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(DOSSIÊ: OUTRAS VIDAS CONTRA O ESPETÁCULO:

O ANIMAL, A PLANTA, A MÁQUINA E O ALIEN}

Plantas e filosofