libeninagem do espirito, a vagabundagem
A descendência de Rousseau:
O instinto de rebanho

13 (2)
A falta de sentido; valor do próximo, o pequeno sentido;
ordem hierárquica.
O grande meio-dia (-os dois caminhos). Do privilégio dos
pouquíssimos.
Psicologia (doutrina dos a.fetos) como morfologia da von•
tade de poder. (Não "felicidade" como motivo)
Os valores metafísicos reduzidos.
Fisiologia da vontade de poder.
Sobre a história do niilismo (- eudaimonismo como uma
forma do sentimento de aasência de sentido do todo).
O que significam moralistas e sistemas morais?
Doutrina das configurações de domínio. Egoísmo. Altruís-
mo. "Rebanho".
A vontade de poder na his1ória
(Domlnio sobre as forças naturais, a vida econômica)
Perspectivas cosmológicas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 195

Dependência ante os valores artísticos. O que é clássico?


"Belo"? Romântico? Etc.
O eterno retomo.

13 (3)
1. Para a história do niilismo europeu. (Incompreensão do
pessimismo. O que/alta? Essencialmente: o sentido é que
falta)
Declínio de todos os outros valores supremos (A força se
jogou sobre o inverso)
1. A vontade de verdade. Ponto de partida: decli.nio do va-
lor "verdade".
- Os tipos dominantes até aqui. Declínio do tipo dominante.
IV. Para a doutrina do eterno retomo. Como martelo.
- Para a história da ordem hierârquica
1. Fisiologia: as funções orgânicas
2. Psicologia dos afetos
II. O que significam os moralistas e os sistemas morais.
IV. Nós, homens do futuro. Do privilégio dos pouquissi-
mos e do privilégio da maioria
II. Origem dos conceitos mais elevados de valor ("metafi-
sica")
II. Os valores estéticos, origem, critica.
IV. Ordem hierárquica dos valores.

13 (4)
A. Da origem do niilismo.
1. "Verdade". Do valor da verdade. A crença na verda-
de. - Decllnio desse valor supremo. Resumo de tudo
aquilo que foi feito contra ele.
2. Declínio de todos os tipos de crença.
3. Declinio de todos os tipos dominantes.
B. Da necessidade do niilismo.
4. Origem dos valores supremos até aqui.
S. O que os moralistas e os sistemas morais significam.
6. Para u critica dos valores estéticos.
196 FRIEORICH NIETZSCHE

C. Da autossuperação do niilismo.
7. A vontade de poder: consideração psicológica.
8. A vontade de poder: consideração fisiológica.
9. A vontade de poder: consideração histórico-sociológica.
D. Os que superam e os superados.
1O. Do privilégio dos pouquíssimos.
11 . O maneio: doutrina do eterno retomo do mesmo.
12. Da ordem hierárquica dos valores.

Cada livro com 150 páginas


Cada capítulo com 50 páginas

13 (5)
Tu estás distante:
Nem amor, nem ódio.
Como em uma fonaleza,
Lembre-se!
(14 = W 115. Começo do ano 1888)

Nizza, 25 de março de 18 88.

14 (!)
Arte. Prefácio
Falar sobre arte é algo para mim incompativel com gestos
amargos: quero falar de arte tal como falo comigo mesmo, em
passeios agrestes e solitários, em que colho, entre outras coisas,
uma felicidade e um ideal injuriosos em minha vida. Passar sua
vida entre coisas frágeis e absurdas; alheias à realidade; meio
artista, meio pássaro e metafisico; sem sim e não para a realida-
de, a não ser que a reconheçamos vez por outra ao modo de um
bom dançarino com as pontas dos pés; sempre lisonjeado por
algum brilho de sol da felicidade; animado e encorajado mesmo
por meio da aflição - pois a aflição mantém o homem feliz-; co-
locando um pequeno rabo de burla até mesmo no que há de mais
sagrado - este, como se compreende por si só, é o ideal de um
espirito pesado, muito pesado, de um espírito de gravidade...

14 (2)
Homeopática
O efeito de doses infinitesimais é especifico no caso dos
doentes nervosos: ego.
"As pessoas são tanto mais infelizes quanto mais inteligen-
tes elas são."
Schopenhauer

14 (3)
As fases imperceptíveis: a fase da excitação e, logo em se-
guida, a fase do esgotamento
O transe hipnótico pode ser produzido por todo o tipo de
estímulos sensoriais (da visão, da escuta, do cheiro). Esses cs-
timulos só precisam ser fortes e longos o suficiente: o primeiro
efeito é sempre o de uma elevação geral da mobilidade. Por fim,
198 FRIEORICH NIETZSCHE

porém, tem lugar um esgotamento do injlw: cérébral. O estimulo


coloca em jogo uma força, que se esgota ...

14 (4)
Psicológica
O desejo, agradável quando acreditamos ser fortes o sufi-
ciente para alcançar os objetos.
como representação daquilo que aumentará o nosso senti-
mento de poder: primeiro início da diversão
de resto desagradável; e logo em uma relação antipática
consigo mesmo. O desejo é um estado de emergência: como em
Schopenhauer.

14 (5)
Religião. Décadence.
A periculosidade do cristianismo
Apesar do fato de o cristianismo ter colocado no primeiro
plano a doutrina do altruísmo e do amor, seu efeito histórico pro-
priamente dito continua sendo a elevação do egoismo, do egoís-
mo individua.! até o seu extremo mais absoluto - o extremo é a
crença em uma imortalidade individual. O particular tomou-se
tão importante que não se podia mais sacrificá-lo: perante Deus,
as "almas" eram iguais. Isso significa, porém, colocar em ques-
tão a vida da espécie da maneira mais perigosa possível: isso
favoreceu uma práxis, que representa o oposto do interesse da
espécie. O altruísmo do cristian.ismo é uma concepção que colo-
ca a vida em risco: ele toma todos iguais entre si ...
Com isso, contudo, o curso natural do d.esenvolvi<mento>...,
assim como todos os valores naturais, é anulado. Se o doente
deve ter tanto valor quanto o homem saudável (ou quiçá ainda
mais, segundo Pascal)
Esse amor humano universal, na prática o privilégio de to-
dos os que sofrem, de todos os desvalidos, doentes
enfraqueceu de fato a força de sacrificar homens: ela quis
reduzir a responsabilidade a se sacrificar: - mas precisamente
esse absurdo altruísmo pessoal não tem, visto a partir do ponto
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 199

de vista do cultivo, valor algum. Caso se quisesse esperar para


saber quantos sacrificam a si mesmos para a conservação da es-
pécie, se seria ridicularizado ...
todos os grandes movimentos, guerras etc. levam o homem
a se sacrificar: são os fortes que reduzem dessa maneira constan-
temente o seu número ...
cm contrapartida, os fracos possuem um instinto assustador
para se poupar, para se conservar, para se sustentar mutuamente ...
essa ''reciprocidade da conservação" deve ser quase a vir-
tude e, em todo caso, o amor humano!. .. típico: eles querem ser
protegidos pelo Estado, eles acham que essa proteção seria "o
seu compromisso mais elevado!"
por detrás do elogio geral do "altruísmo" se esconde o ins-
tinto de que, se todos cuidarem uns dos outros, o particular per-
manece preservado da melhor fonna possível... foi o egoísmo dos
fracos que criou o elogio, o elogio exclusivo do altruísmo ...
A antinaturalidade perigosa do cristianismo:
- ela crucifica a seleção -
1) ela inventa um valor imaginário da pessoa, tão diver-
gente e importante, que praticamente todos têm o mesmo
valor
2) ela estabelece o impulso de autoconservação e de pro-
teção dos fracos entre si como a medida valorativa su-
prema, ela não combate nada com tanto ardor quanto o
modo corno a natureza lirata os fracos e desvalidos: dani-
ficando, explorando, destruindo ...
3) ela não quer ouvir falar no fato de que o tipo mais ele-
vado de homem é o bem-constituído e feliz... ela é adi-
famação, o envenenamento, o desmoronamento de toda
avaliação natural.

14 (6)
Vomade de poder como moral
Conceber a copcrtinência de todas as formas de corrupção;
e não esquecer nesse caso a corrupção cristã
Pascal corno tipo
200 fRIEDRICH NIETZSCHE

não esquecer tampouco a corrupção socialista-comunista


( uma consequência da cristã)
concepção maximamente elevada da sociedade por parte dos
socialistas como a mais baixa na ordem hierárquica das sociedades
a co.rrupção do "além": como se houvesse fora do mundo
efetivamente real, do mundo do devir, um mundo do ente
Não pode haver aqui nenhum contrato: aqui é preciso ex-
terminar, aniquilar, guerrear- é preciso extrair por toda parte ain-
da o critério valorativo de med,ida cristão-niilista e combatê-lo
sob toda e qualquer máscara ... Extrai-lo da sociologia atual, por
exemplo, da música atual, por exemplo, do pessimismo atual (-
tudo isso são formas do ideal valorativo cristão - )
Ou uma coisa ou outra é verdadeira: verdadeiro, ou seja,
elevando o tipo homem ...
O sacerdote, o assistente de almas, como formas condenã-
veis de existência
oconjunto da existência até aqui como desamparado, sem base,
sem o fiel da balança, marcado pela contradição entre os valores -

14 (7)
Para a modernidade.
A covardia diante da consequência - o vicio moderno.
Romantismo: a inimizade
cm relação ao Renascimento (Chatcaubriand, R. Wagner)
em relação ao ideal antigo de valor
em relação à espiritualidade dominante
em relação ao gosto clássfoo, o estilo simples, rigoroso, o
grande estilo
em relação aos "felizes"
cm relação aos "guerreiros"

14 (8)
Valor.
O mais elevado quantum de poder, que o homem consegue
incorporar
o homem: não a humanidade...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 201

a humanidade é muito mais um meio do que uma meta. Tra-


ta-se do tipo: a humanidade é meramente o material experimental,
o excedente descomunal do que falha, um campo em ruínas.

14 (9)
Niilismo
Nada seria mais útil e precisaria ser mais fomentado do
que um niilismo consequente da ação
: tal como compreendo todos os fenômenos do cristianis-
mo, do pessimismo, eles expressam o fato de "estarmos prontos
para não ser; para nós, é racional não ser"
essa linguagem da ''razão" também seria, nesse caso, a lin-
guagem da natureza seletiva
Em contrapartida, o que precisaria ser condenado em todos
os conceitos é a parcialidade ambígua e covarde de uma religião
tal como a do cristianismo: ma.is claro ainda, da Igreja: a qual,
ao invés de encorajar à morte e /t autoaniquilação, protege tudo o
que é falho, fazendo com que ele prolifere a si mesmo -
Problema: com que tipo de meios seria visada uma forma
rigorosa do grande njilismo contagioso: uma forma tal que, com
uma conscienciosidade cientifica, ensinaria e exerceria a morte
voluntária... (e não a fraca prop-agação do vegetar com vistas a
uma falsa pós-existência -)
Não se pode condenar suficientemente o cristianismo pelo
fato de ter desvalorizado o valor de um tal movimento do grande
niilismo purificador por meio da ideia da pessoa privada imortal:
assim como por meio da esperança na ressurreição: em suma,
sempre por meio de um afastamento do ato do niilismo, o suicí-
dio ... Esse substituiria o suicídio lento; paulatinamente uma pe-
quena vida pobre e duradoura; paulatinamente uma vida mediana
e burguesa totalmente comum etc.

14 (10)
Religião como decadência
Crítica ao cristianismo
Carece-se de grandes crises de seleção e de purifu:ação:
cm todo caso introduzidas por religiões e filosofias niilistas.
202 FRIEDRICH NIETZSCHE

Compreende-se que o cristianismo seja algo imortalmen-


te equivocado e desvalido: por meio da escolha de cultivo, ele
se tomou o opositor, o entrave e a planta venenosa para essa
escolha

14(11)
Os afetos afirmativos
O orgulho
A alegria
A saúde
O amor dos sexos
A inimizade e a guerra
A veneração
Os belos gestos, maneiras, objetos
A vontade forte
O cultivo da elevada espiritualidade
A vontade de poder
A gratidão em relação à terra e à vida
: tudo aquilo que é rico e quer entregar, presenteando, dou-
rando, eternizando e divinizando a vida - toda a violência das
virtudes transfiguradoras ... tudo aquilo que se mostra acolhedor,
afumativo, tudo aquilo que produz o sim -

14 (12)
Sacerdotes e outras esponjas de tinta, outras lulas -

14 (13)
Fisiologia das religiões niilistas
Um transcurso típico da doença
N.B. - as religiões niilistas todas juntas: histórias sistemati-
zadas da doença sob uma nomenclatura religiosa e moralizante.
- no culto pagão, temos a grande circulação anual, em
tomo de cuja interpretação gira o culto
- no culto cristão, temos uma circulação defen6me11os pa-
ralíticos, em tomo dos quais gira o culto...
"a crença", uma forma de doença mental
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 203

o remorso
a redenção tudo neurastênico
a oração
o pecado, uma ideia fixa
o ódio à natureza, à razão
O caráter cristão como doença
O cristianismo como sintoma de uma decadência fisiológica

14 (14)
O contramovimento - arte
Nascimento da tragédia
[II
Essas duas forças artísticas violentas da natureza são con-
trapostas uma à outra por Nietzsche como o dionisíaco e o apo-
líneo: ele afirma que - - - com a palavra dionis!aco é expresso:
um ímpeto para a unidade, uro lançar-se para além da pessoa,
do cotidiano, da sociedade, da. realidade, como abismo do es-
quecimento, o intumescimento apaixonado e doloroso em meio
aos estados mais suspensos, mais obscuros e mais plenos; um
encantador dizer sim ao caráter conjunto da vida, como aquilo
que é igual em toda mudança, igualmente poderoso, igualmente
venturoso; a grande alegria compartilhada e o grande compa-
decimento panteístas, que acolhem e sacralizam mesmo as pro-
priedades mais terríveis e mais questionáveis da vida, a partir de
urna eterna vontade de geração, de fecundidade, de eternidade:
como sentimento de unidade da necessidade de criar e de ani-
quilar... Com a palavra apolíneo é expresso: o lmpeto para o
ser-por-si perfeito, para o "indivíduo" típico, para tudo o que
simplifica, destaca, toma forte, distinto, não amb!guo, típico: a
liberdade sob a lei.
O desenvolvimento continuo da arte está tiio necessaria-
mente articulado com seu an~gonismo quanto o desenvolvi-
mento continuo da humanidade com o antagonismo dos sexos.
A plenitude do poder e a moderação, a forma suprema da autoa-
tirmação em uma beleza fria, nobre, reservada: o apolinismo da
vontade helênica.
204 FRIEORICH NIETZSCHE

A origem da tragédia e da comédia como um ver presente


um tipo sob o estado de um encantamento conjunto, como um
covivenciar das lendas do lugar, da visita, do maravilbamento, do
ato de instituição, do "drama" (-
Essa contradição entre o dionisíaco e o apolineo no interior
da alma grega é um dos grandes mistérios pelos quais Nietzsche
se sentiu atraido cm face da essência grega. Nietzsche não se
empenhou, no fundo, por outra coisa senão por desvendar por
que precisamente o apolinismo grego precisou emergir de um
subsolo dionisíaco: o grego dionisíaco tinha a necessidade de
se tornar apolineo, ou seja, ele tinha a necessidade de quebrar
sua vontade do descomunal, múltiplo, incerto, horrível junto
a uma vontade de medida, de simplicidade, de ordenação cm
regras e conceitos. O desmedido, o deserto, o asiático se en-
contra em sua base: a coragem do grego consiste na luta com o
seu asiatismo: a beleza não foi presenteada a ele, assim como
não o foi tampouco a lógica, a naturalidade dos hãbitos - ela
foi conquistada, querida, alcançada em meio à batalha - ela foi
sua vitória ...

14 (15)
Este livro é antipeSsimista: ele ensina um poder contrário
em relação a todo dizer não e agir negativo, um remédio contra
o grande cansaço

14 (16)
O tipo Deus segundo o tipo do espírito criador, do "grande
homem"

14(17)
Nascimento da tragédia
2.
Início da seção duas páginas depois: II.
A arte é considerada, aqui, como um poder contrário único
e superior em relação a toda vontade de negação da vida: como o
anticristão, antibudista, antiniilista par excellence ...
fRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 205

Ela é a redenção do que conhece- daquele que vê o caráter


terrível e questionãvel da vida, mas vive, quer viver, do homem
trágico, do herói.
Ela é a redenção do que sofre - como caminho para estados
nos quais o sofrer é querido, transfigurado, divinizado, nos quais
o sofrer é uma fonna do grande encantamento...

14 (18)
Ill
Hã dois estados nos quais a arte mesma entra em cena
como uma espécie de força da natureza no homem: por um lado,
como visão e, por outro, como o, orgiasmo dionisíaco. Esses dois
estados se acham prefigurados no sonho e na embriaguez: o pri-
meiro compreendido como exercício daquela força para a visão,
como um prazer em ver figuras, como um forjar figuras.
A vontade de aparência, de ilusão, de engano, de devir e
mudança é mais profunda, "mais metafisica" do que a vontade de
verdade, de realidade efetiva, de ser: o prazer é mais originãrio
do que a dor; a dor é ela mesma apenas a consequência de uma
vontade de prazer (- de criar, de configurar, de levar a pique, de
destruir) e, sob a fonna suprema, uma espécie do prazer...

14 (19)
Este escrito é antimoderno: ele acredita na arte moderna
e de resto em nada. No fundo, porém, ele tampouco acredita na
arte mooerna, mas na música moderna, e, no fundo, não oa mú-
sica moderna em geral, mas apenas em Waf_'ller... E, no fundo,
talvez nem mesmo em Wagner, a não ser porfaute de mieta.m
p. 116. "Aquilo que de resto saberiamos denominar é cha-
mado assim com um gesto doloroso - - -
Schopenhauer, Dürer.
Acredita-se em que uma música surgirá ... acredita-se em
uma música dionisíaca.

223 N.T.: Em francês no original: por falta de algo melhor.


206 FRIEDRICH NIETZSCHE

14 (20)
Este escrito assume ares de ser alemão, de ser ele mesmo
fiel ao império - ele mesmo ainda acredita no espírito alemão!. ..
Sua nuança é o fato de ser germânico e anticristão: "o mais dolo-
roso, assim se encontra formulado na p. 142, é para nós o longo
aviltamento, sob o qual o espírito alemão, alienado de sua casa
e de sua terra natal, viveu a serviço de pérfidos anões". Esses
pérfidos anões são os padres. - Em outra passagem, levanta-se
a questão de saber se o espirito alemão ainda seria forte o sufi-
ciente para refletir sobre si mesmo; se ele ainda poderia levar a
sério o afastamento de elementos estranhos; ou se iria prosseguir
consumindo-se como uma planta enferma e estiolada em esfor-
ços doentios. Neste livro, o que importa é mostrar que o trans-
plante de um mito profundamente antigermãnico, o mito cristão,
no coração alemão é a/ata/idade propriamente alemã.

14 (21)
Dessa forma, este livro é até mesmo antipessimista: a sa-
ber, no sentido de que ensina algo que é mais forte do que o pes-
sirni.smo, que é mais d.ivino do que a "verdade": a arte.
Ao que parece, ninguém defenderia mais do que o autor
deste livro o fato de uma negação radical da vida, de uma ação
negativa realmente efetiva se mostrar ainda mais como um dizer
não à vida: só que ele sabe - ele o vivenciou, ialvez não tenha
vivenciado outra coisa senão iss,o - que a arte tem mais valor do
que a "verdade".
Já no prefácio, no qual Richard Wagner é convidado a par-
ticipar por assim dizer de um diálogo, aparece a confissão de fé,
o evangelho dos artistas: "a arte como a tarefa propriamente dita
da vida, a arte como atividade metafisica" ...

14 (22)
5.
Sob tal pressuposto, o que precisa acontecer com a ciên-
cia? Como é que ela se encontra ai? Em um sentido significativo,
quase como inimiga da verdade: pois ela é otimista, pois ela acre-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 207

dita na lógica. Computado fisiologicamente, são os tempos de


declínio de uma raça forte os tempos nos quais amadurece nessa
raça o tipo do homem cientifico. A crítica a Sócrates constitui a
parte principal do livro: Sócrates como adversário da tragédia,
como o dissolutor dos instintos demoníacos e profiláticos da arte:
o socratismo como a grande incompreensão da vida e da arte: a
moral, a dialética e a moderação do homem teórico como uma
forma de cansaço; a célebre serenidade grega como apenas um
arrebol ... As raças fortes, enquanto elas são ricas e profusas em
força, têm a coragem de ver as coisas tal como elas são: tragica-
mente... Para elas, a arte é mais do que uma diversão e entreteni-
mento; ela é um tratamento ...
O livro ensina que, "apesar de todas as ideias e os precon-
ceitos modernos oriundos do gosto democrático, os gregos - p.
X do prefácio.

14 (23)
II
O essencial nessa concepção é o conceito da arte na relação
com a vida: ela é apreendida tanto psicológica quanto fisiolo-
gicamente como o grande estimulante, como aquilo que impele
eternamente à vida, à vida eterna...

14 (24)
3.
Vê-se que, neste livro, o pessimismo, digamos de maneira
mais clara, o niilismo é considerado como sendo a "verdade":
mas a verdade não é considera.da como um critério valorativo
supremo, nem tampouco como o poder mais elevado.
A vontade de aparência, de ilusão, de engano, de devir e
de mudança é considerada, aqui, como mais profunda e mais
originária, como "mais metafisica" do que a vontade de verda-
de, de realidade efetiva, de ser: - esse último é ele mesmo me-
ramente uma forma da vontade de ilusão. Do mesmo modo, o
prazer também é considerado mais originário do que a dor: a dor
é apenas condicionada como uma consequência da vontade de
208 FRIEDRICH NIETZSCHE

prazer (da vontade de devi.r, de crescimento, de configuração, e,


consequentemente, de sobrepujamento, de resistência, de guer-
ra, de destruição). Concebe-se um estado maximamente elevado
da afirmação da existência, no qual até mesmo a dor, todo tipo
de dor como meio da elevação, é eternamente inclu.ida: o estado
trágico-dionisíaco.

14 (25)
Para o Nascimemo da tragédia
vm.
A nova concepção dos b'l'Cgos é o elemento distintivo deste
livro; já fizemos alusão, aqui, a.os seus dois outros méritos - a
nova concepção da arte, como o grande estimulante da vida, como
o grande estimulante para a vida; do mesmo modo, a concepção
do pessimísmo, de um pessimismo da força, de um pessimismo
clássico: a palavra clássico usada aqui não pa.ra uma delimitação
histórica, mas para uma delimitação psicológica. O oposto do
pessimismo clássico é o pessimismo romântico: aquele no qual
a fraqueza, o cansaço, a decadência das raças é formulado con-
ceituai c valorativamente: o pessimismo de Schopenhauer, por
exemplo, assim como o pessimismo de Vigny, de Dostoiévski,
de Leopardi, de Pascal, de todas as grandes religiões niilistas
(do bramanismo, do budismo, do cristianismo - elas podem ser
chamadas de niilistas, porque tooas elas glorificaram o conceito
contrario à vida, o nada, como finalidade, como bem supremo,
como "Deus").
O que distingue Nietzsche: a espontaneidade de sua visão
psicológica, uma amplitude vertiginosa da visão panorâmica, do
vivenciado, desvendado, descerrado, a vontade de consequência,
o destemor diante da dureza e da perigosa consequência.

14 (26)
Nascimento da tragédia
Mas tratemos do principal, daquilo que distingue o livro e
o coloca à parte, tratemos de sua originalidade: ele contém três
concepções novas. Já denominamos a primeira: a arte como o
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 209

grande estimulante da vida, para a vida. A segunda: ele traz con-


sigo um novo tipo de pessimismo, o pessimismo clássico. Em
terceiro lugar: ele formula um novo problema para a psicologia,
o problema grego.

14 (27)
Filosofia como decadência
Para a psicologia do psicólogo
Psicólogos, tal como esses se tomaram possiveis pela pri-
meira vez a partir do século XIX: não mais aqueles seres ociosos,
que só olhavam três ou quatro passos adiante de si e logo estavam
satisfeitos em se enterrar em si. Nós, psicólogos do futuro - nós
não temos nenhuma grande boa vontade com a auto-observação:
tomamos quase como um sinal ,de degenemção quando um ins-
trumento busca "conhecer a si mesmo": somos instrumentos do
conhecimento e gostaríamos de ter toda a ingenuidade e precisão
de um instrumento; - consequentemente, não podemos analisar
a nós mesmos, nem "conhecer" a nós mesmos. Primeiro trdÇO
caracteristico de um instinto de autoconservação do grande psi-
cólogo: ele nunca busca a si mesmo, ele não tem olhos, interesse,
ele não tem nenhuma curiosidade por si... O grande egoísmo de
nossa vontad.e dominante quer que as coisas em relação a nós se
deem de tal modo que nos disponhamos a fechar os olhos - que
precisemos nos mostrar como º impessoais", "desinteressados",
"objetivos"... 6, o quanto somos o contrãrio disso! Somente por-
que somos psicólogos em um grau excêntrico.

14 (28)
O psicólogo
1) Não somos nenhum Pascal, não estamos particularmen-
te interessados na "salvação da alma", na própria felicidade, na
própria virtude ... -
2) Não temos nem tempo nem curiosidade suficientes
para gimrmos dessa forma em tomo de nós mesmos. As coisas
se mostram, quando consideradas profundamente, até mesmo de
outra maneira: desconfiamos de todo olhar para o próprio umbi-
210 FRIEORICH NIETZSCHE

go, porque a auto-observação é considerada por nós como uma


forma de degeneração do gênio psicológico, como um ponto de
interrogação em relação ao instinto do psicólogo: é assim certa-
mente que o olhar de um pintor se encontra degradado, um olhar
por detrás do qual se acha a vontade de ver por ver.

14 (29)
Origem dos valores morais
O egoísmo é tão valoroso quanto é valoroso fisiologica-
mente aquele que o possui.
Todo particular se mostra, ainda, como sendo toda a linha do
desenvolvimento (e não apenas tal como a moral o <concebeu>,
como algo que começa com o nascimento): se ele representa a
ascensão da linhagem homem, então seu valor é de fato extraor-
dinário; e o cuidado com a conservação e com o favorecimento
de seu crescimento pode ser extremo. (Trata-se do cuidado com
o futuro prometido nele, o qual dá ao particular bem constituído
um direito extraordinário ao egoísmo.) Se ele representa a linha-
gem descendente, o declinio, o adoecimento crônico: então ele
possui pouco valor. e o primeiro sin.al de tibieza é o fato de ele
retirar o mlnimo possivel o lugar, a força e o brilho solar do bem
constituído. Nesse caso, a sociedade tem por tarefa a repressão
do egoísmo (- que, por vezes, se manifesta de maneira absurda,
doentia, rebelde-): trata-se, então, de particulares ou de camadas
populares como um todo decadentes e estiolados. Uma doutrina
e religião do "amor", da repressão à autoafirmação, da tolerân-
cia, da suportação, da ajuda, da reciprocidade em palavras e atos
pode ter um valor supremo no intcrior de tais camadas, mesmo
visto a partir dos olhos dos dominantes: pois ela reprime os senti-
mentos da rivalidade, do ressentimento, da inveja, os sentimentos
por demais naturais dos desfavorecidos - ela diviniza para eles,
mesmo sob o ideal da modéstia e da obediência, o ser escravo, o
ser dominado, o ser pobre, o ser doente, o se encontrar embaixo.
A partir daqui vem à tona a razao pela qual as classes ou raças e
particulares dominantes daquela época conservaram o culto ao
altruismo, o evangelho dos inferiores, "o Deus na cruz".
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 211

A preponderância de um modo de avaliação altruísta é a


consequência de um instinto voltado para o ser desvalido. O juízo
de valor cm meio ao solo mais baixo diz aqui: "eu não tenho muito
valor"; um juízo de valor meramente fisiológico, dito de maneira
ainda mais clara: o sentimento da impotência, da falta dos grandes
sentimentos afinnativos de poder (nos músculos, nos nervos, nos
centros motrizes). Esse juízo de valor traduz-se sempre de acordo
com a cultura dessas camadas em um juízo moral ou religioso (- o
predominio de juízos morais e religiosos é sempre um sinal de uma
cultura inferior- ): ele procura se fundamentar de acordo com esfe-
ras a partir das quais o conceito de "valor" é efetivamente conheci-
do para elas. A interpretação, com a qual o pecador cristão acredita
compreender a si mesmo, é uma tentativa de encontrar justificada
a falta de poder e de certeza de si: ele prefere se sentir culpado a
se sentir mal em vão: em si, trata-se de um sintoma de decadência
usar interpretações desse tipo cm geral. Em outros casos, os des-
favorecidos não procuram a razão para isso cm sua "culpa" (como
o cristão), mas na sociedade: o socialista, o anarquista, o niilista,
na medida em que experimentam sua existência como algo de que
alguém deve ser culpado, ainda são, com isso, os indivíduos mais
imediatamente aparentados do cristão, que também acredita su-
portar melhor o encontrar-se mal disposto e a falha, ao encontrar
alguém que ele pode tomar responsável por isso. O instinto de vin-
gança e de ressentimento estâ presente nos dois casos; ele aparece
aqui como meio de sustentação. como instinto de autoconserva-
ção: assim como o privilégio dado à teoria e à prâxis altruístas. O
ódio em relação ao egoísmo, seja em relação ao próprio egoísmo,
como no caso do cristão, seja em relação ao egoísmo alheio, como
no caso do socialista, vem à tona, assim, como um julzo de valor
sob o predomínio da vingança; por outro lado, ele se mostra como
uma astúcia da autoconservação dos que sofrem por meio da ele-
vação de seus sent.imentos de reciprocidade e solidariedade... Por
fim, como já indicamos, aquela descarga de ressentimento no ato
de condenar, repudiar, punir o ego ismo (o próprio tanto quanto o
alheio) é ainda um in.stinto da au:toeonservação junto aos dcsfuvo-
recidos. Em suma: o culto ao altrui.smo é uma forma especifica do
212 FRIEDRICH NIETZSCHE

egoísmo, que entra em cena regulannente sob determinados pres-


supostos fisiológicos.

14 (30)
Quando o socialista exige com uma bela indignação '1ustiça",
"direito", "direitos iguais", ele se,encontra sob a pressão de sua cul-
tura insuficiente, que não sabe conceber por que ele sofre: por outro
lado, ele se diverte com isso; se ele se encontrasse melhor disposto,
então tomaria cuidado para não gritar assim: ele encontraria, então,
cm algum outro lugar, a sua diversão. O mesmo vale para o cristão:
"o mundo" 6 condenado, caluniado, amaldiçoado por ele - ele não
exclui a si mesmo. Mas essa não é nenhuma razão para levarmos
seus gritos a sério. Nos dois casos continuamos sempre entre doen-
tes, para os quais/az bem gritar, para o quais a calúnia é um alivio.

14(31)
Valor...
O conceito de uma "açã.o deplorável" cria dificuldades
para nós: não pode haver nada deplorável em si. Nada de tudo
aquilo que em geral acontece pode ser em si deplorável: pois não
se deveria querer que ele não tívesse acontecido: pois cada coisa
está a tal ponto ligada a todas as outras que querer excluir qual-
quer coisa significa querer excluir tudo. Uma ação deplorável:
significa uma ação deplorada em geral.
E isso mesmo então se: em um mundo deplorado, o deplo-
rar tamb6m fosse deplorável... E a consequência de um modo de
pensar que repudia tudo seria uma práxis que tudo afirma ... Se o
devir é um grande anel, então cada coisa é igualmente valorosa,
eterna, necessária ...
Em todas as correlações de sim e não, de privilegiar e rejei-
tar, de amar e odiar expressa-se l!lllla perspectiva, um interesse de
detenninados tipos de vida: em si, tudo o que é fala sim.

14 (32)
Valor...
uma avaliação niilista diz: "É válido para mim não ser."
Ela prossegue e diz: "É válido para ti não ser."
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 213

14 (33)
No que concerne ao páthos trágico, Nietzsche não acolhe
uma vez mais a antiga incompreensão de Aristóteles -
como transfiguração de volúpia e crueldade no grego: ele-
mentos que estão presentes nas festas orgiãsticas - - -
o dionisíaco como um transbordamento e uma unidade de
múltiplos estímulos, em parte terríveis

14 (34)
Drama
O drama não é, como acreditam os semieruditos, a ação,
mas também precisa ser compreendido, de acordo com a origem
dórica da palavra "drama", dórico-hieraticamente: ele é o encon-
tro, o "evento", a rustória sagrada, a lenda fundacional, a "medi-
tação", a presentificação da tarefa do ruerático.

14 (35)
Arte como conlramovimento.
O elemento orgiãstico na ane dos gregos foi subestimado até
aqui; no entanto, o fato de o orgiasmo significar um dos movimen-
tos e crises mais profundos para a própria alma grega - - -
Lembremo-nos, talvez, do tipo frívolo e frio, com o qual
Lobeck manteve afastado de si todo o âmbito de ritos, mitos e
segredos, p. 564-565.
Poder-se-ia dizer que o conceito "clássico" - tal como
Winckelman e Goethe o tinha forjado, não apenas esclareceu,
mas também alijou de si aquele elemento dionisíaco: e - - -
Houve um tempo no qual se reconhecia entre os filólogos
com uma gratidão particular Lobeck - - -

14 (36)
Apolíneo, dionisíaco
llll
Há dois estados nos quais a a.rte mesma entra em cena
como uma força da natureza no homem, dispondo dele, quer ele
o queira ou não: por um lado, como compulsão à visão; por ou-
tro, como compulsão ao orgiasmo. Os dois estados também se
214 FRIEDRICH NIETZSCHE

encontram na vida normal, só que mais fracos, no sonho e na


embriaguez, como em - - -
Mas a mesma oposição existe ainda entre sonho e embria-
guez: os dois desencadeiam em nós forças artistieas, mas cada
um deles de maneira diversa: o sonho desencadeia a força do ver,
do ligar, do poetar; a embriaguez, a dos gestos, da paixão, do
canto, da dança.

14 (37)
Sobre a modernidade.
O que nos honra.
Se hâ alguma coisa que nos honra então é o seguinte: nós
estabelecemos a seriedade em o,utro lugar: consideramos impor-
tante tudo aquilo que foi desprezado por todos os tempos e as
coisas inferiores colocadas de lado - em contrapartida, damos
adeus aos "belos sentimentos"....
Hâ um equívoco mais perigoso do que o desprezo do c-or-
po? Como se com ele toda a espiritualidade não estivesse conde-
nada a se tomar doentia, aos vapores do "idealismo"!
Tudo aquilo que foi pensa.do pelos cristãos e pelos idealis-
tas não possui mãos e pés: nós somos mais radicais. Nós desco-
brimos o "mundo infimo" como o incessantemente decisivo: de
uma maneira perigosa, estamos lançados no - - -
Pavimentação, bom ar no ,quarto, não envenenar a barraca,
conceber os pratos em seu valor. nós levamos a sério todas as
necessidades da ex.istência e desprezamos todo "bom-mocismo"
como uma espécie de "leviandade e frivolidade".
O que hâ de mais desprezível até aqui foi colocado em
primeira linha.
Acrescento a imoral.idade: moralidade é apenas uma forma
da imoralidade que, com vistas à vantagem que determinado tipo
tem com ela, - - -

14 (38)
Tipo "Jesus"...
Jesus é o tipo oposto a um gênio: ele é um idiota. Sente-se
a sua incapacidade para compreender uma realidade: ele se mo-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 215
······· .. ·······"···················································· ....... ,................ .
vimenta em circulo em tomo de cinco, seis conceitos, que tinha
escutado inicialmente e que ele compreendeu paulatinamente,
isto é, que ele compreendeu de maneira falsa - neles, ele tem sua
experiência, seu mundo, sua verdade - , o resto lhe é estranho. Ele
fala as palavras como qualquer um as usa - ele não as compre-
ende como qualquer um, ele só compreende cinco, seis conceitos
flutuantes. O fato de os instinios masculinos propriamente ditos
- não apenas os sexuajs, mas também os instintos relativos ao
combate, ao orgulho, ao heroísmo - nunca terem despertado nele;
o fato de ele ter ficado aquém e infantil na idade da puberdade:
tudo isso é constitutivo do tipo de certas neuroses epileptoides.
Em seus instintos mais profundos, Jesus é a-heroico: ele
nunca luta: quem vê nele algo assim como um herói, tal como
Renan, não faz outra coisa senão vulgarizar o tipo até as raias do
irreconhecível.
Sente-se, por outro lado, a :sua incapacidade para compreen-
der algo espiritual: a palavra cspirito toma-se cm sua boca um mal-
-entendido! O que mobilizou esse idiota sagrado não foi o mais ín-
fimo halo de ciência, gosto, cultivo intelectual, lógica: assinl como
a vida não o tocou minimamente. - Natureza? Leis da natureza?
- Ninguém confidenciou a ele que há uma natureza. Ele só conhece
efeitos morais: sinais da cultura mais baixa e mais absurda. É preci-
so reter este ponto: ele é um idiota em meio a um povo muito astu-
to ... A questão é que seus discípulos não o eram - Paulo não foi de
modo algum um idiota! - disso depende a história do cristianismo.

14 (39)
Crítica ao cristianismo.
Moral como Circe dos filósofos
A luta pelo "eu",

14 (40)
O efeito inconsciente da decadéncia sobre os ideais da ciência
Há um efeito profundo e perfeito da própria decadência so-
bre os ideais da ciência: toda a nossa sociologia é a demonstr.1ção
dessa sentença. Precisamos censllll'â-la pelo fato de ela só conhecer
216 FRIEDRICH NIETZSCHE

por experiência o produto da decadência da sociedade e tomar os


instintos próprios à decadência como norma do juízo sociológico.
A vida descendente na Europa atual fonnula neles seus
ideais de sociedade: a ponto de provocarem confusão, todos eles
se parecem demais com o ideal de amigas raças sobreviventes...
O instinto de rebanho, por conseguinte - um poder que se
tomou agora soberano - , é algo fundamentalmente diverso do
instinto de uma sociedade aristocrática: e o que está em jogo é o
valor das unidades, que a soma tem de significar...
Toda a nossa sociologia não conhece nenhum outro instinto
senão o instinto do rebanho, isto é, dos zeros somados... cm que todo
zero possui o ''mesmo direito", ern que é virtuoso ser um zero ...
A valoração com a qual julgamos hoje as fonnas diversas
da sociedade é exatamente a mesma que atribui à paz um valor
mais elevado do que à guerra: mas esse juízo é antibiológico, é
ele mesmo um fruto podre da de,cadência da vida ... Como biólo-
go, o senhor Herbert Spencer é um decadente - na maioria das
vezes, ele também o é como moralista (- ele vê na vitória do al-
truísmo algo desejável!!!). A vida é uma consequência da guerra;
a sociedade mesma, um meio para a guerra.

14(41)
Renan, que tem em comum com as mulheres o fato de só
se tomar perigoso quando ama; ele que nunca abraçou um an-
tigo !dolo do ideal sem pequenos intuitos paralelos assassinos,
sempre curioso em saber se aquilo que ele abraça já não estava
vacilando ...

14 (42)
- alemão =
(4) Religião na música
O quanto de satisfação insincera e mesmo incompreendida
de toda necessidade religiosa não se encontra ainda na música
wagneriana! O quanto de oração, virtude, unção, "virgindade",
redenção ainda fala ai concomitantemente!... O fato de a música
poder se abstrair da palavra, do conceito - ó, como ela retira van-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 217

tagem daí, essa sagrada maliciosa, que leva de volta, que seduz
para que se volte a tudo aquilo em que se acreditou um dia! ...
Nossa consciência intelectual não precisa se envergonhar - ela
permanece de fora - quando um instinto antigo qualquer bebe
com lábios trêmulos de cálices proibidos ... isso é inteligente, sau-
dável e, na medida em que revela um pudor ante a satisfação do
instinto religioso, até mesmo um bom sinal... Cristandade pérfi-
da: o tipo da música do "último Wagner".

14 (43)
Por meio de álcool e música, nós nos transportamos de volta
para os níveis de cultura e incultura que nossos ancestrais supera-
ram: nessa medida, nada é mais il1UStrativo, nada é mais "cientifico"
do que se embriagar... Alguns pratos também contêm revelações
sobre algo de que proviemos. Quanto mistério não se esconde, por
exemplo, na correlação da almôndega alemã com o "estado de âni-
mo infantil" dos alemães!... Quando se tem a almôndega no corpo,
o corpo logo se move: começa-se a ter pressentimentos!. .. Ó, o
quão distante se está logo do "entendimento dos sensatos"! -

14 (44)
Eu resisto a essa degradação da música com todos os meios,
e como um belo diabo - - -

14 (45)
O que o espírito alemão nã.o fez com o cristianismo! -E cm
relação ao fato de ter me mantido junto ao protestantismo: quanta
cerveja não há na cristandade protestante! Será que é possível
pensar em uma forma da fé cristã mais pachorrenta, mais pregui-
çosa, mais disposta a se espreguiçar do que um protestante me-
diano alemão?!? Denomino esse protestantismo um cristianismo
modesto! Uma homeopatia do cristianismo, é assim que o deno-
mino! - Lembremo-nos do fato de que também há hoje um pro-
testantismo imodesto, o protesta.ntismo dos capelães e dos espe-
culadores antissemitas: mas ninguém chegou ainda a afirmar que
um "espírito" qualquer "pairasse" sobre essas águas ... Trata-se
218 FRIEDRICH NIETZSCHE

meramente de uma forma mais indecente da cristandade, de


modo algum de uma ainda mais compreens!vel...

14 (46)
Na embriaguez dionisíaca temos a sexualidade e a volúpia:
elas não se apresentam no apol!neo. Precisa haver, ainda, uma di-
versidade de tempo nos dois estados... A extrema calma de certas
sensações de embriaguez (dito de maneira mais rigorosa: o ra-
lentamento do sentimento de tempo e de espaço) adora se refletir
na visão dos gestos e dos tipos anímicos mais tranquilos. O estilo
clássico apresenta essencialmente essa calma, essa simplificação,
esse encurtamento, essa concentração - o sentimento mais elevado
do poder é concentrado no tipt> clâssico. Reagir pesadamente:
uma grande consciência: nenhum sentimento de luta:
A embriaguez da natureza:

14 (47)
Contramovimento da arte.
Pessimismo na arte? -
O artista ama paulatinamente os meios em virtude deles mes-
mos, os meios nos quais se dá a conhecer o estado de embriaguez:
a extrema fineza e fausto das cores, a clareza da linha, a nuança do
tom: o distinto, onde mais, no normal, falta toda distinção
- : todas as coisas distintas, todas as nuanças, na medida
em que elas lembram as elevações extremas de força,
as quais geram a embriaguez, despertam retroativamente
esse sentimento da embriaguez.
- : o efeito da obra de arte é a excitação do estado artístico"
criador, da embriaguez. ..
-: o essencial n.a arte permanece sua consumação da exis-
tência, sua produção da perfeição e da profusão
Arte é essencialmente afirmação, benção, divinização da
existência...
-: O que significa uma arte pessimista?... Isso não é uma
contradictio? - Sim.
Schopenhauer se engana quando coloca certas obras de arte
a serviço do pessimismo. A tragédia não ensina a "resignação" ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 219

-Apresentar as coisas terríveis e questionáveis já é um ins-


tinto de poder e de maravilhamento no artista: ele não as teme...
Não hã nenhuma arte pessimisla... A arte afirma. Hiob afirma.
Mas e Zola? Mas e de Goncourt?
- são feias as coisas que eles mostram: mas o fato de eles
as mostrarem se dá por prazer com esse feio ...
- Não ajudai! Vós vos en.ganais quando afirmais algo di-
verso. O quão redentor é Dostoiévski!

14 (48)
Títulos sobre um manicômio moderno.
Necessidades de pensamento são necessidades morais.
Herbet Spencer.
A última pedra de toque para a verdade de uma sentença é
a impossibilidade de conceber sua negação.
Herbert Spencer.

14 (49)
Modernidade.
O embrutecimento da música.
O domínio do abstrato: "o que significa":
indiferença em relação ao pântano, para o qual os sentidos
não devem dizer de maneira algum sim...
A música deve significar inteiramente algo que não é música:
nesse caso, surgem a partir dela
o ritmo
a melodia
a cor
a estrutura
a falsa profundidade como calma dos pensamentos; a fúria,
o remorso, o espasmo, o êxtase - todas as coisas fáceis, brincadei-
ras, que sempre podem ser ainda misturadas até sua consumação

14 (50)
5. Os meios com os quais o ator ascende
6. O perigo do teatro como lugar de degradação de todas
as artes.
220 FRIEDRICH NIETZSCHE

7. O supérfluo de todas as inovações wagnerianas, mesmo


na ópera
8. Carmem: e o efeito depressivo de Wagner: objeção fisio-
lógica a Wagner
9. A grande ambiguidade da tendência trágica em Wagner:
meu realismus in aestheticis ...
1O. Reprodução do conceito "trágico"
11. O significado desse fenômeno psicológico-estético para
a história da "alma moderna".
12. : essencialmente não germânico - nisso reside sua dis-
tinção ...
13. : critica ao "romantismo".

14 (51)
Wagner como problema.
Uma palavra sobre o Esclarecimento
por
Friedrich Nietzsche

14 (52)
- - - sua astúcia estabeleceu a paz no tempo certo com a
essência germânica, a paz que a marcha imperial criou e que as
posições dos condutores gerais ambicionavam
aquele que tinha uma posição condescendente em relação
a toda sujeira, com o qual o espírito alemão, esse tão corrupto
espírito alemão, se manchou
aquele que, com o seu Parsival, animou todas as covardias
da alma modema.
Essa personagem que se tomou tão ambígua, em cujo tÚ·
mulo uma Sociedade Wagner - a de Munique - não deixou de
colocar uma coroa de flores com a inscrição:
Redenção para o redentor!...
Vê-se que o problema é grande; a incompreensão, desco-
munal.
Se Wagner pôde se tomar um redentor,
Quem é que nos redime dessa redenção?
Quem nos redime desse redentor?...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 221

14 (53)
Há instrumentos com os quais convencemos nossas vísce-
ras, outros têm seu sucesso na medula espinhal... As pessoas me
confessaram que o mais forte efeito da música de Wagner aconte-
ce depois de um tratamento na estação de águas de Cartsbad...

14 (54)
Mas Wagner não é, aqui, apenas um modelo ... E as pessoas
o compreenderam em todo o mundo... Faz-se a partir de Wagner
uma nova música; as pessoas fazem essa nova música na Rús-
sia, em Paris, na América do SU:I, as pessoas a fazem mesmo na
Alemanha... Eu mesmo saberia dizer como é que se precisa fazer
essa música. Será que vocês querem uma pequena lição?...

14 (55)
Entre músicos
Nós somos músicos iardios. Um passado descomunal nos
foi legado. Nossa memória cita constantemente. Nós podemos
aludir entre nós de uma maneira quase erudita: já nos compre-
endemos. Mesmo nossos ouvintes adoram que façamos alusões:
isso os envaidece, eles se sentem, com isso, instruidos.

14 (56)
Primeira sentença de toda ótica teatral: o que deve atuar
como verdadeiro não pode ser verdadeiro.
O ator não tem o sentimento que ele apresenta; ele estaria
perdido, se ele o tivesse.
Conhecem-se, espero, as célebres exp0sições de Talmas.

14 (57)
Convicção
Sobre a psicologia de Paulo.
O fato é a morte de Jesus. É isso que continua precisando
ser interpretado...
O fato de haver uma verdade e um erro na interpretação
não veio de maneira alguma à cabeça de tais pessoas: um dia,
222 FRIEDRICH NIETZSCHE

uma sublime possibilidade lhes subiu à cabeça, "essa morte po-


deria significar isso e isso".
E imediatamente ela se mostra assim! Uma hipótese se de-
monstra por meio do impulso sublime que ela dá ao seu autor...
"A demonstração da força": isto é, uma ideia é demonstra-
da por meio de seu efeito - ("por seus frutos", como a Bíblia diz
ingenuamente)
o que entusiasma precisa ser verdadeiro -
aquilo pelo que damos nosso sangue precisa ser verdadeiro -

•••
Aqui, o repentino sentimento de poder, que deSperta um pen-
samento em seu autor, é atribuído a esse pensamento como valor: -
e como não se sabe honrar um ptmSamento de outro modo que não
o designando como verdadeiro, então o primeiro predicado que ele
recebe em sua honra é ser verdadeiro ... Como é que ele poderia
atuar senão desse modo? Ele é imaginado por wn poder: se supu-
séssemos que ele não seria real, então ele não poderia produzir um
efeito... Ele é concebido como inspirado: o efeito que ele exerce
possui algo da ultraviolência de uma influência demoníaca.
Uma ideia, à qual u:m tal decadente não consegue resistir, na
qual ele decai completamente, é demonstrada como verdadeira! 11
Todos esses epiléticos e videntes de fac.es não possuíam
um milésimo daquela retidão da autocrítica com a qual um filó-
logo lê hoje um texto ou coloca ã prova um evento histórico eom
vistas à sua verdade...
Em comparação conosco, não passam de cretinos morais ...

14 (58)
Carlyle.
A origem da ciência: atenção. Ela não surge junto aos sa-
cerdotes e aos filósofos, seus adversários naturais. Ela surge jun-
to aos filhos de artesãos e comerciantes de todo tipo, junto aos
advogados etc.: junto a tais pessoas, para as quais a habilidade do
artesão e seu pressuposto foram transportados também para tais
questões e suas respostas.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18117-1889 (Vol. VII) 223

14 (59)
Convicção e mentira.
O "aprimoramento".
Como se faz com que a virtude chegue ao poder.
Compaixão.
"Altruísmoº.
Rejeição.
Dessensualização.

14 (60)
Uma crença que afirma tomar "venturoso", depois que tor-
na doente. Uma crença que se reporta a livros - uma crença que
requisita para si uma revelação -, uma crença que considera a
dúvida em si como "pecado", uma crença que se demonstra por
meio da morte de mârtires - - -
Outro traço distintivo do teólogo é a sua incapacidade para
afilologia. Compreendo, aqui, a palavra filologia em um sentido
bastante genérico: poder deduzir fatos, sem falsificâ-los por meio
de interpretações, sem - - -

14 (61)
Vontade de poder como arte
"Mrísica" - e o grande estilo
A grandeza de um artista não é medida pelos "belos senti-
mentos" que ele desperta: as pequenas senhoras podem acreditar
nisso. Ao contrârio, ela é medida pelo grau com o qual ele se
aproxima do grande estilo, com o qual ele é capaz do grande
estilo. Esse estilo tem em comum com a grande paixão o fato de
desprezar agradar; o fato de esquecer de convencer; de coman-
dar; de querer... Tomar-se senhor sobre o caos que se é; obrigar
seu caos a se tomar forma; tomar-se necessidade em forma: lógi-
co, simples, inequívoco, matemático; tomar-se lei - : essa é aqui
a grande ambição. Com ela, repele-se; nada estimula mais o amor
a tais homens violentos - um deserto se estabelece cm tomo de-
les, um silêncio, um temor como se estivéssemos diante de um
grande sacrilégio...
224 FRIEDRICH NIETZSCHE

Todas as artes conhecem tais ambiciosos do grande estilo:


por que é que eles não se fazem :presentes na música? Jamais um
músico constru.iu algo como aquele mestre de obras que criou o
Pallazzo Pitti?... Aqui se acha um. problema. Será que a música faz
parte talvez daquela cultura, na qual o reino de todo tipo de homens
violentos chegou já ao fim? Será que o conceito de grande estilo já
contradiria a alma da música - à "mulher" em nossa música?...
Toco aqui em urna questão,cardinal: qual o espaço a que per-
tence toda a nossa música? As era:s do gosto clássico não conhecem
nada que lhe seja comparável: a música floresceu quando o mundo
do Renascimento estendeu sua noite, quando a "liberdade" surgiu
dos hábitos e mesmo dos desejos de liberdade: será que faz parte
de seu caráter ser contrarrenascimento? E, expresso de outra fonna,
será que faz parte de seu caráter ser urna arte da decadência? Por
exemplo, como o estilo barroco é IUJl1ll arte da decadência? Será que
ela é a irmã do esti.lo barroco, uma vez que ela é em todo caso sua
contemporânea? Música, música moderna, já não é decadência? ...
A música é contrarrenascirnento na arte: ela é também de-
cadência como expressão social.
Já coloquei outrora o dedo nessa questão de saber se nossa
música não seria uma parcela de contrarrenascimento na arte, se
ela não seria a arte mais imediatamente aparentada com o estilo
barroco, se ela não teria crescido em contradição a todo gosto
clássico, de tal modo que nela toda ambição à classicidade seria
interdita por si mesma ...
A essa questão valorativa de primeira ordem a resposta não
poderia ser amblgua, caso tenha sido avaliado corretamente o
fato de que a música alcança como romantismo a sua maturidade
e plenitude supremas - uma vez mais como movimento de reação
à classicidade...
Mozart - uma alma tema e apaixonada, mas totalmente con-
dizente com o século XVW, mesmo em sua seriedade... Beetho-
ven, o primeiro grande romântico, no sentido do conceito francês
de romantismo, assim como Wagmer é o último grande romântico...
os dois adversários instintivos do gosto clássico, do estilo rigoroso
- para não falar aqui do "grande" estilo... os dois - - -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 225

14 (62}
Modernidade
a música romântica alemã, sua ausência de espírito, seu
ódio ao "Esclarecimento" e à "razão"
atrofia da melodia, assim como atrofia da "ideia", da dialé-
tica, da liberdade do movimento mais espiritual posslvel - quanta
luta contra Voltaire não há na música alemã! ...
quanta 1,rrosseria, quanta constipação, o que se desenvolve
e se transfonna em novos conceitos e mesmo em princlpios -
contra a tragédia mais elevada e a espiritualidade trocista,
contra o bufão
Vi os bebedores de cerveja e os médicos militares que
"compreenderam" Wagner...
A ambição de Wagner era obrigar mesmo os idiotas a com-
preender Wagner

14 (63)
O herói, tal como Wagner o concebe, c-0mo é moderno!
Como é audaz! De que maneira ,complexa e engenhosa ele não o
concebeu! Como é que Wagner conseguiu ir ao encontro das três
necessidades fundamentais da alma moderna com os seus heróis
- ela quer o brutal, o doentio e o inocente...
Essa monstruosidade luxuosa, com corpos de tempos ime-
moriais e nervos de depois de ama.nhã; esses loiros sagrados, cuja
sensibilidade pouqulssimo preexistente inspira nas mulheres tan-
ta curiosidade e ternura e permite tanto o encontro... Beuamar-
chais presenteou às belas mulheres querubim, Wagner, Parsival.
E, no que diz respeito aos seres histéricos e heroicos, que
Wagner concebeu, divinizou como mulheres, o tipo Senta, Elsa,
Isolda, Brunilda, Kundry: assim, elas são no teatro por demais
interessantes - mas quem gostaria de ficar com elas?...
o fato de esse tipo não ter sido acolhido mesmo na Alema-
nha como totalmente de mau gosto tem sua razão de ser (ainda
que não o seu direito) no fato de um poeta incomparavelmente
maior do que Wagner, o nobre Heinrich von Kleist, já ter interce-
dido aí mesmo em favor de seu gênio.
226 FRIEDRICH NIETZSCHE
............................................................ ,................................. .

14 (64)
Questão: acontece a despersonalização por meio de uma
verdade quando se mergulha em um pensamento?
... Herzen afirma isso: ele acha que é algo muito comum
que as pessoas esqueçam seu moí e deixem-no seguir -
Questão: será que isso também não seria mera aparência?
Será que aquilo que uma questão acha interessante não é o nosso
eu totalmente simples?...

14 (65)
decadência
O que se herda não é a doença, mas o caráter doentio: a im-
potência de resistir ao perigo dle perambulações nocivas etc.; a
força de resistência partida - ex:presso moralmente: a resignação
e a humildade diante do inimigo.
Perguntei-me se não se podiam comparar todos esses
valores supremos da filosofia, da moral e da religião até aqui
com os valores dos enfraquecidos, dos doentes mentais e dos
neurastênicos: eles representam, em uma forma mais tênue, o
mesmo mal ...
O valor de todos os estad.os mórbidos é que eles mostram
em uma lente de aumento certos estados que são normais, mas
que são dificeis de ver como no:nnais ...
Saúde e doença não são nada essencialmente diverso, tal
como acreditam os antigos médicos e ainda hoje alguns homens
práticos. Não se precisa construir a partir dai princípios distintos
ou entidades, que entram em contenda por conta do organismo
vivo e fazem dele o seu campo de batalha. Isso é coisa antiga e
falatório, que não serve para nada. De fato, hâ entre esses dois
tipos de existência apenas diferenças de grau: o exagero, ades-
proporção, a não harmonia dos fenômenos normais constituem o
estado doentio. Claude Bernard.
Assim como o mal pode muito bem ser considerado como
exagero, desarmonia, despropo~ção, o bem também pode ser con-
siderado como uma dieta de proteção contra o perigo do exagero,
da desarmonia e da desproporção.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 227

A fraqueza considerável, como sentimento dominante:


causa dos valores supremos.
N.B. Quer-se fraqueza: por quê? ... na maioria das vezes,
porque se é necessariamente fraco ...
O enfraquecimento como tarefa: enfraquecimento dos de-
sejos, dos sentimentos de prazer e desprazer, da vontade de po-
der, do sentimento de orgulho, do querer ter e do querer ter mais;
o enfraquecimento como humildade; o enfraquecimento como
crença; o enfraquecimento como repugnância e como vergonha
de tudo o que é natural, como negação da vida, como doença e
como fraqueza habitual...
O enfraquecimento como a realização de uma recusa à vin-
gança, à resistência, à hostilidade e à fúria.
O erro no tratamento: não se quer combater a fraqueza
por meio de um sistema fortifiam, 22' mas por meio de uma es-
pécie de justificação e de moralização: isto é, por meio de uma
interpretação ...
A confusão entre dois estados totalmente diversos: por
exemplo, a tranquilidade da força, que é essencialmente absten-
ção da reação, o tipo dos deuses, que não movimenta nada ...
E a lranquilidadc do esgotamento, a rigidez, até a anestesia.
: todos os procedimentos filosófico-ascéticos aspiram à se-
gunda tranquilidade, mas têm em vista, de fato, a primeira... Pois
eles atribuem ao estado alcançado os predicados, como se um
estado divino fosse alcançado.

14 (66)
Moral como decadência
Por que a fraque?.a não é combatida, mas apenas 'justificada"?
A diminuição do instinto curador junto aos enfraquecidos:
de tal modo que eles desejam como remédio aquilo que acele-
ra seu declínio. Por exemplo, a maioria dos vegetarianos teria
a necessidade de um alimento ratificante, a fim de dar uma vez

224 N.T.: Em francês no original: fortiflocante.


228 FRIEDRICH NIETZSCHE

mais energia às fibras adonnecidas: mas consideram sua tendên-


cia para o suave e brando como um aceno da natureza: - e se
enfraquecem ainda \m€p µópo" ... m

14 (67)
A mulher reage mais lentamente do que o homem; o chi-
nês, mais lentamente que o europeu.

14 (68)
Religião como decadência
A mais perigosa incompreensão.
Há um conceito que não admite aparentemente nenhuma con-
fusão, nenhuma ambiguidade: trata-se do conceito de esgotamento.
Esse esgotamento pode ser adquirido; ele pode ser herdado - em
todo caso, ele transforma o aspecto das coisas, o valor das coisas ...
Em oposição àquele que, pela profusão a qual apresenta e
sente, involuntariamente se éíilrngã às coisas, as vê mais plenas,
mais poderosas, mais ricas em futuro - que pode em todo caso
presentear - , o esgotado apequena e estropia tudo o que vê - ele
empobrece o valor: ele é nocivo ...
Quanto a isso não parece ser possível nenhum erro: apesar
disso, a história contém o horri'vel fato de os esgotados sempre
terem sido confundidos com os homens mais plenos - e os mais
plenos com os mais nocivos.
O que há de pobre na vida dos fracos empobrece ainda a
vida: o que há de rico na vida dos fortes a enriquece...
O primeiro é seu parasita; o segundo, um presenteador...
Como é que uma confusão é possível?
Quando o esgotado entrou em cena com os gestos da mais
elevada atividade e energia: quando a degradação condicionou
um excesso da descarga espiritual ou nervosa, então se o confun-
diu com o rico... Ele despertou temor...
O culto ao louco é sempre ainda o culto aos ricos em vida
do poderoso.

225 N.T.: Em grego no original: além d:a medida.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 229

O fanático, o possuído, o epilético religioso, todos os ex-


cêntricos foram experimentados como tipos maximamente ele-
vados do poder
: como divinos
esse tipo de força, que desperta temor, era considerado so-
brerudo como divino: a partir daqui, a autoridade tomou o seu pon-
to de partida, aqui se interpretou, se ouviu, se buscou sabedoria ...
A partir daqui se desenvolveu, quase por toda parte, uma
vontade de "divinização", isto é:, de degradação tipica do espiri-
to, do corpo e dos nervos: uma tentativa de encontrar o caminho
para esse tipo mais elevado de ser.
Tomar-se doente, tomar-se louco: provocar o aparecimen-
to dos sintomas da perturbação - isso significa tomar-se mais
forte, mais super-humano, mais temível, mais sábio:
- acreditava-se, com isso,, se tomar tão rico em poder que
se pudesse doar: por toda parte onde se louvou, buscou-se al-
guém que pudesse doar.
o fato de se tomar o louco como algo super-humano
o fato de se ter acreditado que poderes terríveis estavam
ativos nos doentes nervosos e nos epiléticos
indU2iu em erro aqui a experiência da embriaguez ...
a embriaguez amplia no mais elevado grau o sentimento
do poder
consequentemente, julgando de maneira ingênua, o poder -
no nlvel mais elevado do poder precisava se encontrar o
que havia de mais embriagante, o extático.
há dois pontos de partida da embriaguez: a descomunal
profusão da vida e um estado de alimentação doentia do cérebro
Nada se pagou mais caro do que a confusão no plano fi.
siológico -

14 (69)
As incompreensões fisiol6gicas
1. A doença malcompreenclida como forma superior da vida
2. A embriaguez
3. A impassibilidade
230 FRIEDRICH NIETZSCHE

14 (70)
O prazer entra em cena onde se dã o sentimento de poder
A felicidade n.a consciência de poder e de vitória que se
tomou dominante
O progresso: a intensificação do tipo, a capacidade do
grande querer: todo o resto é incompreensão, perigo, - - -

14 (71)
Vontade de poder como "lei da natureza".
Vontade de poder como vida.
Vontade de poder como arte.
Vontade de poder como moral.
Vontade de poder como ciência.
Vontade de poder como religião.

14 (72)
Vontade de poder
Morfologia
Vontade de poder como "natureza"
como vida
como sociedade
como vontade de verdade
como religião
como arte
como moral
como humanidade

O contramovimento
Vontade, de nada
Os superados. Os detritos, os degenerados

14 (73)
Co11sequéncias da decadência
O vicio, a viciosidade
A doença, o ca.ráter doentiio
O crime, a criminal idade
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 (Vol. VII) 231

O celibato, a esterilidade
O histerismo, a fraqueza da vontade, o alcoolismo
O pessimismo
O anarquismo

14 (74)
A degenerescência
Primeiro princípio: aquilo que se viu até aqui como causas
da degeneração são as suas consequências.
: o vício: como consequência
: a doença
: o crime
os caluniadores ceticismo
insidiosos ascetismo
incrédulos niilismo
destruidores o além-mundo
: a libertinagem (mesmo a; espiritual) - celibato.
: a fraqueza da vontade: o pessimismo; o anarquismo; - - -
Mas mesmo o que se considera como meio contra a dege-
neração não passa de paliativo contra certos efeitos da degenera-
ção: os "curados" são apenas um tipo dos degenerados.

14 (75)
Conceito "decadência"
O detrito, a decadência, o refugo não é nada que precisaria
ser condenado em si: ele é uma consequência necessária da vida,
do crescimento na vida. O fenômeno da decadência é t.ão neces-
sário quanto qualquer despontar e avançar da vida: não se tem o
direito de revogá-la. A razão quer inversamente que o direito da
decadência se torne o direito dela ...
É uma vergonha para todos os sistemáticos socialistas o
fato de eles acharem que poderi.a haver circunst.ãncias nas quais
combinações sociais como o vicio, a doença, o crime, a prosti-
tuição, a penúria não mais medrariam ... Mas isso significa con-
denar a vida ... Não cabe a uma sociedade a liberdade de perma-
necer jovem. E, mesmo de posse de sua melhor força, ela precisa
232 FRIEORICH NIETZSCHE

forjar imundície e detrito. Quanto mais enérgica e ousadamente


ela procede, tanto mais rica ela se toma em malfadados, em mal-
formados, tanto mais próxima e.Ja se encontra do declínio ... Não
hã como revogar a idade por meio de instituições. A doença, tam-
bém não. O vício, também não.

14 (76)
Outrora se dizia de toda moral: "vós deveis conhecê-las
por seus frutos"; eu digo de toda moral: ela é um fruto no qual
reconheço o solo, a partir do qual ela cresceu.

14 (77)
Nós hiperbóreos
Um prefácio.
A vontade de poder.
Primeira parte.
Psicologia da decadência.
Teoria da decadência.
Segunda parte.
Crítica ao espírito do tempo.
Terceira parte.
O grande meio-dia
Quarta parte.
Os fortes.
Os fracos.
A que lugar pertencemos?
A grande escolha.

14 (78)
A vontade de poder
Tentativa de uma transvaloração de todos os valores.
Primeira parte.
O que provém da força.
Segunda parte.
O que provém da fraque7.a.
Terceira parte.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 233

E de onde nós proviemos? -


Quarta parte.
A grande escolha.

14 (79)
Vontade de poder Filosofia
Quanta de poder. Critica ao mecanicismo
Afàstemos aqui os dois conceitos populares, "necessida-
de" e "lei": o primeiro estabelece no mundo uma falsa coerção;
o segundo, uma falsa liberdade. "As coisas" não se comportam
regularmente, não se comportam segundo uma regra: não hã coi-
sa alguma (- isso é uma ficção), elas também não se comportam
de maneira alguma sob uma coerção da necessidade. Não se obe-
dece aqui: pois o fato de algo ser tal como é, tão forte, tão fraco,
não é a consequência de uma obediência ou de uma regra ou de
uma coerção...
O grau de resistência e o grau de superpoder - é disso que
se trata em todo acontecimento: se nós, para o nosso uso domésti-
co do cálculo, sabemos expressar isso em fórmulas "legais", tan-
to melhor para nós! Mas não estabelecemos nenhuma moralidade
no mundo com o fato de fingirmos que elas são obedientes -
Não há nenhuma lei: cada poder retira a cada instante a
sua derradeira consequência. A calculabilidade baseia-se preci-
samente no fato de que não há nenhum mezzo termine.
Um quantum de poder é designado pelo efeito que exerce
e ao qual ele resiste. Falta a adiaforia: que seria em si pensável.
É essencial uma vontade de violentação, assim como se proteger
contra as violentações. Não autoconservação; cada átomo atua
em direção ao ser como um todo - o ser todo é alijado pelo pen-
samento, quando se elimina essa irradiação das vontades de po-
der. Por isso, eu o denomino um quantum "vontade de poder":
com isso, expressa-se o caráter que não pode ser eliminado da
ordem mecânica, sem eliminar a si mesmo.
Uma tradução desse mundo de efeitos em um mundo visí-
vel - um mundo para os olhos - é o conceito de "movimento".
Aqui está sempre subentendido que algo é movido - sempre se
234 FRIEDRICH NIETZSCHE

pensa nesse contexto, seja na ficção de um conglomerado de áto-


mos, seja mesmo em sua abstração, no átomo dinâmico, em algo
que atua. Isto é, não escapamos ainda do hábito para o qual nos
desencaminham os sentidos e a linguagem. Isoladamente, sujei-
to, objeto, um agente em relação ao ato, o fazer e aquilo que ele
faz: não esqueçamos que isso designa uma mera semiótica e nada
real. A mecânica como uma doutrina do movimento é já uma tra-
dução na linguagem sensorial do homem.
Nós necessitamos de unidades para podermos calcular:
por isso, não se deve supor que haja tais unidades. Nós retira-
mos o conceito de unidade de nosso conceito de "eu" - nosso
mais antigo artigo de fé. Se nós não nos considerássemos uni-
dades, nós nunca teríamos cunhado o conceito "coisa". Agora,
relativamente mais tarde, estamos amplamente convencidos de
que nossa concepção do conceito de eu não é em nada respon-
sável por uma unidade real. Para conservarmos o mecanismo
do mundo teoricamente funcionando, portanto, temos sempre
de inserir a cláusula que determina até que ponto conduzimos
o mundo com duas ficções: com o conceito do movimento
(retirado de nossa linguagem sensorial) e com o conceito do
átomo = unidade (proveniente de nossa "experiência" psíqui-
ca): ele tem por pressuposto um preconceito sensorial e um
preconceito psicológico.
O mundo mecanicista é imaginado tal como o olho e o tato
apenas imaginam um mundo (como "movido").
de tal modo que ele pode ser calculado - que unidades sur-
gem de maneira fictícia
de tal modo que unidades ,causais surgem de maneira fictí-
cia, "coisas" (átomos), cujo efeito permanece constante (- trans-
posição do conceito falso de sujeito para o conceito de átomo)
Conceito de número
Conceito de coisa (conceito de sujeito)
Conceito de atividade (eis.ão entre ser causa e efeitos)
Movimento (olho e tato)
: que todo efeito é movimento
: que, onde hã movimento., algo é movido
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 235

Portanto, fenomênico é: a imiscuição do conceito de nú-


mero, do conceito de sujeito, do conceito de movimento: temos
nossos olhos, nossa psicologia sempre ainda aí.
Se eliminarmos esses ingredientes: então não resta nenhuma
coisa, mas quanta dinâmicos, em uma relação de tensão com todos
os outros quanta dinâmicos: cuja essência consiste em sua relação
com todos os outros quanta, em sua "atuação" sobre eles-a vontade
de poder, não um ser, não um devir, mas um páthos, é o fato mais
elementar, a partir do qual apenas se obtém um devir, um atuar...
a mecânica ainda formula além disso os fenômenos parale-
los scmioticamente em meios expressivos sensoriais e psicológi-
cos, ela não toca a força causal...

14 (80)
Se a essência mais íntima do ser é vontade de poder, se
prazer é sempre crescimento do poder, desprazer sempre o senti-
mento de nã.o resistir e de não poder se tomar senhor: não pode-
mos estabelecer, então, prazer e desprazer como fatos cardinais?
A vontade é possível sem essas duas oscilações do sim e do não?
Mas quem sente prazer?... Mas quem quer poder?... Perguntas
absurdas: se a essência mesma é vontade poderosa e, consequen-
temente, sentimento de prazer e desprazer. Apesar disso: care-
ce-se dos opostos, das resistências, ou seja, relativamente, das
unidades abrangentes ... Localizadas - - -
Se A exerce um efeito sobre 8, então A só conquista a sua
localização na cisão em relação a 8.

14 (81)
Crítica do conceito de "causa"
Se computarmos psicologicamente: o conceito de "causa"
é o nosso sentimento de poder do assim chamado querer - nosso
conceito de "efeito", a superstição de que o sentimento de poder
é o poder mesmo, que mobiliza ...
um estado, que acompanha um acontecimento e já é um
efeito do acontecimento, é projetado como "razão suficiente" do
acontecimento
236 FRIEDRICH NIETZSCHE

a relação de tensão de nosso sentimento de poder: o prazer como


sentimento do poder: da resistência superada - trata-se de ilusões?
se retraduzirmos o conceito de "causa" na única esfera que
nos é conhecida da qual o retiramos: então não nos é imaginável
nenhuma transformação na qual não haja uma vontade de poder.
Não saberíamos deduzir uma transformação, se não ocorresse
uma sobreposição de um poder sobre outro poder.
A mecânica mostra-nos apenas consequências e, além dis-
so, em imagem (movimento é um discurso imagético)
A gravitação mesma não possui nenhuma causa mecânica,
uma vez que ela é primeiramente o fundamento para consequên-
cias mecânicas
A vontade de acumulação de força como especifica para o
fenômeno da vida, para a alimentação, a geração, a herança,
para sociedade, Estado, hábito, autoridade
não deveríamos poder supor essa vontade como causa mo-
triz mesmo na quimica?
e na ordem cósmica?
não meramente constância da energia: mas economia ma-
ximal do gasto: de tal modo que o querer-vir-a-ser-mais-forte
a partir de cada centro de força é a única realidade - não auto-
preservação, mas apropriação, tomar-se-senhor, vir-a-ser-mais,
querer-vir-a-ser-mais-forte.
O fato de a ciência ser possivel deve demonstrar para nós
um principio de causalidade?
"a partir das mesmas causas, mesmos efeitos":
"uma lei perm.anente das coisas"
"uma ordem invariável"
porque algo é calculâvel, ele já é por isso necessário?
se algo acontece de tal modo e não de outro, não há aí ne-
nhum "principio", nenhuma "lei", nenhuma "ordem"
Quanta de força, cuja essência consiste em exercer poder
sobre todos os outros quanta de força
Na crença na causa e no efeito esquece-se sempre o princi-
pal: o próprio acontecimento.
estabeleceu-se um agente, hipos'lasiou-se uma vez mais o feito
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 237

14 (82)
Podemos supor uma aspiração ao poder, sem uma sensa-
ção de prazer e desprazer, isto é, sem um sentimento de elevação
e de decréscimo de poder?
o mecanismo é apenas uma linguagem de sinais para o mundo
interno de fatos de quanta de vontade combativos e superadores?
todos os pressupostos do mecanicismo, matéria-prima, áto-
mo, pressão e impulso, assim como peso não são "fatos em si",
mas interpretações com o auxilio de ficções psíquicas.
a vida como a forma que nos é mais conhecida do ser é
especificamente uma vontade de acumulação de força
: todos os processos da vida têm aqui seu apoio
: nada quer se conservar, tudo deve ser somado e acumulado
A vida, como um caso particular: hipótese - a partir daí
passar para o caráter conjunto da existência.
: aspira a um sentimento maximal de poder
: é essencial uma aspiração a um mais de poder
: aspiração não é outra coisa senão aspiração ao poder
: o que hâ de mais baixo e mais interior continua sendo essa
vontade: a mecânica é uma mera semiótica dessas consequências.

14 (83)
Problema do filósofo e· do homem de ciência.
Tipo injcial
Força na tranquilidade. Na indiferença relativa e na clifi-
culdade para reagir.
Os grandes afetos, todos., e vindo auxiliar maravilhosa-
mente uns aos outros...
Influência da idade
Hábitos depressivos (Ficar sentado cm casa à moda de Kant)
Superelaboração
Alimentação insuficiente do cérebro
Ler
Mais essencial: saber se wn sintoma de decadência já não
estâ dado no direcionamento para tal universalidade: objetividade
como desagregação da vontade (poder permanecer tão distante ...
238 fRIE DRICH NIETZSCHE

isso pressupõe uma gl'!lllde adiaforia contra os impulsos fortes:


uma espécie de isolamento
Posição de exceção contra os impulsos nonnais
Resistência
Tipo: a libertação da terra natal, em círculos cada vez mais
amplos, o exotismo crescente, o emudecimento dos antigos im-
perativos - - até mesmo essa questão constante "para onde?"
("felicidade'i é um sinal de uma separação das formas de orga-
nização, irrupção para fora de.
Problema: saber se o homem de ciência é um sintoma
maior de decadência do que o filósofo -
ele não é destacado como um todo, apenas uma parte dele
é devotada absolutamente ao conhecimento, adestrada para um
ângulo e uma ótica -
- ele necessita aqui de todas as virtudes de uma raça forte,
assim como de toda saúde
- grande rigor, masculinidade, astúcia
- poder-se-ia falar de uma divisão do trabalho e de um
adestramento, que é de grande utilidade para o todo e que
só é possível em meio a um b'l'BU bastante elevado de cul-
tura. Ele é mais um sintoma de uma elevada pluralidade
da cultura do que de seu cansaço.
O erudito da decadência é um erudito roim. Enquanto o
filósofo da decadência até aqui era considerado ao menos como
o tlpico filósofo.

14 (84)
Comparado com o artista, a aparição do homem de ciência
é de fato um sinal de certa repressão e de certo rebaixamento do
nível da vida.
Mas também um fortalecimento, um rigor, uma/orça vital.
: em que medida a falsidade, a indiferença do artista em
relação ao verdadeiro e ao útil pode ser um sinal de juventude,
de "crianclce"...
: seu tipo habitual, sua irracionalidade, sua ignorância em
relação a si, sua indiferença em relação a todos os valores eter-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 239

nos, seriedade no "jogo"... sua falta de virtude; palhaço e Deus


em próxima vizinhança; o santo e o ca11aille...
: a imitação como instinto, comandando
Os artistas afirmadores, os artistas do declínio.
Artistas do despontar - artistas do ocaso: será que eles
11ão perte11cem a todas as fases... sim.

14 (85)
Pirro, um budista grego
Platão, talvez tenha ido à escola com os judeus

14 (86)
Para o conceito de "decadência" -
1) o ceticismo é uma consequência da decadência: assim
como a libertinagem do espírito.
2) a corrupção dos hábitos é uma consequência da deca-
dência: fraqueza da vontade, necessidade de estimulan•
tes mais fortes ...
3) os métodos de tratamento, os métodos psicológicos, mo•
rais, não alteram o curso da decadência, eles não a inter-
rompem, eles são fisiologicamente 11u/os
: intelecção da gra11de 11u/idade dessas "reações" presumidas
: trata-se de formas de narcotização contra certos fenôme-
nos paralelos fatais, elas não produzem o elemento mórbido
: elas são com frequência tentativas heroicas de anular o
homem da decadência, de impor um mínimo à sua 11ocividade.
4) o niilismo não é nenhuma causa, mas apenas a lógica da
decadência
5) o "bom" e o "ruim" são apenas dois tipos da decadência: eles
se mantêm unidos cm todos os fenômenos fundamentais.
6) a questão social é uma consequência da decadência
7) as doenças, sobretudo as doenças nervosas e as doenças
cerebrais, são indicios de que falta a força defe11siva das
naturezas fortes; a írritabilidade fala justamente a favor
disso, de tal modo que prazer e desprazer se tomam os
problemas de primeiro plano.
240 FRIEDRICH NIETZSCHE

14 (87)
o filósofo antigo a partir d.e Sócrates tem o estigma da de-
cadência: moralismo e felicidade.
Ápice de Pirro. Alcançou o nível do budismo
Epicurismo no cristianismo
Caminhos para a felicidade: sinais de que todas as forças
principais da vida são esgotadas

14 (88)
Os tempos e os particulares acumulativos
os dissipadores: os geniais, os vitoriosos, os descobrido-
res, os aventureiros
depois dos aventureiros se segue necessariamente o de-
cadente

14 (89)
Contramovimento: religião
Os dois tipos:
Dioniso e o crucificado.
É preciso insistir: o homem religioso típico - será que ele
é uma forma da decadência?
Os grandes inovadores são em seu todo e particularmente
doentios e epilépticos
: mas não deixamos de fora nesse caso um tipo do homem
religioso, o pagão? A cultura pagã não é uma forma de agrade-
cimento e de afirmação da vida? Seu mais elevado representante
não precisou ser uma apologia e uma divinização da vida?
Tipo de um espírito plenamente constituído e encantadora-
mente transbordante...
Tipo de alguém que acolhe em si as contradições e as ques-
tionabilidades da existência e tipo redentor?
- Nesse contexto, apresento o Dioniso dos gregos:
a afirmação religiosa da vida, do todo, não uma vida rene-
gada e seccionada
típico: o fato de o ato sexual despertar profundidade, mis-
tério, veneração
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 241

Dioniso contra o "crucificado": eis aqui a oposição. Não


se trata de uma diferença com vistas ao martírio - o martírio tem
apenas outro sentido. A vida mesma, sua eterna fertilidade e re-
tomo, condiciona a dor, a destruição, a vontade de aniquilação ...
no outro caso, o soliimcnto, o "crucificado como o inocente",
como objeção contra essa vida, como fórmula de sua condenação.
Decifra-se: o problema é o problema do sentido do sofri-
mento: ora um sentido cristão, ora um sentido trágico ... No pri-
meiro caso, esse sentido deve ser o caminho para um ser venturo-
so; no outro, o ser é considerado como suficientemente venturoso,
para justificar mesmo urna quantidade descomunal de sofrimento
O homem trágico afirma, ainda, o sofrimento mais amar-
go: ele é forte, pleno, divinizador o suficiente em relação a isso
O cristão nega, ainda, o destino mais feliz sobre a terra: ele
é fraco, pobre, suficientemente deserdado, para sofrer ainda da
vida cm toda e qualquer forma..•
"o Deus na cruz" é uma maldição para a vida, um aceno
para nos livrarmos dele
Dioniso cortado em pedaços é uma promessa de vida: a vida
sempre retomará eternamente e voltará para casa depois da destruição

14 (90)
Afalsidade fisiológica nos quadros de Rafael.
Uma mulher com secreções normais não tem nenhuma ne-
cessidade de redenção. O fato de todas as naturezas bem-cons-
tituídas e primorosas se preocuparem eternamente com aquele
anêmico santo de Nazaré está cm contradição com a história na-
tural. Jesus pertencia a outra espécie: uma tal como a conhece
Dostoiévski - monstruosidades comoventes, degradadas e detur-
padas com um idiotismo e fanatismo, com amor...

14 (91)
A religião como decadência
Buda contra o "crucificado"
No interior do movimento niilista sempre é possível conti-
nuar mantendo separados agudamente o movimento niilista cris-
tão e o budista
242 FRIEDRICH NIETZSCHE

: o movimento budista expressa uma bela noite, uma doçu-


ra e uma suavidade consumadas - trata-se da gratidão em relação
a tudo o que se encontra por detrás, a tudo o que é concomitante-
mente computado, falta a amargura, a desilusão, o rancor
: por fim, o amor espiritual elevado, o refinamento da con-
tradição fisiológica estão por detrás dele, ele se tranquiliza até
mesmo com isso: mas ele ainda tem de tudo isso a sua glória
espiritual e o seu ardor crepuscular (- proveniência das castas
mais elevadas. -
: o movimento cristão é um movimento de degeneres-
cência composto a partir de elementos de detrito e de refugo
de todo tipo: ele não expressa o declínio de uma raça, ele é
desde o inicio uma formação agregada a partir de construtos
doentios que se reúnem e se buscam... ele não é, por isso,
nacional, nem é condicionado por raças: ele se dirige aos de-
serdados de toda parte
ele tem o rancor como base contra todos os bem-consti-
tuídos e todos os seres dominantes, ele precisa de um símbolo
que represente a maldição aos bem-constituidos e aos domi-
nantes ...
ele se encontra cm oposição a todo movimento espiritu-
al, a toda filosofia: ele toma o partido dos idiotas e amaldiçoa
o espirito. Rancor aos bem-dota.dos, eruditos, independentes em
termos espirituais: ele decifra neles o elemento bem-constituído,
o elemento dominante

14 (92)
O problema de Sócrates.
As duas oposições:
a postura trágica medida a partir da lei
a postura socrática lei da vida
: em que medida a postura socrática é um fenômeno da
decadência
: cm que medida, porém, se mostram uma saúde e uma
força intensas no hábito como um todo, na dialética e na habili-
dade, na rigidez do homem cientifico (- a saúde do plebeu, sua
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 243

maldade, seu esprit frondeur,v.6 sua perspicácia, sua canaille au


fond"' mantida presa por meio da inteligência: "feio"
Embrutecimento:
o autoescârnio
a aridez dialética
a astúcia como tirano contra "os tiranos" (contra o iostinto)
Tudo é exagerado, excêntrico, caricatural em Sócrates, um
bufão, com os instintos de Voltaire no corpo;
- ele descobre um novo tipo de Agon -
- ele é o primeiro mestre de armas nos circulos nobres de
Atenas
- ele não defende outra co,isa senão a inteligência extrema:
ele a denomina virtude (- ele a desvenda como salva-
ção: não se achava livre para ele ser inteligente, ele o
era de rigueur118
- ter-se sob o domínio da violência, a fim de entrar em
combate com razões, não com afetos - a artimanha de
Espinoza - o desvendar dos equívocos dos afetos ... des-
cobrir como se aprisionam todos aqueles em que se pro-
duz um afeto, <descobrit.> que o afeto procede de manei-
ra alógica... Exercício no autoescámio, a fim de ferir o
sentimento de rancune119 na raiz
Procurei compreender a partir de que estados parciais e
idiossincráticos é preciso deduzir o problema socrátic-0: sua equi-
paração entre razão = virtude = felicidade. Ele encantou a todos
com esse absurdo de doutrina de identidade: a filosofia antiga
não se livrou disso jamais...
Problema de Sócrates. Astúcia, claridade, dureza e logicida-
de como armas contra a selvageria dos impulsos. Esses impulsos
precisam ser perigosos e trazer consigo a ameaça do ocaso: senão,
não faria sentido al&rum forjar a intelígência até essa tirania. Fazer

226 N,T,: Em francês no original: espfrl to rebelde.


227 N.T.: Em francês no original: sua canalha no fundo.
228 N.T.: Em francês no original: por rlJl!Or.
229 N.T.: Em francês no original: ranco,.
244 FRIEDRICH NIETZSCHE

da astúcia um tirano: para tanto, porém, os impulsos precisam ser


tiranos. Esse é o problema. - Esse problema foi outrora bastante
condizente com o tempo. Razão tomou-se= virtude = felicidade.
Falta absoluta de interesses objetivos: ódio contra a ciên-
cia: idiossincrasia de sentir a si mesmo como problema.
Alucinações acústicas em Sócrates: elemento mórbido
Lá onde o espírito é rico e independente, é ai que repugna
mais ocupar-se com a moral. Como é que acontece de Sócrates
ser um monômano morar?
Em situações de penúria. toda filosofia "prática" ganha
imediatamente o primeiro plano. Moral e religião como interes-
ses principais são sinais de um estado de emergência.
Solução: os filósofos gregos encontram-se no mesmo fato
fundamental de seus estados interiores que Sócrates: cinco pas-
sos além do excesso, da anarquia, da desordem, de todo homem
da decadência. Eles o experimentam como médico:
Lógica como vontade de ])Oder, de autodominação, de "fo.
licidade"
Crítica. A decadência revela-se nessa preocupação da "fe.
licidade" (ou seja, "da salvação da alma", isto é, experimenta-se
seu estado como perigo)
Seu fanatismo do interesse pela "felicidade" mostra a pato-
logia do subsolo: tratava-se de um interesse vital. Ser racional ou
perecer era a alternativa diante da qual todos eles se achavam
O moralismo da filosofia grega mostra que eles se sentiam
em perigo ...

14 (93)
Vontade de poder como conhecimento
Crítica ao conceito "mundo verdadeiro e mundo aparente"
Desses, o primeiro é uma mera ficção, forjada a partir de
coisas puramente imaginadas
a "aparência" pertence ela mesma à realidade: ela é uma
forma de seu ser, isto é,
em um mundo no qual não há nenhum ser, precisa ser cria-
do primeiro por meio da aparência certo mundo calculâvel de
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 245

casos idênticos: um ritmo, no qual são possiveis observação e


comparação etc.
"Aparência" é um mundo retificado e simplificado, no
qual trabalharam nossos instintos práticos: ele é para nós perfei-
tamente correto: a saber, nós vivemos, nós podemos viver nele:
prova de sua verdade para nós ...
: o mundo, abstraindo-se de nossa condição de viver nele,
o mundo que não reduzimos a nosso ser, nossa lógica e nossos
preconceitos psicológicos
não existe como mundo "em si"
ele é essencialmente mundo relacional: ele possui, sob cer-
tas circunstâncias, a partir de cada ponto, a sua face diversa: seu
ser é essencialmente diverso em cada ponto: ele pressiona cm cada
ponto, resiste-se a ele em cada ponto - e essas somas são em
cada caso completamente incongn,entes.
A medida de poder determfoa que essência tem a outia me-
dida de poder: sob que forma, com que violênéia, coação, essa
essência atua ou resiste
Nosso caso particular é bastante interessante: nós constru-
ímos uma concepção, para podermos viver em um mundo, a fim
de percebermos de maneira claramente suficiente que ainda o
suportamos ...

14 (94)
Filosofia como decadência
Para a crítica do filósofo
Trata-se de um autoengano do filósofo e moralista dizer
que, para sair da decadência, eles a combateriam.
Isso se encontra fora de sua vontade: e, por menos que eles
o reconheçam, mais tarde se descobriu o quanto eles estavam
entre os mais vigorosos fomentadores da decadência.
Os filósofos da Grécia, por exemplo: Platão, o homem do
bem - mas ele destacou os instintos da Pólis, do combate, dos
mistérios, da crença na tradição e nos ancestrais...
- ele foi o sedutor dos nobres: ele mesmo seduzido pelo
plebeu Sócrates...
246 FRIEDRICH NIETZSCHE

- ele negou todos os pressupostos da verdadeira "Grécia no-


bre", introduziu a dialética na práxis cotidiana, conspirou com os
tiranos, impulsionou a política do futuro e deu o exemplo da disso-
lução ma.is perfeita dos instintos em relação ao que era antigo.
Ele é profundo, apaixonado em tudo o que é anti-helênico...
Segundo a ordem das coisas, eles representam as formas
típicas da decadência, esses grandes filósofos:
a idiossincrasia moral-religiosa
o niilismo a) dia/fora
o cinismo
o enrijecimento
o hedonismo
o reacionismo
a questão acerca da "felicidade, acerca da "virtude", acerca
da "salvação da alma" é a expressão da contraditoriedadefisio-
lógica nessas naturezas do declínio: falta nos instintos o fiel da
balança, o para onde?
: por que ninguém ousa negar a liberdade da vontade? Eles
estão todos preocupados com sua "salvação da alma" - o que
lhes interessa a verdade?

14 (95)
Dois estados que se seguem um ao outro: o de uma causa,
o do outro efeito.
: é falso.
O primeiro estado não tem nada a efetuar
o segundo não efetuou nada.
: trata-se de uma luta de dois elementos desiguais em ter-
mos de poder: é alcançado um :rearranjo das forças, sempre se-
gundo a medida de poder de cada um.
O segundo estado é algo fundamentalmente diverso do pri-
meiro (não seu "efeito''): o essencial é o fato de os fatores que se
encontram cm luta virem à tona com outros quanta de poder.

14 (96)
(+++) Eles desprezam o corpo: eles o deixaram fora do
cômputo: mais ainda, eles o trataram como um inimigo. Seu des-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 247

vario foi acreditar que se poderia levar por ai uma "bela alma"
em um mostro de cadáver... Para tomar isso crivei mesmo aos
outros, eles tiveram a necessidade de estipular de outro modo
o conceito de "alma bela", transvalorar o valor natural, até que
finalmente wn ser exangue, doentio, fanático e idiota fosse expe-
rimentado como uma perfeição, como "inglês", como transfigu-
ração, como um homem superio,r.

14 (97)
''Vontade de poder"
Em épocas democráticas, a vontade de poder é a tal ponto
odiada que toda a sua psicologia parece dirigida para o seu ape-
quenamento e para a sua condenação...
O tipo do grande cobiçoso: esse deve ser Napoleão! E Cé-
sar! E Alexandre! ... Como se estes não fossem precisamente os
maiores desprqadores ela honrai
E Helvécio revela para nós que se aspira ao poder para ter
os prazeres que se acham disponíveis ao poderoso...: ele com-
preende essa aspiração ao poder como vontade de gozo, como
hedonismo ...
Stuart Mill: - - -

14 (98)
Vontade de poder de maneira principiai
Crítica ao conceito "causa"
Preciso do ponto de partida "vontade de poder" como ori-
gem do movimento. Consequentemente, o movimento não preci-
sa ser condicionado de fora - não precisa ser car,sado ...
Preciso de pontos de partida e centros do movimento, a
partir dos quais a vontade se agarra em volta de si ...
Não temos absolutamente nenhuma experiência sobre uma
causa
: contabilizado psicologicamente, todo o conceito provém
da convicção subjetiva de que nós somos causas, a saber, que o
braço se movimenta ... Mas isso é um erro
248 FRIEDRICH NIETZSCHE

: nós, os agentes, nos distinguimos do fazer e lançamos


mão por toda parte desse esquema - nós buscamos um agente em
todo acontecimento...
: o que fizemos? Nós compreendemos mal um sentimento
de força, uma tensão, uma resistência, um sentimento muscular,
que já é o começo da ação, como causa
: ou compreendemos a vontade de fazer isso e aquilo, por-
que segue a essa vontade a ação, como causa - causa, isto é - - -
"Causa" não ocorre de maneira alguma: cm relação a alguns
casos, nos quais ela parecia nos ser dada e nos quais nós a projetamos
para a compreensão do acontecimento, a autoilusão é comprovada.
Nossa "compreensão de um acontecimento" consistia no
fato de termos inventado um sujeito que se tomou responsâvel
pelo fato de algo ter acontecido e pelo modo como ele aconteceu.
Temos nosso sentimento da vontade, nosso "sentimento de
liberdade", nosso sentimento de responsabilidade e nossa inten-
ção de um fazer resumidos no conceito "causa":
: causas efficiens efina/is são uma e a mesma na concepção
fundamental
Achávamos que um efeito estaria explicado, quando um es-
tado fosse indicado, no qual esse efeito jâ se mostrasse inerente.
De fato, inventamos todas as causas segundo o esquema do
efeito: este último nos é conhecido... Inversamente, não estamos
em condições de dizer de antemão de uma coisa qualquer o que
ela "efetua".
A coisa, o sujeito, a vontade, a intenção - tudo é inerente à
concepção "causa".
Nós buscamos as coisas, a fim de explicar a razão pela qual
algo se alterou. Mesmo o átomo é uma tal "coisa" e um tal "sujei-
to originârio" acrescentados por meio do pensamento.
Finalmente, compreendemos que coisas, e, por conseguin-
te, também âtomos, não efetuam nada: porque eles não existem de
maneira alguma ... o fato de o conceito causalidade ser comple-
tamente inútil - a part.ir de uma sequência necessâria de estados
não se segue a sua relação causall (- isso significaria fazer saltar a
sua capacidade atuante de l para 2, para 3, para 4, para 5)
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 249

A interpretação da causalidade é uma ilusão ...


o movimento é uma palavra, o movimento não é nenhuma
causa -
uma "coisa" é a soma de seus efeitos, sinteticamente liga-
dos por meio de um conceito, uma imagem...
Não fiá nem causas nem efeitos.
Em termos linguísticos, não sabemos como nos livrar dis-
so. Mas isso não importa nada. Se penso o músculo separado de
seus "efeitos", então o nego ...
Em suma: um acontecimento não é nem efetuado nem efe-
tuante
Causa é uma capacidade de produzir efeito, inventada
como acréscimo ao acontecimento.
Não há o que Kant tem em vista, não há nenhum sentido
de causalidade.
As pessoas se espantam, elas ficam inquietas, elas querem
algo conhecido, no qual elas possam se manter...
Logo que no novo algo antigo nos é indicado, ficamos
tranquilos.
O suposto instinto de causalidade é apenas o temor diante
do inabitual e a tentativa de descobrir nele algo conhecido
uma busca não por causas, mas por algo conhecido...
O homem fica imediatamente tranquilo, quando ele - - -
em relação a algo novo - - - ele não se empenha por compreen-
der em que medida o fósforo causa fogo.
De fato, a ciência esvaziou o conceito de causalidade de
seu conteúdo e o manteve, transformando-o cm uma fórmula
alegórica, na qual se tornou no fundo indiferente de que lado
se tinha a causa e de que lado, o efeito. Afirma-se que em dois
complexos de estados (constelações de força) os quanta de força
permaneceriam iguais.
A ca/cu/abilidade de um acontecimento não reside no fato
de se ter seguido uma regra
ou de se ter obedecido a uma necessidade
ou de ter sido projetada por nós uma lei causal em todo
acontecimento:
ela reside no retorno de casos idênticos
250 FRIEORICH NI ETZSCHE

14 (99)
Filosofia como decadência
O cansaço sábio. Pirro. O budista Comparação com Epicuro.
Pirro. Viver entre os humildes, humildemente. Nenhum or-
gulho. Viver da maneira comum; honrar e acreditar naquilo cm
que todos acreditam. Proteger-se contra a ciência e o espirito,
também contra tudo o que pavoneia ... Simples: indescritivelmen-
te paciente, despreocupado, suave.
àná~€ta, µata oo. vóa npa&cr,;;w
Um budista para a Grécia, crescido entre o tumulto das
escolas; tendo chegado tarde; esfalfado; o protesto dos cansados
contra o afã dos dialéticos; a descrença do homem cansado na
importância de todas as coisas. Ele viu Alexandre, ele viu os pe-
nitentes indianos. Tudo o que é humilde, tudo o que é pobre, tudo
o que é idiota mesmo age sobre tais seres epigonais e refinados
de maneira sedutora. Tudo isso narcoti.za: tudo isso dá vontade de
se espreguiçar: Pascal. Eles experimentam, por outro lado, em
meio ao rebuliço e confundidos com qualquer um, um pouco de
calor: eles precisam de calor, esses homens cansados...
Superar a contradição; não um combate; nenhuma vontade
de se distinguir: negar os instintos gregos. - Pirro viveu junto
com sua irmã, que era parteira. -
Travestir a sabedoria, de tal modo que ela não se distinga
mais; dar a ela um manto de pobreza e de mendicância; realizar
as funções mais baixas: ir ao mercado e vender leite de porca...
Doçura; claridade; indi fcrença; nenhuma virtude que pre-
cise de gestos. Equipar-se mesmo na virtude: derradeira autossu-
peração, derradeira indiferença.
Pirro, assim como Epicuro, duas formas da decadência
grega: aparentados no ódio à dialética e a todas as virtudes tea-
trais - as duas juntas, a dialética e as virtudes teatrais - eram jus-
tamente o que significava outrora a filosofia - ; intencionalmente,
aquilo que eles amavam era baixo; escolhendo, para tanto, os

230 N.T.: Em grego no original: apático, mas ainda manso.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 251

nomes habituais, mesmo desprezados; representando um estado,


no qual não se está nem doente, nem saudãvel, nem vivo, nem
morto... Epicuro, mais ingênuo, mais idílico, mais brrato; Pirro,
mais viajado, mais vivido, mais niilista ...
Sua vida foi um protesto contra a grande doutrina da ide11-
tidade (sorte = virtude = conhecimento).
A vida correta não é passivei de ser encontrada por meio da
ciência: sabedoria não toma "sábio"...
A vida correta não quer felicidade, ela se abstrai da felici-
dade ...

14 (100)
Os filósofos propriamente ditos dos gregos são os filósofos
pré-socráticos: algo se transforma com Sócrates
todos eles são personagens nobres, que se colocam à parte
do povo e dos costumes, viajados, sérios até a beira do caráter
sombrio, com olbos lentos, não albcios aos negócios estatais é
à diplomacia. Eles anteciparam para os sábios todas as grandes
concepções das coisas: eles apresentam essas coisas mesmas,
elas se colocam em um sistema.
Não há nada que ofereça wn conceito mais elevado do es-
pírito grego do que essa repentina fertilidade de tipos, do que
essa completude involuntária na exposição das grandes possibili-
dades do ideal filosófico.
No porvir, só consigo ver uma única figura original: um
cpígono, mas necessariamente o último ... o niilista Pirro, ... ele
possui o instinto contra tudo aquilo que entrementes se acha em
cima, contra os socráticos, contra Platão
Passando por Protágoras, Pirro recorre a Demócrito...
O otimismo d.e artista de Heráclito - - -

14 (101)
a decadência em geral
Se prazer e desprazer fazem referência ao sentimento de
poder, então a vida precisaria apresentar um acréscimo de p0der,
de tal modo que a diferença do "mais" ganhasse a consciência ...
252 FRIEDRICH NIETZSCHE

Fixar um nível de poder: o prazer só poderia vir a ser medido a


partir da diminuição do nível, a partir de estados de desprazer -
não a partir de estados de prazer:. .. A vontade de mais encontra-se
na essência do prazer: o fato de o poder crescer, o fato de a dife-
rença ganhar a consciência...
A partir de certo ponto, ganha a consciência na decadência
a diferença inversa, a diminu.ição: a memória dos instantes fortes
de outrora reprime os sentimentos de prazer atuais - a compara-
ção enfraquece agora o prazer...

14 (102)
Para a higiene dos "fraco•s " - tudo o que é feito na fraque-
za falha. Moral: não se deve fazer nada. O terrível é apenas o fato
de precisamente a força para suspender o fazer, para não reagir,
é a que mais intensamente adoece sob a influência da fraqueza:
o fato de nunca se reagir de maneira tão rápida e cega quanto
quando não se deveria reagir de maneira alguma ...
A força de uma natureza se mostra na espera e no adiamento
da reação: é própria dessa natureza certa &liloopop(a, assim como
é própria da fraqueza a falta de liiberdade dos movimentos contrá-
rios, o caráter repentino, a ausência de inibições à "ação"...
a vontade é fraca: e a receita para se proteger de coisas
estúpidas seria ter uma vontade forte e não fazer nada ...
Contradictio ...
Uma espécie de autodestruição, o instinto de conservação
é comprometido... Ofraco faz mal a si mesmo ... esse 6 o tipo da
decadência ...
De fato, encontramos uma reflexão descomunal sobre prá-
ticas para provocar a impassibílidade. O instinto, portanto, está
na pista certa ao considerar que não fazer nada é mais útil do que
fazer alguma coisa...
Todas as práticas das ordens, dos filósofos soliuírios, do
faquir são inspiradas pelo critério de medida correto de que certo
tipo de homem se nutre ainda ao máximo, quando se impede
tanto quanto possível de agir -
Meios de facilitação: a at,,soluta obediência
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 253

a atividade maquinal
a separação de homens e coisas, que fomentaria uma reso-
lução e uma ação imed.iatas

14 (103)
L.
Vejo com espanto que a ciência se resigna hoje a ser de-
pendente do mundo aparente: um mundo verdadeiro - como quer
que ele possa ser, nós não temos nenhum órgão do conhecimento
para ele.
Jâ se deveria perguntar aqui: com que órgão do conheci-
mento apenas se estabeleceria também essa oposição?...
Com o fato de que um mundo, que é acessível aos nossos
órgãos, seja compreendido também como independe desses ór-
gãos, com o fato de que um mundo seja <compreendido> con-
dicionadarnente como subjetivo, não estâ expresso o fato de que
um mundo objetivo em geral é possível. Quem nos impede de
pensar que a subjetividade é real, essencial?
o "em si" é até mesmo 'Ullla concepção contrassensual:
uma "constituição em si" é um disparate: nunca temos o conceito
"ser", "coisa" senão como conceito relacional...
O terrível é- o fato de que, com a antiga oposição entre "apa-
rente" e "verdadeiro", também se propagou o juizo de valor corre-
lativo: menor cm termos valorativos e absolutamente "valioso"
o mundo aparente não é considerado por nós como um mun-
do "valioso"; a aparência deve ser urna instância contra a verdade
suprema. Valioso em si só pode ser um mundo "verdadeiro"...
Em primeiro lugar: afirma-se que ele existe
em segundo: tem-se uma representação valorativa dele to-
talmente determinada
Preconceito dos preconceitos! Em primeiro lugar, seria em
si possível que a constituição verdadeira das coisas fosse de tal
modo nociva para os pressupostos da vida, estivesse a tal ponto
contraposta a esses pressupostos, que justamente a aparência fos-
se necessâria, para se poder viver... Esse é efetivamente o caso
em tantas situações: por exemplo, no casamento
254 fRIEDRICH NIETZSCHE

Nosso mundo empírico seria condicionado pelos instintos


da autoconservação mesmo em seus limites cognitivos: nós to-
mamos por verdadeiro, por bom, por valioso, aquilo que favorece
a conservação da espécie...
a) não possuímos nenhum.a categoria segundo a qual seria
possivel cindir um mundo verdadeiro e um mundo apa-
rente. Poderia haver mesmo apenas um mundo aparente,
mas não somente o nosso mundo aparente ...
b) supondo a existência do mundo verdadeiro, ele poderia
muito bem continuar sendo sempre o mundo de menor
valor para nós: precisamente o quantum de ilusão pode-
ria possuir um nível mais elevado para nós em seu valor
para a conservação. Ou será que a aparência poderia
fundamentar em si um j uízo de condenação?
c) o fato de existir uma correlação entre os graus dos valo-
res e os graus da realidade, de tal modo que os valores
supremos também teriam a realidade suprema: é um pos-
tulado metafisico que parte do pressuposto de que co-
nhecemos a ordem hierárquica dos valores: a saber, que
essa ordem hierárquica é uma ordem moral... É somen-
te a partir desse pressuposto que a verdade é necessária
para a definição de tudo o que é extremamente valoroso
a "aparência" seria urna objeção a um valor em geral

2.
É de uma importância cardinal o fato de se eliminar o mim-
do verdadeiro. Ele é o grande veiculo de dúvida e de diminuição
valorativa do mundo que nós somos: ele foi até aqui o nosso mais
perigoso atentado à vida
Guerra a todos os pressu·postos, com vistas aos quais se
imaginou um mundo verdadeiro. Entre esses pressupostos se en-
contra o pressuposto de que os valores morais são os valores
supremos
A avaliação moral como suprema seria refutada, se ela pudes-
se ser demonstrada como a consequência de uma avaliação imoral
: como um caso especial da imoralidade real
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 255

: ela mesma se reduz, com isso, a uma aparência


e, como aparência, ela não teria mais por si mesma ne-
nhum direito a condenar a aparência

3,,
"A vontade de verdade" precisaria, então, ser investigada
psicologicamente: ela não é ncnlluma violência moral, mas uma
forma da vontade de poder. Seria preciso demonstrar isso por
meio do fato de que ela se serve de todos os meios imorais: antes
de tudo a metafisica -
: a metodologia da investigação só é alcançada, quando
todos os preconceitos morais são superados.., ela representa uma
vitória sobre a moral...
N.B. Nós estamos hoje colocados diante da prova da afü-
mação de que os valores morais são os valores supremos,

14 (104)
Os valores morais como valores aparentes, comparados
com os valores fisiológicos

14 (105)
Nosso conhecimento tomou-se científico, uma vez ele
pôde aplicar número e medida, ..
Seria preciso fazer a tentativa de saber se uma ordem cienti-
fica dos valores não poderia ser construída simplesmente com vis-
tas a uma escala numérica e a uma escala de medidas da força ...
tod.os os outros "valores" são preconceitos, ingenuida-
des, incompreensões...
eles são sempre redutíveis àquela escala numérica e
àquela escala de medida da força
o em frente nessa escala significa cada crescimento no valor.
o para trás nessa escala significa a diminuição do valor
Têm-se, aqui, a aparência e o preconceito contra si.
Uma moral, um modo de vida demonstrado, testado por
meio da longa experiência e de longas provas, chega por último
como lei à consciência, como dominante...
256 FRIEORICH NIETZSCHE

e, com isso, todo o grupo de valores e estados aparentados


entra nesse modo de vida: ele se toma venerável, inatacável, sa-
grado, verdadeiro
faz parte de seu desenvolvimento o fato de sua origem ser
esquecida ... trata-se de um sinal de que ele se assenhoreou ...

•••
Exatamente a mesma coisa poderia ter acontecido com
as categorias da razão: elas poderiam, depois de muito tatear e
muito se valer do que se encontrava à sua volta, ter se compro-
vado por meio de sua relativa u·tilidade ... Chegou um ponto, no
qual elas foram sintetizadas, no qual elas ganharam a consciência
como um todo - e no qual elas passaram a comandar, no qual
elas passaram a atuar como comandantes...
A partir desse momento, elas foram consideradas como a
priori ... como se achando para além da experiência e como ir-
recusáveis ...
E, contudo, elas talvez não expressem outra coisa senão
determinada conformidade a fins de raças e gêneros - sua "ver-
dade" é meramente sua utilidade -
Da origem da razão -
A.
Os valores supremos foram até aqui os valores morais.
B.
Critica desses valores.
e.

14 (106)
Prescrição para o jovem teólogo:
1) Que ele se abstenha de mulheres e de todas as substân-
cias fermentadas; que ele não use nem bota nem sombri-
nha; que ele se abstenha. de todo e qualquer estímulo aos
sentidos (canto, dança e música)
2) Se o candidato tiver involuntariamente uma pulação du-
rante o sono, então ele deve mergulhar três vezes ao nascer
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 257

do sol no brejo sagrado, dizendo as palavras: "que aquilo


que saiu de mim contra a minha vontade retome a mim!"
3) Se o seu mestre o interromper, então ele não deve res-
ponder-lhe nem em pé, nem sentado, nem comendo, nem
andando, nem de longe, nem com um olhar de esguelha:
4) Ele deve vir antes até ele e, empertigado, respeitoso,
considera-lo e responder-lhe.
Se ele estiver na carruagem e notar a presença de seu mes-
tre, deve saltar imediatamente e prestar-lhe suas honras.
O aluno não deve ajudar a mulher de seu mestre no banho,
nem a se perfumar, nem massageá-la, nem arranjar o seu coque,
nem ungi-la.
Ele também não pode se prostrar diante da jovem mulher
de seu mestre e respeitosamente tocar seus pés, supondo natural-
mente que ele já tenha, por conta de sua idade, um saber acerca
do bem e do mal.
Reside na natureza da mulher o fato de agradar aos homens
e de tentar seduzi-los. Os sábios, porém, nunca se deixam levar
até o ponto de ceder à sua força de atração.
Não se deve perdurar em lugares ermos sozinho com sua
mãe, sua irmã, sua filha e outras familiares: os sentidos estimula-
dos pela solidão são tão poderosos que eles por vezes se apode-
ram até mesmo dos mais sábios.
Esse foi o caso do sãbio Vasta, que, para fugir da maldade
das pessoas de Gotha, se recolheu em uma caverna com suas
duas filhas: lã onde ele enb>ravidou as duas.

14 (107)
Teoria e práxis
Crítica do valor da moral
Distinção perigosa entre "teórico" e "prático", por exem-
plo, em Kant, mas também nos Antigos
- eles agem como se a pura espiritualidade se apresentasse para
eles antes do problema do conhecimento e da metafisica
- eles agem como se, um.a vez que mesmo a resposta da
teoria é alijada, fosse preciso julgar a prâxis segundo o
seu próprio critério de medida.
258 fRIEDRICH NIETZSCHE

Contra o primeiro caso dirijo minha psicologia dos filóso-


fos: seu cálculo e sua "espiritualidade" de todas as mais alienadas
permanece sempre apenas a derradeira e mais esmaecida impres-
são de um fato fisiológico; falta absolutamente a liberdade da
vontade ai, tudo é instinto, tudo é dirigido desde o princípio para
detenninadas vias...
- Contra o segundo ponto, pergunto-me se conhecemos ou-
tro método para agir bem além de sempre pensar bem: pensar bem
é um agir, e agir bem pressupõe pensamento. Temos uma capaci-
dade de julgar de outra forma o valor de um modo de vida para
além da medição do valor de uma teoria por meio de indução?...
Os ingênuos acreditam que aqt.ú estaríamos melhor, que aqui sa-
beríamos melhor o que é "bom" - os filósofos os repetem. Con-
cluímos que aquí está presente uma crença, nada além disso ..
"É preciso agir; consequememente, carece-se de um pru-
mo" - dizem mesmo os céticos antigos.
a urgência de uma decisão como argumento para conside-
rar qualquer coisa como verdadeira!...
Não é preciso agir: - diziam seus irmãos mais consequen-
tes, os budistas, ideando um prumo para saber como seria possí-
vel se livrar da ação ...
Enquadrar-se, viver como vive o "homem comum", manter
de maneira boa e justa o que ele retifica: isso significa submeter-se
ao instinto de rebanho.
É preciso levar a tal ponto sua coragem e seu rigor, que se
possa experimentar tal submissão como uma vergonha
Não viver com duas medidas!. .. Não cindir teoria e práxis! -

14 (108)
Vontade de poder como moral
O predomínio dos valores morais.
Consequências desse predomínio, a degeneração da psico-
logia etc.
A fatalidade por toda parte, .a fatalidade que se acha presa a ela
O que significa esse predomínio? Para onde ele aponta?
- certa urgência maior de ôetcnninado sim e não nesse campo
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 259

- aplicaram-se todos os tipos de imperativo para deixar


os valores morais aparecerem como fixos: eles foram os que há
mais tempo se impuseram por meio de um comando - eles pare-
cem instintivos como um comando interior...
- expressam-se condições .de conservação da sociedade no
fato de os valores morais serem experimentados como indiscutíveis
- a práxis: ou seja, a utilidade de se colocar mutuamente de
acordo quanto aos valores supremos, alcançou aqui uma espécie
de sanção
- vemos todos os meios empregados, por intermédio dos
quais a reflexão e a critica nesse âmbito são paralisadas: - que
atitude assume mesmo Kant ao não falar sobre aqueles meios
recusados como imorais de "investigar" aqui -
Como se levou a moral a assumir o domínio

14 (109)
Ciência e filosofia
Todos esses valores são empíricos e condicionados. Mas
aquele que acredita neles, que os venera, não quer reconhecer
justamente esse caráter...
os filósofos acreditam todos juntos nesses valores, e uma
forma de sua veneração foi o empenho por fazer deles uma ver-
dade a priori
caráter falsificador da veneração ...
a veneração é a prova elevada da honradez intelectual: mas
não há cm toda a história da filosofia nenhuma honradez intelectual
mas o "amor ao bem"...
: a absoluta/alta de método para colocar à prova a medida
dos valores
em segundo lugar: a aversão a colocar à prova esses valo-
res e considerá-los efetivamente condicionados
Em meio aos valores morais, todos os instintos anticientí-
ficos são levados conjuntamente em conta, a fim de excluir aqui
a ciência...
Como explicar o escândalo incrível que é representado
pela moral na história da ciência...
260 FRIEDRICH NIETZSCHE

14(110)
Fórmula da superstição do "progresso" própria a um fisió-
logo célebre das atividades cerebrais
"L 'animal nefaitjamais de progres comme espece; l'homme
seulfait de progres comme espece."m

14(111)
Filosofia como decadência
A grande razão cm toda educação para a moral sempre foi
o fato de se ter buscado alcançar a segurança de um instinto: de
tal modo que nem a boa intenção nem os bons meios como tais
ganharam primeiramente a consciência. Assim como o soldado
se exercita, o homem também deveria aprender a agir. De fato,
essa inconsciência faz parte de todo tipo de perfeição: mesmo o
matemático manipula suas combinações inconscientemente...
O que significa, então, a reação de Sócrates, que recomen-
dava a dialética como caminho para a virtude e que ria quando
a moral não conseguia se justificar logicamente?... Mesmo esse
último ponto, contudo, faz parte de sua constituição... sem essa
justificação, a moral não vale nadai. .. Despertar a vergonha era
um atributo necessário do perfeito! ...
Quando se antepôs a demonstrabilidade como pressu-
posto da capacidade pessoal na virtude, esse passo significou
a dissolução dos instintos gregos. Trata-se mesmo de tipos da
dissolução, todos esses grandes "virtuosos" e inventores de pa-
lavras de ordem.
Na prática, isso significa que os julzos morais foram ar-
rancados de sua condicionalidade, condicionalidade essa da qual
eles surgiram e na qual apenas eles têm seu sentido, que eles
foram arrancados de seu solo e de seu fundamento grego e greco-
político, sendo desnaturalizados sob a aparência de sublimação.
Os grandes conceitos de "bom" e de "justo" são destacados dos
pressupostos aos quais eles pertencem: e, como "ideias" que se

231 N.T.: Em francês no original: O animal nunca progride como espécie; só o


homem progride como espéole.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 261

tomaram livres, transfonnam-se em objetos da dialética. Busca-


-se atrás deles uma verdade, se os considera como entidades ou
como sinais de entidades: inventa-se um mundo no qual eles es-
tão em casa, no qual eles provêm...
Em suma: o disparate jâ chega ao seu âpice cm Platão... E
agora se tem a necessidade de inventar adicionalmente o homem
abstrato-perfeito
bom, justo, sâbio, dialético - em resumo, o espantalho do
filósofo antigo,
uma planta, retirada de todo e qualquer solo; uma humani-
dade sem todos os instintos reguladores detenninados; uma vir-
tude que se "demonstra" com razões.
o indivíduo cm si completamente absurdo! a não natureza
do mais elevado nível hierârquico...
Em síntese, a desnaturalização dos valores morais teve por
consequência a criação de um tipo degenerado do homem - "o
bom" ' 110 feliz"' "o sábio"
.

Sócrates é um momento da mais profanda perversidade na


história dos homens

14 (112)
Nós duvidariamos de um homem se o ouvissemos dizer
que ele precisava de razões para permanecer decente: certo é
que evitamos seu convívio. A palavrinha "pois" compromete em
certos casos; a pessoa se autorrefuta de mais a mais até mesmo
por meio de um único "pois". Ora, mas se ouvirmos agora, além
disso, que um tal aspir.111te à virtude teria a necessidade de razões
ruins para pennanecer respeitâvel, então esse fato não nos ofere-
cerá nenhuma razão para que elevemos o nosso respeito perante
ele. Mas ele prossegue, ele vem até nós, ele nos diz na cara: "O
senhor perturba a minha moralidade com a sua descrença, meu
caro descrente; enquanto o senhor não acreditar em minhas pés-
simas razões, ou seja, em Deus, em um além punitivo, cm uma
liberdade da vontade, o senhor impedirá minha virtude ... Moral:
é preciso eliminar os descrentes, eles impedem a moralização
das massas."
262 fRIEDRICH NIETZSCHE

14(113)
Moral como decadência
Hoje, quando uma pequena ironia se encontra na boca de
todo "o homem deve ser de tal e tal modo", quando insistimos
completamente no fato de, apesar de tudo, só se vir a ser aqui-
lo que se é (apesar de tudo: quer dizer, apesar de educação, aula,
meio, acasos e acidentes), aprendemos de uma maneira curiosa a
inverter nas coisas da moral a relação entre causa e efeito - nada
talvez nos distinga mais fundamentalmente dos antigos crentes da
moral. Não dizemos mais, por exemplo, que "o vicio é a causa de
que um homem também pereça fisiologicamente"; tampouco dize-
mos que "um homem prospera por meio da virtude", que "a virtu-
de traz uma vida longa e felicidade". Nossa opinião é muito mais a
de que vicio e virtude não são causas, mas apenas consequências.
As pessoas tomam-se homens decentes porque são homens decen-
tes; ou seja, porque nasceram como capitalistas de bons instintos e
de relações prósperas... Quando :se chega pobre ao mundo, vindo
de pais que em tudo só dissiparam e nada reuniram, então se é
"inaprimorável", isto é, então se, está pronto para a penitenciária
ou para o hospício ... Não sabemos mais pensar hoje a degeneres-
cência moral separada da degenerescência fisiológica: a primeira é
apenas um mero complexo de sintomas da segunda; <se> é neces-
sariamente ruim, assim como se é necessariamente doente ... Ruim:
a palavra expressa aqui certas incapacidades, que estão ligadas fi.
siologicameote ao tipo da degenerescência: por exemplo, a fraque-
za da vontade, a insegurança e mesmo a pluralidade da "pessoa", a
impotência de estabelecer a reação a um estimulo qualquer e de se
"dominar", a falta de liberdade diante de toda espécie de sugestão
de uma vontade alheia. Vicio não é nenhuma causa; vicio é uma
consequência ... vicio é uma demarcação conceituai bastante arbi-
trária, para sintetizar certas consequências da degradação fisiológi-
ca. Uma sentença genérica, tal como a ensinada pelo cristianismo,
a sentença "o homem é ruim", seria justificada se fosse justificado
tomar o tipo do degenerado como o tipo normal. Mas isso talvez
seja um exagero. Com certeza, a sentença tem uma razão de ser lá
onde precisamente o cristianismo cresce e se acha em cima: pois
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 263

com isso se comprova a presença de um solo mórbido, um campo


para a degenerescência.

14 (11 4)
Crescimento ou esgotamento
Critica dos valores cristãos.
Crítica dafilcsojia antiga.
Para a história do niilismo europeu.
O cristian.ismo niilista
O trabalho prévio para tanto: a filosofia antiga

14(115)
Ciência e filosofia
Até que ponto a degradação dos psicólogos atravessa a
idiossincrasia moral:
Ninguém teve a coragem de definir o tlpico do prazer, todo
tipo de prazer ("felicidade") co:mo sentimento do poder: pois o
prazer no poder era considerado como imoral
Ninguém teve a coragem ,de conceber a virtude como uma
consequência da imoralidade (de uma vontade de poder) a ser-
viço da espécie (ou da raça ou da pólis) (pois a vontade de poder
era considerada uma imoralidade, pois se teria reconhecido, com
isso, aquilo que a verdade - - - o fato de a virtude ser apenas
<uma> forma da imoralidade}
Em todo o desenvolvimento da moral, não ocorre nenhu-
ma verdade: todos os elementos conceituais, com os quais se
trabalha, são ficções, todos os elementos psicológicos nos quais
as pessoas se atêm são falsificações; todas as formas da lógica,
que se arrastam consigo para o interior desse reino da mentira,
são sofismas. O que distingue a própria moral dos filósofos: a
completa ausência de todo asseamento, de todo autocultivo do
intelecto: eles consideram "belos sentimentos" argumentos: seus
"seios intumescidos" lhes parecem o fole da divindade ... A filo-
sofia moral é a parte escabrosa na história do espirito.
O primeiro grande exemplo: sob o nome da moral, como
patronado da moral, é imposto um disparate inaudito, de fato
uma decadência em todos os aspectos.
264 FRIEDRICH NIETZSCHE

14 (116)
Filosofia como decadência
Não se pode insistir de maneira suficientemente rigorosa
no fato de os grandes filósofos gregos representarem a decadên-
cia de toda e qualquer habilidade grega, assim como no fato de
eles tomarem contagioso ... Essa virtude que se tomou comple-
tamente abstrata foi a grande sedução para tomar a si mesmo
abstrato: ou seja, para se destacar...
O instante é bastante estranho: os sofistas tocam tangen-
cialmente na primeira crítica da moral, na primeira intelecção
da moral...
- eles colocam a maioria (a condicionalidade local) dos
juízos de valor morais uns ao lado dos outros
- eles dão a compreender que toda moral poderia ser justi-
ficada dialeticamente - que não faz nenhuma diferença:
ou seja, eles desvendam como é que toda fundamentação
de uma moral precisá ser necessariamente sofistica.
- uma sentença que foi comprovada, além disso, no maior
estilo de todos os sofisltas e que atravessou os filósofos
antigos de Platão a (até Kant).
- eles expõem a primeira verdade de que "uma moral em
si", um "bem em si" não existe, de que é um engodo falar
de "verdade" nesse campo
Onde estava, então, a probidade intelectual outrora?
A cultura grega dos sofistas tinha crescido de todos os ins-
tintos gregos: ela faz parte da cultura do tempo de Périclcs, de
maneira tão necessária quanto Platão não pertence a esse tempo:
ela teve seus precursores em Heráclito, em Demócrito, nos tipos
científicos da filosofia antiga; ela tem sua expressão na cultura
elevada de um Tucidides, por exemplo.
- e ela passou, por fim, a ter razão: todo o progresso do conhe-
cimento epistemológico e moralista restiJuiu os sofistas...
nosso modo de pensar, hoje, é heraclltico, democritiano e
protagórico em um grau elevado... bastaria dizer que ele seria
protag6rico, porque Protágoras acolheu e reuniu em si as duas
partes, Heráclito e Demócrito.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 265
······· .. ·······"···················································· ....... ,................ .
Platão: wn grande Cagliostro - pensemos como é que Epicu-
ro o condenou; como é que Timon, o amigo de Pirro, o condenou -
Será que o caráter probo de Platão talvez esteja fora de dú-
vida? ... Mas sabemos ao menos que ele quis ver ensinado como
verdade absoluta aquilo que não era nem mesmo considerado por
ele condicionalmente como verdade: a saber, a existência parti-
cular e a imortalidade individua] das "almas"

14 (117)
O contramovimento: a arte
O sentimento de embriaguez, correspondendo de fato a um
mais de força:
da maneira mais intensa possível na época de acasalamen-
to dos sexos:
novos órgãos, novas aptidões, cores, formas...
o "embelezamento" é uma consequência da força elevada
embelezamento como consequência necessária da eleva-
ção de força
embelezamento como expressão de uma vontade vitoriosa, de
uma coordenação intensificada, de wna harmonização de todos os
desejos fortes, de wn fiel da balança infalivelmente perpendicular
a simplificação lógica e geométrica é uma consequência da
elevação de força : inversamente, o perceber de tal simplificação
eleva uma vez mais o sentimento de força...
ápice do desenvolvimento: o grande estilo
a feiura significa decadência de um tipo, contradição e fal-
ta de coordenação dos desejos internos
significa um declínio de uma força organizadora, dito fi.
siologicamente um decllnio da "vontade"
o estado de prazer, que se denomina embriaguez, é exata-
mente um sentimento elevado de poder...
as sensações de espaço e de tempo são transformadas: dis-
tâncias descomunais são abrangidas e se tomam, por assim dizer,
pela primeira vez perceptíveis
a extensão do olhar por sobre grandes quantidades e am-
plitudes
266 fRIEDRICH NIETZSCHE

o refinamento do órgão para a percepção do que hâ de mais


intimo e fugidio
a divinização, a força da compreensão com vistas ao mais
silencioso auxilio, como vistas a toda e qualquer sugestão, a sen-
sibilidade "inteligente"...
a/orça como sentimento de domínio nos músculos, como fle-
xibilidade e prazer no movimento, como dança, leveza e agilidade
a forç.a como prazer na demonstração da força, como par-
cela de bravura, aventura, destemor, como um ser indiferente...
Todos esses momentos elevados da vida se estimulam re-
ciproc.amente; o mundo de imagens e representações de um de-
les é suficiente, como sugestão, para os outros... Desse modo, os
estados se acham, por fim, fund.idos uns nos outros, estados que
talvez tivessem razões para permanecer alheios. Por exemplo
o sentimento de embriaguez religiosa e a excitação sexual
(dois sentimentos profundos, pouco a pouco coordenados de ma-
neira espantosa. O que agrada a todas as mulheres castas, velhas
e jovens? Resposta: um santo c-om pernas bonitas, ainda jovem,
ainda idiota... )
a crueldade na tragédia e a compaixão (- cm todo caso
normalmente coordenadas...
Primavera, dança, música, toda competição dos sexos - e
ainda aquele elemento fáustico, "infinitude no peito"...
os artistas, quando servem para alguma coisa, são dotados
de uma disposição forte (mesmo corporalmente), são excedentes,
animais de força, sensuais; sem certo superaquecimento do sis-
tema sexual, não há como pensar nenhum Rafael... Fazer música
ainda é um modo de fazer filhos; castidade é meramente a econo-
mia de um artista: - e, em todo ,caso, a fertilidade também cessa
nos artistas com a interrupção da capacidade de procriação...
os artistas não devem ver nada tal como é, mas de maneira
mais simples, mas de maneira mais forte: para tanto, é preciso se
fazer presente neles corporalmente uma espécie de eterna juven-
tude e primavera, uma espécie de embriaguez habitual.
Beyle e Flaubert, dois homens sem hesitação quanto a tais
questões, recomendaram de fato castidade aos artistas no intc-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 267

resse de suas obras: também poderia nomear Renan, que dá o


mesmo conselho, Renan é padre...

14(118)
as epidemias , as alucinações,
, as danças e os sinais gestuais
, a canção (resíduo da dança

funções normais: 'o sonho (um estado embriagado o introduz)


exercitando-se
: as imagens óticas
: imagens auditivas
: imagens do tato

14 (119)
Contramovimento
A arte
Toda arte atua como sugestão sobre os músculos e sentidos
que estão originariamente junto aos homens artísticos ingênuos:
ela fala sempre apenas para artistas - ela fala para esse tipo de
fina excitabilidade do corpo. O conceito de "leigo" é um conceito
equivocado. O surdo não é nenhuma espécie de boa escuta.
Toda arte atua to11icamente, amplia a força, atiça o prazer
(isto é, o sentimento da força), estimula todas as lembranças mais
finas da embriaguez - há uma memória própria, que desce até tais
estados: um mundo distante e fugidio de sensações retoma aí...
O feio, isto é, a contradiç.ão em relação à arte, seu não -
toda vez, quando o declínio, o empobrecimento de vida, a impo-
tência, a dissolução, a degenerescência são estimulados apenas
de longe, o homem estético reage com o seu 11ão.
O feio atua de maneira depressiva, ele é a expressão de
uma depressão. Ele toma força, ele empobrece, ele oprime...
O feio sugere algo feio; é possível colocar à prova em seus
estados de saúde o quão diversamente o encontrar-se cm uma
situação ruim também eleva a capacidade da fantasia do feio. A
escolha toma-se diferente, de coisas, interesses, questões: há um
268 fRIEDRICH NIETZSCHE

estado maximamente próximo do feio também no âmbito lógi-


co - peso, embrutecimento... Falta aí mecanicamente o fiel da
balança: o feio coxeia, o feio tropeça: - oposição a uma leveza
divina dos dançarinos...
O estado estético possui uma super-riqueza de meios de
comu11icaçào, ao mesmo tempo com uma extrema receptividade
para estímulos e sinais. Ele é o ápice da comunicabi.lidade e da
transmissibilidade entre seres vivos - ele é a fonte das línguas.
as línguas têm aqui o forno de seu surgimento: as linguas
tonais, assim como as línguas de sinais e as línguas visuais. O
fenômeno mais pleno é sempre o início: nossa capacidade como
homens culturais é subtraída de capacidades mais plenas. Mas
mesmo hoje se ouve ainda com os músculos, lê-se por si mesmo
ainda com os múscu.los.
Toda arte madura tem um:a profusão de convenções como
base: na medida em que ela é lin,guagem. A convenção é a condi-
ção da grande arte, 11ão seu impedimento...
Toda elevação da vida intensifica a força de comunicação,
assim como a força de entendimento do homem. O imiscuir-se
na vida de outras almas não é originariamente nada moral, mas
uma excitabilidade fisiológica oriunda da sugestão: a "simpatia"
ou o que se denomina "altruísmo" são meras configurações da-
quela relação psicomotora computada como dizendo respeito à
espiritualidade (Ch. Féré fala em uma induction psychomotrice).
Nunca se compartilham ideias, compartilham-se movimentos,
sinais miméticos, que podem ser lidos por nós a partir de um
recurso a ideias...

•••
Exponho aqui uma série de estados psicológicos como
sinais de uma vida plena e florescente, que se está hoje acostu-
mado a avaliar como doente. Pois bem, entrementes desapren-
demos a falar de uma oposição entre saudável e doente: trata-se
de graus - minha afirmação nesse caso é a de que aquilo que
é denominado hoje "saudável" ·representa um nível mais baixo
daquilo que seria saudável em situações favoráveis ... a de que
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 269

somos relativamente doentes ... O artista pertence a uma raça


ainda mais fone. O que para nõs seria nocivo, o que para nós
seria doentio, é nele natureza...
o excesso de sucos e de forças pode trazer consigo tanto
sintomas da falta parcial de liberdade, de alucinações sensoriais,
de um refinamento da sugestão, quanto um empobrecimento da
vida... o estimulo é condicionado de maneira diversa, o efeito
permanece igual a si mesmo...
Sobretudo, o efeito posterior não é o mesmo; o adormeci-
mento extremo de todas as naturezas mórbidas depois de suas ex-
centricidades nervosas não tem nada em comum com os estados
do artista: que não tem de expiar seus bons temp0s...
Ele é rico o bastante para tanto: ele pode desperdiçar sem
se tomar pobre...
Assim como se poderia denominar boje o "gênio" uma for-
ma da neurose, talvez também se pudesse chamar assim a força
de sugestão arlistica - e nossos artistas são de fato demasiado
aparentados com a mulherzinha histérica!!! Isso, contudo, fala
contra o ''hoje", e não contra os "artistas"...
Mas se objeta que precisamente o empobrecimento da má-
quina possibilitaria a força compreensiva extravagante em rela-
ção a todo e qualquer tipo de sugestão: prova disso é a nossa
mulheninha histérica, "nossos pesquisadores do além"
....
Inspiração: descrição .
....
Os estados não artísticos: o estado da objetividade, o estado
do espelhamento, da vontade exposta...
a incompreensão escandalosa de Schopenhauer, que consi-
dera a arte como ponte para a negação da vida ...
....
Os estados não anísticos: os estados empobrecedores, di-
minuidores, atenuadores sob cuja visão a vida sofre... o Cristo ...
270 FRIEDRICH NIETZSCHE

Problema da arte trágica

Os românticos: uma ques.tão ambígua, como tudo o que é


moderno

o a/CJr

14 (120)
Amor
Será que se quer uma prova espantosa de até que ponto vai
a força transfiguradora da embriaguez? O "amor" é essa prova,
aquilo que o amor significa em todas as línguas e mutismos do
mundo. A embriaguez lida com a realidade de tal modo que, na
consciência do amante, a causa parece eliminada e algo diverso
parece se encontrar em seu lugar - um tremor e uma reluzência
de todos os espelhos mágicos da Circe... Aqui, homem e animal
não fazem diferença; ainda menos o fazem o espírito, a bondade,
a sinceridade... É-se sutilmente enganado, quando se é sutil; é-se
toscamente enganado, quando se é tosco: mas o amor, e mesmo
o amor a Deus, o amor dos santos, das "almas redimidas", per-
manece na raiz urna e mesma coisa: como uma febre, que tem ra-
zões para se transfigurar, uma embriaguez que faz bem em mentir
sobre si... E, em todo caso, se mente bem quando se ama, diante
de si e sobre si: aparece-se para si transfigurado, mais forte, mais
rico, mais perfeito, se é mais perfeito... Encontramos aqui a arte
como função orgânica: nós a encontramos inserida no instinto
angelical da vida: nós a encontramos como o maior estimulante
da vida - arte, com isso, sublimcmente conforme a fins mesmo
ainda no fato de mentir... Mas nos equivocaríamos se permane-
cêssemos junto ao seu poder de mentir: ela faz mais do que mera-
mente imaginar, ela transpõe mesmo os valores. E a questão não
é apenas o fato de que ela transpõe o sentimento dos va.lores ... O
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 271

amante é mais valoroso, ele é mais forte. Nos animais, esse es-
tado impele novos materiais, novos pigmentos, cores e formas a
virem à tona: sobretudo novos movimentos, novos ritmos, novos
sons de chamado e seduções. No homem, as coisas não se mos-
tram diversas. Toda a sua postura doméstica se toma mais rica do
que nunca, mais poderosa, mais: total do que no que não ama. O
amante toma-se pródigo: ele é rico o bastante para tanto. Ele ousa
agora, se toma aventureiro, se toma um asno em termos de ge-
nerosidade e inocência; ele acredita uma vez mais em Deus, ele
acredita na virtude, porque acredita no amor: e, por outro lado,
crescem asas e novas capacidades para esse idiota da felicidade, e
as portas se abrem para ele mesmo em relação à arte. Deduzamos
da lírica em termos de som e palavra a sugestão daquela febre
intestinal: o que resta da lírica e da música?... L 'art pour l 'art
talvez: o grasnar virtuoso de sapos friamente dispostos, que se
desesperam em seu pântano... Todo o resto é criado pelo amor...

14 ( 121)
Vontade de poder psicologicamente
Concepção uno da psicologia
Nós estamos acostumados a manter compatível a configu-
ração de uma profusão descomunal de formas com uma origem
a partir da unidade.
O fato de a vontade de poder ser a fom1a primitiva do afe-
to, de outros afetos não passarem de reconfigurações:
O fato de haver um esclarecimento significativo cm po-
sicionar o poder no lugar da "felicidade" individual à qual todo
vivente deve aspirar: "ele aspira ao poder, ao mais no poder" -
prazer é apenas um sintoma do sentimento do poder alcançado,
uma consciência da diferença -
- ele não aspira ao prazer, mas prazer entra em cena, quan-
do ele alcança aquilo ao que aspira: prazer acompanha, prazer
não movimenta ...
O fato de toda força impulsionadora ser vontade de poder,
o fato de não haver nenhuma força física, dinâmica ou psíquica
além disso ...
272 FRIEDRICH NIETZSCHE

- em nossa ciência, na qual o conceito de causa e efeito


é reduzido à relação de equação, com a ambição de demonstrar
que há cm cada lado o mesmo quantum de poder,/a/ta a/or-
ça impulsionadora: nós consideramos apena.s resultados, nós
os posicionamos como iguais com vistas ao conteúdo de for-
ça, nós nos dispensamos da pergunta acerca da causa de uma
transformação ...
trata-se de uma mera questão de experiência o fato de que
a transformação não cessa: não temos cm si a mais mínima razão
para compreendermos que a uma transformação deveria seguir
outra. Ao contrário: um estado alcançado pareceria precisar se
conservar, se não houvesse nele uma capacidade de justamente
não querer se conservar...
A sentença de Espinoza acerca da autoconservação preci-
saria estabelecer propriamente um apoio para a transformação:
mas a sentença é falsa, o contrário é que é verdadeiro. É pos-
sível mostrar precisamente em todo vivente da maneira mais
clara possível que ele faz tudo para não se conservar, mas para
vir a ser mais...
A"vontade de poder" é wn tipo de "vontade" ou ela é idên-
tica ao conceito de "vontade"? Ela significa o mesmo que cobi-
çar? Ou comandar?
Ela é a "vontade", em relação à qual Schopenhauer acha
que ela seria o "em si das coisas"?
: minha sentença é: que .a vontade é uma generalização
injustificada da psicologia até aqui, que não há de maneira al-
guma essa vontade, que, ao invés de se conceber a configura-
ção de determinada vontade em muitas formas, se eliminou o
caráter da vontade, na medida em que se subtraiu o conteúdo,
o "para onde?".
: esse é, no grau mais elevado possível, o caso em Schope-
nhauer: aquilo que c.le denomina "vontade" é apenas uma pala-
vra vazia. Trata-se ainda menos de uma "vontade de viver": pois
a vida é meramente um caso pa.rticular da vontade de poder - é
totalmente arbitrário afirmar qu.e tudo aspira a passar para essa
forma da vontade de poder
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 273

14 (122)
Para a teoria do conhecimento: meramente empírica:
Não há nem "espírito", nem razão, nem pensamento, nem
consciência, nem alma, nem vomtade, nem verdade: tudo ficções,
que são inúteis. Não se trata de "sujeito e objeto", mas de de-
terminado tipo de animal, que só prospera sob certa correção
relativa, sobretudo sob a regularidade de suas percepções (de tal
modo que ele possa capitalizar experiências)...
O conhecimento trabalha como instrumento do poder. As-
sim, é natural que ele cresça com cada mais do poder...
Sentido do "conhecimento": aqui, tal como acontece com
"bom" e "belo", o conceito precisa ser tomado de maneira rigo-
rosa e estreitamente antropocêntrica e biológica. Para que deter-
minada espécie se conserve - e cresça em seu poder- , ela precisa
apreender em sua concepção da realidade tantas coisas calculá-
veis e constantes em sua identidade, que possa ser construído em
seguida um esquema de seu comportamento. A utilidade da con-
servação, não uma necessidade qualquer teórico-abstrata de não
ser enganado, encontra-se como motivação por detrás do desen-
volvimento dos órgãos do conhecimento... eles se desenvolvem
de tal modo que sua observação seja suficiente para conservar-
-nos. De maneira diversa: a medida do querer conhecer depende
da medida do crescimento da vontade de poder da espécie: uma
espécie se apodera de tanta realidade, afim de se tornar senhora
sobre ela, afim de colocá-la a seu serviço.
o conceito mecanicista do movimento já é uma tradução do
processo original na linguagem .de sinais dos olhos e do tato.
o conceito de "átomo", a diferenciação entre uma "sede da
força impulsionadora e ela mesma", é uma linguagem de sinais
constituída a partir de nosso mundo lágico-psíquico.
Não se encontra sob o nosso arbítrio transfonnar nossos
meios de expressão: é possível conceber em que medida isso é
mera semiótica.
A exigência de um modo de expressão adequado é um dis-
parate: reside na essência de uma língua, de um meio de expres-
são, exprimir uma mera relação... O conceito "verdade" é um
274 FRIEORICH NIETZSCHE

contrassenso ... todo o reino de "verdadeiro" e "falso" refere-se


apenas a relações entre essências, não ao "em si"... Absurdo: não
há nenhuma "essência em si", as relações constituem pela pri-
meira vez a essência, assim como não pode haver nenhum "co-
nhecimento em si"...

14 (123)
Contramovimento
Anti-Darwin
O que mais me espantou em meio à visão panorâmica dos
grandes destinos do homem sempre foi ver o contrário diante dos
olhos daquilo que Darwin vê ou quer ver com sua escola: a sele-
ção em favor dos mais fortes, dos que se saem melhor, o progresso
da espécie. Precisamente, o contrário é palpável: a eliminação dos
casos felizes, a inutilidade dos tipos que alcançaram um ponto mais
elevado, o inevitável movimento, dos tipos medianos, mesmo dos
tipos abaixo da média, vindo a se tornar senhores. Posto que não
se mostra para nós a razão pela q uai o homem seria a exceção en-
tre as criaturas, tendo a assumir o julzo prévio e dizer que a escola
de Darwin se enganou inteiramente. Aquela vontade de poder, na
qual reconheço uma vez mais o fundamento e o caráter derradei-
ros de toda transfonnação, fornece-nos o meio para respondermos
por que justamente a seleção não ocorro em favor das exceções e
dos casos felizes: os mais fortes e mais felizes são fracos quando
têm contra si instintos de rebanho organizados, quando têm contra
si a pusilanimidade dos fracos, a superioridade numérica. Meu
aspecto conjunto do mundo dos valores mostra que, nos valores
supremos, pendurados hoje acima da humanidade, não são os ca-
sos felizes, os tipos da seleção, que se sobrepõem: mas muito mais
os tipos da decadência - talvez não haja nada mais interessante no
mundo do que esse espetáculo in·desejado,..
Por mais estranho que possa soar: é preciso sempre armar
os fortes contra os fracos; os felizes contra os infelizes; os sau-
dáveis contra os decadentes e hereditariamente sobrecarregados.
Se quisennos formular a realidade em tennos morais, então essa
moral seria: os medianos valem mais do que as exceções; os pro-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 275

dutos da decadência, mais do que os medianos; a vontade de nada


se sobrepõe à vontade de vida - e a meta conjunta é
agora, expresso em termos cristãos, budistas, schope-
nhauerianos:
é melhor não ser do que ser
Sinto indignação em relação à fonnulação da realidade
em termos morais: por isso, anatematizo o cristianismo com um
ódio mortal, porque ele criou palavras e gestos sublimes, a fim
de dar a uma realidade terrível o manto do direito, da virtude,
da divindade ...
Vejo todos os filósofos, vejo a ciência curvada diante da
realidade da luta pela existência que se mostra como a inversa
daquela que ensina a escola de Darwin - a saber, por toda parte
estão em cima, por toda parte restam aqueles que comprometem
a vida, o valor da vida. - O erro da escola de Darwin tomou-se,
para mim, o problema: como é que se pode ser cego a ponto de
ver precisamente aqui de maneira falsa?... O fato de as espécies
representarem um progresso é a afirmação irracional do mundo:
elas representam expressamente um nível -
o fato de os organismos superiores terem se desenvolvido a
partir dos inferiores não foi comprovado por nenhum caso até aqui -
vejo que os inferiores preponderam por meio da quantida-
de, por meio da inteligência, por meio da astúcia - não vejo como
uma transformação casual ofereceria uma vantagem, ao menos
não por um longo tempo, esse seria uma vez mais um novo moti-
vo a explicar: por que uma transformação casual teria se tomado
de tal forma forte -
- encontro a "crueldade da natureza", da qual tanto se fala,
em outro lugar: ela é cruel em relação aos seus felizardos, ela
poupa, protege e ama les humbles2l2 - totalmente como - - -
•••
Em suma: o crescimento do poder de uma espécie é muito
menos garantida pela preponderância de seus felizardos do que

232 N.T.: Em francês no original: os humildes.


276 FRIEORICH NIETZSCHE

pela preponderância dos tipos medianos e inferiores... Nesta últi-


ma está a grande fertilidade, a duração; com a primeira cresce o
perigo, a rápida desertificação, a diminuição numérica veloz .
....
14 (124)
Contramovimento
Sobre a origem da religião
Da mesma maneira com a qual agora o homem inculto ain-
da acredita que a fúria seria a causa do que ocorre quando ele se
enfurece; o espírito, a causa do fato de que ele pensa; a alma, do
fato de que ele sente; em resumo, assim como ainda é estabeleci-
do hoje sem hesitar em uma gama de entidades psicológicas quais
devem ser as causas: o homem explicava em um estágio ainda
mais ingênuo os mesmos fenômenos com o auxilio de entidades
pessoais psicológicas. Os estados, que lhe pareciam estranhos,
aJTebatadores, imponentes, eram justificados para si como obses-
são e encantamento sob o poder de uma pessoa. Assim, o cristão,
o tipo de homem atual mais ingênuo e atrasado em termos de
formação, reconduziu a esperança, a calma, o sentimento da "re-
denção" a urna inspiração psicológica de Deus: nele, como um
tipo essencialmente sofredor e il!lquictante, os sentimentos de fe-
licidade, de elevação e de calma :se mostram como o alheio, como
aquilo que é carente de explicação. Entre raças inteligentes, fortes
e cheias de vida, o epiplético foi quem mais despertou a convic-
ção de que aqui estaria em jogo um poder es1ra11ho; mas também
toda e qualquer falta de liberdade similar, por exemplo, a falta de
liberdade do entusiasmado, do poeta, do grande criminoso, das
paixões como o amor e a vingança também serve à invenção de
poderes extra-humanos. Concretiza-se um estado cm uma pessoa:
e se afinna que esse estado, quando ele aparece em nós, seria o
efeito daquela pessoa: na fonnaç:ão psicológica divina, um estado
é personificado como causa, a fim de se mostrar como efeito.
A lógica psicológica é a seguinte: o sentimento do poder,
quando ele se abate de maneira repentina e imponente sobre os
homens - e esse é o caso em todos os grandes afetos - desperta
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 277

nele uma dúvida cm relação à sua pessoa: ele não ousa se pensar
como causa desse sentimento espantoso - e, assim, ele estabelece
uma pessoa mais forte, uma divindade para esse caso.
Em suma: a origem da rel.igião reside nos sentimentos ex-
tremos do poder, que surpreendem o homem como estranhos: e
como o doente, que sente um membro pesado demais e estranho
e chega à conclusão de que outro homem estaria acima dele, o
homo religiosus ingênuo se explicita em muitas pessoas. A reli-
gião é um caso da "altération de la personnalité".2 )3 Uma espécie
de sentimento de medo e de horror diante de si mesmo ...
Mas do mesmo modo um sentimento de felicidade e de al-
tivez extraordinàrio.
Entre doentes, o sentimento de saúde é suficiente para
acreditar em Deus, na proximidade de Deus.

14 (125)
Psicologia rudimentar do homem religioso
Todas as transfonnaçõcs são efeitos.
Todos os efeitos são efeitos volitivos. Falta o conceito "na-
tureza", "lei da natureza".
A todos os efeitos pertence um agente
Psicologia rudimentar: só se é por si mesmo causa onde se
sabe que se quis.
Consequência: os estados do poder imputam ao homem o
sentimento de não ser a causa, de não ser responsável por isso
: eles chegam sem serem queridos: consequentemente, nós
não somos os autores
: a vontade desprovida de liberdade (isto é, a consciência
de uma transfonnação conosco, sem que nós a tenhamos queri-
do) carece de uma vontade alheia
Consequência: o homem não ousou atribuir a si todos os
seus momentos fortes e espantosos - ele os concebeu como "pas-
sivos", como "sofridos", como coisas que se impõem
: a religião é uma excrescência de uma dúvida na unidade
da pessoa, uma alteração da personalidade

233 N.T.: Em franeês no original: "Alteração da personalidade".


278 FRIEDRICH NIETZSCHE

: na medida em que tudo o que há de grande e forte do ho-


mem foi concebido como sobre-humano, como alheio, o homem
se apequena - ele dissocia os dois lados, um lado bastante deplo-
rável e fraco e um forte e espantoso em duas esferas; a primeira
se chamava "homem"; a segunda, "Deus".
Ele sempre prosseguiu esse movimento, ele não interpre-
tou, no período da idiossincrasia moral, seus estados morais
elevados e sublimes como "queridos", como "obra" da pessoa.
Mesmo o cristão dissocia sua pessoa em uma ficção mesquinha
e fraca, que ele denomina homem, e em outra, que ele chama de
Deus (redentor, salvador) -
A religião rebaixou o conceito "homem"; sua extrema con-
sequência é o fato de que tudo o ,que é bom, grande, verdadeiro é
sobre-humano e foi presenteado apenas por uma graça ...

14 (126)
Contramovirnento; re!igiiio
Moral como tentativa de produzir o orgulho humano
A teoria da "vontade livre" é antirreligiosa. Ela quer criar
para o homem o direito de poder pensar a si mesmo como causa
de seus estados e ações elevadas,; ela é uma forma do sentimento
crescente de orgulho
O homem sente seu poder, sua "felicidade", como se diz:
ele precisa ser "vontade" diante desse estado - senão, ele não lhe
pertence
A virtude é a tentativa de estabelecer um fato do querer
e do ter querido como um antecedente necessário antes de todo
sentimento de felicidade elevado e forte
Se a vontade de certas ações está regularmente presente na
consciência, então wn sentimento de poder pode ser interpretado
como seu efeito
Essa é uma mera ótica da psicologia: sempre sob o falso
pressuposto de que nada nos pertence que não tenhamos como
querido na consciência
Toda a doutrina da responsabilidade está baseada nessa psi-
cologia ingênua, segundo a qual só a vontade é causa e se precisa
saber t.er querido, a fim de poder acreditar em si como causa
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 279

O homem só tem o direito de ter estima por si na medida


em que ele é virtuoso.
O movimento contrário: o movimento dos füósofos morais
se encontra sob o domínio do mesmo preconceito de que só se é
responsável por aquilo que se quis
O valor do homem estipulado como valor moral: conse-
quentemente, sua moralidade precisa ser uma causa prima
Consequentemente, precisa haver um princípio no homem,
uma "vontade livre" como causa prima
Há aqui sempre o pensamento velado: se o homem não for
causa prima como vontade, então ele é irresponsável - conse-
quentemente, ele não pertenceria de modo algum ao fórum moral
- a virtude ou o vicio seriam automãticos ou maquinais ...
Em suma: para que o homem possa ter estima diante de si,
ele precisa ser capaz de se tomar mau também

14 (127)
Uma forma da religião, para produzir o orgulho popular
Outro caminho para retirar o homem de sua humilhação
trazida consigo pela perda dos estados elevados e fortes, assim
como dos estados alheios, foi a teoria do parentesco
: esses estados elevados e fortes podiam ao menos ser inter-
pretados como efeitos de nossos antepassados, nós pertencemos uns
aos outros, solidariamente, nós crescemos aos nossos próprios olhos,
na medida em que agimos segundo regras conhecidas por nós.
Tentativa de familias nobres de equiparar a religião à sua
dignidade própria.
A transfiguração, a metamorfose temporária
- O mesmo é feito pelos poetas e videntes, eles se sentem
orgulhosos, dignificados e escolhidos para tal contato - eles dão
valor a não serem considerados de maneira alguma como indiví-
duos, de serem meros bocais (Homero)
Ainda uma forma de religião. O Deus escolhe, o Deus se
toma homem, ou Deus mora junto com os homens, legando gran-
des feitos benéficos, as lendas do lugar, apresentadas eternamen-
te como "drama"
280 FRIEDRICH NIETZSCHE

Apossar-se gradualmente de seus estados elevados e orgu-


lhosos, apossar-se de suas ações e obras
- outrora, as pessoas acreditavam estar prestando honras a
si, quando não se sabiam responsáveis pelas coisas supremas que
elas faziam, mas - Deus -
A não liberdade da vontade era considerada como aquilo
que emprestava a uma ação um valor mais elevado: outrora, um
deus ti.nha sido transformado em seu autor...

14 (128)
Vontade de poder - moral
A encenaçÕI) como consequência da moral da "vontade livre"
Trata-se de um passo no desenvolvimento do sentimento de
poder mesmo ter causado por si mesmo os seus estados elevados
(sua perfeição) - consequentemente, concluiu-se imed.iatamente
que se tinha querido ...
Critica: toda ação perfeita é claramente inconsciente e não
mais que.rida, a consciência expressa um estado pessoal imper-
feito e com frequência doentio. A perfeição pessoal como con•
dicionada pela vontade, como estar consciente, como ra1..ão com
dialética, é uma caricatura, uma espécie de autocontradição ... O
grau de consciência toma, sim, a perfeição impossível ... Forma
da teatralidade.

14 (129)
Filosofia como decadência
Por que tudo conflui para a teatralidade?
A psicologia rudimentar, que só é calculada pelos momen-
tos conscientes do homem, como causas que o "ser consciente"
tomou como atributos da alma, a qual buscou uma vontade (isto
é, uma intenção) por detrás de todo fazer
: ela só tinha a necessidade de responder: cm primeiro lu-
gar, o que quer o homem?
Resposta: a felicidade (- não se podia dizer "poder": isso
teria sido imoral) - consequentemente, há em todo agir do ho-
mem uma intenção de alcançar com a ação a felicidade -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 281

em segundo lugar, se o homem não alcança de fato a feli-


cidade, por que isso acontece? Por conta dos enganos em relação
aos meios.
Qual é infalivelmente o meio para a felicidade? Resposta:
a virtude.
Por que a virtude? Porque ela <é> a racionalidade suprema
e porque racionalidade toma impossivel o erro de se equivocar
com os meios
como razão, a virtude é o caminho para a felicidade ...
a dialética é o artesanato ,constante da virtude, porque ela
exclui todo turvamento do intelecto, todos os afetos
De fato, o homem não quer a "felicidade"...
Prazer é um sentimento de poder: quando se excluem os
afetos, também se excluem os estados que propiciam da maneira
mais elevada possível o sentimento do poder e, consequentemen-
te, o prazer.
a racionalidade suprema l: um estado frio, claro, que está
distante de promover aquele sentimento de felicidade que a em-
briaguez traz consigo...
os filósofos antigos combatem tudo aquilo que embriaga - o
que prejudica a frieza e a neutralidade absolutas da consciência...
eles eram consequentes, com base em seu pressuposto fal-
so: com base no pressuposto de que a consciência seria o estado
elevado, o estado supremo, o pressuposto da perfeição,
enquanto o contrário é que é verdadeiro ...
Enquanto queremos, enquanto sabemos, não há nenhuma
perfeição no fazer de um tipo qualquer. Os filósofos antigos
foram os maiores ignorantes da·práxis, porque eles se condena-
ram teoricamente à ignorância ... Na práxis, tudo contlu!a para
a teatralidade: - e quem vislumbrou isso criticwnente, como
Pirro, por exemplo, julgou como qualquer um, a saber, que na
bondade e na justiça as "pessoas pequenas" estavam muito aci-
ma dos filósofos
Todas as naturezas mais profundas da Antiguidade tiveram
nojo pelo filósofo da virtude:
viram-se bodes de briga sem chifres e atores neles.
282 fRIEDRICH NIETZSCHE

Juízo sobre Platão: por parte de Epicuro


por parte de Pirro
Resultado: na práxis da vida, na tolermcia, na bondade e no
fomento mútuo, as pessoas pequenas se acham acima deles: mais
ou menos o juízo que Dostoiévski ou Tolstoi requisitaram para os
seus mujiques: eles são mais filosóficos na prática, eles possuem
um modo de ser mais corajoso de se haver com as necessidades.

14 (130)
Contramovimento: religião
Moral como decadência
Reação das pessoas pequenas:
O supremo sentimento de poder é dado pelo amor
É preciso compreender em que medida não fala aqui o ho-
mem em geral, mas um tipo de homem. É preciso desenterrar e
ver mais detidamente esse tipo
"nós somos divinos no amor, nós nos tomamos 'filhos de
Deus', Deus nos ama e não quer outra coisa de nós senão amor"
ou seja: nenhuma moral, :nenhuma obediência e ação tra-
zem à tona aquele sentimento de poder e liberdade como o traz
à tona o amor
- não se füz nada terrível por amor, se faz muito mais do
que se faria por obediência e virtude -
- aqui a felicidade de rebanho, o sentimento de comunida-
de no grande e no pequeno, o sentimento uno vivente é experi-
mentado como soma do sentimento de vida
- o ajudar, o cuidar e o usar despertam continuamente o
sentimento do poder, o sucesso visível, a expressão da alegria
sublinha o sentimento do poder
- o orgulho não falta, como comunidade, como local de
moradia de Deus, como "escolhido". -
De fato, o homem vivenciou uma vez mais uma altera-
ção da personalidade: dessa vez, ele denominou seu sentimento
amor Deus
Precisa-se pensar um despert.ar de tal sentimento, uma es-
pécie de encantamento, um discurso alheio, um "evangelho" -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 283

Foi essa novidade que não lhe pennitiu acrescentar a si


o amor - : ele achava que Deus perambulava diante dele, e nele
teria se tomado vivo -
"Deus vem aos homens", o "mais próximo" é transfigurado
em um deus (nessa medida se desencadeia nele o sentimento do
amor). Jesus é o mais próximo, assim como esse mais próximo
foi repensado como divindade, como causa que desperta um sen-
timento de poder

14 (131)
Ciência e filosofia
Científicidade: como roupagem ou como instinto.
Nos filósofos gregos, vejo um declínio dos instintos: senão,
eles não teriam podido se equivocar de tal forma a ponto de estabe-
lecer o estado consciente como o estado mais plenamente valoroso
A intensidade da consciência encontra-se na relação inver-
sa com a levet.a e a rapidez da transmissão cerebral.
Lá imperava a opinião inversa acerca do instinto: o que é
sempre o sinal de instintos enfraquecidos.
Precisamos buscar de fato a vida plena lá onde se é o me-
nos possível mais consciente (isto é, lã onde se apresenta sua
lógica, seus fundamentos, seus meios e intenções, sua utilidade)
O retomo ao fato do bon sens, do bon homme, das "pessoas
pequenas" de todos os tipos
Justiça e astúcia inseridas em magazines há gerações, que
nunca se conscientizam de seus princípios e que têm mesmo um
pequeno estremecimento diante de princípios
A exigência por uma virtude raciocinante não é razoável...
Um filósofo está comprometido com tal exigência.

14 (132)
Quando se acumulam por meio de exercício em uma longa
cadeia de gerações suficientemente fineza, coragem, cautela e
moderação, a força instintiva dessa virtude incorporada também
se irradia ainda para o interior do elemento espiritual - e aquele
fenômeno raro se toma visível, ajustiça intelectual. Esse fenô-
meno mesmo é muito raro: ele falta nos filósofos.
284 FRIEDRICH NIETZSCHE

Pode-se colocar em uma balança de ouro a cientificidade


ou, expressa em termos morais, ajustiça intelectual de um pensa-
dor, sua fineza, coragem, cautela e moderação, que se tomaram
instintivas e que se traduzem ainda no elemento maximamente
espiritual: fazem-nas falar de modo moral...
E os mais célebres fil6so fos mostram, então, que s6 sua
cientificidade se mostra pela primeira vez como uma coisa cons-
ciente, um ponto de partida, uma "boa vontade", um suplício - e
que justamente no instante em que seu instinto começa a falar,
em que eles moralizam, chega-se ao fim do cultivo e da fineza de
sua consciência moral.
A cientificidade, quer mera roupagem e lado exterior, quer o
resultado final de um longo cultivo e de um exercício da moral:
No outro caso, ela se toma imediatamente caduca, quando
o instinto fala (por exemplo, o instinto religioso ou o instinto
inerente ao conceito de dever)
No outl'o caso, ela se eneonll'a no lugar desses instintos e não
os admite mais, ela os experimenta como falta de asseio e como
seduções ...

14 (133)
Anti-Darwin
A domesticação do homem: que valor definitivo ela pode
ter? Ou será que uma domesticação tem efetivamente um valor
definitivo? - Têm-se razões de negar esta última questão.
A escola de Darwin realiza, em verdade, um grande tra-
balho para nos convencer do contrário: ela quer que o efeito da
domesticação possa se tomar profundo, sim, fundamental. No
entanto, mantemo-nos junto ao antigo: não se demonstrou nada
até aqui senão um efeito totalmente superficial por meio da do-
mesticação - ou, porém, a degenerescência. E tudo aquilo que
escapa da mão e do cultivo humanos retoma quase que imediata-
mente uma vez mais para o seu estado natural. O tipo permanece
constante: não se pode "dénaturer la nature''.214

234 N.T.: Em francês no original: desnaturar a natureza.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 285

Na luta pela exi.stência, conta•se com a morte dos seres


fracos e com a sobrevivência dos mais robustos e dotados me-
lhor; consequentemente, imagina-se um constante crescimento
da perfeição para a essência. Nós nos asseguramos inversamen-
te de que, na luta pela vida, o :acaso serve tão bem aos fracos,
quanto aos fortes, que a astúcia provê a força com frequência
com mérito, que a fertilidade dos gêneros se encontra cm uma
relação estranha com as possibilidades da destruição ...
Atribuem-se à seleção natural ao mesmo tempo meta-
morfoses lentas e infinitas: quer-se acreditar que toda vantagem
se lega e se expressa cada vez mais intensamente em gerações
subsequentes (enquanto a hereditariedade é tão caprichosa... );
consideram-se as adaptações felizes de certos seres às condições
de vida muito particulares e se explica que elas são alcançadas
por meio da influência do mili.eux. Não se encontram, porém,
exemplos da seleção inconsciente em parte alguma (não de modo
algum). Os indivíduos mais disparatados se unem, os extremos
se misturam na massa. Tudo concorre para manter o tipo; seres,
que possuem sinais exteriores, que os protegem contra certos
perigos, não perdem esses sinais quando eles se encontram sob
circunstâncias nas quais vivem sem perigo... Quando eles habi-
tam lugares nos quais o vestido cessa de cobri-los, eles não se
aproximam de maneira alguma do meio.
Exagerou-se a seleção dos mais belos de uma maneira tal
que ela se lança muito para além do impulso à beleza de nos-
sa própria raça! De fato, o mais belo acasala-se com criaturas
bastante deserdadas, o que há de maior com o que há de menor.
Quase sempre vemos homenzinhos e mulherzinhas tirarem pro-
veito de todo e qualquer encontro e não se mostrarem de maneira
alguma seletivos.
Não há nenhuma forma de transição ...
Diversos tipos reconduzidos a uma e mesma coisa. A ex-
periência diz que a união condena à esterilidade e que um tipo se
toma uma vez mais senhor.
Afirma-se o desenvolvimento crescente dos seres. Falta
todo fundamento. Cada tipo tem seu limite: para além desse
286 FRIEDRICH NIETZSCHE

limite não há nenhum desenv,olvimento. Até aí há absoluta


regularidade.
Os seres primitivos devem ser os antecessores dos atuais.
Mas uma visão da fauna e da flora do período Terciário só permi-
te pensar nelas como uma terra ainda insondada, na qual há tipos
que em outros lugares não existem e que são aparentados entre si
e aqueles que existem em outro lugar.
Minhas consequências
Meu pomo de vista como um todo. - Primeira sentença: o
homem como gênero não está em progresso. Tipos mais eleva-
dos são com certeza alcançados, mas não se mantêm. O nível da
espécie não é elevado.
Segunda sentença: o homem como gênero não representa
nenhum progresso em comparação com algum outro animal qual-
quer. O mundo de animais e plaotas como um todo não se desen-
volve do mais inferior ao superior... Mas tudo ao mesmo tempo, e
um sobre o outro, um através do outro e um contra o outro.
As formas mais ricas e complexas - pois a expressão "tipo
superior" não significa mais do que isso - perecem facilmente:
somente as mais baixas mantêm uma imperecibilidade aparente.
As primeiras só são alcançadas raramente e só se mantêm com
dificuldade em cima: as outras têm por si uma fertilidade pro-
missora. - Mesmo na humanidade, a partir de um ser a favor ou
contra alternante, os tipos mais elevados, os casos fortuitos do
desenvolvimento, são os que mais facilmente perecem.
Eles são expostos a todo tipo de decadência: eles são extre-
mos e, com isso, eles mesmos já são quase decadentes ... A curta
duração da beleza, do gênio, do César, é sui generis: algo desse
gênero não se lega. O tipo pode ser legado; um tipo não é nada
extremo, nenhum "caso fortuito" ...
Isso não tem sua razão de ser em nenhuma fatalidade par-
ticular e em uma "má vontade" da natureza, mas simplesmente
no conceito de "tipo superior": o tipo superior representa uma
complexidade incomparavelmente maior - uma grande soma de
elementos coordenados: com isso, mesmo a desagregação se tor-
na mais provável.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 287

O "gênio" é a máquina mais sublime que existe - conse-


quentemente, a mais quebradiça.
Terceira sentença: a domesticação ("a cultura") do homem
não vai fundo ... Aonde ela vai fundo, ela é imediatamente a dege-
nerescência (tipo: o Cristo). O homem "selvagem" (ou, expresso
moralmente: o homem mau) é seu retomo à natureza - e, em
certo sentido - sua reprodução, sua cura da "cultura".

14 (134)
Filosofia como decadência
Por que os filósofos são caluniadores?
A hostilidade pérfida e cega contra os sentidos
Não são os sentidos que enganam! -
- nosso nariz do qual, até onde sei, nenhum filósofo falou
ainda com respeito é por vezes o instrumento fisico mais deli-
cado que hâ: ele consegue constatar vibrações, onde mesmo o
espcctrosc6pio é impotente.
O quanto de plebe e de burguesia há em todo esse ódio!
O povo sempre considera um abuso, do qual ele sente a
presença de consequências ruins, como objeção contra aquilo que
foi abusado: todos os movimentos revoltosos contra principios,
seja no âmbito da política, seja no âmbito da ciência, sempre ar-
gumentam de modo a apresentar, juntamente com os pensamentos
reservados, um abuso como necessário e inerente ao princípio.
Trata-se de uma história cheia de lamentos: o homem bus-
ca um principio a partir do qual ele possa desprezar o homem
- ele inventa um mundo, a fim de poder caluniar e macular esse
mundo: de fato, ele se atém todas as vezes ao nada e constrói
o nada, transformando-o em "D.cus", em "verdade" e, em todo
caso, cm juiz e condenado desse ser...
Caso se queira uma prova de o quão profunda e funda-
mentalmente as necessidades propriamente bárbaras do homem
também buscam satisfação ainda em sua domesticação e "civi-
lização": basta considerar as "motivações" diretrizes de todo o
desenvolvimento da filosofia. Uma espêcie de vingança ante a
realidade efetiva, um WTuinar insidioso da valoração na qual o
288 FRIEORICH NIETZSCHE

homem vive, uma alma insatisfeita, que experimenta os estados


da domesticação como tortura e tem sua volúpia em um desatar
de todos os liames que com ela estabelecem associações.
Ahistória da filosofia é um enfarecer-se secretamente contra
os pressupostos da vida, contra os sentimentos de valor da vida,
contra o tomar partido em favor da vida. Os filósofos nunca hesi-
taram cm afirmar um mundo, contanto que ele contradissesse esse
mundo, contanto que ele fornecesse um pretexto para se falar mal
desse mundo. Essa foi até aqui a maior escola da caluniação: e
ela se impôs a tal ponto que noss:a ciência, fazendo-se passar pela
defensora da vida, aceitou ainda boje a posição fundamental da ca-
lúnia e manipulou esse mundo como aparente, essa cadeia causal
como meramente fenomenal. O que odeia ai propriamente?...
Temo que seja sempre ainda a Circe dos filósofos, a moral,
que fez por eles essa jogada, forçando-os em todos os tempos a
serem caluniadores... Eles acreditavam nas "verdades" morais,
eles encontravam ai os valores supremos - o que lhes restava
senão dizer cada vez mais não à existência, quanto mais eles a
compreendiam?... pois essa existência é imoral... E essa vida
baseia-se em pressupostos imorais: e toda moral nega a vida -
- Eliminemos o mundo verdadeiro: e, para podermos fazer
isso, temos de eliminar os valores supremos até aqui, a moral ...
É suficiente comprovar que mesmo a moral é imoral, no
sentido em que o imoral foi condenado até aqui. Se a tirania
dos valores até aqui é rompida dessa maneira, se eliminarmos o
"mundo verdadeiro", então precisará se seguir a isso uma nova
ordem dos valores.
N.B. O mundo aparente e o mundo mendaz: essa é a opo-
sição: este último se chamou até aqui o "mundo verdadeiro", a
"verdade", "Deus". Foram eles que eliminamos.

14 (135)
Lógica de minha concepção
1) Moral como valor supr.emo (senhora sobre todas as fa.
ses da filosofia, mesmo sobre os céticos): resultado: esse mundo
não serve para nada, ele não é o "mundo verdadeiro"
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 289

2) O que determina aqui o valor supremo? O que é propria-


mente a moral?
O instinto da decadência são os esgotados e deserdados,
que se vingam dessa maneira
Comprovação histórica: os filósofos são sempre decaden-
tes ... a serviço das religiões niilistas.
3) O instinto da decadência, que entra em cena como von-
tade de poder.
Prova: a imoralidade absoluta dos meios em toda a história
da moral.
II. Reconhecemos em tod.o o movimento apenas um caso
especiol da vontade de poder.

14 (136)
A vontade de poder
Tentativa
De uma transvaloração de todos os valores.
r.
Critica dos valores até aqui
n.
O novo principio do valor.
Morfologia da "vontade de poder"
Ili.
Questão acerca do valor de nosso mundo moderno
: medido segundo esse princípio
IV.
A grande guerra

14 (137)
Primeiro livro
Que valores estiveram em cima até aqui.
1) Moral como valor supremo, em todas as fases da filoso-
fia (mesmo junto aos céticos)
Resultado: esse mundo não serve para nada, precisa haver
um "mundo verdadeiro"
2) O que determina aqui, propriamente, o valor supremo?
O que é propriamente a moral? O instinto da decadência são os
290 FRIEDRICH NIETZSCHE

esgotados e deserdados, que se vingam dessa maneira e que fa.


zem os senhores...
Comprovação histórica: os filósofos sempre decadentes,
sempre a serviço das religiões niilistas.
3) O instinto da decadência, que entra cm cena como von-
tade de poder. Apresentação de seu sistema dos meios: absoluta
imoralidade dos meios.
Visão conjunta: os valores supremos até aqui são um caso
especial da vontade de poder; a moral mesma é um caso especial
da imoralidade.
Segundo livro
Por que os valores contrários sempre se encontraram abaixo.
1) Como é que isso foi propriamente possíven Questão: por
que a vida se encontrava embaixo, a boa constituição fisiológica
cm geral? Por que não havia nenhuma filosofia do sim, nenhuma
religião do sim?... Os indícios históricos de tais movimentos:
A religião pagã Dioniso contra o ''crucificado"
O renascimento A arte -
2) Os fortes e os fracos: os saudáveis e os doentes; a exceção
e a regra. Não há nenhuma dúvida acerca de quem é o mais forte ...
Aspecto conjunto da história. O homem é, com isso, uma
exceção na história da vida? - Protesto contra o danvinismo. Os
meios dos fracos, para se manterem em cima, se tomaram instintos,
se transfonnaram na "humanidade", se tornaram "instituições"...
3) Comprovação desse domlnio em nossos instintos pol!ticos,
em nossos juízos de valor sociais, em nossas artes, em nossa ciência.
Nós vimos duas "vontades de poder" em luta; no caso
especial: temos um princípio, dar o direito a algo que até aqui
esteve por baixo e negar o direi.to ao que até aqui venceu: reco-
nhecemos o "mundo verdadeiro" como um "mundo mendaz", e a
moral, como umaforma da imoralidade. Não dizemos: "o mais
forte não tem razão" ...
Terceiro livro
O que são a causa de todos os valores e a diversidade entre os
valores.
1) os valores niilistas estilo cm cima
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 291

2) o contramovimento está sempre inferiorizado - logo,


degenerado ...
3) O contramovimento até aqui só foi conhecido em for-
mas parciais e degradadas.
Purificação e reprodução de seu tipo.
Expressão mais precisa do sistema:
Psicologia
História
Arte
Política

14 (138)
3) Purificação dos valores até aqui inferiores
Nós compreendemos o que determinou até aqui o valor
supremo e por que ele se assenhoreou da valoração contrária
Purifiquemos agora a val<Jração contrária da infecção e
da parcialidade, da degeneração, na qual ela se tomou conhecida
para todos nós.
Teoria de sua desnaturalização e reprodução da natural:
livre de toda moral
Teoria do conhecimento, vontade de verdade
Teoria da psicologia
Origem da religião
Origem da arte
Teoria das configurações de poder
Teoria da vida
Vida e natureza
História dos contramovimentos:
Renascimento
Revolução
Emancipação da ciência

14 (139)
O estado corrupto e misto dos valores corresponde ao esta-
do fisiológico dos homens atuais: teoria da modernidade
292 FRIEDRICH NIETZSCHE

14 (140}
Os instintos de declínio tomaram-se senhores sobre os ins-
tintos fontais ...
a vontade de nada tomou-se senhora sobre a vontade de vida ...
- isso é verdadeiro? Não se trata, talvez, de uma garantia
maior da vida, do gênero na vitória dos fracos e medianos?
- Talvez isso não seja senão um meio no movimento con-
junto para a vida, um retardamento no ritmo? Uma me-
dida de emergência contra algo ainda pior?
- supondo que os fortes tivessem se tomado senhores, em tudo
isso e também nas avaliações: retiramos daí a consequência
sobre como eles pensariam a doença, o sofrimento, o sacri-
ficio? Um aurodesprezo dos fracos seria a consequência;
eles procurariam desaparecer ou se exte.rminar... E será que
isso seria, talvez, desejáven
- e gostaríamos propriamente de um mundo no qual faltas-
se o efeito produzido pelos fracos, sua fineza, considera-
ção, espiritualidade,flexibi/idade?...

14 (141)
Ciência
Ciência combatida pelos filósofos
Isso é extraordinário. Encontramos desde o inicio da fi-
losofia grega uma luta contra a ciência, com os meios de uma
teoria do conhecimento, respectivamente do ceticismo: e, para
quê? Sempre em favor da moral.
O ódio contra os tisicas e os médicos
Sócrates, Aristipo, os meg,áricos, os cínicos, Epicuro, Pirro
- ataque gemi contra o conhecimento em favor da moral
Ódio também contra a dialética ...
Permanece um problema: eles se aproximam da sofistica, a
fim de se 1ivrarem da ciência
Por outrO lado, todos os fisicos estilo subjugados, a fim de
tomar o esquema da verdade, do ser verdadeiro em seu funda-
mento: por exemplo, o átomo, os quatrO elementos (justaposição
de um ente, a fim de explicar a pluralidade e a transformação - )
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 293

Ensina-se o desprezo em relação à objetividade do inte-


resse: retomo ao interesse prático, à utilidade pessoal de todo
conhecimento...
A luta contra a ciência dirige-se contra
1) seu páthos (objetividade)
2) seus meios (isto é, contra a sua utilidade
3) seus resultados (como infantis
Trata-se da mesma luta que será conduzida mais tarde por
parte da Igreja, em nome da castidade:
: ela herda todo o aparato antigo para a luta.
A teoria do conheciniento desempenha ai o mesmo papel
que em Kant, que nos indianos...
Não se quer ter de se preocupar com isso: quer-se manter a
mão livre para decidir o seu "caminho"
De que eles se defendem [Propriamente? Da obrigatorieda-
de, da nonnatividade, da imposição de seguir passo a passo -
: acredito que as pessoas chamem isso de liberdade...
Nisso se expressa a decadência: o instinto da solidarieda-
de é degradado a tal ponto que a solidariedade é experimentada
como tirania:
: eles não querem nenhuma autoridade
nenhuma solidariedade
nenhuma inserção na série, no elo e na
lentidão infinita do movimento
eles odeiam o modo gradual, o ritmo da ciência, eles
odeiam o não-querer-chegar, a longa respiração, a indiferença
pessoal do homem de ciência - .

14 (142)
Teoria e práxis
Diferenciação fatldica, como se houvesse uma pulsão pró-
pria ao conhecimento que, sem levar cm conta a questão da uti-
lidade e do dano, se arremeteria cegamente rumo à verdade: e,
então, cindido dai, todo o mundo dos interesses práticos ...
Em contrapartida, procuro mostrar que instintos teriam es-
tado ativos por detrás desses teóricos puros - como é que eles
294 fRIEORICH NIETZSCHE

se arremetiam todos juntos fatalisticamente, sob o encanto de


seus instintos, para algo que era para eles "a verdade", para eles
e apenas para eles. A luta entre os sistemas, juntamente com a
luta própria ao escrúpulo epistemológico, é urna luta de instintos
totalmente determinados (formas da vitalidade, do declinio, das
castas, da.s raças etc.)
O assim chamado impulso ao conhecimento precisa ser
reconduzido a um impulso de apropriação e de dominação: foi
seguindo esse impulso que os sentidos, a memória, os instintos
etc. se desenvolveram ...
- a redução mais rápida possível dos fenômenos, a econo•
mia da acumulação do tesouro adquirido em termos de conheci-
mento (ou seja, o mundo apropriado e manualmente feito
Por isso, a moral é uma ciência tão curiosa, porque ela é
prática no grau mais elevado possível: de tal modo que a pura
posição do conhecimento, a legitimidade científica é imediata-
mente abandonada quando a moral ex.ige suas respostas.
A moral diz: preciso de algumas respostas - razões, argu-
mentos. Escrúpulos podem entrar aí, ou também não entrar -
"Como se deve agir?•·
Pensemos que estamos lidando com um tipo soberanamen•
te desenvolvido, do qual se "tratou" por inúmeros milênios, e
que tudo se tomou instinto, conformidade a fins, automatismo,
fatalidade. Nesse caso, a urgênc ia dessa questão moral se nos
mostrará até mesmo como muito estranha.
"Como se deve agir?" - Moral foi sempre uma incompre-
ensão: eom efeito, uma espécie que tinha no corpo um fato ao
agir de tal e tal modo gostaria de se justificar, buscando decretar
sua norma como norma universal...
''Como se deve agir?" não é nenhuma causa, mas um efei•
to. A moral segue, o ideal chega por fim.
Por outro lado, a aparição do escrúpulo moral ou, expresso
de outra forma, a conscientização dos valores segundo os quais
se age revela certo caráter doentio; tempos e povos fortes não
refletem sobre seu direito à ação, sobre seus princlpios da ação,
sobre instinto e razão -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 29S

A conscientização é um sinal do fato de que a moralidade


propriamente dita, isto é, a certeza instintiva do agir, vai para os
diabos ...
Os moralistas são, tal como acontece todas as vezes em
que um novo mundo consciente é criado, sinais de uma danifica-
ção, de um empobrecimento, de urna desorganização -
os homens instintivos profundos têm um pudor diante da
logicização dos deveres: entre eles, encontram-se adversários
pirrônicos da dialética e da cognoscibilidade em geral ... Uma
virtude é refutada com o "in"...
Tese: a aparição dos moralistas pertence aos tempos nos
quais termina a moralidade
Tese: o moralista é um diswlutor dos instintos morais, exata-
mente na mesma medida em que ele acredita ser seu reprodutor
Tese: o que de fato conduz o moralista não são os instintos
morais, mas os instintos da decadência, traduzidos nas fórmu-
las da moral: ele experimenta <> tomar-se inseguro dos instintos
como corrupção: de fato - - -
Tese: os instintos da decadência, que querem se tomar se-
nhores por meio dos moralistas sobre a moral instintiva das raças
e dos tempos fortes, são
1) os instintos dos fracos e desfavorecidos
2) os instintos das exceções, dos solitários, dos desgarra-
dos, dos absortos no elevado e no iníquo
3) os instintos dos que sofrem habitualmente, que neces-
sitam de uma nobre interpretação de seu estado e, por
isso, só devem ser o mínimo possível fisiólogos
Moral como decadência

14 (143)
Um filósofo é inteligente quando ele "não" é "prático": ele
desperta a crença em sua autenticidade, simplicidade, inocência
no trânsito com as ideias - não prático significa em seu caso
"objetivo". Schopenhauer foi inteligente, ao se deixar fotografar
com roupas abotoadas errado: ele disse, com isso: "eu não per-
tenço a este mundo: o que importa a um filósofo a convenção
296 FRIEORICH NIETZSCHE

entre os buracos e os botões paralelos!... Eu sou objetivo demais


para isso!. .. u
Não basta demonstrar que não se é prático: a maioria dos
filósofos acredita que eles fizeram o bastante com isso, para ele-
var a objetividade e a pureza da ·razão acima de qualquer dúvida.
1) O impulso ao conhecimento supostamente puro de todo
filósofo é comandado por suas "verdades" morais - ele só é apa-
rentemente independente...
2) as "verdades morais" "assim é que se deve agir" são
meras formas da consciência de um instinto que se cansou: "en-
tre nós, age-se de tal e tal modo,". O "ideal" deve reproduzir um
instinto, fortalecê-lo: lisonjeia o homem ser obediente onde ele é
apenas automático.

14 (144)
Onde há certa unidade no agrupamento, sempre se estabe-
leceu o espírito como causa dessa coordenação: para o que falta
todo e qualquer fundamento. Po:r que a ideia de um fato comple-
xo deveria ser uma das condições desse fato? Ou por que a repre-
sentação de um fato complexo deveria preceder a esse fato? -
Tomaremos cuidado para não explicarmos a consonância a
fins por meio do espírito: fàlta to,do e qualquer fundamento para que
se atribua ao espírito a peculiaridade de organizar e sistematizar.
O sistema nervoso tem um império por demais extenso:
o mundo da consciência é adicionado. No processo conjunto da
adaptação e da sistematização, ela não desempenha papel algum.
Nada é mais equivocado do que fàzer de fenômenos psí-
quicos e físicos as duas faces e as duas manifestações de uma e
mesma substância. Com isso, não se explica nada: o conceito de
"substância" é completamente inútil quando se quer explicar.
A consciência, em um papel secundário, quase indiferente,
supérfluo, determinada talvez a desaparecer e abrir espaço para
um automatismo perfeito -
Se observamos apenas os fenômenos internos, então so-
mos comparáveis aos surdos-mudos, que desvendam a partir
dos movimentos dos lábios as palavras que eles não escutam.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 297

Nós concluímos a partir dos fenômenos do sentido interno fe.


nômenos visíveis e outros, que perceberíamos, se nossos meios
de observação fossem suficientes, fenômenos que denomina-
mos fluxo nervoso.

14 (145)
O fato de haver um mundo, em relação ao qual nos aban-
donam todos os nossos órgãos mais refinados, de tal modo que
ainda experimentamos uma complexidade dotada de mil face-
tas como unidade, de tal modo que inventamos cm meio a esse
mundo uma causalidade, onde pennanece invisivcl para nós todo
e qualquer fundamento do movimento e da transformação (a
sucessão de pensamentos, de sentimentos não é senão o tomar-
-se visível desses pensamentos e sentimentos na consciência; é
completamente invcrossimil qu.c essa sequência tenha algo em
comum com um encadeamento causal: a consciência nunca nos
fornece um exemplo de causa e de efeito)- - -
14 (1 46)
Ciência contra filosofia
Os equívocos descomunais:
1) a absurda superestimaçào da consciência, fazendo dela
uma unidade, fazendo dela uma essência, "o esp[rito",
"a alma", algo que sente, pensa, quer -
2) o esplrito como causa, a saber, por toda parte onde a con-
sonância a fins, o sistema, a coordenação se mostram
3) a consciência como a forma ating[vel mais elevada,
como o modo supremo do ser, como "Deus"
4) a vontade inserida por toda parte, onde há um efeito
5) o "mundo verdadeiro" como mundo espiritual, como
acessível por meio de fatos da consciência
6) o conhecimento absolutamente como capacidade da
consciência, onde efetivamente há conhecimento
Consequências:
todo progresso reside no progresso em direção à consciên-
cia; todo retrocesso, em tomar-se inconsciente
298 FRIEORICH NIETZSCHE

As pessoas aproximam-se da realidade, do "ser verdadei-


ro" por meio da dialética; as pessoas distanciam-se dele por meio
dos instintos, dos sentidos, do mecanismo...
Dissolver o homem em espírito significaria tomá-lo Deus:
Deus, vontade, bens - um
Tudo o que é bom precisa provir da espiritualidade, precisa
ser um fato da consciência
O progresso em direção ao melhor só pode ser um progres-
so no tomar-se co11scie11te
O tomar-se inconsciente era considerado uma decadência
nos desejos e se11tidos - como animalização ...
A luta contra Sócrates, Platão, contra o conjunto das esco-
las socráticas parte do instinto p,rofund.o de que não se aprimora
o homem, quando se lhe apresenta a virtude como demonstrável
e como exigindo fundamentos ...
Por fim, há o fato mesquinho de que o instinto agonal im-
pele todos esses dialéticos natos a glorificar a sua capacidade
pessoal como propriedade suprema e a apresentar todos os ou-
tros bens restantes como condicionados. O espírito a11ticie11tifico
dessa "filosofia" como um todo: ela quer manter a razão.

14 (147)
A luta da ciência
Sofistas
Os sofistas não são outra coisa senão realistas: eles formu-
lam todos os valores e as práticas comuns e correntes no n!vel
hierárquico dos valores - eles têm a coragem que é própria a
todos os espíritos fortes, para saber de sua imoralidade...
Será que se acredita no fa'to de todas essas pequenas cida-
des livres gregas, que teriam adorado se devorar mutuamente por
fúria e ciúme, terem sido guiadas por principies filantrópicos e
justos? Será que se faz uma objeção a Tucídides por seu discurso
colocado na boca dos emissários atenienses falar de uma nego-
ciação com os mélios sobre decE!nio ou submissão?
Em meio a essa tensão abominável, falar de virtude só era
possível para um completo tartufo - ou para pessoas alijadas,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 299

eremitas, fugitivos e emigrantes da real.idade... todas essas pesso-


as que negaram, para poderem elas mesmas viverem -
Os sofistas eram gregos: quando Sócrates e Platão toma-
ram o partido da virtude e da justiça, eles eram judeus ou alguma
coisa assim que não dizer - A tática de Grote para a defesa dos
sofistas é falsa: ele quer elevá-los à categoria de homens dignos
e estandartes da moral - mas sua honra foi não produzir engodos
com grandes palavras e virtudes ...

14 (148)
Parmênides disse que "não se pensa aquilo que não é" - nós
estamos no outro fim e dizemos "o que pode ser pensado precisa
seguramente ser uma ficção". O pensamento não tem nenhuma
pega para o real, mas apenas p31'3 - - -

14 (149)
Os discipulos de Pirro também se ocuparam com osjudeus,
a saber, aquele Hecateu de Abdera, que viveu na corte egípcia e
escreveu sobre a filosofia dos egípcios.

14 (150)
"Para a vida prática, uma crença é necessária"

14 (151)
o "aprimoramento"
Moral como decadência
A ilusão geral e o ilusionismo no campo do assim chama-
do aprimoramento moral. Não acreditamos que um homem se
transforme em outro, se ele já não for esse outro: ou seja, se ele
não for, como ocorre de uma maneira bastante frequente, uma
pluralidade de pessoas, ao menos uma pluralidade de pontos de
partida para pessoas. Nesse caso, alcança-se o fato de outro papel
ganhar o primeiro plano, de "o antigo homem" ser empurrado
para trás ... O aspecto se altera, não a essência... Mas mesmo isso
não é sempre alcançado, o fato de se suspender o hábito de certo
fazer, de se tomar a melhor razão para tanto. Quem é criminoso
300 FRIEDRICH NIETZSCHE

<por> destino e capacidade não desaprende nada, mas sempre


aprende a mais: e uma longa privação exerce até mesmo o efeito
de um tônico para o seu talento... O fato de alguém cessar de
fazer certas ações é um mero /atum brutum, que admite a in-
terpretação mais diversa. Para a sociedade, é precisamente isso
apenas que tem um interesse, o ifato de alguém não realizar mais
certas ações: ela o retira para esse fim das condições, nas quais
ele pode realizar certas ações: em todo caso, isso é mais sábio do
que tentar o impossivel, a saber, quebrar a fatalidade de seu ser-
-d~tal-e-ta.1-modo.
A Igreja - e ela não fez nada além de liberar e herdar a fi.
losofia antiga nesse ponto -, partindo de outro critério valorativo
e querendo salvar uma "alma", a "graça" de uma alma, acredita,
por um lado, na força expiatóriai do castigo e, com isso, na força
purgatória do perdão: as duas são ilusões do preconceito reli-
gioso - o castigo não expia, o perdão não elimina, o que é feito
não é desfeito. Com o fato de alguém esquecer algo ainda se está
longe de alcançar o fato de algo não mais existir... Uma ação
retira as suas consequências, no homem e fora do homem, sem
levar em conta se essa ação é considerada como punida, "expia-
da", "perdoada" ou "eliminada", sem levar em conta se a própria
Igreja avançou entrementes seus. criminosos e os transformou em
santos. A Igreja acredita em coi:sas que não há, em "almas"; ela
acredita em estados que não há, em pecado, em redenção, em
salvação da alma; ela permanece presa por toda parte na superfi-
cie, junto a sinais, gestos, palavras, emblemas para os quais ela
oferece uma interpretação arbitrária: ela possui um método con-
sumado da produção de moedas falsas psicológicas.

14 (152)
Vontade de poder como conhecimento
não "conhecer", mas esquematizar, impor tanta regularida-
de e formas ao caos quanto seja suficiente para o nosso careci-
mento prático.
Na formação da razão, da lógica, das categorias, esse care-
cimento se tomou normativo: o carecimento não por "conhecer",
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 301

mas por subsumir, por esquematizar, com a finalidade do enten-


dimento, do cálculo...
O retificar, a invenção do idêntico, do igual - o mesmo
processo, que toda impressão sensorial atravessa, marca o desen-
volvimento da razão!
Não foi uma "ideia" pree~stenteque trabalhou aqui: mas a
utilidade oriunda do fato de que, apenas se conseguirmos ver de
manei.ra rudimentar e igual as coisas, elas se tornarão calculáveis
e convenientes para nós ...
afina/idade na razão é um efeito, não uma causa: em todo
e qualquer tipo diverso de razão, para o qual há incessantemente
pontos de partida, a vida definha - ela se toma inabarcável - por
demais desigual -
As categorias são "verdades" apenas no sentido de que elas
são condicionantes para nós em termos vitais: tal como o espaço
euclidiano é uma tal "verdade" condicionada. (Dito em si, uma
vez que ninguém sustentará a necessidade de que haja precisa-
mente homens, a razão é, assim como o espaço euclidiano, uma
mera idiossincrasia de determinadas espécies de animais e uma
ao lado de muitas outras... )
A coerção subjetiva a não poder contradizer aqui é uma co-
erção biológica: o instinto da utilidade de concluir do modo como
concluímos se encontra em nosso corpo, nós quase somos esse ins-
tinto... Que ingenuidade, porém, querer retirar dai uma demons-
tração de que possuiríamos com isso uma "verdade cm si"...
O não-poder-contradizer comprova uma incapacidade, não
uma "verdade".

É preciso não buscar o fcnomenalismo no lugar errado:


nada é mais fenomenal (ou mais claramente), nada é tanto uma
ilusão quanto esse mundo interior que observamos com o famoso
"sentido interno".
Nós acreditamos na vontade como causa até o ponto cm que
inserimos segundo a nossa experiência pessoal cm geral uma causa
no acontecimento (isto é, intenção como causa de acontecimentos- )
302 fRIEDRICH NIETZSCHE
·······························································································
Acreditamos que pensamento e pensamento, assim como
eles se seguem em nós sucessivamente, se encontram em um
encadeamento causal qualquer: o lógico em particular, que fala
de fato de casos puros que nunca ocorrem na realidade efetiva,
habituou-se com o preconceito de que pensamentos causam pen-
samentos - ele denomina isso - pensar...
Nós acreditamos - e mesmo os nossos 6si61ogos ainda
acreditam nisso - que prazer e dor são causas de reações, que
o sentido de prazer e dor é fornecer a ocasião para reações. Cla-
ramente durante milênios, as pessoas estabeleceram prazer e o
afastamento do desprazer como motivações para todo e qualquer
agir. Com alguma reflexão podemos admitir que tudo transcorre-
ria assim, segundo exatamente o mesmo encadeamento de causas
e efeitos, se esses estados de "prazer e dor" faltassem: e as pesso-
as simplesmente se iludem ao afirmar que causam alguma coisa:
- trata-se de fenômenos colaterais com uma finalidade totalmen-
te dive.rsa daquela que provoca reações; trata-se já de efeitos no
interior do processo introduzido da reação ...
Em suma: tudo o que é consciente é uma aparição final,
uma conclusão - e não causa nada - , toda sucessão na cons-
ciência é completamente atomística. E nós compreendemos o
mundo como causado por meio da concepção inversa - como se
nada atuasse e fosse real para além de pensamento, sentimento,
querer...

14 (153)
a ciência
Capítulo 1
Origem do "mundo verdadeiro"
O equivoco da filosofia baseia-se no fato de, ao invés de se
ver na lógica e nas categorias d:a razão meios para a reti6cação
do mundo com vistas a fms úteis (ou seja, "por princípio", meios
para uma falsificação útil), se ter acreditado possuir neles o cri-
tério da verdade ou da realidade respectivamente. O "critério da
verdade" era de fato meramente: a utilidade biológica de tal sis-
tema de falsificação principiai : e como um gênero animal não
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 303

conhece nada mais importante do que se conservar, poder-se-ia


falar aqui de fato de "verdade". A ingenuidade foi apenas tomar
a idiossincrasia antropocêntrica como medida das coisas, como
prumo sobre "real" e "irreal": em suma, absolutizar uma condi-
cionalidade. E, veja o que acontece, o mundo se dissociou agora
em um mundo verdadeiro e um mundo "aparente": e exatamente
o mundo, no qual o homem tinha inventado sua razão para morar
e para se erigir, exatamente esse mundo se viu descreditado. Ao
invés de utilizar as formas como motivo para tomar o mundo
conveniente e calculâvel, a astúcia louca dos filósofos descobriu
o fato de que, nessas categorias, estâ dado o conceito daquele
mundo, um conceito com o qual o outro mundo, o mundo no
qual se vive, não corresponde... Os meios foram mal compreen-
didos como critério de medida valorativo, mesmo como conde-
nação da intenção...
A intenção era se iludir de uma maneira útil: os meios para
tanto, a invenção de fónnulas e sinais, com a ajuda dos quais se
reduziu a pluralidade confusa a um esquema consonante a fins e
conveniente.
Mas, ai de nós! Agora se colocou em jogo uma catego-
ria moral: nenhum ser quer se iludir, nenhum ser pode se iludir
- consequentemente, só há uma vontade de verdade. O que é a
"verdade"?
O princípio de não contradição deu o esquema: o mundo
verdadeiro, para o qual se busca o caminho, não pode estar em
contradição consigo mesmo, não pode mudar, não pode vir a ser,
não tem nenhwna origem e nenhum fim.
Esse foi o maior erro que já se cometeu, a fatalidade pro-
priamente dita do erro sobre a terra: acreditava-se ter um critério
da realidade nas formas da razão, enquanto se tinham essas for-
mas para se assenhorear da realidade, para compreender mal a
realidade de uma maneira inteligente...
E, veja o que acontece: agora, o mundo se tomou falso,
e exatamente por causa das propriedades, que constituem sua
realidade, mudança, devir, pluralidade, oposição, contradição,
guerra
304 FRIEDRICH NI ETZSCHE

E, então, toda a fatalidade se fez presente:


1) como se livrar do mundo falso, do mundo meramente
aparente? (-ele era o efetivamente real, o único
2) como é que nós mesmos nos tornamos o máximo possf-
vel o oposto do mundo aparente? (Conceito do ser perfeito como
uma oposição em relação a todo ser real, mais claramente, como
contradição em relação à vida...
3) todo o direcionamento dos valores confluía para o calu-
niamento da vida
4) criou-se uma confusão do dogmatismo do ideal com
o conhecimento cm geral: de tal modo que o partido contrário
sempre nega, então, também a ciência
- - - o caminho para a ciência estava desse modo dupla-
mente bloqueado: por um lado, por meio da crença no mundo
verdadeiro e, por outro, por meio dos adversários dessa crença.
A ciência da natureza, a fisiologia estavam 1) condenadas
cm seu objeto, 2) inviabilizadas cm sua inocência...
No mundo efetivamente real, no qual simplesmente tudo
se encontra encadeado e condicionado, condenar algo e alijá-lo
por meio do pensamento significa alijar e condenar tudo.
A expressão "isso não deveria existir", "isso não deveria
ter acontecido" é uma farsa ... Se eliminarmos as consequências,
arruinamos a fonte da vida, caso queiramos destituir aquilo que
em um sentido qualquer é nocivo, destrutivo. A fisiologia o de-
monstra efetivamente melhor!

14 (154)
Moral como decadência
Vemos como a moral
a) envenena toda a concepção do mundo
b) rompe o caminho para o conhecimento, para a ciência
e) dissolve e mina todos os instintos efetivamente reais (na
medida em que ensina a experimentar as suas rafaes como imorais
Vemos um instrumento te:rrivel da decadência trabalhando
diante de nós, que se mantém .com os nomes e os gestos mais
sagrados
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 305

14 (155)
decadência
Religião como decadência
Contra o remorso e seu tratamento puramente psicológico
(Aconselho o tratamento do remorso oriundo da voz da cons-
ciência com o método de Mitche/1 - - )
Não conseguir fazer frente a uma vivência jâ é um sinal
de decadência. Esse abrir-se uma vez mais de feridas antigas, o
revolver-se em autodesprezo e em contrição é mais uma doença,
da qual jamais pode surgir a "salvação da alma", mas sempre
apenas uma nova forma da doença da alma ...
esses "estados de redenção" no cristão são meras mudan-
ças de um estado doentio e, aliás, do mesmo estado doentio - in-
terpretação da crise epiplética sob determinada fórmula, que não
dá a ciência, mas o desvario religioso.
está-se bem de um modo doentio quando se está doente ...
computamos agora a maior parte do aparato psicológico com oqual
o cristianismo trabalhou entre as formas da histeria e da epilepsia.
toda a práxis da reprodução psíquica precisa ser reconduzida
a uma base fisiológica: "o remorso" como tal é um obstáculo para
a convalescença - é preciso buscar pesar tudo por meio de novas
ações e o mais rápido possível a enfermidade da autotortura ...
dever-se-ia difamar a prática puramente psicológica da
Igreja e das seitas como pondo em risco a saúde...
não se cura um doente por meio de orações e conjuração
de maus espíritos: os estados da "calma" que entram em cena sob
tais efeitos estão bem distantes de despertar confiança no sentido
fisiológico ...
somos saudáveis quando somos capazes de rir de nossa serie-
dade e afã, no momento em que uma peculiaridade qualquer de nossa
vida nos hipnotiza de tal forma, qUl3ndo sentimos junto à dor da cons-
ciência moral algo como o que se dá na mordida de um cão contra
uma pedral.Is - quando nos envergonhamos de nosso remorso -

235 N.T.: Há um Jogo de palavras lntrad utlvel aqui. Em verdade, o termo alemão
para remorso, o termo Gewlssenôlss, significa literalmente uma mordida
306 fRIEDRICH NIETZSCHE

A práxis até aqui, a práxis puramente psicológica e reli-


giosa, só tinha em vista uma transformação dos sintomas: ela
restaurava um homem quando ele se curvava diante da cruz, e
fazia juramentos de que seria um bom homem ... Mas um crimi-
noso, que retém seu destino com certa seriedade mais sombria e
não calunia em seguida a sua ação, tem mais saúde da alma... Os
criminosos, com os quais Dostoiévski viveu conjuntamente na
penitenciária, eram todos particularmente naturezas inquebrantá-
veis - eles não são cem vezes mais valorosos do que um cristão
"abalado"?

14 (156)
A vontade de poder
Tentativa
De uma transvaloração de todos os valores
Primeiro capitulo
o mundo verdadeiro e o mundo aparente
Segundo capitulo
como tal equivoco é possivel? O que significa o querer
compreender mal a vida?
Critica aos filósofos, como tipos da decadência.
Terceiro capítulo
A moral como expressão da decadência.
Critica do altruí.smo, da compaixão, do cristianismo, da
dcssensorialização
Quarto capitulo
Não há nenhum ponto de parte para uma posição oposta?
1) Algo pagão na religião
2) "a arte"
3) Estado
A guerra contra eles: o que co11spira sempre contra eles...

da consciência. Neue sentido, Nietzsche apro,clma a condição da saúde ao


que acontece 00m um cao quando ele morde uma pedra: ele se vê Imedia•
tamente obrigado a soltar, Se a consciência moral morde um homem saudá·
vel, ela também depora com uma pedro, lmaleável para a sua mordida.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 307

Quinto capítulo
Crítica do presente: a que ele pertence?
seu emblema niilista
seus tipos afirmativos: é preciso conceber o fato descomu-
nal de que ex.iste uma boa consciência da ciência ...
Sexto capítulo
A vontade de poder, como vida
Sétimo capítulo
Nós, os hiperbóreos.
Posições puras e absolutas, por exemplo,felicidade! ! ! Por
exemplo, história, gozo descomunal e triunfo no final, ter sins e
nãos puros e claros ... Redenção da incerteza!

14 (157)
Moral como decadência decadência
"Sentidos", "Paixões"
Ome<!o ruªntç dos sentidos, diante dos desejos, diante das
paixões, quando ele chega ao ponto de desaconselhá-los, já é um
sintoma de fraqueza: os meios extremos caracterizam sempre es-
tados anormais. O que falta aqui, o que está aqui respectivamente
esboroado, é a força para a inibição de um impulso: quando se
tem o instinto de precisar ceder, isto é, de precisar reagir, então
se faz bem cm evitar as ocasiões (as "seduções").
Um "estimulo dos sentidos" só é uma sedução quando se
trata de um ser cujo sistema é por demais facilmente móvel e de-
terminável: no caso oposto, em meio a uma grande lentidão e
dureza do sistema, estimulos fortes são necessários para colocar
em curso as funções...
A d.igressão só é para nós uma desculpa contra aquilo que
não tem nenhum direito a ela; e quase todas as paixões acabam
caindo em má fama justamente por causa daqueles que não são
fortes o suficiente para voltá-las para a sua utilidade -
É preciso entender que pode ser empregado contra a pai-
xão o que precisa ser empregado contra a doença: apesar disso
- não podemos prescindir da doença e menos ainda da paixão...
Nós precisamos do anormal, nós damos à vida um choque
descomunal por meio dessas grandes doenças ...
308 FRIEDRICH NIETZSCHE

•••
Em particular, é preciso distinguir
1) a paixão dominante, que traz consigo até mesmo a forma
suprema da saúde em geral: aqui, a coordenação dos sistemas in-
ternos e seus trabalhos em um serviço é alcançada da melhor ma-
neira possível - mas essa é quase a melhor definição da saúde!
2) a oposição das paixões, a duplicidade, triplicidade, plu-
ralidade das "almas em um peito": faz muito mal à saúde, impli-
ca a ruína interna, é dissolutora, revela e intensifica uma divisão
e um anarquismo interiores - : a não ser que uma paixão se tome
finalmente senhora. Retomo da saúde -
3) a justaposição, sem ser uma oposição e uma colaboração:
com frequência periódica, e, então, logo que ela encontra uma or-
dem, também saudável... Os homens mais interessantes pertencem a
esses contextos, os camaleões; eles não estão em contradição consi-
go, eles são felizes e seguros, mas não possuem nenhum desenvolvi-
mento- seus estados residem uns ao lado dos oulros, ainda que este-
jam sete vezes cindidos. Eles mudam, eles não se transfonnam ...

14 (158)
Moral como decadência
O "homem bom" como tirano
A humanidade sempre repetiu o mesmo erro: o fato de ela
fazer de um meio para viver um ,critério de medida da vida
: o fato de, ao invés de encontrar na elevação suprema da
própria vida, no problema do crescimento e do esgotamento, a
medida, ela ter utilizado os meios para uma vida totalmente de-
terminada à exclusão de todas as outras formas da vida, cm suma,
à critica e seleção da vida
: isto é, o homem ama finalmente os meios em virtude de-
les mesmos e os esquece como meios: de tal modo que eles ga-
nham a consciência agora como metas para ele, como critérios de
medida para finalidades ...
: ou seja, determinada espécie de homem trata suas con-
dições existenciais como condições normativamente impostas,
como "verdade", "bem", "perfeição": ela tiraniza ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 309

: essa é uma forma da crença, do instinto de que uma espé-


cie de homem não perceberia a condicionalidade de sua própria
espécie, sua relatividade em comparação com outras espécies:
: ao menos parece que se chegou ao fim com uma espécie
de homem (povo, raça), quando ela se toma tolerante, admite
direitos iguais e não pensa mais em querer ser senhora -

14 (159)
Religião como decadência
Critica da crença
Convicção e mentira
1) ''Entre uma mentira e uma convicção há uma oposição":
não nenhuma maior...
2) Mas foi dito com razão que convicções são inimigos
mais perigosos da verdade do que mentiras (Humano,
demasiadamente humano)
3) Será que a convicção anteposta não precisa ser contada
entre os inimigos da verdade? E entre os seus inimigos
mais perigosos?
Toda convieção tem sua história, suas formas prévias,
suas tentativas e erros: ela se toma uma convicção, depois de
não o ser por um longo tempo, por um tempo dificil de imagi-
nar mais longo...
entre esses estados embrionários da convicção não poderia
estar também a mentira?...
ela precisa, com frequência, de uma mudança pessoal (-
somente no filho aquilo que no pai era ainda uma tendência se
transforma em convicção - )
Qual o problema de um mentiroso nos vender um erro
como se ele fosse uma verdade? Sua "razão prática" (- sua van-
tagem, dito em termos populares)
Qual o problema de se precisar decidir entre possibilidades
diversas? Sua razão prática, sua vantagem...
Qual o problema de se escolher de tal e tal modo entre di-
versas hipóteses? A vantagem.
Que diferença resta entre alguém convencido e alguém en-
ganado por uma mentira? Nenhuma, se ele for bem enganado.
310 fR IEORICH NIETZSCHE

O que importa o fato de que o que detennina todos os filó-


sofos ao invés de se considerar as suas convicções como verda-
des? Sua vantagem, sua "razão prática"
A ficção, a utilidade, a suposição, a probabilidade, a certe-
za, a convicção - uma história do páthos interior, cm cujo início
se encontra a mentira, seu Deus...
"Quero tomar algo por verdadeiro": trata-se aí do instinto
da verdade ou será que não se trata precisamente de outro ins-
tinto, que age muito pouco rigorosamente com a verdade, mas
conhece a vantagem que a crença traz consigo?...
Supondo que se tenha uma vantagem em mentir para si
mesmo, em que se diferencia o páthos da automendacidade do
páthos da convicção?...
Na crença, tal como o cristianismo <a> compreende, o que pas-
sa a dominar é a inteligência ou a verdade? A demonstração da força
(isto é, das vantagens que urna crença traz consigo), ou das---
Eoque faz os mánires é o instinto da verdade ou, inversamen-
te, uma falta de organização interior, a falta de tal instinto? Nós con-
sideramos os mártires uma espécie inferior: não faz sentido algum
demonstrar uma convicção; mas o que importa é demonstrar que se
tem o direito de ter uma convicção... A convicção é uma desculpa,
um ponto de interrogação, um défi,236 tem-se de demonstrar que não
se está apenas convencido - de que não se é apenas louco...
A morte na cruz não demonstra nenhuma verdade, apenas
uma convicção, apenas uma idiossincrasia (- um erro bastante
popular: ter a coragem para a sua convicção - ? Mas ter a cora-
gem para atacar a sua convicção!!!

14 (160)
Religião como decadência - a convicção
Critica à mo:rtc sacrificial
Nós morrerlamos hoje po:r algumas coisas, sem fazer esse
sacrifício de maneira muito festiva, nos é estranho realizar um
culto idolátrico com tais coisas, simplesmente porque elas ex i-

236 N.T.: Em franeês no original: um desafio.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 311

gem homens... A famosa "terra pátria" é paga bem caro: a ainda


mais famosa "ciência" que, como pressuponho, ainda poderia se
mostrar algum dia até mesmo como mais dispendiosa do que o
conceito "terra pátria"
Uma morte por um - - -
É necessário ter razão para continuar com a razão? Ao con-
trãrio! E abstraindo-se daí, isso se chama ser imodesto. Não se
precisa querer honras demais ... Mas todos esses grandes sábios
eram modestos: - eles simplesmente continuavam com a razão...
Vós achais que uma coisa se torna honrosa pelo fato de sua
honra ser paga com vossa vida? ... Um erro que se torna honroso
é um erro que possui mais uma arte da sedução! Vós acreditais
que desejaremos vos encorajar a uma morte sacrificial por vossa
"verdade"?... Exatamente essa foi a burrice histórica de todos os
pcrsecutores: eles obrigaram seus adversários a se tornarem he-
róis ... eles transformaram toda burrice em fetiche para a humani-
dade ... A mulher ainda se encontra hoje de joelhos diante de uma
doutrina cujo mestre morreu na cruz... A cruz é uma prova?
Certo grau de crença nos é suficiente hoje como desculpa
contra aquilo em que se acredita, ainda mais como ponto de inter-
rogação cm relação à saúde espiritual do crente: "as convicções
firmes como a rocha" pertencem quase sempre ao manicômio.

14 (161)
Não pretendo de maneira alguma, como alguém que estâ
em condições de uma vez mais colocar as coisas cm ordem que
ele um dia deixou passar, ir no tempo certo para uma boa escola.
Alguém assim não conhece a si mesmo; ele passa pela vida sem
ter aprendido a andar; o músculo dormente revela-se ainda em
todo passo. Ao mesmo tempo, a vida é tão misericordiosa para
resgatar essa dura escola: anos a fio de uma enfermidade talvez,
que desafia a mais extrema força de vontade e autossuficiência;
sem uma situação de emergência que repentinamente irrompe,
ao mesmo tempo para a mulher e para a criança, uma situação
que impõe uma atividade, que dá uma vez mais energia para as
veias adormecidas e reccnquista para a vontade de vida a lena-
312 FRIEDRICH NIETZSCHE

cidade ... Sob todas as circunstâncias, o mais desejável continua


sendo uma disciplina rígida no tempo certo, ou seja, em uma
idade ainda na qual dâ orgulho ver muitas coisas serem exigidas
de si. Pois isso distingue a escol.a rígida como uma boa escola de
todas as outras: o fato de se exigir muito; o fato de se exigir rigo-
rosamente; o fato de o bom, o distinto mesmo ser exigido como
normal; o fato de o elogio ser rato, de faltar a indulgência; o fato
de a repreensão ganhar voz de maneira aguda, objetiva, sem levar
em conta talento e origem. Tem-se necessidade de tal escola em
todos os aspectos: isso é válido tanto para o elemento corporal
quanto para o espiritual: seria fatídico querer fazer aqui cisões!
A mesma disciplina toma apto o militar e o erudito: e, visto mais
de perto, não há nenhum erudito hábil, que não tenha no corpo
os instintos de um habilidoso militar... manter-se na fila e na or-
dem, mas ser capaz de avançar a qualquer momento; o perigo de
privilegiar o conforto; não pesar o pen:nitido e proibido em uma
balança de comerciante; ser mais inimigo do mesquinho, esperto,
parasita do que do mal. ..
- O que se aprende em tal escola dura? Obedecer e coman-
dar - - -

14 (162)
Fi/6sofo
Pirro, o homem mais suave e mais paciente que jamais vi-
veu entre os gregos, um budista. apesar de grego, um Buda mes-
mo, só foi tirado do sério uma única vez; por quem? - por sua
irmã, eorn a qual ele vivia: ela era parteira. Desde então, o que os
filósofos mais temem passou a ser a irmã - a irmã! bmã I Soa tão
tenivel! - e a parteira!... (origem do celibato).

14 (163)
(Sobre o capitulo: religião como decadência)
A moral religiosa
O afeto, o grande desejo, as paixões do poder, do amor, da
vingança, da posse - : os moralistas querem extingui-los, purifi-
car a alma deles
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1837-1889 {Vol. VII) 313

A lógica é: esses desejos promovem com frequência uma


grande desgraça - consequentemente, eles são maus, reprová-
veis. O homem precisa se livrar deles: antes disso, ele não pode
ser um bom homem ...
Essa é a mesma lógica que: "se um membro te irrita, ar-
ranca-o fora". No caso particular, tal como acontece com aquela
perigosa "menininha pura e ingênua do interior", o fundador do
cristianismo aconselhava seus discípulos à práxis. No caso da
irritação sexual, porém, não se segue a isso infelizmente apenas
a falta de um membro, mas também o fato de o caráter do homem
ser castrado... E o mesmo vale para a loucura dos moralistas,
que, ao invés da domesticação, exige a extirpação das paixões.
Sua conclusão é sempre: só o homem castrado é o bom homem.
Ao invés de tomar a seu serviço o seu poder, esse modo de
pensar maximamente míope e degenerado, o modo de pensar da
moral, procura esgotar as grandes fontes de força, aquelas corre-
deiras com frequência tão perigosas e imponentes da alma.
14 (164)
Os curandeiros cristãos da moral
Compaixão e desprezo seguem-se em uma alternãncia rá-
pida, vez por outra me sinto indignado, como se estivesse diante
da visão de um belo crime. Aqui, o erro se transformou em dever
- cm virtude-, o engano se transformou em jeito, o instinto de des-
truição foi sistematizado como "redenção"; aqui, a partir de cada
operação surgiu um ferimento, uma extirpação mesmo de órgãos,
cuja energia é o pressuposto de todo retomo da saúde. E, na me-
lhor das hipóteses, não há salvação, mas uma série de sintomas
do mal é apenas trocada por outra... E esse disparate perigoso, o
sistema da profanação e da mutilação da vida, é considerado sa-
grado, intocável; viver a seu serviço, ser instrumento dessa medi-
cina, ser sacerdote distingue, torna honnível, torna sagrado e por
si mesmo intocável. Apenas a diivindade pode ser a autora dessa
medicina suprema: a redenção só é concebível como revelação,
como uma espécie de graça, como presente imerecido, que é feito
para a criatura.
314 FRIEORICH NIETZSCHE

Primeira proposição: a saúde da alma é vista como doença,


com desconfiança ...
Segunda proposição: os pressupostos para uma vida forte
e florescente, para os desejos e paixões fortes, são considerados
como objeções a uma vida forte e florescente
Terceira proposição: tudo aquilo a partir do que um perigo
ameaça o homem, tudo aquilo que pode se assenhorear dele e
pode levá-lo a perecer, é mau, é reprovável - precisa ser arranca-
do de sua alma com a raiz.
Quarta proposição: o homem, tornado inofensivo, derru-
bado e forçado à humildade e à modéstia, consciente de suas fra-
quezas, o "pecador" - é o tipo mais desejável, aquele que tam-
bém se pode produzir com alguma cirurgia da alma ...

14 (165)
A coragem.
[.
Distingo a coragem diante de pessoas, a coragem diante de
coisas e a coragem diante do papel. Este último tipo de coragem
foi, por exemplo, a coragem de David Strauss. Distingo, uma
vez mais, a coragem diante de testemunhas e a coragem sem tes-
temunhas: a coragem de um cristão, de um crente cm Deus em
geral, nunca pode prescindir de testemunhas - já por meio dal,
ela se mostra como degradada. Distingo, finalmente, a coragem
por temperamento e a coragem :por temor ante o temor: um caso
particular desta última espécie de coragem é a coragem moral.
Além disso, há ainda a coragem por desespero.

Wagner como sedutor.


2.
Wagner tinha essa coragem. Sua situação diante da música
era, no fundo, desesperada. Faltavam-lhe as duas coisas capazes
de tomar alguém um bom músico: natureza e cultura, a deter-
minação prévia para a música e o cultivo e a educação para a
música. Ele tinha coragem: ele fez dessa falha um princípio - ele
inventou para si um gênero musical. A "música dramática", tal
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 315

como ele a inventou, é a música ,que ele podia fazer... seu concei-
to são os limites de Wagner.
E as pessoas o compreenderam mal - as pessoas o com-
preenderam mal? ... Cinco sextos dos artistas modernos cairam
em sua annad.ilba. Wagner é seu salvador: aliás, cinco sextos
representam o "número mínimo". Sempre que a natureza se
mostrou inexorável e sempre que, por outro lado, a cultura per-
maneceu um acaso, uma tentativa, um diletantismo, o artista
se voltou com instinto, o que e·stou dizendo?, com entusiasmo
para Wagner: "em parte, ele o atraiu; em parte, ele aí caiu",
como diz o poeta.

2.
O sucesso de Wagner é um grande sedutor. Se pensarmos
no caso em que esse sedutor aprende a falar, em que ele se coloca
na figura de um amigo inteligente e de um conselheiro moral de
jovens músicos, que portam uma pequena fatalidade na profun-
didade de seu cu - e já o ouvimos falar, cm termos familiares,
pequeno-burgueses, de uma tolerância angelical para todas as
"pequenas fatalidades" ...

14 (166)
Motivo para um quadro. Um motorista. Paisagem de inver-
no. O motorista derruba com uma expressão do mais irreverente
cinismo a sua água sobre o seu próprio cavalo. A pobre criatu-
ra violentada movimenta a cabeça por isso e olha - agradecida,
muito agradecida ...

14 (167)
Wagner como problema.
Wagner o ator.
Isso se tomou popular
Wagner como modelo.
Wagner como sedução.
Música como mimica. Todo pensamento - - -
316 fR IEDRICH NIETZSCHE

14 (168)
O mundo verdadeiro e o mundo aparente
Esboço de um primeiro capítulo
A.
As seduções que partem desse conceito são de três tipos:
um mundo desconhecido: - somos aventureiros, curiosos- o
que é conhecido parece nos deixar cansados (- o perigo do conceito
reside no fato de "este" mundo se nos insinuar como conhecido ...
um outro mundo, onde as coisas são diversas: - verifica-se
por meio de um novo cálculo a.lgo em nós, nossa entrega silen-
ciosa, nosso silêncio perde nesse cálculo seu valor - talvez tudo
fique bem, talvez não tenbamo:s alimentado esperanças vãs... o
mundo, onde as coisas são diversas, onde nós mesmos - quem
sabe? - somos diversos...
um mundo verdadeiro: temos aqui o golpe e o ataque mais
estranhos, que podem ser feitos a nós; há tanta coisa incrustada
na palavra "verdadeiro" que involuntariamente também presen,
teamos ao "mundo verdadeiro": o mundo verdadeiro também
precisa ser um mundo veraz, um mundo tal, que não nos engane,
que não nos faça de tolos: acreditar nele é quase precisar acredi-
tar nele (- por decoro, como acontece entre seres confiáveis - )
o conceito do ''mundo desconhecido" nos insinua este
mundo como "conhecido" (- como entediante - )
o conceito do "outro mundo" se insinua, como se o mundo
pudesse ser diverso - suspende :a necessidade e o fato (- inútil se
entregar, se adaptar - )
o conceito do "mundo verdadeiro" insinua este mundo
como um mundo inverídico, enganador, fraudulento, inautêntico,
inessencial - e, consequentemente, também como um mundo não
afeiçoado à nossa utilidade (- desaconselhável se adaptar a ele,
melhor: contrariar a ele)
nós nos subtraiamos, portanto, de três formas a este mun-
do: com nossa curiosidade, como se a parte mais interessante
estivesse em outro lugar
: com nossa rendição, como se não fosse necessário se ren-
der - como se este mundo não fosse nenhuma necessidade de
último grau
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 317

: com nossa simpatia e atenção: como se este mundo não o


merecesse, como impuro, como improbo em relação a nós ...
Em suma: somos revoltados de uma maneira tripla: fize-
mos um x para a crítica do "mundo conbecido"
<B.>
Primeiro passo da circunspecçào: conceber em que medi-
da somos seduzidos -
a saber. as coisas poderiam ser em si exatamente inversas.
a) o mundo desconheciá,o poderia ser constitu.ido de tal
forma a nos dar prazer com este mundo - como uma
forma talvez estúpida e menor da existência
b) o outro mundo, para não falar que ele levaria em conta
nossos desejos, os quais não encontrariam aqui nenhu-
ma satisfação, poderia estar concomitantemente sob a
massa que toma possivel para nós este mundo: tomar
contato çom ç!e sçria wn meio (!ç nos S!ltisfazer
c) o mundo verdadeiro: mas quem nos diz propriamente
que o mundo aparente precisaria ser menos valoroso do
que o verdadeiro? Nosso instinto não contradiz esse ju-
ízo? O homem não cria eternamente para si um mundo
ficcional, porque ele quer ter um mundo melhor do que
a realidade? ...
Sobretudo: como é que chegamos ao ponto de conceber que
o mundo verdadeiro não é o nosso mundo? ... de início, o outro
mundo poderia ser muito bem o "aparente"... de fato, os gregos,
por exemplo, imaginaram um reino das sombras, uma existência
aparente ao lado da existência verdadeira - E, finalmente: o que
nos dá um direito de estabelecer por assim dizer graus da reali-
dade? Isso é algo diverso de um mundo desconhecido, isso jâ é
querer-saber-algo acerca do desconhecido.
N.B. O "outrO" mundo, o mundo desconhecido - muito
bem! Mas dizer "mundo verdadeiro", ou seja, "saber algo sobre
ele" - isso é o contrârio da suposição de um mundo x...
Em suma: o mundo x poderia ser mais entediante, mais
inum.ano e indigno em todos os sentidos do que este mundo.
318 FRIEDRICH NIETZSCHE

As coisas seriam diversas, se af111llássemos que haveria


mundos x, isto é, todo e qualquer mundo possivel ainda afora
este. Mas isto nunca/oi afirmado...
O mundo "verdadeiro" = o mundo veraz, que não nos
engana, que é sincero
= o mundo correto, que é o único
em questão
= o mundo autêntico, em oposi-
ção a algo imitado e falsificado

e.
Problema: por que a representação do outro mundo sem-
pre surgiu para demérito, respectivamente para uma crítica deste
mundo - para onde é que isso aponta?
A saber: um povo, orgulhoso de si, que está no despontar
da vida, pensa o ser de maneira diversa sempre como ser inferior,
sem valor; ele considera o muado alheio, desconhecido, como
seu inimigo, como seu oposto, ele se sente sem curiosidades, em
plena recusa do estrangeiro...
um povo não admitiria que outro povo fosse o "povo ver-
dadeiro" ...
já o fato de tal distinção ser possível - o fato de se tomar esse
mundo por "aparente" e aquele por verdadeiro é sintomático
O rebanho responsável pelo surgimento da representação:
"outro mundo"; o filósofo, que inventa um mundo racional, no
qual a razão e as funções lógica.s são adequadas: - daqui provém
o mundo "verdadeiro"
o homem religioso, que <inventa> um "mundo divino" -
daqui provém o mundo "desnaturalizado, contranatural".
o homem moral, que imagina um "mundo livre" - daqui
provém o mundo "bom, perfeito, justo, sagrado".
O que há de comum entre os três rebanhos responsáveis
pelo surgimento...
o equívoco psicológico ... :as confusões fisiológicas
"o outro mundo", tal como ele de fato aparece na história,
com que predicados - marcado com estigmas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 319
......................................................................•........................

filosófico
do preconceito religioso
moral
o outro mundo, tal corno ele se ilumina a partir desses fatos,
como um sinônimo do não ser, da não vida, do não-querer-viver...
Intelecção conjunta: o instinto do cansaço vila/ e não o
instinto da vida foi que criou o outro mundo
Co11sequéncia: filosofia, religião e moral são si11tomas da
decadência.
2• capítulo
Comprovação h.istórica de que a religião, a moral e a filo-
sofia são formas da decadência da humanidade.
3º capítulo
1) as razões, segundo as quais "este" mundo foi designado
como "aparente" fundamentam muito mais a sua realidade: - ou-
tro tipo de realidade é absolutamente indemonstrável.
2) as caracterlsticas, que se entregaram ao "ser verdadei-
ro" das coisas, são as características do não ser - construiu-se o
"mundo verdadeiro" a partir da contradição em relação ao "mun-
do efetivamente real": um "mundo aparente" é de fato um mundo
tal que envolve urna ilusão de ótica moral
3) Em suma: contar histórias fabulosas sobre outro mundo
que não este não faz sentido algum - supondo que um instinto
da calúnia, do apequenamento, da suspeição da vida nílo tenha
poder sobre nós: no último caso, vingamo-nos da vida com o
auxílio da fantasmagoria de uma "vida melhor" ...
4) Dividir o mundo em um mundo "verdadeiro" e um "aparen-
te" é urna sugestão da decadência: - avaliar a aparência como mais
elevada do que a realidade, tal como o faz o artista, não é nenhuma
objeção contra ela. Pois a aparência significa, aqui, apenas essa rea-
lidade urna vez mais na seleção, no fortalecimento, na correção... Ou
será que há arti.stas pessimistas? - O artista trágico é pessimista? ...

14 (169)
1) O mundo verdadeiro e o mundo aparente.
2) O filósofo corno tipo da decadência.
320 fR IEORICH NIETZSCHE

3) O homem religioso como tipo da decadência.


4) O homem bom como tipo da decadência
5) O contramovimento: a arre.
6) O elemento pagão na religião.
7) A ciência contra a filosofia.
8) Política.
9) Crítica do presente.
1O) O niilismo e sua imagem oposta: os que retomam.
11) A vontade de poder.

1) Supondo que ele fosse mais valoroso, por que ele deve-
ria ser mais real do que este mundo?
...a realidade é uma qualidade da perfeição? - Mas essa é
justamente aprova ontológica da existência de Deus ...
2) Supondo, porém, que ele seja verdadeiro, então ele po-
deria ser menos valoroso do que o nosso mundo ...

14 (! 70)
Os contramovimentos: a arte.
São os estados excepcionais que condicionam o artista: to-
dos aqueles estados que possuem um parentesco profundo com
fenômenos doentios e cicatrizar.am: de tal modo que não parece
possivel ser artista e não ser doente.
Os estados fisiológicos, que são cultivados no artista e
transfonnados por assim dizer em "pessoa", estados que se arrai-
gam em si com um grau qualquer no homem em geral:
1) a embriaguez: o sentimento elevado de poder; a obriga-
ção interna de fazer das coisas um reflexo da própria plenitude e
perfeição -
2) a agudeza extrema de certos sentidos: de tal modo que
eles compreendem - e criam... - uma linguagem de sinais total-
mente diversa - a mesma que aparece ligada a algumas doenças
nervosas - a mobilidade extrema, a partir da qual surge uma co-
mun.icabilidade extrema; o querer falar de tudo aquilo que sabe
dar sinais... uma necessidade de, por assim dizer, se libertar por
meio de sinais e gestos; uma capacidade de falar de si por meio de
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 321

centenas de meios linguísticos .... um estado explosivo - é preciso


pensar inicialmente esse estado como compulsão e impeto para
líberar por meio de todo tipo de trabalho muscular e mobilidade
a exuberância da tensão interna: em seguida, como coordenação
involuntária desse movimento em relação aos processos internos
(inlagens, pensamentos, desejos) - como uma espécie de auto-
matismo de todo o sistema museu.lar sob o impulso de estímulos
fortes que atuam vindo de dentro - incapacidade de impedir a
reação; o aparato de inibição, por assim dizer, suspenso. Todo
e qualquer movimento interno (sentimento, pensamento, afeto)
é acompanhado por transformações vasculares e, consequente-
mente, por transformações de cor, de temperatura, de secreção; a
força sugestiva da música, sua "sugestão mental";
3) o precisar-imitar: uma extrema irritabilidade, junto à
qual se comunica um modelo dado - um estado jã é desvendado
e apresentado a partir de sinais... Uma imagem, emergindo inter-
namente, já atua como movimento dos membros ... certa suspen-
são da vo.ntadc... (Schopenhauer!!!)
Uma espécie de surdez, ser cego para fora - o reino dos
estímulos admitidos é agudamente demarcado -
....
Isso distingue o artista do leigo (o artisticamente receptivo):
este tem no acolhimento o ápice de sua excitabilidade; o primeiro,
na doação - de tal forma que um antagonismo desses dois dons não
é apenas natural, mas também desejável. Cada um desses e~-tados
tem uma ótica invertida - exigir do artista que ele exercite a ótica
do que ouve (do critico -) significa e,dgir que ele se empobreça
e empobreça, também, as suas forças especificas... Acontece aqui
o mesmo que na diferença entre os sexos: não se deve exigir do
artista, que dá, que ele se tome mulher - que ele "receba"...
Nessa medida, nossa estética foi até aqui uma estética fe-
minina, uma vez que só os que fruem a arte formularam as suas
experiências cm relação a "o que é belo?". Em toda a filosofia
até aqui faltou o artista ... Este foi, como insinuou o que foi dito
anteriormente, um erro necessário; pois o artista, que começasse
322 FRIEORICH NI ETZSCHE

a conceber, se compreenderia mal com isso - ele não deve retor-


nar ao ver, ele não tem, de maneira alguma, de ver, ele tem de dar
- honra um artista ser incapaz da crítica... de outro modo, ele se
mostra de maneira parcial, ele se mostra como "moderno"...

14(171)
Religião como decadência
O sono como consequênci:a de todo esgotamento, o esgota-
mento como consequência de toda excitação exagerada...
A necessidade de sono, a divinização e a adoração do con-
ceito "sono" em todas as religiões e filosofias pessimistas -
O esgotamento é, nesse caso, um esgotamento da raça: o
sono, considerado fisiologicamente, é apenas uma alegoria de um
precisar repousar de um tipo muito mais profundo e longo ... Na
prática, trata-se da morte, que atua aqui de maneira tão sedutora
sob a imagem de seu irmão, o sono...

14 (172)
A monoma11ia religiosa aparece habitualmente sob a forma
da folie circulaire, m com dois estados contraditórios, o estado da
depressão e o estado da tonicidade.
Féré, p. 123.

14 (173)
A vontade de poder como vida
Psicologia da vontade de poder
Prazer e despra7..Cr
A dor é algo diverso do prazer - quero dizer, ela nao é o
seu contrário. Se a essência do prazer tiver sido designada de ma-
neira pertinente como um sentimento de mais poder (com isso,
como um sentimento de diferença, que pressupõe a comparação),
então a essência do prazer ainda não estâ definida com isso. As
falsas oposições, nas quais o povo e, consequentemente, a llngua
acreditam, foram sempre amarras perigosas presas em nossos

237 N.T.: Em francês no original: loucura circular.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 323

pés, amarras que interrompem o curso da verdade. Hã até mesmo


casos nos quais uma espécie de prazer é condicionada por certa
sequência rítmica de pequenos estímulos de desprazer: com isso,
alcança-se um rápido crescime:nto do sentimento de poder, do
sentimento de prazer. Esse é o caso, por exemplo, nas cócegas,
mesmo nas cócegas sexuais no ato do coito: vemos, desse modo,
o desprazer ativo como ingrediente do prazer. Parece que um pe-
queno obstáculo é superado e que se segue imediatamente uma
vez mais um pequeno obstáculo, que é uma vez mais superado
- esse jogo de resistência e vitória estimula maximamente aquele
sentimento conjunto de poder excessivo e supérfluo, que cons-
titui a essência do prazer. - Falta a inversão, uma ampliação da
sensação de dor por meio de pequenos estímulos prazerosos in-
troduzidos: prazer e desprazer não são justamente nada ao inver-
so. - A dor é um processo intelectual, no qual um juizo ganba voz
decididamente - o juízo "nocivo", no qual uma longa experiência
se acumulou. Em si, não há nenhuma dor. Não é a ferida que dói;
é a experiência de quais são as consequências terríveis que podem
ter uma ferida para o organismo como um todo, que fala sob a
figura daquele profundo abalo, que se chama desprazer (em meio
a influências nocivas que permaneceram desconhecidas para a
humanidade mais antiga, por exemplo, por parte de componentes
químicos combinados de maneira nova, também falta o enuncia-
do da dor - e nós estamos perdidos...). Na dor, o propriamente
especifico é sempre o longo abalo, o estremecimento: - não se
sofre por causa da dor (de um ferimento qualquer, por exemplo),
mas pela longa perturbação do equilíbrio, que entra em cena em
consequência daquele choque. A dor é um adoecimento do cen-
tro nervoso cerebral - o prazer não é de maneira alguma uma
doença ... - O fato de a dor ser a causa de movimentos contrãrios
tem, em verdade, a seu favor a aparência visual e até mesmo o
preconceito dos filósofos; em casos repentinos, porém, quando
se observa mais exatamente, o movimento contrário ocorre evi-
dentemente antes da sensação de dor. As coisas seriam terriveis
para mim se, em meio a um passo em falso, eu tivesse de esperar
até que o fato batesse no sino da consciência e um aceno fosse
324 fRIEDRICH NIETZSCHE

retomado por telégrafo, indicando o que precisaria ser feito ... Ao


contrário, distingo de maneira tão clara quanto possível o fato de
que só o movimento contrário do pé se segue para evitar a queda,
e, em seguida, a uma distância temporal passível de ser medida,
toma-se repentinamente sensivel uma espécie de onda dolorosa
na parte frontal da cabeça. Portanto, não se reage à dor. A dor é
projetada posteriormente no ponto ferido: - mas a essência dessa
dor local não permanece, apesar disso, a expressão do tipo do
ferimento local, trata-se de um mero sinal locativo, cuja força e
tonalidade são consonantes com. o ferimento, trata-se de um sinal
locativo que os centros nervosos receberam. O fato de a força
muscular do organismo diminuiir em consequência daquele cho-
que ainda não oferece de maneira alguma nenhum ponto de apoio
para se buscar a essência da dor em uma atenuação do sentimen-
to de poder... Reage-se, dito uma vez mais, não à dor: o desprazer
não é nenhuma "causa" de ações, a dor mesma é uma reação, o
movimento oposto é outra reação, anterior- os dois tomam o seu
ponto de partida de posições diversas. -

14 (174)
A vontade de poder como vida
O homem não procura o prazer e não evita o desprazer: é fá-
cil compreender que célebre preconceito estou contradizendo com
isso. Prazer e desprazer são meras consequências, meros fenôme-
nos paralelos - o que o homem quer, o que cada parte mínima de
um organismo vivo quer, é um ma.is de poder. Na aspiração a isso
se segue tanto prazer quanto desprazer; a partir daquela vontade,
ele busca resistência, ele precisa de algo que se contraponha. O
desprazer, como obstáculo à sua ·vontade de poder, é, portanto, um
fato normal, o ingrediente normal daquele acontecimento orgâni-
co; o homem não se afasta desse ingrediente, ele necessita dele
muito mais incessantemente: toda vitória, todo sentimento de pra-
zer, todo acontecimento pressupõe uma resistência superada.
Tomemos o caso mais simples, o caso da alimentação pri-
mitiva: o protoplasma estende os seus pseudópodes, a fim de bus-
car algo que resista a ele - não por fome, mas por vontade de
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 325

poder. Em seguida, ele faz a tentativa de superar isso que resiste,


de se apropriar dele, de incorpo.râ-lo: - aquilo que se denomina
"alimentação" é meramente um fenômeno secundário, uma apli-
cação útil daquela vontade originária de se tomar mais forte.
Não é possível considerar a fome como primum mobile: do
mesmo modo que não se pode considerar a autoconservação: a
fome concebida como consequência da subalimentação, ou seja:
a fome como consequência de uma vontade de poder que não se
assenhoreia mais.
A duplicidade como consequência de wna unidade fraca
não se trata de maneira alguma de uma reprodução de uma
perda - somente mais tarde, em consequência da divisão do tra-
balho, depois de a vontade de poder ter aprendido a tomar cami-
nhos completamente diversos para a sua satisfàção, a necessidade
de apropriação do organismo é reduzida à fome, à necessidade de
reposição do que se perdeu.
Portanto, o desprazer não tem de maneira alguma necessa-
riamente como consequência uma atenuação de nosso sentimen-
to de poder, de tal modo que, em casos medianos, ele age preci-
samente como estímulo desse sentimento de poder- o obstáculo
é o estimulo dessa vontade de poder.
Confundiu-se o desprazer com uma espécie do desprazer,
com o desprazer oriundo do esgotamento: este último desprazer
representa, de fato, uma diminuição e uma redução profundas da
vontade de poder, uma perda mensurável de força. Isso quer dizer
o seguinte: há o desprazer como estimulante para o fortalecimen-
to do poder e o desprazer depois de uma dissipação de poder. No
primeiro caso, um estímulo; no segundo, a consequência de uma
irritação exagerada... A incapacidade para a resistência é própria
do segundo desprazer: o desafio àquele que resiste diz respeito
ao primeiro tipo ... O prazer que só continua sendo experimentado
no estado do esgotamento é o adormecimento; o prazer no outro
caso é a vitória. ..
A grande confusão dos psi.oólogos consistia no fato de eles
não manterem separados esses dois tipos de prazer, o prazer do
adormecimento e o prazer da vitéria
326 fRIEDRICH NIETZSCHE

os esgotados querem tranquilidade, querem se espreguiçar,


querem paz, silêncio -
trata-se da felicidade das religiões e filosofias niilistas
os ricos e vivos querem vitória, adversários superados, trans-
bordamento do sentimento de poder sobre âmbitos mais amplos do
que até aqui:
todas as funções saudáveis do organismo têm essa necessidade
- e todo organismo, até a idade da puberdade, é um tal complexo de
sistemas que luta pelo crescimento dos sentimentos de poder---

14 (175)
Platão: ---
mas o Mam, diz: o ato, por meio do qual a alma aspira ao
desconhecido é uma lembrança da Swarga, da qual ela reteve
um rastro; tal como acontece quando se vê de maneira turva as
imagens ao acordar, que nos encontraram nos sonhos

14 (! 76)
Alcoolismo
O brâmane que se embriaga, cm esquecimento da substân-
cia divina, da qual sua pessoa é formada, decai para o nível do
Sudra impuro.
O dwidja que se entrega a bebidas fermentadas é queimado
internamente pelo fogo dessas bebidas. Ele se purifica, na medi-
da em que bebe urina cozida da.s vaca.s

14 (177)
É possível que ele salve uma vaca: essa ação de todas a
mais meritosa expia a morte de um brâm.ane.

14 (178)
Sacerdote
- O brâmane é uma autoridade neste mundo e no outro; o
brâmane é um objeto de veneração para os deuses.
O assassino de uma vaca deve permanecer três meses co-
berto com o couro dessa vaca e, então, passar três meses a ser-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 327

viço de um pastor de vacas. Em seguida, ele deve presentear o


brâmane com IOvaeas e um touro, ou, melhor ainda, com tudo
o que ele possui: assim, seu erro é expiado.
Quem mata um circunciáado se purifica por meio de uma
simples oferenda (enquanto matar em geral um animal requer
seis meses de penitência na floiresta, deixando o cabelo e a bar-
ba crescerem).

14 (179)
Sobre a práxis cristã
O homem não se conhecia fisiologicamente, durante toda a
cadeia dos milênios: ele também não se conhece ainda hoje. Sa-
ber, por exemplo, que se tem um sistema nervoso (- mas não uma
"alma") continua sendo sempre o privilégio dos mais instruídos.
Mas o homem não suspeita de que ele pode não saber aqui; - é
preciso ser muito humano para dizer "eu não sei", para se permi-
tir ignorâncias... supondo que ele sofra óu que ele esteja de bom
humor, então ele não duvida de que encontrará o fundamento
disso, contanto que procure. Portanto, ele o procura... Em verda-
de, ele não pode encontrar o fundamento, porque ele nem mesmo
suspeita onde é que ele teria de procurar... O que acontece? ... Ele
toma uma consequência de seu estado como a sua causa
por exemplo, uma obra empreendida com bom humor (em-
preendida no fundo, porque o bom humor já tinha dado coragem)
funciona: ecco,238, a obra é ofandamento, do bom humor...
De fato, o sucesso tinha sido, por sua ve·z, condicionado
pela mesma coisa que condicionara o bom humor - por meio da
coordenação feliz das forças e dos sistemas fisiológicos
Ele se sente mal: e, consequentemente, não consegue se
haver com uma preocupação, com um escrúpulo, com uma au-
tocritica ... Em verdade, o homem acredita que o seu estado ruim
seria a consequência de seu escrúpulo, de seu "pecado", de sua
"autocritica"...

238 N.T.: Em italiano no original: logo.


328 FRIEDRICH NIETZSCHE

Mas o estado da reprodução, frequente depois de um es-


gotamento e de uma prostração profundos, retoma. "Como é
possível que eu seja tão livre, tão desprendido? Trata-se de um
milagre, só Deus pode ter feito isso comigo". Conclusão: "ele
perdoou meu pecado"...
Daí se obtém uma prática: para estimular sentimentos li-
gados ao pecado, para preparar contrições, colocou-se o corpo
em um estado doentio e nervoso. A metodologia para tanto é co-
nhecida. Normalmente não se suspeita de que a lógica causal dos
fatos - tem-se uma interpretação religiosa para a mortificação
da carne, ela se mostra como fim em si, enquanto s6 vem à tona
como meio, a fim de tornar possí.vel aquela indigestão doentia do
remorso (a "ideia fixa" do pecad!o, a hipnotização da galinha por
meio da linha "pecado'')
O abuso do corpo gera o solo para a série de "sentimentos
de culpa"... isto é, um sofrimento geral, que será explicado...
Por outro lado, obtém-se do mesmo modo a metodologia
da "redenção": exigiu-se toda e qualquer cligressão do sentimen-
to por meio de orações, movimentos, gestos, conjurações - o es-
gotamento se segue, com frequ.ência de maneira abrupta, com
frequência de forma epiléptica. E, por detrás do estado de uma
profunda sonolência, surge a aparência da convalescença - dito
em termos religiosos: "redenção"

14 (180)
o maometismo, como uma religião para homens, possui
um desprezo profundo pela sentimentalidade e pela mendaci-
dade do cristian.ismo... de uma religião feminina, que é corno
ele o sente -

14 (181)
O homem religioso como tipo da decadência
os estados religiosos em seu parentesco com o desvario,
com a neurastenia
o momento em que a cri.se:religiosa se abate sobre um povo
- historicamente -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 329

a fantasia do homem religioso como a fantasia do exaspe-


rado e superexcirado
o "nervosismo moraf' do cristão
temos agora a tarefa de apresentar o fenômeno diflcil e am-
bíguo, não apenas para nós, do cristianismo.
Todo o treinamento cristão da penitência e da redenção
<é> concebido com uma folie circulaire239 efetivamente gerada;
normalmente só produtível em indivíduos já predestinados (asa-
ber, morbidamente constituídos).

14 (182)
Por que os fracos vencem.
Em suma: os doentes e fracos têm mais compaixão, são
mais "hwnanos" -
: os doentes e fracos têm mais espírito, são mais alternan-
tes, múltiplos, interessantes - cruéis: os doentes sozinhos é que
inventaram a maldade.
(um caráter prematuro do.entio é frequente em raquíticos,
escrofulosos e tuberculosos. - )
esprit: propriedade de raças tardias (judeus, franceses, chi-
neses) Os antissemitas não perdoam os judeus pelo fato de eles
terem "espírito'' - e dinheiro: o antissemitismo, um nome para os
"desvalidos")
: o louco e o santo - os dois tipos mais interessantes de
homem ...
em um parentesco íntimo, o gênio e os grandes "aventurei-
ros e criminosos"
: os doentes e fracos conquistaram a fascinação para si,
eles são mais interessantes do que os saudáveis
E todos os homens, os mais saudáveis antes de tudo, são
doentes em certas épocas de sua vida: - os grandes movimentos
do ânimo, a paixão do poder, o amor, a vingança são acompanha-
dos por profundas perturbações.•.

239 N.T.: Em francês no original: loucura circular.


330 fRIEORICH NIETZSCHE

E no que diz respeito à decadência: ela representa quase


todos os homens que não morrem cedo, em todo e qualquer sen-
tido: - portanto, ele também con!bece por experiência os instintos
que pertencem a ela -
: durante a metade de quase toda vida humana, o homem
é decadente.
Finalmente: a mulher! Metade da humanidade é fraca, ti-
picamente doente, alternante, inconstante - a mulher necessita da
força para se deixar envolver por ela - e uma religião da fraque-
za, que glorifica como divino o ser fraco, amar, ser humilde...
ou melhor, isso faz com que os fracos se tomem fracos -
impera, quando se tem êxito, se impor aos fortes ...
a mulher sempre conspirou juntamente com os tipos da
decadência, com os padres conrtra os "poderosos", os "fortes",
os homens -
a mulher coloca as crianças de lado para o culto da pie-
dade, da compaixão, do amor - a mãe representa o altruísmo de
maneira convincente...
Finalmente: a civilização crescente, que traz consigo ao mes-
mo tempo necessariamente também o crescimento do elemento
mórbido, do elemento neurótico-psiquiátrico e do criminalístico...
Uma espécie híbrida surge, o artista, cindido da crimina-
lidade da ação por meio da fraqueza da vontade e da pusilani-
midade social, do mesmo modo sem estar maduro ainda para o
manicômio, mas se imiscuindo com as suas antenas nas duas es-
feras curiosamente: essa planta cultural especifica, o artista mo-
derno, pintor, músico, sobretudo romancista, que utiliza para o
seu modo de ser a palavra bastante imprópria "11all1ralisme" ...
Os loucos, os cri.minosos e os "naturalistas" crescem: sinal
de uma cultura que se incrementa e que se apressa abruptamente
para seguir em frente - ou seja, o refugo, o dejeto, o lixo ganha
importância - o movimento para baixo mantém o ritmo ...
Finalmente: a mistura social, consequência da revolução,
da produção de direitos iguais, da superstição de que há "homens
iguais". Nesse caso, misturam-se os portadores dos instintos do
declínio (do ressentimento, da insatisfação, do impulso à destrui-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 331

ção, do anarquismo e do niilismo), inclusive dos instintos dos


escravos, dos instintos da covardia, da astúcia e da canalha, ins-
tintos esses próprios às camadas que se mantiveram durante mui-
to tempo embaixo, com todo o sangue de todas as estiIJ)eS: duas,
três gerações depois, não hâ mais como reconhecer a raça - tudo
se torna plebe. Dai resulta um instinto conjunto contra a seleção,
contra o privilégio de todo tipo, com um poder e uma segurança,
com uma rigidez e crueldade da prâtica tais, que os privilegiados
logo se submetem eles mesmos de fato:
- aquilo que ainda quer reter poder é bajulado pela plebe, a
plebe precisa ter a seu lado -
os "gênios" antes de tudo; eles transfonnam-se em arautos
dos sentimentos, com os quais as massas se entusiasmam - a
necessidade da compaix.ão, da veneração mesma diante de tudo
o que viveu sofrendo, baixo, desprezado, perseguido, ressoa para
além de todas as outras necessidades (tipos: Victor Hugo e Ri-
chard Wagner).
a ascensão da plebe significa ainda uma vez a ascensão dos
antigos valores...

Em tal movimento extremo com vistas ao ritmo e aos


meios, tal como o representado por nossa civilização, o fiel da
balança dos homens se transpõe: dos homens, que são aqueles
que na maioria das vezes estão em questão, que têm por assim
dizer de compensar todo o gTa111de perigo de tal movimento do-
entio; - eles se tomam os retardatários par excel/ence, os que
acolhem lentamente, os que dificilmente largam algo, os relativa-
mente duradouros em meio a essa mudança e mistura descomu-
nal de elementos. O fiel da balança cabe sob tais circunstâncias
necessariamente aos medíocres.: contra a dominação da plebe e
dos excêntricos (os dois na maioria das vezes interligados) con-
solida-se a mediocridade, como a localidade e a portadora do fu-
turo. Dai surge para os homens de exceção um novo adversário -
ou, porém, uma nova sedução. Supondo que eles não se adaptem
à plebe e não gostem de entoar canções para agradar os instintos
332 FRIEDRICH NIETZSCHE

dos "deserdados", eles terão a necessidade de ser "medianos"


e "sólidos". Eles sabem: a mediocritas também é áurea - é ela
apenas que dispõe até mesmo de dinheiro e ouro (- que dispõe
de tudo aquilo que brilha ...) ... E, wna vez mais, a antiga virtude
e, em geral, todo o mundo desvanecido do ideal conquistam uma
porta-voz talentosa ... Resultado: a mediocridade ganha um espí-
rito, graça, gênio - ela torna-se divertida, ela seduz...
....
Resultado. Digo ainda uma palavra sobre a terceira força.
O artesanato, o comércio, a agricultura, a ciência, uma grande
parte da arte - tudo isso só pode subsistir em um solo amplo,
em uma mediocridade consolidada de maneira forte e saudá-
vel. É a seu serviço e servido por ela que a ciência - e mesmo a
arte - trabalha. A ciência não pode desejar algo melhor para si:
ela pertence como tal a um tipo mais mediano de homem - ela
fica deslocada entre exceções - ela não possui nada de aristo-
crático e ainda menos algo anarquista em seus instintos. - O
poder do meio é mantido em seguida pelo comércio, sobretu-
do pelo mercado financeiro: o instinto do grande financista se
remete contra todos os extremos - por isso, os judeus foram
outrora o poder mais conservador em nossa Europa tão ame-
açada e tão insegura. Eles não podem se valer nem de revolu-
ção, nem de socialismo, nem de militarismo: se eles querem e
precisam ter poder mesmo sobre o partido revolucionário, isso
é apenas uma consequência do que foi dito anteriormente e
não se acha em contradição com ele. Eles necessitam despertar
vez por outra medo contra outra s direções extremas - por meio
do fato de eles mostrarem tudo aquilo que se encontra em suas
mãos. Mas seu instinto mesmo é imutavelmente conservador
- e "mediano" ... Por toda parte onde há poder, eles sabem ser
poderosos: mas a exploração de seu poder segue sempre cm
uma direção. A palavra de honra para mediano é conhecida-
mente a palavra "liberar'. ..
algo que não é engraçado e nem mesmo se mostra como
verdadeiro ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 {Vol. VII) 333

Meditação. - Não faz scO'lido nenhum pressupor que toda


essa vitória dos valores seria antibiológica: as pessoas precisam
procurar explicá-la a partir de um interesse da vida
a manutenção do tipo "homem" mesmo através dessa me-
todologia da superdominação dos fracos e dos desvalidos -
: no outro caso não existiria mais o homem?
A elevação do tipo é fatídica para a conservação da espécie?
por quê?
as experiências da história:
as raças fortes dizimam-se reciprocamente: guerra, avidez
por poder, aventura; sua existência é custosa, breve - elas se en-
trechocam mut11amente -
os afetos fortes: a dissipação - a força não é mais capita-
lizada...
a perturbação espiritual, por meio da tensão exagerada -
acontecem períodos de um profundo cansaço e adormecimento.
Todos os grandes tempos são pagos ...
os fortes se mostram em seguida como mais fracos, mais
abúlicos, mais absurdos do que os medianamente fracos
Trata-se de raças dissipadoras. -
A "duração" em si não teria efetivamente nenhum valor:
preferir-se-ia com certeza uma existência da espécie mais breve,
mas mais rica em termos valora·tivos.
Restaria demonstrar que mesmo tal produto valorativo tão
rico seria visado, como no caso ,da existência mais breve.
isto é, o homem como somatório de forças conquista um
quantum muito mais elevado de domínio sobre as coisas, quando
as coisas se dão como se dão ...
Encontramo-nos diante de um problema de economia - - -

14 (183)
Apresento minha argumentação cm todos os passos essen-
ciais, ponto por ponto. Com algo de lógica no corpo e com uma
energia aparentada com a minha, com uma coragem para aquilo
que se sabe propriamente... já se poderia ter deduzido essa argu-
mentação de meus escritos iniciais. Fez-se o contrário e se rccla-
334 FRIEDRICH NIETZSCHE

mou de que lhes faltava consequência: essa plebe misturada de


hoje ousa colocar em sua boca a. palavra consequência!

14 (184)
a "aparência"= atividade específica de ação e reação
o mundo aparente, isto é, um mundo considerado segundo
valores, escolhido segundo valores, isto é, nesse caso, segundo o
ponto de vista da utilidade com vistas à conservação e à elevação
de poder de determinada espécie de animal.
o elemento perspectivístico, portanto, renuncia ao caráter
da "aparência"!
Como se um mundo ainda restasse, se deduzíssemos dele o
elemento perspectivistico! Com isso, ter-se-ia deduzido efetiva-
mente a relatividade, o -
todo centro de força possui sua perspectiva para todo o
resto, isto é, sua avaliação totalmente determinada, seu tipo de
ação, seu tipo de resistência
O "mundo aparente" reduz-se, portanto, a um tipo especí-
fico de ação sobre o mundo, partindo de um centro
Pois bem, não há nenhum outro tipo de ação: e o "mundo"
é apenas uma palavra para o jogo conjunto dessas ações
A realidade consiste exatamente nessa ação particular e
nessa reação de todo particular ao todo...
Não resta nenhuma sombra de direito mais para se falar de
aparência ...
O modo especifico de reagir é o único modo de reagir: nós
não sabemos quantos tipos e que tipos há efetivamente.
Mas não hã nenhum ser "diverso", nenhum ser "verdadei-
ro", nenhum ser essencial - com tal mundo seria expresso um
mundo sem ação e reação ...
A oposição entre o mundo aparente e o mundo verdadeiro
reduz-se à oposição entre "mundo" e "nada" -

14 (185)
Moral
O fato de o valor de uma ação dever depender daquilo
que lhe precedeu na consciência - o quão falsa é essa afirma-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 335

ção ! - E se mediu a moralidade de acordo com isso, mesmo a


criminalidade...
Achou-se que se precisaria saber suas consequências: e os
psicólogos ingênuos de outrora disseram - - -
O valor de uma ação precis.a ser medido por suas consequên-
cias - dizem os utilitaristas: - medi-la segundo sua origem inlplica
saber de uma impossibilidade, isto é, dessa impossibilidade.
Mas conhecem-se as consequências? Cinco passos além
talvez. Quem pode dizer se uma ação estimula, excita, provo-
ca contra si? Como estimulante? Como fagulha tal vez para um
material explosivo?... Os utilitaristas são ingênuos ... E, por fim,
precisamos primeiro saber o que é útil: aqui, também, seu olhar
só se lança cinco passos à frente ... Eles não têm nenhum conceito
acerca da grande economia, que não sabe dispensar o mal - .
Não se conhece a origem e tampouco se sabem as consequên-
cias: - uma ação tem conscquen.temente de fato um valor?...
Resta a própria ação: seus fenômenos paralelos na consci-
ência, o sim e o não, que se segue à sua execução: o valor de uma
ação reside nos fenômenos paralelos subjetivos - ? Com certeza,
ela é acompanhada por sentimentos de valor, por um sentimento
de poder, um sentimento de coerção e de impotência, por exem-
plo, a liberdade, a leveza; questionado de outra fonna: seria pos-
sivel reduzir o valor de uma ação aos valores fisiológicos? Serã
que ela é uma expressão da vida plena e da vida inibida? O valor
biológico de uma ação?
é permitido medir seu valor por fenômenos paralelos, por
prazer e desprazer, pelo jogo dos afetos, pelo sentimento da des-
carga, da explosão, da liberdade ...
pode ser que seu valor biológico se expresse ai...
isso significaria medir o valor da música pela prazer ou
desprazer que ela nos propicia... que ela propicia ao seu com-
positor ...
Portanto, se a ação não é mensurável nem segundo sua ori-
gem, nem segundo suas consequências, nem segundo seus fenô-
menos paralelos, então seu valor x é desconhecido ...
Portanto, uma ação não tem nenhum valor.
336 FRIEDRICH NIETZSCHE

Em suma, na linguagem da eanção infantil: "Engatinhar,


voar e se arrastar pelos caminho,s de Deus."

14 (186)
Filosofia
Os fisicos acreditam em um "mundo verdadeiro" à sua
moda: uma sistematização de átomos firme e idêntica para todos
os seres em meio a movimentos necessários - de tal modo que,
para eles, o "mundo aparente" se reduz ao lado acessivel a todo e
qualquer ser à sua maneira do ser universal e universalmente ne-
cessário (acessível e também ainda retificado - transformado em
algo "subjetivo"). Com isso, porém, eles se enganam: o átomo
que eles estabelecem é descoberto segundo a lógica daquele pcrs-
pectivismo da consciência - ele mesmo também é, com isso, uma
ficção subjetiva. Essa imagem d.e mundo, que eles projetam, não
é de modo algum essencialmente diversa da imagem de mundo
subjetiva: ela é apenas construida com sentidos mais amplamente
pensados, mas de qualquer forma inteiramente com os nossos
sentidos... E, por fim, eles deixaram algo de fora na constelação
sem o saber: justamente o perspectivismo necessário, cm virtude
do qual cada centro de força - e não apenas o homem - constrói
a partir de si o resto do mundo, isto é, mede-o, toca-o e configu-
ra-o a partir de sua força ... Eles ,esqueceram de inserir essa força
posicionadora de perspectivas no cálculo do "ser verdadeiro" ...
Dito na linguagem escolar: o ser sujeito. Eles acham que esse ser
sujeito seria "desenvolvido", se acrescentaria -
Mas mesmo o químico necessita disso: esse é o ser especí-
fico, o agir e reagir de tal e tal modo, sempre de acordo com
O perspecJivismo é apenas uma forma complexa da espe-
cificidade
Minha representação é a de que cada corpo específico as-
pira a se tomar senhor de todo o espaço e a expandir a sua força
(- sua vontade de poder:) e a repelir tudo aquilo que resiste à
sua expansão. Mas ele depara constantemente com aspirações
idênticas de outros corpos e acaba por entrar em um arranjo
com aqueles ("se unir") que lbe são suficientemente aparenta-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 337
······· .. ·······"···················································· ....... ,................ .
dos: - assim, eles conspiram, então, conjuntamente por poder.
E o processo prossegue...

14 (187)
Filosofia
Não há nada imutável na química, isso é apenas aparência,
um mero preconceito escolar. Nós arrastamos conosco o imutá-
vel, sempre ainda a partir da metafísica, meus senhores fisicos. É
totalmente ingênuo afirmar a partir de uma dedução da superfície
que o diamante, o grafite e o carvão são idênticos. Por quê? Me-
ramente porque não se pode constatar nenhuma perda de subs-
tância por meio da balança! Pois bem, com isso eles têm ainda
algo cm comum, mas o trabalho molecular da transformação que
não vemos, nem podemos pesar., faz de uma matéria justamente
algo diverso - com propriedades especificamente diversas

14 (188)
A nova concepçàQ de mundQ
1) O mundo subsiste; ele não é nada que vem a ser, nada
que perece. Ou, ao contrário: ele vem a ser, ele perece, mas nunca
começou a vir a ser e nunca cessou de perecer - ele se mantém
nos dois casos... ele vive por si mesmo: seus excrementos são seu
alimento ...
2) A hipótese de um mundo criado não deve nos ocupar um
único instante. O conceito "criar" é hoje completamente indefini-
vel, irrealizável; só permanece como uma mera palavra, rudimen-
tar e oriunda de épocas marcadas pela superstição; não se explica
nada com urna palavra. A última tentativa de conceber um mundo
que começa foi empreendida muitas vezes recentemente com o
auxilio de um procedimento lógico - na maioria das vezes, como
é fácil descobrir, a partir de urna intenção teológica de fundo.
O eterno retorno do mesmo. Filosofia
3) Recentemente, as pessoas viram muitas vezes uma con-
tradição no conceito de infinitude temporal do mundo para trás:
elas encontraram por si mesmas a contradição, ao preço natu-
ralmente de confundir nesse caso <a> cabeça com o rabo. Nada
338 FRIEORICH NIETZSCHE

pode me impedir de, calcu.land.o retroativamente a partir desse


instante, dizer: "nunca chegarei a um fim": assim como posso,
partindo do mesmo instante para frente, contar rumo ao infinito.
Apenas se quisesse cometer o erro - tomarei cuidado para não
fazê-lo - de equiparar esse conceito correto de um regressus in
infinitum com um conceito que não pode ser de maneira alguma
realizado de um progressus infinito até agora, somente se tivesse
estabelecido a direção (para frente ou para trás) como logica-
mente indiferente, tomaria a cabeça, esse instante, como se ela
fosse o rabo: deixo isso para o senhor, caro Dühring!...
4) Deparei com essa ideia cm pensadores mais antigos: a
cada vez, ela se achava determinada por outras ideias de fundo
(- na maioria das vezes ideias teológicas, a favor do eretor spi-
ritus). Se o mundo pudesse efetivamente se solidificar, se en-
rijecer, chegar ao fim, se ele pudesse se transformar em nada,
ou se um estado de equilíbrio pudesse ser alcançado, ou se ele
tivesse uma meta qualquer, que encerrasse cm si a duração, a
inalterabilidade, o de-uma-vez-por-todas (em suma, dito em ter-
mos metafísicos: se o devir pudesse desaguar no ser ou no nada),
então esse estado já precisaria te:r sido alcançado. Mas ele não foi
alcançado: de onde se segue... Essa é a nossa única certeza, uma
certeza que mantemos cm nossas mãos, a fim de servi.r corno cor-
retivo contra uma grande quantidade de hipóteses de mundo em
si possíveis. Se, por exemplo, o mecanismo não pode escapar da
consequência de um estado final, consequência essa retirada por
Thompson, então o mecanismo é, com isso, refutado.
Filosofia
5) Se o mundo pode ser pensado como determinada gran-
deza de força e corno determinado número de centros de força - e
toda e qualquer outra reprcscn1tação permanece indeterminada
e consequentemente inútil - , então se segue dai que ele tem de
percorrer um número ca.lculável de combinações no grande jogo
de dados de sua existência. Em um tempo infinito, cada possi vel
combinação seria algum d.ia alcançada; mais ainda, ela seria al-
cançada infinitas vezes. E como todas as combinações ainda efe-
tivamente possíveis precisariam ter sido percorridas entre cada
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 339

"combinação" e seu próximo "retomo" e como cada uma dessas


combinações condiciona toda a sequência de combinações na
mesma série, então estaria demonstrado, com isso, um circuito
de séries absolutamente idênticas: o mundo como circuito que
jâ se repetiu de maneira infinitamente frequente e que joga o seu
jogo ao infinitum.
Essa concepção não é simplesmente uma concepção me-
canicista: pois, se ela o fosse, então não teria como condição um
retomo infinito de casos idênticos, mas um estado final. Como o
mundo não o atingiu, o mecanismo precisa ser considerado por
nós uma hipótese incompleta e apenas provisória.

14 (189)
O filósofo como um desenvolvimento ulterior do tipo sa-
cerdotal
- tem sua herança no corpo
- mesmo como rival, é obrigado a lutar pelo mesmo com
os mesmos meios que o sacerdote de seu tempo.
- ele aspira à autoridade suprema
o que dâ autoridade, quando não se tem o poder tisico nas
mãos (nenhum exército, nenhuma arma em geral...)?
como é que se conquista especialmente a autoridade sobre
aqueles que possuem a violência flsica e a autoridade?
eles concorrem com a veneração diante dos príncipes,
diante dos conquistadores vitoriosos, diante do político sâbio.
....
Somente na medida em que eles despertam a crença na posse
de uma força mais elevada, mais intensa em suas mãos, - Deus -
Nada é forte o suficiente: precisa-se da mediação e do ser-
viço do sacerdote.
Eles se colocam como imprescindíveis nesse espaço inter-
mediário: - como condição da existência, eles necessitam
1) que se acredite na superioridade absoluta de seu Deus,
que se acredite em seu Deus
2) que não haja nenhum outro acesso direto a Deus
340 FRIEORICH NIETZSCHE

Só a segunda exigência cria o conceito da "heterodoxia"; a


primeira, o conceito do "incrédulo" (isto é, daquele que acredita
em outro deus - )
....
O que é, afinal, atrasado no filósofo?
O fato de ele ensinar suas qualidades como qualidades úni-
cas e necessárias, a fim de atingir o "bem supremo" (por exem-
plo, a dialética, como em Platão
O fato de ele deixar ascenderem todos os tipos de homem
gradativamente até o seu tipo como o mais elevado
O fato de eles desprezarem o que é normalmente apreciado
- o fato de abrirem violentamente um fosso <entre> os valores
sacerdotais supremos e os valores mundanos
O fato de ele saber o que é verdadeiro, o que é Deus, o
que é a meta, o que é o caminho... o filósofo tlpico é aqui abso-
lutamente dogmático; - se ele tem a necessidade do ceticismo,
então isso acontece para poder falar dogmaticamente de sua
questão principal

14 (190)
O problema dos oprimidos
Não consigo vislumbrar se os semitas estiveram já em
tempos muito antigos sob a terrivel escravidão dos hindus:
como Tschandalas, de tal modo que algumas peculiaridades já
tinham se enra.izado e fixado outrora, peculiaridades que per-
tencem ao tipo do escravizado e do desprezado (- tal como
mais tarde nos egípcios).
Mais tarde, eles se enobrecem, até o ponto em que se tor-
naram guerreiros... E conquistaram para si alguns países, alguns
deuses. Aformação dos deu.ses semitaS coincidiu historicamente
com sua entrada na história ...
O "espirito", a tenaz pacil.!ncia, o oficio desprezado
O conceito oficial da Tschandala é exatamente o conceito
de um dejeto e de um excremento das classes nobres ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 341

14 (191)
Platão encontra-se totalmente no espirito do Manu: ele foi
iniciado no Egito. A moral das castas, o deus dos bons, a "alma
única e eternan
- Platão, o bramanista
- Pirro, o budista
copiado: o tipo do filósofo.
as castas
a cisão da doutrina em esotérica e exotérica
a "grande alma"
a transmigração como darwinismo invertido (- não é grega)

14 (192)
O conceito "egoísmo "
É constitutivo do conceito do vivente o fato de que ele
precisa crescer - de que ele precisa ampliar o seu p0dcr e, con-
sequentemente, acolher em si forças alheias. Fala-se, sob o ofus-
camento provocado pela narcose da moral, de um direito do indi-
viduo de se defender: no mesmo sentido, poder-se-ia falar de seu
direito de ataca.r. p0is as duas coisas - e a segunda ainda mais do
que a primeira - são necessidades para todo e qualquer vivente -
o egoísmo agressivo e defensivo não são questão de escolha ou
mesmo de "vontade livre", mas a fatalidade da própria vida.
O que se diz aqui é válido, quer se tenha em vista um indivi-
duo ou um corpo vivo, uma "sociedade" que aspira à ascensão. O
direito à punição (ou a autodefesa social) só chegou no fundo à pa-
lavra "direito" por meio de um abuso: um direito é conquistado por
meio de contratos - mas o resistir e o defender-se não repousam na
base de um contrato. Um povo deveria poder designar como direito,
com um sentido igualmente bom., a sua necessidade de conquista,
o seu apetite de poder, seja com rumas, seja por meio do comércio,
do tráfego e da colonização - direito ao crescimento, por exemplo.
Uma sociedade que rejeita definitivamente e segundo o seu instinto
a guerra e a cooquib1a já se encontra em declinio: ela está madura
para a democracia e para o regimento dos merceeiros... Na maior
parte dos casos, as garantias de paz são meros meios narcóticos
342 FRIEDRICH NIETZSCHE

14 (193)
No antigo direito penal, um conceito religioso era podero-
so: o conceito da força expiatória da punição. O castigo purifica:
no mundo moderno, ele macula. O castigo é wn pagamento: é-se
realmente entregue à responsabilidade por aquilo que se quis fa.
zer tanto sofrer. Posto que se acredite nessa força do castigo, então
hâ em seguida um alívio e uma respiração, que efetivamente se
aproximam de uma nova saúde, de urna reprodução. Não se alcan-
çou apenas uma vez mais a sua paz com a sociedade, tomou-se
possível também uma vez mais que o criminoso se tomasse digno
de respeito perante si mesmo - "puro"... Hoje, o castigo isola ain-
da mais do que o crime; afatalidade por detrás de um crime cres-
ceu a tal ponto que ela se tomou incurável. Sai-se da pena como
inimigo da sociedade... A partir de agora, há wn inimigo a mais.
O jus talionis pode ser ditado pelo espírito da desforra (ou
seja, por meio de uma espécie de moderação do instinto de vin-
gança); mas no Manu, por exemplo, trata-se da necessidade dé
ter um equivalente, a fim de expiar, a fim de ser religiosamente
"livre" uma vez mais.

14 (194)
O filósofo contra os rivais, por exemplo, contra a ciência
: nesse caso, ele se toma cético
: nesse caso, ele se reserva uma forma do conhecimento,
que ele contesta ao homem cientifico.
: nesse caso, ele segue lado a lado com o sacerdote, a fim
de <não> despertar a suspeita de ateísmo, de materialismo
: ele considera um ataque a si como um ataque à moral, à
virtude, à religião, à ordem - ele sabe difamar o seu adversário
como "sedutor" e "minado"
- nesse caso, ele segue lado a lado com o poder
O filósofo na luta contra outros filósofos:
: ele procura obrigá-los a se mostrarem como anarquistas,
incrédulos, adversários da autori.dade
Em suma: até o ponto em que ele lwa, ele luta totalmente
como um sacerdote, como um sacerdócio
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 343

14 (195)
Como se parece uma religião ariana que diz sim, o aborto
das classes dominantes:
O código de Manu.
Como se parece uma religião semita que diz sim, o aborto
das classes dominantes:
O código de Maomé. O Antigo Testamento, em suas partes
mais antigas
Como se parece uma religião semita que diz não, como
aborto das classes oprimidas:
Segundo conceitos indo-arianos: o Novo Testamento -
uma religião da Tschandala.
Como se parece uma religião ariana que diz não, uma reli-
gião que cresceu entre as estirpes dominantes
: o budismo.
É completamente nonnal que não tenhamos nenhuma re-
ligião de raças arianas oprimidas: pois isso é uma contradição:
uma raça de senhores está em cima ou perece.

14 (J 96)
Egoísmo
Princípio: só indivíduos singulares sentem-se responsá-
veis. As pluralidades são inventadas a fim de fazer coisas para as
quais os indivíduos singulares não têm a coragem.
Justamente por isso, todas as coletividades e sociedades
são cem vezes mais sinceras e instn1tivas no que concerne à es-
sência do homem do que o indivíduo, que é fraco demais para ter
a coragem em relação a seus desejos ...
Todo o "altrulsmo" resulta como astúcia do homem privado:
as sociedades não são "altruístas" umas em relação às outras...
O mandamento do amor ao próximo nunca foi ampliado
até aqui e transformado em um mandamento do amor ao vizinho.
Ao contrário, continua valendo o que se encontra no Manu ...
A "tolerância"
O estudo da sociedade é tão inestimável, porque o homem
é muito mais ingênuo como sociedade do que como "unidade".
344 fR IEDRICH NIETZSCHE

A "sociedade" nunca considerou a virtude senão como


meio da força, do poder, da ordem.
O quão simplória e dignamente o diz Manu: - - -

14 (197)
"Recompensa e castigo"..,. Essas duas coisas vivem uma
com a outra, uma decai na outra. Hoje, não se quer ser recompen-
sado, não se quer reconhecer ninguém que pune...
Produziu-se o pé de guerra: quer-se algo, têm-se, nesse
caso, adversârios, talvez se alcance isso da maneira mais racio-
nal possível, quando as pessoas entram em acordo - quando se
faz um contrato
Uma sociedade moderna, na qual todo singular firmou o
seu "contrato": o criminoso é alguém que quebra o contrato...
Esse seria um conceito claro. Assim, porém, não se poderiam
tolerar anarquistas e, por princípio, adversârios de uma forma de
sociedade no interior da sociedade...

14 (198)
O cristão pensa que, "em Deus, não há coisa alguma que
seja impossível". Mas o hindu diz: junto à castidade e a ciência
do Veda, não há coisa alguma que seja impossivel: os deuses
estão subjugados e se mostram obedientes a elas. Onde está o
deus, que poderia resisti.r à seriedade e à oração casta de um Yati
recolhido na floresta?
Como uma pedra que se joga no mar e no mesmo instante
desaparece, os pecados também submergem e desaparecem na
ciência do Veda.

14 (199)
Origem da moral
O sacerdote quer impor o fato de ele vigorar como tipo
supremo do homem
o fato de ele dominar - mesmo sobre aqueles que têm o
poder nas mãos
o fato de ele ser impassível de ser ferido, inatacável...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 345

o fato de ele ser o mais forte poder na comunidade, absolu-


tamente impossível de ser substituído e subestimado.

Ponto médio.
Ele apenas é aquele que sabe
Ele apenas é o virtuoso
Ele apenas tem o domínio, supremo sobre si
Ele apenas é em certo sentido Deus e retoma à divindade
Ele apenas é a pessoa intermediária entre Deus e os outros
A divindade pune toda desvantagem, todo pensamento di-
rigido contra um sacerdote

Ponto médio
A verdade existe
Só hã uma forma de alcançá-la: tomar-se sacerdote
Tudo o que é bom, na ord.enação, na natureza, na proveni-
ência, remonta à sabedoria dos sacerdotes
O livro sagrado é sua obra. Toda a natureza é apenas uma
execução dos estatutos ai
Não há nenhuma outra fonte do bem senão o sacerdote
Todos os outros tipos de excelência são hierarquicamente
diversos da excelência dos sacerdotes, por exemplo, a excelência
dos guerreiros

Consequéncia:
se o sacerdote deve ser o tipo supremo: então a gradação
em relação às suas virtudes precisa constituir a gradação valora-
tiva dos homens.
O estudo, a dessensibiliza.ção, o nao ativo, o impassível, o
desprovido de afeto, ofestivo. - Oposiçao (o gênero mais profun-
do de homem: - - -

O amedrontar
os gestos, as maneiras bie.ráticas
o excesso de desprezo do corpo e dos sentidos - a contra-
natureza como indício da supematureza
346 FRIEDRICH NIETZSCHE

O sacerdote ensinou um tipo de moral: a fim de ser ele


mesmo experimentado como tipo supremo
Ele concebe um tipo oposto: o Tschandala. Tomá-lo des-
prezível por todos os meios promove uma louca alegria para a
ordem de castas
seu extremo temor diante da sensibilidade é ao mesmo tem-
po condicionado pela intelecção de que aqui a ordem de castas
(isto é, a ordem em geral) é ameaçada da maneira mais terrível
possível... toda "tendência mais livre" in puncto punc11-i40 lança a
legislação matrimonial pela borda afora -

14 (200)
Há algumas coisas admiráveis nessa concepção: por
exemplo, o absoluto alijamento dos dejetos materiais da socieda-
de, com a tendência de dizimá-los. Eles compreenderam de que
necessita um corpo vivo - seccionar os membros doentes...
1) De uma maneira adminível, ela está distante da degenera-
ção branda dos instintos, que se denomina agora "humanidade"...
Com isso, tambêm estâ dis1ante da degradação de uma cas-
ta na outra...
Assim, temos a fonnulação do casamento: a posição do
"casamento por amor" (o tipo dos "músicos celestes": - - -
2) a luta contra o alcoolismo ... p. 332.
3) sua apreciação plena da idade avançada, da mulher, p. 127
4) eles panem da necessidade de tornar o homem venerá•
vel ante si mesmo: eles precisam transfigurar mesmo o que há
de mais natural; e isso por meio do fato de contraporem o dever,
como observância sagrada, ao sentimento

14 (201)
As castas concebidas como uma divisão do trabalho, por
outro lado, como uma forma única de tomar instintiva a realiza.
çãoplena ...

240 N.T.: Em latim no original: no que conceme ao ponto mais Importante.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 347

o essencial é a tradição do trabalho, a mecânica, que se


toma perfeita justamente com isso, através das gerações ...

14 (202)
Se a unificação de um homem jovem e de uma moça jovem
é o fruto de uma escolha mútua, então essa unificação é chamada
de uma unificação nascida, tal como ela é, a partir do amor e
tendo o amor por finalidade:
O tipo dos "músicos celestes"
Os quatro últimos tipos de casamento só dão à luz dissipa-
dores, comerciantes ávidos e mentirosos como crianças, que não
conhecem o escrito sagrado e os deveres que ele prescreve
De casamentos honestos e louváveis surgem crianças ho-
nestas e louváveis; mas os maus casamentos não veem senão
uma descendência desprezível.
O elogio da virgem: p. 225.

14 (203)
Crítica do Manu:
Redução da natureza à moral: um estado de punição do
homem: não há nenhum efeito natural - a causa é o brâmane.
Redução das motivações humanas ao medo diante da pu-
nição e à esperança da retribuição: isto é, diante da lei, que tem
as duas coisas na mão...
Temos de viver de maneira absolutamente conforme com a
lei: o racional é feito,porque ele é ordenado; o instinto mais con-
sonante com a natureza é satisfe-ito, porque a lei o prescreveu.
Essa é uma escola do emburrecimento: em tal incubadora de
teólogos (na qual mesmo o jovem militar e o agricultor precisavam
passar por um curso de nove anos em teologia, a fim de se tomar
conStantes - o "serviço militar" durante nove anos das três castas
superiores), os Tsclzandalas acabavam ficando com a inteligência
e mesmo com o que havia de mais interessante. Eles eram os úni-
cos que tinham acesso à verdadeira fonte do saber, à empiria ...
Precisamos acrescentar nesse cômputo a endogamia das castas...
Faltam a natureza, a técnica, a história, a arte, a ciência,- - -
348 FRIEORICH NIETZSCHE

14 (204)
Fala-se muito hoje do espírito semita do Novo Testamento:
mas o que se denomina assim é meramente sacerdotal -e no código
ariano da raça mais pura, no Manu, esse tipo de "semitismo", isto
é, de espírito sacerdotal, é pior do que cm qualquer outro lugar.
....
O desenvolvimento do Estado sacerdotal judaico não é
original: eles conheceram o esquema na Babilônia: o esquema
é ariano. Se esse esquema dominou mais tarde uma vez mais na
Europa, sob o predomínio do sangue germânico, então isso esta-
va em consonância com o espírito da raça dominante: um grande
atavismo. A Idade Média germânica tinha em vista a reprodução
da ordem de castas ariana .
....
O maometismo aprendeu, por sua vez, dos cristãos: a utili-
zação do "além" como órgão de punição.
....
O esquema da coletividade imutável, com os sacerdotes na
ponta: o grande produto cultura] mais antigo da Ásia no âmbito
da organização - precisa ter sido requisitado em todo e qualquer
aspecto para a reflexão e a imitação.
Ainda em Platão: mas, sobretudo, nos egípcios.

14 (205)
Uma coisa é a mais dificil de ser perdoada: o fato de se
estimar a si mesmo. Um tal ser é simplesmente abominável: ele
traz efetivamente à luz aquilo que está em jogo com a tolerância,
a única virtude dos outros e de todos ...
Queria que se começasse a estimar a si mesmo: todo o
resto se segue daí. Naturalmente, deixa-se de existir justamen-
te com isso para os outros: pois é isso exatamente que eles não
conseguem de maneira alguma perdoar. Como? Um homem que
estima a si mesmo?
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 349

Isso é algo diverso do impulso cego de amar a si mesmo:


nada é mais habitual, no amor entre os sexos, assim na duplicida-
de que é denominada "eu", do que o desprezo em relação àquilo
que se ama, o fatalismo no amor -

14 (206)
Contra o contágio da neurose
Escolha dos lugares, coisas, livros,
O alcoolismo
e a música ...
o ópio climático e meteorológico; assim como o culinârio
Atenuação do nú.mero de impressões:
Reservar tempos nos quais nenhum livro e nenhuma coisa
nos fala - para não falar sobre um homem ...
Tempos de restabelecimento, regime de Gênova; o homem
mais saudável necessita boje de tais tempos: - tempos de jejum -
Contra o vegetarianismo: - - -

14 (207)
Nós somos Tschandala: e nossos homens de arte e artistas
na frente...

14 (208)
por que h1do se torna teatro?
Falta ao homem moderno:
O instinto se1,ruro (consequência de uma longa forma de
atividade de um mesmo tipo de !homem)
A incapacidade de realizar algo perfeito é meramente a conse-
quência disso: - nunca se pode recuperar a escola como particular

14 (209)
Os tempos, nos quais se dirige o homem com recompensa
e castigo, têm em vista um tipo ainda primitivo inferior de ho-
mem: dá-se aqui o mesmo que com as crianças ...
Em meio à nossa cultura tardia, a fatalidade e a degene-
rescência se mostram como algo que suspende completamente o
sentido de recompensa e castigo ...
350 FRIEORICH NIETZSCHE

- pressupõem-se raças jovens, fortes, vigorosas, essa de-


terminação real da ação por meio da perspectiva da recompensa
e do castigo...
não poder apresentar resistências lã onde um estímulo é
dado, mas precisar seguir-lhe: essa irritabilidade extrema dos de-
cadentes toma completamente sem sentido tais sistemas de puni-
ção e de aprimoramento...

O conceito de "aprimoramento" <baseia-se> no pressupos-


to de um homem forte e normal, cuja ação particular deve ser
uma vez mais equilibrada de algum modo, para não perdê-lo,
para não tê-lo como inimigo ...

14 (210)
As morais da decadência possuem a peculiaridade de que
elas recomendam uma prâxis, um regime, que acelera a deca-
dência...
- tanto fisiológica quanto psicologicamente: o instinto da
reparação e a plasticidade não atuam mais ...
- eles acreditam cm cura, em redenção, mesmo daqueles com
os quais o nada, o mais profundo esgotamento se choca
- eles buscam o que possui o mesmo modo de ser con-
juntamente a partir de todas as coisas, estados e épocas:
exemplo, os irmãos Goncourt...

14(211)
A energia da saúde revela-se junto aos doentes na resistên-
cia brusca em relação aos elementos adoecedores ...
uma reação do instinto, por exemplo, contra a música cm mim-

14(212)
A determinação da mulher é dar prosseguimento à familia
por meio dos filhos, a determinação do homem é gerar os filhos:
esse duplo dever, para o qual homem e mulher são conjuntamen-
te ativos, tem sua sacralizaçã.o por meio da escritura.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 351

Quais são aqueles que precisam ser considerados os mais


culpados? O assassino de um brâmane, aquele que sorve bebidas al-
coólicas e aquele que seduz a mulher de seu conselheiro espiritual
De acordo com a expiação prescrita, ele deve condená-los à
morte ou a outras penas corporais. Ele deve estigmatizar a fronte
daquele que seduziu a mulher de seu conselheiro com a imagem
da genitália feminina, daquele que sorve bebidas alcoólicas com
o sinal do instrumento de destilação, do assassino de um brâmane
com a imagem de um corpo sem cabeça.

14 (213)
Tal código resume a experiência, a astúcia e a moral expe-
rimental de longos séculos: ele conclu.i, ele tennina uma época,
ele não cria nada mais -
Os meios de criar a autoridade para uma verdade pesada
e custosamente conquistada são fundamentalmente diversos dos
meios com os quais se os demonstraria. Um código nunca de-
monstra a utilidade e a desvantag.em de uma prescrição: ele mostra
apenas as consequências terríveis para o ind.ivlduo, quando ele não
respeita uma lei como lei - quando ele se mostra desobediente.
Todas as consequências terríveis de uma violação da lei
nunca são consideradas com vistas a um castigo sobrena/llral,
pelo fato de não se seguir uma prescrição.
O problema é este: em ceno momento da história do povo,
a camada mais inteligente desse povo declara concluída a experi-
ência segundo a qual é poss[vel ou não é possível viver. Sua meta
dirige-se para a possibilidade de levar para casa a colheita da ma-
neira mais rica e mais plena possível depois de longos períodos
de experimento e depois da experiência terrível...
O que se precisa evitar agora, antes de tudo, é o experimen-
tar novamente, o querer prossegµir no teste e na seleção: contra-
põe-se a isso um duplo muro, 1) a revelação e 2) a tradição. As
duas são mentiras sagradas: a estirpe inteligente que as inventa
as compreende tã.o bem quanto Platão as compreendeu.
A revelação: trata-se da afinnação de que a razão não
buscou e encontrou lentamente e com enganos a razão daquelas
352 FRIEORICH NIETZSCHE

leis, mas que essa razão foi comu.nicada de uma vez só pela
divindade ...
A tradição: essa é a afirmação de que as coisas já teriam
se mostrado assim desde tempos imemoriais. Em suma, uma fal-
sificação principiai de toda a história de um povo. (Exemplo, a
reinterpretação judaica depois do exílio - o querer compreender
mal o seu passado)
é ateista criticar a lei
é impiedoso - trata-se de ·um crime em relação aos ances-
trais - as pessoas os atiçam contra si -

14 (214)
A mulher que repele seu marido de si porque ele possui a
paixão pelo jogo ou pelos licores em vez de cuidar dele como de
alguém doente deve ser encarcerada por três meses, sem qual-
quer limpeza e ornamentação (avis241 junto George Eliotl)

14(215)
Transfiguração das consequências naturais de uma ação
Não hã mais nenhuma consequência natural: mas a deso-
bediência é punida, enquanto a virtude é recompensada.
A felicidade, a vida longa, os descendentes- tudo isso são con-
sequências da virtude, intcnncdiada pela ordem eterna das coisas -
A impureza, por exemplo, é proibida, não porque suas con-
sequências façam mal à saúde: mas é porque ela é proibida que
ela faz mal à saúde...
•••
Ou seja, por princípio: a consequência natural de uma ação
é representada, como recompensa ou castigo, sempre de acordo
com o fato de algo ser pcnnitido ou proibido...
para tanto, é necessário que a maior quantidade dos casti-
gos não seja justamente natural, mas sobrenatural, que eles este-

....
jam para além de, que eles sejam meramente futuros ...

241 N.T.: Em latim no orlslnal: ponto de vista.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 353

Ou seja, por princípio: toda desvantagem, toda infelicidade


é prova de culpa: mesmo cada forma de existência ínfima (os
animais, por exemplo)
O mundo é perfeito: supondo que aconteça algo que seja sufi-
ciente para a lei. Toda a imperfeição advém da desobediência à lei.

•••
A casta superior também tem de representar, como a casta
suprema, a felicidade: por isso, nada é mais inadequado do que o
pessimismo e a indignação ...
nenhuma fúria, nenhuma réplica no que há de terrível -
a ascese apenas como meio para a felicidade mais elevada,
para a redenção de muitas coisas
a classe suprema tem de manter uma felicidade, sob o pre-
ço de apresentar contra si a obediência incondicionada, todo tipo
de dureza, autodominação e rigor - ela quer ser experimentada
como o tipo mais venerável de homem - também como o mais
admirável: consequentemente, ela não pode precisar de todo e
qualquer tipo de felicidade -

14 (216)
Crítica da lei
A razão superior de tal procedimento é repelir a consciên-
cia passo a passo da vida reconhecida como correta: de tal modo
que seja alcançado um automatismo mais pleno do instinto
- isto é, o pressuposto de todo tipo de maestria
É casto, é usual, é um sinall de homens bravos e altivos agir
de tal e tal modo: - resta isso:
A origem, a utilidade, a razão da prescrição é reprimida da
consciência.
O meio mais essencial para essa repressão é o fato de dois
outros conceitos aparecerem com uma violência descomunal no
primeiro plano: os dois excluindo a reflexão propriamente dita
sobre a origem e a critica da lei...
a recompensa
o castigo
354 FRIEORICH NIETZSCHE

"Todo homem que recebeu um castigo por um delito por


ordem do rei vai para o céu livre de toda mácula, tão puro quanto
aquele que sempre fez apenas o bem."
Trata-se de uma questão ,da mais suprema autoconserva-
ção; "uma coisa é necessária": obedecer aqui absolutamente...
Não obedecer aqui recebe a nova marca da mais elevada es-
h,pidez -
O egoísmo é colocado em jogo, de tal modo que obedecer
e não obedecer se contrapõem como afe/icidade e o mais profun-
do prejuízo a si mesmo
Para esse fim, toda a vida é colocada em uma perspectiva
transcendente, de tal forma que ela é concebida no sentido mais
aterrorizante de todos como consequente ...
- a imortalidade relativa é a grande lente de aumento, para
elevar de maneira inaudita o conceito de castigo... recompensa.
Esses s!\bios 11ão açrçditam 11isso; - senão e!es não o in-
ventariam ...

14 (217)
Uma casta, que rejeitou todo trabalho de defesa e de ata-
que, mesmo no que concerne à sua atitude em relação a si - e que
considera de maneira rigorosa o conceito "bom"...

14 (218)
O "homem bom", como uma imagem da decadência, que
"vem à tona", que compreende a desvantagem de todo ser-inimi-
go, de todo enfurecimento e de toda vontade de vingança - que é
fraco demais, que tem os nervos fracos demais...
O "homem bom", por força, por plenitude de poder, como
tipo dominante, que escolheu para si uma existência, que lhe dis-
pensa da obrigação de ter afetos agressivos e defensivos...; que
incumbiu uma casta própria com esses afetos ... Tal homem cria
para si, então, um "Deus" à sua imagem -
- para ele, o mundo também está justificado: o mal tem
uma finalidade pedagógica, isto é, uma finalidade punitiva ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 355

14 (219)
Fraqueza da vontade: trata-se de uma imagem, que pode
induzir em erro. Pois não há nenhuma vontade, e, consequente-
mente, nem uma vontade forte nem uma vontade fraca. A plurali-
dade e a desagregação dos impulsos, a falta de sistema entre eles
resulta como "vontade fraca"; a coordenação dos impulsos sob o
predomínio de um impulso em particular resulta como "vontade
forte"; - no primeiro easo, temos a oscilação e a falta de um fiel
da balança; no segundo caso, a precisão e a clareza da direção

14 (220)
A religião que diz sim
A mais elevada veneração diante do ato da geração e da
família:
Tem-se de pagar pelas culpas de <seus> ancestrais ...
o instinto da tradição, o mais profundo desprezo em rela-
ção a tudo aquilo que abrigou a tradição ...
O instinto contra a degenerescência ...
Isto precisa ser estudado: tudo aquilo que foi contabilizado
conjuntamente como degenerado.
Os viciosos.
Os doentes mentais.
Os leprosos pesados.
As putas.
Os artistas.

14 (221)
A ordem das castas repousa na observação de que há três
ou quatro tipos de homens, determinados para outra atividade e
maximamente desenvolvidos, ta 1 como essa atividade lhes cabe
a todos por meio da divisão do trabalho.
um modo de ser como prerrogativa, uma espécie de ativi-
dade do mesmo modo
a ordem das castas é apenas o sancionar de uma distlincia
natural entre muitos tipos fisiológicos (caracteres, temperamen-
tos etc.)
356 fR IEDRICH NIETZSCHE

- ela é apenas a sanção da experiência, ela não precede a


experiência, nem tampouco a suspende...
a) os homens mais intelectualizados (- os eruditos, os con-
selheiros, os juízes, os filósofos - ) - classe docente
b) os homens musculares, a classe guerreira- classe de defesa
c) <aqueles que realizam> o comércio, a agricultura e a
criação de gado - a classe alimentlcia
d) por fim, reconhece-se um tipo inferior (subjugado) de
autóctones, como raça servil.
Há aqui por toda parte o pressuposto de uma real separação
natural: o conceito de casta sanciona apenas a separação natural.
O caráter sagrado da fomília , a solidariedade entre os se-
xos é a pressuposição de toda a construção: - consequentemente,
ele precisa ser completamente traduzido no além.
Tem-se necessidade de um filho, porque só um filho redi-
me... as pessoas se casam "a fim de pagar a dívida dos ancestrais"

14 (222)
Os pessimistas modernos como decadentes:
Schopenhauer
Leopardi Baudelaire
Manlãnder Goncourt
Dostoiévski
Fez-se a tentativa de mau gosto de subsumir Wagner e
Schopenhauer entre os doentes mentais: o que correspondia com-
pletamente à verdade era acentuar a decadência fisiológica cm
seu tipo...

14 (223)
Os judeus fazem a tentativa de se impor, depois de terem
perdido duas castas, a dos guerreiros e a dos agricultores
eles silo, nesse sentido, os "circuncidados"
- eles têm o sacerdote - e, então, imediatamente depois, a
Tschandala ...
Como de costume, eles e·xperimentam uma ruptura, uma
rebelião da Tschandala: a origem do cristianismo.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 357

Com o fato de eles só terem conhecido o guerreiro como o


seu senhor, eles inseriram em sua religião a hostilidade contra os
nobres, contra os aristocratas, os orgulhosos, contra o poder, contra
as classes dominantes - : eles são pessimistas da indignação...
Com isso, criaram uma posição nova importante: o sacer-
dote na ponta da Tschandala -
contra as classes nobres...
o cri.stianismo retirou a última consequência desse movi-
mento: mesmo no sacerdócio j udaico, ele acolheu ainda a casta,
o privilegiado, o nobre -
ele exclui o sacerdote -
Cristão é a Tschandala, que recusa o sacerdote... A Tschan-
dala, que redime a si mesma ...
Por isso, a Revo/11çào Francesa é a filha e a prosseguidora
do cristianismo ... ela tem o instinto contra a Igreja, contra os
nobres, contra os últimos privilegiados - - -

14 (224)
É preciso não confundir isto: os sudras, urna classe de ser-
vos: provavelmente um tipo inferior de povo, que foi previamen-
te encontrado no solo, onde esses arianos tomaram pé ...
Mas o conceito Tschandala expressa os degenerados de to-
das as castas: os materiais para dejeto em permanência que, por
sua vez, se reproduzem entre si
contra eles fala o mais profundo instinto da saúde de uma
raça. Ser duro nesse caso é sinônimo de ser "saudável": trata-se
do nojo ante a degeneração, que encontra u.qui um grande núme-
ro de fórmulas morais e religiosas ...
Nada é mais instrutivo do que os componentes dessa ralé:
- os antigos sábios finos e profundos sabiam o que não se sabia
- até hoje!!!)
: o fato de vicio
doença
perturbação menta.! são sintomas
hipemervosismo de da decadência
certas disposições fisiológica
espirituais
358 FRIEDRICH NIETZSCHE

Eles contam os artistas ellitre os decadentes ...

14 (225)
Supondo que desaparecem as razões para precisar partir da-
quelas hipóteses metafisicas, supondo que não se quer mais rea-
gir, educar, manter seu tipo como o mais elevado e o primeiro:
Supondo que se pense como Tschandala sobre as coisas,
então talvez se encontre uma vez mais toda a cadeia de experi-
ências e conclusões reunidas, que serviam de pressuposto para
aqueles antigos construírem suas hipóteses: quero dizer, encon-
tra-se a "verdade" - mas exatamente na dissolução de toda au-
toridade, de todo respeito ante toda tradição, ante todos os pre-
conceitos morais - nós consumimos o nosso resto de moralidade
herdada junto a esse trabalho ...
aquilo que agora se mostra como ciência é um medidor
de grau para o declínio da crença moral e religiosa: - nós somos
dissolvidos, quando nos encontramos no fim de nossa sabedo-
ria - nós consumimos todas as forças positivas, para o conheci-
mento... O saber em si é impotente: e, no que concerne ao "ego-
ísmo", não estamos de maneira alguma seguros em uma época
de decadência de querermos aq11ilo que é vantajoso para nós: os
impulsos são poderosos demais para que a utilidade permane-
cesse o ponto de vista diretriz - o "altruísmo", a convivência e a
simpatia de todo tipo de sentimentos e estados é nesse caso mais
uma grande doença: trata-se da ,consciência moral da Tschanda-
la, uma fraqueza que está associada ao prazer...

14 (226)
aquilo que cria uma moral, um código, o instinto profundo
em relação ao fato de que só o automatismo toma possível a per-
feição na vida e na criação...
Mas agora alcançamos o ponto oposto, nós quisemos al-
cançá-lo - a mais extrema consciência, o autodesvendamento do
homem e da história ...
- com isso, estamos praticamente no ponto mais distante
da perfeição no ser, no fazer e no querer: nossos desejos, nossa
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 359

vontade mesma de conheciment,o é um sintoma de uma decadên-


cia descomunal... Nós aspiramo,s ao contrário daquilo que raças
fortes, naturezas fortes - querem
- o conceber é um fim ...
O fato de a ciência ser possível nesse sentido, tal como
ela é hoje empreendida, é a prova de que todos os instintos ele-
mentares, todos os instintos de defesa e de proteção da vida não
funcionam mais -
nós não reunimos mais, nós dissipamos os capitais dos an-
cestrais, mesmo sob o modo como conhecemos -

14 (227)
Com uma palavra arbitrária e em todos os aspectos con-
tingente, com a palavra "pessimismo", cometemos um abuso,
que se tomou completamente contagioso: desconsiderou-se, com
isso, o problema em que vivemos, o problema que somos -
não se trata de saber quem tem razão - o que é preciso per-
guntar é a que lugar penencemos, se aos condenados, às figuras
do declí.nio... Nesse caso,julgamos de modo niilista.
Colocaram-se dois modos: de pensamento um contra o ou-
tro, como se eles tivessem de brigar um contra o outro sobre a
verdade: sendo os dois apenas sintomas de estados, e sua luta pro-
vando a presença de um problema cardinal da vida - e não de um
problema de filósofos, A que lugar pertencemos? - somos - - -
(15 = Inverno li 6a. Início do ano 1888)

15 (!)
Crítica aos va /ores modernos
As instituições liberais
O altruísmo da moral
A sociologia
A prostituição
O casamento
O crime

15 (2)
A vida "ascendente" e a vida descendente: as duas formu-
lam para si suas necessidades supremas e as transformam em tá-
buas de valores.
Como é que se chega ao fato de os valores supremos nos
quais se acredita, todos juntos - - -

15 (3)
Em todos os casos nos quais dar à luz uma criança seria
um crime, por exemplo, nos doentes crônicos e neurastênicos
de terceiro grau; cm todos os casos nos quais, por outro lado,
apresentar meramente um veto, ao impulso sexual acabaria em
desejos castos (- com frequência, esse impulso tem em desva-
lidos desse tipo uma excitabilidade repulsiva), é preciso exigir
que a procriação seja interrompida. A sociedade não conhece
pouco tais exigências fundamentais e urgentes desse tipo. Aqui
não é suficiente o desprezo, a declaração de desonra social como
meio para refrear uma fraqueza infame de caráter: sem levar em
consideração classe, nível hierárquico e cultura, ter-se-ia o di-
reito de proceder com as mais duras punições patrimoniais, sob
certas circunstâncias mesmo com a perda da "liberdade", com
circunspecção ante tais crimes. Colocar uma criança no mundo,
no qual não se tem por si mesmo o direito de estar, é pior do que
roubar uma vida. O sifilitico que gera uma criança fornece a cau-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 361

sa para toda uma cadeia característica de uma vida equivocada,


ele cria uma objeção contra a vida, ele se mostra um pessimista
da ação: com certeza, por meio dele, o valor da vida é reduzido
ao indeterminado. -

15 (4)
Não se acaba com a prostituição; há mesmo razões para
se desejar que ela não seja suprimida. Consequentemente - ela
deveria ser enobrecida: espero que se compreenda esse "conse-
quentemente"? Em que se sustenta, porém, o fato de algo se tornar
desprezível? No fato de ele ter sido desprezado por muito tempo.
Com isso, se as pessoas pararem de desprezar as prostitutas, elas
não terão mais nenhuma razão para desprezar a si mesmas. Por
fim, as coisas se encontram por toda parte melhores do que es-
tão conosco: em todo o mundo, a prostituição é algo inocente e
ingênuo. Há culturas na Ásia nas quais as prostitutas desfrutam
até mesmo de grandes honrarias. A infâmia não reside de maneira
alguma na coisa mesma, ela é amtes inserida por meio do caráter
antinatural do cristianismo, daquela religião que tomou sujo até
mesmo o ato sexual!. .. La filie canaillew é uma especialidade
cristã: a Europa, porém, é o solo favorável ao seu crescimento, e
as grandes cidades da Europa são os sítios nos quais prospera seu
superlativo... - Problema: quais são as condições que fornecem
à capital do império neogennânico uma superioridade na arte de
tomar pérfidas as prostitutas?... Uma questão permitida: mas as
pessoas se envergonham de lhe responder de maneira alemã...

15 (5)
Crítica à filosofia.
Em que medida a filosofia é um fenômeno da decadência:
Sócrates, Pirro.
A idiossincrasia dos filósofos contra os sentidos:
seu "mundo verdadeiro"

242 N.T.: Em francês no original: A menina pervertida.


362 f RIEDRICH NIETZSCHE
············ .. ····· .. ··················"······ ............................................... .
O que é o medo diante dos sentidos e da paixão...
Os filósofos como mora/is1as: eles minam o naturalismo
da moral
Crítica ao aprimoramento moral.
O remorso
da filosofia da compaixão
O filósofo e a convicção.
Como o mundo verdadeiro se transformou em fábula.
Critica da arte.
Crítica da religião.
Religião.
Sua origem a perigosa incompreensão
Sobre a história do conceito de Deus.
Paganismo. Cristianismo.
O ideal cristão.
O perigoso no cristianismo.

15 (6)
1.
A erupção da arte de Wagner: ela continua sendo nosso
último acontecimento na arte. O quanto ela não desponta desde
então por toda parte como um vulcão! Antes de tudo de maneira
muito ruidosa: não se têm mais. boje, como outrora, os ouvidos
para compreender!... As pessoas têm os ouvidos hoje quase para
não compreender mais nada!... O próprio Wagner, sobretudo,
permanece incompreendido. Ele continua sendo sempre uma
terra incógnita. As pessoas por vezes o idolatram. Também se
está disposto a compreendê-lo? O wagneriano típico, um ser qua-
drangular em todos os aspectos., acredita em Wagner: evidente-
mente, também em um Wagner quadrangular... mas Wagner era
tudo menos quadrangular: Wagner era "wagnérico". Perguntei-
-me se já houve efetivamente alguém moderno, mórbido, múlti-
plo e tortuoso o suficiente para ser considerado preparado para
o problema Wagner? No máximo na França: Charles Baudelaire,
por exemplo. Talvez também os irmãos Goncourt. Os editores da
"Faustine" desvendariam certamente algo em Wagner... mas lhes
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 363

falta a música no corpo. - Será que as pessoas compreenderam


o fato de os músicos como um todo não serem psicólogos? O
não-querer-saber-aqui funciona entre eles como um instrumen-
to, digamos, como o gênio de seu instrumento... eles não teriam
mais confiança, se eles se compreendessem... Não se diz "vã com
Deus" em vão aos conceitos e às palavras: acaba-se caindo por
meio da vontade no inconsciente... Daí se segue algo aflitivo:
ou bem alguém é músico e, então, não compreende os senhores
músicos (incluindo ai a si mesmo) - mas, sim, a música. Ou bem,
porém, ele é psicólogo: e, então, provavelmente não compreenda
a música, de tal modo que, por conseguinte, também não com-
preende os senhores músicos... Essa é a anti11omia. E, por isso, só
hã até aqui falatório tanto sobre Beethoven quanto sobre Wagner
como músicos. -

2.
Felizmente, Wagner s6 :se tomou parcialmente músico:
Wagner como um todo era algo diverso de um músico e até mesmo
antes ainda o seu oposto. Nele, os alemães receberam de presente
o mais extraordinãrio gênio do teatro e do espctãculo que já houve
até aqui. Não entendemos nada de Wagner, se não o entendemos
a partir desse lado. Serã que Wagner, precisamente com esses ins-
tintos, era alemão? ... Mas é o contrãrio que estã mais à mão. Os
alemães acolhem seus grandes homens como exceções e oposição
mesmo em relação às suas regras: Beethoven, Goethe, Bismarck,
Wagner- nossos últimos quatro grandes homens - : é possível de-
duzir deles da maneira mais rigorosa poss[vel aquilo que funda-
mentalmente não é alemão, que é agermãnico, antigermânico ...

3.
Wagner era tão pouco um. músico que chegou mesmo a fa.
lar de maneira mais determinada sobre todas as leis musicais, que
sacrificou o estilo em geral na música, a fim de fazer dela uma
espécie de retórica, um meio de expressão, de intensificação da
sugestão, do psicológico-pitoresco. A música de Wagner, quando
não é avaliada pela ótica e pela solidez do teatro, mas, antes,
364 FRIEDRICH NIETZSCHE

como música em si, é simplesmente música ruim, uma não mú-


sica: nunca conheci pessoa alguma que não soubesse disso. Os
ingênuos acreditam estar lbe fazendo uma honra ao decretarem:
Wagner criou o estilo dramático na música. Esse "estilo dramá-
tico" é, dito sem rodeios, a falta de estilo, a aversão ao estilo,
a impotência para o estilo transformadas em princípio: música
dramática, compreendida assim, é um sinônimo para "a pior de
todas as músicas possíveis"... Não se faz justiça a Wagner quan-
do se procura transformá-lo em um músico.

4.
A música de Wagner como tal é insuportável: precisa-se do
drama como uma forma de redenção em relação a essa música.
E, então, compreende-se de um:a só vez a magia que ainda pode
ser exercida com uma arte por assim dizer circuncidada e trans-
formada em algo elementar! Wagner tem quase uma consciência
sinistra de tudo o que é elementar no efeito da música: pode-se
denominá-lo sem exagero o grande mestre da hipnose, mesmo
ainda em uma época de bruxas e bruxos. Ele se movimenta, ele
busca, ele corta, ele faz gestos: - ele é compreendido... as mo-
cinhas já são frias ... Wagner numca calcula como músico a partir
de uma consciência qualquer de músico: ele quer um efeito, ele
calcula a partir da ótica do teatro ... Nada lhe é mais oposto do
que a divindade secreta e monológica da música de Beethoven,
do autorressoar da solidão, do pudor ainda no soar... Wagner é
inofensivo, como Schiller era inofensivo, como todos os homens
de teatro são inofensivos: sob certas circunstâncias, ele precisa
da crença dos ouvintes para ouvirem justamente tal música diver-
sa - ele a constrói. Parece-nos que ele a constrói: nós monstros
mesmos somos enganados... Em seguida, compreendemos bem
demais que somos enganados: mas o que importa a um artista
de teatro o ''em seguida"!. .. Ele tem o instante para si: Wagner
convence incondicionadamente. ''Não há em parte alguma con-
trapostos autênticos em Wagner" - assim fala o "em seguida".
Mas, para quê, também! Nós estamos no teatro, e basta acreditar
que há algo assim como um contraponto...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 365

5.
O efeito da arre wagneriana é profundo, ele é antes de tudo
pesado: de onde isso provém? Como insinuamos, isso não pro-
vém de início da música: nem mesmo toleraríamos a música, se
não lõsscmos arrebatados jâ por algo diverso e se já não tivés-
semos perdido nossa liberdade. O elemento diverso é o páthos
wagneriano, ao qual ele apenas .adicionou a sua música. Trata-se
do poder descomunal desse páthos, de sua capacidade de prender
a nossa respiração, de um não querer mais nos deixar em paz que
é próprio a um sentimento extremo, trata-se da extensão assus-
tadora desse páthos, com a qual Wagner nos vence e sempre nos
vencerá: - de tal modo que ele nos convence por fim até mesmo
para a sua música ... Será que com tal páthos se é um gênio? Ou
mesmo apenas se pode ser?... Compreendeu-se por vezes pelo
gênio de um artista a sua mais elevada liberdade sob a lei, sua
leveza divina, sua leviandade em meio ao que há de mais pesado.
Poder-se-ia dizer: "Wagner é pesado, muito pesado: consequen-
temente - ele não é nenhum gênio?" Mas talvez se esteja sendo
injusto ao transformar os pés leves no caráter tipológico do deus.
- Outra questão, para a qual temos em mãos uma resposta mais
determinada, é a seguinte: será que Wagner, precisamente com
um tal páthos, é alemão? É um homem alemão? Nunca! Talvez
uma exceção dentre todas as exceções... !

6.
A sensibilidade de Wagner não é alemã: tanto mais alemão
é o seu tipo de espírito e de espiritualidade. Sei muito bem por
que os jovenzinhos alemães se sentiram bem com ele de uma
maneira incomparável, em meio à profundidade, à pluralidade, à
profusão, ao arbítrio, à incertcz.a no elemento espiritual wagne-
rianos: com isso, eles se sentiram em casa consigo mesmos! Eles
ouvem com encanto, como é que os grandes símbolos e enigmas
vindos de uma distância descomunal ressoam com um trovão su-
ave. Eles não se zangam quando as coisas se mostram por vezes
cinzentas, horríveis e frias: eles estão completamente familiari-
z.ados com esse mau tempo, com o tempo alemão! ... Eles não
366 FRIEDRICH NIETZSCHE

sentem falta daquilo que nós outros sentimos falta: chiste, fogo,
graça; a grande lógica; a espiritualidade petulante; a felicidade
alciônica; o céu brilhante com suas imagens de estrelas e seus
tremores provados pela luz.

7.
A sensibilidade de Wagner não pertence à Alemanha: é
possível encontrá-la entre aqueles homens que se acham mais
aparentados com Wagner, os românticos franceses. A paixão, ta.1
como Wagner a compreende, é cm todo caso a contraparte da
"liberdade do espírito própria à paixão", para falar como Schil-
ler, como a sensibilidade romântica alemã. Schiller 6 tão alemão
quanto Wagner é francês. Seus heróis, seus Rienzi, Tannhiiuser,
Lobengrin, Tristão, Parsival - e]es têm sangue nas veias, não há
dúvida - mas certamente não um sangue alemão! E quando eles
amam, esses heróis - eles amam mulheres alemãs?... Tenho dú-
vidas quanto a isso: mas duvido ainda mais de que eles viriam a
amar precisamente heroínas wagnerianas: que povo pobre e que
preparado construído a partir de todos os tipos de experimen-
tos neurótico-hipnótico-eróticos de psicólogos parisienses! Será
que as pessoas já notaram que nenhuma delas jamais gerou uma
criança? - Elas não o conseguem!...

8.
Hoje não se quer falar de modo algum sobre o quanto
Wagner deve à França, o quanto ele mesmo pertence a Paris. A
ambição do grande estilo em um artista - mesmo essa ambição
é francesa em Wagner... E a grande ópera! E a competição com
Meyerbeer! E até mesmo os meios meyerbeerianos! O que há
nisso de alemão? ... Por fim, ponderemos de qualquer modo o
decisivo: o que caracteriza a atividade artística wagneriana? O
histrionismo, a encenação, a arte da étalage,243 da vontade do
efeito pelo efeito, o gênio da apresentação, da representação, da
imitação, da exposição, da significação, da aparência: trata-se,
aqui, de um tipo qualquer alemão de talento? ... Atê aqui, sabe-

243 N,T,: Em francês no original: exposição de mercadorias à venda.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 367

mos muito bem disto, tivemos nesse ponto a nossa fraqueza - e


não queremos fazer para nós dessa fraqueza nenhum motivo de
orgulho1.... mas
u esse e· o genw
' 'dar " /. ...
rança

15 (7)
O romântico
O naturalismo

15 (8)
Progresso. VI
Que nós não nos iludamos! O tempo caminha para frente -
nós gostaríamos de acreditar que, tudo aquilo que se encontra nele
também caminha para frente... que o desenvolvimento é um desen-
volvimento para frente... Essa é a aparência, pela qual os homens
mais prudentes são seduzidos: mas o século XIX não representa
nenhum progresso em relação ao XVI: e o espírito alemão de 1888
é um retr0cesso em relação ao esp!rito alemão de 1788... A"huma-
nidade" não avança, ela nem mesmo ex.iste... O aspecto conjunto
é o de uma descomunal caixa de ferramentas, na qual algo tem
sucesso, disperso por todos os tempos, e algo indizível fracassa, na
qual falta completamente toda ordem, lógica, ligação e obrigato-
riedade... Como é que podemos desconhecer o fato de que o sur-
gimento do cristianismo é um movimento de decadência? ... O fato
de a reforma alemã ser um recrudescimento da barbárie cristã?...
O fato de a revolução ter destruído o instinto para a grande orga-
nização, a possibilidade de uma sociedade?... O homem não é ne-
nhum progresso cm relação ao anima.!: o último rebento da cultura
é um aborto em comparação com o árabe e com o corso; o chinês é
um tipo bem-educado, a saber, mais duradouro do que o europeu...

15 (9)
Jesus: Dostoiévski
Só conheço um psicólogo que viveu no mundo onde o cris-
tianismo é possível, onde um cristão pode surgir a cada instante...
Esse psicólogo é Dostoiévski. Ele desvendou o Cristo: - e, ins-
tintivamente, ele se manteve, sobretudo, cauteloso ante a possi-
bilidade de imaginar esse tipo com a vulgaridade de um Renan ...
368 FRIEORICH NIETZSCHE

E, em Paris, acredita-se que Rcnan sofria em muitos aspectos


de finesse!... Mas será que é possível incorrer em um erro mais
terrível do que o de transfonnar o Cristo, que era um idiota, em
um gênio? Do que se sair com mentiras e fazer do Cristo, que
representava o oposto de um sentimento heroico, um herói?

15 (10)
O que é trágico.
Coloquei reiteradas vezes o dedo na ferida da grande in-
compreensão de Aristóteles, no fato de ele ter acreditado poder
reconhecer em dois afetos depressivos, no horror e na compaixão,
os afetos trágicos. Se ele tivesse razão, então a tragédia seria uma
arte perigosa para a vida: diante dela, seria preciso fazer adver-
tências como diante de algo nocivo para a comunidade e suspei-
to. A arte, de resto o grande estimulante da vida, uma embriaguez
de vida, uma vontade de vida, se mostraria aqui, a serviço de um
movimento descendente, por assim dizer como serva do pessi-
mismo, como nociva à saúde. (Pois simplesmente não é verdade
que as pessoas se "purguem" desses afetos por meio do estimulo
ao seu aparecimento, tal como Aristóteles parece acreditar.) Algo
que habitualmente desperta horror ou compaixão desorganiza,
enfraquece e desencoraja: - e supondo que Schopenhauer tivesse
razão no fato de termos de dedu.zir da tragédia a resignação, isto
é, uma suave abdicação à felicidade, à esperança, à vontade de
vida, então se estaria concebendo, com isso, uma arte, na qual a
arte negaria a si mesma. Tragédia significaria, então, um proces-
so de dissolução, com os instintos da vida se destruindo na pró-
pria arte. Cristianismo, niilismo, arte trágica, decadência fisioló-
gica: isso se manteria de mãos dadas, se tomaria preponderante
na mesma hora, isso se impeliria mutuamente para frente - para
baixo!... a tragédia seria um sintoma da decadência.
Pode-se refutar essa teoria da maneim mais fria possivel: a
saber, na medida cm que se mede por intermédio do dinamôme-
tro o efeito de uma emoção trágica. E alcança-se como resultado
aquilo que, psicologicamente, só a absoluta mendacidade de um
sistemático poderia em última instância negar - : o fato de a tragé-
dia ser um tonicum. Se Schopenhauer não quis entender as coisas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 369

aqui, se ele estipulou a depressão conjunta como estado trágico, se


ele deu a entenderem relação aos gregos (- que, para seu desgosto,
não "se resignaram"...) que eles oão teriam alcançado o caráter
elevado da visão de mundo: então isso é, partí pris, lógica do sis-
tema, falsificação própria a wn sistemático: uma daquelas terrlveis
falsificações que estragaram em Schopenhauer passo a passo a sua
psicologia (: ele, que tinha se relacionado a partir de uma violenta
e arbitrária incompreensão com o gênio, a arte mesma, a mora~ a
religião pa1,>ã, a beleza, o conhecimento e com praticamente tudo
Aristóteles
Aristóteles queria ver considerada a tragédia como um pur-
gativo de compaixão e horror - como uma útil descarga de dois
afetos desmedidamente acumulados...
Os outros afetos atuam tonicamente: mas apenas dois afe-
tos depressivos - e, por conseguinte, esses são particularmente
desvantajosos e ruins para a saú.de - a compaixão e o horror de-
veriam ser, segundo Aristóteles. eliminados do homem pela tra-
gédia como por meio de um purgante: a tragédia, na medida em
que desperta esses estados em excesso, redime o homem deles. A
tragédia como um tratamento contra a compaixão.

15 (li)
O senhor é hoje o único músico, que faz música de acordo
com o meu coração: de maneira parca, será que vos compete tudo
aquilo que tenho no coração contra a música atual?
O gosto pela música de Wagner compromete. Digo isso
como alguém que se apresenta - eu me comprometi.

15 (12)
Para a critica a Wagner
A música de Wagner é antigoethiana.
De fato, falta Goethe na música alemã, assim como ele
também não se apresenta na política alemã. Em contrapartida: o
quanto de Schiller, ou, dito mais exatamente, o quanto de Tekla
há em Beethoven!
Muito de um estilo burguês, muita unção.
370 fRIEDRICH NIETZSCHE

Wagner não tem ideia alguma, exatamente como V. Hugo:


mas ele sabe nos aterrorizar enormemente com um sinal ao invés
de com uma ideia - -
Busco as causas para o extremo esgotamento que a arte de
Wagner traz consigo
a ótica mutãvel:
a resistência fisiológica:
respiração
curso
o exagero constante: a intenção sorrateira tirânica
a excitação dos nervos mórbidos e
dos centros por meios aterrorizantes
seu sentido temporal

15 (13)
Um prefácio
Tenho a felicidade e ao mesmo tempo a honra também de
ter reencontrado depois de milênios inteiros de confusão e con-
fusão o caminho que conduz a um sim e a um não.
Ensino o não a tudo o que enfraquece - o que esgota.
Ensino o sim a tudo o que fortalece, o que acumula força,
o que - - - o orgulho
Não se ensinaram até aqui nem uma coisa nem outra: ensina-
ram-se a virtude, o desprendimento de si, a compaixão, ensinou-se
mesmo a negação da vida... Todos esses são valores dos esgotados.
Uma longa reflexão sobre a fisiologia do esgotamento
impeliu-me à questão: o quão amplamente teriam penetrado os
juízos dos esgotados no mundo dos valores?
Meu resultado foi tão surpreendente quanto posslvel, mes-
mo para mim, que jâ me sentia em casa em alguns mundos estra-
nhos: achei todos os juízos de valor supremos, todos aqueles que
se assenhorearam da humanidade, ao menos da humanidade
que se tomou inofensiva, redutíveis aos juizos dos esgotados.
Sinto primeiramente a aoc.essidadc de ensinar que o crime,
o celibato, a doença são consequências do esgotamento...
Sob os nomes mais sagrados destaquei as tendências des-
trutivas; chamou-se de Deus aquilo que enfraquece, que ensina a
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 371

fraqueza, que infecta com fraqueza ... achei que o "homem bom"
é uma forma de autoafinnação da decadência.
Aquela virtude, em relação à qual Schopenhauer ainda
nos ensinou que ela seria a virtude suprema, a única virtude e o
fundamento de todas as virtude:s: justamente aquela compaixão,
reconheci como mais perigosa dlo que qualquer vicio. Riscar fun-
damentalmente a escolha no gênero, sua purificação de detritos
- foi isso que se denominou até aqui a virtude par excel/ence.
A raça é degradada - não por meio de seus vícios, mas por
meio de sua ignorância: ela é es.tragada, porque não compreende
o esgotamento como esgotamento: as confusões fisiológicas são
as causas de todo mal, <porque> seu instinto foi desencaminhado
pelos esgotados e levado a encobrir o que há neles de melhor e a
perder o fiel da balança... Precipitar-se aí - negar a vida - , isso é
que, para eles, deveria ser experimentado como ascensão, como
transfiguração, como divinização.
A virtude é nossa grande incompreensão.
Problema: como é que os esgotados chegaram a construir
as leis dos valores?
Perguntado de outra forma: como é que aqueles que são os
últimos chegaram ao poder?... Conhece a história! Como é que o
instinto do animal homem é colocado de cabeça para baixo?...
Gostaria de precisar o conceito de "progresso" e temo que,
para tanto, teria de bater na cara das ideias modernas (meu consolo é
o fato de que elas não possuem nenhum rosto, mas apenas larvas...
Devem-se amputar membros doentes: primeira moral da
sociedade.
Uma correção dos instintos: sua libertação ante a ignorância...
Desprezo aqueles que exi.gem da sociedade que ela se co-
loque contra os que lhe causam danos. Isso está longe de ser su-
ficiente. A sociedade é um corpo no qual nenhum membro pode
ficar doente, caso ela não queira cm geral correr perigo: um
membro doente, que degrada, precisa ser amputado: denominarei
expressamente os tipos amputáveis da sociedade...
Deve-se honrar o destino fatídico: o destino fatídico que
diz para os fracos: perecei ...
372 FRIEDRICH NIETZSCHE

Chamou-se de Deus o fato de se resistir ao destino fatídico


- o fato de se ter degradado e apodrecido a humanidade... Não se
deve citar o nome de Deus em vão...
Nós anulamos quase todos os conceitos psicológicos, aos
quais se encontrava atrelada a história da psicologia até aqui - o
que significa da filosofia!
nós negamos que haja vontade (para não falar de "vontade
livre")
nós negamos a consciência, como se ela fosse uma unidade
e uma faculdade
nós negamos que seja pensado (: pois nos falta aquilo que
pensa e, do mesmo modo, aquilo que é pensado
nós negamos que haja uma causalidade real entre as ideias,
tal como acredita a lógica
Meu escrito volta-se contra todos os tipos naturais da deca-
dência: eu pensei da maneira mais abrangente e radical possível
os f<m()menos <!o niilismo
Ou seja, o aniquilador nato - - -

15 (14)
Perdoai-me! Em tudo isso fala o jogo antigo de 1830. Wag-
ner acreditou no amor, ta.1como todos os românticos dessa década
desvairada e sem cultivo. O que restou disso? Essa divinização
absurda do amor, e, ao lado daí, também a digressão e mesmo o
crime - o quão falso isso se nos mostra hoje! O quão gasto antes
de tudo, supérfluo! Nós nos tomamos mais rigorosos, mais duros,
mais impacientes em relação a tal psicologia vulgar, que ainda se
acreditava até mesmo "idealista" - nós somos cínicos mesmo em
relação a essa mendacidade e romantismo do "belo sentimento" -

15 (15)
Somente tendo ficado para trás (ou tendo voltado atrás)
para ainda acreditar hoje nos problemas de Wagner! Para não
falar sobre as mulheres wagnerianas!
Todas elas são pessoas doentias, oom toda a sua musculatura de
fanfarra. .. Os senhores notaram qoo elas jamais geram uma criança?...
Elas não o conseguem ... E quando há wna exceção, ao que Wagner se
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 373

atém para tomar crivei essa exceção?... Os senhores bem o sabem


- - foi nesse ponto apenas que Wagner corrigiu a antiga saga...
Ou será que os senhores: conseguem suportar os heróis
wagnerianos? Todos esses seres impossíveis, tal como ele os
colocou em cena e os transpôs para a música? Com músculos
oriundos de tempos remotos e com nervos de depois de amanhã?
Heroicos ao mesmo tempo e - nervosos! Qualquer fisiólogo diz
quanto a isso: essa mistura é falsa!
Naturalmente - ele colocou ao seu lado por meio daí as
mulheres velhas e jovens: elas amam tais heróis - elas talvez
também amem o impossível...
Elas amam cm todo caso os loiros sagrados, o tipo de Par-
s.ifal - tudo aquilo em que hã uma sensibilidade preexistente ...
O quanto de uma tenra curiosidade não é inspirado de qualquer
modo por tal caso! O quanto de amabilidade ele não permite! ...
Em suma, Beawnarchais presenteou as mulheres com seu queru-
bim, Wagner - seu Parsifal... o mais astuto -

15 (16)
Wagner como modelo.
Wagner como perigo.
Wagner e os judeus.
A "mulher" wagneriana: ele não conhece senão a mulher
ordinária histérica. Por que é que precisamente nesse ponto a ilu-
são se toma cada vez mais imposslvel?

Wagner e a forma dramática


A relação de Wagner com a França - "europeia"
A relação de Wagner com o cristianismo e com a cultura:
- O romântico e o niilista -
transformação típica, corn o retomo final normal ao cris-
tianismo.

15 (17)
Cristianismo...
Os senhores sabem que é por outra razão que não perdoo
Wagner por seu Parsifal. Essa é uma questão de probidade - e,
374 FRIEDRICH NIETZSCHE
················•·························..... ........................................... ....
,

se os senhores quiserem, de hierarquia. Pertence-se a esse espaço


ou pertence-se àquele, um de cada vez.
Quem se toma hoje ambíguo para mim em sua relação
com o cristianismo, para esse não ofereço nem mesmo o último
dedo de minhas duas mãos. Não hâ aqui senão uma prestação de
contas: um não incondicionado, um não da vontade e da ação ...
Quem ainda é capaz de me mostrar algo mais refutado, algo tão
definitivamente condenado por todos os sentimentos valorativos
do que o cristianismo? Ter reconhecido nele a sedução como se-
dução, nele o grande perigo, o caminho para o nada, que soube se
fazer passar pelo caminho para a divindade - ter reconhecido es-
ses valores eternos como valores caluniadores - o que senão isso
constitui o nosso orgulho, a nossa distinção há dois mil anos?...

15 (18)
Filósofo
Seriedade.
.....
E com toda a maior seriedade - ele mesmo jâ não é uma
doença? E um primeiro embrutecimento?
O sentido para o feio desperta ao mesmo tempo em que
desperta a seriedade; já se deformam as coisas, quando se as to-
mam seriamente...
Se levannos a mulher a sério: o quão feia se toma imedia-
tamente a mais bela mulher!.. .
.....
É dificil ficar sério aqui. Em meio a esses problemas, as pes-
soas não se transfonnam em realizadores de serviços funerários ...
A virtude em especial implica g,cstos corporais, o fato de que se
precisa ser dispéptico, para manter, apesar disso, a sua dignidade.
.....
Rir - é mais ou menos, se não a resposta mais inteligente,
de qualquer modo a resposta mais sábia a tais questões ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 375

15 (19)
Cristianismo
Até aqui sempre se atacou o cristianismo de uma maneira
falsa e não meramente de uma maneira modesta. Enquanto não
se sentir a moral do cristianismo como um crime capital à vida,
os seus defensores tirarJo tudo de letra. A questão da mera "ver-
dade" do cristianismo - seja com vistas à existência de seu Deus,
seja com vistas à historicidade da lenda de seu surgimento, para
não falar da astronomia e da ciência natural cristã - é uma ques-
tão totalmente secundãria, enquanto não se tocar no problema do
valor da moral cristã. A moral do cristianismo serve para alguma
coisa ou é uma profanação e uma vergonha, apesar de toda sacra-
lidade das artes de sedução? Há esconderijos de todo tipo para
o problema da verdade; e os mais crentes podem se servir em
última instância da lógica dos mais descrentes, a fim de alcançar
para si um direito a afirmar certas coisas como irrefutáveis - a sa-
ber, como estando para além dos meios de toda refutação (- esse
artifício é chamado hoje de "criticismo kantiano" -

15 (20)
Para o plano.
1) O mundo verdadeiro e o mundo aparente
2) Os filósofos como tipos da decadência
3) A religião como expressão da decadência
4) A moral como expressãio da decadência
5) Os contramovimentos: :por que eles silo vencidos.
6) Ao que pertence o nosso mundo moderno, ao esgota-
mento ou ao despontar? - Sua pluralidade e inquietude são con-
dicionadas pela forma suprema da cooscientização
7) A vontade de poder: tornar-se consciente da vontade de
vida...
8) A medicina do futuro.
8: 600 70 páginas
56
40
Em relação a 1) "Mundo verdadeiro e mundo aparente"
376 f RIEORICH NIETZSCHE

1) Tal justaposição degrada o "mundo aparente"


2) Refletindo uma vez mais: não seria necessário, que o
mundo aparente fosse com isso degradado.

15 (21)
Castidade VI
No caso dos sacerdotes indianos, não precisamos levar em
conta apenas o rancor peculiar em relação à sensibilidade (- nes-
se ponto justamente eles concordam: eles consideram, assim, a
sensibilidade como um inimigo pessoal). O essencial é o fato de
que só uma rigorosidade extrema nesse aspecto é capaz de manter
o fundamento de toda ordem, que ela criou, o conceito de casta,
a distância entre as castas, a pureza das castas...
Eles exigem o casamento, com todo o rigor, eles se en-
contram, de maneira semelhante aos chineses, no fim oposto ao
adormecimento europeu - eles consideram um dever religioso
ter um filho, eles tomam a salvação pessoal no além dependen-
te do fato de que se tem um fillbo. Não há como colocar valor
suficiente sobre tal meditação, uma meditação cem vezes mais
digna e mais séria do que a do cristianismo. No cristianismo, o
casamento é considerado como coitus, e nada além disso - como
uma concessão à fraqueza humana e como o ventre de todo o tipo
de pularia.

15 (22)
Com essa pior de todas as músicas ruins possiveis, com
essa inquietude e deformidade que avança de compasso em com-
passo, que pretende Si!,'llificar paixão c que é, em verdade, o nível
mais baixo do embrutecimento estético, não tenho nenhuma co-
miseração: é preciso colocar um fim nisso.

15 (23)
Renasciment,o e Reforma
O que demonstra o Renascimento? O fato de o reino do
"individuo" só poder ser breve. A dissipação é grande demais;
falta a possibilidade mesmo de reunir, de capitalizar, e o esgota-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 377

mento segue o rastro de perto. Trata-se de tempos nos quais tudo


é desperdiçado, nos quais é desperdiçada a própria força, com a
qual se reúne, se capitaliza, se acumula riqueza sobre riqueza...
Mesmo os adversários de tais movimentos são obrigados a wn
desperdício absurdo de força; eles também ficam logo esgotados,
extenuados, áridos.
Na Reforma, temos uma contrapartida desértica e plebeia
ao Renascimento na Itália, impulsos congêneres surgiram, só que
esses impulsos precisaram se travestir religiosamente no Norte,
que tinha ficado para trás, que tinha permanecido comwn - lá,
o conceito da vida mais elevada ainda não tinha se destacado da
vida religiosa.
O indivíduo também procura a liberdade com a Refonna;
"cada um é o seu próprio padr,e " - essa é também wna mera
fónnula da libertinagem. Em verdade, seria suficiente uma pala-
vra - "liberdade evangélica" -, e todos os instintos, que tinham
fundamento para pennanecerem velados, irromperam como cães
selvagens, as necessidades mais brutais alcançaram de uma só
vez a coragem para se assumirem, tudo parecia justificado ... As
pessoas tomaram cuidado para o.ão conceberem que liberdade se
tinha no fundo em comum, fecharam-se os olhos diante de si...
Mas o fato de se terem fechado os olhos e de se terem enredado
os lábios com discursos fanáticos não impediu que as mãos se
ativessem a algo que estava ali para ser pego, que a barriga setor-
nasse o Deus do "evangelho livre", que os apetites de vingança
e de inveja se satisfizessem em uma ira insaciável. .. Isso durou
algwn tempo: em seguida surgiu o esgotamento, um roere in ser-
vitium1" geral... Surgiu o século indecente da Alemanha.

15 (24)
Uma comparação do código indiano com o cristão não tem
como ser evitada; nii.o há nenhum meio melhor para ficar saben-
do do caráter imaturo e diletante de toda a tentativa cristã.

244 N.T.: Em latim no original: um dornnlr cm serviço.


378 FRIEORICH NIETZSCHE
............................................... ................................................

15 (25)
IX
Se, por meio do exercício em toda uma série de gerações,
a moral foi por assim dizer comercializada - ou seja, a fineza, a
precaução, a coragem, o caráter módico-, então a força conjunta
dessa virtude acumulada continua irradiando mesmo na esfera
em que a prestação de contas é mais rara, na esfera espiritual.
Em toda conscientização se expressa um desconforto do
organismo: algo novo deve ser tentado, nada é suficientemente
apropriado para tanto, há esforço, tensão, superexcitação - tudo
isso é justamente conscientização... O gênio assenta-se no ins-
tinto; os bens, do mesmo modo. Só se age plenamente na medi-
da em que se age instintivamente. Mesmo considerado moral-
mente, todo pensamento que transcorre conscientemente é uma
mera tentativa, na maioria das vezes a contrapartida da moral. A
retidão cientifica é sempre ex!X)sta quando o pensador começa
a apresentar razões: faz-se um teste, colocam-se os mais sábios
em uma balança de ouro, no momento em que se os faz falar de
maneira moral ...
É possível demonstrar o tato de que todo pensamento, que
transcorre conscientemente, também apresentará um grau muito
inferior de moralidade do que o pensamento do mesmo pensador,
quando ele é conduzido por seus instintos.
Nada é mais raro entre os filósofos do que a retidão in-
telectual: talvez eles digam o contrário, talvez eles cheguem
mesmo a acreditar no contrário. Mas todo o seu trabalho manual
traz consigo o fato de que eles só admitem certas verdades; eles
sabem o que precisam demonstrar, eles praticamente se reconhe-
cem como filósofos no fato de que estão em consonância quanto
a essas "verdades". Essas são, por exemplo, as verdades morais.
Mas a crença na moral ainda não é nenhuma prova de morali-
dade: bâ casos - e o caso do füósofo é um deles - nos quais tal
crença é simplesmente wna imoralidade.

15 (26)
Hoje, quando na vinha do espírito alemão vive a rinoxera
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 {Vol. VII) 379

15 (27)
em cujos seios a juventude erudita bebe hoje o leite da ciên-
cia, professores e outras amas superiores

15 (28)
Sempre se consideraram em todos os tempos os "belos
sentimentos" como argumentos, "o peito erguido" como o fole
da divindade, a convicção como "critério da verdade", a necessi-
dade do advcrsârio como ponto de interrogação em relação à sa-
bedoria: essa falsidade, essa falsificação atravessa toda a história
da filosofia. Deduzindo os céticos notáveis, mas apenas esparsos,
não se mostra em parte alguma um instinto de retidão intelectual.
Por fim, Kant ainda buscou com toda inocência tomar cientifi-
ca essa corrupção dos pensadores por meio do conceito de "ra-
zão prática": ele inventou propriamente uma razão para tanto,
cm cujos casos não precisamos nos ocupar com a razão: a saber,
quando fala a necessidade do co,ração, a moral, o dever.

15 (29)
Decadência X
Dois tipos de moral não podem ser confundidos um com o
outro: uma moral, com a qual o instinto que permaneceu saudá-
vel se volta contra a decadência que começa a despontar - e outra
moral, com a qual justamente essa decadência se formula, justifi-
ca e mesmo conduz para baixo... A primeira costuma ser estoica,
dura, tirânica - o próprio estoicismo foi tal moral do empecilho
- ; a outra é fanática, sentimental, cheia de segredos, ela tem as
mulheres e os "belos sentimentos" a seu favor.

15 (30)
Decadência
"A redenção de toda culpa. "
Fala-se da "profunda injustiça" do pacto social: como se
o fato de uns nascerem sob condições favoráveis e outros sob
condições desfavoráveis fosse desde o principio uma injustiça;
ou mesmo o fato de uns nascerem com essas propriedades e ou-
380 FRIEDRICH NIETZSCHE
...............................................................................................

tros com aquelas. Por parte dos mais sinceros entre esses oposi-
tores da sociedade decreta-se: "nós mesmos somos, com todas as
nossas propriedades ruins, doentias e criminosas que assumimos,
apenas as consequências inevitáveis de uma repressão secular
dos fracos pelos fortes"; eles passam o seu caráter para a conta da
consciência das classes dominantes. E eles ameaçam, vociferam,
amaldiçoam; eles se tomam virtuosos por indignação - eles não
querem se tomar à toa homens ruins, uma canalha... Essa atitude,
uma invenção de nossas últimas décadas, também se chama, até
onde consigo escutar, pessimismo, e, em verdade, pessimismo
por indignação. Ergue-se aqui a pretensão de julgar a história, de
despi-la de sua fatalidade, de encontrar por detrás dela uma res-
ponsabilidade, de encontrar culpados nela. Pois é disto que se tra•
ta: precisa-se de culpados. Os malfadados, os decadentes de todo
tipo estão revoltados consigo mesmos e precisam de vitimas, para
não extinguirem em si mesmos a sua sede por aniquilação (o que
teria em si talvez a razão a seu favor). Para tanto, eles têm neces-
sidade de uma aparência de direito, ou seja, uma teoria com vistas
à qual eles pudessem imputar o fato de sua existência, o seu ser
de tal e tal modo a um bode expiatório qualquer. Esse bode expia-
tório pode ser Deus - não faltam na Rússia tais ateus por ressen-
timento - ou a ordem social, ou a educação e a instrução, ou os
judeus, ou os nobres ou em gera] os bem-validos de todo tipo. "É
um crime ter nascido sob condições favoráveis: pois com isso se
deserdam os outros, se os puseram de lado, condenados ao vicio,
mesmo ao trabalho ... O que eu posso fazer quanto ao fato de ser
miserável! Mas alguém precisa poder fazer algo em relação a isso,
senão não se conseguiria suportar!"... Em suma, o pessimismo
por indignação inventa responsabilidades, a fim de criar para si
um sentimento agradável - a vingança ... "Doce como mel", era
assim que ela já era denominada pelo velho Homero. -

2:.
O fato de tal teoria não encontrar mais compreensão, ou
seja, o fato de não a desprezarmos mais, constitui a parcela de
cristianismo que ainda se acha no sangue de todos nós: de tal
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 381

modo que somos tolerantes em relação a coisas, simplesmente


porque elas cheiram, a distância, algo cristãs... Os socialistas ape-
lam aos instintos cristãos, essa é ainda a sua mais sutil astúcia ...
A partir do cristianismo, nós nos habituamos com o conceito su-
persticioso da "alma", com a "alma imortal", com as mõnadas
animicas, que se encontram pro:priamente em casa em um lugar
totalmente diverso e só se acham casualmente nessas ou naque-
las circunstâncias, que cairam, por assim dizer, no plano terreno,
que se tomaram "carne": todavia, sem que sua essência tivesse
sido tocada por meio daí, para não falar de ser condicionada por
isso. As condições sociais, familiares, históricas não passam de
ocasiões para a alma, talvez impasses; em todo caso, a alma não
é obra dessas condições. Com essa representação, o individuo
se tomou transcendente; ele pode atribuir a si mesmo por con-
ta dessa representação urna importância absurda. De fato, só o
cristianismo desafiou o indivíduo a se arvorar juiz de tudo e de
cada coisa em particular, a mania de grandeza tomou-se para ele
quase um dever: ele tem, sim, de fazer valer um direito eterno
em relação a tudo o que é temporal e condicionado! Que Esta-
do! Que sociedade! Que leis históricas! Que fisiologia! Aqui fala
algo para além do devir, algo imutável em toda história, aqui fala
algo imortal, algo divino, uma alma! Outro conceito cristão não
menos louco tomou-se ainda mais profundamente hereditário na
carne da modernidade: o conceito da igualdade das almas diante
de Deus. Nele, o protótipo de todas as teorias dos direitos iguais
é dado: ensinou-se a humanidade a primeiro balbuciar o principio
da igualdade e fez-se disso depois urna moral: e o que há para se
espantar no fato de o homem ter acabado levando-o a sério e con-
siderando-o praticamente! Ou seja, politicamente, democratica-
mente, socialisticamcnte, de modo pessimista por indignação...
Onde quer que responsabilidades tenham sido buscadas,
quero estava procurando por elas sempre foi o instinto de vingan-
ça. Por milênios, esse instinto de vingança se assenhoreou a tal
ponto da humanidade que toda a metafisica, psicologia, represen-
tação histórica, assim como, sobretudo, a moro/, foram marcadas
distintivamente por ele. Até o ponto cm que o homem conseguiu
382 FRIEDRICH NIETZSCHE

pensar, ele arrastou consigo o bacilo da vingança para cima das


coisas. Com isso, ele adoeceu até mesmo Deus, destruiu cm geral
a inocência da existência: a saber, por meio do fato de ter remetido
todo ser de tal e tal modo a vontades, a intenções, a atos da respon-
sabilidade. Toda a doutrina da vontade, essafalsificação fatidica na
psicologia até aqui, foi essencialmente inventada com a finalidade
da vingança. Foi a utilidade social da pena que afiançou a esse
conceito sua dignidade, seu poder, sua verdade. Temos de buscar
os autores da psicologia antiga - da psicologia da vontade - nas
classes que tinham o direito penal nas mãos, sobretudo na classe
dos sacerdotes no ápice da mais antiga comunidade: eles queriam
criar para si um direito de se vingar - ou eles queriam criar para
Deus um direito à vingança. Foi com essa fmalidadeque o homem
foi pensado "livre"; foi com essa finalidade que toda ação precisou
ser pensada como querida, foi com ela que a origem de toda ação
precisou ser pensada como resi.dindo na consciência. Somente
nessas sentenças a antiga psicologia é conservada. - Hoje, quando
a Europa parece ter entrado no movimento oposto, quando nós,
alciõnicos, buscamos retirar, extrair, extinguir com toda força uma
vez mais o conceito de culpa e o conceito de pena do mundo,
quando a nossa grande seriedade está empenhada em purificar a
psicologia, a moral, a história, a natureza, as instituições sociais e
as sanções, assim como Deus mesmo dessa sujeira - em quem é
que precisamos ver nossos antagonistas mais naturais? Justamen-
te naqueles apóstolos da vingança e do ressentimento, naqueles
pessimistas por indignação par excellence, que transformam em
missão sacralizar a sua sujeira sob o nome de "indignação"... Nós
outros, que desejamos reconquis,tar para o devir a sua inocência,
gostaríamos de ser os missionários de um pensamento mais puro;
de que ninguém deu ao homem as suas propriedades, nem Deus,
nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais, nem ele mesmo -
de que ninguém é culpado em rolação a ele... Falta um ser que
pudesse se tornar responsável pelo fato de alguém efetivamente
existir, de alguém ser de tal e tal modo, de alguém ter nascido sob
tais circunstâncias, nessa região. - É um grande alívio saber que
falia tal ser. .. Nós não somos o resultado de uma intenção eterna,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 383

de uma vontade, de um desejo: não se tenta alcançar conosco um


"ideal de perfeição" ou um "ideal de felicidade" ou um "ideal de
virtude" - nós também não somos de modo algum o equívoco
de Deus, diante do qual ele mesmo precisou se atemorizar (- um
pensamento com o qual começa o Antigo Testamento). Falta todo
lugar, toda meta, todo sentido, em direção aos quais pudéssemos
alçar nosso ser, nosso ser de tal ,e tal modo. Sobretudo: ninguém
o conseguiria: não se pode julgar, medir, comparar ou até mesmo
negar o todo. Por que não? - Po:r cinco razões, todas elas acessí-
veis mesmo a inteligências modestas: por exemplo, porque não
há nada além do toda. - E, dito uma vez mais, hâ ai um grande
estímulo, temos aí a inocência de toda existência.

15 (31)
XI
Intelecção fundamental da decadência:
Aquilo que se considerou até aqui como suas causas são
as suas co11sequéncias.
Com isso, transforma-se toda a perspectiva dos problemas
modernos.
Vicio:
Luxo:
Crime:
Mesmo doença:
: Toda a luta da moral contra o vicio, o luxo etc. aparece
como futilidade, como supérfluo...:
: não há nenhuma "melhora" - em relação ao remorso
A decadência mesma não é nada que se precisaria comba-
ter: ela é absolutamente necessária e própria a todos os tempos
e a todos os povos. O que é preciso combater com toda força é o
arrastar do contágio para as partes saudáveis do organismo.
É isso que se faz? Faz-se o contrário.
É exatamente por isso que as pessoas se empenham por
parte da humanidade
Como é que os valores supremos se comportam em relação
a essa questão fundamental biológica'!
384 fRIEORICH NIETZSCHE

1) A filosofia
a religião
a moral
a arte
etc.
a cura: por exemplo, o militarismo, a partir de Napoleão,
que via na civilização a sua inimiga natural. ..

15 (32)
A questão da decadência: é preciso compreender que fen6-
menos pertencem uns aos outros e têm aqui seu forno comum
Anarquismo
Emancipação da mulher
Diminuição dos anticorpos Doença, epidemias etc.
Predominância do ressentimento O pessimismo por
indignação
A simpatia por todos os que sofrem A compaixão
A falta de aparatos de inibição Vício, Corrupção
(Critica dos Sentidos,
das paixões)
O embrutecimento O aumento da feiura
(a beleza como
conquistada por meio
do trabalho
A "tolerância" O ceticismo,
a "objetividade''
Preponderância dos sentimentos Os pessimistas
(fisiologicamente
de fraqueza decadentes
Os instintos dissolurores As instituições liberais
Talento de representar muitas pessoas Hipocrisia, dissimulação:
o enfraquecimento da
pessoa
O "cm vão", a ausência de sentido O niilismo
Excitabilidade exagerada A hiperirritabilidade
a emancipação da mulher ºmúsica"
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 385

o ºartista"
o "romancista"
Carência de meios de excitação Luxo como - - -
as necessidades dos
narcóticos,
a dissonância na música
e no álcool (mesmo livro)
a tirania do meio

15 (33)
As filosofias.
As religiões. Esterilidade, celibato (ódio
contra os sentidos:
As religiões. em Schopenhauer por exemplo
As morais.

15 (34)
As filosofias do pessimismo:
fisiologicamente decadentes
por exemplo, Baudelaire
Schopenhauer
Leopardi: equívocos sexuais no início,
impotência de tempos em tempos como
consequência.

15 (35)
fez-se a tentativa indigna de ver em Wagner e Schope-
nhauer tipos relativos ao homem espiritualmente perturbado:
uma intelecção muito mais essencial teria sido conquistada por
meio de uma determinação cientificamente precisa do tipo da de-
cadência que os dois representam.

15 (36)
A Alemanha atual, que tr.abalba com a tensão de todas as
forças e conta como uma de suas consequências normais uma
sobrecarga e um envelhecimento prematuro, já pagará em duas
386 FRIEORICH NIETZSCHE

gerações com um profundo fenômeno de degenerescência ... Por


enquanto, constatamos apenas a desespiritualização crescente e
a vulgarização do gosto - uma necessidade cada vez mais vulgar
de descanso: os tempos posteriores encontrarão no primeiro pla-
no as necessidades doentias, a elevação dos excitantes, os ópios
alcoólicos e musicais.

15 (37)
Féré, p. 89.
A incapacidade para um trabalho prosseguido
Consequência de um trabalho excessivo sob uma alimen-
tação insuficiente, a saber, de ·um esgotamento cada vez mais
profundo e duradouro, que trará à luz nas próximas gerações fe.
nômenos mórbidos
Nós também conhecemos um trabalho excessivo: causa
principal para a degeneração de uma raça - com isso, ela se toma
cada vez mais incapaz de esforç:os produtivos
A preguiça como incapacidade de um esforço continuo é
própria à degeneração. Tais individuos, que não necessitam ape-
nas de alimento, mas também de estimulantes especiais, para ele-
varem sua força vital declinante, querem se manter por meio do
trabalho de outros. Eles se servem para tanto da astúcia ou do ato
de violência (isto é, de um esforço único).
Três quartos dos degenerados são degenerados por mes-
quinhez; a metade deles não possui qualquer trabalho. Mas a
mesquinhez já é uma consequência da incapacidade de trabalho,
do ócio típico do degenerado...
- o esforço único: sintoma, preguiça, pobreza, crime, pa-
rasitismo,
A aula amplia as necessidades e a desejabilidade, sem am-
pliar ao mesmo tempo os meios para satisfàzê-las.
Com a aula obrigatória, esgotam-se as reservas de uma raça.
A criminalidade é a maior possivel, lá onde o esgotamento
é extremo, isto é, lá onde se trabalha da maneira ma.is sem sentido
possivel, na esfera do comércio e da indústria
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 387

Excesso de trabalho, esgotamento, necessidade de estímu-


lo (vício), elevação da irritabilid!ade e dafraqueza (de modo que
eles se tomam explosivos)
Os desfigurados, os degenerados e os impotentes de todo
tipo têm uma espécie de instinto uns para os outros: desse instin-
to crescem os seres antissociais.
(como seus pais foram incapazes de se adaptar a sociedades)
eles buscam, os loucos
em familias neuropáticas hã wna seleção degenerativa (Goe-
the "Afinidades seletivas")
o sexo nascido do vicio e do crime é antissocial - mesmo o
animal serviçal (um trabalho leve e um bem-estar relativo) prepara
elementos antissociais (putas, ladrões, criminosos de todo tipo)
A bebida e a dissonância elevam a degenerescência
Ampliação das doenças por meio de um ralentamento da
alimentação
Neurose, psicose e recrudescimento da criminalidade
A incapacidade para a luta: trata-se de degenerescência
''É preciso abolir a luta
em primeiro lugar os combatentes!"
O assassinato e o suicídio são copertinentes e se seguem na
relação das idades e das épocas do ano
Necessidade de excitação e estlmulos:
Luxo - um dos primeiros passos da decadência. O estímulo
faz os fracos ...
Os degenerados sentem uma força de atração oriunda de
um regime que lhes é nocivo, que acelera o curso da degeneres-
cência (os anêmicos, os histéricos, os diabéticos, os distróticos)

15 (38)
E, em meio a essa decadência, as guerras pela "pátria",
por esse filho pós-maturo ridículo do patriotismo que, por ra-
zões econômicas, se mostrará já daqui a 100 anos como uma
comédia...
esse extermínio dos homens mais bem-dotados por meio
da guerra -
388 FRIEDRICH NIETZSCHE

15 (39)
XIII
Ao homem bem-constituído, que faz bem ao meu coração,
talhado em uma madeira dura e suave que cheira bem - com a
qual mesmo o nariz se alegra-, este livro é dedicado.
ele gosta daquilo que lhe é compatível
seu gosto por algo cessa quando se ultrapassa a medida do
compatível
ele desvenda os remédios contra danos parciais, ele tem as
doenças como um grande estimulante de sua vida
ele sabe utilizar seus terríveis acasos
ele se toma mais forte por meio dos infortúnios que ame-
açam aniquilá-lo
ele reúne instintivamente a partir de tudo o que vê, ouve,
vivencia algo cm favor de sua questão principal- ele segue a um
principio seletivo
ele reage com a lentidão cultivada por uma longa precau-
ção e um orgulho querido - ele coloca cm questão o estimulo do
qual provém, para onde ele se dispõe, ele não se submete
ele estã sempre em sua sociedade, quer ele lide com livros,
homens ou paisagens: ele honra, na medida em que escolhe, na
medida cm que admite, na medida em que confia ...

15 (40)
O fato de a civilização atrair para si o declínio fisiol6gico
de uma raça.
O camponês devorado pelas grandes cidades: uma supe-
rexcitação nada natural da cabeça e dos sentidos. As requisições
ao seu sistema nervoso são grandes demais; cscrófula, consu-
mismo, doenças nervosas, todo novo meio estimulante só eleva
o desaparecimento rápido dos fracos: as epidemias arrebatam
os fracos ...
Os não produtivos
A preguiça é própria aos fracos dos nervos, aos histéricos,
aos melancólicos, aos epilépticos, aos criminosos
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 389

15 (41)
Não é a natureza que é imoral, ela se mostra sem compai-
xão pelos degenerados: o crescimento do mal fisiológico e moral
na espécie humana é inversamente a consequência de uma moral
doentia e antinatural.
a sensibilidade da maioria dos homens é doentia e antinatural
o que faz com que a hum!lllidade seja corrupta em um as-
pecto moral e fisiológico?
O corpo perece quando unn órgão é alterado...
não se pode reconduzir o direito do altruismo à fisiologia
do mesmo modo, o direito ao auxílio, à igualdade dos
destinos: tudo isso não passa de prêmios para os degenerados e
malfadados.
Não há nenhuma solidariedade em um.a sociedade, na qual
há elementos infrutiferos, improdutivos e destrutivos, que terão
descendentes ainda mais degene:rados do que eles mesmos.

15 (42)
"Aprimoramento"
Crítica à mentira sagrada
O fato de a mentira ser permitida para finalidades castas
é algo que pertence à teoria de todas as camadas sacerdotais - a
presente investigação deve ter por objeto determinar até que pon-
to isso faz parte de sua práxis.
Mas, mesmo os filósofos, logo que eles visam a tomar sob
suas mãos o direcionamento dos homens com intenções de fun-
do sacerdotais, justifica:ram imediatamente para si um direito à
mentira: Platão, antes de tudo. .Da forma mais grandiosa possível,
temos a dupla mentira desenvolvida pelos filósofos tipicamente
arianos vedas: dois sistemas, contraditórios em todos os pontos
centrais, mas que também se alternam, se preenchem, se comple-
tam a partir de metas educacionais. A mentira de um deve criar
um estado, no qual a verdade do outro estado se torna pela pri-
meira vez audível.
Até que ponto vai a menti:ra casta dos sacerdotes e dos fi.
lósofos? - Precisamos pcrguntair aqui quais são os pressupostos
390 FRIEORICH NIETZSCHE
...............................................................................................

que eles têm para a educação, quais são os dogmas que eles pre-
cisam inventar para satisfazer a esses pressupostos?
Em primeiro lugar: eles precisam ter o poder, a autoridade,
a credibilidade incondicionada ao seu lado.
Em segundo: eles precisam ter nas mãos todo o curso da
natureza, de tal modo que tudo o que diz respeito ao particular
apareça como incondicionado por sua lei.
Em terceiro: eles também precisam ter um campo de poder
que se estenda mais amplamente, campo esse cujo controle se
subtraia ao olhar daqueles que se encontram submetidos a ele: o
grau de penalidade para o além, o "depois-da-morte" - por mais
módicos que sejam os meios que pennitem saber o caminho até
a bem-aventurança.
Eles têm de afastar o conceito do transcurso natural: na medi-
da, porém, em que são pessoas inteligentes e reflexivas, eles podem
prometer uma grande quantidade de efeitos, naturalmente como
condicionados pelas orações ou pela obediência estrita à sua lei ...
Do mesmo modo, eles podem prescrever uma grande quan-
tidade de coisas que são absolutamente racionais - com a única
diferença de que não podem denominar a experiência, a empiria
como fonte dessa sabedoria, mas, sim, uma revelação ou a con-
sequência dos "mais duros exercícios de expiação"
A mentira sagrada refere-se, portanto, por principio: àfi-
nalidade da ação (- a finalidade natural, a razão toma-se invisí-
vel, uma finalidade moral, o preenchimento de uma lei, uma vida
a serviço de Deus aparece como finalidade
: à consequência da ação (- a consequência natural é inter-
pretada como sobrenatural, e, para que se tenha um efeito certo, ou-
tras consequências incontroláveis, são colocadas em perspectiva.
Desse modo, cria-se um conceito de bem e mal, que apa-
rece de maneira totalmente independente do conceito natural
"útil", "nocivo", "fomentador da. vida", "redutor da vida" - nessa
medida, outra vida pode ser imaginada, até mesmo se tomar di-
retamente hostil ao conceito natural de bem e mal.
Dessa maneira, cria-se finalmente a célebre "consciência
moral": uma voz interior, que não mede em cada ação o valor
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 {Vol. VII) 391

da ação por suas consequências, mas com vistas à intenção e à


confonnidade dessa intenção à Ilei
Portanto, a mentira sagrada inventou
um Deus punitivo e recompensador, que reconhece exata-
mente o código dos sacerdotes e que os envia ao mundo exata-
mente como seus porta-vozes e ·seus emissários
um além da vida, no quall a grande máquina de punição é
pensada pela primeira vez de maneira eficaz - a esse fim serve a
"imortalidade da alma"
a consciência moral no homem, como a consciência de
que bem e mal estão firmes - o fato de o próprio Deus falar
aqui, quando se aconselha a conformidade com a prescrição
sacerdotal
a moral como negação de todo transcurso natural, como
redução de todo acontecimento a um acontecimento moral condi-
cionado, o efeito moral (isto é, a ideia de punição e de recompen-
sa) como penetrando o mundo, como força única, como creator
de toda mudança
a verdade como dada, como revelada, como coincidindo
com a doutrina dos padres: como condição de toda salvação e de
toda felicidade nessa vida e na vida no além
Em suma: com o que se paga o aprimoramento moral?
Exposição da razão, redução de todos os motivos a temor
e esperança (pena e recompensai)
Dependência de uma tutela sacerdotal, de uma exatidão for-
mal, que levanta a pretensão de expressar uma vontade divina
a implantação de uma "consciência moral", que coloca um
falso saber no lugar da comprovação e do experimento
: coroo se já estivesse decidido o que se precisaria fazer e
deixar de fazer - um tipo de castração do espfrito que busca e que
aspira a seguir em frente
: cm suma, a mais terrível mutilação do homem, que é pos-
sível imaginar, supostamente como "o homem bom"
Na práxis, toda a razão, toda a herança de astúcia, fineza,
precaução, que se mostram como o pressuposto do cânone sacer-
dotal, ê reduzida a.rbitrariamente a uma mera mecânica
392 fRIEDRICH NIETZSCHE

a conformidade com a lei já é considerada como meta,


como meta suprema - a vida não tem mais problema algum -
toda a concepção de mundo é enodoada com a ideia de
punição ...
a vida mesma é, no que concerne à possibilidade de repre-
sentar a vida sacerdotal como o non plus ultra da perfeição, re-
pensada cm meio a uma negação e a um cnodoamento da vida ...
o conceito "Deus" representa um abandono da vida, uma
crítica, um desprezo mesmo da vida...
a verdade é repensada como a mentira sacerdotal; a as-
piração à verdade, como estudo da escrita, como meio para se
tornar teólogo...

15 (43)
A sedução da humanidade sob o manto da intenção mais
sagrada
o hábito criminoso, que foi empreendido até aqui com a
palavra "verdade"
Tenho uma história terrível e fatídica para contar, a história
do mais longo crime, da sedução mais funesta, do envenenamen-
to mais refletido, o evento propriamente negro da humanidade,
sob cujo encanto foram denunciados e colocados cm questão os
instintos mais profundos da vida...
Padres: eles confundem causa e efeito
Padres: eles confundem a tranquilidade como força e a
tranquilidade como impotência
Será que devemos acrediuar no fato de que seria possível
difundir um erro sobre causa e efeito, de tal modo que se sentisse
o efeito como causa? Parece imposs!vel: no entanto, isso aconte-
ceu sob a sedução da moral...
Em todos os tempos, por parte dos sacerdotes, se repre-
sentou a decadência de uma espécie, de um povo, como a puni-
ção por seus vicies, por sua incredulidade e liberdade de espirita
como consequência de alienação da crença
inversamente, têm-se vida longa e felicidade da familia
e a descendência é colocada em perspectiva e-orno recom-
pensa pela castidade e pelo cum:primcnto da lei
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 393

hoje dizemos inversamente: a habilidade de um homem,


a sua "retidão", é a consequência de longos casamentos felizes
e a expressão de uma escolha racional dos pares possíveis - por
meio daí, forças podem ser somadas... uma expressão da felici-
dade dos antepassados
Vicio, crime, caráter doentio, loucura, libertinagem, mes-
mo a espiritual, são consequências da decadência, sintomas da
decadência - eles são, por conseguinte, incuráveis...
A castidade das famílias tem tão poucas condições de ga-
rantir uma prole saudável e felliz, que justamente nas famílias
mais castas, hereditariamente mais castas na Europa atual, são
consideráveis as perturbações espirituais... Trata-se da expressão
de um tipo sofredor e aflito necessitar tanto da castidade para
suportar a vida: nossos pietistas não são cristãos de maneira ar-
bitrária...

15 (44)
A inversão da ordem hierárquica:
os falsários castos, os sacerdotes entre nós se tomam 1s-
chandala:
- eles assumem a posição dos charlatões, dos curandeiros,
dos falsários, dos magos: nós os consideramos degradadores da
vontade, os grandes negadores e vingadores da vida, os revolta-
dos entre os malfadados
....
Em contrapartida, a Tschandala de outrora está em cima:
sobretudo os blasfemadores, os imoralistas, os dadivosos de todo
tipo, os artistas, os judeus, os jogadores - no fundo todas as fami-
geradas classes humanas -
- nós nos elevamos a pensamentos honrados, mais ainda,
nós determinamos a honra na terra, a "nobreza" ...
- nós todos somos hoje os porta-vozes da vida
- nós imoralistas somos hoje o poder mais forte: os outros
grandes poderes precisam de nós... nós construímos o mundo à
nossa imagem -
394 fR IEDRICH NIETZSCHE

- nós transportamos o conceito de Tschandala para os sa-


cerdotes, os mestres do além e para a sociedade com eles fundi-
da, a sociedade cristã, inclui.ndo aí aquilo que possui a mesma
origem, os pessimistas, niilistas, româ.nticos compassivos, crimi-
nosos, viciados - a esfera conjunta na qual o conceito de "Deus"
é imaginado como Terra Santa ...
....
Nós estamos orgulhosos de não prccisannos mais ser men-
tirosos, negadores, duvidadores da vida ...
N.B. Mesmo que demonstrassem Deus para nós, nós não
saberíamos acreditar Nele.

15 (45)
Para a crítica ao código de Ma.nu. -
Todo o livro baseia-se na mentira sagrada:
- foi o bem da humanidade que inspirou todo esse sistema?
Esse tipo de homem, que acredita no caráter interessado de toda
ação, ele estava interessado ou mão em impor esse sistema?
- aprimorar a humanidade - a partir de onde essa intenção
é inspirada? De onde o conceito do melhor é retirado?
- encontramos um tipo de homem, o tipo sacerdotal,
que se sente como nonna, como ápice, como expressão supre-
ma do tipo homem: é a partir daí que ele toma o conceito do
"melhor"
- ele acredita cm sua superioridade, ele também a quer na
ação: a causa da mentira sagrada é a vontade de poder...
....
O erigir do dorninio: para esse fim o domí.nio de conceitos,
que estabelecem na classe sacerdotal um non plus ultra
o poder por meio da mentira, em uma intelecção quanto ao
fato de que não o possulmos fisicamente, militannente...
a mentira como suplemento do poder - um novo conceito
da "verdade"
....
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 395

As pessoas equivocam-se quando pressupõem aqui um


desenvolvimento inconsciente e ingênuo, uma espécie de auto-
engano... Os fanáticos não são os inventores de tais sistemas me-
ditados de opressão...
Trabalhou aqui a reflexão mais a sangue-frio, o mesmo
tipo de reflexão que era apresentada por um Platão, quando ele
pensou o seu "Estado"
"É preciso querer os meios, caso se queira a meta" - todos os
legisladores tinham clareza quanto a essa intelecção dos politicos

•••
Temos o padrão clássico como especificamente aria110:
portanto, podemos tomar o tipo de homem mais bem-dotado e
reflexivo responsável pela mentira mais fundamental, que jamais
foi contada... Imitou-se esse ato quase por toda parte: a i11jluência
ariana degradou todo o mundo ....

15 (46)
Ofato de se acreditar em alguma coisa - - - XVI
O erro e a ignorância são fatídicos.
A afirmação de que a verdade estaria presente e de que há um
fim para a ignorância e o erro é uma das grandes seduções que há.
Supondo que se acredite nessa afirmação, então a vontade
de comprovação, de pesquisa e de experimento é, com isso, pa-
ralisada: ela pode ser mesmo considerada como herética, a saber,
como uma drívida cm relação à verdade ...
A "verdade" é, consequentemente, mais fatldica do que o
erro e a ignorância, porque ela obstrui as forças com as quais se
trabalha no esclarecimento e no conhecimento.
O afeto da preguiça toma agora partído pela "verdade";
- "Pensar é uma necessidade indigente, uma miséria!"
do mesmo modo, a ordem, as regras, a felicidade com a
posse, o orgulho com a sabedori:a - a vaidade, em suma
- é mais confortável obedecer do que comprovar... é mais
lisonjeiro pensar que "eu tenho a verdade" do que só tatear no
escuro à sua volta...
396 FRIEORICH NIETZSCHE

- sobretudo: aquieta, dâ confiança, facilita a vida - "apri-


mora" o caráter, na medida em ,que reduz a desconfiança ...
"a paz da alma", "a tranqllilidade da consciência" em rela-
ção a todas as invenções, que s6 são possíveis sob a pressuposi-
ção de que há a verdade...
''Vós deverleis reconhecê-ta em seus frutos" ... A "verdade"
é verdade, pois ela toma os homens melhores...
...o processo prossegue colocando tudo o que há de bom,
todo sucesso na conta da "verdade"...
Essa é a comprovação da força: a felicidade, a satisfação,
o bem-estar da comunidade e do particular são compreendidos
como consequência da crença na moral...
- a inversão: o terrível sucesso precisa ser derivado da/al-
ta de crença -

15 (47)
A moral dos sacerdotes
A moral dos senhores
A moral da Tschandala
A moral da classe média (a "moral dos animais de rebanho")
Filósofos
Profissões liberais
Artistas
Políticos

15 (48)
O que é a falsificação na moran XVU
Ela se arroga saber algo, ou seja, o que seria bom e mau.
Isso significa querer saber para que o homem se encontra
aí, conhecer sua meta, sua determinação.
Isso significa querer saber o fato de o homem ter uma
meta, uma determinação -

15 (49)
A vitória sobre a "verdade"
O que é atrasado: o primado dos valores imorais sobre os
morais.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 397

É preciso demonstrar isto: 1) Os próprios valores morais


não são "morais"
nem segundo a sua proveniência
nem segundo os meios de poder, com os quais eles se impõem

15 (50)
Kant, uma máquina conceituai, cheio do século XVIII,
com um subterrâneo de malícia de teólogo e um - - -

15 (51)
O que distingue o século XIX não é a vitória da ciência,
mas a vitória do método cientifico sobre a ciência.

15 (52)
Vontade de verdade XVIII
Mártires
tudo o que se funda na veneração carece, para ser comba-
tido, de certa postura destemida, brutal, mesmo sem vergonha
por parte do que ataca... Se lev:annos em conta agora que a hu-
manidade não vem santificando há milênios outra coisa senão
erros como verdades, que ela mesma estigmatizou toda critica a
essas verdades como sinais de uma postu.ra ru.im, então <: preciso
confessar, com pesar, que uma boa quantidade de imoralídades
era necessária para dar a iniciativa ao ataque, ou seja, à razão ...
O fato de esses imoralistas terem precisado se fazer passar sem-
pre por "mártires da verdade" lhes deve ser perdoado: a verdade
é que não era o impulso à verdade, mas a dissolução, o ceticismo
injurioso e o prazer com a ave:ntura que se mostraram como o
impulso, a partir do qual eles levaram a tenno negação - No
outro caso, trata-se de rancores pessoais, que eles impeliram
para o campo dos problemas - eles lutam contra problemas para
manter a razão contra pessoas - Mas foi, sobretudo, a vingança
que se tornou útil cientificamente - a vingança dos oprimidos,
daqueles que foram colocados de lado e mesmo reprimidos pe-
las verdades dominantes...
398 FRIEORICH NIETZSCHE

A verdade, quer dizer, a metodologia científica foi apreen-


dida e fomentada por aqueles que desvendaram nela um instru•
mento de luta - uma anna para a aniquilação... Para levar seus
adversários a honrá-los, eles precisavam de resto de um aparato
que tivesse o mesmo modo de ser daqueles que eles atacavam:
- eles afixaram o conceito de "verdade" de maneira tão incondi-
cionada quanto os seus adversários - eles se tomaram fanáticos,
ao menos na atitude, porque nenhuma outra atitude foi levada
a sério. O resto foi feito, então, pela perseguição, pela paixão
e pela insegurança dos perseguidos - o ódio cresceu e, conse-
quentemente, o pressuposto diminuiu, a fim de permanecer no
solo da ciência. Eles queriam, por fim, todos juntos, ter razão de
uma maneira igualmente absurda, tal como seus adversários ... A
palavra "convicção", "cronça", o orgulho do martírio - esses são
todos estados desfavoráveis para o conhecimento. Os adversários
das verdades têm, finalmente, todos os trejeitos subjetivos para
decidir sobre a verdade, a saber, com atitudes, sacrifícios, reso-
luções heroicas, aceitas uma vez mais por si mesmos - isto é,
ampliado o domínio do método anticientifico. - Como mártires,
eles comprometem seu próprio ato -

15 (53)
Os dois monstros mais despreziveis do século XVIII
o sujeito cria o mundo que nos diz respeito em alguma
medida -
ª razão cria a sociedade, na qual - - -
as duas farsas fatídicas, a revolução e a filosofia kantiana, a
práxis da razão revolucionária e a revolução da razão "prática"
a natureza denegada, moral dualista em Kant
o fato de um conceito de um suposto saber dever entrar no
lugar da natureza, como escultor, queror configurar, construir
o ódio cootra o devir, contra a consideração cuidadosa do devir
é comum a toda moral e à rovolução:

15 (54)
A vontade de verdade
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-18891 {Vol. VII) 399

O filósofo como problema.


O sacerdote: invenção da moral.
A vit.ória sobre a "verdade" (as "verdades" até aqui como
sintomas da decadência)
O conceito e a abrangência da decadência.

15 (55)
Para pensarmos modicamente a moral, precisamos colocar
dois conceitos zoológicos cm seu lugar: domesticação da besta e
cultivo de um tipo determinado.
Os padres pretenderam em todos os tempos que eles queriam
"aprimorar"... Mas nós outros rimos quando um domador de feras
se dispõe a falar de seus animais "aprimorados". - A domesticação
da besta é alcançada na maior parte dos casos por meio de um pre-
juízo da besta: mesmo o homem moralizado não é nenhum homem
melhor, roas apenas um homem mais fraco, um homem fundamen-
talmente circuncidado e estropiado... Mas ele é menos nocivo...

15 (56)
A luta contra os instintos brutais é diversa da luta contra os
instintos doentios
: pode ser até mesmo um meio, para se tomar senhor sobre
a brutalidade de tomar doente
: o tratamento psicológico no cristianismo conflui com fre-
quência para fazer de uma vaca um animal doente e, consequen-
temente, domesticado
a luta contra naturezas toscas e áridas precisa ser uma luta
com meios que atuam sobre elas: os meios supersticiosos são
insubstitulveis e imprescindlveis...

15 (57)
- exigir em si que só se diga "algo verdadei.ro" pressuporia
que se teria a verdade; se isso devesse significar apenas que se
diz o que é considerado verdadeiro para alguêm, então há casos
nos quais é importante dizer o mesmo de tal modo que também
seja válido para outros: que allle sobre ele
400 FRIEORICH NIETZSCHE

Logo que nós mesmos tomamos a moral absolutamente e,


por exemplo, a proibição à mentira em um entendimento religio-
so, toda a história da moral, assim como toda a história da políti-
ca, se toma uma ninharia. Nós vivemos de mentiras e falsidades
- as classes dominantes sempre mentiram ...

15 (58)
Capítulo: a vontade de verdade
as confusões psicológicas:
a exigência por crença - confundida com a "vontade de
verdade" (por exemplo, em Carlyle)
mas, exatamente do mesmo modo, a exigência por incre-
dulidade está confundida com a "vontade de verdade" (- uma
necessidade de se livrar de uma crença, de ter razão contra "cren-
tes" quaisquer)
o que inspira os céticos? o ódio aos dogmáticos - ou uma
necessidade de tranquilidade, um cansaço como em Pirro
- as vantagens, que se esperavam da verdade, eram as van-
tagens da crença nessas vantagens: - em si, justamente, a verdade
poderia ser completamente rid.ícula, nociva, fatídica -
também só se combateram uma vez mais as "verdades"
quando se prometeram vantagens pela vitória ... por exemplo, li-
berdade em relação às forças dominantes
a metodologia da verdade não foi encontrada a partir de
motivos da verdade, mas a partir de motivos do poder, do querer-
-ser-superior
com o que se demonstra a. verdade? Com o sentimento do
poder elevado (''uma crença na eerteza") - com a utilidade - com
a imprescindibilidade- em suma, com vantagens
a saber, pressupostos do tipo de que deveria ser constituida
a verdade, a fim de ser reconhecida por nós
mas isso é um preconceito: um sinal de que não se trata de
maneira alguma da verdade ...
o que significa, por exemplo, a "vontade de verdade" nos
Goncourts? Nos naturalistas? C.rítica à "objetividade"
por que conhecer? Por que não preferir se enganar? ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 401

o que sempre se quis foi a crença - e não a verdade ...


a crença é criada pelos meios opostos à metodologia da
pesquisa -: ela exclui por si mesma a pesquisa -

15 (59)
A ideia do "mundo verdadeiro" ou de "Deus" como abso-
lutamente não sensíveis, espirimais, benevolentes é uma regra de
urgência em relação ao que se dá quando os instintos contrários
ainda são onipotentes...
o caráter moderado e a humanidade alcançada mostra-se
exatamente na humanização dos deuses: os gregos do período
mais forte, que não tinham nenhum temor diante de si mesmos,
mas tinham felicidade consigo, aproximaram seus deuses de to-
dos os seus afetos -
Por isso, a espiritualização da ideia de Deus está muito
longe de significar um progresso: sente-se isso de maneira bas-
tante cordial ao contato com Goethe - como nele a evaporação
de Deus e a sua transformação em virtude e espírito se tomam
perceptíveis como um nível mais rosco ...

15 (60)
Se nossa humanização significa alguma coisa, um pro-
gresso verdadeiro e efetivo, então ela se expressa no fato de não
precisarmos mais de nenhuma oposição excessiva, em geral de
nenhuma oposição...
podemos amar os sentidos, nós os espiritualizamos e os
tomamos art!sticos em todos os graus
temos um direito a todas as coisas que tiveram até aqui
maximamente uma má/ama

15 (61)
A) Na medida em que o cristianismo ainda parece boje ne-
cessário, o homem ainda é tosco e fat!dico ...
B) Em outro aspecto, ele é necessário, mas extremamen-
te nocivo. No entanto, ele age <de maneira atraente e sedutora,
porque corresponde ao caráter mórbido de camadas inteiras, de
402 FRIEDRICH NIETZSCHE
............................................... ................................................

tipos como um todo da humanidade atual... eles cedem à sua in-


clinação, uma vez que aspiram de maneira cristã - os decadentes
de todo tipo -
é preciso cindir rigorosamente entre A e B. No caso A, o
cristianismo é um remédio, no mínimo um meio de domesticação
(- sob certas circunstâncias, ele serve para deixar doente: aquilo
que pode ser útil, a fim de quebrar a aridez e o caráter bruto)
No caso B, ele é um sintoma da própria doença, ele amplia
a decadência; aqui ele atua ao encontro de um sistema corro-
borador do tratamento, aqui ele é o instinto dos doentes contra
aquilo que lhes é salutar -

15 (62)
O partido dos homens sérios, dignos, reflexivos
: e, cm contraposição a eles, a besta tosca, impura, incal-
culável
: um mero problema de domesticação do animal:
- e o domesticador precisa ser duro, temível e atemorizan-
te para a sua besta
todas as exigências essenciais precisam ser colocadas com
uma clareza brutal, isto é, mil vezes exagerada
: o cumprimento da exigência mesma precisa ser repre-
sentado cm um embrutecimento para que ele desperte
veneração
por exemplo, a dessensorialização por parte dos brâmanes.
....
A luta com o canalha e com o gado: alcança-se certa do-
mesticação e ordem; assim, o fosso entre esses purificados e
renascidos e o rosto precisa se:r aberto de maneira tão terrível
quanto possível...
Esse fosso amplia a autoestima, a crença naquilo que é re-
presentado por eles, junto às cas:tas mais elevadas
por isso junto à T.schandala. O desprezo e sua desmedi-
da são completamente corretos em termos psicológicos, a saber,

....
cem vezes exagerados, para se tomarem efetivamente sensíveis
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 403

Na luta com a besta, tomar doente é, com frequência, o


único meio de tomar fraco. E, exatamente do mesmo modo com
que os brâmanes se defendem contra a Tschandala (na medida
em que a tomam doente), eles também condenam os criminosos
e os insurrectos de todo tipo a enfraquecime11tos (- este é o sen-
tido das penitências etc.)

15 (63)
Computado no todo, alcançou-se em nossa determinação
humana atual uma quantidade descomunal de humanidade. O
fato de não se perceber esse fato em geral é ele mesmo uma prova
disto: nós nos tornamos tão sensíveis para as pequenas situações
de emergência que deixamos de considerar de maneira irracional
aquilo que alcançamos.
: é preciso inserir aqui no cãlculo o fato de haver muita
decadência: e que, visto com tais olhos, nosso mundo precisa
parecer ruim e miserável. Mas esses olhos viram em todos os
tempos a mesma coisa...
1) cena superexcitação mesmo da sensação moral
2) o quantum de amargor e obscurecimento que o pessi-
mismo pona consigo para o julgamento
: as duas coisas juntas auxiliaram a ascensão da repre-
sentação oposta de que as coisas vão mal em relação à nossa
moralidade.
O fato do crédito, de todo o comércio mundial, dos meios
de transpone - uma confiança tenra descomunal no homem ex-
pressa-se ai... Também contribui para isso
3) a liberação da moral em relação às intenções morais e
religiosas: um sinal muito bom, mas que é, na maioria das vezes,
compreendido de maneira falsa.
Procura da minha maneira uma justificação da história

15 (64)
Moral um erro útil, dito de maneira mais clara, com vistas
aos maiores e aos mais livres de preconceitos dentre os seus fo-
mentadores, uma mentira considerada necessária
404 FRIEDRICH NIETZSCHE

15 (65)
O que eu gostaria de deixar claro com toda a força:
a) o fato de não haver nenhuma confusão pior do que quan•
do se confunde domesticação com enfraquecimento
: o que se fez ...
A domesticação é, tal como eu a compreendo, um meio
para o acúmulo descomunal de força da humanidade, de tal modo
que as gerações podem continuar construindo sobre o trabalho
de seus antepassados - não apenas extrinsecamente, mas inter-
namente, crescendo organicamente a partir deles, em meio aos
mais fortes ...
b) o fato de que há um perigo extraordinário, quando se
acredita que a humanidade continuaria crescendo como um todo e
se tomaria mais forte, quando os indivíduos donnem, tomando-se
iguais, medianos ... Humanidade é um abstrato: mesmo no caso
mais particular possível, a meta da domesticação nunca pode ser
outra coisa senão o homem mais forte (- o a.ão domesticado é
fraco, dissipador, inconstante...

15 (66)
o fato de os parisienses corruptos cheirarem agora a in•
censo faz com que eles não cheirem bem ao meu nariz: mística e
rugas católico-sagradas na face são apenas uma forma a mais da
sensibilidade

15 (67)
Diante do que eu advirto.: os instintos da decadência não
podem ser confundidos com a humanidade
: os meios disso/utores da civilização que impelem necessa-
riamente à decadência não podem ser confundidos com a cultura
: a libertinagem, o principio do "laisser a/ler", não pode ser
confundida com a vontade de poder (- ela é seu contraprincipio)

15 (68)
As duas grandes tentativas, que foram feitas para superar
o século XVJU:
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 405

Napoleão, na medida cm que ele despertou uma vez mais


o homem, o soldado e a grande luta pelo poder - concebendo a
Europa como unidade política
Goethe, na medida em que ele imaginou uma cultura euro-
peia, que constitui a herança plena da humanidade já alcançada

15 (69)
A cultura alemã desse século desperta desconfiança -
na música falta aquele elemento redentor e vinculador de
Goethe
os austríacos só pennaneceram alemães por meio de sua
música

15 (70)
Nós desconfiamos de algo em todos aqueles estados extremos
e encantados, nos quais se julga "pegar a verdade com as mãos" -

15 (71)
Como a virtude chega ao poder
Os sacerdotes - e, com eles, os semissacerdotes, os filóso-
fos - denominaram cm todos os tempos verdade uma doutrina,
cujo efeito educativo era ou parecia ser benéfico - aquela doutri-
na que "aprimorava". Eles assemelham-se, com isso, a um curan-
deiro e um milagreiro ingênuos oriundos do povo que, por terem
comprovado o poder curativo de um veneno, negam que este seja
um veneno ... ''Vós deveis conhecê-las a partir de seus frutos" - a
saber, nossas "verdades": esse continua sendo o raciocínio dos
sacerdotes até boje. Eles dissiparam de maneira mais do que fa-
tídica sua argúcia, buscando priorizar a "demonstração da força"
(ou "vinda dos frutos"), sim, a decisão sobre todas as formas de
demonstração. "Aquilo que faz bem precisa ser bom; aquilo que
é bom não pode mentir" - assim, eles concluem de maneira ine-
xorável - : "aquilo que porta bons frutos precisa ser necessaria-
mente verdadeiro: não há nenhum outro critério de verdade"...
Na medida, porém, em que o "tomar melhor" é considera-
do como argumento, o tomar pior precisa ser considerado como
406 FRIEORICH NIETZSCHE
·······························································································

refutação. Demonstra-se o erro oomo erro, uma vez que se coloca


à prova a vida daqueles que o representam: uma vez que se refuta
um passo em falso, um vício ... Esse modo indecoroso do anta-
gonismo, o modo que vem por trás e por baixo, o modo canino,
também nW1ca se extinguiu: os sacerdotes, porquanto se mostram
como psicólogos, nllllca encontraram algo mais interessante do
que meter o nariz nos segredos de seus adversários. - Isto apenas
é que constitui a sua ótica do conhecimento do mlllldo: - eles
provam seu cristianismo por meio do fato de buscarem sujeira
no "mlllldo". Sobretudo jlllltO aos primeiros no mundo, junto aos
"gênios": lembremo-nos do modo como cada época na Alemanha
combateu Goethe (: Klopstock e Herder vão à frente nesse caso
como um "bom exemplo" - quem sai aos seus não degenera)

15 (72)
1.
É preciso ser muito imoral, para Jazer a moral por meio da
ação... Os meios dos moralistas são os meios mais terrlveis até hoje
jã usados; quem não tem coragem para a imoralidade da ação pode
ser capaz de todo o resto, mas não vale nada como moralista.

2.
A moral é uma menagerle: seu pressuposto é o de que bar-
ras de ferro podem ser mais úteis do que a liberdade, mesmo para
os presos; seu outro pressuposto é o de que há domadores que
não temem usar nenhum meio tx:rrível - que sabem manusear o
ferro em brasa. Essa espécie horrível, que assume a luta contra
o animal selvagem, se chama "sacerdote".

15 (73)
O homem, preso em uma jaula de ferro de equívocos,
se tomou uma caricatura do homem, doente, tlbio, malévolo
em relação a si mesmo, cheio de ódio ante os irnpu.lsos para
a vida, cheio de desconfiança em relação a tudo o que é belo
e feliz na vida, uma miséria ambulante: esse aborto artificial,
arbitrário, ulterior, que os sacerdotes arrancaram de seu solo, o
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 407

"pecador": como é que conseguiremosjustij,car esse fenômeno


apesar de tudo isso?

15 (74)
O meio para refutar sacerdotes e religiões é sempre apenas
este: mostrar que seus erros deixaram de ser benéficos - que eles
fazem mais mal, em suma, que sua própria "demonstração de
força" não se sustenta mais...

15 (75)
Niebuhr: "a respeitabilidade moral dos modernos, em com-
paração com os gregos, é extraordinária".
"Tu também não te sentes de tal modo que nada produz
tão facilmente uma impressão mais dolorosa do que quando um
grande espirita se priva de suas asas e busca uma virtuosidade em
algo muito inferior, na medida em que renuncia ao mais eleva-
do?" (Com relação ao Wilhelm Meister)

15 (76)
Prefácio.
Este livro volta-se apenas para poucos - para os homens
que se tornaram livres, para os quais nada mais é proibido: nós
reconquistamos passo a passo o direito a tudo o que é proibido.
Oferecer a demonstração para o poder conquistado e para
a certeza de si por meio do fato de se "ter desaprendido a temer";
ter o direito de trocar a confiança em seus instintos pela descon-
fiança e a suspeita; por meio do fato de as pessoas amarem e
respeitarem a si mesmas em seu sentido - em seu disparate ainda
- um pouco de palhaço, um pouco de Deus; nenhum ser sombrio,
nenhuma coruja; nenhum cobrelo...

15 (77)
O fato de que nada do que outrora era considerado como
verdadeiro é verdadeiro:
O fato de que o que nos foi vedado outrora como impuro,
proibido, desprezivel, fatídico - todas essas flores crescem hoje
na senda adorável da verdade
408 FRIEORICH NIETZSCHE

Toda essa moral antiga não nos diz mais respeito: não
hã nenhum conceito aí que ainda mereça atenção. Nós sobre-
vivemos a eles - não somos mais tão toscos e ingênuos para
precisarmos deixar que mintam para nós dessa maneira... Dito
de maneira mais adequada: nós somos virtuosos demais para
tanto ...
E se a verdade no sentido antigo só se mostrava como
"verdade", porque a antiga moral dizia sim a ela, podia dizer
sim a ela: então se segue daí que também não possuimos mais
nenhuma verdade ... Nosso critério de verdade não é de manei-
ra alguma a moralidade: nós refutamos uma afinnação ao de-
monstrannos que ela é dependente da moral, que ela é inspirada
por sentimentos nobres.

15 (78)
O conceito de um "homem forte e de um homem fraco"
reduz-se ao fato de que, no primeiro caso, muita força é herdada
- ele é uma soma: no outro, ainda há pouca força -
- ber,mça insuficiente, fragmentação do herdado
a fraqueza pode ser um fenômeno inicial: "ainda pouco";
ou um fenômeno final: "não mais"
O ponto de partida, no qual se acha a força, no qual a força
pode ser distribuída: - a massa, como a soma dos fracos, reage
lentamente...
resiste a muitas coisas, para as quais ela é fraca demais ...
das quais ela não pode retirar nenhuma utilidade
não cria, não avança ...
Isso contra a teoria que nega o indivíduo forte e acha que
a "massa faz isto"
Trata-se de uma diferença tal como a que existe entre os
sexos: podem residir quatro, cinco gerações entre o homem ativo
e a massa ... uma diferença cronológica ...

15 (79)
N.8. Os valores dos fraco,s estão à frente, porque os fortes
os assumiram, para com isso liderar...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 409

15 (80)
Esgotamento adquirido, não herdado
alimentação insuficiente, com frequência por ignorância
quanto à alimentação; por exemplo, nos eruditos
a precocidade erótica: a maldição principalmente da ju-
ventude francesa, dos parisienses sobretudo: dessa juventude
que jâ sai dos liceus estropiada e suja para entrar no mundo - e
que não consegue mais se livrar da cadeia das inclinações des-
prezíveis, irônica e impertinente - escravos de galeras, com todo
refinamento e
: aliãs, na grande maioria dos casos já com o sintoma da
decadência racial e familiar, tal como toda a hiperexcitabilidade;
ao mesmo tempo como contâgio do meio - : também determiná-
vel para ser pelo meio, pertence à decadência -
O alcoolismo, não o instinto, mas o hábito, a imitação es-
túpida, a adaptação covarde ou vã a um regime dominante: - Que
boa ação é um judeu entre os alemães! O quanto de embotamen-
to, o quão trivial é a cabeça, o quão azu.l são os olhos; a falta de
espírito na face, na palavra, na atitude; o estender-se preguiçoso,
a necessidade alemã de descanso, que não provém do trabalho
excessivo, mas da excitação e da superexcitação repulsiva por
meio de substâncias alcoólicas...

15 (81)
A ingenuidade é que o pessimismo pensa se fundamentar
com isto: enquanto ele apenas se demonstra com isto...

15 (82)
A f alta de filologia: confunde-se constantemente a explica-
ção com o texto - e que tipo de ••explicação"!

15 (83)
Mulheres, fortemente convenientes, da antiga gema, com o
temperamento de uma vaca, para as quais mesmo acidentes sig-
nificam pouco: mas elas o denominam sua "confiança em Deus".
- Elas não notam nada sobre o fato de que sua "confiança cm
410 FRIEDRICH NIETZSCHE

Deus" é apenas a expressão de sua constituição conjunta forte e


segura - uma formulação, não uma causa...

15 (84)
O fato é "que sou tão triste"; o problema "cu não sei o que
isto pode significar"... "Os contos de fadas de tempos antigos"
"um antigo pecador" diria um cristão: no outro caso, no
caso de Heine, isso "produziu a Lorelei".

15 (85)
O "mundo interior" e seu célebre "sentido interior".
O sentido interior confunde a consequência com a causa
a "causa" é projetada depois que o efeito se suc,edeu: fato
fundamental da "experiência interior".

15 (86)
Os Goncourts achavam Flaubert campagnardisé, 2' 5 saudá-
vel demais, robusto demais par.a eles - eles observam que seu
talento se tornara tosco para cle.s...
O que o talento de Heine não deve ter se mostrado como
tosco para eles... Por isso, o ódio...
Mais ou menos como o ódio de Novalis para com Goethe -

15 (87)
Observa-se que as naturezas delicadas embiutecem em
suas inclinações; as naturezas fortes diluem, mimam, afligem cm
suas inclinações - por exemplo, Goethe em relação a Kleist, em
relação a Hõlderlin.

15 (88)
Os decadentes tipices, que se sentem necessários cm sua
degradação do estilo, que pretendem possuir, com isso, um gosto
mais elevado e gostariam de impor uma lei aos outros, os Gon-

245 N.T.: Em francês no original: rudimentar.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 411

courts, os Richard Wagner, precisam ser distintos dos decadentes


com má consciência, os decadentes renitentes -

15 (89)
A ibrnorância em fisiologismo - o Cristo não tem nenhum
sistema nervoso - ; o desprezo e o querer afastar os olhos arbi-
trariamente das exigências do corpo, da descoberta do corpo; o
pressuposto de que isso seria adequado à natureza mais elevada
do homem - de que faria necessariamente bem à alma - a re-
dução fundamental de todos os sentimentos conjuntos do corpo
a valores morais; a doença mesma pensada como condicionada
pela moral, por exemplo, como pena, ou como prova ou mesmo
como o estado de graça, no qual, o homem se toma mais perfeito
do que ele poderia ser na saúde (- a ideia de Pascal), sob circuns-
tâncias do adoecer-se voluntariamente.

IS (90)
O fenomenalismo do "mundo interior"
a inversão cronológica, de tal modo que a causa ganha a
consciência mais tarde do que o efeito.
nós aprendemos que a sensação sensorial, que se estabe-
lece ingenuamente como condicionada pelo mundo exterior, é
muito mais condicionada pelo mundo interior: que toda ação
propriamente dita do mundo exterior transcorre sempre incons-
cientemente... A parcela de mundo exterior, da qual somos cons-
cientes, nasceu depois do efeito que é exercido de fora sobre nós,
é projetada ulteriormente como sua "causa" ...
No fcnomenalismo do "mundo interior", invertemos a cro-
nologia de causa e efeito.
O fato fundamental da "experiência interna" é o fato de
que a causa é imaginada depois que o efeito aconteceu ...
O mesmo vale, também, em relação à sequência dos pensa-
mentos... nós buscamos o fundamento de um pensamento, antes
ainda de nos conscientizarmos dele: e, então, entra em cena pela
primeira vez na consciência o fundamento e, em seguida, sua
consequência...
412 FRIEDRICH NI ETZSCHE

toda a "experiência interior" baseia-se no fato de uma causa


ser buscada e representada para um estimulo dos centros nervosos
- e de somente a causa encontrada ganhar a consciência: essa causa
não é pura e simplesmente adequada à causa efetivamente real - tra-
ta-se de um tatear com base nas "experiências interiores" de outrora
- isto é, da memória. A memória também mantém, porém, os hâbi-
tos da antiga interpretação, isto é, suas causalidades equivocadas...
de tal modo que a "experiência interna" tem de portar em si ainda as
consequências de todas as falsas ficções causais de outrora
nosso "mundo exterior", tal como nós o projetamos a cada
instante, é transposto para e se acha indissoluvelmente vinculado
ao antigo eITO do fundamento: nós o interpretamos com o esque-
matismo da "coisa"
assim como a dor não representa em um caso particular
meramente o caso particular, rnas muito mais uma longa expe-
riência sobre as consequências de certas feridas, incluindo aí os
erros na avaliação dessas consequências
A "experiência interna" só ganha a nossa consciência
depois de ter encontrado uma linguagem que o indivíduo com-
preende... isto é, uma convicção de um estado em estados mais
conhecidos nela -
"compreender' significa, em tennos meramente ingênuos: con-
seguir exprimir algo novo com o auxilio de algo antigo, conhecido
por exemplo, "eu me sinto mal" - tal juizo pressupõe uma
grande e tardia neutralidade do observador- : o homem ingênuo
diz sempre: isto e aquilo fazem com que eu me sinta mal - e só
passa a compreender o seu se sentir mal quando ele uma razão
para se sentir mal...
Éa isso quechamodefaltadefi/ologia: poder deduzir um tex-
to como texto, sem misturar aí wn.a interpretação, é a forma mais tar-
dia da "experiência interna" - talv,ez uma que não é quase possível...

15 (91)
As causas do erro residem tanto na boa vontade quanto na
má vontade do homem - : ele oculta para si em mil casos a reali-
dade, ele a falsifica, para não sofrer de sua boa vontade
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 413

Deus, por exemplo, como o condutor do destino humano:


ou a interpretação de seu pequeno destino, como se tudo esti-
vesse destinado e fosse pensado com vistas à salvação da alma
- essa falta de "filologia", que precisa ser considerada por um
intelecto mais refinado como improbidade e como falsificação,
se toma mediana sob a inspiração da boa vontade ...
A boa vontade, os "sentimentos nobres", os "estados ele-
vados" são em seus meios tão falsificadores e enganadores quan-
to os afetos moralmente recusados e denominados egoístas, tais
como o amor, o ódio e a vingança .
•••
Os erros são aquilo que a humanidade tem de pagar da
maneira mais dispendiosa possível: e, computado no todo, fo-
ram os equívocos ligados ã "boa vontade" que a prejudicaram
da maneira mais profunda possível. A loucura que toma feliz é
mais perniciosa do que a loucura que traz consigo consequências
diretamente terríveis: esta última forma de loucura aguça, toma
desconfiado, purifica a razão - a primeira forma a adormece ...
os belos sentimentos, os "'fervores sublimes", pertencem,
falando fisiologicamente, aos meios narcóticos: seu abuso tem
completamente a mesma consequência que o abuso de um outro
ópio - as fraquezas 11ervosas...

15 (92)
Crítica aos sentimentos valorativos subjetivos.
A consciência moral. Outrora, concluiu-se: a consciência
moral rejeita essa ação: consequentemente, essa ação é reprová-
vel. De fato, a consciência mor.ai rejeita uma ação porque essa
ação se tomou reprovável. Ela apenas repete: ela não cria ne-
nhum valor.
Aquilo que determinou outrora a reprovar certas ações 11ão
foi a consciência, mas a intelecção (ou o preconceito) com vistas
a suas consequências...
A aquiescência da consciência moral, o bem-estar da "paz
consigo mesmo", é do mesmo nível hierárquico que o prazer
414 FRIEDRICH NIETZSCHE

de um artista com sua obra - ela não demonstra absolutamente


nada... Assim, a autossatisfação não é nem um critério de medida
para aquilo com o que ela se relaciona, nem a sua falta se mostra
como um contra-argumento para o valor de uma coisa. Nós esta-
mos muito longe de saber suficientemente para que pudéssemos
medir o valor de nossas ações: falta-nos para tudo isso a possi-
bilidade de ver objetivamente em relação a isso: mesmo quando
reprovamos uma ação, não somos juízes, mas partido...
Os fervores nobres, como acompanhantes das ações, não
demonstram nada quanto ao seu valor: um artista pode trazer ao
mundo uma mesquinhez com o páthos mais elevado de todos
do ânimo. Dever-se-ia dizer, antes, que esses fervores seriam
sedutores: eles desviam nosso olhar, nossa força, da crítica, da
precaução, da suspeita de que fazemos uma burrice... eles nos
tomam estúpidos -

IS (93)
Outrora se consideraram aqueles estados e consequências do
esgotamento fisiológico, uma vez que eles são ricos em termos de
elementos repentinos, terríveis, inexplicáveis e incalculáveis, como
mais importantes do que os estados saudáveis e suas consequências.
As pessoas se atemorizam: elas e~-tabelecem aqui um mundo mais
elevado. As pessoas transformaram o sono e o sonho, a sombra, a
noite, o pavor intrínseco à natureza em responsáveis pelo surgimen-
to de dois mundos: dever-se-iam considerar os sintomas do esgota-
mento fisiológico com vi.stas a isso. As antigas religiões disciplinam
completamente o casto para um estado de esgotamento, no qual ele
precisa vivenciar tais coisas... As pessoas acreditam ter entrado em
uma ordem mais elevada, na qual tudo deixa de se mostrar como
conhecido. - A aparência de um poder mais elevado...

IS (94)
ver no primeiro grande caderno marrom
deixar sua vida para uma coisa - grande efeito. Mas deixa-
-se para muitas coisas sua vida: os afetos como um todo querem
sua satisfação. Quer se trate da compaixão ou da ira ou da via-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 415

gança - o fato de a vida ser posta aí não altera nada em seu va-
lor. Quantos não sacrificaram sua vida por uma moça bonita - e
mesmo, o que é pior, sua saúde. Quando se tem o temperamento,
escolhem-se instintivamente as coisas perigosas: por exemplo,
as aventuras da especulação, quando se é filósofo; ou a imorali-
dade, quando se é virtuoso. Um tipo de homem não quer arriscar
nada, o outro quer arriscar. Nós mesmos somos desprezadores da
vida? Ao contrário, buscamos instintivamente uma vida poten-
cializada, a vida no perigo... com isso, dito ainda uma vez mais,
não queremos ser mais virtuosos dos que os outros. Pascal, por
exemplo, não queria arriscar nada e se manteve cristão: isso tal-
vez tenha sido mais virtuoso. - As pessoas sempre sacrificam...

15 (95)
"As grandes ideais vêm do coração" - mas nesse caso não
se deve acreditar em Vauvenargues etc. etc.

15 (96)
O melhor sacrificio moderno é o sacrificio de meu amigo
Heinrich Koselitz, o único que está livre da Alemanha de Wag-
ner: uma nova composição do " matrimonio segreto ". O segun-
do melhor sacrifício é Carmen, de Bizet; a terceira melhor é o
Meistersinger, de Wagner: uma obra-prima do diletantismo na
música. Tentativa de uma transvaloração de todos os valores.

15 (97)
O que não se sabia antes, uma involução não é possível.
Mas todos os moralistas e sacerdotes buscam reconduzir os ho-
mens a um esquema anterior e desenvolver virtudes neles, que
tinham sido virtudes outrora. Mesmo os politicos não estão livres
disso - nomeadamente os conservadores. Pode-se impedir um de-
senvolvimento e, por meio desse impedimento, produzir até mes-
mo uma degradação e uma aniquilação - mais não é possfvel.
Todo o romantismo em tomo do ideal é falso, uma vez que
considera possfvel involuir. De fato, os românticos representam
uma forma doentia de decadência: eles estão muito na frente,
416 FRIEDRICH NIETZSCHE

chegam muito tarde e são completamente infrutíferos... O anseio


por outrora é ele mesmo uma prova de um profundo desprazer e
de urna ausência de futuro
portanto, as tendências regressivas comprovam o contrá-
rio, que se chegou muito tarde, tarde demais, que se está velho ...

15 (98)
Um rapaz pequeno e habilidoso olhará ironicamente, se
perguntarmos a ele: você quer se tornar virtuoso? Mas ele abrirá
os olhos, se perguntarmos se ele quer se tornar mais forte do que
os seus companheiros
Como alguém se toma mais forte
decidir-se lentamente; e se manter de maneira tenaz junto
àquilo pelo que se decidiu. Todo o resto se segue daí.
Os repentinos e os mutáveis: os dois tipos dos fracos. Não
se misturar com eles, sentir a distância - de tempos em tempos!
Cuidado em relação aos benevolentes! A lida com eles
adormece
Toda lida é boa, na qual se exercitam a defesa e as armas
que se têm nos instintos.
Toda a inventividade em colocar à prova a sua força de von-
tade ... Ver aqui o decisivo, não no saber, na argúcia, no chiste...
É preciso aprender a comandar, de tempos em tempos - do
mesmo modo que a obedecer.
É preciso aprender a modéstia, o ritmo na modéstia: a sa-
ber, distinguir, honrar, quando se 6 modesto ...
Do mesmo modo com a confiança - distinguir, honrar...
O que se expia da forma mais terrível possível? Sua mo-
déstia; não ter dado nenhum ouvido às suas necessidades mais
próprias; confundir-se; rebaixar-se; perder a fineza do ouvido
para os seus instintos; - essa falta de respeito em relação a si
mesmo vinga-se por meio de todo tipo de dano, saúde, bem-es-
tar, orgulho, serenidade, liberdade, firmeza, coragem e amizade.
Mais tarde, nunca conseguimos nos perdoar por essa falta de um
egoísmo autêntico: as pessoas o consideram como objeção, como
dúvida cm relação a um ego efetivo...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 417

15 (99)
Wagner transpôs para a música puras histórias doentias,
casos meramente interessantes, puros tipos completamente
modernos da degenerescência, que são compreensíveis para
nós justamente por conta disso. Nada é hoje mais bem estu-
dado pelos médicos e fisiólogos atuais do que o tipo histé-
rico-hipnótico da heroina wagneriana: Wagner é, neste caso,
experto, ele é, neste ponto, fiel à natureza até as raias do as-
queroso - sua música é, antes de tudo, uma análise psicológi-
co-fisiológica de estados doentios - ela poderia como tal reter
ainda seu valor, mesmo se um gosto (- - - ) completamente
e se ela não ressoasse mais como música. O fato de os caros
alemães saberem se entusiasmar em meio a essa música com
os sentimentos originários de uma habilidade e de uma força
alemães faz parte dos ind[cios chistosos da cultura psicológica
dos alemães: - nós mesmos nos encontramos com a música de
Wagner no hospital e, dito uma vez mais, muiio interessados...
O caráter doentio não é querido em Wagner, não é casual, não
é exceção - ele é a essência de sua arte, seu instinto, seu "in-
consciente", ele é sua inocência: a sensibi lidade, o ritmo do
afeto, tudo toma parte nele, o império da(- ) é de uma ampli-
tude descomunal.
Senta, Elsa, Isolda e Brunilda, Cundre: uma gentil gale-
ria de casos doentios - o quão instintivamente Wagner enten-
de a mulher como mulher doen.te é algo que a personagem Eva
presente nos Mestres cantores, uma mulher de resto constituída
de maneira mais natural, nos faz compreender: - Wagner não
consegue deixar de lhe fornecer uma atitude que dura 20 minu-
tos, por conta da qual colocariamos inevitavelmente sob cuida-
dos psiquiátricos a gentil criatura. Contra os heróis de Wagner é
preciso objetar de início que eles todos têm um gosto doentio -
eles amam mulheres puras que precisariam ser repugnantes para
eles ... Eles amam mulheres completamente estéreis - todas essas
"heroínas" não sabem gerar uma criança - , a exceção é bastan-
te interessante: para ajudar Sieglinda a ter uma criança, Wagner
precisou violentar a saga - e talvez não apenas a saga: de acordo
418 FRIEORICH NIETZSCHE

com a fisiologia wagneriana, só o incesto garante uma criança...


Brunilda mesma...

15 (100)
A vontade de poder
Tenttativa
de uma transvaloração de todos os valores.

Primeiro Livro. Critica das grandes palavras


Os valores do declinio. o homem altruísta

Segundo Livro. ''heroico''


Por que apenas os
valores do declínio '~compaixão"
se tomaram dominantes. Sobre a "paz da alma"

Terceiro Livro. o mártir.


Modernidade modéstia (como as pessoas
a perdem...)
como ambiguidade dos
valores

Quarto Livro.
O valor do futuro
(Como expressão de um ripo de homem mais forte)
: que precisa existir em primeiro lugar...

15 (101)
Imagem da decadência: seus sintomas.
Supercrescimento dos valores mais elevados com esses
sintomas.

Filosofia como decadência


Moral como decadência.
Religião como decadência.
Arte como decadência.
Polltica como decadência.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 419

15 (102)
1.
Os valores do declínio.
n.
O contramovimento e seu destino.
m.
Problema da modernidade.
IV.
O grande meio-dia.

15 (103)
la meditation affaiblit commeferaient des évacuations ex-
cessives (Tissot, De la santé des gens de lettres, p. 43) 1784246
sob a influência de cálculos difíceis, a sensibilidade se ate-
nua, assim como a contratibilidade voluntária; a abrangência dos
membros diminui.

15 (104)
O que acontece com a espiritualização dos desejos de todo
tipo: quanto a isso há um exemplo clássico: a satura Menippea2<7
de Petrônio. Se lennos o texto lado a lado com um padre da Igre-
ja, é de se questionar onde é que o ar sopra mais puro... Aqui não
há nada que não lançasse em desespero um velho sacerdote por
meio da aeticidade e da soberba lasciva.

15 (105)
N.B. a doutrina do meio é uma teoria da decadência, mas
ela penetrou e se assenhoreou daflsiologia.

15 (106)
A teoria do meio, hoje a teoria parisierrse par exce//ence, é
ela mesma uma prova de uma d.esagregação fatídica da persona-

246 N.T.: Em francês no original: a meditação enfraquece do mesmo modo


que nos enfraqueceriam evacuações excessivas.
247 N.T.: Gênero llter~rlo satírico Inventado por Menlpo.
420 FRIEDRICH NIETZSCHE

tidade: quando o meio começa a fonnar e corresponde ao estado


das coisas poder compreender os talentos superficiais como me-
ras concrescências de seu meio, já passou o tempo no qual ainda
se podia ter juntado, acumulado, colhido - o faturo passou... O
instante devora aquilo que ele produz - e, ai de nós, ele ainda
permanece faminto depois ...

15 (107)
Em suma: o heroísmo não é nenhum interesse pessoal - pois
se sucumbe com ele... Com frequência, o emprego da força é con-
dicionado pelo acaso do tempo, no qual o grande homem cai: e isso
traz a superstição consigo, como se ela fosse a expressão desse tem-
po... mas a mesma força poderia se mostrar em muitas outras for-
mas, e resta sempre uma diferenç.a entre o heroísmo e o tempo, uma
vez que a "opinião pública" está acostumada a venerar o instinto do
rebanho, isto é, dos fracos, e uma vez que ele é oforte, a força. ..

15 (108)
Os crentes estão conscientes de que devem ao cristianismo
algo infinito e concluem, consequentemente, que seu fundador
seria um personagem de primeira grandeza... Essa conclusão é
falsa, mas é a típica conclusão dos que veneram. Considerado
objetivamente, seria possível, em primeiro lugar, que eles se
equivocassem quanto ao valor daquilo que devem ao cristianis-
mo: convicções não demonstram nada quanto àquilo de que se
está convencido; em religiões, elas justificam, antes, ainda uma
suspeita... Em segundo, seria possível que aquilo que é devido ao
cristianismo não possa ser atribuído ao seu fundador, mas justa-
mente ao construto pronto, ao todo, à Igreja a partir dele. O con-
ceito "fundador" é tão plurissignificativo que ele mesmo pode
significar a mera causa ocasional para um movimento: ampliou-
se a figura do fundador na mesma medida cm que a Igreja cres-
ceu; mas justamente essa ótica da veneração permite a conclusão
de que, em algum momento, esse fundador era algo muito incerto
e desprovido de firmeza - no inicio... Pensemos com que liber-
dade Paulo trata do problema pessoal Jesus, quase escamotea-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 421

damente - alguém que morreu, que se viu uma vez mais depois
de sua morte, alguém que foi entregue à responsabilidade dos
judeus para morrer... um mero "motivo'': ele, então, compõe para
esse tema a música ... um nada no início -

15 (109)
A moral dos senhores
A moral dos sacerdotes
A moral da '/schandala
(a moral dos criados)
A moral dos animais de rebanho
A moral da decadência
A moral dos povos

15 (110)
Altruísmo
Para que o cristianismo tenha colocado no primeiro plano
a doutrina do desinteresse e do amor, ele não precisou de maneira
alguma estabelecer ainda o interesse da espécie como mais eleva-
damente valioso do que o interesse ind.ividual. Seu efeito históri-
co propriamente dito, a fatalidade em tennos de efeito, continua
sendo inversamente a elevação do egoísmo, do egoísmo indivi-
dual até o extremo (- até o extremo da imortalidade individual).
O particular foi considerado tão importante pelo cristianismo, foi
tão absolutamente estabelecido por ele, que não se conseguiu mais
sacrificá-lo: mas a espécie só subsiste por meio do sacrificio hu-
mano... Diante de Deus, todas as "almas" se tomam iguais: mas
esta precisamente é a mais perig.osa de todas as avaliações possí-
veis! Se colocamos os particulares como iguais, então colocamos
a espécie em questão, então favorecemos uma práxis que conflui
para a ruína da espécie: o cristianismo é o contraprincípio contra
a seleção. Quando o degenerado e o doente ("o cristão") devem
ter tanto valor quanto o saudável ("o pagão"), ou mesmo ainda
mais valor do que ele, segundo o juizo de Pascal sobre a saúde e a
doença, então o curso natural do desenvolvimento é cruzado, e o
a111inatural é transformado em lei ... Esse amor humano universa.1
422 FRIEDRICH NIETZSCHE
............................................... ................................................

é, na prática, o privilégio de todos os que sofrem, de todos os des-


validos, degenerados: ele acolheu e enfraqueceu de fato a força,
a responsabilidade, o alto compromisso de sacrificar homens. De
acordo com o esquema do critério de medida cristão, só restou
sacrificar a si mesmo: mas esse resto de sacrificio humano, que o
cristianismo concedeu e que ele mesmo aconselhou, não tem, visto
a partir do ponto de vista da domesticação conjunta, absolutamente
nenhum sentido. É indiferente para a prosperidade da espécie se
um particular qualquer se sacriJjca (- seja de uma maneira mo-
nástica e ascética ou com o auxílio de cruzes, fogueiras e forcas,
como "mârtires" do erro). A espécie precisa do decllnio dos desva-
lidos, fracos, degenerados: mas é justamente para eles que se volta
o cristianismo como força conservadora, essa força eleva mesmo
aquele instinto em si já tão poderoso dos fracos par.i se pouparem,
para se conservarem, para se sustentarem mutuamente. O que é a
"virtude", o que é o "amor dos homens" no cristianismo, se não
justamente essa reciprocidade da conservação, essa solidariedade
dos fracos, essa obStrução da seleção? O que é o altruísmo cristão
senão o egoísmo da massa dos fracos, que desvenda o fato de que,
se todos cuidarem uns dos outros, cada particular se conserva du-
rante o maior tempo possível?... Se não se sente tal postura como
uma extrema imoralidade, como um crime à vida, então se faz par-
te do bando dos doentes e se têm mesmo seus instintos... O autênti•
co amor humano exige o sacrifício para o melhor da espécie- ele é
duro, ele é cheio de autossuperação, porque necessita do sacriflcio
humano. E essa pseudo-humanidade, que se chama cristianismo,
quer precisamente impor o fato de que ninguém é sacriftcado...

15 (Ili)
Sobre o efeito da música de Wagner
Uma música, na qual não se pode respirar de maneira ritma-
da, não é saudável. Quando a música provém dai com uma divin-
dade e uma certeza serenas, nossos músculos também celebram
uma festa: - nós ficamos mais fortes, é possível até mesmo medir
esse crescimento de força. Como é que se chega propriamente ao
fato de a música de Wagner me despontencializar, de ela despe.rtar
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 423

em mim uma impaciência fisiológica, que se anuncia em última


instância em suor brando? Depois de um ato ou, no mãximo, de-
pois de dois atos de Wagner, eu fujo. - É preciso insistir no fato de
que toda arte que tem a fisiologia contra si é uma arte refutada ... A
música de Wagner pode ser refutada fisiologicamente...

15 (112)
Crítica da alma moderna.
Os três séculos.

15(113)
O homem bom. Ou: a hem,iplegia da virh1de. - Para todo e
qualquer tipo forte de homem que tenha se mantido natural, amor e
ódio, gratidão e vingança, docilidade e ira, afirmar e negar se com-
pertencem. O preço que se paga por ser bom é também saber ser
mau; é-se mau, porque de outro modo não se saberia ser bom. De
onde provém, então, aquele adoecimento e aquela desnaturalização
ideológica, que recusa essa duplicidade - que ensina como o que
há de mais elevado ser apenas parcialmente hábil? De onde pro-
vém a hemiplegia da virtude, a imvenção do homem bom? A exi-
gência volta-se para o fato de que o homem se imiscui com aqueles
instintos, com os quais ele pode se mostrar como hostil, pode tra-
zer danos, pode se enfurecer, pode se vingar... A essa desnatureza
corresponde, então, aquela concepção dualista de uma essência
meramente boa e de uma essência meramente má (Deus, espirita,
homem), no primeiro caso aglutinando todas as forças, intenções e
estados positivos, no segundo, todas as forças, intenções e estados
negativos. - Tal modo de valoração se acredita, com isso, "idealis-
ta"; ele não duvida de ter estabelecido uma desejabilidade extrema
na concepção do "bem". Se ele alcança o seu ápice, então imagina
para si um estado, no qual todo mal é anulado e no qual s6 restam,
em verdade, os seres bons. Portanto, ele não considera nem mesmo
decidido que aquela oposição entre bem e mal se condicione mutu-
amente; para ele, ao contrário, o mal deve desaparecer e o primeiro
deve pennanecer, um tem um direito a ser, o outro não deveria
existir de modo algum ... O que deseja aí propriamente? - -
424 FRIEORICH NIETZSCHE
·······························································································

Em todos os tempos e, em particular, nos tempos cristãos,


as pessoas se empenharam muito em reduzir o homem a essa ha-
bilidade parcial, ao "bem": não faltam ainda hoje pessoas empe-
dernidas e enfraquecidas pela Igreja, para as quais essa intenção
se confunde com a "humanização" em geral ou com a "vontade
de Deus" ou com a "salvação da alma". Levanta-se aqui como
exigência essencial que o homem não faça nada de mau; que ele
não prejudique, não queira prejudicar em circunstância alguma...
Como caminho para tanto temos: a circuncisão de todas as possi-
bilidades para a inimizade, o enforcamento de todos os instintos
do ressentimento, da "paz da alma" como um mal crônico.
Esse modo de pensar, com o qual determinado tipo de ho-
mem é cultivado, parte daquele pressuposto absurdo: ele consi-
dera o bem e o mal como realidades que estão em contradição
consigo (não como conceitos vailorativos complementares, o que
seria a verdade); ele aconselha tomar o partido do bem, ele exi-
ge que o bem renuncie e resista ao ma.l até suas últimas ralzes
- de fato, ele nega, com isso, a vida, que tem em todos os seus
instintos tanto o sim quanto o não. Não que ele conceba esse
fato: ele sonha, muito ao contrário, cm retomar à totalidade, à
unidade, à força da vida: ele perusa em si mesmo como estado da
redenção, quando se põe efetivamente um ponto final na própria
anarquia interior, na inquietude entre dois impulsos valorativos
opostos. - Talvez não tenha havido até aqui nenhuma ideologia
mais perigosa, nenhum disparate maior na esfera psicológica do
que essa vontade do bem: criou-se o tipo mais repulsivo, o ho-
mem escravo, o trambolh.ão, ensinou-se que só se está a caminho
da divindade como trambolhão, que somente urna viandança de
trambolhão seria uma viandança divina ...
- E mesmo aqui a vida ainda continua tendo razão - a
vida que não sabe cindir o sim do não - : o que adianta tomar
com todas as forças a guerra por má, não causar danos, não que-
rer aniquilar! Conduz-se de qualquer modo uma guerra! Não
se tem nenhuma outra opção! ,O bom homem, que renunciou
ao mal, marcado, como lhe parece desejável, com aquela he-
miplegia da virtude, não cessa de realizar urna guerra, de ter
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 425

inimigos, de dizer não. O cristão, por exemplo, odeia o "peca-


do" ... E quantas coisas não são para ele "pecado"! Justamente
por meio daquela crença em uma oposição moral entre bem e
mal, o mundo se tomou para ele cheio do valor do ódio, daquilo
que precisa ser eternamente combatido. "O bom" vê-se como
que envolto pelo mal e, sob a constante afluência do mal, ele
refina seus olhos, ele descobre mesmo sob todo o seu poetar e
ansiar ainda o mal: - e, assim, ele termina, tal como é conse-
quente, compreendendo a natureza como má, o homem como
degradado, o ser bom como graça (ou seja, c-0mo humanamente
imposs[vel). - Em suma: ele nega a vida, ele concebe como é
que o bem condena como o valor supremo a vida ... Com isso,
sua ideologia do bem e do mal deveria ser considerada para ele
como refutada. Mas não se refuta uma doença ... E, assim, ele
concebe outra vida! ...

15 (114)
As típicas autoconjigurações. Ou: as oito questões principais
1) Se queremos ter a nós mesmos de maneira multifacetada
ou simples.
2) Se queremos ser felizes ou se somos indiferentes em
relação à felicidade e à infelicidade.
3) Se nos dispomos a nos satisfazermos conosco ou se exi-
gimos mais e somos implacáveis.
4) Se queremos nos tomar mais suaves, mais flex[veis,
mais humanos ou "desumanos".
5) Se queremos nos tomar mais inteligentes ou sem con-
sideração.
6) Se queremos alcançar uma meta ou nos desviar de todas
as metas (- tal como o fu, por exemplo, o filósofo, que
fareja em cada meta um limite, um canto, uma prisão,
uma burrice... ).
7) Se queremos que outros prestem atenção em nós ou nos
temam? Ou nos desprezem!
8) Se queremos nos tornar tiranos, sedutores, pastor ou ani-
mal de rebanho?
426 FRIEDRICH NIETZSCHE
................................................ ········"·····································

15 (115)
O que é nobre?
O fato de ser preciso se apresentar constantemente. O fato
de ser preciso buscar locais nos quais se necessita constante-
mente de gestos. O fato de se abandonar a felicidade do grande
número; felicidade como paz da alma, virtude, conforto (lógica
de merceeiro anglo-angelical à moda de Spencer). O fato de se
buscar instintivamente por si pesadas responsabilidades. O fato
de se saber criar por toda parte inimigos, na pior das hipóteses
ainda a partir de si mesmo. O fato de não se contradizer o grande
número por meio de palavras, mas por meio de ações.

15(116)
Os homens guerreiros e os homens pacíficos
Tu és um homem que tem os instintos da guerra no cor-
po? Nesse caso, então, restaria ainda uma segunda questão: tu
és um guerreiro de ataque ou wn guerreiro de resistência por
instinto?
- O resto dos homens, todos aqueles que não são belicosos
por in.stinto, quer paz, quer hannonia, quer "liberdade",
quer "direitos iguais" - : todos esses tennos não são se-
não nomes e níveis para uma e mesma coisa.
- Ir para onde não é necessário resistir. Tais homens tor-
nam-se insatisfeitos consigo mesmos quando são obriga-
dos a realizar urna resistência.
- Criar Estados nos quais não haja mais nenhuma gue.rra.
- No pior dos casos, submeter-se, obedecer, ajustar-se.
Sempre ainda melhor do que realizar uma guerra. É as-
sim, por exemplo, que o instinto do cristão o aconselha.
No caso dos guerreiros natos, hâ algo como um armamento
no caráter, na escolha dos Estados, na formação de toda e qual-
quer propriedade: a "arma" é desenvolvida da melhor maneira
possível no primeiro tipo; a defesa, no segundo.
Os desarmados, os sem defesa: de que recursos e virtudes
eles não necessitam, para suportar - a fim de eles mesmos pre-
valecerem.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 427

15 (117)
Do ascetismo dos fortes
Tarefa desse ascetismo, que não é senão um aprendizado
transitório, não uma meta: libertar-se dos antigos impulsos sen-
timentais dos valores tradiciona:is. Aprender a percorrer passo a
passo seu caminho até ''para além de bem e mal".
Primeiro nível: suportar atrocidades
fazer atrocidades
Segundo nível, o mais dificil: suportar miserabilidades
fazer miserabilidades:
inclusive como exercício
prévio:
tomar-se ridículo, fazer-se
ridículo.
- Exigir o desprezo e manter, apesar disso, a distância por
meio de \ll1l riso (indecifrável) vindo do !llto
- acolher em si uma qu3l!ltidade de crimes que amesqui-
nham, por exemplo, furto de dinheiro, a fim de colocar à
prova seu equilíbrio
durante um tempo, não fazer nada, não dizer nada, não
aspirar a nada que não desperte temor ou desprezo, o que não
transpõe os homens decentes e virtuosos necessariamente em um
estado de guerra - o que não exclui ...
representar o contràrio disso que se é (melhor ainda: não
precisamente o contrário, mas meramente um ser diverso: este
último ponto é mais difícil)
- andar em cima de toda e ,qualquer corda, dançar com toda
e qualquer possibilidade: receber seu gênio nos pés
- negar suas metas por vezes por meio de seus meios -
mesmo amaldiçoá-las
- representar de uma vez por todas um caráter que encubra
o fato de se ter cinco ou seis outros caracteres
- não se atemorizar diante das cinco coisas tem veis: a co-
vardia, a má fama, o vicio, a mentira, a mulher
428 FRIEORICH NIETZSCHE
·······························································································

15 (118)
Sentenças de um hiperbóreo.
Nós, hiperbóreos, sabemos muito bem o quão à margem vive-
mos. "Tu não podes encontrar o caminho para os biperbóreos nem
por mar nem por terra": foi isso que Píndaro antes de nós já sabia.
Para além do Norte, do gelo, da morte - nossa vida! Nossa
felicidade!...
Coisas grandes exigem que se silencie sobre elas ou que
se fale de maneira grande: grande, ou seja, cinicamente e com
inocência.
Mesmo o mais corajoso de nós só tem muito raramente a
coragem para aquilo que ele propriamente - sabe ...
É em sua natureza selvagem que alguém se recupera da me-
lhor fonna possível de sua desnaturcza - de sua espiritualidade...
Como? O homem é apenas um equivoco de Deus? Ou
Deus apenas um equívoco do homem?
Nós desconfiamos de todos os sistemáticos, nós nos afasta-
mos de seus caminhos. A vontade de sistema é, ao menos para nós,
pensadores, algo que compromete, uma forma da imoralidade.
A mul.her, o etemamente feminino: um valor mcrc1mente
imaginário, no qual só o homem acredita.
O homem criou a mulher - a partir do que, afinal? A partir
de uma costela de seu Deus, de seu "ideal"...
Considera-se a mulher profunda - por quê? Porque nunca
se chega ao fundo nela. Mas a mulher não tem fundamento al-
gum: trata-se do barril de danaides.
A mulher não é nem mesmo rasa.
Quem ri melhor também acaba rindo por último.
"Para viver sozinho, é preciso ser um animal ou um deus" -
diz Aristóteles. Nós demonstramos que se precisa ser os dois ...
O ócio é o princípio de toda filosofia. Consequentemente
- a filosofia é um vício?
O quilo pouco é necessário para a felicidade! O tom de uma
gaita de fole ... Sem música, a vida seria um erro.
Que não se cometa nenhuma covardia contr.i suas ações 1
Que não a deixemos na mão depois! - O remorso é indecente.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 429

O casamento teve contra si durante a maior parte do tempo


a mâ consciência. Dever-se-ia acreditar nisso? - Sim, dever-se-ia
acreditar nisso.
Tudo aquilo com o que o homem não sabe se haver, tudo
aquilo que nenhum homem conseguiu ainda digerir, as fezes da
existência - esse não foi até aqui o nosso melhor estrume?...
De tempos em tempos, uma burrice - ó, como degustamos
imediatamente a nossa própria sabedoria!
É preciso ter coragem no corpo para se permitir uma perfi-
dia. Os "bons" são covardes demais para tanto.
O homem é covarde diante de todo o eterno feminino: é
isso que sabem as mocinhas.
O que não nos mata - carregamos conosco, nos toma mais
fortes. li faut tuer /e Wagnerisme. 248
Esses foram estágios para mim. Eu subi por sobre eles.
Para tanto, precisei me lançar para além deles. Mas eles achavam
que cu pretendia me sentar tranquilamente sobre eles.
"Toda verdade é simples (não possui senão uma face)": 249
essa é uma dupla mentira.
Tudo o que é simples é meramente imaginário, não é "ver-
dadeiro". No entanto, aquilo que é efetivo, que é verdadeiro, não
é nem uno nem tampouco redurivel ao uno.
Um burrico pode ser trágico? - O fato de sucumbir sob um
fardo, que não se consegue nem suportar nem jogar fora? ...
Entre mulheres. - "A verdade? ó, elas não conhecem a
verdade! ... Ela não é um atentado aos nossos pudores?"
"Ao igual o igual, ao desigual o desigual - é assim que nos
fala ajustiça. E o que segue daí: nu.oca tomar igual o desigual."
Quem não consegue colocar a sua vontade nas coisas inse-
re aí ao menos um sentido: ou seja, ele acredita que um sentido
já está ai.

248 N.T.: Em francês no original: ~ preciso mat.ir o wagnerlanlsmo.


249 N.T.: Nletzsehe brinca aqui com a etimologia da palavra etn/och (simples). que
significa literalmente o que só possui uma face. Como esse Jogo desaparece-
ria na traduçJo, optamos pro expllcl.tar o sentido do termo entre parênteses.
430 FRIEDRICH NIETZSCHE

O grande estilo entra em cena como consequência da grande


paixão. Ele desdenha a possibilidade de agradar, ele esquece de
convencer. Ele comanda. Ele quer.
Artistas, tal como eles costumam ser quando são autênti-
cos, modestos em suas necessidades: eles só querem propriamen-
te duas coisas, seu pão e sua arte - panem et Circe11 ...
Os homens póstwnos sã.o mais mal compreendidos, porém
mais bem escutados do que os contemporâneos. Ou, dito de ma-
neira mais rigorosa: eles nunca s.ão compreendidos - e justamen-
te daí advém a sua autoridade!
O bom gosto cm psychologicis: quando toda a mascarada
moral de nossa naturalidade resiste a nós, ainda que no psíquico
apenas a natureza nua e crua agrade.
Não se deve ser imodesto: se se escolhe a virtude e o peito
estufado, então não se deve querer ao mesmo tempo as vantagens
do gatuno.
A virtude continua sendo o vício mais dispendioso: ela
deve continuar assim!
O homem é um egoísta mediano: mesmo o mais astuto
considera o seu hábito mais importante do que a sua vantagem.
A doença é um estimulante poderoso. Só que se precisa ser
saudável o suficiente para o estimulante.
O gosto nobre também traça os limites do conhecimento.
Ele não quer, de uma vez por todas, saber muitas coisas.
O que é a castidade no homem? O fato de seu gosto sexual
ter permanecido nobre; o fato de ele não gostar em eroticis nem
do brutal, nem do doentio, nem do astuto.
Tem-se o seu "por quê?" da vida, então é possível se haver
com quase todo "como?" O homem não aspira à felicidade, como
acreditam os ingleses. -
Como é que se poderiam estragar aos medianos a sua me-
diania! Faço, todos o veem, o contrário: todos os passos para
longe deles conduz - assim eu ensino - para o interior do âmbito
imoral...
Nossas convicções mais sagradas, nosso elemento imutável
com vistas aos valores supremos, são juizos de nossos músculos.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 431

"Tu ainda não sabes do que se necessita para decuplicar


sua força?" - Disclpulos? - Zeros!!!
- E como todo aquele que tem razão demais, não dou a
menor importancia a continuar tendo razão. (Conclusão do pre-
fácio)

15 (119)
Isotérmicos biológicos

15 (120)
O que é bom? - Tudo aquilo que eleva o sentimento do
poder, a vontade de poder, o poder mesmo no homem.
O que é ruim? - Tudo aqui lo que provém da fraqueza.
O que é felicidade? - O sentimento de que o poder cresceu
uma vez mais - de que uma resistência foi uma vez mais superada.
Não satisfação, mas mais poder; não paz em geral, mas
mais guerra; não virtude, mas capacidade (virtude no estilo do
Renascimento, virt1i, virtude isenta de toda moral).
Aquilo que é fraco e desvalido deve perecer; imperativo
supremo da vida. E não se deve fazer da compaixão nenhuma
virtude.
O que é mais perigoso do que qualquer vício? - A com-
paixão da ação em relação a todos os desvalidos e fracos - o
cristianismo...

•••
Que tipo a humanidade remirá um dia? Mas isso é mera
ideologia darwinista. Como se uma espécie fosse algum dia re-
mida! No que me diz respeito, esse é um problema de hierarquia
no interior do próprio gênero humano, cujo progresso no todo eu
não acredito, o problema da hierarquia entre os tipos humanos,
que sempre estiveram presentes e que sempre estarão presentes.
Distingo um tipo da vida ascendente e outro da decadência,
da decomposição, da fraqueza.
Dever-se-ia acreditar que a questilo da hierarquia entre os
dois tipos ainda precisaria ser fonnulada?
432 FRIEDRICH NIETZSCHE

Esse tipo mais forte já existiu de maneira muito frequente:


mas como um caso fortuito, como uma exceção - nunca como
querido. Ao contrário, ele foi precisamente o tipo mais bem com-
batido, mais bem impedido - ele sempre teve contra si o grande
número, o instinto de todo e qualquer tipo de medida mediana,
mais ainda, ele teve ainda contra si a manha, a fineza, o espírito
dos fracos - consequentemente - "a virtude" ... ele foi até aqui
quase o temível: e por temor se quis, se cultivou, se alcançou o
tipo inverso, o animal doméstico, o animal de rebanho, o animal
doente, o cristão...
(16 = WII 7a Inicio do ano - Verão de 1888)

Turim, 21 de abril, a caminho.

16 (1)
"Meus irmãos" - disse o anão mais velho - "nós nos encon-
tramos em perigo. Compreendo a atitude deste gigante. Ele está a
ponto de nos irrigar. Quando um gigante irriga, hã uma inundação.
Nós estamos perdidos, se ele se propuser a nos irrigar. E não estou
falando sobre em que elemento terrível nós iremos nos afogar".
"Problema" - disse o segundo anão - "como é que impedi-
mos um gigante de realizar uma irrigação?"
"Problema" - disse o terceiro anão - "como é que impedi-
mos alguém grande de fazer grandiosamente algo grande?"
"Agradeço" - respondeu o anão mais velho, honrosamen-
te. "Com isso, o problema foi considerado de maneira mais filo-
sófica, seu interesse foi duplicado; sua solução, preparada."
"Precisamos assustá-lo" - disse o quarto anão.
"Precisamos fazer cócegas nele" - disse o quinto anão.
"Precisamos morder os l O dedos de seus pés" - disse o
sexto anão.
"Façamos tudo isso ao mesmo tempo" - decidiu o mais
velho. "Vejo que estamos à altura dessa situação. Esse gigante
não vai irrigar."

16 (2)
O caráter arriscado e fantasmagórico na existência -
Noite de 27 de abril
16 (3)
Causas imaginárias

16 (4)
Valer-se dos serviços de tudo o que é temível, de maneira
panicular, experimental, gradual - é assim que quer a tarefa da
cultura. Mas, até o momento em que ela esteja forte o bastante
434 fRIEDRICH NIETZSCHE

para isso, ela precisa combatê-lo, moderá-lo, em certas circuns-


tâncias amaldiçoá-lo e aniquilá-lo. Por toda parte onde uma cul-
tura estabelece o seu mal, ela expressa, com isso, uma relação de
temor: sua fraqueza se revela. Em si, tudo o que é bom se mostra
como algo outrora mau que se tomou útil.

16 (5)
Isso fornece um critério de medida: quanto mais terríveis e
grandes são as paixões, que um tempo, um povo, um singular po-
dem se permitir, uma vez que eles sabem utilizá-las como meios,
tanto mais elevada se encontra a. sua cultura: quanto mais media-
no, fraco, submisso e covarde - quanto mais virtuoso - é um ho-
mem, tanto mais amplamente ele vai estabelecer o reino do mal.
O mais baixo dos homens precisa ver o reino do mal por toda
parte (ou seja, o reino daquilo que lhe é proibido e hostil). -

16 (6)
Educação: um sistema de meios, para arruinar as exceções em
favor das regras. Formação: um sistema de meios, para dirigir o gos-
to contra as exceções, em favor dos medianos. Que as coisas sejam
assim é duro; mas, considerado ,economicamente, completamente
racional. Ao menos por um longo tempo, no qual uma cultura ainda
se mantém com esforço, e toda e qualquer exceção representa uma
espécie de dissipação de força (algo que desvia, seduz, danifica, iso-
la}. Uma cultura da exceção, do ensaio, do perigo, da nuança - uma
cultura de eshifa para as plantas incomuns - só conquista um direito
à existência quando se faz presente força suficiente, de tal modo que
a partir de então mesmo a dissipação se toma econômica

16 (7)
O domínio sobre as paixões, não o seu enfraquecimento
ou extinção! Quanto maior é a força senhorial de nossa vontade,
tanto mais liberdade pode ser concedida às paixões. O grande
homem é grande por meio da livre margem de manobra dada aos
seus desejos: ele, porém, é forte o suficiente para transformar
esses monstros cm animais domésticos ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 435

16 (8)
O "homem bom" em cada estágio da civilização é ao
mesmo tempo o homem inofensivo e útil: uma espécie de
meio-termo, a expressão na consciência vulgar em relação a
quem não se deve temer e a quem não se pode, apesar disso,
desprezar...

16 (9)
Na luta contra os grandes homens há muita razão. Esses
homens são perigosos, acasos, exceções, tempestades, eles são
fortes o suficiente para colocar ,cm questão o que foi lentamen-
te construído e fundamentado, homens que se mostram como
pontos de interrogação com vistas àquilo em que se acredita fir-
memente. Descarregar tais materiais explosivos de maneira não
apenas inofensiva, mas, se for de algum modo possivel, prevenir
o seu surgimento e a sua frequência: é a isso que nos aconselha o
instinto de toda sociedade civilizada.

16 (10)
Os ápices da cultura e da civilização se encontram separa-
dos: não podemos nos deixar eraganar quanto aos antagonismos
abissais entre cultura e civilização. Dito em termos morais, os
grandes momentos da cultura sempre foram tempos de corrup-
ção; e, por sua vez, as épocas da domesticação desejada e im-
posta ("civilização") do homem sempre foram tempos de intole-
rância cm relação às naturezas mais espirituais e mais ousadas. A
civilização quer uma coisa diversa da que quer a cultura: talvez
algo inverso...

16(11)
- Decisão e consequência: de acordo com Goethe, o que há
de mais honrável no homem -

16 (12)
A vida mesma não é nenhum meio para algo; ela é uma
mera forma de crescimento do poder.
436 fRIEORICH NIETZSCHE

16 (13)
Modesto, aplicado, benevolente, comedido, cheio de paz
e amizade: é assim que vós quereis o homem? É assim que vós
imaginais o homem bom? Mas o que é alcançado por meio dai é
apenas o chinês do futuro, a "ovelha cristã", o socialista perfeito...

16 (14)
Quem não consegue se estabelecer como meta, nem con-
segue tampouco estabelecer metas a partir de si, acaba honrando
a moral do altruísmo. Tudo o convence a isso, sua astúcia, sua
experiência, sua vaidade...

16 (15)
A luta contra as "crenças. antigas", tal como ela foi em-
preendida por Epicuro, era, em sentido rigoroso, a luta contra o
cristianismo preexistente - a luta contra o mundo já obscurecido,
envenenado moralmente por sentimentos de culpa e inteiramente
acidificado, um mundo que se tomou velho e doente.
Não a "degradação dos costumes" da Antiguidade, mas
precisamente o seu envenenamento moral é o pressuposto, sob o
qual apenas o cristianismo pôde se assenhorear sobre ele. O fana-
tismo moral (em suma: Platão) destruiu o paganismo, na medida
em que transvalorou seus valores e fez com que sua inocência
tomasse veneno. - Deveríamos conceber finalmente o fato de que
aquilo que foi destruído era o mais elevado em comparação com
aquilo que se tornou senhor! - o cristianismo cresceu a partir da
degradação fisiológica, só fincou ralzes cm um solo degradado...

16 (16)
Nós, poucos ou muitos, que ousamos viver uma vez mais
cm um mundo desmoralizado; nós, pagãos, no que diz respeito
à crença: provavelmente, somos também os primeiros que com-
preendem o que é uma crença pagã: precisar imaginar seres mais
elevados do que o homem, mas esses seres para além de bem e
mal; precisar avaliar todo ser-mais-elevado também como um ser
imoral. Nós acreditamos no Olimpo - e não no crucificado...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 437

16 (17)
Parece que as pessoas nunca se servem da história senão
para estabelecer a mesma e única conclusão falsa: "essa e aquela
forma pereceram, consequentemente elas se acham refutadas".
Como se perecer fosse uma objeção, ou mesmo uma refatação! -
O que se demonstrou com o perecimento da última ordem social
aristocrâtica? Por exemplo, que nós não necessitaríamos mais de
tal ordem?...

16 (18)
Entre alemães, não é suficiente ter espírito: é preciso ainda
acolhê-lo, permitir-se espírito. Entre franceses, é preciso ter co-
ragem para ser alemão.

16 (19)
Sê agora astuto, depois de ·teres sido sábio! Um afeto tosco,
um vício, uma extravagância - a partir de agora, esse será o seu
tipo de redenção!

16 (20)
- e se minha filosofia é um inferno, então quero ao menos
asfaltar o caminho até ele com boas sentenças.

16(21)
Se o carâter da existência devesse ser falso, se a existência
tivesse um "carâter ruim" - e justamente isso seria possível-, o
que seria, então, a verdade, toda a nossa verdade? Uma falsidade
a mais?

16 (22)
Fez-se uma burrice, então se deve fazer seguir a ela depres-
sa duas coisas espertas: assim a resgatamos uma vez mais.

16 (23)
O quão pobre a vontade precisa ter se tomado, para que o
mundo fosse ma.! compreendido à moda de Schopenhauer como
438 FRIEDRICH NIETZSCHE

vontade! No filósofo falta a vontade, por mais que se fale de von-


tade (- como no Novo Testamento falta o espírito, apesar mesmo
do "espírito santo"- )

16 (24)
Sem a música, a vida seria um erro.

16 (25)
O homem, uma pequena espécie animal exagerada que -
felizmente - tem seu tempo; a vida sobre a Terra em geral é um
instante, um acaso intermediári,o, uma exceção sem consequên-
cia, algo que permanece insignificante para o caráter conjunto
da Terra; a Terra mesma, como todo e qualquer astro, é um hiato
entre duas nulidades, um resultado sem plano, razão, vontade,
consciência de si, o pior tipo do necessário, a burra necessida-
de ... Algo se revolta em nós contra essa consideração; a serpente
vaidade cicia para nós: "tudo isso precisa ser falso, pois revolta...
Será que tudo não poderia ser apenas aparência? E o homem, ape-
sar de tudo isso, para falar com Kant - - -

16 (26)
O fato de "o mal" dever ser uma objeção contra a exis-
tência! Mas o que nos repugnou durante mais tempo? Não foi o
aspecto "do bem", não foi a impossibilidade, o fato de não poder-
mos nos desviar "do bem"? Não foi a ideia "Deus"?

16 (27)
Quando se está doente, é preciso esconder a si mesmo: só
isso é filosófico, só isso é animal...

16 (28)
Há pensadores matutinos, há pensadores vespertinos, há
corujas noturnas. Não podemos esquecer a espécie mais nobre: os
homens do meio-dia - aqueles nos quais dormita constantemente
o grande Pan. Toda luz incide ai. de maneira perpendicular...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 439

16 (29)
Nós carecemos na música de uma estética que saiba im-
por aos músicos leis e crie uma consciência; nós carecemos, o
que é uma consequência disso, de uma luta propriamente dita
por ''princípios" - pois como músicos rimos das veleidades her-
bartianas nesse campo tanto quanto das veleidades de Schope-
nhauer. De fato, resulta a partir daí uma grande dificuldade: não
sabemos maisfimdamentar os conc-eitos de "padrlo", de "maes-
tria", de "perfeição" - tateamos de maneira cega à nossa volta
com o instinto de um amor e de uma admiração antigos em meio
ao reino dos valores, quase acreditamos que "bom é aquilo que
nos agrada" ... Desperta minha desconfiança, quando de forma
totalmente inocente Beethoven é designado por toda parte como
"clássico": eu insistiria rigorosamente no fato de que, em outras
artes, se conceberia por um clássico um tipo inverso ao de Be-
ethoven. Mas quando a perfeita. e evidente dissolução do estilo
característica de Wagner, seu assim chamado estilo dramático,
é ensinada e venerada como "modelo", como "mestria", como
"progresso", minha impaciência chega ao seu ápice. O estilo dra-
mático na música, tal como o compreende Wagner, é a realização
de uma abdicação ao estilo em geral sob o pressuposto de que
algo <diverso> é cem vezes mais importante do que a música, a
saber, o drama. Wagner pode pintar, ele utiliza a música não para
a música, ele fortalece atitudes, ele é poeta; por fim, ele apelou
aos "belos sentimentos" e ao "peito estufado" tal como todos os
artistas teatrais-com tudo isso, convenceu as mulheres e mesmo
os homens ávidos por cultura a ficaram a seu favor: mas o que
interessa a música a mulheres e a pessoas ávidas por cultural
Todos esses não têm nenhuma consciência para a arte; isso não
se altera, quando todas as virtudes primeiras e indispensáveis de
uma arte são chutadas e ridicularizadas pelas intenções secun-
dárias, como ancila dramatúrgica. - O que importam todas as
ampliações dos meios de expressão, se aquilo que se expressa ai,
se a própria arte perdeu para si mesma a sua lei? O fausto pictórico e
a violência do tom, o simbolismo do som, do ritmo, os coloridos
sonoros da hannonia e desarmonia, o significado sugestivo da
440 fRIEDRICH NIETZSCHE

música, com vistas a outras artes, toda a sensibilidade que passa


a dominar com Wagner- Wagner reconheceu, extraiu, desenvol-
veu tudo isso na música. Victor Hugo fez algo semelhante com
a língua: jã se pergunta hoje, porém, na França, se, no caso de
Victor Hugo, não se chega a uma degradação da lingua... se, com
a elevação da sensibilidade na llngua, a razão, a espiritualidade, a
profunda legalidade na língua não foi reprimida. O fato de os
poetas na França terem se tomado plásticos, o fato de os músicos
na Alemanha terem se tomado a:.tores e pintores culturais - esses
não são sinais da decadência?
Com o auxilio da música, Wagner faz tudo o que é possivel
dentre aquilo que não se mostra como música: ele nos dã a enten-
der inchaços, virtudes, paixões.
Para ele, a música é um meio
Ela não perdeu toda a beleza mais espiritual, a perfeição
elevada e travessa, que ainda abraça na ousadia o encanto, o salto
arrebatador e a dança da lógica que - - -

16 (30)
Para um guerreiro do conhecimento, que sempre se acha
em luta com as verdades feias, a crença em que não há nenhuma
verdade é um grande banho e um espreguiçar-se. - O niilismo é
nosso tipo de ócio...

16(31)
Sob certas circunstâncias, a virtude é meramente uma for-
ma honrosa da estupidez: quem é que poderia querê-la mal por
isso?! E, ainda hoje, esse tipo de virtude não saiu de moda. Uma
espécie de ingenuidade campesina valente que, porém, é possí-
vel cm todas as camadas e que não se pode tratar senão com
veneração e sorrisos também acredita ainda hoje que tudo estã
em boas mãos, a saber, nas "mãos de Deus": e se eles mantêm
essa sentença com aquela segurança modesta, como se disses-
sem que dois mais dois é igual a quatro, então nós, que somos
diversos, tomaremos cuidado para não contradizê-los. Para que
turvar essa pura tolice? Por que obscurecê-la com nossas preo-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 (Vol. VII) 441

cupações em relação ao homem, ao povo, à meta, ao futuro? E,


caso o queiramos fazer, não conseguirlamos. Eles projetam sua
própria estupidez honrosa e seus bens nas coisas (junto a eles, o
antigo Deus ainda vive, deus myops!); nós, que somos diversos
- nós inserimos algo diverso nas coisas por meio do olhar: nossa
natureza enigmática, nossas contradições, nossa sabedoria mais
profunda, mais dolorosa, mais d.esconfiada.

16 (32)
Onde reconheço meus iguais. - Filosofia, tal como a com-
preendi e vivi até aqui, é a busca voluntária mesmo dos lados
mais indesejados e mal-afamados da existência. A partir da longa
experiência, que me foi dada por tal viandança através do gelo
e do deserto, aprendi a considerar tudo o que filosofou até aqui
de outra forma: - a história secreta da filosofia, a psicologia de
seus grandes nomes veio à tona para mim. "O quanto de verdade
suporia, o quanto de verdade ousa um espirito?" - este se tomou,
para mim, o medidor propriamente dito dos valores. O erro é
uma covardia ... aquela conquista do conhecimento se segue da
coragem, do rigor em relação a si mesmo, do asseio contra si
mesmo... Tal filosofia experimental, como a vivo, antecipa à gui-
sa de ensaio a possibilidade do niilismo fundamental: sem que se
estivesse dizendo, com isso, que ela permaneceria parada junto
a um não, junto a uma negação, junto a uma vontade de não. Ao
contràrio, ela quer muito mais atravessar - até um dizer sim dio-
nisíaco ao mundo, tal como ele é, sem subtração, exceção e esco-
lha- , ela quer o eterno movimento circular - as mesmas coisas, a
mesma lógica e falta de lógica dos nós. Estado mais elevado que
um filósofo pode alcançar: encontrar-se dionisiacamente postado
em relação à existência -: minha fórmula para isso é amor fati ...
- Disso faz parte não apenas conceber os lados até aqui
negados da existência como necessários, mas também como de-
sejáveis: e não apenas como desejáveis com vistas aos lados até
aqui afirmados (por exemplo, como seus complementos ou con-
dições prévias), mas em virtude deles mesmos, como os lados
mais poderosos, mais fecundos, mais verdadeiros da existência,
442 FRIEDRICH NIETZSCHE

nos quais se exprime mais claramente sua vontade. Do mesmo


modo, também faz pane dai avaliar depreciativamente os lados da
existência até aqui afinnados sozinhos; conceber de onde provém
essa valoração e o quão pouco ela é imperativa para wna mensu-
ração dionisiaca dos valores da existência: extraí dai e concebi
aquilo que propriamente diz sim aqui (o instinto dos sofredores,
por um lado, o instinto do rebaoho, por outro, e aquele terceiro
elemento, o instinto da maioria em contradição com as exceções
- ). Desvendei por meio dai em que medida outro tipo mais forte e
diverso de homem precisaria inventar para si, com vistas a outro
lado, a elevação e a intensificação do homem: seres mais elevados
como para além de bem e mal, como para além daqueles valores,
que não podem negar a origem a partir da esfera <do> sofrimento,
do rebanho e da maioria - procurei pelos pontos de partida dessa
formação ideal inversa na história (os conceitos "pagão", "clássi-
co", "·nobre" descobertos novamente e expostos - )

16 (33)
Avaliado meramente com vistas ao seu valor para a Ale-
manha e para a cultura alemã, Richard Wagner permanece um
grande ponto de interrogação, taJvcz uma infelicidade alemã, um
destino em todo caso: mas o que interessa no caso Wat,'Iler? Ele
não é muito mais - do que meramente um acontecimento ale-
mão? ... Chega a me parecer até mesmo que ele não pertence a
nenhum outro lugar menos do que à Alemanha; ai mesmo, nada
está preparado para ele, todo o :seu tipo se mostra aí como sim-
plesmente estranho entre alemães, esquisito, incompreendido,
incompreensível. Mas as pessoas não querem admitir isso; para
tanto, elas são benevolentes demais, quadradas demais, alemãs
demais. "Credo quia absurdus esl": assim o quer e assim o quis
também nesse caso um espírito alemão - e é assim que ele acre-
dita por enquanto em tudo aquilo que Wagner gostaria que se
acreditasse sobre ele mesmo. Sempre faltaram ao esplrito alemão
cm todos os tempos a fineza e a adivinhação em termos psicoló-
gicos. Hoje, quando ele se encontra sob a alta pressão da bazófia
nacionalista e da autoadrniração,, ele tem se tomado mais grosso
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 443

e mais tosco a olhos vistos: como é que ele poderia estar à altura
do problema Wagner!

16 (34)
No fundo, a música de Wagner continua sendo literatura,
assim como o é todo o romantismo francês; a magia do exotis-
mo, de tempos, costumes, paixões estranhos, exercida sobre os
marginais sensíveis; o encanto c:om a entrada na terra estrangeira
descomunal, distante e pré-histó:rica, a cujo acesso nos conduzem
os livros, algo por meio do que todo o horizonte foi pintado com
novas cores e novas possibilidades... O pressentimento de mun-
dos ainda mais distantes e não descerrados; o desdém contra os
bulevares... O nacionalismo justamente, não nos deixemos iludir,
também é apenas urna forma de exotismo... Os músicos românti-
cos contam o que os livros exóticos fizeram com eles: gostar-se-
-ia de vivenciar coisas exóticas, paixões com um gosto florentino
ou veneziano: por fim, as pessoas se contentam em buscá-las em
imagem ... O essencial é o tipo de novos desejos, o encobrimento
da alma ... A arte romântica é a penas urna sai da de emergência
para uma "reaHdade" falha ...
Napoleão, a paixão de novas possibilidades da alma... A
ampliação do espaço da alma...
A tentativa de fazer algo novo: revolução, Napoleão ...
Extenuação da vontade; urna digressão tanto maior nos de-
sejos de sentir algo novo, de imaginar algo novo, de sonhar algo
novo...
Consequência das coisas excessivas que se tinham viven-
ciado: apetite irresistível por sentimentos excessivos... As litera-
turas estrangeiras ofereciam as mais fortes ralzes...

16 (35)
Sobre ofuturo do casamento:
Uma maior sobrecarga de impostos em heranças etc., as-
sim como uma maior sobrecarga de serviço militar sobre os sol-
teiros a partir de determinada idade e de maneira cada vez mais
intensa (no interior da comunidade)
444 FRIEORICH NIETZSCHE

Jiintagens de todo tipo para pais, que colocam muitos garo-


tos no mundo: sob certas circunstâncias, uma pluralidade de vozes
Um protocolo médico, antecedendo a todo casamento e
assinado pelos líderes da comunidade: nesse protocolo, muitas
questões determinadas precisam ser respondidas por parte dos
noivos e dos médicos ("história familiar" -
Como antídoto contra a p.rostituiçào (ou como o seu eno-
brecimento): casamentos com prazo, legalizados (por anos, por
meses, por dias): com garantia para as crianças
Todo casamento responsabilizado e recomendado por de-
terminada quantidade de homens de confiança de uma comuni-
dade: como questão de interesse da comunidade

16 (36)
Os românticos, tal como o seu mestre alemão Friedrich
Schlegel (para falar com Goethe), estão todos c•orrcndo o risco de
se "sufocarem com a ruminação de absurdos religiosos e éticos"
O elemento schilleriano er:n.Wagner: ele traz "uma eloquência
apaixonada, luxo das palavras, como o lmpeto de posturas no-
bres" - liga com pouco metal
"Se Schiller tivesse vivido mais tempo, ele teria se tomado
o ídolo dos contemporâneos, mesmo daqueles que reencontra-
ram cm Iffiand e Kotzebue, em Nicolau e Merkel seu sentimento
e pensamento. Assim, mesmo riquezas e honras teriam confluí-
do para ele em profusão." Victor Hehn, Gedanken iiber Goethe
(Ideias sobre Goethe), p. 109.
"a completa crueldade", "a iniquidade e a insignificância
dos heróis" - pensemos em Niebuhr, que se permitia dizer com
vistas ao Wilhelm Meister que "ele se irritava ao ter de lidar com
vacas mansas"
nos círculos mais nobres, as pessoas estavam de acordo
quanto ao fato de que, para falar com Jacobi, "um espírito impuro
imperava ai"
Pelo que Goethe era grato a Schi Iler? Pelo fato de o Wi-
lhelm Meister o ter "arrebatado e comovido profundamente, sim,
o ter preenchido mesmo dolorosamente com o sentimento de sua
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1837-1889 {Vol. VII) 445

própria insuficiência. Assim, cm meio a uma situação hostil, ele


encontrou por fim um espírito que podia acompanhá-lo na subida
até essas alturas".
Para Kõrner, em 1796, "em comparação com Goethe, sou
e continuo sendo justamente um canastrão poético"
O ódio tlpico dos doentes ,em relação aos homens plenos -
por exemplo, de Novalis em relação ao Wilhelm Meister: Nova-
tis achou o livro odioso. "O jardim da poesia é macaqueado com
palha e trapos." "O entendimento ai é como um diabo ingênuo."
"O espírito deste livro é o ateísmo artístico." - Isso em um tempo
no qual ele se achava loucamente entusiasmado por Tícck, que
naquela época parecia ser um discípulo de Jacob Bõhme

16 (37)
O efeito da arte wagneriana é profundo, ele é, sobretudo,
pesado, pesado como chumbo: o que faz com que esse efeito seja
assim? De início, certam(lllte não a música wagneriana: só se chG-
ga mesmo a suportar essa música quando já se está dominado por
algo diverso e quando já se perdeu ai, por assim dizer, a liberdade.
Esse elemento diverso é o páthos wagneriano, para o qual ele ape-
nas inventou adicionalmente a sua arte; ele é a descomunal força
de convencimento desse páthos,, seu poder de prender a respira-
ção, não querendo mais soltar, que é próprio de um sentimento
extremo; ele é a duração assustadora desse páthos, com a qual
Wagner sempre vence e vencerá, de tal modo que ele nos conven-
ce por fim até mesmo de sua música ... Será que alguém se torna
um "gênio" por meio deste páthos? Ou será mesmo que alguém
pode ao menos ser um "gênio" por meio desse páthos? Caso se
compreenda pelo gênio de um artista a mais elevada liberdade sob
a lei, a leveza divina, leviandade compreendida no que há de ma.is
pesado, então Offenbach (Edmond Audran) teria ainda mais direi-
to ao nome de "gênio" do que Wagner. Wagner é difícil, pesado:
nada lhe é mais estranho do que o instante da mais arrogante im-
perfeição, que esse palhaço Offenbach alcança cinco, seis vezes
quase em cada uma de suas bufon.arias. - Mas talvez se possa com-
preender por gênio outra coisa. - Outra questão à qual pretendo
446 fRIEDRICH NIETZSCHE

do mesmo modo responder pela primeira vez é: se precisamente


com tal páthos Wagner é alemão? Será que ele é um alemão? ...
Ou será que ele não é muito mais a exceção das exceções?
Wagner é pesado, pesado como chumbo, logo não um
• • ?
gemo ....

16 (38)
Wagner, sobretudo, precisa ser muito riscado, de tal modo
que três quartos restem: antes de mais nada é preciso riscar o
seu elemento recitativo, que leva o mais paciente dos homens ao
desespero ... Trata-se de uma mera ambição de Wagner ensinar
sua obra como uma obra neces.sária até os mínimos detalhes ...
o contrário é a verdade, hâ coisas demais supérfluas, arbitrárias,
prescindíveis... Falta-lhe a própria capacidade da necessidade:
como é, então, que ele conseguiria impô-la a nós?

16 (39)
BuckJe oferece-nos o melhor exemplo de até que grau a in-
capacidade de um agitador ordinârio das massas pode ir, para es-
clarecer a si mesmo o conceito de uma "natureza mais elevada".
A opinião pela qual ele combate de maneira tão apaixonada - a
opinião de que "grandes homens", singulares, príncipes, politi-
cos, gênios, generais seriam o m.otor e as causas dos grandes mo-
vimentos - é por ele instintivamente mal compreendida como se
com ela se estivesse afirmando que o essencial e valoroso em tais
"homens mais elevados" residisse justamente na capacidade de
colocar massas em movimento, em suma, em seu efeito... Mas a
"natureza mais elevada" do grande homem reside no ser d.iverso,
na incomunicabilidade, na distância hierárquica - não em efeitos
quaisquer: mesmo que ele abalasse o globo terrestre. -

16 (40)
Estética
Intelecção fundamental: o que é belo e o que é feio.
Nada é mais condicionado, digamos, limitado do que o
nosso sentimento do belo. Quem quisesse pensá-lo desprendido
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 447

do prazer do homem com o homem perderia imediatamente base


e solo sob os seus pés. No belo, o homem se admira como tipo:
em casos extremos, ele venera a si mesmo. Pertence à essência
do tipo o fato de ele só se tornar feliz em seu instante - o fato
de ele se afinnar e de não afirmar senão a si mesmo. O homem,
por mais que veja mesmo o mundo coberto com beleza, jamais
viu o mundo coberto senão com a sua própria "beleza": ou seja,
ele toma tudo por belo, que o lembre do sentimento da perfeição
com a qual ele se encontra como homem entre todas as coisas.
Será que ele realmente embelezou, com isso, o mundo? ... E será
talvez que o homem não se mosttraria de modo algum como belo
aos olhos de um juiz do gosto mais elevado? Não quero dizer,
com isso, indib'IIO, mas um pouc,o ridículo? ...
....
2.
- ó Oionisio, divino, por que tu me puxas pelas orelhas?
Vejo um tipo de humor em tuas orelhas, Ariadne: por que elas
não são ainda maiores?...
....
"Nada é belo: apenas o homem é belo." Toda a nossa esté-
tica baseia-se nesta ingenuidade: ela é a sua primeira "verdade".
Acrescentemos imediatammte a "verdade" complementar, ela
não é menos ingênua: o fato de nada ser feio senão o homem ruim.
Onde o homem sofre do que é feio ele sofre do aborto de
seu tipo; e onde ele é lembrado, ainda que de maneira maxima-
mente distante de tal aborto, aí ele estabelece o predicado "feio".
O homem cobriu o mundo com o feio: isso nunca quer dizer ou-
t.ra coisa senão que ele cobriu o mundo com a sua própria fciura.
Será que ele enfeou, com isso, realmente o mundo?
....
<4>
Tudo o que é feio enfraquece e aflige o homem: lembra-o
da decadência, do perigo, da impotência. Pode-se medir a im-
448 FRIEORICH NIETZSCHE

pressão do feio com o dinamômetro. Onde ele é puxado para


baixo, algo feio produz aí um efeito. O sentimento do poder, a
vontade de poder - ela cresce com o belo, cai com o feio.

<5>
Um material descomunal se acumulou no instinto e na me-
mória: temos mil tipos de sinais, junto aos quais se revela a de-
generescência do tipo. Onde há ainda que apenas uma alusão ao
esgotamento, ao cansaço, ao peso, à idade ou à falta de liberdade, à
convulsão, à decomposição, à degradação fala aí imediatamente o
nosso mais baixo juízo de valor: aí o homem odeia o que é/eio ...29)
O que ele odeia, nesse c:aso, é sempre o declínio de seu
tipo. Nesse ódio consiste toda a filosofia da arte.

<6>
Se meus leitores se acham iniciados suficientemente no
fato de que mesmo "o bom" representa uma forma do esgota-
mento no grande teatro conjunto da vida: então eles honrarão
a consequência do cristianismo que concebeu os bons como os
feios. O cristianismo tinha razão nisso. -
É preciso apontar uma htiquidade em um filósofo: o bem
e o belo são um e mesmo. Se ele ainda acrescenta aí "o verda-
deiro", então devemos espancá-lo por isso. A verdade é feia: nós
temos a arte, para que não pereçamos junto à verdade.

<7>
Muito cedo despertei para a seriedade da relação entre arte e
verdade: e ainda hoje me encontro com um espanto sagrado diante
dessa ambiguidade. Meu primeiro livro <foi> a ele dedicado; o Nas-

250 N.T.: Há um Jogo de linguagem q,ue se perde na tradução. Em verdade,


o feio em alemão (das HOssllche) possui uma relação etimológica direta
com o odioso (gehassr). Os dois termos têm uma relação direta com o
verbo hassen: odiar.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 449

cimento da tragédia acredita na arte sob o pano de fundo de outra


crença: a crença de que não é possível viver com a verdade; o fato de
que a "vontade de verdade" já é um sintoma de degenerescência ...
Apresento wna vez mais .aqui a concepção estranhamente
sombria e desconfortável daquele livro. Ela tem o primado ante ou-
tras concepções pessimistas pelo fato de ser imoral: - ela não é inspi-
rada como essas concepções pela Circe dos filósofos, pela virtude. -
A arte no Nascimento da tragédia

16 (41)
Wagner é um/ato capital na história do "espirito europeu"
da "alma moderna": tal como Heinrich Heine foi um tal fato.
Wagner e Heine: os dois maiores impostores com os quais a Ale-
manha e a Europa foram presenteadas.

!6 (42)
Distanciei-me de Wagner quando ele empreendeu seu re-
tomo ao Deus alemão, à Igreja alemã e ao Império alemão: ele
atraiu outros para junto de si precisamente por meio daí.

16 (43)
N.8. Inicio do prefácio
Aquele que fabrica ouro é o único benfeitor da bw:nanidade.
O único tipo de benfeitor da humanidade: o fato de se
transvalorar valores, o fato de se fazer de pouco muito, do que é
vulgar ouro
Esses são os únicos enriquecedores
Os outros são meros alternadores
Pensemos um caso extremo: que haveria algo maximamen-
te odiado, condenado - e que precisamente isso se transformaria
em ouro: este é o meu caso...

16 (44)
Fico por vezes quase curioso em ouvir como eu sou. Essa
questão encontra-se distante de meus próprios hábitos de urna
maneira absurda
450 FRIEDRICH NIETZSCHE

Minha vivência típica (- considerou-se algo desse gênero

Em minha vida há efetivamente surpresas: isso se deve ao


fato de que eu não gosto de me ocupar com aquilo que poderia
ser possível: demonstração do quanto eu vivo em pensamentos...
Um acaso me fez tomar consciência disto hâ alguns dias: falta-
•me o conceito de "futuro", olho para frente como por sobre uma
superflcie lisa: nenhum desejo, nenhum desejinho mesmo, ne-
nhum querer-algo-diverso. Ao contrário, meramente aquilo que
nos foi proibido por aqueles epicuristas sagrados: o cuidado com
o dia seguinte, com amanhã ... este é meu único artificio: sei boje o
que deve acontecer amanhã.
Naufragiu feci: bene navigavi1J' - - -

16 (45)
A felicidade das cascavéis do grande mágico, para o qual
os mais mgênuos correm nas vinganças ...

16 (46)
os cretinos da cultura, as "eternas mulherzinhas", - - -

16 (47)
na Alemanha, onde o vampirismo do ideal não fundamenta
uma objeção contra um artista, mas quase a sua justificação (-
ele contabilizará Schiller bem demais! ... e quando se diz Schiller
e Goethe, acredita-se que o primeiro teria sido como idealista o
mais elevado, o autêntico: esses heróis das atitudes!

16 (48)
No que diz respeito à mullher histérica, que Wagner inven-
tou e transpôs para o interior de sua música, ela é uma formação
híbrida do gosto mais dúbio possível:

251 N.T.: Em latim no oilglnal: Ex,perlmentel um naufrágio: outrora navegavo


bem.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 451

O fato de esse tipo mesmo não ter sido completamente


rejeitado tem sua razão de ser, ainda que não o seu direito, no
fato de um poeta incomparavelmente maior do que Wagner, o
nobre Heinrich von Kleist, jã ter lhe dado no mesmo contexto
o papel de porta-voz do gênio. !Estou longe de pensar o próprio
Wagner aqui como dependente de Kleist: Elsa, Senta, Isolda,
Bruni Ida, Cundra são muito mais filhas do Romantismo francês
e possuem um - - -

16 (49)
A grandeza de um músico não é medida pelos belos senti-
mentos que ele desperta: é nisso que acreditam as mulheres - ela
é medida segundo a força de tensão de sua vontade, segundo a
certeza com a qual o caos obedece ao seu comando artlstico e se
toma forma, segundo a necessidade que sua mão estabelece em
uma sequência de formas. A grandeza de um músico - em UIDa
palavra, é medida por sua capacidade para o grande estilo.

16 (50)
Procuro UID animal para mim, que dance de acordo comigo
e que me ame UID pouquinho...

16(51)
Projeto.
1) O mundo verdadeiro e o mundo aparente.
2) O filósofo como tipo da decadência.
3) O homem religioso como tipo da decadência.
4) O homem bom como tipo da decadência.
5) O contramovimento: a arte!
6) O elemento pagão na religião.
7) A ciência contra a filosofia.
8) Os políticos contra os padres - contra a libertação em
relação aos instintos, o tomar-se não autóctone. (Povo,
pátria, mulher - todos os poderes concentradores con-
tra o "ser não autóctone")
9) Critica ao presente: aorade ele pertence?
452 fRIEDRICH NIETZSCHE

10) O niilismo e sua contraparte: os jovens do "retorno".


11) A vontade de poder como vida: ápice da autoconsciên-
cia histórica (essa última consciência condiciona a for-
ma doente do mundo moderno ... ).
12) A vontade de poder: como disciplina.

16 (52)
Os decadentes considerados como excrementos da sociedade
Nada pode ser menos saudãvel do que os usar como ali-
mentos -

16 (53)
Teoria do esgotamento:
o vício
os doentes mentais (respectivamente os artistas ...
os criminosos
os anarquistas
estaS não são as raças reprimidas, mas a escória da socie-
dade até aqui de todas as classes ...
Com a intelecção de que todas as nossas classes estão pene-
tradas por esses elementos, nós compreendemos que a sociedade
moderna não é nenhuma "sociedade", nenhum "corpo", mas um
conglomerado doente de Tschandala
- uma sociedade que não tem mais a força para alijar seus
excrementos
Em que medida o caráter doentio chega a um ponto muito
mais profundo por meio da convivência há séculos:
a virtude moderna
a espiritualidade moderna como formas da doença
nossa ciência

16 (54)
O erro é o luxo mais dispendioso a que o homem pode se
permitir; e se o erro é mesmo um erro fisiológico, então ele traz
consigo um perigo de vida. Pefo que a humanidade pagou até
aqui, consequentemente, o preço mais caro, pelo que ela precisou
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 453

expiar da pior forma possível? Por suas "verdades": pois essas


verdades foram todas juntas erros em termos psicológicos...

16 (55)
Computado fisiologicamente, a Critica da razão pura já é
a forma preexi.stente do cretinismo: e o sistema de Espinoza, uma
fenomenologia da tuberculose

16 (56)
Meu princípio, comprimido em uma fórmula, que cheira a
uma fórmula tradicional, ao cristianismo, à escolástica e a outro
almíscar. no conceito de "Deus como espírito", Deus é negado
corno perfeição...

16 (57)
Isto não tem nenhum filho; pouquíssimo sentido.

16 (58)
Para a aranha, a aranha é o ser mais perfeito; para o metafi-
sico, Deus é um metafísico: ou seja, ele está louco ... 252

16 (59)
O povo acredita em "verdades" apócrifas -

16 (60)
Mulheres, ouro, pedras preciosas, virtude, pureza, ciência,
um bom conselho, em suma, tudo aquilo que é útil e belo deve ser
acolhido, sem se importar de onde ele provém.
....
252 N,T,: Há um Jogo de linguagem que se perde na tradução. Na verdade, uma
das formas de dizer que alguém enlouqueoou é dizer que ele "spfnnr. Overbo
"spfnnen• possui, nesse caso, uma relação direta com o substantivo "spfnne"
(aranha). Um louco é, de algum modo, alguém preso em redes finas tecidas
exatamente pelo desvario, alguém Imerso em fios e em tesslturas diversos.
454 FRIEDRICH NIETZSCHE

O jovem perde pela primeira vez seu invólucro terreno por


respeito diante de sua mãe: por seu respeito por seu pai, ele se
livra daquela figura ainda mais sutil que o reveste no ar; por seu
respeito por seu mestre, ele se toma ainda mais simples, ainda

...
mais puro e ascende até a morada de Brama.

O fato de ele nunca se descuidar da oração no silêncio da


floresta, ou à beira das fontes claras, ou na profunda, profunda
meia-noite; da oração cujo conteúdo infinito está contido no mo-
nossilabo "Om".
Depois de terem passado por seus estudos teológicos, os
jovens brâmanes, os jovens xátrias e vaixias entram na catego-
ria dos patriarcas. Aquele "que nasceu duas vezes" deve, então,
tomar seu cajado e se colocar à procura de uma mulher de sua
casta, que reluza por meio de suas qualidades e satisfaça às
prescrições.
Ele toma cuidado para não entrar em uma relação com uma
mulher de sua familia que não cumpra seu compromisso religio-
so ou na qual o número de irmãs é maior do que o número de
innãos, ou na qual membros particulares tenham defonnações,
tuberculose, dispepsia, hemorroidas e coisas do gênero.
Ele foge dessa famfüa, por maior que seja seu poder, seu
nome, sua riqueza.
Ele busca uma mulher bela em sua figura, cujo nome seja
agradável de pronunciar, com o passo de um jovem elefante,
com cabelos lisos como a seda, uma voz suave e dentes peque-
nos e regulares; uma mulher cujo corpo seja coberto como um
leve duvet.
Uma bela mulher constitui a alegria de uma casa, mantém
o amor de seu marido e gera para ele filhos com belas figuras.
Ele toma cuidado para não se casar com uma moça que não
tenha irmão algum ou cujo pai mão seja conhecido.
Para um brâmane que se casa com uma sudra (da raça dos
servos) e tem com ela um filho, não há na terra nenhum tipo de
expiação.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 455

16 (61)
Wilhelm von Humboldt, o, nobre cabeça chata

16 (62)
"Cada um e todos em uma eterna renovação e dispersão
destroem a si mesmos".

Goethe.
16 (63)
Será importante para os amigos do filósofo Friedrich Niet-
zsche ouvir que, no último inverno, o brilhante dinamarquês Dr.
Georg Brandes deu um ciclo mais longo de preleções na Uni-
versidade de Copenhagen dedicadas a esse filósofo, O orador,
cuja maestria na exposição de difíceis complexos de pensamento
não tinha sido demonstrada ai pela primeira vez, soube interessar
uma audiência de mais de 300 pessoas pelo novo e ousado modo
de pensar do filósofo alemão: de tal modo que as preleções con-
fluíram para uma extraordinária ovação em honra do orador e de
seu tema.

16 (64)
Nós imoralistas
Entre artistas
Crítica à filosofia dos espíritos livres
Fala o cético.

16 (65)
Os mestres cantores enaltecem o gênio da Alemanha, que não
aprendeu nada: a não ser aquilo que ele aprendeu dos passarinhos -
o gênio concebido como "a nobre(- )", além de como "cavaleiro".

16 (66)
Para o prefácio.
Qual é a única coisa que pode nos reproduzir? A visão do
perfeito: deixo os olhos vaguearem bêbados: não ampliamos isso
de maneira maravilhosa?
456 FRIEORICH NIETZSCHE

16 (67)
O estilo de Wagner também contaminou seus discípulos: o
alemão dos wagnerianos é o disparate mais floreado que jâ foi es-
crito desde o alemão de Schelling. Wagner mesmo ainda pertence
como estilista àquele movimento contra o qual Schopenhauer deu
vazão à sua ira: - e o humor chega ao seu ápice quando ele se faz
passar por"salvador da lingua alemã". - Para pintar o gosto desses
d.iscípulos, pennito-me um único exemplo. O rei da Baviera, que
era um conhecido pederasta, disse certa vez para Wagner: ou seja,
o senhor também não gosta de mulheres? Elas são tão entedian-
tes ... Nohl (o autor de uma "Vida de Wagner", traduzida em seis
idiomas) acha que essa opinião é "concebida de maneira jovial"

16 (68)
Um critico
da alma moderna.

16 (69)
Como é qu.e se chega, por fim, ao fato de Parsival ter um
filho, o ramoso Lohengrin? Será que esse deveria ser o primeiro
caso da immacolata - - -

16 (70)
Do que se trata?
A incompreensão religiosa.
A incompreensão moral.
A incompreensão filosófica.
A incompreensão estética.

16(71)
A proveniência dos valores.
<!> O mundo inventado
O mundo inventado Filosofia como decadência
Ideias sobre o cristianismo
li As realidades por detrás da moral.
O mundo verdadeiro Para a fisiologia da arte
Por que verdade?
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 457
······· .. ·······"···················································· ....... ,................ .
III Critica da modernidade.
O eterno retorno.
A partir da sétima solidão.

16 (72)
1) Oposição dos valores: pessimismo, niilismo, ceticismo
2) Critica da filosofia
3) Crítica da religião
4) Critica da moral
5) O mundo inventado
6) Por que verdade?
7) Para a fisiologia da arte
8) Problema da modernidade
9) O eterno retomo
1O) A partir da sétima solidão

16 (73)
Para a fisiologia da arte
O problema de Sócrates
Moral: Domesticação ou cultivo - As realidades por de-
trás da moral.
A luta com as paixões e com a sua espiritualização. Natu-
ralismo da moral e desnaturalização.
Tempo e contemporâneos.
A partir da sétima solidão.
"Por que verdade?"
A vontade de verdade.
Psicologia dos filósofos
Da vontade de verdade.
Civilização e cultura: um antagonismo.

16 (74)
X - doloroso-pensativo
1) A música de Bizet - o filósofo irônica
2) Sul, serenidade, dança moura, amor estranho-
interessante,
458 FRIEDRICH NIETZSCHE
...............................................................................................

3) o "redentor'' - Schopenhauer irônico


4) o "anel", Schopenhauer como
redentor de Wagner estranho•
interessante
5) o decadente - furioso! farioso!
6) comicamente "pressentir", "derrubar",
"elevar" irônico
7) "Histerismo", estilo, as pequenas
delicias estranho•
interessante
8) "efeito subjugador", "o Victor Hugo
da linguagem", "Talma" "Alia genovese" elogiativo-
rápido
9) "açãon, "Edda", "conteúdo eternoº
"Madame Bovary", "nenb.um filho" irônico
1O) "literatura", "ideia", "!Hegel", irônico-
"disclpulo alemão" - do que estranho
sentimos falta? interessante
11) elogiativo, forte, factual, "o ator" homenageador
12) três fórmulas farioso
sobre I O) Wagner é escuro, confuso, ele possui sete peles
8) isso permanece sério mesmo no "contraponto" de Wagner

16 (75)
Há aqui duas fórmulas das quais concebo o fenômeno de
Wagner. A primeira é:
Os princípios e as práticas de Wagner são, todas juntos,
recondutiveis aos estados emergenciais fisiológicos: eles são sua
expressão ("histerismo" como música)
A outra é:
O efeito nocivo da arte wagneriana demonstra sua profun-
da fragiJidade orgânica, sua corrupção. O perfeito torna saudá•
vel; o doente deixa doente. Os estados emergenciais fisiológicos,
para os quais Wagner transpõe seus ouvintes (respiração irregu-
lar, perturbação da circulação sanguínea, irritabilidade extrema
com um coma repentino), contêm uma refutação de sua arte.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 459

Com essas duas fónnulas, então, reti.rou-se a consequência


daquele princípio universal, que fornece para mim o fundamento
de toda estética: o fato de os valores estéticos se basearem em
valores biológicos, o fato de o bem-estar estético ser um bem-
•estar biológico.

16 (76)
Casos, nos quais não se ouve a paixão, mas se ouvem antes
as batidas do chicote, que Wagner dissipa com uma crueldade
irritante em seu pobre cavalo Pégaso
As baridas do chicote, com as quais Wagner abusa do po-
bre Pégaso (2° ato do Tristão
A pobreza: o quão econômico ele é em termos de insights
- uma pobreza engenhosa: entediante ...
Fa.ltam as ideias, exatamente como em Victor Hugo: tudo
é atitude ---

16 (77)
1) o ator
2) a degradação da música -
a música vinda de/ora conduzida na fita - "isto significa" -
animação extrema do detalhe
mudança da ótica
o "grande estilo" - declínio, empobrecimento das/orças
orgânicas
- Falta da tonalidade
- Falta da euritmia ("dança•,
- Incapacidade da construção ("drama")
- Meio para tiranizar
a "ideia fixa" (ou o leitr:notiv)
3) a nocividade da música
o milagre
a idiossincrasia
4) Valor das matérias-primas
Sua formação "estilo" "hegelianismo"
5) França - A.lemanha
6) a proveniência do llistriônico
460 FRIEDRICH NIETZSCHE

7) o decadente: irritabilidade extrema -


Falta de tonalidade
Falta de euritmia
Incapacidade para c-0nstruir
Exagero do detalhe
Inquietude da ótica
Instabilidade de caráter: mudança da pessoa
Falta de orgulho
Fanatismo e esgotamento
a pobreza, habilmente negada
e-0mo música
C-Omo "interpretação mítica"
8) ''C-Omo é que se pode perder seu gosto com esse decadente?"
o ator
tipo de efeito. História do efeito.
Música como retórica teatral. V. Hugo
o "dramático"
9) o nocivo;
1) fisiologicamente irracional
2) intelectualmente (os "discípulos" milagre
3) tendência da "compaiixão" simbolismo
1O) a arte niilista:
a tendência schopenhaueriana do trágico
11) proveniência do ator
12) três exigências

16 (78)
Tristão e Isolda, efetivamente covivenciados, são quase
uma digressão.
Não se pode, em realidade, colocar de maneira suficiente-
mente séria para jovens mulheres essa alternativa de consciência:
aut Wagner aut liberi.253

253 N.T.: Em latim no original: ou Wagner, ou a liberdade.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 461

16 (79)
Wagner nunca aprendeu a andar. Ele cai, ele tropeça, ele
abusa do pobre Pégaso com chicotadas. Uma paixão puramente
falsa, um contraponto puramente falso, Wagner é incapaz de todo
e qualquer estilo. -
artificial, grudado, falso, obra malfeita, monstro, fanto-
che.

16 (80)
O caso Wagner
Um problema para músicos
De
F. N.
Sob esse título será lançado em minha editora um panfle-
to genial contra Wagner, o qual será discutido da maneira mais
viva possível como amigo e inimigo. O senhor professor Nietzs-
che, que, todos concordarão, é o mais profundo conhecedor do
movimento de Bayreuth, pega aqui pelos chifres o problema do
valor, que encerra em si esse movimento; ele demonstra que esse
problema tem chifres. A refutação de Wagner, que é empreendida
por esse escrito, não é meramente uma refutação estética: ela é,
sobretudo, uma refutação fisiológica. Nietzsche considera Wag-
ner como uma doença, como um perigo público.

16 (81)
Dei aos homens o livro mais profundo que eles possuem,
o Zaratustra; um livro que distingue a tal ponto seus leitores que,
quando alguém se vê em condições de dizer "eu compreendi seis
frases deste livro, ou seja, eu vivenciei seis de suas frases", ele passa
a pertencer imediatamente a uma ordem mais elevada de homens...
Mas como é que se precisa pagar por isso! Pagar em dinheiro vivo!
Isso quase estraga o caráter... O fosso se tomou grande demais ...

16 (82)
As ideias modernas como falsas.
"Liberdade"
"Direitos iguais"
462 FRIEDRICH NIETZSCHE

"Humanidade"
"Compaixão"
"O gênio"
incompreensão democ.rãtica (como consequência do
me.io, do espírito do tempo)
incompreensão pessimista (como vida empobrecida,
como libertação da "vontade")
a incompreensão da decadência (neurose)
"O povo"
"A raça"
"A nação"
ºDemocracia"
"Tolerância"
"O meio"
"Utilitarismo"
"Civilização"
"Em!l!!cip~ção feminínf'
"Formação popular"
"Progresso"
"Sociologia"
16 (83)
A necessidade dos valores falsos
Pode-se refutar um juízo, na medida em que se compro-
va sua condicionalidade: com isso, não se elimina a necessidade
de tê-lo. É preciso conceber a necessidade de sua existência: os
juizos são uma co11sequê11cia de causas que não têm nada em
comum com fundamentos

16 (84)
Quando se elimina do mundo •~untamente com Cristo e Moi-
sés" a causalidade natural, passa-se a carecer de urna causalidade
anti-naJural: todo o resto dos caprichos se segue, então, a partir dai.

16 (85)
Psicologia do erro.
1) Confusão entre causa e efeito
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 463

2) Confusão entre verdade e o efeito daquilo em que se


acredita como verdadeiro
3) Confusão entre a consciência e a causalidade
Moral como erro.
Religião como erro.
Metaf,sica como erro.
As ideias modernas como erros.

16 (86)
A vontade de poder. Tentativa de uma transvaloração de
todos os valores.
1. Psicologia do erro.
1) Confusão entre causa e efeito
2) Confusão entre a verdade e aquilo em que se acredita
como verdadeiro
3) Confusão da consciência com a causalidade
4) Confusão da lógica com o princípio do efetivamente real
11. Os valores falsos.
1) Moral como falsa
2) Religião como falsa tudo condicionado
3) Metafisica como falsa pelos quatro tipos de erro
4) As ideias modernas como falsas
m. O critério da verdade.
l) A vontade de poder
2) Sintomatologia do declínio
3) Para a fisiologia da arte
4) Para a fisiologia da politica
IV. luta entre os valores falsos e os valores verdadeiros.
1) Necessidade de um duplo movimento
2) Utilidade de um duplo movimento
3) Os fracos
4) Os fortes
16 Capítulos: cada um com 37 páginas. - 16 capítulos:
cada um com 35 páginas

O critério da verdade.
464 FRIEDRICH NIETZSCHE
················•······························ ·········································.. ·····

A vontade de poder como vontade de viver - da vida as-


cendenre.
Os grandes erros como consequência da decadência.
Para a fisiologia da arte.
Sintomatologia do declinio.

A luta dos valores


Utilidade de um duplo movimento.
Necessidade desse duplo movimento.
Os fracos.
Os fortes.

16 (87)
Não se deve confundir o cristianismo com aquela raiz una,
da qual ele lembra com o seu nome: as outras raizes, das quais
ele cresceu, foram muito mais poderosas, mais importantes do
que o seu cerne; trata-se de lll!ll abuso sem igual, quando tais
horríveis construtos decadentes e deformações, que se chamam a
"Igreja cristã", a "crença cristã" e a "vida cristã", se distinguem
com aquele nome sagrado. O que foi que Cristo negou? - Tudo
aquilo que hoje se chama cristão.

16 (88)
O pior é o fato de tudo estar entalhado de maneira profunda
demais no coração: quase todo ano me trouxe três, quatro coisas,
em si insignificantes, junto às quais eu quase pereci.
Não que eu esteja repreendendo alguém. Homens saudá-
veis não têm simplesmente nenhuma compreensão de em que
caso eles ferem mortalmente alguém e o que é capaz de deixá-lo
doente ali,runs meses.

16 (89)
O artista moderno, em sua fisiologia maximamente apa-
rentado com o histerismo, também é marcado como personagem
por essa determinação doentia. O histérico é falso: ele mente por
prazer na mentira, ele é admirável em toda e qualquer arte da
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 465

dissimulação - a não ser que sua vaidade doentia lhe pregue urna
peça. Essa vaidade é como uma febre constante, que tem a neces-
sidade de calmantes e não se atemoriza diante de nenhum auto-
engodo, diante de nenhuma farsa, que prometa um alívio instan-
tâneo. Incapacidade de orgulho e necessidade de uma constante
vingança por um autodesprezo profundamente aninhado - essa é
quase a definição desse tipo de vaidade. A excitabilidade absurda de
seu sistema, que cria crises a partir de todas as vivências e arrasta
"o elemento dramático" para os mais ínfimos acasos da vida, re-
tira dele tudo o que é calculável: ele não é nenhuma pessoa mai.s,
na melhor das hipóteses um rendez-vous de pessoas, das quais
ora essa, ora aquela atira eom uma segurança sem vergonha.
Justamente por isso, ele é grande como ator: todos esses pobres
abúlicos, que são estudados no detalhe pelos médicos, espantam
por sua virtuosidade da mímica, ,da transfiguração, da entrada em
quase todo personagem exigido.
(17 = MP XVII 4. MP XVI 4a W II Sa. W li 9a.
Maio-Junho de 1888)

17 (!)
Primeiro capítulo Conceito do movimento niilista
como expressão da decadência.
- .a decadência por toda parte
Segundo capítulo as formas típicas de expressão da
decadência
1) Escolhe-se o que acelera o
esgotamento
2) Não se sabe resistir
3) Confundem-se causa e efeito
4) Anseia-se por ausência de dor
(72) Em que medida o
"hedonismo" também é um tipo
degenerado
Terceiro capítulo 5) O "mundo verdadeiro": conceito
da Realidade por meio de
sofredores (46)
primeiro caderno (72) a natureza
oposta, os valores dionisiacos: (72)
a era trágica
6) A falsificação niilista de todas
as coisas boas
(59) ( 108) ( 109) amor do
"intelecto abúlico"
o gênio
arte do "sujeito livre cm
termos volitivos"
7) A impotência para o poder, a
impotência: suas artes insidiosas (98)

17 (2)
A) Da degradação dos q11e comandam.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 467

B) O que significam os va·lores supremos até aqui,


C) De onde provêm os valores supremos até aqui.
D) Por que os valores opostos foram vencidos
E) Modernidade como ambiguidade dos valores
F)- --

17 (3)
(+ + +) Livros levados em conta apenas como formas di-
versas da mentira; com seu auxílio acredita-se na vida. "Deve
fluir confiança para o interior da vida: a tarefa, colocada assim,
é descomunal. Para resolvê-la, o homem jâ precisa ser mentiroso
por natureza, ele precisa ser artista mais do que todo o resto. E
ele também o é: metafisica, religião, moral, ciência - todas elas
não passam de abortos de sua vontade de arte, de mentira, de
fuga ante a ''verdade", de negação da "verdade". A capacidade
mesma, graças à qual ele violenffl a realidade por meio da menti-
ra, essa capacidade artística por excelência - ele a tem ainda cm
comum com tudo aquilo que é. Ele mesmo é efetivamente uma
parte da efetividade, da verdade, da natureza: como é que ele po-
deria não ser também uma parte do gênio da mentira! ...
O fato de o carâter da existência ser desconhecido - essa é
a intenção suprema velada por detrâs de tudo o que é virtude, ci-
ência, castidade, empenho artisti co. Jamais ver muitas coisas, ver
muitas coisas de maneira falsa, acrescentar muitas coisas p0r meio
da visão: 6, o quanto não se é ainda astuto em meio às situações
nas quais se estâ maxímamente distante de se achar que se é astuto!
O amor, o entusiasmo, "Deus" - puras finezas do derradeiro auto-
engodo, puras seduções para a vida, pura crença na vida! Em ins-
tantes, nos quais o homem se transformou em enganado, nos quais
ele se iludiu, nos quais ele acreditava na vida: 6, o quanto a vida
jâ não se intumesceu aí nele! Que encanto! Que sentimento de pO·
der! Quanto triunfo de artista no sentimento do p0der!... O homem
tomou-se uma vez mais senhor s:obre a "matéria-prima" - senhor
sobre a verdade!... E quando quer que o homem se alegre, ele é
sempre o mesmo em sua alegria, ele se alegra como artista, ele
desfruta de si como poder, ele goza da mentira como seu poder...
468 FRIEDRICH NIETZSCHE

2.
A arte e nada além da arte! Ela é a grande possibilitadora da
vida, a grande sedutora para a vida, o grande estimulante da vida.
A arte como a única força contrâria superior em relação a
toda vontade de negação da vida, como o elemento anticristão,
antibudista, antiniilista par exceJlence.
A arte como a redenção do cognoscente - daquele que não
apenas vê e quer ver o caráter terrível e questionável da exis-
tência, mas que também vive, quer viver, o caráter do homem
trágico e belicoso, do herói.
A arte como a redenção do que sofre - como caminho para
estados nos quais o sofrer é querido, transfigurado, divinizado,
no qual o sofrimento é uma fomia do !,'l'll!lde êxtase.

3.
Vê-se que neste livro o pessimismo, digamos de maneira
mais clara, o niilismo, é considerado como a verdade. Mas a ver-
dade não vige como o critério de medida supremo, nem tampouco
como o poder supremo. A vontade de aparência, de ilusão, de engo-
do, de devir e de mudança (da ilusão objetiva) é considerada aqui
como mais profunda e originariamente metafisica do que a von-
tade de verdade, de efetividade, de ser: - este último não é senão
meramente uma fonna da vontade de ilusão. Do mesmo modo, o
prazer também é considerado como sendo mais originário do que
a dor: a dor só aparece como condicionada, como uma consequên-
cia da vontade de prazer (da von.tade de devir, de crescimento, de
configuração, ou seja, de criação: na criação, porém, a destruição
está contabilizada). Concebe-se um estado maximamente elevado
de afirmação da existência a partir do qual mesmo a dor mais ex-
trema não pode ser deduzida: o estado trágico dionisíaco.

4.
Sob tal forma, este livro é até mesmo antipessimista: a sa-
ber, no sentido de que ele ensina algo que 6 mais forte do que o
pessimismo, que é "mais divino" do que a verdade. Ao que pa-
rece, ninguém diria mais seriamente uma palavra sobre uma ne-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 469

gação radical da vida, sobre uma efetiva niilização da vida mais


ainda do que sobre um dizer não â vida do que o autor deste livro.
A questão apenas é que ele sabe - ele o vivenciou, talvez ele não
tenha mesmo vivenciado outr.i coisa! - que a arte tem mais valor
do que a verdade.
No prefácio, com o qual Richard Wagner é convidado
como para um diálogo, aparece essa confissão de fé, esse evange-
lho dos artistas, "a arte como a tarefa propriamente dita da vida,
a arte como a sua atividade metafisica ..."

5.

17 (4)
Para
a história do conceito de Deus
1.
Um povo que ainda acredita em si mesmo também tem
ainda o seu Deus. Nesse Deus, ele venera as condições por meio
das quais ele se encontra cm cima - ele projeta seu prazer cm si,
seu sentimento de poder para o interior de uma essência, para
a qual se pode agradecer por isso. Religião, no interior de tais
pressupostos, é uma forma de gratidão. Tal Deus precisa poder
usar e causar danos, precisa poder ser amigo e inimigo: a castra-
ção antinatural de um Deus e sua transformação em um Deus do
Bem não vem à mente desses realistas fortes. O que interessa em
um povo que não pode ser terrlvel? O que interessa em um Deus
que não conhece ira, vingança, inveja, atos de violência e que
talvez não conheça nem mesmo o ardor perigoso da destruição?
- Quando um povo perece; quando ele sente dissipar-se a crença
em seu futuro, em sua liberdade e em sua supremacia; quando
ganha a sua consciência a submissão como primeira utilidade, as
virtudes dos submissos como condições de conservação: então
também se altera naturalmente o seu Deus. Ele toma-se palerma,
temeroso, modesto, aconselha a «paz da alma", o não-mais-odiar,
a tolerância, o amor mesmo cm relação ao amigo e ao inimigo.
470 fRIEORICH NIETZSCHE

Ele engatinha de volta para a caverna da virtude privada, toma-se


o Deus das pessoas pequenas- ele não representa a alma agressi-
va e sedenta de poder de um povo, sua vontade de poder...

2.
Onde essa vontade, a vontade de poder, declina, hã em to-
das as vezes decadência. A divindade da decadência, reduzida
em seus membros e virtudes majs viris, se transfonna a partir de
agora em um Deus dos bons. Seu culto chama-se "virtude"; seus
discípulos são os "bons e os justos". - Compreende-se em que
instantes apenas a oposição dualista de um Deus bom e um Deus
mau se torna possível. Pois, com o mesmo instinto com o qual os
submissos degradam o seu Deus e o transfonnam em um "Bem
em si", eles riscam do Deus daqueles que os superaram as boas
propriedades. Eles vingam-se d.e seus senhores, na medida em
que diabolizam o seu Deus.

3.
Como é que se pode, com a simploriedade do engenhoso
Renan, denominar o desenvolvimento progressivo do Deus de
Israel e sua transformação na q uintessência do Deus de tudo o
que é bom um progresso! Como se Renan tivesse um direito à
simploriedade!... O oposto é o evidente. Quando se eliminam os
pressupostos de uma vida forte e florescente do conceito de Deus,
quando esse conceito se toma passo a passo o símbolo do auxilio
para tudo o que é cansado, esgotado, que só continua vegetando,
quando ele se toma o Deus dos pecadores, o Deus dos doentes,
salvador, redentor par excellence: o que isso tudo nos atesta? -
Sem dúvida alguma que seu reino se ampliou (- será que, com
isso, porém, Ele mesmo jã teria se tornado maior? .. ). Outrora,
ele não tinha senão o seu povo, os seus "escolhidos": todo povo
considera-se escolhido em sua altura. Entrementes, ele passou a
peregrinar e não parou mais quieto - até que se tomou por fim
"cosmopolita" e conquistou para o seu lado o "grande número".
Não obstante, o Deus do "grande número" permanece um Deus
de um canto, o Deus de todos os recôncavos doentios, de todos
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 471

os bairros nada saudáveis de todo o mundo ... Seu império mun-


dano é um império do submundo, um subterrâneo de desgraças
veladas ... E Ele mesmo é tão fraco, tão doente!. .. Prova: mesmo
os mais fracos entre os fracos, os metafisicos e os escolásticos,
ainda se assenhoreiam Dele - eles tecem sua teia ao redor Dele,
para o interior Dele, até que Ele se toma sua imagem, uma ara-
nha. A partir desse momento, Ele faz o mundo saltar para fora
de si; a partir desse momento, Ele se toma o eterno metafisico; a
partir desse momento, Ele se toma "espírito", "espirito puro"...
o conceito cristão de Deus- Deus como Deus dos doentes, Deus
como aranha, Deus como espirito - esse é o mais baixo conceito
de Deus que foi alcançado sobre a Terra: ele representa o ápice da
decadência no desenvolvimento descendente da ideia de Deus.
Deus deformado e tranSforrnad.o na contradição em refação à
vida, ao invés de significar a sua transfiguração e o seu eterno
sim; em Deus está anunciada a hostilidade em relação à vida, à
natureza, à vontade de vida; Õeus é a fórmula para todo e qual-
quer caluniamento da vida, para toda mentira relativa ao "além";
em Deus, o nada é divinizado, a vontade de nada é sacralizada!...
Foi a esse ponto que chegamos.
Será que as pessoas ainda não sabem? O cristianismo é
urna religião niilista - em virtude de seu Deus...

4.
O fato de as raças jovens e fortes da Europa do Norte não
terem afastado de si o Deus cristão não faz verdadeiramente ne-
nhuma honra ao seu talento religioso, para não falar de seu gosto.
Eles precisariam ter feito frente, a tal aborto doentio e decrépito
oriundo da decadência. Mas foram amaldiçoados pelo fato de não
terem conseguido fazer frente a ele: - acolheram a doença, a con-
tradição, a velhice em todos os seus instintos - não criaram mais,
desde então, nenhum deus! Quase dois mil anos: e nem um único
novo deus! Ao contrário sempre ainda e subsistindo como que
com razão, com um ultimato e um máximo da força formadora de
deuses, do creator spiritus no homem, temos esse Deus deplorá-
vel do monótono-teísmo europeu! Esse construto híbrido da de-
472 FRIEDRICH NIETZSCHE

cadência estabelecido a partir do zero, do conceito e do vovô, no


qual todos os instintos da decadência alcançam a sua sanção!...

5.
- E quantos novos deuses ainda são possíveis! ... Para mim
mesmo, em quem o instinto religioso, ou seja,Jormador de deu-
ses, por vezes procura se tomar vivo uma vez mais, o quão diver-
samente o divino se manifestou para mim a cada vez!... Tantas
coisas estranhas jã passaram por mim, naqueles instantes atempo-
rais, que surgem na vida como que vindos da lua, nos quais não se
sabe mais simplesmente o quão velho jã se é e o quão jovem ainda
se serã... Não duvidaria de que hâ muitos tipos de deuses ... Não
faltam aqueles a partir dos quais não se poderia alijar por meio do
pensamento mesmo um certo ancionismo e leviandade... Os pés
leves talvez façam até mesmo parte do conceito de "Deus"... É
necessârio expor o fato de que um Deus sabe Se manter em qual-
quer tempo para além de tudo o que é racional e burguês? Para
além também, dito en passant, de Bem e Mal? Ele tem a vista
livre - para falar com Goethe. - E para conclamar nesse caso a au-
toridade impassível de ser suficientemente avaliada de Zaratustra,
é preciso lembrar que Zaratustra chega ao ponto de atestar de si o
seguinte: "só acreditaria em um deus que soubesse dançar' ...
Dito uma vez mais: quantos novos deuses não são ainda
possíveis! - O próprio Zaratustra naturalmente é apenas um ve-
lho ateísta. Nós o compreendemos bem! Zaratustra diz, em ver-
dade, que ele iria -; mas Zaratustra não virá ...

17 (5)
Ah, tudo o que é capaz de realizar a embriaguez que se
chama amor e que é ainda algo diverso do amor! - De qualquer
modo, todos têm sua ciência quanto a isso. A força muscular de
uma moça cresce logo que um homem aparece cm sua proximida-
de; há instrumentos para medir essa força. Em uma relação ainda
mais próxima entre os sexos, tal como ela é trazida, por exemplo,
pela dança e por outros costumes sociais, cresce essa força de tal
modo, a fim de capacitar para jogos de poder efetivos: as pessoas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 473
......................................................................•........................

finalmente não confiam mais em seus olhos - e em seu relógio!


É preciso contabilizar aqui com certeza o fato de que a dança já
traz consigo em si, assim como cada um de seus movimentos rápi-
dos, uma espécie de embriaguez para o sistema conjunto de vasos,
nervos e músculos. Tem-se de contar nesse caso com os efeitos
combinados de uma embriaguez dupla. - E o quão sábio não é
por vezes ter uma pequena pontada!... Hâ realidades que nunca se
podem admitir; para tanto, se é mulher, para tanto se tem o pudor
feminino... Essas criaturas jovens que dançam Jâ estão, eviden-
temente, para além de toda realidade: elas s6 dançam com ideais
puramente palpáveis, elas veem até mesmo o que é mais, assentar
ainda ideais em tomo de si: as mães! ... Ocasião para citar o Faus-
to ... Elas possuem uma aparência incomparavelmente melhor, es-
sas belas criaturas - 6, que bom que elas saibam disso! Elas se
mostram até mesmo como adoráveis, porque sabem disso! - Por
fim, elas também inspiram ainda o seu brilho; o seu brilho é a sua
terceira pequena embriaguez: elas acreditam em seu alfaiate, tal
como acreditam em Deus: - e quem lhes desaconselha essa cren-
ça? Essa crença toma venturoso! E a autoadmiração é saudável!
- Autoadmiração protege contra resfriado. Algum dia se resfriou
uma bela moça que sabia se vestir bem? Nunca e jamais! Penso
mesmo no e.aso em que ela não se achava quase vestida ...

17 (6)
Para a história do niilísmo.
'lipos maís genéricos da decadência:
1): escolhe-se, na crença de que se estão escolhendo remé-
dios, aquilo que acelera o esgotamento
- a isto pertence o cristianismo - : para denominar o maior
caso do instinto enganador;
- a isto pertence o "progresso" - :
2) : perde-se a força de resistência em relação aos estímu-
los: se é condicionado pelos acasos: embrutece-se e embrutecem-
-se as vivências de maneira descomunal... uma "despersonaliza-
ção", uma desagregação da vontade - a isto pertence todo um
tipo de moral, a moral altruísta, que conduz na ponta da lingua a
474 FRIEDRICH NIETZSCHE

compaixão: na qual o essencial é a fraqueza da personalidade, de


tal modo que ela ressoa e treme constantemente como uma corda
super-retesada... uma irritabilidade extrema...
3) confundem-se causa e efeito: compreende-se a decadên-
cia não como fisiológica e vê-se em suas consequências a causa
propriamente dita do sentir-se mal
- a isto pertence toda a moral religiosa
4) : não se compreende a decadência de um estado no qual
não se sofre mais: a vida é de fato experimentada como funda-
mento de males - avaliam-se os estados inconscientes, insens(-
veis (sono, impotência) como incomparavelmente mais valiosos
do que os conscientes: dai surge uma metodologia ...

17 (7)
Não se trata de maneira alguma do melhor ou do pior dos
mundos: sim ou não, essa é aqui a questão. O instinto niilista diz
não; sua mais branda afirmação é a de que o não ser é melhor do
que o ser, que a vontade de nada tem mais valor do que a vontade
de vida; sua afirmação mais rigorosa é a de que, se o nada é a
desejabilidade suprema, essa vida, como oposição a isto, é abso-
lutamente desprovida de valor - reprovável...
Inspirado por tais juízos de valor, um pensador buscará
involuntariam.ente introduzir todas as coisas, para as quais ele
ainda atribui instintivamente valor, para a justificação de uma
tendência niilista. Essa é a grande falsificação de Schopenhauer,
que estava disposto com um interesse profundo em relação a coi-
sas demais: mas o esp!rito do ni.i lismo proibiu que ele contabili-
zasse isso como fazendo parte da vontade de vida: assim, vemos,
então, uma série de tentativas finas e corajosas de honrar a arte, a
religião, a moral, o gênio por causa de sua aparente hostilidade à
vida, como exigências do nada

17 (8)
Recentemente, abusou-se demais de uma palavra casual e
em todos os aspectos inadequada: fala-se por toda parte de pessi-
mismo, lum-sc regularmente, por vezes entre pessoas racionais,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 475

por uma questão para a qual precisaria haver respostas, a questão


de saber quem tem razão, o pessimismo ou o otimismo. Não se
compreendeu aquilo que estava ao alcance da mão: o fato de o
pessimismo não ser nenhum problema, mas um sintoma - o fato
de o nome precisar ser substituído por niilismo- o fato de a ques-
tão de saber se o não ser é melhor do que o ser jã ser ela mesma
uma doença, um declínio, uma idiossincrasia...

17 (9)
Para a fisiologia do arte.
1) a embriaguez como pressuposto: causas da embriaguez
2) sintomas típicos da embriaguez
3) o sentimento de força e de plenitude na embriaguez: seu
efeito idealizante
4) o mais factual de força: seu embelezamento factual. Pon-
deração: em que medida nosso valor "belo" é completa-
menie antropocêntricc:: baseado cm pressuposições de
crescimento e progresso. O mais de força, por exemplo,
na dança entre os sexos.. O elemento doentio na embria-
guez; a perieulosidade 6sio16gica da arte -
5) o apolíneo, o dionisiaco ... Tipos fundamentais: mais
abrangentes, comparados com as nossas artes especiais
6) questão: aonde pertence a arquitetura
7) a colaboração da capacidade artística na vida nonnal,
seu exercício é tõn.ico: ao contrário o feio
8) a questão da epidemia e do caráter contagioso
9) problema da "saúde" e da "histeria" - gênio = neurose
1O) a arte como sugestão, como meio de comunicação,
como âmbito de invenção da indução psicomotor
11) os estados não artísticos: objetividade, ódio ao espelho,
neutralidade. A vontade empobrecida; perda de capital.
12) os estados não artísticos: abstratividade. Os sentidos
empobrecidos.
13) os estados não art.lsticos: consumação, empobrecimen-
to, esvaziamento - vontade de nada. Cristão, budista,
niilista. O ccrpo empobrecido.
476 FRIEDRICH NIETZSCHE

14) os estados não artísticos: idiossincrasia (- a dos fracos,


dos medianos). O temor diante dos sentidos, diante do
poder, diante da embriaguez (instinto dos inferiores da
vida).
15) como é que a arte trágica é possível?
16) o típo do romântico: :ambíguo. Sua consequência é o
"naturalismo"...
17) problema do ator - a "insinceridade", a típica força de
transformação como falha de caráter... a falta de vergo-
nha, o arlequim, o sátiro, o bufão, o Gil Blas, o ator, que
desempenha o papel de artista...
18) a arte como embriaguez, medicamente: anestesia. Tô-
nico, impotência total e parcial.
(18 = MP XVII 5. MP XVI 4b. Julho-Agosto de 1888)

18 (!)
Da escola de guerra da alma.
Dedicado aos corajosos, aos espíritos alegres, aos abstêmios.
Não gostaria de subestimar as virtudes adoráveis; mas a
grandeza da alma não é compatível com elas. Mesmo nas artes, o
grande estilo exclui o agradável.
Em tempos de tensão dolorosa e de vulnerabilidade, esco-
lha a guerra: ela enrijece, ela tonifica os músculos.
Já dura 10 anos: nenhum som mais me alcança - um país
sem chuva. É preciso ter muita humanjdade sobrando para não
abafá-la na aridez.
Toda crença tem o instinto da mentira: ela se protege con-
tra toda verdade a partir da qual surja uma ameaça para a sua von-
tade de possuir a "verdade" - ela fecha os olhos, ela calunia ...
Tem-se uma crença porque ela "toma venturoso": não se
considera verdadeiro aquilo que não nos "toma venturosos". Um
pudendum. 25'

18 (2)
Teoria acerca do abuso da lógica como um critério de re-
alidade. -

18 (3)
A Tschanda/a está dominando; sobretudo os judeus. Os ju-
deus são a raça mais forte em nossa Europa: pois eles são supe-
riores ao resto por meio da duração de seu desenvolvimento. Sua
organização pressupõe uma gênese mais rica, um percurso mais
perigoso, um número maior de níveis do que qualquer outro povo
pode apresentar. Mas isso é quase uma fórmula para a superiori-
dade. - Uma raça, como de resto um construto orgânico qualquer,

254 N.T.: Em latim no original: algo ve,gonho10.


478 FRIEORICH NIETZSCHE

só pode crescer ou perecer; não hâ nenhuma pausa possível. Uma


raça, que não pereceu, é uma raça que continuou incessantemen-
te crescendo. Crescer significa tomar-se perfeito. A duração na
existência de uma raça decide com necessidade sobre a altura de
seu desenvolvimento: o mais antigo precisa ser o mais elevado. -
Os judeus são tímidos em um sentido incondicionado; encontrar
um judeu pode ser uma boa ação; têm-se facilmente com isso
os outros contra si. Mas a grande vantagem continua sendo, po-
rém, dos tímidos. - Sua timidez impede os judeus de se tomarem
insanos do nosso modo; por exemplo, de maneira nacionalista.
Parece que eles foram outrora muito bem vacinados, um pouco
sangrentos mesmo, e isso entre todas as nações: eles não deca-
em mais facilmente sob o nosso rabies, o rabies nationalis. Eles
mesmos são, hoje, um antídoto contra essa derradeira doença da
razão europeia. - Só os judeus tocaram na moderna Europa na
forma suprema da espiritualidade: trata-se da bufonaria genial.
Com Olfenbach, com Hei.nrich Heinc, a potência da cultura eu-
ropeia foi efetivamente excedida; dessa maneira, ainda não está
livre para as outras raças ter espirito. Isso faz limite com Aristó-
fanes, com Petrônio, com Hafis. - A mais antiga e a mais tardia
cultura da Europa é representada agora sem sombra de dúvida
por Paris; l 'esprit de Paris é a sua quintessência. Mas os mais mi-
mados parisienses, pessoas tais como os Goncourts, não tiveram
nenhum pudor de reconhecer em Heine um dos três ápices do
espril parisiense: ele compartilha a honra com o Prince de Ligne
e o napolitano Galiani. - Hcinc tinha gosto suficiente para não
poder levar a sério os alemães; por isso, os alemães o levaram a
sério e Schumann o musicou - na música schumannianal "Tu és
como uma flor" cantam todas as virgens mais elevadas. - Hoje,
o fato de Heine ter tido gosto - o fato de ele ter rido - vem sendo
transformado em um crime na Alemanha: os próprios alemães,
justamente, levam-se hoje desesperadamente a sério. -

18 (4)
Eu desconfio de todos os sistemâticos e fujo do caminho
deles. A vontade de sistema é, para nós pensadores, ao menos,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 479

algo que compromete, uma fonn.a de nossa imoralidade. - Talvez


se desvende, em meio a um olhar por detrás deste livro, de que
sistemático eu mesmo só me desviei com esforço...

18 (5)
Dei aos alemães o livro mais profundo que eles possuem,
meu Zaratustra - lhes dou por meio daqui o livro mais indepen-
dente. Como?, me diz quanto a isso minha má consciência, tu
queres - jogar aos alemães - tuas pérolas?...

18 (6)
O preço que se paga por ser artista, na medida em que se
experimenta aquilo que todos os artistas denominam forma, con-
teúdo, a coisa mesma. Com isso, pertence-se naturalmente a um
mundo invertido.

18 (7)
Não se deve querer nada de si que não se possa fazer. Per-
gunta-se: tu queres acompanhar'? Ou ir 11a fre11te? Ou ir por si?
- No segundo caso, se quer ser pastor: pastor, ou seja, a urgência
suprema de um rebanho.

18 (8)
- "Quando nós, a partir do instinto da comunidade, estabe-
lecemos prescrições e impedimos certas ações", então não impe-
dimos, como é racional, um modo de "ser", não uma "atitude",
mas apenas certa direção e uma aplicação útil desse "ser", dessa
"atitude". Nesse ponto, porém, chega o ideólogo da virtude, o
moralista, e diz que "Deus considera o coração! O que nos im-
porta o fato de vós vos absterdes de determinadas ações? Vós
não sois por isso melhores!" - Resposta: nós tampouco quere-
mos nos tomar melhores, meu senhor de orelhas compridas e
virtuosas, nós estamos muito satisfeitos conosco - a única coisa
que não queremos é causarmos uns aos outros dor; e, por isso,
impedimos certas ações com vistas a certo aspecto, a saber, em
relação a nós, enquanto não sabemos honrar as mesmas ações,
480 FRIEORICH NIETZSCHE

supondo que elas se relacionam com nosso opositor - aos se-


nhores, por exemplo. Nós educamos nossas crianças com vistas
a elas, nós as criamos. Se estivéssemos marcados por esse radi-
calismo "muito agradável a Deus", que vosso desvario sagrado
nos aconselha, se lõssemos suficientemente bezerros da lua, para
proibirmos não apenas ações, mas também os pressupostos para
as ações, ou seja, nossa "atitude", então nos restringiríamos às
nossas virtudes, àquilo que constitui nossa honra, nosso orgulho.
E não satisfeitos com isso. Na medida em que eliminamos nossa
"atitude", não nos tornaríamos de modo algum melhores - nós
não existiríamos mais de forma alguma, nós teríamos eliminado,
com isso, a nós mesmos ... O senhor é apenas um niilista..."

18 (9)
Com uma simplicidade tocante, a música russa traz à luz a
alma do camponês, das pessoas das camadas mais baixas. Nada
fala mais ao coração do que os seus sábios serenos, que são, todos
juntos, sábios tristes. Trocaria a felicidade de todo o Ocidente por
esse modo russo de ser triste. - Mas como é que se chega ao fato de
as classes dominantes na Rússia não serem representadas em sua
música? Seria suficiente dizer "homens maus não têm canções"? -

18 (10)
Onde está boje o nlvel mais baixo da cultura europeia, o
seu pd11tano? - Junto aos salvacionistas, aos anarquistas, aos
bayreuthianos. Ou seja, junto às cinco especialidades de canto
europeu. Pois todos eles se arrogam agora, como se eles apenas
fossem os "homens superiores"...

18 (li)
A doença é um estimulante poderoso. A questão é que é
preciso ser saudável o suficiente para ela.

18 (12)
Coisas grandes exigem que se fale delas de maneira grande
ou que se cale: grande, ou seja, com inocência - cinicamente.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 481

18 (13)
Para: a vontade de verdade
1) Princípio. O modo de pensar mais fácil vence sobre o
mais difícil - como dogma: simplex sigillum veri.m -
Dico: o fato de a clareza dever comprovar algo cm rela-
ção ã verdade é uma completa infantilidade...
2) Principio. A doutrina do ser, da coisa, de puras unidades
firmes é cem vezes mais fácil do que a doutrina do devir,
do desenvolvimento
3) Princípio. A lógica foi visada como facilitação: como
meio de expressão - não como verdade... Mais tarde, ela
passa a exercer o efeito como verdade ...

18 (14)
O metafisico
Falo sobre a maior infelicidade da füosofía modem.a - de
Kant...
Hegel: algo da confiança sabia em Deus, do otimismo até
certo ponto audaz
Kant: volta ao "antigo jogo": todos compreenderam isto

18 (15)
O grande meio-dia.
Por que "Zaratustra"?
A grande autossuperação da moral

18 (16)
Sobre: os metaflsicos
Para a psicologia da metafisica.
A influência da temerariedade.
O que mais se temeu, a causa dos sofrimentos mais podero-
sos (ambição ao poder, volúpia etc.), foi tratado da maneira mais
hostil possível pelos homens e eliminado do mundo ''vcrdadci-

255 N.T.: Em latim no original: o verdadeiro é o selo da verdade. Frase dileta


do teólogo holandês Herman Boerhaave (1668· 1738).
482 fRIEDRICH NIETZSCHE

ro". Assim, eles eliminaram passo a passo os afetos- Deus como


oposição ao mal, isto é, a realidade estabelecida na negação dos
desejos e afetos (o que significa precisamente no nada).
Do mesmo modo, a irrazão, o arbitrário, o casual também
foram odiados por eles (como causa de sofrimentos físicos inú-
meros). Consequentemente, eles negam esse elemento no ente-
-em-si, concebendo-o como absoluta "racionalidade" e "conso-
nância a fins".
Do mesmo modo, a mudança e a perecibilidade são temi-
das: nisso se expressa uma alma oprimida, cheia de desconfiança
e de uma tenível experiência (caso de Espinoza: uma espécie
inversa de homem contabilizaria essa mudança como estímulo)
Um tipo de ser carregado de força e jocoso aprovaria
precisamente os afetos, a irrazão e a mudança em um sentido
cudaimonista, juntamente com suas consequências, seu perigo,
contraste, perecimento etc.

18(17)
Esboço do
plano para:
A vontade de poder.
Tentativa
de uma transvaloração de todos os valores.
- SilsMaria
no último domingo do
mês de agosto de 1888
Nós, hiperbóreos. - Estabelecimento da pedra
fondamental do problema.
Primeiro livro: "o que é verdade?"
Primeiro capírulo. Psicologia do erro.
Segundo capítulo. Valor da verdade e do erro.
Terceiro capítulo. A vontade de verdade (primeiro justifi-
cada no valor de sim da vida
Segundo livro: Proveniência dos valores.
Primeiro capírulo. Os metafisicos.
Segundo capítulo. Os homines religiosi.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 483

Terceiro capítulo. Os bons e os aprimoradorcs.


Terceiro livro: Luta entre os valores
Primeiro capítulo. Ideias sobre o cristianismo.
Segundo capítulo. Para a fisiologia da arte.
Terceiro capítulo. Para a história do niilismo europeu.
Passatempo para psicólogos
Quarto livro: O grande meio-dia
Primeiro capítulo. O princípio da "escala hlenuquica" da vída.
Segundo capítulo. Os dois caminhos.
Terceiro capítulo. O eterno retomo.
(19 = MP XVII 6. MP XVI 4c. W li 9b. WII 6b.
Setembro de 1888}

19 (1)
<ll>
As pessoas me perguntam com frequência por que eu es-
crevo meus livros propriamente em alemão? Minha resposta a
essa pergunta é sempre a mesma: eu adoro os alemães - cada
um tem a sua pequena irrazão. O que me importa se os alemães
não me leem? Tanto mais me esforço por ser justo com eles. - E,
quem sabe? Talvez eles venham a me ler depois de amanhã.

2.
A nova Alemanha representa um grande quantum de capaci-
dade herdada e aprendida: de tal modo que ela pode mesmo por um
tempo gastar de maneira perdulãria o tesouro acumulado de for-
ça. Não se trata de uma cultura elevada, que se assenhoreou dela,
nem tampouco de um gosto deticado, de uma "beleza" nobre dos
instintos; mas trata-se de virtudes maís viris do que é costume na
Europa se poder apresentar. Muito boa coragem e respeito peran-
te si mesmo, muita segurança no comércio, na bilateralidade dos
compromissos, muito esforço, muita duração - e uma moderação
herdada que carece antes do aguilhão do que de uma trava. Acres-
cente nesse contexto o fato de que ainda se obedece aqui, sem que
a obediência humilhe.... E ninguém despreza seu adversário...

3.
Depois de ter feito jus aos alemães dessa maneira - pois
eu os adoro, apesar de tudo -, não tenho mais nenhuma razão
para privar-lhes de minha objeção. Eles foram outrora o "povo
dos pensadores": será que hoje eles ainda pensam? - Eles não
têm mais tempo algum para isso ... "Espírito" alemão - temo que
esta expressão seja hoje uma contradictio in adjecto. - Eles vêm
se tomando entediantes, eles talvez o sejam, a grande polltiea
engole a s eriedade para todas as coisas efetivamente grandes -
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 485

"Alemanha, Alemanha acima de tudo" -um principio dispendio•


so, mas não um princípio filosófico. - "Há filósofos alemães?
Há poetas alemães? Há bons livros alemães?" - é assim qu.e as
pessoas me perguntam no estrangeiro. Fico vennelho, mas com
a coragem que me é própria, mesmo em casos de desespero,
respondo: "Sim! Bismarck!"... Deveria confessar que livros as
pessoas leem agora? - Dahn? Ebers? Ferd.inand Mcyer? - Ouvi
professores universitários louvarem esse modesto Bieder-Meyer
(pequeno-burguês)256 às expensas de Gottfried Keller. Maldito
instinto da mediocridade!

4.
Permito-me ainda uma d.istração. Conto o que um peque-
no livro me contou, ao retomar para mim depois de uma viagem
para a Alemanha. Esse livro chama-se: Para além do bem e do
mal - dito cá entre nós, ele foi mesmo o prelúdio para a obra que
se tem aqui nas mãos. O pequeno livro me disse: "sei muito bem
qual é meu erro, sou novo demais, rico demais, apaixonado de-
mais - perturbo a tranquilidade da noite. Hã palavras em mim que
seriam capazes de destroçar mesmo o coração de um deus, sou
um rcndez-vous de experiências, que se fazem 6.000 pés acima de
toda atmosfera humana. - Razão suficiente para que os alemães
me tenham compreendido..." Mas, respondo eu, meu pobre livro,
como é que tu pudeste jogar tuas pérolas - aos alemães? Foi uma
burrice! - E, então, o livro me contou o que lhe ocorreu.

5.
De fato, desde 187 1, as pessoas estavam minuciosamente
inteiradas a meu respeito: o caso comprovou isso. Não me espan•
to de que as pessoas não tenham compreendido o meu Zaratustra,
não vejo aí nenhuma repreensão;; um livro tão profundo, tão estra-
nho como esse faz com que quem quer que tenha compreendido
seis frases daí, ou seja, que tenha vivenciado seis frases, se veja

256 N.T.: Nietzsche brln<:a na possagem acima com o nome de Meyer, associan-
do o nome oo estilo burguês e Insípido da primeira metade do século XIX.
486 fRIEDRICH NIETZSCHE

alçado a uma ordem mais elevada dos mortais. Mas não com-
preender aquele "para além" - isso chega quase a me espantar...
Um redator do jornal nacional entendeu o livro como um sina.!
do tempo, como um.a filosofia jovial, que só perdia em coragem
para o jornal da cruz de fcrro.m Uma pequena luz da Universida-
de de Berlim declarou na revista Rundschau, evidentemente no
que diz respeito à sua própria iluminação, que o livro era psiqui-
átrico e chegou mesmo a citar passagens para comprovar isso:
passagens, que tinham a infelicidade de demonstrar algo. - Um
folheto de Hamburgo reconheceu em mim o velho hegeliano. O
folheto literário central confessou ter perdido a "linha" comigo
(quando é que ele a teve? - ) e ,citou, como fundamentação, al-
gumas palavras sobre o "sul na. música": como se uma música
que não entra pelos ouvidos de um morador de Leipzig deixasse,
com isso, de ser música. Não obstante, continua sendo verdade
o que eu confesso por lá em princípio: il faut méditerraniser la
musique."' - Uma inocência teológica me deu a entender que
eu não teria nenhuma consideração pela lógica, mas unicamente
pelo "belo estilo": como é que as pessoas podem levar tão pou-
co a sério aquilo que eu mesmo levo tão pouco a sério? - Tudo
isso pode passar: mas vivenciei casos nos quais a "compreensão"
excedia a medida do humano e beirava as raias do animal. Um
redator suiço, do "Bund", não oonseguiu deduzir outra coisa do
estudo da obra citada senão que eu requisitava com ela a aboli-
ção de todos os sentimentos decentes: vê-se que ele efetivamente
pensou algo com as palavras "para além do bem e do mal" ... Mas
minha humanidade sempre esteve à altura de um tal caso. Eu lhe
agradeci por isso, dei-lhe mesmo a entender que ninguém tinha
me compreendido melhor - ele acreditou ... Um ano depois, o
mesmo folheto tratou meu Zaratustra como um exercício estilís-
tico mais elevado, com acenos engenhosos sobre a imperfeição
de meu estilo -

257 N.T.: Jornal da Próssla que pa$$OU Dser chamado de Jornal da crui de ferro
em função de traier uma crui de ferro no título,
258 N.T.: Em francês no original: é preciso medlterranlzar a musica.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 487

- e eu me diverti com tudo isso: por que deveria me si-


lenciar quanto a isso? Não se é à toa eremita. A montanha é um
vizinho mudo, passam-se anos sem que se alcance uma palavra.
Mas a visão dos que vivem refresca: deixam-se, por fim, todas as
crianças se aproximarem, acaricia-se todo tipo de animal, mesmo
que ele lenha chifres. (Sempre trato uma vaca com um "minha
mocinha": isso afaga o seu velho coração.) Só o eremita conhece
a grande tolerância. O amor aos animais - por todos os tempos
se reconheceu aí o eremita...

19 (2)
Transvaloraçào de todos os valores.
De
Friedrich Nietzsche.

19 (3)
Pensamentos para depois de amanhã.
Extrato de minha filosofia
Sabedoria para depois de amanhã
Minha filosofia
em extrato.
Magnum in parvo.
Uma filosofia
em extrato.

19 (4)
1) N6s, hiperb6reos.
2) O problema de Sócrates.
3) A razão na filosofia.
4) Como o mundo verdadeiro finalmente se tornou fábula
5) Moral como antinatureza.
6) Os quatro grandes erros.
1) Por n6s - contra nós.
8) Conceito de uma religião da decadência.
9) Budismo e cristianismo.
1O) A partir de minha estética.
488 FRIEDRICH NIETZSCHE

11) Entre artistas e escritores.


12) Setas e sentenças.

19 (5)
Multum im parvo.
Minha filosofia
em extrato.
De
Friedrich Nietzsche

19 (6)
Ociosidade
de um psicólogo.
De
Friedrich Nietzsche.

19 (7)
(+++) Há palavras em mim que destroÇariam até mesmo o
coração de um deus, sou um rendez-vous de experiências que s6
são feitas 6.000 pés acima de toda atmosfera humana: ra.zão sufi-
ciente para que os alemães me compreendam..." Mas, respondi,
meu pobre livro, como é que tu pudeste jogar tuas pérolas - dian-
te dos alemães! Foi uma burrice! - E, então, o pequeno livro me
contou o que lhe ocorreu.
De fato, desde 1871, as pcessoas estavam minuciosamente
inteiradas a meu respeito: o caso comprovou isso. Não me espan-
to de que as pessoas não tenham compreendido o meu Zaratustra:
um livro tão distante, tão belo, é preciso ter sangue divino nas
veias para que se possa ouvir a sua voz de pássaro. Mas não com-
preender aquele "para além" - isso chega quase a me espantar.
As pessoas o compreendem por toda parte, da melhor maneira
possível na França. - Um redator do jornal naciona.1 entendeu o
livro como um sinal do tempo, como a autêntica, plena filosofia
jovial, que só perdia em coragem para o jornal da cruz de ferro.
Uma pequena luz da Universidade de Berlim declarou oa revista
Rundscha11, evidentemente no que diz respeito à sua própria ilu-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 489

minação, que o livro era psiquiátrico e chegou mesmo a citar pas-


sagens para comprovar isso: passagens que tinham a infelicidade
de demonstrar algo. - Um folheto de Hamburgo reconheceu em
mim o velho hegeliano. O folheto literário central confessou ter
perdido a "linha" comigo (quando é que ele a teve?-) e citou,
como fundamentação, algumas palavras sobre o "sul na música":
como se urna música que não entra pelos ouvidos de um morador
de Leipzig deixasse, com isso, de ser música! Não obstante, con-
tinua sendo verdade o que cu confesso por lá em princípio: i/faut
méditerraniser la musique. - Uma inocência teológica me deu
a entender que eu não teria nenhuma consideração pela lógica,
mas unicamente pelo "belo estilo": como é que as pessoas podem
levar tão pouco a sério aquilo que eu mesmo levaria tão pouco a
sério? - Tudo isso pode passar. Mas vivenciei casos nos quais a
"compreensão" excedia a medida do humano e beirava as raias
do animal. Um redator suíço, do "Bund", não conseguiu deduzir
outra coisa do estudo da obra citada senão que cu requisitava
com ela a abolição de todos os sentimentos decentes: vê-se que
ele efetivamente pensou algo com as palavras "para além do bem
e do mal"... Mas minha humanidade sempre esteve à altura de
um tal caso. Eu lhe agradeci por isso, dei-lhe mesmo a entender
que ninguém tinha me compreendido melhor - ele acred.itou ...
Um ano depois, o mesmo folheto tratou meu Zaratustra, o mais
profundo livro da humanidade, como um exercício estilístico
mais elevado, com acenos engenhosos sobre a imperfeição de
meu estilo...
- E eu me diverti com tu.do isso: por que deveria me si-
lenciar quanto a isso? Não se é :à toa eremita. A montanha é um
vizinho mudo, passam-se anos sem que um som nos alcance.
Mas a visão dos que vivem refresca: deixam-se, por fim, todas as
crianças se aproximarem, acaricia-se todo tipo de animal, mesmo
que ele tenha chifres. Só o eremita conhece a grande tolerância.
O amor aos animais - por todos os tempos se reconheceu aí o
eremita...
Sils-Maris, Oberengadin
Inicio de setembro de 1888.
490 FRIEDRICH NIETZSCHE

19 (8)
Transvaloração de todos os valores
Primeiro livro.
O anticristo. Tentativa de uma crítica do cristianismo.
Segundo livro.
O espírito livre. Crítica da filosofia como um movimento niilista.
Terceiro livro.
O imoralista. Crítica do tipo mais fatídico de ignorância,
a ignorância moral.
Quarto livro.
Dioniso. Filosofia do eterno retomo do mesmo.

19 (9)
O imoralista
Psicologia dos erros sobre os quais se baseia a moral
1) Confusão entre causa e efeito
2) Causas imaginárias para sentimentos fisiológicos ge-
rais
3) A causalidade da vontade como a própria "vontade livre"
4) O homem aspira ao prazer e evita o desprazer ("todo
mal é involuntário")
5) Egoísmo e não egoísmo (falsas oposições)
Falsa psicologia da "entrega", do "sacrificio de si", do
"amor"
Psicologia dos meios, com os quais a moral se toma domi-
nante, a pia fraus.

19 (10)
Na história da cultura, o "império" era, outrora, uma in-
felicidade: a Europa tinha se tomado mais pobre, desde que o
espírito alemão abdicou do "espírito". - Sabe-se algo sobre esse
evento no estrangeiro: que os alemães não se iludam quanto a
isso! Pergunta-se: vós tendes um único espírito que possa ser
considerado? Ou mesmo ainda que apenas três quartos de um
espírito?... O fato de não haver nenhum filósofo alemão é um
fim de primeira ordem. Ninguém é tão extravagante a ponto de
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 491

atribuir essa palavra aos alemães, quando nulidades loquazes


como o senhor inconsciente, o senhor Eduard von Hartmann, ou
um canalha venenoso e bilioso quanto o antissemita berlinense
senhor E. Dühring abusam da palavra filósofo - este último não
consegue encontrar nenhum homem decente entre seu séquito,
o primeiro não consegue encontrar nenhum "entendimento" de-
cente.

19(11)
O Estado pretende falar concomitantemente e mesmo decidir
sobre as questões da cultura: como se o Estado não fosse apenas um
meio subordinado da cultura!... "Um império alemão" - o quanto
de "império alemão" se põe na conta de um Goethe!... Todos os
grandes tempos da cultura foram politicamente tempos pobres: -
(20 = Wll 10a. Verão de 1888)

20 (!)
O silêncio descarado -
Cinco ouvidos - e nenhum som aí!
O mundo emudeceu...
Obedeci com os ouvidos â, minha curiosidade
Cinco vezes jo&'Uei o anzo 1sobre minha cabeça,
Cinco vezes não fisguei nenhum peixe -
Perguntei - nenhuma resposta entre em minha rede -

20 (2)
Tu corres rápido demais:
Somente agora quando tu estás cansado,
Tua felicidade te busca.

20 (3)
uma alma coberta de neve, que
fala com um vento frio.

20 (4)
um riacho cintilante e dançante, que
uma cama tona
de rochas prendeu:
entre pedras pretas
reluz e encanta sua impaciência.

20 (5)
Tome cuidado para não advenir
o audaz!
Em vinude da advenência
ele continua andando em todos os abismos.

20 (6)
Bem perseguido,
mal apanhado
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 493

20 (7)
grandes homens e correntes andam curvados,
curvados, mas rumo à suu meta:
esta é sua melhor coragem,
eles não temem os caminhos tortos.

20 (8)
Cabras, gansos e outros
participantes de cruzadas, além de tudo aquilo
que o espírito santo algum dia
conduziu

20 (9)
essas são pernas de pau?
ou são do orgulho pés fortes?

20 (10)
alquebrado e serviçal,
principiai, indecente

20 (11)
entre vós sou sempre
como óleo em meio à água:
sempre em cima

20 (12)
Um botequim ao lado de toda loja

20 (13)
Se está certo de sua morte:
Por que não se depor a sec se.rena?

20 (14)
ruim consigo mesmo
casado, hostil,
seu próprio dragão caseiro
494 FRIEDRICH NIETZSCHE

20 (15)
o céu se encontra em chamas, o mar
se lança em nossa direção

20 (16)
o mar mostra os dentes
contra ti.

20 (17)
vosso Deus, digam-me,
é um Deus do amor?
o remorso
é um remorso divino
um remorso por amor?

20 (18)
abaixo de meu ápice
e de meu gelo
ainda por todos os laços
do amor cingido

20 (19)
a quem convém o amor?
ao homem, não:
o homem esconde a beleza -
mas um homem escondido vale menos.
Te apresenta livremente para tanto - - -

20 (20)
tu precisas te ver uma vez mais em apuros:
em apuros nos tomamos hábeis e duros.
A solidão amolece .. .
a solidão degrada ...

20 (21)
não o confunda!
Com certeza ele ri
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 495

como um raio:
mas em seguida
troveja irado o seu longo trovão.

20 (22)
ele jã imita a si mesmo,
ele jã se tomou cansado,
ele jã busca os caminhos que ele percorreu -
e ainda bem recentemente ele amava todos os caminhos
não percorridos!

20 (23)
minha sabedoria é igual ao sol:
queria ser luz para eles,
mas eu os ceguei;
o sol de minha sabedoria arrancou
destes morcegos
os olhos...

20 (24)
sua compaixão é dura,
sua pressão amorosa esmaga;
não deem as mãos a um gigante!

20 (25)
assim é agora minha vontade:
e desde que essa é a minha vontade,
tudo corre confonne o meu desejo -
Esta foi minha derradeira astúcia:
Gostaria disto que cu preciso:
com isto impingi-me todo "precisar"...
desde então não hâ para mim nenhum "precisar"...

20 (26)
Altivo em relação a pequenas
vantagens: onde quer que ,eu veja o comerciante
496 FRIEDRICH NIETZSCHE

com mãos grandes,


tenho imediatamente vontade
de puxar as mãos menores;
assim o quer meu gosto frágil.

20 (27)
pequenas pessoas,
confiáveis, de coração aberto,
mas portas baixas:
só algo pequeno atravessa essas portas.

20 (28)
Tu queres ser apenas o macaco
de teu Deus?

20 (29)
teus grandes pensamentos.
que vêm do coração,
e todos os teus pequenos
- eles vêm da cabeça -
não são todos mal pensados?

20 (30)
toma cuidado,
não seja o baterista
de teu dcsti.nol
foge
de todo bum-bum da fama!

20(31)
tu queres prendê-las?
fale com elas
como ovelhas desgarradas:
"vosso caminho, 6, vosso caminho
vós o haveis perdido".
Elas seguem qualquer um,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 497

que as adula assim.


"Como? Tínhamos um caminho?
elas falam para si mesmas secretamente:
parece efetivamente que temos um caminho!"

20 (32)
não vos zangueis comigo, porque dormi:
estava apenas cansado, não estava morto.
Minha VOZ soou má;
mas tudo não passou de roncos e ofegares,
o canto de alguém cansado:
não um "seja bem-vindo" para a morte,
não uma sedução ao túmulo.

20 (33)
desamparado como um cadáver,
na vida já morto, enterrado

20 (34)
estica as mãos na direção dos pequenos acasos,
seja amável com aquilo que não é bem-vindo:
em relação ao destino não se deve ser espinhoso,
de outrc modo nos tomamos um ouriço.

20 (35)
Vós subis,
é verdade que vós subis,
vós, homens superiores?
vós não vindes a ser, vós perdoais,
como a bola
para o alto pressionada
- por aquilo que há de mais baixo em vós? ...
vós não fugis de vós, vós que estão subindo?...

20 (36)
com uma ambição estrangulada:
498 FRIEDRICH NIETZSCHE

entre tais homens tenho prazer


em ser o último -

20 (37)
ao assassino de Deus
ao sedutor do que hã de mais puro
ao amigo do mal?

20 (38)
honesto ele se encontra ai
com mais sentido para o direito
em seu dedo do pé mais à esquerda
do que cm toda a minha cabeça:
um monstro da virtude,
vestido com um manto branco.

20 (39)
O que isto ajuda! Seu coração
é estreito e todo o seu espl.rito
estã nesta apertada jaula
preso, paralisado

20 (40)
seus modos rijos,
para mim tudo se tornou jogo

20(41)
eu vos amo?...
É assim que o cavaleiro ama seu cavalo:
esse o cWTega até a sua meta.

20 (42)
almas estreitas,
almas de comerciantes!
Quando o dinheiro salta nas caixas,
a alma sempre salta junto!
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 499

20 (43)
tu não aguentas mais,
teu senhorial destino?
Ama-o, não te resta nenhuma escolha!

20 (44)
a vontade redime.
Quem não tem nada a fazer, é
por qualquer coisa destruído.

20 (45)
a solidão
não semeia: ela amadw-cce.
E para tanto tu tens ainda de ter o sol como amigo

20 (46)
Joga o teu peso na profundeza!
Homem, esquece! Homem, esquecei
Divino é do esquecimento a arte!
Queres voar,
queres nas alturas te sentir em casa:
joga o teu peso mais pesado no mar!
Divino é do esquecimento a arte!

20 (47)
a bruxa
nós pensamos mal um do outro?...
nós estávamos distantes demais de nós.
Mas, agora, nesta mínima choupana, encavilhados em um
destino,
como é que podemos continuar inimigos?
É preciso se amar, quando não se pode fugir

20 (48)
Averdade -
u.ma mulher - nada melhor do que isto:
500 FRIEORICH NIETZSCHE

maliciosa em seu pudor:


aquilo de que ela mais gostaria
é aquilo de que ela não quer saber,
ela mantém os dedos longe daí...
A quem ela cede? Apenas ã violência! -
Assim, usai de violência,
sede duros, vós, os mais sábios dentre os sábios!
vós precisais coagi-la
a envergonhada verdade...
para a sua bem-aventurança
ela precisa da coação -
- ela é uma mulher, nada melhor do que isto...

20 (49)
Ah, que tu acredites
precisar desprezar,
onde tu apenas abdicas!. ..

20 (50)
Hora da noite
na qual mesmo o gelo
de meu cume arde!

20 (51)
Viagem aquática - Fama
Vossas ondas?
Vossas mocinhas? Vossos seres estranhos?
Vós vos enfureceis contra mim?
Vós vos embriagais de ira'?
Bato com meu remo
na cabeça de vossa estultlcia.
Esse louco -
Vós mesmos o levais à imortalidade!

20 (52)
Algo deste gênero não pode ser refutado:
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 501

Serâ que ele jâ se toma por isso verdadeiro?


ó, vós inocentes!
20 (53)
Nas alturas estou em casa.
não tenho anseio pelas alturas.
Não alço os olhos para cima;
Sou alguém que olha para baixo,
Alguém que precisa abençoar:
Todos aqueles que abençoam olham para baixo...

20 (54)
Ele logo fica mal-humorado,
de maneira brusca estica os cotovelos;
sua voz vai se tornando azeda
seus olhos miram com um verde total.

20 (55)
um olho nobre com
cortinas por toda parte:
raramente claro -
ele honra aquele para quem se mostra abertamente.

20 (56)
Leite corre
em sua alma; mas ai de n6s!
Seu espírito é cheio de nata.

20 (57)
um hálito alheio sopra e esfumaça tudo ao meu redor:
será que sou um espelho que se toma turvo?

20 (58)
poupa o que tal pele tenra possui!
Por que é que tu queres raspar a
penugem de tais coisas?
502 FRIEDRICH NIETZSCHE

20 (59)
Verdades que ainda não foram
estragadas por nenhum sorriso;
verdes, ásperas e impacientes verdades
se sentam à minha volta.

20 (60)
ó, todos vós ferros em brasa!
Vós que sois sóis do cume de minha mais solitária felicidade!

20 (61)
Lentos olhos,
que raramente amam:
mas, quando amam, brilham raios
como vindos de tesouros de ouro,
como um dragão desperta. no refugio do amor...

20 (62)
"para o inferno vai quem segue teu caminho?" -
Que assim seja! Rumo ao meu inferno
quero pavimentar meu caminho com boas sentenças

20 (63)
Tu queres pegar em espinhos?
Pesadamente sofrerão teus dedos.
Pega um espinho.

20 (64)
Tu és frágil?
Então tome cuidado com as mãos das crianças!
A criança não consegue viver sem quebrar alguma coisa...

20 (65)
mesmo a fumaça é útil para algo:
assim fala o beduino, eu concordo:
tu, fumaça, não anuncias
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) S03

para aquele que está a caminho


a proximidade de uma fogueira hospitaleira?

20 (66)
quem hoje ri melhor
também ri por último.

20 (67)
um viandante cansado,
que com um forte latido
um cachorro acolhe

20 (68)
Coração de leite, quente como a vaca

20 (69)
estes são caranguejos, pelo quais não nutro nenhuma com-
paixão,
se tu os pegas, então eles 'beliscam,
se tu os deixas, eles andam para trás.

20 (70)
tempo demais ele ficou sentado em uma jaula,
este desgarrado!
tempo demais ele temeu a
vara de seu mestre:
temeroso ele segue agora seu caminho:
tudo faz com que ele tropece,
a sombra de um bastão o faz tropeçar

20(71)
Para além do Norte, do früo, do hoje,
para além da morte,
para o lado -
nossa vida, nossa felicidade!
Ncm cm terra,
504 FRIEORICH NIETZSCHE

nem na água
tu podes o caminho
que leva até nós, hiperbóreos, encontrar:
foi assim que uma boca sábia previu algo sobre nós.

20 (72)
6 estes poetas!
Garanhões, eles são entre si,
que de uma maneira casta relincham.

20 (73)
olha para fora! Não olhe para trás!
nós perecemos,
quando buscamos sempre os fundamentos 2s•

20 (74)
afável cm relação ao homem e ao acaso,
uma mancha de sol
em encostas invernais

20 (75)
um raio tomou-se minha sabedoria;
com uma espada de diamante, ela atravessou comigo todas
as trevas

20 (76)
advinha, amigo de enigmas,
onde se demora agora minha virtude?
ela fugiu de mim,
ela temia a astúcia
de meus anzóis e de minhas redes

259 N.T.: Há um jogo de linguagem que se perde na tradução. Em verdade, pe-


recer, em alemão, significa, llteratmente, Ir ao fundo, soçobrar. Nietzsche
brinca com essa peculiaridade do alemão e tenta mostrar como a Ida aos
fundamentos causa o perecimento.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 505

20 (77)
minha felicidade lhes dói:
para estes invejosos, minha felicidade se transforma em
sombra:
eles sentem calafrios: olham para o verde-

20 (78)
Dias solitários,
vós quereis andar com pas:sos corajosos!

20 (79)
e só se eu me tomar um fardo para mim mesmo,
vós vos tomareis pesados para mim!

20 (80)
Desconfortável
como toda virtude

20 (81)
um prisioneiro, que o mais duro destino traçou:
trabalhar curvado,
trabalhar cm poços escuro.se úmidos:
um erudito

20 (82)
para onde ele foi? Quem o sabe?
mas 6 certo que ele pereceu.
Uma estrela se apaga no espaço deserto:
deserto se tomou o espaço...

20 (83)
ainda provoca embriaguez a nuvem que traz a tempestade:
mas já pende
brilhante e com um peso silencioso -
a riqueza de Zaratustra sobre os campos.
506 FRIEDRICH NIETZSCHE

20 (84)
só isto redime de todo sofrimento -
escolha, então:
a morte rápida
ou o longo amor.

20 (85)
por novos tesouros cavamos,
nós, os novos subterrâneos: ("insaciáveis")
ímpio parecia aos antigos -outrora
perturbar as entranhas da terra em busca de tesouros;
hoje há tais impiedades:
vós não ouvis o barulho <de todas as profundas dores de
estômago?

20 (86)
tu te tomas absurdo,
tu te tomas virtuoso

20 (87)
a sagrada doença,
a fé

20 (88)
tu és forte?
forte como deus? forte como Deus?
tu és orgulhoso?
Orgulhoso o suficiente a :ponto de não saber se envergo-
nhar de tua vaidade?

20 (89)
eles criaram seu Deus a partir do nada:
que espanto: agora ele se tomou para eles um nada -

20 (90)
um erudito em coisas antigas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 507

um artesanato de coveiros.,
uma vida entre caixões e serragens

20 (91)
superacelerado
como macacos-aranha saltitantes

20 (92)
ai estão eles,
os pesados gatos de granito,
os valores de tempos imemoriais:
ai de nós! como é que tu queres derrubá-los?

20 (93)
vosso sentido é um contrassenso,
vosso chiste é uma loucura repleta de senões

20 (94)
aplicado, confiável:
clara como ouro desponta para mim cada dia
do mesmo modo.

20 (95)
cheio de profundas desconfianças,
coberto por musgos,
solitário,
com uma longa vontade,
de todos os cobiçosos estrangeiro,
um silencioso

20 (96)
ele se agacha, ele espreita:
ele já não consegue mais se colocar em posição ereta:
ele se fundiu com seu túmulo,
este espírito fundido:
como é que ele poderia um dia ressuscitar?
508 FRIEDRICH NIETZSCHE
......................................................................................... ......

20 (97)
tu és tão curioso?
tu consegues ver para além da esquina?
para ver assim, é preciso rer olhos por detrâs da cabeça.

20 (98)
como são frios estes eruditos!
Que um raio caia em seus pratos!
Que eles aprendam a comer fogo!

20 (99)
Gatos rabugentos,
com amarradas patas,
se sentam ai
e olham com veneno.

20 (100)
pelo que ele se empenhou a panir de sua altura?
o que o seduziu?
a compaixão por tudo o que é baixo o seduziu:
agora ele está aí, destruido, inútil, frio -

20 (101)
Varejeiras de papel
leitores de um dia

20 (102)
um lobo mesmo testemunhou ao meu favor
e disse: "tu uivas melhor do que nós mesmos, os lobos"

20 (103)
tu viste melhor do que qualquer vidente algo mais negro e
mais tcrrlvel:
nenhum sábio atravessou até hoje a volúpia do inferno.

20 (104)
com novas noites tu te envolveste,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 509

novos desertos descobriu a tua pata de leão

20 (105)
nesta beleza de pedra
refresca-se meu caloroso coração

20 (106)
por uma nova felicidade
torturado

20 (107)
muito além, no mar do futuro
lanço por sobre a minha cabeça o anzol

20 (108)
Cava, verme!

20 (109)
sou um daqueles pelos quais se prestam juramentos:
prometa-me isto!

20(110)
não que tu tenhas derrubado os !dolos:
mas o fato de tu teres derrubado em ti o idólatra,
este foi o teu ato de coragem

20(111)
o meu para além da felicidade!
aquilo que a felicidade é hoje para mim
lança sombras em sua luz

20 (112)
ser culpado com a maior culpa,
- todas as virtudes devem ainda
diante de minha culpa se ajoelhar
510 FRIEDRICH NI ETZSCHE

20(113)
iludir-
isto na guerra é tudo.
A pele da raposa:
Ela é uma couraça secreta

20 (114)
Fama
não reconhecida cedo demais:
alguém que economizou sua fama

20(115)
para tal cobiça
não é esta terra pequena demais?

20 (116)
astócia é melhor do que violência?

20(117)
De tudo me desfiz
todas as minhas posses e bens:
nada mais me restou
senão tu, grande esperançai

20 (118)
"não se vence em nada sem ira"

20 (119)
onde há perigo,
estou presente,
ai cresço da terra

20 (120)
assim fala todo general:
"não dê paz nem ao vencedor
nem ao vencido!"
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) Sll

20 (121)
a grande hora chega,
o perigo dos perigos:
minha alma se aquieta...

20 (122)
quem é que poderia te dar razão?
Por isso, toma a tua razão!

20 (123)
não com suas horas e grandes tolices:
mas foi com sua perfeição que sofri, quando
mais sofri com o homem

20 (124)
Ruí.nas de estrelas:
A, pª-!tir dess;i.s ruínas fol'!l!o me11 mundo

20 (125)
junto a estas ideias
traço todo o meu futuro

20 (126)
o que acontece? desaparece o mar?
Não, minha terra cresce!
Um novo ardor ela eleva!

20 ( 127)
wn pensamento,
agora ainda quente-fluido, lava:
mas aquela lava cria
em tomo de si mesma uma cidade,
todo pensamento se oprime
por fim com "leis"

20 (128)
quando nenhuma nova voz mais falava,
512 FRIEDRICH NIETZSCHE

fiz com velhas palavras


uma lei:
onde a vida se enrijece, se encastela a lei.

20 (129)
com isto comecei:
desprendi a compaixão comigo mesmo!

20 (130)
vosso falso amor
em relação ao passado,
um amor de coveiro -
ele é um roubo da vida,
vós o cindis do futuro -

20 ( 131)
a pior objeção
escondo de vós - a vida se toma entediante:
joga-a fora, para que ela se torne uma vez mais saborosa
para vós

20 (132)
esta serena profundidade!
Aquilo que um dia se chamou estrela,
transformou-se em mancha.

20 (133)
Este extremo obstáculo,
este pensamento dos pensamentos,
quem o criou para si!
A própria vida o criou para si
seu extremo obstáculo:
para além de seu próprio pensamento ela salta agora

20 (134)
Seres fanáticos e crepusculares,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 513

E tudo aquilo que entre a tarde e a noite


se arrasta, se esgueira e se encontra parado com pernas
aleijadas.

20 (135)
eles mascam seixo
eles deitam sobre a barriga
diante de coisas pequenas e redondas;
eles veneram tudo o que não tomba -
estes derradeiros idólatras!
crentes!

20 (136)
o que não se tem,
mas é nccessârio,
é preciso que se tome:
foi assim que tomei para mim uma boa consciência.
20 (137)
secretamente queimado,
não para a sua fé,
muito mais para que não tenha mais
coragem para fé alguma

20 (138)
aquilo que à vossa volta habita
logo mora dentro de vós:
onde quer que tu por longo tempo te assentes,
ai crescem hábitos.

20 (139)
secas cabeceiras de rios,
desidratadas e a.renosas almas

20 (140)
obstinados espíritos,
finos, mesquinhos
514 FRIEDRICH NIETZSCHE

20 (141)
vossa frieza
faz minha lembrança congelar?
Algum dia senti este coração
em mim arder e bater?...

20 (142)
(À noite, céu estrelado)
6, este barulho sepulcral!

20 (143)
em uma escada ampla e lenta
à sua felicidade ascender

20 (144)
por luzes terrenas, pelo reflexo da felicidade alheia
palidamente iluminado,
um verme da lua e da noite

20 (145)
"ama o inimigo,
deixa-te roubar pelo ladrão'':
a mulher ouve isto e - faz isto

20 (146)
nas 12 estrelas de minha virtude: ela tem todas as épocas
do ano

20 (147)
nossa caça à verdade -
será que ela é uma caça à felicidade?

20 (148)
só se permanece bom, quando se esquece.
Crianças que têm uma memória de punições e repreensões
tomam-se pérfidas, dissimuladas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 515

20 (149)
A aurora
com uma fresca inocência
viu isto e desapareceu.
Nuvens tempestuosas vieram depois dela.

20(150)
inquietos, como cavalos:
não oscilam nossas próprias sombras
para cima e para baixo?
as pessoas deviam nos conduzir para o sol,
contra o sol -

20(151)
Verdades para os nossos pés,
Verdades, segundo as quais se pode dançar

20 (152)
Espectros,
pantomimas trágicas,
Sons morais da garganta

20 (153)
Nuvens tempestuosas - o que vos importa!
Para nós, os espíritos livres, airosos e engraçados

20 (154)
sois vós mulheres,
de tal modo que vós estais. dispostas a sofrer
por aquilo que amais?

20 (155)
dito ao ouvido dos preguiçosos:
"quem não tem nada a criar,
qualquer coisa destrói".
516 FRIEORICH NIETZSCHE

20 (156)
Quando o solitário
é tomado pelo grande temor,
quando ele corre e corre
e ele mesmo não sabe: para onde?
quando tempestades atrás dele gritam,
quando o raio contra ele cai,
quando sua caverna com fantasmas
o atemoriza -

20 (157)
sou apenas um fazedor de palavras:
o que importam as palavras!
em que eu importo!

20 (158)
já bem logo
rio uma vez mais:
um inimigo tem
pouco a remediar em mim

20(159)
em um céu encoberto,
quando se lançam
flechas e pensamentos morta.is
contra seu inimigo

20 (160)
baladas perdidas dos sinos como
na floresta

20 (161)
aos corajosos, aos de ânimo alegre,
aos abstinentes
canto esta canção.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 517

20 (162)
Canções de guerra da alma.
O vitorioso
Da sétima solidão.

20 (163)
O caminho para a grandeza
Canções
de Zaratustra

20 (164)
O deus do túmulo.

20 (165)
As canções
de Zaratustra.
Primeira parte:
O caminho da grandeza
De
Fricdrich Nietzsche

20 (166)
As canções de Zaratustra
Primeira parte:
Da pobreza do mais rico
De
Friedrich Nietzsche

20 (167)
O eterno retorno.
Dança e cortejos
de Zaratustra.
De
Friedrich Nietzsche
518 FRIEDRICH NIETZSCHE
················•······························ ·········································.. ·····

20 (168)
As canções
de Zaratustra
Primeira parte:
O caminho até a grandeza
(21 = N VII 4. Outono de 1888)

21 (1)
Teich<Müller>
Cé<ticos> gr<egos>
A<ugust> Müller, o islã

21 (2)
Noites no café Livorno
3 - 5 no café Florio
Não em Roma
não em Lõscber
Não colocar óculos na rua,!
não comprar livro algum!
não se misturar com a mulltidãol
A noite passear pelo Jardim V<a/entino> até o Castelo,
em seguida descer uma vez mais até o fim da piazza Vlu<orio
Emanue/e l> e até o cafo Livornc
no teatro tentar a gall<eria> num<erata> 1

21 (3)
Cap, sobre crença
Cap, sobre Paulo
os meios de tomar doente
os meios de enlouquecer

21 (4)
não escrever carta alguma!
não ler livro algum!
levar alguma coisa para ler no Café !
Caderno de anotações!

21 (5)
Beber água ,
520 FRIEDRICH NIETZSCHE

Nunca bebidas alcoólicas.


De tempos em tempos (ruiba<r>bo)
De manhã um copo de chá: deixar resfriar!
à noite algo mais quente!
no teatro galér<ie> posto numer<ato>
não óculos na rua
não se misturar com a massa!
não para Lõscher
não para Roma!
não escrever cartas
de noite roupas quentes!

21 (6)
ó, que boa ação é um judeu entre as mulas alemãs!. .. Esse
fato é subestimado pelos senhores antissemitas. O que distingue pro-
priamente um judeu de um antissemita: o judeu sabe que ele mente
quando mente: o antissemita não sabe que ele mente sempre -

21 (7)
Não é raro ver hoje homens jovens de uma procedência
respeitável desaparecer em movimentos inteiramente amblguos:
eles não souberam durante muito tempo dar sentido às suas vidas
- um sentido qualquer se toma por fim para eles uma necessida-
de quase tirânica. Finalmente, decide o acaso: eles decaem sob o
poder de um partido, que possui um "sentido", contra o qual não
protesta no fundo apenas seu gosto, mas também seu olfato -
contra o qual não protesta no fundo apenas o gosto, mas
também o olfato; os antissemitas, por exemplo: só porque os an-
tissemitas têm uma meta, que é palpável até a sem-vergonhice:
o dinheiro judeu
não sabem dar nenhum sentido à sua vida e decaem, por
fim, sob o poder de um partido que tem um sentido; os antisse-
mitas, por exemplo, cuja meta é palpável até a sem-vergonhice:
o dinheiro judeu
eles se tomam, por exemplo, antissemitas, simplesmente
porque os antissemitas possuem uma meta, que é palpável até as
raias da sem-vergonhice - o dinheiro judeu
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 521

Definição do antissemita: inveja, ressentimenl, fúria im-


potente como leitmotiv no instinto: a pretensão do "escolhido";
o autoengodo moral perfeito - esse autoengodo tem a virtude e
todas as grandes palavras constantemente na boca. Isto como um
sinal típico: eles não notam nem mesmo a quem se assemelham
com isto a ponto de se tomarem indistintos? Um antissemita é
um judeu invejoso, isto é, extremamente estúpido - -

21 (8)
Ouso indicar, a.inda, um proprium de minha vida, sobretu-
do porque ela mesma é quase o proprium. Tenho algo que deno-
mino minhas narinas internas. Em todo e qualquer contato com
os homens, a primeira coisa que se revela para mim é o grau do
asseio interno (---) - sinto particularmente o cheiro das "belas
almas" como particularmente impuras. Como alguém se relacio-
na consigo, se ele se deixa enganar sobre si, se ele suporta lidar
consigo de maneira inequivoca - se ele se suporta ou se ele tem
necessidade de um "ideal"... O idealista me cheira mal...
Gostaria de poder ousar citar o nome de um erudito de ori-
gem judaica que tenha me dado por meio de uma frieza e uma
clareza contra si que se tomaram instintivas a qualquer momento
um sentimento profundo de beleza, de pureza no meu sentido:
ele não esqueceu nenhum instante, ele nunca foi outro, ele não
se perdeu nem diante de testemunhas nem sem testemunhas.
Para tanto não faz parte apenas um hábito perfeito de dureza e de
franqueza em relação a si mesmo; pertence também uma grande
força de resistência, para que seja possivel não se estragar sob
a influência da sociedade, dos livros ou do acaso. Do mesmo
modo, também é um sinal de força como - - -
Quase todos os alemães que conheço se mostram para mini
como o oposto em relação ao tipo puro descrito; em particular, os
senhores antissemitas, que sinto como(-) par excellence. Maus
instintos, uma ambição absurda, a vaidade, (- - - ) e, neste caso,
a atitude dos "valores mais elevados", do "idealismo"...
(22 = W li 8b. Setembro-Outubro de 1888)

22 (1)
Observação marginal sobre uma niaiserie anglaise. - "O
que tu não queres que façam contigo, tu não deves fazer com
os outros." Isso é considerado uma sabedoria; isso é considera-
do uma astúcia; isso é considerado como fundamento da moral
- como "sentença dourada". John Stuart Mil! e tantos outros:
quem não acredita nisso entre os ingleses... Mas a sentença
não resiste ao mais simples ataque. O cálculo "não faça nada
que não deve ser feito a ti mesmo" proíbe ações em virtude de
suas consequências nocivas: o pensamento de fundo é o de que
uma ação é sempre retribuída .. Mas o que acontece, então, se
alguém, com o "principe" na mão, dissesse que "precisamente
tais ações seria preciso realizar para que outros não o façam
antes de nós - para que coloquemos outros fora de condições
de fazê-lo conosco? - Por outro lado: pensemos em um cor-
so, para o qual sua honra ordena a vendei/a. Ele também não
deseja nenhuma bala de fuzil no corpo: mas a perspectiva de
tal bala, a probabilidade de tal "bala não o impede de satisfazer
sua honra ... E em todas as ações decentes não somos justamen•
te intencionalmente indiferentes em relação a tudo aquilo que
advém dai para nós? Evitar uma ação que teria consequências
nocivas para nós - esta seria uma proibição para ações decen-
tes em geral...
Em contrapartida, a sentc;nça é valiosa, porque revela um
tipo de homem: trata-se do instinto de rebanho, que se formula
com ele - se é igual, se considera como igual: como eu para ti, tu
para mim - Aqui se acredita efetivamente em uma equivalência
das a~es, que simplesmente não ocorre cm todas as relações re-
ais. Nem toda ação pode ser retribuída: entre "indivíduos" reais e
efetivos não há nenhuma ação igual, consequentemente também
não há nenhuma "retribuição" ... Se faço algo, então fica com-
pletamente longe de mim a idei,a de que algo desse gênero seria
efetivamente possivcl para um homem qualquer: isso me pcrtcn-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 523

ce... Não se pode me pagar nada de volta - com isso, estar-se-ia


cometendo sempre "outra" ação contra mim -

22 (2)
Capítulo sobre Paulo
a família judaica da diáspora
o ºamor"
a arranjo "livre" de Jesus
totalmente judaico-eclesiástico
a) morte por nossos pecados
b) o "redentor" é imortal
o profundo ódio contra a cultura e o conhecimento - já
judeu (Gêncsis 52
a alma "im.ortal psicologia dos "moribundos" 18
o padre como anjo mau 1O
tudo aquilo que é estragado pela Igreja
1) a ascese
2) o jejum 66
3) o "monastério"
4) as festas
5) a caridade
amor bem heroísmo 243
Psicologia dos primeiros cristãos "não julga" 11
197 63 Protestante 184
grande mentira da
história 17

22 (3)
Livro 2 É preciso demonstrar que o modo niilista de pen-
samento é a consequência da crença na moral e
nos valores sacerdotais: se as pessoas estabele-
ceram o valor de maneira falsa, então parece, no
momento em que se percebe a sua falsidade, que
o mundo está desvalorizado...
Livro 3 a moral com vistas ao surgimento, aos meios, à
intenção é o fato imoral da história ... sua autorre-
524 FRIEDRICH NIETZSCHE

furação, na medida em que ela, para manter seus


valores, precisa praticar os valores contrários...

22 (4)
Paulo: ele busca poder contra o judaísmo reinante - seu
movimento é fraco demais ... Transvaloração do conceito "judeu":
a "raça" é colocada de lado-: mas isso significa negar o funda-
mento: o "mártir", o fanático, o valor de toda crença/orle...
Nunca admitido que os efeitos humanitários falam em fa.
vor do cristianismo...
O cristianismo é afonna decadente do mundo antigo em uma
max.imamente profunda impotência: de tal modo que as camadas e
as necessidades mais doentes e menos saudáveis ascendem.

22 (5)
Consequentemente, outros instintos precisam ganhar o
primeiro plano, a fim de criar uma unidade, um poder que se
defende - em suma, foi necessária uma espécie de situação de
emergência, tal como aquela, a partir da qual os judeus tinham
conquistado o seu instinto de autoconservação ...
Inestimáveis são neste contexto as perseguições aos cris-
tãos: - a comunhão no perigo, as conversões em massa como o
único meio de colocar um fim nas perseguições privadas (- as
pessoas lidam de maneira tão leviana quanto possível com o con-
ceito de "conversão")

22 (6)
Martelo para os ídolos
Ou:
Serenidades
de um psicólogo
Martelo para os ídolos.
Ou:
Como um psicólogo formula questões.
De
Friedrich Nietzsche.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 525

Martelo para os ídolos.


Ócio
de um psicólogo.
De
Friedrich Nietzsche.
Martelo para os ídolos.
Ou:
Como um psicólogo formula questões.
De
Friedrich Nietzsche
Leipzig,
Editora de C. G. Naumann
1889.
Crepúsculo dos ídolos.
Ou:
Como filosofar com o martelo.
De
Friedrich Nietzsche.

22 (7)
Experimento o interpretar ã moda cristã como umaprofanda
leviandade. Interpretar a sua vida tal como o faz um suábio cri~-tão
me parece completamente indecente - é necessária uma falta da
grande retidão para não descobrir (- - - ). Interpretar algo - para
além do fato de que se trata de llllll artificio mesquinho - , quando
a científicidade não conduz a consciência, é sempre um retrocesso
de habilidade - para não explicar a sua vida de maneira fraca eco-
varde, insípida, de um modo cristão, tal como é possível em regi-
ões atrasadas, por exemplo, na Suábia; o que ficou para trás ai foi a
capacidade de prestar contas... n,ão o "espirito": pois não é preciso
nenhuma argúcia para perceber o "engodo" que se empreende aí

22 (8)
Uma crença, que se apoia em livros sagrados, que ninguém
considera como livros, os livros comun,icados por meio da revela-
ção para aqueles que conhecem a verdade como algo, que é dado,
526 FRIEDRICH NIETZSCHE

que se acha fume, não como algo pelo que(- - - ) e com uma au-
tossubjugação e uma autodomesticação indescritíveis, uma crença
que nunca tem a vontade de compreender seus livros sagnidos, que
(---) é assegurada pela "revelação"... seu estado típico- --

22 (9)
Não se devem perdoar jamais os alemães por terem im-
pedido que o Renascimento chegasse à sua meta, à sua vitória
- a vitória sobre o cristianismo. A Reforma alemã é sua obscura
maldição ... E ainda por três vezes essa raça infeliz se colocou
no meio das coisas para obstruir o curso da cultura - a filosofia
alemã, a guerra pela liberdade, a fundação do império no final do
século XlX - puras e grandes fatalidades da cultura!

22 (10)
57. Cap.) a finalidade sagrada: a ideia do Manu cm sua
mentira,
58. Cap.) nunca se devem admitir efeitos humanitários do
cristianismo, ele estragou tudo - a perda terrível
pela qual passaram todas as coisas valiosas, na
medida em que se dissipou a seriedade com as
coisas imaginárias, com as coisas nocivas; na
medida em que foi só na metade do século XIX
que as questões: relativas à alimentação, habita-
ção, saúde passaram a ser levadas a sério
59. Cap.) a grande tentativa dos valores contràrios - a mis-
são dos alemães
60. Cap.) minhas exigências
1) Deve-se evitar a lida com aqueles que continuam agora
como antes cristãos - e por razões de pureza.
2) Considerados os casos no quais o cristianismo é, eviden-
temente, mera consequência e sintoma de uma fraqueza
dos nervos, deve-se evitar com todos os meios que se
seja contaminado por tais rcba.nhos.
3) O fato de a Blblia ser um livro perigoso, de se precisar
aprender a ter cuidado com ele - de ele nilo poder ser
simplesmente dado nas mãos das gerações imaturas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 527

4) O fato de se precisar considerar e tratar os padres como


uma espécie de Tschandala
5) Purificar todos os lugares, instituições, educação da
mancha do padre
6) "Redentores" fixos e sagrados
7) Datação temporal

22(11)
Vivenciei casos nos quais homens jovens de uma ori-
gem respeitável, que não conseguem dar durante muito tempo
uma meta às suas vidas, desaparecem por fim claramente em
sujos movimentos - só porque esses movimentos lhes ofere-
cem uma meta... Alguns, por exemplo, tornam-se até mesmo
antissemitas...

22 (12)
58. O que se deve ao cristianismo
a perda terrível, porque tudo o que tem valor, tudo o que
é impor/ante em uma posição hierárquica de primeiro nível não
foi levado a sério...
- agora, começamos a levar a sério a saúde, a vestimenta,
a alimentação, a habitação ...
a dissipação de toda grande paixão, de todo entusiasmo, de
toda profundeza e fineza do espírito

22 (13)
Do homem superior.
Ou:
a tentação de Zaratustra.
A tentação de Zaratustra.
Ou:
para quem a compaixão seria um pecado.
A tentação de Zaratustra.
Ou:
como a compaixão :se toma um pecado.
para quem a compaixão se tomaria um pecado.
528 fRIEDRICH NI ETZSCHE

22 (14)
Transvaloraçào de todos os valores.
O Anticristo. Tentativa de uma crítica ao cristianismo.
O imoralista. Crítica ao tipo mais fatídico de ignorância,
crítica à moral.
Nós que dizemos sim. Critica à filosofia como um movi-
mento niilista.
Dioniso. Filosofia do eterno retomo.
Os cantos de Zaratustra
A partir
das sete solidões.

22 (15)
A tentação d'e Zaratustra.
Ou:
Junto a quem a compaixão se tomaria um pecado.
De
Friedrich Nietzsche.

22 (16)
O caso Wagner. Um problema para músicos.
Crepúsculo dos ídolos. Ou: como se filosofa com o martelo.
A tentação de Zaratustra., Ou: junto a quem a compaixão
se tomaria um pecado.

22 (17)
a ca1isa/idade do agir
as finalidades estabelecidas de maneira falsa:
Felicidade a) própria b) alheia
"egoísta" "não egoísta"
(- a mais profunda falta de automeditação em Schope-
nhauer, que acrescenta ainda
c) sofrimento alheio d) sofrimento próprio
: o que não passa, naturalmente, de especificações do con-
ceito da "felicidade própria" (a)
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 529

Se a felicidade é a finalidade da ação, então a insatisfação


precisa anteceder ao agir: falsificação pessimista do estado de
fato. O desprazer como motivação do agir.
Minha teoria: prazer, desprazer, "vontade", "finalidade"
são completamente apenas fenômenos paralelos - nunca causais.
Toda a assim chamada causalidade "espiritual" é uma ficção.

Causalidade do agir
Desprazer e prazer - motivos
A vo111ade como causal no agir
Suposto: que toda a pré-história reside na esfera da co11s-
ciêllcia
Que a causalidade propriamente dita é uma causalidade
espiritual...
Que a "alma" sabe o que ela quer e que o valor do ato vo-
litivo é co11dicio11ado por seu saber...
Que a alma é livre da vontade e, consequentemente - - -

22 (18)
As ações ruins, as ações d.os décadents, são caracterizadas
precisamente por sua falta de "egoísmo" - elas 11ão estilo dirigi-
das para a derradeira utilidade
Psicologia das assim chamadas ações 11ão egoístas
- cm verdade, elas são reguladas da maneira mais rigorosa
possível pelo instinto de autoconservação
o inverso é o caso nas assim chamadas ações egoístas :
aqui falta precisamente o instinto diretriz - a profunda
consciência do que é útil e nocivo
Toda força, saúde, vitalidade aponta da tensão ampliada
em direção ao instinto de comando do si mesmo
todo se tomar mais relaxa.do é décade11ce

22 (19)
Teses: não há ações não egoístas
: também não hâ nenhum agir egoísta
: felicidade não é nunca finalidade do agir, desprazer nunca
causa
530 FRIEDRICH NI ETZSCHE

(- o desprazer poderia ser grande demais: se o mecanismo


não fosse livre, então não haveria apesar de tudo nenhuma ação.
Prazer e desprazer não são nenhuma causa, eles colocam
apenas algo em movimento - eles o acompanham ...
Em que medida tudo o que é baixo, vicioso. brotai, astuta-
mente refinado é apenas sintomãtico da degenerescência
dos instintos de rebanho
Crítica às simpatias
Crítica aos sentimentos próprios
Por que verdade?

22 (20)
Falsa consequência da crença no "ego"
O homem aspira à felicidade: mas não há nesse sentido
nenhuma unidade "que aspira" ...
e aquilo ao que todas as unidades aspiram não é de maneira
alguma à felicidade - felicidade é um fenômeno paralelo - cm
meio à dissolução de sua força: aquilo que impele à ação não é
a necessidade, mas a plenitude, que se descarrega em direção a
um estímulo
não o "desprazer" é o pressuposto da atividade, aquela ten-
são é um estimulo maior...
contra a teoria pessimista, como se todo agir confluísse
para um querer se livrar de uma insatisfação, como se prazer
fosse em si meta de um agir qualquer...

22 (21)
não há de maneira alguma ações "altruístas".
Ações, nas quais o individuo se toma infiel em relação aos
seus próprios instintos e escolhe de maneira desvantajosa, são
sinais da décadence
(- uma grande quantidade dos mais famosos dentre os as-
sim chamados ''santos" é simplcsment.e levada por sua falta de
"egoísmo" a ser decadente
as ações do amor, do "heroísmo" são tão pouco "altruís-
tas" que elas são precisamente uma prova de um si mesmo muito
fort.e e rico
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 531

- o poder ceder não se encontra à disposição dos "po-


bres"... assim como também não a grande temeridade e o prazer
na aventura, que faz parte do heroísmo
não "se sacrificar'' como meta, mas impor metas, com
cujas consequências não se está preocupado por uma coragem
excessiva e por uma confiança em si... ante tais consequências se
é antes indiferente ...

22 (22)
a) a falsa ca11salidade
Prazer desprazer vontade fmalidade "espírito"
b) a falsa unidade "alma", "eu", "pessoa"
se possível "pessoa imortal"
- com isto, é dado um falso altruísmo
'*eu" e '*outros"
(egoísmo - altruísmo)
"sujeito" "objeto"
c) o completo desprezo do corpo não deixa a pessoa ver o
tipo perfeito, maximamente minucioso de seu jogo orgâ-
nico para a autoconservação e p11rificação da esp6cie ca-
racterística do gênero: - cm outras palavras, o valor infi-
nito da pessoa parrie11lar como suporte do processo vital
e, conseq11entemente, seu mais elevado direito ao egoís-
mo - como toda a sua impossibilidade de não o ser...
De fato, tudo o que é ":não egoísta" é um fenômeno da
décadence.

22 (23)
A proibição bíblica "tu não deves matar" é uma ingenui-
dade em comparação a minha proibição aos décadents: "vós
não deveis vos procriar!" - trata-se de algo ainda pior, trata-se
da contradição em relação àquela ... A lei suprema da vida, for-
mulada por Zaratustra, exige que não se tenha nenhuma com-
paixão com todo o rebotalho e todos os dejetos da vida - que se
aniquile aquilo que seria para a vida ascendente mera obstru-
ção, veneno, conspiração, hostilidade subterrânea - Cristianis-
532 fRIEDRICH NI ETZSCHE

mo em uma palavra... é imoral 1110 sentid.o mais profundo dizer:


tu não deves matar.. .

22 (24)
1. A redenção do cristianismo: o Anticristo
II. da moral: o imoralista
HI. da "verdade": o espírito livre.
IV. do niilismo:
o niilismo como a consequência necessária do cristianis-
mo, da moral e do conceito de verdade da filosofia.
Os sinais do niilismo ...
entendo pela "liberdade do espirito" algo muito determina-
do: ser cem vezes superior aos filósofos e aos outros discípulos
da "verdade" por meio do rigor em relação a si mesmo, por meio da
pureza e da coragem, por meio da vontade incondicionada de di-
zer não, onde o não é perigoso - trato os filósofos até aqui como
liberti11os desprezíveis sob a capa da fêmea "verdade".

22 (25)
O imoralista.
De acordo com a proveniência, a moral é: soma das condi-
ções de conservação de um tipo pobre, meio ou totalmente des-
valido: esse tipo de homem pode ser o "grande número": - por
isso, o seu perigo.
Critica aos "aprimoradores"
De acordo com a sua utilização, ela é o meio principal do
parasitismo sacerdotal na luta com osfortes, com os que afirmam
a vida - eles conquistam "o grande número" (os mai:v baixos, os
sofredores, em todas as classes - as vitimas de todos os tipos -
uma espécie de levante conjunto contra o pequeno número dos
homens de boa cepa ...
Critica aos "bo11s"
De acordo com suas consequências, a radical falsidade e
degradação mesmo daquelas camadas excepcio11ais: que, por
fim, apenas para se manterem, não podem ser mais verdadeiras
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 533

em relação a si mesmas em ponto algum: a completa corrupção


psícológica com o que se segue daí: - - -

22 (26)
O artificio de minha vida encontra-se na modéstia - na
vontade, na força para se tomar pequeno... Não se apequenar:
mas, por assim dizer, esquecer algo, redimir algo de si, criar uma
distância em si - expresso de outro modo: na consciência da li-
berdade completa (- - - ) a tarefa, a vontade, o instinto impiedoso
que ela condiciona...
O artificio de cujo auxilio muitas coisas pobres, fracas, so-
fredoras em mim se valeram para não sucumbirem junto a uma
grande tarefa foi: - por assim dizer me decompor-e reter a outra
metade para a amistosidade, a filantropia, a paciência, a acessibi-
lidade para tudo o que hã de pequeno e ínfimo. É esse também o
lado no qual me mostro refinado e astuto nas coisas do desfrute
- um bom leitor, um bom ouvinte... Aqui também me agraciam
coisas que talvez exijam ainda mais uma grande liberalidade nos
bens do que uma inteligência mais fina; por exemplo, Petronius,
mesmo Heinrich Heine, Offenbach com seus truques imortais...

22 (27)
Nunca sofri com o fato de nunca ter sido honrado - vejo
uma vantagem nisso. Por outro lado, vivenciei tantas distin-
ções e honras cm minha vida, desde a mais tenra juventude,
que eu me ---

22 (28)
A arte de me cindir - de me manter cindido, de esquecer
por anos a fio uma metade ...
Retirar vantagens de minha doença: a descarga da grande
tensão
O amoroso aprendizado da vingança pelo pequeno.
Seria impossível, para mim, explicar o que considero o
pior caso de minha vida - não soaria apenas paradoxal, soaria
ingrato, baixo.
534 fRIEORICH NI ETZSCHE

O tipo de bem-querer que experimentei exerceu em muitos


casos sobre mim wna impressão pior do que qualquer tipo de per-
fidia e de hostilidade. Há tan.t a importunidade, tanta falta de senti-
mento de distância na crença em poder fazer bem: com frequência,
concebi o querer-fazer-bem sob o conceito genérico da brutalidade
Por que eu nunca sofri por ser "desconhecido", por não
ser lido
Ainda em meu 45° aniversário, os eruditos de Basileia me
deram a entender com toda a benevolência que a forma literária
de meus escritos seria a razão pela qual as pessoas não me leem;
eu deveria escrever de maneira diversa.

22 (29}
Nunca me livrei da mais imediata proximidade de um senti-
mento de distância que poderia ser por fim fisiológico: sinto a dis-
tância de ser diferente em todos os sentidos, por assim dizer imistu-
rável e superior em comparação a todo e qualquer elemento turvo
Minha prerrogativa, meu primado ante o homem em geral,
é ter vivenciado uma profusão d os estados mais elevados e mais
novos, estados em relação aos quais seria um cinismo tentar es-
tabelecer uma divisão entre espí:rito e alma. Sem dúvida alguma,
é preciso ser filósofo, ser profundo até(-}, para sair dessa pleni-
tude lurrunosa: mas a correção do sentimento, a longa tirania de
uma grande tarefa são as condições pr6vias ainda imprescindí-
veis para tanto.
(23 = MP XVI 4d. MP XV1ll7. WII 7b. Zlllb. WII 6c.
Outubro de 1888)

23 (!)
Também 11m mandamento do amor aos homens. - Há ca-
sos nos quais gerar uma criança seria um crime: em doentes
crônicos c neurastênicos de terceiro grau. O que se tem de fazer
ai? - Pode-se tentar, de qualquer modo, incentivar tais homens
à castidade, por exemplo, com o auxilio da música de Parsifal:
o próprio Parsifal, esse idiota típico, tinha pouquissimas razões
para procriar. O terrível é que certa incapacidade de se "domi-
nar" (- de não reagir a estímulos, a estímulos sexuais, por me-
nores que eles sejam) faz parte precisamente das consequências
regulares do esgotamento conjunto. As pessoas errariam no cál-
culo se imaginassem, por exemplo, um Leopardi como casto.
O padre, o moralista jogam aí um jogo perdido; ainda se age
melhor ao enviá-los para a farmácia. Por fim, a sociedade tem
de cumprir aqui um dever: hã poucas exigências de tal modo ur-
gentes e principiais a serem feitas para eles. A sociedade, como
grande mandatária da vida, tem de responsabilizar cada vida
equivocada diante da própria vida - ela também precisa expiar
por isto: consequentemente, ela deve impedir que isso aconteça.
Em inúmeros casos, a sociedade deve evitar a procriação: para
tanto, tem o direito de, sem levar em conta a proveniência, o
nível social e o espirita, mant,er prontas as medidas coerciti-
vas mais duras, e, sob certas circunstâncias, usar até mesmo a
castração. - A proibição bíblica "tu não deves matar!" é uma
ingenuidade em comparação à seriedade da proibição oriunda
da vida para os décadents: "vós não deveis procriar"... A vida
mesma não reconhece nenhuma solidariedade, nenhum "direito
igual" entre partes saudáveis e partes degeneradas de um orga-
nismo: estas últimas partes precisam ser extirpadas - ou o todo
perece. - Compaixão com os décadents, díreitos iguais mesmo
para os desvalidos - seria a ma.is profunda imoralidade, seria a
própria antinatureza como moral!
536 FRIEORICH NIETZSCHE

23 (2)
Para a razão da vida. - Uma castidade relativa, uma pre-
caução principia] e astuta diante de um erotismo mesmo em pen-
samentos, pode fazer parte da grande razão da vida mesmo no
caso das naturezas ricamente dotadas e de naturezas totais. O
princípio vale em particular para os artistas, ele faz parte de sua
melhor sabedoria da vida. Vozes completamente acima de qual-
quer suspeita jã se levantaram nesse sentido: cito Stendhal, Th.
Oautier, mesmo Flaubert. Seguindo sua espécie, o artista é neces-
sariamente um homem sensível, efetivamente excitâvel e acessí-
vel em todos os sentidos, ele é alguém que vai jâ bem de longe ao
encontro do estímulo, da sugestão. Apesar disso, na média, sob o
peso violento de sua tarefa, de sua vontade de maestria, ele é de
fato um homem moderado, com frequência mesmo um homem
casto. Seu instinto dominante quer que as coisas sejam assim
para ele: esse instinto não permite que ele se dissipe desta ou da-
quela maneira. Traia-se de uma e mesma força que se despende
na concepção artistica e no ato sexual: há apenas uma espécie de
força. Para um artista, é traiçoeiro submeter-se aqui, dissipar-se
aqui: isso revela a falta de instinto, de vontade em geral, isso
pode ser um sinal de décadence - em todo caso, desvaloriza até
certo grau a sua arte. Tomo o caso mais desagradável, o caso
Wagner. - Wagner, sob o encanto daquela sexualidade i.ncrivel-
mente doentia, que foi a maldição de sua vida, sabia bem demais
o que um artista perde ao se ver privado diante de s.i de sua li-
berdade, do respeito por si. Ele é condenado a ser ator. Sua arte
mesma toma-se para ele uma tentativa constante de fuga, o meio
do autoesquecimento, do autoentorpecimento - tal fato transfor-
ma, determina em última instância o caráter de sua arte. Um tal
"homem desprovido de liberdade" tem uma necessidade de um
mundo de haxixe, de atmosferas estranhas, pesadas, envolventes,
de todo tipo de exotismo e de simbolismo do ideal, apenas para
se ver livre alguma vez de sua realidade - ele tem necessidade
da música de Wagner... Em um artista, certo catolicismo do ide-
al, sobretudo, é quase a comprovação de um desprezo por si, de
"lodo": o caso de Baudelaire na França, o caso de Edgar Allan
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 537

Poe na América, o caso de Wagner na Alemanha. -Ainda preciso


dizer que Wagner deve mesmo o seu sucesso à sua sensibilidade?
Que sua música convence os mais baixos instintos a seu favor, a
favor de Wagner? Que aquela atmosfera sagrada de ideal, de um
cat.olicismo de meia pataca, é mais uma arte da sedução? (- ele
permite, sem saber, de maneira inocente, de modo cristão, que
"a magia" atue sobre si...) Quem ousaria proferir a palavra, a
palavra propriamente dita, para os ardores da música de Tristão?
- Visto luvas ao ler a partitura de Tristão... A wagnerianice que
se propaga cada vez mais é uma epidemia mais leve da sensibi-
lidade, que "não sabe disto"; considero indicada toda precaução
contra a música de Wagner. -

23 (3)
Nós, hiperbóreos
l.
Se é que somos lil6sofos, n6s, hiperb6reos, parece em todo
caso que somos filósofos de uma maneira diversa da que se era
out.rora filósofo. Não somos de maneira alguma moralistas ... Não
confiamos em nossos ouvidos, quando os escutamos falar, todos
esses homens de outrora. "Aqui está o caminho para a felicidade"
- com isso, cada um deles salta sobre nós, com uma receita na
mão e um unguento na boca hierática. "Mas o que nos importll a
fclicidad.e?" - perguntamos, mui.to espantados. "Eis aqui o cami-
nho para a felicidade - eles prosseguem, esses diabos vociferantes
sagrados: e eis aqui a virtude, o novo caminho para a felicida-
de!" ... Mas nós vos clamamos, meus senhores! O que nos importa
mesmo a vossa virtude! Para que a nossa gente se coloca, afmal,
de lado? Será que e.les estão se tornando filósofos, rinocerontes,
ursos em hibernação, fantasmas?· Isso não acontece para se verem
livres da virtude e da felicidade? - Por natureza, somos felizes
demais, virtuosos demais, para não encontrarmos ai uma pequena
tentação de nos tornarmos filósofos: ou seja, imoralistas e aven-
t.ureiros ... Temos uma curiosidade própria pelo labirinto, nós nos
empenhamos por travar conhecimento com o senhor Minotauro,
do qual se contam coisas perigosas: o que nos importa vosso cami-
538 FRIEORICH NIETZSCHE

nho ascensional, vosso fio que conduz para fora? Para a felicida-
de e para a virtude? Ele conduz aos senhores, temo ... Os senhores
querem nos salvar com seu fio? - E nós, nós pedimos da maneira
mais insistente possível que os senhores se enforquem com ele!...

2.
Por fim: em que isso nos auxilia! Não resta outro meio
de honrar uma vez mais a filosofia: é preciso enforcar primeiro
os moralistas. Enquanto eles continuarem falando sobre felicida-
de e virtude, só convencerão as velhas senhoras para a filosofia.
Mas os senhores devem olhar dentro de seus olhos, dentro dos
olhos de tod.os esses célebres sábios de milênios: nada mais do
que velhas senhoras, do que velhotas, nada mais do que mãezi-
nhas, para falar como Fausto. "As mães! Mães! Tudo soa tão
aterrador." - Fazemos da filosofia um perigo, transfonnamos seu
conceito, ensinamos a filosofia como um conceito que coloca a
vida em risco: qual seria a melhor fonna de podennos ajudá-la?
- Um conceito sempre será tão valioso para a humanidade quanto
ele lhe custar. Se ninguém hesita em se sacrificar a hecatombes
cm nome do conceito de "Deus", "pátria", "liberdade", se a his-
tória mostra uma grande pressão em tomo desse tipo de sacriflcio
- por meio de que se comprova o primado do conceito de "filoso-
fia" diante de tais valores populares, tais como "Deus", "pátria",
"liberdade", senão por meio do fato de ele ser mais dispendioso
- de advir com ele maiores hecaJtombes?... Transvaloração de to-
dos os valores: isto será dispendioso, eu prometo - - -

3.
Este inicio é suficientemente sereno: envio atrás dele ime-
diatamente a minha seriedade. Com este livro, é declarada guer-
ra à moral - e, de fato, é com o:s moralistas que acabo primeiro.
Já se sabe de que palavra me servi para esta luta, a palavra imo-
ralista; do mesmo modo, já se conhece minha fórmula do "para
além do bem e do mal". Tenho necessidade desses fortes concei-
tos opostos, da força ilumínadora desses contraconceitos, a fim
de lançar luz sobre aquele abismo de leviandade e mentira que se
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 539

chamou até hoje de moral. Os milênios, os povos, os primeiros e


os últimos, os filósofos e as antigas mulheres - neste ponto, todos
eles são dignos uns dos outros. O homem foi até aqui o ser mo-
ral, uma cUiiosidade sem par - e, como ser moral, mais absurdo,
mais vaidoso, mais leviano, mais desvantajoso para si mesmo do
que mesmo o maior desprezador do homem estaria em condições
de sonhar. Moral, a forma mais :pérfida da vontade de mentira, a
Circe propriamente dita da humanidade: aquilo que a estragou.
O que me causa nojo nessa visão não é o erro como erro, não
é a falta milenar de "boa vontade", de cultivo, de decência, de
coragem no plano espiritual: trata-se, antes, da falta de natureza,
trata-se da horrível factualidade de que a antinatUieza mesma foi
louvada com as honras mais elevadas e permaneceu como lei
pendurada acima da humanidad.e... Se profanar nessa medida -
não como particular, não como povo, mas como humanidade!
Para onde isso aponta? - Para o fato de que se ensina a desprezar
os mais baixos instintos da vida, de que se vê o princípio mau na
mais profunda necessidade de que a vida cresça, no egoísmo: que
se vê na meta tlpica do declinio, na contrariedade aos instintos,
na "ausência de si mesmo", na perda da gravidade, na "desperso-
nalização" e no "amor ao próximo" fundamentalmente um valor
mais elevado, o que estou dizendo, o valor em si!

4.
Em contrapartida, o que um imoralista teria o direito de
exigir d.e si? O que eu colocarei para mim como tarefa neste li-
vro? - Talvez também "aprimorar" a humanidade: a saber, re-
dimi-la da moral, sobretudo dos moralistas - trazer para a sua
consciência o seu mais perigoso tipo de ignorância, fa7..er com
que ela conquiste ai uma consciência moral... Reprodução do
egoismo da humanidade! - -

23 (4)
O imoralista
A) Psicologia do bom: um décadent
ou o animal de rebanho
540 FRIEORICH NIETZSCHE

B) sua absoluta nocividade


como forma parasitária ás custas da verdade e do futuro
C) o maquiavelismo dos bons
sua luta pelo poder
seus meios de seduzir
sua astúcia na submissão
por exemplo, diante dos padres
diante dos poderosos
D) "A mulher" no bem
"Bens" como a mais fina astúcia de escravos, portando-
-se por toda parte de maneira respeitosa e, consequente-
mente, acolhendo.
E) Fisiologia dos bons
em que ponto o bom aparece nas familias, nos povos
ao mesmo tempo em que aparecem as neuroses
O tipo oposto: o verdadeiro bem, nobreza, grandeza da
alma, que surge a partir da riqueza, a partir do - - - que não dá
para tomar - que não quer se elevar pelo fato de ser benevolen-
te - a dissipação como tipo dos verdadeiros bens, a riqueza em
termo de pessoa como pressuposto
O conceito de "dever" - uma submissão, consequência da
fraqueza , para não precisar mais questionar e escolher
a fraqueza do animal de rebanho gera uma moral total-
mente semelhante à que se dá com a fraqueza dos décadents
- eles se entendem, eles se unem ...
as grandes religiões da décadence contam sempre com o
apoio por meio dos rebanhos
Falta em si todo elemento doentio do animal de rebanho,
ele é estimavelmente ele mesmo; mas, incapaz de se guiar, ele
precisa de um "pastor" - é isso que compreendem os padres...
O "Estado" niío é Intimo o suficiente, secreto o suficiente,
a "condução da consciência moral" lhe escapa
Em que o animal de rebanho é adoecido pelo padre?
O instinto da décadence no bem
1) a inércia: ele não quer mais se transformar, não quer mais
aprender, ele se assenta como "bela alma" cm si mesmo ...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 18$7-1889 (Vol. VII) 541

2) a incapacidade de resistência: por exemplo, na compai-


xão - ele cede ("indulgente", "tolerante"... "ele compre-
ende tudo")
"Paz e para os homens um bem-estar"
3) ele é atraído por tudo aquilo que é sofredor e desvalido
- ele gosta de "ajudar"
ele é instintivamente uma insUITeição contra os fortes
4) ele carece dos grandes narcóticos - tal como "o ideal",
o "grande homem", o herói, ele se exalta
5) A fraqueza , que se manifesta no temor ante os afetos,
ante a vontade forte, ante o sim e o não: ele é adorável,
por não precisar ser inintlgo - por não precisar tomar
partido -
6) a fraqueza, que se revela no não-querer-ansiar, por toda
parte onde talvez fosse necessãria resistência ("huma-
nidade")
7) é seduzido por todos os décadenrs: "a cruz", "o amor",
o "santo", a pureza, no fundo conceitos e pessoas pura-
mente perigosos
também a grande falsifi'cação nos ideais
8) O caráter vicioso intelectual
ódio à verdade, porque ela não traz consigo nenhum
belo sentimento
6di o aos seres vcrazcs - - -
o instinto de autoconservaçâo do bom, que sacrifica por si
o futuro da humanidade: no fundo, ele já repugna
à política
a toda e qualquer outra perspectiva em geral
a toda busca, aventuras, achar-se insatisfeito
ele nega metas, tarefas, nas quais não é considerado em
primeiro lugar
ele é impertinente e imodesto como um tipo "supremo" e
não quer apenas falar concomitantemente sobre tudo, mas tarn-
bémjulgar
ele se sente superior àqueles que têm "fraquezas": esses
"fracos" são os fortes do instinto
542 FRIEORICH NIETZSCHE

- do que é também constitutivo a coragem de não se enver-


gonhar de seus instintos:
O bom como parasita. Ele vive às custas da vida:
Como alguém que afasta a realidade por meio da mentira
Como adversãrio dos grandes impulsos instintivos da vida
Como epicurista de uma pequena felicidade, que rejeita a
grande fonna da felicidade como imoral
- como ele não ajuda diretamente e culpa constantemente
equívocos e ilusões, ele perturba toda vida efetiva e a
envenena em geral por meio de sua pretensão de repre-
sentar algo mais elevado
- em sua ilusão de ser mais elevado, ele não aprende, não
se transforma, mas toma partido em favor de si, mesmo
que tenha produzido tão grandes malheurs.21,1)

23 (5)
O imoralista.
1) Tipo do bom (ver as duas próximas páginas)
2) O bom faz a partir de si
uma metafisica
uma psicologia
um caminho para a verdade
uma política
um modo de vida e de educação
3) Resultado: um tipo absolutamente nocivo de homem
//com vistas à verdade, com vistas ao futuro da humani-
dade//
Causa do fato de que somente há 20 anos as coisas im-
portantes passaram a ser consideradas como importantes
4) Problema: o que é propriamente o homem bom?
Primeiro, o fraco: ele quer todos os
homens fracos
o homem Em segundo lugar, o limitado:
ele quer todos os homens

260 N.T.: Em francês no original: Infelicidades.


FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 543

bom como limitados


instinto Em terceiro lugar, o animal de
rebanho, o ser sem direitos
próprios: ele quer todos os
homens como animais
de rebanho.
"O homem bom" abusado, para outras finalidades
ele luta ele é tomado a serviço do
padre, contra os
contra poderosos, contra os fortes e
bem-constituídos
ornai
como instrumento
Direitos tomado a serviço de políticos
revolucionãrios
Liberalmente dos soâalistas, dos homens do
ressentimento
"iguais" contra os dominantes
a 3: o tipo mais nocivo possível de homem
A) Ele inventa ações, que não existem
as não egoistas, as sabrradas
Faculdades que não existem
ºalma,,, "espírito''. "vontade livre"
Seres que não existem
ºsantos'', "Deus", ''anjos"
Uma ordem no acontecimento que não existe
a ordem ética do mundo, com prêmio e punição
- uma aniquilação da causalidade natural
B) com essas invenções ele desvaloriza
1) as próprias ações, as ações egoístas
2) corpo vivo
3) os tipos efetivamente valiosos de homem, os impulsos
valiosos
4) toda a razão no acontecimento - ele impede que apren-
damos com ele, a observação, a ciência, todo progresso
da vida por meio do saber...
544 FRIEORICH NIETZSCHE

23 (6)
1. a falta de desconfiança
a piedade
a submissão à vontade de Deus, "a castidade"
o "bom coração", a "mão auxiliadora" - isso é suficiente...
a seriedade voltada para as coisas superiores; não se po-
dem levar a sério, neste caso, esferas ba.ixas, como o corpo e seu
sentir-se bem
o dever: tem-se de produzir sua culpabilidade -
para além disso, deve-se entregar tudo a Deus -
Pergunto de maneira completamente séria: não descre-
vi, com isso, o homem bom? Não se acredita que esse seja um
homem mais desejáven Alguém gostaria de que as coisas não
fossem assim? Será que as pessoas desejariam algo diverso para
os seus filhos? -
II. Vejamos com atenção como os bons a partir de si
1) fazem uma metafisica
2) uma psicologia
3) uma política
4) um modo de vida e de educação
5) um método da verdade

23 (7)
Minha tese: os homens bons são o tipo mais nocivo de
homem. As pessoas me respondem: "mas só há poucos homens
bons"! - Graças a Deus! Também se dirá: "Não há nenhum homem
totalmente bom" - Tanto melhor! No entanto, sempre insistiria em
que, na medida mesmo cm que um homem é bom, ele é nocivo.
O que fez com que somente há 20 anos tenha-se começado
a levar a sério as primeiras questões da vida? Que se tenha co-
meçado a ver problemas onde se deixava correr tudo outrora de
uma vez por todas?
: a falta de desconfiança
: a inércia, o medo da reflexão
: o conforto subjetivo, que não acha razões para ver pro-
blemas nas coisas
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 545

: a convicção de que um bom coração, uma mão prestati-


va, seria o que hã de mais valioso - de que se precisariam educar
as pessoas para isso
: a submissão - a crença em que tudo estâ em boas mãos ...
: a falsificação da intcrpreta.ção, que reencontra esse "bem"
(Deus) por toda parte
: a crença em que a "salvação da alma", em geral as coisas
morais, estaria cindida de tais questões terrenas: é considerado
algo baixo levar tão a sério o co:rpo e seu bem-estar...
: a veneração ante a proveniência: é preciso negá-la impie-
dosamente ou mesmo exercer uma critica ao tradicional...
Ecco! E e.sse tipo de homem é o tipo mais nocivo possível
de homem

23 (8)
IV. Dioniso
Tipo do legislador

23 (9)
Correndo o risco de dar um chute "bem medido" nos se-
nhores antissemitas, confesso que a arte de mentir, o esticar "in-
consciente" as mãos grandes, muito !,7Jãlldes, o abocanhar de
propriedades alheias, tudo isso se mostrou, para mim, cm todo
antissemita de maneira mais palpável do que em qualquer judeu.
Um antissemita rouba sempre, mente sempre - ele não pode fa.
zcr outra coisa... Pois ele tem(---)... Dever-se-iam processar os
antissemitas, dever-se-ia fazer uma coleta para tanto". - - -

23 (10)
A proibição biblica "tu não deves matar!" é uma ingenui-
dade em comparação à minha proibição aos décadents: "vós não
deveis vos procriar!" - ela é algo ainda pior, ela é a contradi-
ção em relação a mim... A lei s.uprema da vida, formulada pela
primeira vez por Zaratustra, ex igc que não tenhamos nenhuma
compaixão por todo o rebotalho e dejetos da vida, que se aniquile
aquilo que não seria para a vida ascendente senão um mero obs-
546 FRIEORICH NIETZSCHE

táculo, veneno, conspiração, hostil.idade subterrânea - em uma


palavra, cristianismo ... é imoral, é antinatural, no sentido mais
profundo possível, dizer "tu não deves matar!" -
A proibição bíblica "tu não deves matar!" é uma ingenui-
dade em comparação à minha proibição aos décadents: "vós não
deveis vos procriar!" - ela é algo ainda pior... Só há um único
dever contra o rebotalho e o dejeto da vida, aniquilar; ser com-
passivo aqui, querer conservar aqui a todo preço seria a forma
suprema da imoralidade, a antinatureza propriamente dita, a ini-
mizade de morte contra a própria vida. -
A proibição bíblica "tu não deves matar!" é uma ingenuida-
de em comparação à minha proibição aos décadents: "vós não de-
veis vos procriar!" - ela é algo ainda pior... Só há um único dever
contra o rebatalho e o dejeto da vida: não reconhecer nenhuma
solidariedade; ser "humano" aqui, decretar aqui direitos iguais,
seria a forma suprema da antinatureza: antinatureza, a negação
da própria vida. - A própria vida não reconhece nenhuma solida-
riedade entre os membros saudáveis e degradados de um organis-
mo - ela precisa extirpar esses membros, ou o todo perece...
A proibição bíbl.ica "tu não deves matar!" é uma ingenui-
dade em comparação à minha proibição aos décadents: "vós não
deveis vos procriar!" - A própria vida não reconhece nenhuma
solidariedade, nenhuma tentativa de estabelecer "direitos iguais"
entre partes saudáveis e degradadas de um organismo: é preciso
extirpar esses membros degradados ou o todo perece. Compai-
xão com os décadents - essa seria a imoralidade mais profunda,
a antinatureza mesma como moral. -

23 (11)
Longe das rajadas de vento de todo ceticismo, à altura de toda
e qualquer forma de questionamento mais refinada, gordurosa, su-
ábia, com olhos redondos e ela mesma redonda também como uma
maçã, esse tipo de virtude se encontra sentado sobre a base mais
f1J111e que há: sobre a base da burrice - sobre a "crença"...
essa virtude continua acred.itando, ai11da hoje, que tudo
está cm boas mãos, a saber, nas mãos de Deus, quando ela apre-
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 547

senta uma tal posição com aquela segurança modesta, como se


dissesse que dois mais dois é igual a quatro.
A burrice tem suas prerrogativas: uma delas é a virtude ...
A própria burrice se reflete nas coisas - ela chama de o "velho
Deus" essa simplificação feliz de todas as coisas e a sua transfor-
mação na convencionalidade do fraco... Nós, outros, vemos algo
diverso nas coisas - nós tomamos Deus interessante...

23 (12)
Nós somos imoralistas: dizemos isso com orgulho, como
se disséssemos - - - Nós negamos que o homem aspire à feli-
cidade, negamos que a virtude seja o caminho para a felicidade
- negamos que haja ações como as que foram chamadas até aqui
de ações morais, as ações "altruístas" e "não egoístas" em geral.
Em todas as afirmações em relação às quais contrapomos um
não descarado, expressa-se uma afirmação completa e sinistra
(-) sobre os educadores até aqui da humanidade: ---

23 (13)
O espírito livre
Critica da filosofia
como movimento niilista
O imoralista
Critica da moral
Como o tipo mais perigoso de ignodlncia
Dioniso filósofo

23 (14)
Neste dia perfeito, em que tudo se acha maduro, e não ape-
nas as uvas se tomam amarelas, um raio de sol se lançou sobre
minha vida - olhei para trás, olhei para a frente - nunca vi tantas
coisas c coisas tão boas de uma vez. Não foi à toa que tive o direi-
to de sepultar justamente o meu ,44° ano: o que havia nele de vida
está salvo - é imortal. O primeiro livro da transvaloração dos
valores; os primeiros seis cantos de Zaratustra; o Crepúsculo dos
ido/os, minha tentativa de filooofar com o martelo - Tudo isso
548 FRIEDRICH NIETZSCHE

são presentes deste ano, até mes:mo de seus últimos três meses -
como é que poderia não ser grato a toda a minha vida!. ..
E assim conto para mim mesmo minha vida.
Quem tiver uma mlnima ideia de mim adivinhará o fato de
que vivi mais do que qualquer homem. A prova está até mesmo es-
crita em meus livros: os livros vividos linha a linha surgiram de uma
vontade de vida e, com isso, como criação, representam um ingre-
diente efetivo, um mais daquela vida. Um sentimento que se abateu
sobre mim muito frequentemente: exatamente do modo como um
erudito alemão falou certa vez com uma ingenuidade admirável so-
bre si e sobre as suas coisas: todo dia me ttaz mais do que àqueles
foi trazido por toda a sua vida! Algo terrível entre outrdS coisas, não
há dúvida! Mas esta é a mais cxl!rema distinção da vida, o fato de
que ela também nos opõe a sua mais extrema rivalidade...
(24 = W li 9c. D 21. Outu bro-Novembro de 1888)

24 (1)
Ecce homo
Ou:
Por que sei algumas coisas melhor.
De
Fricdrich Nietzsche
a.
- Deter-me-ei em um problema que, ao menos ao que me pa-
rece, possui uma natureza mais séria do que o problema da "exis-
tência de Deus" e outras cristia:nices - falo do problema da ali-
mentação. Trata-se, em suma, da questão: como é que tu tens
de te alimentar, a fim de que possas alcançar o teu maximum
de força., de virtu, de virtude no sentido da razão renascentista?
- Minhas experiências são aqu_i tilo ruins quanto posslvel: fico
espantado de ter chegado tão tarde, neste momento precisamente,
"à razão", tarde demais em certo sentido: e somente a completa
iniquidade de nossa formação alemã explica, para mim, em certa
medida, por que é que cu justamente aqui me achava atrasado
até as raias da "sacralidade". Essa "formação", que nos ensina
a perder de vista fundamentalmente c desde o principio as reali-
dades, para se colocar à caça de metas assim chamadas "ideais"
inteiramente problemáticas, por exemplo, à caça de uma assim
chamada "formação clássica"! - como se não fosse de morrer de
rir colocar juntos na boca os termos "clássico" e "alemão". Pen-
semos simplesmente cm um homem de Leipzig "classicamente
formado"! - De fato, até os meus anos da mais plena maturidade,
sempre comi mal - expresso em termos morais, sempre comi
"de maneira impessoal", "não egoísta", "altruísta": neguei, por
exemplo, por meio da cozinha de Leipzig, a minha "vontade de
vida". Estragar mesmo o estômago com a finalidade de uma ali-
mentação insuficiente - esse problema me parece ser resolvido
de maneira admirável pela dita cozinha de Leipzig. Mas a cozi-
nha alemã em geral - quantas coisas ela não tem há muito tempo
550 FRIEDRICH NIETZSCHE

em sua consciência! A sopa antes do almoço (- nos livros de


receita italianos do século XVI ainda denominada alia tedesca);
as carnes cozidas; os legumes feitos com muita gordura e pesa-
dos; os tipos indigeríveis de pudins. Se acrescentarmos a isso as
necessidades bestiais de repetição por parte do burguês alemão,
então se compreende a origem do "espírito alemão" - ele nasce
de um estômago estragado... Mas também a dieta inglesa, que,
em comparação à alemã, representa um verdadeiro retorno à na-
tureza, quer dizer, ao roast beef, mesmo à razão - se mostra como
profundamente repulsiva para o meu próprio instinto: parece-me
que ela dá ''pés pesados" ao espírito - pés de inglesas... O fato
de as bebidas alcoólicas me serem desfavoráveis, de um copo de
vinho ou cerveja por dia ser para mim completamente suficiente,
para tomar a minha vida, como a de Schopenhauer, um "vale de
lágrimas", foi algo que só compreendi um pouco tarde demais
- tinha vivenciado isso propriamente desde pequeno. Como jo-
vem rapaz, acreditava que beber vinho tanto quanto fumar cigar•
ro seria de início apenas uma futilidade de jovens garotos, mais
tarde um mau hábito. A culpa disso talvez tenha sido do vinho de
Naumburgo. - Para acreditar que o vinho diverte, eu precisaria
ser cristão, quer dizer, eu precisaria acreditar, o que para mim é
um absurdo. De maneira bastante estranha, em meio a uma extre-
ma indisposição causada por doses de álcool fortemente diluídas,
por mais que elas fossem pequenas, sou praticamente insensível
a doses fortes: não há quase como me derrubar com um grogue
do calibre de homens do mar. Escrever um longo ensaio em latim
em urna noite de vigilia, com a ambição secreta de fazer frente
a meu modelo Sallust em termos de rigor e concisão, era algo
que já não se encontrava em contradição com minha fisiologia
no tempo em que era aluno na lhonrável escola de Pforta, assim
como não se encontrava em relação a Salústio - por mais que
pudesse estar em contradição com Pfortal. .. Mais tarde, por volta
da metade da vida, decidi-me naturalmente de maneira cada vez
mais rigorosa a me colocar contra toda e qualquer bebida "espi-
ritual". Prefiro lugares nos quais se tenha por toda parte a opor-
tunidade de se haurir de fontes fluentes (- Nice, Torino, Sils);
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 551

não acordo à noite sem beber água. ln vino verilas: parece que
também neste ponto estou uma vez mais em desacordo com todo
o mundo no que tan,ge ao conceito de "verdade" - o espírito paira
para mim acima da água ...

2.
Contra a doença, cujas boas ações precisamente não de-
vem ser por mim minimamente subestimadas, teria de objetar
que ela enfraquece os instintos de defesa e de combate do ho-
mem. Por muitos anos, não soube me defender de maneira su-
ficiente nem contra uma solicitude benevolente e impertinente
nem contra "admiradores" grosseiros que surgiam em minha
casa e outros parasitas; subtraindo aqueles casos, como de costu-
me, dos quais ninguém consei,rue escapar, por exemplo, quando
um jovem erudito desleixado, sob a desculpa da "admiração",
surge em casa para insuflar alguém. Um doente tem dificuldades
cm se ver livre de coisas e homens, inclusive de memórias: uma
espécie de fatalismo, que "se deita na neve", à moda de um sol-
dado russo, para o qual o campo de batalha se tornou finalmente
duro demais, um fatalismo sem revolta faz parte de seus instintos
de autoconservação. Compreende-se muito da mulher, como um
ser condenado a sofrer e involuntariamente fatalista, quando se
concebe esse tipo de instinUJ de autoconservaçao. Despender tão
pouca força quanto possivel - não se dissipar com reações - cer-
ta economia mais por pobreza de força: esta é a grande razão
no fatalismo. Expresso fisiologicamente: uma redução do gasto
material, o seu ralentamento - com nada há uma queima maior
de energia do que com afetos. O ressentimento, a raiva, o prazer
com a vingança - para os doentes, esses são os mais nocivos de
todos os estados possíveis: urna religião, tal como a de Buda, que
lida essencialmente com pessoas espiritualmente refinadas e fi.
siologicamente cansadas, se volta, por isso, com o peso principal
de sua doutrina, contra o ressentimento. "Nao é por meio de ini-
mizade que a inimizade chega ao fim: é por meio de amizade que
a inimizade chega ao fim." O budismo ni!o era nenhuma moral
- seria uma profunda incompreensão desonrá-lo de acordo com
552 FRIEDRICH NIETZSCHE

tais cruezas vu.lgares, ta] como o é o cristianismo: ele era uma


higiene. - Por muitos anos mantive de maneira tenaz relações,
lugares, habitações e uma sociedade quase insuportâveis, depois
que elas tinham sido urna vez dadas, por acaso, não por vontade,
mas a partir daquele instinto - em todo caso, foi mais sábio do
que mudar, do que "experimentar". O experimento se lança con-
tra o instinto daquele que sofre: em um sentido elevado, poder-
-se-ia quase denominar isso francamente urna demonstração de
força. Fazer de sua própria vida um experimento - é isso apenas
que se pode chamar de liberdade do espírito, isso se tomou, para
mim, mais tarde a filosofia...

3.
Ao que me parece, o tédio não diz respeito diretamente aos
sofrimentos dos que sofrem; ao menos me falta toda lembrança
de algo assim. Ao contrário, o pior tempo de minha vida foi, para
mim, rico cm certa inventividade nova - a arte das nuanças, a
fina destreza na manipulação das nuanças. Compreenderia, em
geral, o refinamento como um mírno do tato até o alto do ele-
mento espiritual; mesmo aquele tipo adorável de respeito e de
precaução na compreensão, que é próprio dos doentes, faz parte
daí - eles temem o contato próximo demais ... Nesses estados,
ouvem-se mesmo coisas comuns de maneira incomum, acontece,
por assim dizer, uma transposição: o acaso cotidiano é filtrado por
um filtro sublírne e não vê mais a si mesmo da mesma forma.
Por fim, ficava outrora extraordinariamente grato quando alguma
coisa livre e seleta em termos de inteligência e de caráter vinha
para próximo de mim, enquant,o certa impaciência em relação
a alemães e ao elemento alemão foi se tomando cada vez mais,
para mim, instinta. Com alemães, perdi meu bom humor, meu es-
pírito - e não menos o meu tempo... Os alemães tomam o tempo
mais longom... As coisas se mostram de maneira diversa quan-

261 N.T.: H4 aqui um Jogo de palavras que se perde na tradução. Em alemllo.


o termo para tédio (Longewelte) slgnlnca, literalmente, um átlmo longo.
Alongar o tempo, portanto, é um slnõnlmo de entediar.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 553

do o alemão é, por acaso, um judeu ou uma judia. É espantoso,


quando contabilizo o fato de que, entre 1876 e 1886, devo quase
todos os meus instantes agradáveis ao acaso de lidar com judeus
ou judias. Os alemães subestimam que boa ação é encontrar um
judeu - não se tem mais nenhuma razão para se envergonhar,
deve-se até mesmo ser inteligente... Na França, não vejo a ne-
cessidade para que haja judeus, tanto mais a vejo na Alemanha:
Meilhac e Halévy, os melhores poetas, aos quais meu gosto pro-
mete imonalidade, alcançam essa altura como franceses, não
como judeus. - Gostaria de afinnar o mesmo também em relação
a Offenbach, esse músico inequívoco, que não queria ser mais do
que era - um bufão genial, no fundo o último músico, que ainda
fazia realmente música, e não acordes!. ..

4.
No fundo, estou entre aqueles educadores involuntários que
não precisam, nem têm princípio algum para a educação. O fato
peculiar de, em sete anos de ensino, não ter tido nenhuma ocasião
na classe suprema do conselho pedagógico da Basileia de infligir
uma pena e de, como me foi mais,tarde relatado, os mais preguiço-
sos se tornarem comigo aplicados, presta em certa medida um tes-
temunho em favor disso. Restou-me uma pequena astúcia oriunda
daquela práxis: no caso em que um aluno, ao repetir aquilo que
cu tinha explicitado na aula anterior, permanecia completamente
insuficiente, sempre considerei a culpa como minha - dizia, por
exemplo, que qualquer um tinha o direito de exigir de mim uma
explicação, uma repetição, caso eu me expressasse de maneira
breve demais, inconcebível demais, Um mestre tem a tarefa de se
tomar acessível a toda e qualquer inteligência,,. As pessoas me
disseram que esse anificio atua de maneira mais forte do que qual-
quer repreensão. - Nem na lida com ginasianos nem na lida com
estudantes universitários.jamais tive qualquer dificuldade, apesar
de, no inicio, meus 24 anos não terem apenas me aproximado de-
les. Ao mesmo tempo, as bancas de defesa de doutorado não me
ofereceram nenhuma ocasião para aprender de maneira adicional
anes ou métodos quaisquer: o que possuía instintivamente não
554 FRIEDRICH NIETZSCHE

era apenas o que hã de mais humano em tais casos - eu me sentia


aí a princípio completamente bem, depois de trazer o doutorando
até ãguas bem navegáveis. Qual quer um tem em tais casos tanto
espírito - ou tão pouco - quanto o honorável examinador... Quan-
do prestava atenção, sempre me parecia que, no fundo, eram os
senhores examinadores que estavam sendo testados.

5.
Nunca compreendi a arte de ser antipático, mesmo quando
me parecia de grande valor chegar a essa meta. Pode-se revirar
a minha vida de um lado para o outro, não se encontrarão aí si-
nais de que alguém algum dia teve má vontade comigo. Minhas
próprias experiências com aqueles com os quais qualquer um faz
más experiências são, sem exceção, favoráveis a eles: ao mesmo
tempo, para mim, no que concerne à lida interpessoal, supondo
que eu não estivesse doente, qualquer um se mostrava como um
ins1rumento dos quais eu retirava sons finos e maximamente ina-
bituais. Quantas vezes não ouvi, com uma espécie de espanto,
sendo dito em relação a si mesmos por parte de meus parceiros
de conversa o seguinte: "Algo deste gênero jamais tinha passado
até aqui pela minha cabeça"... Do modo mais singelo possível,
isso talvez tenha acontecido com aquele rapaz que morreu indes-
culpavelmente jovem, Heinrich von Stein, que, um dia, depois
de uma permissão cu.idadosamente alcançada, apareceu por três
dias em Sils Maria, dizendo a todo mundo que não tinha vindo
por causa da Engadina. Esse homem extraordinário, que, com
toda a simplicidade corajosa de sua natureza, tinha atravessado o
pântano wabrneriano até as orelhas - "não entendo nada de mú-
sica", ele me confessou - , foi como que transformado durante
esses três dias por uma corrente de liberdade, como alguém que
repentinamente encontra seu elemento e ganha asas. Eu sempre
lhe dizia que esse era um efeito do bom ar daqui de cima, que isso
acontecia com todo mundo, mas ele não queria acreditar... Se,
apesar disso, algumas iniquidades pequenas e grandes me foram
infligidas, a razão para tanto não foi a "vontade", muito menos a
má vontade: teria de me queixar antes da boa vontade, que não
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 555

causou senão confusão em minha vida. Minha experiência me dá


um direito à desconfiança em geral em relação ao útil "amor ao
próximo", que avança em direção ao conselho, ao ato - eu ore-
preendo pelo fato de facilmente perder a delicadeza, pelo fato de,
sob certas circunstâncias, intervir de maneira francamente des-
trutiva com suas mãos prestimosas em um destino sublime, em
um isolamento sob feridas, cm uma prerrogativa de um grande
sofrimento. - Não foi sem razão que dei forma sob o título de a
"tentação de Zaratustra" a um caso no qual um grande grito de
socorro se abate sobre Zaratustra, no qual a compaixão busca se
precipitar sobre ele como um derradeiro pecado: neste contexto,
permanecer senhor, manter pura aqui a elevação de sua tarefa em
relação aos muitos impulsos baixos e miopes, que são ativos nas
assim chamadas ações altruístas, isto é uma provação, a rlltíma
provação, pela qual Zaratustra e quem quer que se mostre como
um seu igual precisam passar diante de si mesmos. -

6.
Como qualquer um que nunca vive entre os seus iguais e
que faz disso seu destino, por fim, sua arte e filantropia, defendo-
-me nos casos em que uma peq,uena tolice ou uma tolice muito
grande foi cometida contra mim, contra uma contramedida, mes-
mo que essa contramedida seja '"enviar tão rápido quanto passi-
vei uma astúcia para a estupidez": assim, talvez ainda seja possível
resgatá-la, Só há uma coisa em mim que pode se tornar terr!vel:
cu me desforro, disso as pessoas podem estar certas. Sempre en-
contro, em suma, uma oportunidade de expressar àquele que me
fa:i: um mal o meu agradecimento por alguma coisa qualquer ou
de pedir-lhe algo (- o que é mais amável do que dar.. ,). Também
me parece que a carta mais grosseira é mais bem-vinda do que se
silenciar. Àqueles que silenciam falta fineza e educação do co-
ração. - Quando se é rico o bastante para tanto, é uma felicidade
não ter razão; quando as pessoas me dão de tempos em tempos
uma oportunidade de não ter razão, há sempre wna possibilidade
de se compatibilizar da melhor maneira possivel comigo. Nada
é capaz de melhorar tão fundamentalmente a minha amistosidade,
556 FRIEDRICH NIETZSCHE

nada é capaz de lhe oferecer melhor sempre uma vez mais o seu
frescor... Naqueles casos desconhecidos, em que exponho um
não decidido até a guerra total, as pessoas cometeriam um erro
crasso se concluíssem que precisamente aí seria necessârio pres-
supor, no pano de fundo, uma ·profusão velada de experiências
terríveis, Quem tem alguma ideia de mim precisa chegar à con-
clusão inversa. Não admito a presença de nenhuma hostilidade
em torno das coisas, enquanto ainda se faz concomitantemente
presente a mais ínfima tensão pessoal. Quando declarei guerra ao
cristianismo, isso me aconteceu unicamente porque nunca tinha
experimentado nada turvo ou triste vindo dai - ao contrário, as
pessoas mais estimáveis que conheço são cristãs sem falsidade:
a última coisa que faço é impu18r aos particulares aquilo que é a
fatalidade de milênios. Meus antepassados mesmos foram pasto-
res protestantes: se eu não tivesse recebido concomitantemente
deles um sentido elevado e puro, não saberia de onde proviria
meu direito à guerra ao cristianismo. Minha fórmula para tanto:
o Anticristo é ele mesmo a lógica necessária do desenvolvimen-
to de um autêntico cristão, em mim o cristianismo supera a si
mesmo. Outro caso: de minhas relações com Wa&rner e com a
senhora Wagner, não retenho senão as lembranças mais refres-
cantes e sublimes; justamente essa circunstância me permitiu ter
aquela neutralidade no olhar para ver o problema Wagner em ge-
ra.! como um problema cultural, e talvez resolver esse problema...
Mesmo no que concerne a antissemitas, com os quais, como se
sabe-, tenho menos em comum, teria, de acordo com as minhas
experiências nada insignificantes, algumas coisas favoráveis a
fazer valer: isso não impede, isso condiciona muito mais o fato
de declarar uma guerra impiedosa ao antissemitismo - ele é uma
das excrescências mais doentias da autoaoglicização teutoimpe-
rial injustificada.

7.
Não é de meu tipo amar muitas coisas de muitas formas:
mesmo em minha lida com livros, tenho no todo mais uma hos-
tilidade do que uma tolerância, do que um "deixar se aproximar"
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 557

instintivo. E isso desde pequeno. No fundo, só há uma pequena


parcela de livros que contam em mi.oba vida: os mais famosos
não estão entre eles. Meu sentido para estilo, para o epigrama
como estilo, despe.rtou quase de uma única vez em meio ao pri-
meiro contato com Salústio: não esqueço o espanto de meu ado-
rado mestre Corssen, ao precisar fazer ao seu pior aluno em latim
a mais elevada deferência - ele me convidou a ir até sua casa...
Conciso, rigoroso, com tanta substância na base quanto possí-
vel - uma fria maldade contra a "bela palavra" e contra o "belo
sentimento": foi aí que me descobri. Até o cerne de meu Zara-
tustra, as pessoas reconhecerão uma séria ambição pelo estilo
romano, pelo "magnum in parvo", pelo "aere perennius".' 62 As
coisas não se deram de modo diverso no primeiro contato com
Horácio. Até hoje, jamais reencontrei em outro poeta o mesmo
encanto artístico que me foi propiciado por uma ode de Horá-
cio. Em certas línguas, por exemplo, no alemão, aquilo que é
alcançado em Horácio não tem nem mesmo como ser desejado.
Esse mosaico de palavras, no qual emana de cada palavra, como
som, como lugar, como conceito, da direita para a esquerda e
por sobre o todo, a sua força, esse mínimo de abrangência dos
sinais, esse máximo com isso alcançado de energia do sinal -
tudo isso ê romano e, caso se queira acreditar em mim, nobre
par excel/ence: todo o resto de poesia toma-se, em contrapartida,
um falatório sentimental. Eu seria o último a esquecer do char-
me que se encontra no contraste entre essa forma de granito e
a mais graciosa libertinagem: - meus ouvidos estão encantados
com essa contradição entre fonna e sentido. A terceira impressão
incomparável, que devo aos latinos, proveio de Petrônio. Esse
prestíssimo da euforia em termos de palavras, frases e saltos de
ideias, esse refinamento na mistura de latim vulgar e latim "eru-
dito", esse bom humor indômito, que não se atemoriza diante de
nada e que se projeta com graça para além de todo e qualquer
tipo de animalidade do mundo antigo, essa liberdade soberana

262 N.T.: Em latim no original: •grandioso no que há de Pl!<lUeno• e •mais


perene do que o bronze•.
558 FRIEDRICH NIETZSCHE

diante da "moral", diante das mesquinharias virtuosas das "belas


almas" - não saberia citar nenhum livro que tenha exercido so-
bre mim de longe uma impressão semelhante. O fato de o poeta
ser um provençal me foi dito silenciosamente por meu instinto
pessoal: é preciso ter o diabo no corpo para dar tais saltos. Sob
certas circunstâncias, quando tinha necessidade de me libertar de
uma impressão baixa, por exem pio, de um discurso do apóstolo
Paulo, algumas páginas de Petrônio me eram suficientes para me
sentir uma vez mais completamente saudável.

8.
Não devo aos gregos de modo algum impressões congê-
neres; na relação com Platão, p-or exemplo, sou um cético fun-
damental demais, e nunca consegui concordar com a admiração
pelo artista Platão, tão usual entre eruditos. Ele mistura, ao que
me parece, todas as formas do estilo: ele tem algo semelhante
na consciência, como os cínicos, que descobriram a Satura Me-
nippea. Para que o diálogo platônico, a dialética repulsivamente
vaidosa e infantil, possa exercer um encanto, é preciso que nunca
se tenham lido bons franceses. Por fim, minha desconfiança é pro-
funda demais no caso de Platão: acho-o tão desgarrado de todos
os instintos fundamentais dos helenos, tão hebreizado, tão pree-
xistente como cristão em seus derradeiros intuitos, que gostaria
de usar em relação a todo o fenômeno Platão antes a expressão
dura "engodo mais elevado" em vez de qualquer outra. Pagou-se
caro p-elo fato de esse aten.iense ter frequentado a escola junto aos
egípcios (- provavelmente entre os judeus no Egito... ). Na gran-
de fatalidade do cristianismo, Platão é uma daquelas ambiguida-
des maximamente fatídicas, que tomaram possível às naturezas
mais nobres da Antiguidade atravessar a ponte que conduziu à
"cruz"... Meu descanso, minha predileção, meu tratamento de
todo platonismo foi o tempo tod.o 'lucídides. Tucídides e, talvez,
o Príncipe de Maquiavel são eles mesmos o que há de mais apa-
rentado comigo; e isso por meio da vontade incondicionada de
não se deixar enganar e de ver a razão na realidade - não na
"razão", nem muito menos na "moral"... Do otimismo lastimável
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) SS9

que o alemão classicamente formado colheu como a recompensa


por sua "seriedade" na lida com a Antiguidade, nada é capaz de
nos curar de maneira mais fundamental do que Tucídides. É pre-
ciso virá-lo de cabeça para baixo linha por linha e deduzir o que
ele não escreveu de maneira tão clara quanto as suas palavras:
há poucos pensadores tão ricos em termos de subsuJ.ncía. Nele,
a cultura sofistica, quer dizer, a cultura dos realistas, chega à
sua expressão consumada: esse movimento inestimável em meio
ao engodo da moral e do ideal que acabara de irromper por toda
parte, o engodo da escola socrática. A filosofia já se mostra como
a décadence do instinto grego: Tucídides como a grande soma de
todas as factualidades fortes, rigorosas, duras, que residiam para
o antigo heleno no instinto. A coragem distingue tais naturezas
como Platão e Tucídides: Platão é um covarde - por conseguinte,
ele se refugia no ideal - Tucídides tem controle sobre si, assim
como mantém as coisas sob o seu controle.

9.
Reconhecer nos gregos "almas belas", "obras plásticas har•
mônicas" e uma "simplicidade elevada" winckelmanniana - fui
protegido de tais ninharias alemãs pelo psicólogo que havia em
mim. Vi seu mais forte instinto, a vontade de poder; vi-os treme-
rem diante da violência indômita desse impulso - vi todas as suas
instituições crescerem a partir da medida de proteção: proteger-
-se mutuamente, uns em relação aos outros, contra o material ex•
plosi\!O interior. A tensão descomunal no interior descarregou-se,
então, em uma hostilidade repulsiva contra tudo o que vinha de
fora: as cidades comunitárias se esfacelaram para que os cida-
dãos a esse preço não se esfacelassem. É preciso ser forte - a cor-
poreidade luxuosa e flexível dos gregos foi uma necessidade, não
algo natural. Ela surgiu: - ela não estava desde o início presente.
E com festas e artes as pessoas não queriam também outra coisa
senão se sentir cada vez mais fortes, mais belas, cada vez mais
perfeitas - : esses são meios de autodivinização, meios de eleva-
ção da vontade de poder. - Julgar os gregos de acordo com os
seus filósofos! Utilizar a sabedoria moral das escolas filosóficas
560 FRIEDRICH NIETZSCHE

para uma elucidação quanto ao que era grego! Sempre considerei


coisas desse gênero como prova da fineza psicológica que dis-
tingue os alemã.es... Os filósofos são efetivamente os décadents
da Grécia, o contramovimento em relação ao gosto clássico, em
relação ao gosto nobre! As virtudes socráticas foram pregadas,
porque elas começaram a faltar aos gregos ... Fui o primeiro a
levar uma vez mais a sério aquele fenômeno maravilhoso, bati-
zado com o nome de Dioniso, decisivo para a compreensão dos
helenos mais antigos. Meu honorável amigo Jacob Burckhardt
na Basileia compreendeu que, com isso, algo essencial tinha sido
realizado: ele acrescentou ao seu livro Cultura dos gregos uma
seção própria sobre o problema. Caso se queira considerar o caso
contrário, basta ver de perto a leviandade desprezível com a qual
tratou essas coisas por essa época o célebre filólogo Lobeck. Lo-
beck, que, com a dignlssima segurança de um verme ressecado
entre livros, se arrasta para o interior deste mundo de estados
misteriosos e se convence justamente por melo dai de que é um
cientista, por meio do fato de ser aqui asquerosamente insípido e
medlocre, deu a entender com todo o esforço de erudição que não
tinha propriamente nada cm comum com tais curiosidades. De
fato, os sacerdotes podem ter comunicado algo aos participantes
de tais orgias, por exemplo, que o vinho estimula o prazer, que
o homem vive de frutos, que as plantas florescem na primavera
e no inverno murcham. No que diz respeito à riqueza de ritos e
mitos de origem orgiástica, ele se toma, então, inventivo ainda
cm um grau mais elevado. Os gregos, diz ele cm Agfaoph. I, 672,
não tinham outra coisa a fazer, assim eles riam, saltavam, descan-
savam por aí; ou, uma vez que o homem vez por outra também
tem vontade de algo diverso, eles se sentavam, choravam e se
lastimavam. Outros vieram, então, mais tarde juntar-se a eles e
buscaram um fundamento qualquer para esse curioso modo de
ser, e, assim, surgiram para a explicação daqueles usos inúmeras
sagas festivas e mitos... Por outro lado, acreditava-se que aquela
atividade engraçada, que ocorria nos dias festivos, passou a fazer
parte também necessariamente dos festejos, de tal modo que se
passou a fixá-la como uma parto imprescindivel do culto. - Mas,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 561

abstraindo-nos ainda desse disparate desprezivel, dever-se-ia fa.


zer valer o fato de, com todo o conceito de "grego", e, ainda mais
com o conceito de "clássico", que Winckelmann e Goethe tinham
formado, o elemento dionisíaco tomou-se para nós incompatí-
vel: - temo que Goethe tenha excluído fundamentalmente algo
desse gênero das possibilidades da alma helênica. E, contudo, é
somente nos mistérios dionisíacos que se expressa pela primeira
vez todo o subsolo do instinto helênico. Pois o que os helenos
prometiam a si mesmos com esses mistérios? Prometiam e se
consagravam à vida eterna, ao eterno retomo da vida, ao futuro
na geração, ao dizer sim triunfante à vida para além da morte e da
mudança, a verdadeira vida como o continuar vivendo conjun-
tamente na comunidade, na cidade, na ligação sexual; o s!mbolo
sexual como o símbolo mais honorável em geral, a quintessência
propriamente dita simbólica de toda a castidade antiga; a mais
profunda gratidão em relação a Iludo o que há de particular no ato
da geração, na gravidez, no nascimento. Na doutrina dos misté-
rios, a dor é declarada sagrada: as "contrações da gestante" divi-
nizam a dor em geral, todo devir, crescimento, tudo aquilo que
promete futuro condiciona a dor; para que haja o eterno prazer
do criar, é preciso que haja eternamente a aflição da gestante...
Não conheço nenhum simbolismo mais elevado. - Foi somente
o cristianismo que transformou a sexualidade em uma sujeira: o
conceito de imaculada concepção foi a mais extrema inramia psi-
cológica que até aqui foi alcançada na Terra, por exemplo - ele
lançou lama sobre a origem da vida ...
A psicologia do orgiasmo, como um sentimento de vida
superOuente, no interior do qual mesmo a dor só atua como um
estimulante, me deu a chave para o sentimento trágico, que foi
incompreendido tanto por Aristóteles quanto, em particular, por
parte dos pessimistas. A tragédia está tão longe de demonstrar
algo sobre o pessimismo dos helenos no sentido de Schopenhauer,
que ela é, ao contrário, precisamente o seu oposto mais extremo.
O dizer sim à própria vida, incluindo aí os problemas mais estra-
nhos e mais duros, a vontade de vida no sacrifício de seus tipos
mais elevados, nutrindo-se de sua própria inesgotabilidade - foi
562 FRIEDRICH NIETZSCHE

isso que denominei dionisíaco, foi isso que entendi como a ponte
propriamente dita para uma psicologia do poeta trágico. Não para
se ver livre do horror e da compaixão e se purificar de um afeto
perigoso como que por meio de uma descarga veemente desse
afeto - esse foi o caminho de Aristóteles: mas, para além do hor-
ror e da compaixão, a fim de gozar do eterno prazer da criação e
do devir, a fim de ter sob si seu horror, sua compaixão...

10.
A felicidade de minha existência, sua unicidade talvez, re-
side cm sua fatalidade: sou, para expressá-lo em uma fórmula
enigmática, alguém que, depois ,que seu pai tinha morrido, conti-
nuou vivendo como sua mãe. Essa dupla origem, por assim dizer
a partir do degrau mais alto e mais baixo na escada da vida - dé-
cadent ao mesmo tempo e início - , isto, se é que alguma coisa
o faz, explica aquela neutralidade, aquela liberdade de partidos
na relação com o grande problema conjunto da vida, elementos
que me distinguem. Conheço as, duas coisas, sou as duas coisas.
- Meu pai morreu aos 36 anos: ele era temo, amável e mórbido,
como um ser meramente determinado para passar - antes uma
boa lembrança da vida do que a vida mesma. No mesmo ano em
que sua vida começou a definhar, a minha também experimentou
um in.ício de definhamento: aos 36 anos, cheguei ao ponto mais
baixo de minha vitalidade- vivi ainda, mas sem conseguir ver três
passos para além de mim. No ano 1879, renunciei à minha vaga
de professor na Basileia, vivi o verão como uma sombra, em St.
Moritz, e o próximo inverno, o mais pobre em termos solares de
minha vida, em Naumburgo. Este foi o meu mínimo: O viandante
e sua sombra surgiu durante esse período. De maneira indubitá•
vel, reconheci-me outrora como sombra... No inverno seguinte,
no primeiro inverno genovês, aquela maravilhosa espiritualiza-
ção, que é quase condicionada por um empobrecimento extremo
em termos de músculos e de sangue, trouxe à tona o Aurora. A
perfeita claridade e serenidade do cspirito não se coadunam ape-
nas em mim com a mais profunda fraqueza fisiológica, mas até
mesmo com um sentimento de dor extremo. Naqueles tormentos
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) S63

infernais, que uma dor ininterrupta traz consigo sob um ataque de


vômito e de secreção, eu possula a claridade dialética par exce/-
lence e pensava completamente coisas cm relação às quais cu, em
situação saudável, não sou um tão bom alpinista, nem refinado o
suficiente. (Meus leitores sabem em que med.ida eu considero a
dialética como um sintoma da décadence, por exemplo, no caso
mais célebre de todos, ao caso de Sócrates.) Todas as perturba-
ções doentias do intelecto, mesmo o entorpecimento parcial que a
febre tem como consequência, são para mim até hoje coisas com-
pletamente estranhas, sobre cuja frequência tive de primeiramente
me instruir no caminho da erudição e das letras. Meu sangue cor-
re lentamente - tinha nos anos d.e doença o pulso de Napoleão - ,
ninguém jamais conseguiu constatar a presença de febre em mim.
Um médico mesmo, que me tratou durante muito tempo como um
paciente que sofria dos nervos, disse: "Não! O problema não está
em seus nervos, eu mesmo sou apenas nervoso." Qualquer dege-
neração local permaneceu completamente incomprovada; nenhu-
ma doença estomacal organicamente condicionada, por mais que,
como consequência do esgotamento cerebral, tivesse alcançado a
mais profunda fraqueza do sistema gástrico. Mesmo o problema
dos olhos, a cegueira que se aproximava perigosamente, era con-
sequência, não causa: de tal modo que, com cada acréscimo de
força vital, também se incrementou a minha capacidade visual,
como (- - ). Uma série longa, longa demais de anos significa para
mim convalescença - infelizmente, ela também significa recalda,
decadência e periodicidade de uma espécie de décadence. Preciso
dizer que sou experiente em questões ligadas à décadence? Eu a
soletrei de frente para trás e de trás para frente. Mesmo aquela
arte de pegar e de conceber, aquele tato para nuanças, toda aque-
la psicologia do "olhar descortinador", que ta.lvez me distinga,
tudo isso foi aprendido naquela época, é o presente propri.arnente
dito daquele tempo, no qual tudo se refinou, a observação tanto
quanto os órgãos da observação. Ver a partir da ótica do doente
em direção a conceitos e valores mais saudâveis e, inversamente,
da plenitude e certeza de si da vida plena para baixo, para o tra-
balho de filigrana do instinto do décadent - esse foi meu maior
564 FRIEDRICH NIETZSCHE

exercício, a minha mais longa e;xperiência: se é que sou mestre


em algum lugar, então é aqui que sou mestre. Tenho isso na mão,
tenho a mão para deslocar perspectivas: razão pela qual é para
mim apenas que uma transvaioração de todos os valores se mos-
trou efetivamente como possível.

li.
Computado o fato de que sou um décadent, sou o seu con-
trário no sentido mais pleno possível. Minha prova disso é o fato
de eu também ter escolhido instintivamente, contra aqueles esta-
dos terríveis, os meios corretos: enquanto o décadent escolhe re-
conhecidamente os meios nocivos. Como summa summarum, eu
era saudável: como canto, como especialidade, eu era um déca-
dent. Aquela energia da solidão absoluta e do desgarramento de
relações e tarefas habituais, a coerção contra mim mesmo, não me
deixar preocupar, servir, medicar- isso revela a certeza instintiva
incondicionada em relação àquilo que é necessário. Tomei a mim
mesmo em minhas mãos, tomei-me saudável: o pressuposto para
tanto é - qualquer fisiólogo confirmará o que estou dizendo - que
se seja, no fundo, saudável. Um homem tipicamente mórbido
não se torna saudável: para um 'homem tipicamente saudável, o
estar doente pode se mostrar como um enérgico estimulante. É
assim que, por fim, se apresenta de fato para mim aquele longo pe-
ríodo de doença: descobri a vida, por assim dizer, de modo novo,
degustei todas as coisas boas e mesmo pequenas, tal como outro
não conseguiria degustar facilmente - construi minha filosofia a
partir de minha vontade de saúde, de vida ... Pois é preciso atentar
para o seguinte: os anos de minh.a mais baixa vitalidade fordm os
anos em que deixei de ser pessimista... Onde é que se reconhece
no fundo a boa constituição? Um homem bem-constituído, que
é duro, temo e perfumado, faz bem até mesmo ao nosso cheiro.
Apraz-lhe o sabor daquilo que lhe cabe de maneira salutar; seu
gosto, seu prazer, se interrompe lá onde a medida do salutar é
ultrapassada. Ele desvenda medicamentos contra danos, utiliza
os piores acasos para o seu fortalecimento. Ele coleta instintiva-
mente a sua soma a partir de tudo aquilo que vê, ouve, vivencia:
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 565

ele é um principio seletivo, ele deixa que muita coisa se perca.


Ele está sempre em seu negócio., quer esteja lidando com livros,
com homens ou paisagens: ele venera, na medida em que esco-
lhe, na medida em que admite, na medida em que confia. Ele re-
age a todo tipo de estímulo lentamente, com aquela lentidão que
foi cultivada por uma longa precaução e por um orgulho desejado
- coloca à prova o estimulo que se aproxima, ele está longe de ir
ao seu encontro. Ele não acredita nem em "infelicidade" nem em
"culpa": é forte o suficiente para que tudo chegue até ele da me-
lhor forma possível. - Pois bem, sou o oposto de um décadent:
pois acabei de descrever justamente a mim mesmo. -

24 (2)
A contradição fisiológica.
Do criminoso.
O que devo aos antigos.
Filosofia.
Música
os livros caracterizados.
/11 media vila.
Anotações de um
homem 1,rrato
Por
N.

24 (3)
&cehomo.
Anotações de um
homem multifacetado.

1) O psicólogo fala
2) O filósofo fala
3) O poeta fala
4) O músico fala
5) O escritor fala
6) O educador fala
566 FRIEDRICH NIETZSCHE

24 (4)
Fridericus Nietzsche
De vita sua.
Traduzido para o alemão.

24 (5)
O espelho
Tentativa
de uma autoavaliação.
De
Fricdrich Nietzsche

24 (6)
A astúcia de meu instinto consiste em sentir os estados de
urgência e os perigos propriamente ditos para mim como ta.is.
Desvendando ao mesmo tempo os meios com os quais é
possivcl escapar deles ou introduzi-los a seu favor, organizando-os,
por assim dizer, em tomo de uma intenção mais elevada.
A luta com a solidão
com a doença
com o acaso de origem, formação, sociedade...
com a grande responsabili dadc opressora
com a pluralidade das coo dições de sua tarefa
(- que precisam de isolamento

24 (7)
A maior astúcia: deixar uma grande determinação penetrar o
mínimo possível na consciência -preservar o pudor em relação a ela
Esconder-se, por assim dizer, dela por meio da modéstia,
da malícia, do refinamento, do gosto, mesmo por meio dos tem-
pos de doença e de fraqueza...
Só se precisa seguir seus comandos, não se precisa querer
saber o que ela é, quando ela comanda...
Não se precisa ter nenhum discurso, nenhuma fónnula, ne-
nhuma atitude para ela - precisa-se sofrer sem saber, precisa-se
fazer o melhor sem se compreender aí...
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 {Vol. VII) S67

24 (8)
Vademecum.
Sobre a razão de minha vida.

24 (9)
Na lida com os antigos.
ÂM:W
&cehomo.

24 (10)
No que diz respeito a Goethe: a primeira impressão, uma
impressão muito primeva, foi para mim completamente decisiva:
o "romance do leão", de maneira estranha a primeira coisa com
a qual tomei contato, ofereceu-me de uma vez por todas o meu
conceito, o meu gosto "Goethe". Um caráter outonal transfigu-
radamente puro no gozo e no deixar amadurecer - na espera, um
sol de outubro até o cerne do elemento espiritual; algo âurco e
adocicado, algo suave, não má:rmore - é a isso que denomino
goethiano. Mais tarde, por causa desse conceito "Goethe", acolhi
em mim com uma profunda simpatia o Nachsommer (Verão de
São Martinho) deAdalben Stifter: no fundo, o único livro alemão
depois de Goethe que exerceu um encanto sobre mim. - Fausto
- para aquele que conhece por instinto o cheiro de terra da língua
alemã, para o poeta do Zaratustra, um prazer sem igual: ele não é
apenas para o artista que sou, para o qual foi dado em mãos com o
Fausto wn amontoado de peças mal-acabadas- ele é ainda menos
para o filósofo, ao qual repugna o elemento completamente arbi-
trário e casual - a saber, condicionado pelos acasos culturais - em
todos os tipos e problemas da obra goethiana. Estuda-se o século
XVIII quando se lê o Fausto, estuda-se Goethe: está-se a mil mi-
lhas de distância de necessidades relativas a tipos e problemas. -
(25 = W II lOb. W 119d. MP XVI 5. MP XV 118. D 25. W li
Se. Dezembro de 1888- lnício de Janeiro de 1889)

25 (1)
A grande política.
Trago a l:,'llerra. Não entre os povos: não tenho nenhuma
palavra para expressar o meu desprezo pela maldita política de in-
teresses das dinastias europeias, que faz da incitação ao egoismo e
à autopujança dos povos uns contra os outros um princípio e mes-
mo quase um compromisso. Não entre classes. Pois não temos ne-
nhuma classe superior, portanto tampouco temos uma inferior: o
que se encontra hoje em cima na sociedade estã fisiologicamente
condenado e, além disso, o que é, a prova desse rato, tão empobre-
cido em seus instintos, tão inseguro, que confessa sem escrúpulo
ser o contraprincípio de uma espécie mais elevada de homem.
Trago a guerra através de todos os acasos absurdos de povo,
classe, raça, profissão, educação, cultura: uma guerra como que
entre o levante e o declínio, entre a vontade de vida e a busca de
vingança em relação à vida, entre retidão e pérfida mendacida-
de ... O fato de todas as "classes superiores" tomarem o partido
da mentira não se encontra livremente à sua disposição - isto é o
que elas precisam fazer: não se tem na mão o poder de afastar do
corpo instintos ruins. - Nunca fica mais claro do que neste caso
o quão pouco o que eslli em questão é o conceito de "vontade
livre": afinna-se o que se é, nega-se o que não se é... O número
fala em favor dos "cristãos": a vulgaridade do número ... Depois
de se ter tratado por dois mil anos a humanidade com um dispa-
rate fisiológico, a decadência, a contraditoriedade instintiva pre-
cisa ter se tornado preponderante. O fato de só hã mais ou menos
20 anos se ter passado a tratar com rigor, com seriedade, com
retidão, as questões mais imedia:tamente importantes, na alimen-
tação, na vestimenta, no custo, na saúde, na procriação: esta não
é uma ponderação capaz de fazer-nos estremecer horrorizados.
Primeiro principio: A grande política procura transfonnar a
fisiologia em senhora sobre todas as outras questões; ela procura
criar um poder, forte o suficiente, para cultivar a humanidade como
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 569

um todo e como algo mais elevado, com uma rigidez impiedosa


contra o elemento degenerador e parasitário na vida - contra aquilo
que estraga, envenena, amaldiçoa, condena ao perecimento... e na
aniquilação da vida vê o sinal de um tipo mais elevado de almas.
Segundo princípio: Guerra mortal ao vicio; todo tipo de
antinatureza é vicioso. O padre cristão é o tipo mais vicioso de
homem: pois ele ensina a antinatureza.
Segundo princípio: Criar um partido da vida forte o suficien-
te para a grande política: a grande política transfonna a filosofia
em senhora sobre todas as outras. questões - ela quer cultivar a hu-
manidade como um todo, ela mensura o nivel bierãrquico das raças,
dos povos, dos particulares segundo o seu(- ) de futuro, segundo
a sua garantia para a vida, que ela porta em si - ela põe um ponto
final inexorável em tudo o que há de degenerado e parasitário.
Terceiro princípio. O resto segue-se daí.

25 (2)
O que eu menos desculpo aos alemães é o fato de eles não
saberem o que fazem ... que eles mentem. O mentiroso que sabe
que mente é, comparado a um alemão, virtuoso...

25 (3)
O Gil Blas, uma terra agradável, na qual não há nenhum
alemão; Prosper Mérimée, uma terra ainda mais a1,'T8dável - não
se esbarra em parte alguma em uma virtude.

25 (4)
Petits faits vrais161
Fromentin
DeVogüé

25 (5)
O senhor Kõsclit realmente me compreende: algo que sem-
pre me causa tanto espanto, quanto o contrário, me deixa frio.

263 N.T.: Em francês no original: Pequenos fatos verdadeiros.


570 FRIEORICH NIETZSCHE

Considero por vezes minha mão com vistas ao fato de ter o des-
tino da humanidade em minhas mãos - eu a parto invisivelmente
em dois pedaços, diante de mim, depois de mim...

1.
25 (6)
Conheço meu destino. Ligar-se-á um dia ao meu nome a
lembrança de algo descomunal - de uma crise como nunca houve
sobre a Terra, da mais profunda colisão da consciência moral, de
uma decisão conjurada contra tudo aquilo em que se tinha acre-
ditado, contra tudo aquilo que s.e tinha exigido, divinizado. - E
com tudo isso, porém, não há nada em mim de um fanático; quem
me conhece me considera um simples erudito, talvez um pouco
malicioso, que sabe ser sereno com qualquer um. Este livro dará,
espero, uma imagem completamente diversa da imagem de um
profeta; eu o escrevi para destruir radicalmente todo e qualquer
mito sobre mim - há algo audaz ainda naquilo que há de mais
sério em mim, amo o que há de menor tanto quanto o que há de
maior, não sei me livrar de minha felicidade nos instantes da mais
terrível decisão, tenho a maior abrangência possível da alma, que
um homem jamais teve. Fatíd.ico e (- - ) Deus ou palhaço - este
é o elemento involuntário em mim, é isto que sou. - E, apesar
disso, ou muito mais não apesar disso, pois todos os profetas fo-
ram até hoje mentirosos - fala a partir de mim a verdade. - Mas
minha verdade é terrível: pois se chamou até aqui a mentira de
verdade ... Transvaloração de todos os valores, essa é minha fór-
mula para um ato da mais extrema automeditação da humanida-
de: meu destino quer que eu precise olhar para baixo de maneira
mais profunda, mais corajosa, mais proba nas questões de todos
os tempos do que um homem até aqui jamais precisou desco-
brir... Não exijo que aquilo que agora vive venha à tona, exijo
que muitos milênios venham ao meu encontro. Eu contradigo e,
contudo, sou o oposto de um espirito que diz não. É somente a
partir de mim que haverá novamente esperanças, conheço tarefas
de uma altura, que o conceito para tanto faltou até aqui - sou o fe-
liz mensageiro par excellence, por mais que precise ser o homem
ligado ao que há de fatídico. - Pois, quando um vulcão entra em
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 571

atividade, temos convulsões da terra como nunca houve. <O>


conceito de politica imergiu completamente em uma guerra de
espíritos, todas as figuras de poder foram lançadas pelos ares -
haverá guerras, tal como nunca houve ainda sobre a Terra.

2.
O que tem ocorrido por enquanto me é repulsivo, mesmo
que apenas para demover o espectador daí. Não conheço nada
que esteja mais profundamente em contraposição ao sentido su-
blime de minha tarefa do que essa maldita incitação ao egoísmo
cm termos de povo e de raça, que pretende agora se mostrar sob
o <nome> da "grande política"; não tenho palavra alguma para
expressar meu desprezo diante do nivel espiritual que se acredita
agora conclamado, sob a figura do primeiro ministro imperial
alemão e das atitudes dos oficiais prussianos da casa dos Hohcn-
zollers, a se transformar em condutor da história da humanidade.
Essa mais baixa espécie de homem, que não chegou nem mesmo
a aprender a questionar lá, <onde eu> tinha necessidade de raios
fulminantes como respostas; es:sa espécie, junto à qual todo o
trabalho da retidão espiritual de séculos foi em vão - isso se en-
contra muito lá embaixo sob mim, para que tivesse mesmo que
apenas a honra de minha rivalidade. Eles podem construir à von-
tade os seus castelos de cartas! Para mim, "impérios" e ''triplas
alianças" são castelos de cartas... Tudo isso se baseia em pressu-
postos, que eu tenho nas mãos... Há mais dinâmica entre o céu e
a terra do que podem sonhar esses idiotas pintados de roxo.

25 (7)
5.
- Um último ponto de vista, o mais elevado talvez: eujus-
tifico os alemães, eu, sozinho. Nós nos dispomos em contradição,
nós somos mesmo intocáveis uns para os outros- não há nenhuma
ponte, nenhum olhar entre nós. Mas, justamente isso é a condição
para aquele grau extremo de ipseidadc, de autorredenção, que se
tomou homem em mim: sou a solidão como homem ... O fato de
uma palavra nunca me ter alcançado, que me obrigasse a alcançar
572 FRIEDRICH NI ETZSCHE

a mim mesmo ... Eu não seria possível sem um tipo de oposição de


raça, sem alemães, sem estes alemães, sem Bismarck, sem 1848,
sem "guerras pela liberdade", sem Kant, mesmo sem Lutero ... Os
grandes criminosos culturais dos alemães justificam-se em uma
economia mais elevada da cultura... Não quero outra coisa, mesmo
retroativamente não - não teria o direito de querer outra coisa...
Amor fati ... Mesmo o cristianismo torna-se necessário: a forma
suprema, a mais perigosa, a mais sedutora no não à vida, exige em
primeiro lugar sua afirmação mais elevada - a mim ... O que são,
por fim, esses dois milênios? Nosso experimento mais instrutivo,
uma vivisseção na própria vida .... Meros dois milênios!. ..

25 (8)
Stendhal veio do serviço da melhor e mais rigorosa escola
de filósofos da Europa, a esco:Ja de Condillac e de Dcstutt de
Tracy - ele desprezava Kant ...

25 (9)
Fromentin, Feuillet, Halévi, Meilhac, les Goncourt, Gyp,
Pierre Loti - - - ou, para denominar uma pessoa da raça profun-
da, Paul Bourget, que de longe :se mostra como aquele que mais
se aproxima de mim - - -

25 (10)
Os antigos italianos, com a profundidade e a doçura me-
lancólica do sentimento, os mú:sicos nobres par excellence, nos
quais o mais elevado da voz permaneceu como som
O réquiem de Nicola Jom.meli (1769), por exemplo, ouvi-o
ontem - ah! Ele vem de outro mundo, diverso do réquiem de
Mozart...

25 (11)
Uma última palavra. Precisarei a partir de agora de mãos
auxiliadoras - mãos imortais! - sem necessitar de número, a
transvaloraçao deve aparecer em duas J[nguas. As pessoas farão
bem em fundar por toda parte agremiações para entregar em boa
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 573

hora milhões de adeptos nas minhas mãos. É importante, para


mim, ter de início em minhas mãos os oficiais e os banqueiros
judeus: - os dois juntos representam a vontade de poder. -
Quando pergunto quais são meus aliados naturais, esses
são antes de tudo os oficiais; com instintos militares no corpo,
não se pode ser cristão - de outro modo, se seria falso como cris-
tão e falso, além disso, ainda como soldado. Da mesma fonna,
os banqueiros judeus são os meus aliados naturais como o único
poder internacional segundo a sua origem, assim como segundo
o seu instinto, capaz de unir uma vez mais os povos, depois que
uma maldita política de interesses fez do egoísmo e da autopu-
jança dos povos um dever.

25 (12)
Nesta época, obtém-se tudo o que (- - - ) tinha. Honro da
maneira mais intensa possível aquele a quem isso custou neste
caso o maior esforço - meu maestro Peter Gast, que não precisa,
por fim, de uma expressão de honra, uma vez que (- - - ) o pri-
meiro e o mais sólido músico vivo.
Faço a princípio aquilo qu.c lhe devo, quando o chamo de o
músico mais profundo e mais sólido que se acha vivo agora.

25 ( 13)
Guerra mortal à casa dos Hohenzollers
Como aquele que preciso ser, não um homem, mas um des-
tino, quero pôr um fim nesses idiotas criminosos que conduziram
por mais de um século a grande palavra, a maior palavra. Desde
os dias de roubo de Frederico, o Grande, eles não fizeram ou-
tra coisa senão mentir e roubar; não podemos excluir senão um
único homem, o inesquecível Frederico Terceiro, como o mais
odiado e o mais caluniado de toda a raça ... Hoje, quando um par-
tido vergonhoso se encontra em cima, quando um bando cristão
semeia a sementeira maldita do ,dragão do nacionalismo entre os
povos e quer, por amor aos escravos, "libertar" os escravos do-
mésticos negros, pretendemos levar a mendacidade e a inocência
na mentira a um tribunal histórico-mundial #
574 FRIEORICH NIETZSCHE
·······························································································

Seu instrumento, o príncipe Bismarck, o id.iota par excel-


lence entre todos os pollticos, nunca conseguiu pensar um palmo
de mão sobre a dinastia Hohenzollern.
Mas tudo isso teve seu tempo: gostaria de amarrar o império
em uma camisa de força e fomentá-lo a se transformar em uma
luta desesperada. Não soltarei as mãos enquanto não tiver em meu
poder o hussardo cristão do imperador, esse jovem criminoso jun-
tamente com os seus acessórios - com a aniquilação do aborto ma-
ximamente lastimável de homem que chegou até aqui ao poder

25 (14)
# Para que a casa de loucos e criminosos se sinta por cima,
a Europa paga agora anualmente 12 bilhões, abrindo fossos entre
as nações futuras. Ela conduziu as guerras mais selvagens que
jamais foram conduzidas: príncipe Bismarck aniquilou, em fa.
vor de sua política interna, todos os pressupostos para grandes
t11ref!l$, para me~ histórico·mlll!l<!i~s, pWl \l!lll! espiriwalidll<!e
mais nobre e mais refinada com uma maldita segurança do instin•
to. E olhai os alemães mesmos, com certeza a raça(-) mais baixa,
mais estúpida e mais vulgar que se encontra hoje sobre a Terra,
hohenzollerizados até o ódio ao espírito e à liberdade. Olhai seu
"gênio", o príncipe Bismarck, o idiota entre os políticos de todos
os tempos, que jamais pensou um palmo de mão sobre a d.inastia
Hohenzollem. O idiota na cruz foi (- - - ) ... E como a raça tinha
gênio, ela tinha o gênio do crime ...
Última ponderação
Por fim, nós mesmos poderlamos diSpensar a guerra; sob cer-
tas circunstâncias, uma opinião correta já seria suficiente. Um carro
com bastões de ferro para Hoheazollem e outros "suábios"... Nós
outros fomos sem exceção para junto do grandioso e elevado tra•
balho da vida - nós temos de organizar tudo. Há ainda meios mais
eficazes de honrar a fisiologia do que por intermédio de lazarentos
- eu saberia fazer um uso melhor dos 12 bilhões que custam hoje à
Europa a "paz armada". E dito de maneira curta e plena - - -
Mais tudo isso teve o seu tempo. As pessoas deviam me en-
tregar esses jovens criminosos; não hesitarei em degradã-los - eu
mesmo gostaria de atear fogo em seu maldito espírito criminoso.
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) S75

25 (15)
Somente na medida em que marcar com fogo a loucura
criminosa, marcarei para sempre com fogo as duas instituições
mais malditas, junto às quais a humanidade até hoje adoeceu, as
instituições que se mostram propriamente como inimigas mortais
da vida: a instituição dinástica, que engorda com o sangue dos
mais fortes, dos mais bem-constituídos e dos senhores, e a insti-
tuição sacerdotal, que com uma, astúcia terrível procura destruir
desde o princípio esses mesmos homens, os mais fortes, os mais
bem-constituídos, os senhores. Vejo aqui o imperador e os padres
unidos: quero ser juiz aqui e pôr um fim nos milênios de loucura
criminosa de reis e padres... A humanidade habituou-se de tal
modo a essa loucura que ela acredita ter hoje necessidade dos
exércitos com fins de guerra ... Disse que isso parece justamente
um absurdo ... Ninguém exigem.ais rigorosamente do que cu que
todos sejam soldados: não há nenhum outro meio de educar en-
trementes um povo para as virtudes da obediência e do comando,
do compasso, em postura e gestos, para o tipo alegre e corajoso,
(- ), para a liberdade do espírito - trata-se de longe de nossa pri-
meira razão na educação, o fato de todos se tomarem soldados.
Não há nenhum outro meio de estender, para além de todo fosso
de nível hierárquico, de espírito, de tarefa, um bem-querer mútuo
viril sobre todo um povo. - "Serviço e dever" (- - - ), benção do
trabalho - é assim que fala sempre a maldita dinastia, quando ela
precisa de homens. É loucura o fato de se colocar depois uma tal
seleção da força, da juventude e do poder diante dos canhões.

25 (16)
Nunca admitirei que uma canail/e de Hohenzollem possa
comandar alguém a cometer um crime... Não há nenhum direito à
obediência quando aquele que comanda é um Hohenzollem.

25 (17)
Meus amigos, olhai uma vez um padre. Trata-se de um ser
festivo, pálido, oprimido, com a covardia nos olhos e com dedos
pálidos e totalmente longos; sobretudo ao se tomarem santos,
576 FRIEORICH NIETZSCHE
·······························································································

vê-se a presença velada de um animal vingativo e refinado, que


se (- - - ). Não subestimemos o padre - ele é(- ). Ele também é
santo ... Nós, com um pouco de sangue e curiosidade, nós, para os
quais uma pequena diabolia na cabeça pertence à felicidade, não
somos santos... De que nós nos envergonhamos!

25 (18)
O próprio império é uma mentira: nenhum Hohenzollem,
nenhum Bismarck pensou algum dia na Alemanha... Por isso, a
fúria contra o professor Geffcken ... Bismarck preferia bater com
a palavra "alemão" na boca, bater com a polícia e com a lei ...
Penso que as pessoas estão rindo nas cortes de Viena e de São Pe-
tersburgo; as pessoas conhecem os nossos consortes de parvenu,
que ainda não falaram até aqui uma única vez inopinadamente
uma palavra sensata. Não se tra:ta aqui de um homem que colo-
que todo o peso na conservação dos alemães, como ele afirma.
E talvez ainda mais uma estupidez!

25 (19)
Última ponderação
Se pudéssemos dispensar a guerra, tanto melhor. Saberia
fazer um uso mais proveitoso dos 12 bilhões que custam anual-
mente à Europa a paz armada; há ainda outros meios de honrar a
fisiologia do que por intermédio de lazarentos... Dito de maneira
curta e plena, muito bons até: depois que o antigo Deus foi elimi-
nado, estou pronto para governar o mundo ...

25 (20)
Que as pessoas me entreguem o jovem criminoso: não hesi-
tarei cm degradá-lo e em atear fo,go em seu espírito criminoso...

25 (21)
condamno te ad vitam diaboli vitae
Na medida em que te aniquilo, Hohenzollern, aniquilo a
mentira
Pósfácio

Os fragmentos póstumos do outono de 1885


ao outono de 1887 (Grupos 1-8)

Um dos fragmentos póstumos merece toda a atenção parti-


cular daqueles que estão interessados pelo "enigma" Nietzsche:
"Exotérico - esotérico / 1. Tudo é vontade contra vontade / 2.
Não hã nenhuma vontade / 1. Causalismo / 2. Não há nada como
causa-efeito" (5 [9]). Se não nos equivocamos aqui, Nietzsche
remete-se aí à antiga distinção entre a comunicação que é comu-
mente compreendida por todos ,e o modo místico de expressão.
Além disso, nos exemplos que introduz, ele rebaixa a sua tese
sobre a vontade - ou seja: sobre a vontade de poder - ao plano
da representação popular. Isso corresponde ao nível especulativo
maximamente elevado de Nietzsche e oferece-nos um ponto de
partida para decifrarmos as contradições que parecem insolúveis
em seu pensamento, sem que precisemos nos valer, nesse caso,
de artifícios interpretativos. Muitas das formulações construtivas
ou mesmo sistemáticas, que são características dos escritos des-
se ano ou dos anos seguintes, não depararão, então, nem com a
perplexidade nem com a crítica do leitor. O que estava em jogo
para Nietzsche ai era a tentativa de uma elaboração exotérica,
cujas fraquezas tinham necessariamente de ser conhecidas por
ele, uma vez que ele contrapõe a essa elaboração um ponto de
vista esotérico. Sob essa perspectiva, os fragmentos póstumos
conquistam um interesse novo e ainda maior e se transformam
cm algo mais do que uma mera coletânea de material para pubU-
caçõcs planejadas. De fato, não há cm Nietzsche nenhum lugar
que permita reconhecer tão claramente quanto nos cadernos do
arquivo póstumo a justaposição de uma apresentação exotérica,
pensada com vistas à compreensibilidade geral, e um aprofunda-
mento esotérico, secreto, totalmente pessoal do próprio pensa-
mento. Referências a um interesse semelhante também aparecem
mais tarde nos fragmentos de 1887-1888. Com isso, contudo,
ainda não se está dizendo que a tendência expressa no fragmento
578 FRIEDRICH NIETZSCHE

citado teria se tomado uma regra fixa para Nietzsche. Do mesmo


modo, também não se pode afirmar que o momento esotérico fal-
taria completamente nas obras por ele publicadas. Ao contrário,
a segunda antitese introduzida nesse fragmento, por exemplo, a
antítese entre causalismo e anticausalismo (na qual o primeiro
elemento seria um elemento exotérico, enquanto o segundo seria
uma expressão esotérica), pode ser claramente encontrada nas
obras publicadas.
Saber tudo isso toma o leitor mais fino, empresta-lhe uma
visão mais aguda. Não foi por acaso que a dupla visão em Nietzs-
che se estabeleceu em um instante de uma descontração criadora.
Poder-se-ia dizer que Nietzsche, depois da exaltação de Assim
falou Zaratustra (deixa o Para além do bem e do mal aparecer
como uma ressonância serena), considera sua tarefa cumprida;
ele tem o sentimento de ter ultrapassado o ápice, ou ao menos
não está seguro de se ainda conseguirá um dia evocar em si a
antiga tensão. Observa-se em Nietzsche um retomo a si mesmo,
um olhar para trás. B, de fato, s-eu interesse dirige-se nesse mo-
mento à reedição de diversas obras de juventude, e ele se põe a
caminho de redigir para esses escritos novos prefâcios. Nietzsche
tenta resgatar e salvar seu passado; ele não confia no futuro. E,
contudo, essa atitude conduz a novas esperanças, provoca uma
mudança positiva; os horizontes. de seu pensamento se ampliam,
lembranças dormitantes despertam e o reencontro com a riqueza
de pensamentos de O nascimento da tragédia acorda novas for-
ças. O passado, que ele queria salvar, lhe ajuda e deixa surgir um
novo aspecto criador.
É notâvel que Nietzsche deixe clara a possibilidade de uma
antitese entre exposição exotérica e esotérica ao fim de uma ela-
boração teórica - talvez depois da descoberta de seus pontos fra-
cos - , mas a coloque no inicio de sua teoria da vontade de poder.
Antes ainda de essa teoria ser desenvolvida, ela não se toma aos
olhos de seu criador outra coisa senão a expressão exotérica de
seu pensamento. B as pessoas se empenharam por um século em
tomo da interpretação e da avaliação da fónnula mâgica da von-
tade de poder! Quase parece, como se Nietzsche tivesse refletido
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) S79

que um filósofo disposto a convencer precisaria de um sistema,


de uma forma fechada que tanto interpelasse a intuição quanto
oferecesse pontos de apoio palpáveis, imutáveis. O antimetafi-
sico precisa tomar-se metafisico. Schopenhauer, normalmente o
alvo de ataque do ceticismo de Nietzsche, ajudará nesse caso e
oferecerá o material para essa fase construtiva. Toda a primeira
exposição do sistema da vontade de poder - mesmo daquele que
se expressa nos fragmentos dessa época - não é outra coisa senão
um disfarce do pensamento de Schopenhauer. E isso não apenas
sob o aspecto que mais chama a .atenção, o aspecto de que a "von-
tade de vida" se transforma em '''vontade de poder'', mas também
sob o aspecto oposto, mais habilmente escondido. De fato, toda
a teoria aqui desenvolvida do "perspectivismo", decomposta cm
seus elementos, desvela-se como uma exposição nova e mais ou-
sada da teoria schopenhaueriana da "representação". Pois todo e
qualquer dado de nossa existência, toda alegria e toda dor, assim
como toda avaliação moral significa reconduzir ao denomina-
dor comum de uma interpretação uniforme, concebendo cada um
desses elementos como uma ligação não essencial entre sujeito
e objeto - e isso corresponde e.xatamente à "representação" em
Schopenhauer, com a única diferença de que essa representação é
compreendida aqui como restrição. Para expressá-lo em concei-
tos schopenhauerianos: em Nietzsche, a representação abstrata
passa a dominar a representação intuitiva. A concepção ''perspec-
tivista", "interpretacionista" de nossa existência coloca o acento
antes de tudo no ''.juizo", ou seja, no lado abstrato da "repre-
sentação"; "o homem é antes de tudo um animal que julga; no
juízo, porém, encontra-se embutida nossa mais antiga e constante
crença" (4 [8]). A transposição exotérica mostra-se com certeza
de maneira mais paradoxal, mais pérfida: a depreciação metafisi-
ca levada a termo por Schopenhauer ("aparência") é substituida
pela depreciação moral ("mentira").
Mas essa impressão não é suficiente. Para além das va-
riações inconscientes, sutis e psieologizantes sobre um tema
schopenhaueriano, para além do impeto por plasticidade e po-
pularização, descobre-se, como já foi dito em outra passagem,
580 FRIEORICH NI ETZSCHE

nas divergências especulativas de Nietzsche uma capacidade


notável para a configuração original. Aqui, a variação sobre
Schopenhauer transforma-se em superação de Schopenhauer. A
teoria "representacional" é aprofundada por meio da crítica ao
"sujeito", que não foi desenvolvida pela primeira vez nesse pe-
ríodo. As bases do conceito de sujeito são investigadas, ele é re-
conduzido à "distinção" originária "entre um fazer e aquele que
faz" (2 [158)). E, então, a "vontade de vida" só se revela como
a "vontade de poder" caso se considere o conceito de "obstácu-
lo" - compreendido como pressuposto, indício, ocasião vital da
vontade de poder - como uma caracteristica que detennina essa
vontade. Exatamente isso acontece aqui em relação aos termos
"resistência" e "obstáculo". Nesse caso, o respectivo contexto
é bastante diverso: "a força mecânica só nos é conhecida como
um sensação de resistência" (2 [69)). Ou: "Objeto é a soma dos
obstáculos experimentados que se nos tornaram conscientes" (2
[77]). Ou: "Todos os fenômenos de prazer e desprazer são inte-
lectuais, avaliações conjuntas de fenômenos de obstrução quais-
quer, interpretações dessas avaliações" (7 [18)).
Nós não nos e~l)antaremos mais entrementes quanto aos ata-
ques trecistas reiterados contra a inclinação da filosofia moderna
para a teoria do conhecimento, mas constataremos que boa parte
desses fragmentos mesmos desenvolve uma teoria do conheci-
mento. O que temos senão uma teoria do conhecimento, quando
Nietzsche afirma que toda unidade só se mostraria como tal ou
quando contrapõe mutuamente qualidade e quantidade e subordina
a segunda à primeira? Aqui também se manifesta a postura destru-
tiva csotericamentc, enquanto a construtiva, exotericamentc.
Nesse período de criação, o olhar retrospectivo também de-
sempenha, como dissemos, um papel. As digressões positivistas
que se acham alguns anos para ·trás são colocadas, agora, a ser-
viço de uma investigação mais sutil de uma popularização meta-
fisica, e, em verdade, com o auxilio da analogia, ou seja, de um
método que não é propriamente rigoroso. Assim, lemos: "Todo
pensar, julgar, perceber como um comparar tem por pressuposto
um 'equiparar', anteriormente ainda um ' igualar'. A igualação é
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 581

o mesmo que a incorporação da matéria apropriada pela ameba"


(5 [65]). Ou encontramos até mesmo a adorãvel teoria que se
segue: "A divisão de um protoplasma em dois entra em cena,
quando não é mais suficiente o poder para dominar a posse apro-
priada: geração é a consequência de uma impotência" (1 [I 18)).
Mais tarde acontece, então, a universalização: "Alimentação é
apenas uma consequência da ap:ropriação insaciável, da vontade
de poder. A geração, a decomposição entrando em cena em meio
à impotência das células dominantes para organizar o apropria-
do" (2 [76]).
Nietzsche fala, portanto, contra a teoria do conhecimento e
projeta ele mesmo uma; ele ataca a metafisica e se comporta como
metafisico. Nessas declarações exotéricas reflete-se a temática
ressurgente de O nascimento da tragédia; a metafisica associada
à estética. Alguns dos juízos de Nietzsche sobre essa obra soam
como uma autoanálise; por exemplo, quando ele reflete sobre o
seu pessimismo juvenil e define o feio "como a fonna de conside-
ração das coisas a partir da vontade de estabelecer um sentido, um
sentido novo no que se tomou s,em sentido" (2 [I 06)). Em outra
passagem, ele trdi sua nostalgia de uma metafisica apolínea ("o
mundo é a sucessão de visões e redençõcs divinas na aparência"),
e é possível descobrir até mesmo uma interpretação "mais subli-
mada" do dionisíaco ("a tortura· do precisar criar, como impulso
dionisíaco", 2 [ 11 O]). Por fim, d.eparamos em meio a esses frag-
mentos, mesmo para além da sugestão estética, com uma confis-
são metafisica imediata, com uma declaração em favor do "ser"!
"Cunhar sobre o devir o caráter do ser - essa é a forma mais
elevada de vontade de poder. Dupla falsificação, a partir dos sen-
tidos e a partir do espírito, a fim de conservar um mundo do que
é, do que persiste, do que é equivalente etc. O fato de que tudo
retorna é a mais extrema aproximação de um mundo do devir em
relação ao mundo do ser: ápice da consideração" (7 (54)).
Os fragmentos póstumos do outono/inverno
de 1887-1888 (Grupos 9-12)

"Não tenho mais apreço pelo leitor: como poderia escre-


ver para o leitor?... Mas faço anotações sobre mim, para mim"
(9 ( 188)). O que se deve dizer em relação a essas palavras de
Nietzsche, caso se pense nas obras pouco tempo mais tarde de-
terminadas por ele para a impressão, obras como o Crepúsculo
dos ido/os, o Anticrist.o e Ecce homo? Ninguém pode duvidar
de que Nietzsche escreveu essas obras para leitores, e não para
si mesmo. Portanto, há um momento no qual ele escreve para si
e um momento no qual ele escreve para leitores. O que está em
questão aí, por sua vez, não são coisas diversas: elas são apenas
ditas de maneira diversa, com uma visão e uma intenção altera-
das, que também transfonnam com certeza os conteúdos. Quan-
do Nietzsche se dispõe a publicar um livro, ele pensa de início
nos leitores, e, por essa razão, ele se transforma em artista, ou
seja - segundo o significado que esse conceito tem para ele - ,
ele se transfonna cm mentiroso e cm comediante: "O preço que
se paga por ser artista é o fato de se experimentar tudo aquilo
que os não artistas denominam 'fonna' como conteúdo, como 'a
coisa mesma'. Com isso, passa-se a fazer parte naturalmente de
um mundo às avessas: pois, a partir de então, o conteúdo toma-se
algo meramente fonnal - incluindo ai nossa vida" (11 [3)). Preci-
samos, então, procurar nos fragmentos póstumos o Nietzsche que
diz a verdade, o filósofo, e, nas obras publicadas, o artista? Esse
modo de questionamento é, cm verdade, simplificador, sobretudo
se quisennos estendê-lo até a relação geral entre os escritos pós-
tumos e os escritos publicados. No entanto, ela pode nos ajudar
a compreender melhor o último ano de criação de Nietzsche - do
outono de 1887 até o fim de 1888.
Os fragmentos do outono e inverno de 1887-1888 abaream
reflexões preponderantemente de tipo teórico, assim como con-
siderações históricas bastante distanciadas no tom sobre o nii-
lismo e o cristianismo; seguem-se anotações sobre as leituras de
Nietzsche no interior do espaço de tempo indicado. Tudo o que é
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 583

escrito foi considerado por Nietzsche como pura coletânea de


material para a obra por ele planejada Vontade de poder. Para
a sua preparação, ele deu outro passo concreto, na medida em
que escolheu uma série de fragmentos que deveriam entrar
em uma nova obra de maneira alterada e os distinguiu por meio de
uma numeração. Nieizsche conseguiu, portanto, esboçar o conte-
údo dessa obra, ao menos no interior de limites, nos quais ele ain-
da se manteve um pensador concentrado em si mesmo. Para que
tivesse saído da \J011tade de poder de fato uma obra de Nietzsche,
teria sido necessário, porém, adicionar ainda o momento artísti-
co, que encontramos em todos os escritos publicados. Mas ele,
porém, não chegou a tanto, nem mesmo em um primeiro arroubo. É
o que prova justaniente a numeração de Nietzsche nesses cadernos,
que não passa de uma mera caracterização do material segun-
do a ordem das pãginas e que não permite reconhecer nenhuma
intenção arquitetônica.264 Arquitetônica, de qualquer modo, é a
divisão parcial do material escolhido nos quatro livros em que
Nietzsche pensou outrora a obra subdividida. Quase não é possí-
vel, portanto, descobrir algo ai do artista Nietzsche. E, contudo,
tentou-se, como se sabe, representar a Vontade de poder, como se
a obra também tivesse sido artisticamente criada por Nietzsche:
ou seja, manipulou-se, desfigurou-se, esfacelou-se, ampliou-se e
sistematizou-se esse material, supondo-se que se seria capaz, de
que se estaria conclamado e de que se teria o direito de entrar no
lugar do artista Nietzsche. O que veio à tona a partir dai foi uma
mentira, e, em verdade, não no sentido entendido por Nietzs-
che, mas no sentido de um engodo, tal como tem lugar necessa-
riamente a partir de uma falsificação nascida do pensamento da
utilidade. Como a Vontade de poder legada por Nietzsche não
estava dirigida ao "leitor", as pessoas procuraram conquistar o
leitor por uma nova "forma": mas o "artista", nesse caso, foi
o Arquivo Nietzsche!

264 Ver quanto a Isso a apresentação c:rltlco-textual no volume 14 e a lntrodu•


ção do comentário ao volume 6.
584 fRIEDRICH NIETZSCHE

Por outro lado, a lida com o projeto inorgânico da obra


Vontade de poder, tal como e&-se projeto se apresenta na obra
póstuma, permite-nos alcançar uma visão particularmente eluci-
dativa do filósofo Nietzsche, um filósofo "que faz anotações so-
bre si". Se suspendermos tudo aquilo que entrará desse material
oriundo do outono e do inverno de 1887- 1888 no Crepúsculo dos
ídolos e no Anticristo, poderemos considerar o que resta como
o sedimento de uma pura retlex.ão. Ao preferir essas duas obras
citadas, Nietzsche, em meio a um impulso agonizante, artistico-
•politico por tomar tempestiva a sua intempestividade, esfacelou
o planejado livro Vontade de poder em escritos polêmicos, tem-
pestuosos, decadentes; e isso em favor de uma temática que se
aproximava da realidade efetiva contemporânea. Além disso, ele
empreendeu tal esfacelamento para sacudir e fascinar o público.
Algo semelhante pode ser reconhecido a partir das entradas que
foram em seguida utilizadas mais amplamente, entradas feitas
nos cadernos póstumos da época dcA gaia ciência e Assim/alou
Zaratustra. O caso que nos interessa aqui, contudo, é mais signi-
ficativo, pois ele representa, sem dúvida alguma, a posição mais
extrema e talvez mesmo mais d.csafiadora no pensamento teóri-
co de Nietzsche. Poder-se-ia supor, também, que não estava tão
distante de Nietzsche a intenção sistemática. Alguns fragmentos
parecem confirmar tal suposição, e não se pode decidir com se-
gurança se a rejeição da tentação para a sistemática foi a con-
sequência de um fracasso ou de uma superação. O que está em
questão, portanto, não é aperfeiçoar um sistema, que Nietzsche
não alcançou e talvez nem mesmo quisesse alcançar. Ao contrá-
rio, o importante é muito mais dirigir nossa atenção para aqueles
pensamentos que, sob perspectivas epistemológicas totalmente
determinadas, têm por meta uma interpretação abrangente e, por
isso, articulada e em certa medida coerente da realidade efetiva.
A base dessa visão teórica é fornecida pela critica ao con-
ceito de sujeito, que é levada nessa fase às suas consequências
mais radicais. Não existe nem um sujeito do conhecimento, nem
um sujeito do querer, nem um eu, nem uma alma, nem de ma-
neira totalmente genérica um ponto médio permanente em um
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 {Vol. VII) 585

indivíduo qualquer. O âmbito de cada sujeito altera-se constan-


temente. O sujeito como realidade ou simplesmente como ponto
de referência fixo é, portanto, uma ficção. É dessa ficção cer-
tamente que se derivam os conceitos metafisicos de "ser'' e de
"substância". Em contrapartida, não existe nem mesmo o "pensa-
mento". O que é designado com esse nome também é do mesmo
modo uma ficção, que surge por meio do fato de se isolar um
elemento de um processo ou de se sintetizar um complexo de
elementos, cujo surgimento não conhecemos. Dessa maneira, o
erro transforma-se em pressuposto para o pensamento: antes de
pensarmos algo, jâ precisa ter o<:arrido um arranjo, uma organi-
zação, uma falsificação. E tudo aquilo que se impõe em nossa
consciência - as representações do mundo exterior tanto quanto
as representações do mundo interior - não passa de uma constru-
ção, de uma interpretação sobre a base de elementos, cujo nexo,
cuja causalidade permanecem completamente velados para nós.
O que denominamos "coisa", portanto, é uma esquematização
arbitrária - e, contudo, construímos nossa lógica sobre o con-
junto dessas falsificações. O principio de não contradição é um
imperativo: " ...não para o conhecimento do verdadeiro, mas para
o estabelecimento e para a organização de um mundo, que deve
se chamar verdadeira para nós" (9 [97)). O mundo parece ló-
gico para nós porque nós o tomamos lógico. A compulsão, com
base na qual criamos conceitos, formas, metas e leis, não reflete
nenhum mundo verdadeiro, mas tem por meta erigir um mundo
para nós, que toma possível a nossa vida.
A abertura de tal perspectiva epistemológica represen-
ta uma grande realização teórica, ainda que ela não tenha sido
aparentemente compreendida e suficientemente honrada pelos
filósofos de nosso tempo (o que se deve naturalmente cm parte
ao modo como se deu a recepção da vontade de poder). Certo,
porém, é aqui o fato de nós não nos encontrarmos no plano da
especulação positivista ou meramente psicológica. Em face dessa
critica radical aos pressupostos, aos instrumentos e aos resultados
do conhecimento, mesmo a nova metafísica de cunhagem scho-
penbaueriana, à qual Nietzsche tinha chegado na época de Para
5S6 FRIEORICH NIETZSCHE

além do bem e do mal e Genealogia da moral, parece vacilar. A


ampliação e aprofundamento da critica ao "sujeito" também pre-
cisa exercer necessariamente uma influência sobre a concepção
do fazer e do querer (uma demonstração da probidade intelectual
de Nietzsche). No fazer, aquele que corresponde ao sujeito, ou
seja, o agente, "é conceitualmente retirado dele". Ele é, portanto,
uma ficção, como são ficções também a ''meta" e a "intenção".
Por outro lado, assim como não há o pensamento, também não
há um "querer algo". O conceito metafisico da vontade de poder,
do qual se deduz toda relação com um sujeito permanente, vê-se,
com isso, ameaçado de se dissolver. Nietzsche tenta de diversas
formas fixá-la antiteticamente ante as determinações de Schope-
nhauer: só o contrapor-se a um obstáculo desvela a vontade de
poder, e o impulso nela não é nenhum impulso de autoconserva-
ção, não é nenhuma vontade de vida, pois o protoplasma, "de ma-
neira absurda, absorve mais em si do que seria condicionado pela
conservação: e, sobretudo, ele justamente não 'se conserva' com
isso, mas se fragmenta ..." (11 (121)). A filosofia do sofrimento,
tal como foi desenvolvida na época de Para além do bem e do
mal, transcorre concomitantemente em meio a essa temática. A
vida não aspira à felicidade, mas ao poder, e o que aspira não são
os indivíduos - que não possuem nenhuma realidade autêntica -,
mas suas esferas de poder não tangíveis em sua mudança eterna.
As resistências contra a vontade causam dor, mas essa dor, o ser
não satisfeito dos impulsos, não oprime a vontade de poder, mas
a fortalece. Mesmo o prazer é "um ritmo de pequenos cstimulos
de desprazer" (11 [76)). Nietzsche afirma que o prazer não pro-
vém da satisfação da vontade, "mas que a vontade quer seguir em
frente e sempre se tomar senhora daquilo que se encontra em seu
caminho: o sentimento de prazer reside precisamente na insatis-
fação da vontade, no fato de ela ainda não se encontrar suficiente-
mente satisfeita sem os limites e as resistências..." (11 (75]). Essa
busca, essa variação de perspectivas e formulações, tem por meta
dar expressão ao fundamento obscuro da existência, que Nietzs-
che "sente", sem decair aí sob o enrijecimento sistemático, sob a
conceptualidade metafisica (sob o fantasma de Schopenhauer!).
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-188!1 (Vol. VII) S87

Até mesmo a interpretação intelectualista dos impulsos e sen-


timentos, que remonta ao tempo de Humano, demasiadamente
humano, auxilia Nietzsche: "Desprazer e prazer são os meios
mais estúpidos que podemos pensar para expressar juízos (... ).
Sua origem é a esfera central do intelecto" (li (71 ]). Por outro
lado: " ... o avaliar mesmo é apenas essa vontade de poder (... ).
Apreciar o próprio ser: mas avaliar mesmo é ainda esse ser-: e,
na medida em que dizemos não, continuamos sempre fazendo o
que somos..." (11 (96]). Por fim, encontramo-nos diante de uma
vontade de poder que é ao mesmo tempo valoração e ser: quase
uma sintese mística, na qual a substância metafisica, o "ser", se
apresenta ao mesmo tempo como juí.zo e como vontade, ou seja,
como racional e como irracional. Os fios confundem-se de ma-
neira indeslinclável. A busca teórica impelida para um ponto tão
profundo, a busca das condições,não tangíveis da consciência, da
falsificação da consciência, cai sobre si mesma, interrompe-se e
parece caminhar, por fim, completamente morta, sem encontrar
dessa vez seu equilíbrio no ceticismo, pois não há como aplacar
essa tormenta.
Nem mesmo a ciência pode oferecer um auxílio contra
esse desenvolvimento furioso. Jâ há alguns anos, Nietzsche tinha
subtraído à ciência o papel principal; agora, ele diz: "Profando
enfraquecimento da espontaneidade: - o historiador, o critico, o
analitico, o intérprete, o observador, o colecionador, o leitor - to-
dos talentos reatívos: todos ciência!" (10 (8)). Em contrapartida,
a ciência recai no elogio catártico da mentira, que é a única a em-
prestar sentido, aos olhos de Nietzsche, para o fracasso teórico,
que pode transvcrter esse fracasso. Se só a mentira pode ajudar
o homem a viver e se, por outro lado, tudo aquilo que ganha a
nossa consciência é o produto de um impulso falsificador, então
o homem não tem nenhuma outra escolha senão mentir em todas
as suas aspirações e modos de expressão: "A metafisica, a moral,
a religião, a ciência - elas(...) ,só são levadas em consideração
como formas diversas da mentira: com o seu auxílio, acredita-
-se na vida." Mas esse impulso à mentira é, segundo Nietzsche,
exatamente o mesmo que o impulso artístico, de tal modo que a
588 FRIEDRICH NIETZSCHE

arte se revela como a categoria dominante e abrangente na qual


todas as assim chamadas atividades recaem: "O fato de o caráter
do ser-ai ser desconhecido - intenção secreta mais profunda e
mais elevada <da> ciência, castidade, caráter artístico. Muitas
coisas não ver nunca, muitas coisas ver de maneira falsa, muitas
coisas acrescentar por meio da visão( ...). Em instantes, nos quais
o homem é enganado, nos quais ele acredita uma vez mais na
vida, nos quais ele se ilude: 6, como ela cresce para ele nesse
caso! Que deslumbramento! (...} E quando quer que o homem se
alegre, ele é sempre o mesmo em sua alegria: ele se alegra como
artista, ele goza de si como poder. A mentira é o poder..." ( li
[451). Dessa maneira, a filosofia da vontade de poder transforma-
-se na filosofia da mentira. Sob outro nome, a metafisica da arte
do Nascimento da tragédia retoma uma vez mais; o circulo das
aventuras especulativas de Nietzsche se fecha.
A filosofia da mentira, que se desenvolve a partir da der-
rocada da teoria, é, contudo, como o próprio Niet2Sehe diz, uma
concepção particularmente sombria e desagradável do mundo.
Em oposição a esse pessimismo teórico encontra-se um otimis-
mo vita.1: "Toda a beleza e todo o sublime que emprestamos às
coisas reais e imaginárias, quero exigir de volta corno proprieda-
de e produto do homem: corno a sua mais bela apologia. O ho-
mem como poeta, como pensador, corno deus, como amor, como
poder -: 6, falar sobre o seu caráter imperial dadivoso, com o
qual ele presenteou as coisas, a fim de se empobrecer e de se
sentir miserável!" (11 (87)). Na mentira desvela-se a eternidade:
"Parece-me(...) que tudo tem valor demais, para que pudesse ser
fugidio: busco uma eternidade para cada coisa(... ) e meu consolo
é que tudo aquilo que foi é eterno: - o mar enxãgua tudo e joga
uma vez mais para fora" (11 [94)).
Até aqui temos aquele Nietzsche que "faz anotações sobre
si". Todavia, mesmo na parte do material que se ocupa com ques-
tões históricas e culturais, o tom de Niet7.sche é extraordinaria-
mente sóbrio, quase contemplativo. Basta comparar as passagens
paralelas do Crepúsculo dos ídolos e do Anticristo, nas quais esse
material é "artisticamente" elaborado. Em meio ao uso duplo do
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 (Vol. VII) 589

conceito de "niilismo", que designa, por um lado, uma meta de


ataque polêmica (ou seja, um movimento de decadência novo e
antigo que precisa ser combatid.o), e, por outro, uma fase neces-
sária, que abre o caminho para uma vida autônoma e afirmativa,
os fragmentos aqui considerados oferecem preponderantemente
um testemunho da avaliação positiva. Reiteradamente, Nietzsche
mesmo designa a si mesmo como niilista, elogia o niilismo como
consequência de uma veracidade adulta. Hoje, como fenômeno
conjunto, o niilismo seria um sinal de um crescimento decidido.
Ele oferece ao filósofo descanso: "A crença em que não há abso-
lutamente nenhuma verdade, a crença dos niilistas, é um grande
espreguiçar-se para alguém que se acha constantemente em luta
como um guerreiro do conhecimento com verdades puramente
feias" (11 [108)). Todos os fragmentos antipolíticos, nos quais se
aconselha a que não nos oponhamos à negatividade do presente,
a não intervinnos no âmbito do agir, estão em consonância com
essa avaliação positiva do niilismo. Compare-se, com isso, a "lei
contra o cristianismo", que Nietzsche poucos meses mais tarde
anunciara furibundo! Aqui, cm contrapartida, afirma-se que o
ideal cristão precisaria continuar existindo, pois há a necessidade
de adversàrios; Nietzsche aconselha que se deixe aos medianos a
alegria com a sua medianidade e d.eclara que o ódio aos medianos
seria indigno de um filósofo; ele acha que a estupidez e a crimi-
nalidade precisariwn crescer e que nisso justamente consistiria o
progresso. O nivelamento da humanidade, o mito da igualdade
seria, segundo ele, algo de bom e precisaria ser ampliado até a
maior exploração possivel do homem, até a criação da máquina
total, pois só assim poderia surgir um contramovimento.
Na atmosfera contemplativa de seu último inverno italia-
no, Nietzsche ainda consegue ir além dessa posição por meio
do distanciwnento e de suas "convicções". Diversos fragmentos
tomam possível reconhecer até mesmo uma inversão profética de
seu imoralismo. Profética, porque ela parece antecipar um pro-
blema de nossos dias. Se o imoralismo triunfasse, se a "maioria"
se tomasse imoral, o que restaria dizer, então, sobre a virtude? De
fato, nesse caso, a imoralidade dos muitos se tornaria a "moral"...
590 FRIEDRICH NIETZSCHE

Justamente o imoralista Nietzsche auxilia-nos na resolução desse


problema, ao inesperadamente dizer que a ascese, o jejum e o
mosteiro teriam sido arrui.nados pela Igreja; ao elogiar a virtude
como uma aventura, como flnesse, como astúcia e avidez por po-
der; ao elogiar o bem como luxo, refinamento e vicio; ao nos dizer
que a intolerância contra os padres teria "chegado a um fim" -
precisamente porque seria imoral acreditar cm Deus, justifica-se
a crença... "A virtude tem todos os instintos do homem mediano
contra si: ela é desvantajosa, desprovida de perspicácia, ela isola,
ele é aparentada com a paixão(... ) ela é o pior dos vícios" (10
[109)). "Por fim, o que alcancei? Não encubramos para nós esse
resultado de todos o mais espantoso: conferi à virtude um novo
encanto - ela age como algo proibido (...) ela é cafona no cheiro
e anquilosante, de tal modo que acaba por atrair o refinado e por
deixá-lo curioso; - em suma, ela age como um vício. Somente
depois de ter reconhecido tudo como mentira, aparência, também
obtivemos uma vez mais a permissão para essa falsidade de todas
a mais bela, a falsidade da virtude" ( 1O[ 110)).
Os fragmentos póstumos do início de 1888
até Janeiro de 1889 (Grupos 13-25)

Os fragmentos póstumos do outono de 1887 até o outono


de 1888 formam o depósito abrangente do qual Nietzsche retirou
o material para seus últimos escritos publicados ou determinados
para a publicação. Nesse material de construção caótico, reuni-
do com uma aplicação inacreditável, causa espanto a vontade de
uma autorrealização, que se esconde por detrás dai e é desvelada
por meio dai. A partir do ponto de vista teórico, os fragmentos
que começam a partir do início do ano 1888 revelam antes um
retomo, medido a partir daquilo que Nietzsche tinha escrito nos
meses precedentes; em compensação, vem à tona paulatinamente
um novo elemento: a narrativa autobiogrãfica, a documentação
da própria pessoa como componente filosófico ou até mesmo
como resolução catãrtica. Tudo se dã como se Nietzsche estives-
se farto da lida com conceitos abstratos. Ele tinha essas caixas da
filosofia, que se achavam combinadas segundo todos os padrões
possíveis, e deduziu daí os significados mais contraditórios e pa-
radoxais. Por fim, porém, os conceitos continuavam sendo sem-
pre os mesmos, e não se podia - ou ao menos ele não conseguia -
desenvolver a partir daí nenhum conceito novo. Investigar outros
âmbitos da abstração parecia-lhe ocioso, talvez mesmo cansativo
demais, mas, sobretudo, exigia muito tempo. Nietzsche tinha re-
pentinamente pressa; além disso, é possivel que ele tenha tido a
impressão de já ter quebrado todas essas nozes: os conceitos da
moral, da lógica, da metafisica tinham sido demolidos por seu
ceticismo; o ceticismo, contudo, ainda tinha aniquilado, também,
os conceitos diretrizes daquela própria obra de destruição.
Com o auxílio de seus fragmentos descobre-se o outro lado
do filósofo, aquele lado que Nietzsche tinha querido manter vela-
do: o lado próprio a um homem com sede de vida, que tinha con-
denado a si mesmo à abstração e estava obrigado a buscar nessa
abstração seus estimulantes, o lado próprio a alguém que trans-
formava tudo aquilo em que tocava em uma sombra desprovida
de sangue. Por fim, farto das palavras e das caixas vazias e sem
592 fRIEDRICH NIETZSCHE

companheiros, ele precisou tomar a vida a partir de si mesmo, se


é que ele ainda estava disposto ;a encontrá-la. Aqui, em face do
material póstumo do último ano de produção, no qual Nietzsche
ainda pensa e escreve, as coisas se mostram como se estivésse-
mos entrando cm um labor no qual o filósofo experimentava com
novas técnicas. Pouco antes da última erupção expressiva, antes
do repentino surgimento de seus últimos escritos - este chamariz
no fundo, para enredar os homens e o mundo nos destinos de seu
cérebro-, encontramos agora o homem sozinho consigo mesmo,
oprimido por suas repetições, indeciso quanto ao caminho a ser
tomado, dotado de poucos expedientes, preso nas redes de sua
própria argumentação. Nietzsche tinha efetivamente chegado a
um beco sem saída, pois não conseguiu escapar dos conceitos
universais sobrecarregados de "ciência", "arte", "filosofia", "de-
cadência", "moral" etc. por uma via ainda racional - nem rumo a
novas distinções clarificadoras e, específicas, nem rumo à pureza
das categorias 16gicas. O enfad.o ante tais conteúdos o impele
para a interioridade. Vê-se que Nietzsche se desespera nos frag-
mentos do início do ano 1888 e se empenha por encontrar uma
inspiração, que deveria advir-lhe (em oposição mesmo a suas
opiniões quanto a isto) durante a escrita; observa-se como ele
luta esgotado já com exposições, críticas, esquemas e programas
já muitas vezes formulados, como ele retoma a pontos de partida
epistemoló1,ricos já superados e até mesmo renova refutações há
muito ultrapassadas da doutrina ,cristã.
Nessa atmosfera desesperançada, na qual todo o seu instru-
mcntário, assim como os conceitos abstratos por ele manipula-
dos, se lhe mostram como gastos e inúteis, Nietz.sche s6 encontra
um estimulo voltando-se para a sua própria pessoa. Esse é um
método desesperado para alcançar o estado no qual poderiam
acontecer o milagre literário e o milagre estillstico e no qual for-
ma e conteúdo poderiam se fundir um no outro. Assim, nesse ma-
terial póstumo, encontramos a lembrança de Wagner, a primeira
virada de volta para os acontecimentos da própria vida, uma série
de fragmentos l!ricos. E, de maneira paradoxal, o retomo teórico
conduz por fim de qualquer modo a novas formulações teóricas,
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 593

nas quais se esconde por detrás do brilho e)(terior e da arrogância


uma profundidade que ainda não foi investigada em sua dimen-
são propriamente dita. O fato d.e o valor de um filósofo, de um
artista residir em um elemento pessoal, menos em uma deter-
minada postura do que em sua natureza, cm seu caráter, é um
indício que tem por meta superar a literatura ou, em todo caso,
a e"prcssão mcdiata em favor de uma manifestação imediata de
sabedoria, de superioridade de uma sabedoria fisiológica. Essa é
a nova doutrina, ainda que ela já se ache abortada na origem, à
qual Nietzsche chega em seu último ano de produção. O fato de
o nível hierárquico, a força pensante de um filósofo, ser detenni-
nado pela "genialidade" de sua alimentação parece um e"agero
parado"al de um momento positivista ou materialista banal. Mas
será que as discussões sobre alimentação que encontramos nos
Upa11ishads são positivistas? Por isso, a discussão sobre alimen-
tação per se ainda não se mostra como nenhum sinal da doença
em Nietzsche; trata-se muito mais de um aceno sério para o en-
fado de um filósofo com a abstração, com a conquista de novos
pontos de vista, com novas necessidades. De resto, é conhecido o
fato de que, nos indianos, a disciplina da respiração faz parte das
técnicas por meio das quais se chega ao conhecimento supremo.
Em um sentido mais genérico, essa virada de volta de Nietzsche
para a sua própria pessoa, para o próprio interior, é o caminho
que toda filosofia mística percorreu, ainda que Nietzsche saiba
escondê-lo prudentemente por detrás de uma exposição ilusio-
nista. Ele retoma a si mesmo e descobre novos âmbitos. Mas não
se tr:ata de uma solução, de uma reconciliação, pois esse retrair-se
é apenas um processo parcial, ele diz respeito apenas a um lado
de um indivíduo entrementes dividido.
Nietzsche não pode se entregar à inclinação mlstica; a in-
satisfação, a tensão interna e o esgarçamento o impedem. Ainda
antes da perturbação propriamente dita nota-se em seu pensa-
mento uma anarquia lentamente progressiva dos conteúdos. As
anotações escritas nesses meses que se encontram na obra pós-
tuma atestam isso. Por outro lado, retomam, como no inverno
de 1887-1888, acenos de um aprofundamento da temática de O
594 fRIEDRICH NIETZSCHE

nascimento da tragédia, exposições com as quais Nietzsche tenta


superar em uma filosofia da me:ntira a concepção da vontade de
poder. Por essa visão, arte, religião, filosofia e ciência são ou-
tros tantos aspectos de uma inclinação universal para a mentira.
Teoricamente, isso significa um passo para a frente, mas Nietzs•
che se manteve parado junto a essas alusões, não as desenvolveu
ulteriormente. Em contrapartida, no mesmo período, presta-se
por vezes uma vez mais uma homenagem à ciência (ao lado da
censura), de qualquer modo sem que sejam acrescentados no-
vos argumentos - e esse elogio revela um retrocesso em relação
a objeções anteriores; do mesmo modo, vem à tona novamen-
te a antitese entre ciência e filosofia, que é resolvida em favor
da primeira. Além disso, a critica à contraposição entre mundo
"verdadeiro" e mundo "aparente", para a qual se voltam muitos
desses fragmentos e que retoma no Crepúsculo dos Ido/os, é te•
orieamente fraca, ilusionista, em todo caso inferior a argumenta-
ções anteriores de Nietzsche. O mesmo pode ser dito da crítica ao
conceito de causalidade, no qual reaparecem fórmulas superadas.
Por vezes, o leitor se sente quase transportado de volta para IO
anos antes, quando se vê como Nietzsche se apressa em direção
a interpretações positivistas. Esse aspecto retrógrado fica particu-
larmente claro por meio de uma passagem na qual Nietzsche com-
bate a "criação" do mundo. Pa~ece quase óbvio que, no estãgio
agora alcançado de seu pensamento, ele não deveria se manter
um único instante junto a tal problema.
Como se sabe, todo esse material de Nietzsche foi reunido
com vistas ao projeto de uma grande obra: a obra Vontade de po-
der. Manifestamente, porém, esses fragmentos, escritos no início
do ano 1888, apesar de sua profusão quantitativa, não dão a Niet-
zsche a sensação de ter dado um. passo decisivo para a realização
efetiva de seu plano. Poder-se-ia antes afirmar o contrário, que
ele se sentiu mais distante do que nunca de sua meta. Falta a.i
todo e qualquer indicio de uma tentativa de organizar e dividir o
material, faltam as montagens e as numerações, ta.l como nós as
encontramos nos cadernos do inverno anterior. A discussão teó-
rica do conceito de vontade de poder é, com exceção de poucos
FRAGMENTOS PÓSTUMOS, 1887-1889 {Vol. VII) 595

fragmentos, abortada. Algum tempo mais tarde, o "grande" plano


é abandonado e se esfacela em uma série de outros escritos. Po-
rém, mais ainda do que a desconfiança em uma tentativa sistemá-
tica, algo que se mostrava como avesso à natureza mais íntima de
Nietzsche, e talvez mais do que a confissão de uma incapacidade,
de uma fraqueza, mais ainda do que a demolição dos conceitos
fundamentais, que tinham servido como instrumentos para sua
investigação e que estavam se quebrando agora (como se pode
observar junto ao conceito do fazer e até mesmo junto ao do que-
rer) para ele em suas mãos em meio a seu ceticismo destrutivo
- mais do que tudo isso, irrompe decisivamente por essa época
um sentimento de vazio, de um empobrecimento teórico, a falta
de novas intuições, de invenções abstratas que compensassem
a recusa à vontade de poder. Nos cadernos desses meses causa
espanto a frequência com a qual Nietzsche projeta folhas de rosto
para sua obra planejada, anotando a divisão de conteúdo interno
das diversas partes, a sequência dos capítulos - mas tudo isso cm
repetições quase literais, com uma temática monótona, mais do
que conhecida para ele, com conduções de demonstrações que
retomam constantemente. Sua vontade o mantém preso à escriva-
ninha, mas, nessa aridez, surgem mais anotações oriundas de tais
esquemas do que de elaborações articuladas, cheias de ideias, nas
quais ele reteria algo sobre o que tinha refletido anteriormente.
Mesmo sua busca usual de estímulos por meio da leitura parece
retroceder por essa época. S6 o livro de Jacolliot sobre a Lei do
Manu indiana exerce uma grande impressão, sim, uma impres-
são exagerada sobre ele. Os rastros dessa leitura encontram-se
com frequência nos cadernos e também entram, em seguida, no
Crepúsculo dos ídolos. Em face da perspectiva ampliadora, sob a
qual Nietzsche considera aqui esse código, não se tem outra pos-
sibilidade senão pensar no exagero de coisas e pessoas que vai
caracterizar seu último período em Turim. Nessa situação, tudo 6
determinado a partir da casualidade de uma leitura particular.
Os últimos fragmentos impressos aqui documentam (junta-
mente com as cartas do mesmo período) a transição para a loucura.
Já anteriormente, 6 possivel constatar indlcios de uma perturbação
596 FRIEORICH NIETZSCHE

espiritual trágica, por exemplo, :na "lei contra o cristianismo" ou


na violência de certas declarações contra os antissemitas. O que
espanta, no entanto, é o número exíguo de textos. Trata-se apenas
de poucas páginas dedicadas à "grande política", nas quais é de-
clarada uma "guerra de morte" aos hohenzollerianos. Em outras
palavras: quase na mesma época, na qual Nie12Sche perde o en-
tendimento, ele deixa de ser literato. Quem passou a sua vida com
a escrita não pode parar repentinamente de escrever, enquanto a
doença ainda o permitir; o hábito o arrasta ainda por um tempo.
Essa fase de wna transição trágica e rápida só deixa para trás wn
rastro tênue no âmbito limítrofe entre a saúde e a doença. Para
além disso, toda hipótese é possí.vel, começando com a afirmação
de que Nietzsche, em cada uma de suas épocas, em cada uma de
suas obras, escreve como um "possuído por um deus" ou, segundo
a visão dos gregos, como um homem arrebatado pela "loucura".
Assim como muitas seções do Ecce homo se mostram, por exem-
plo, para um olhar frio e sóbrio como desvario, elas se desvelam,
por outro lado, para alguém capaz e disposto a se entregar a outra
fonna de comunicação como alusões esotéricas, como símbolos
de uma tragédia obscura, como oonversões gestuais.

Giorgio Colli
FORENSE
UNIVERSITÁRIA
www.forenseuniversit1ri1.c;om.br
bllacpinto@grupogen.com.br

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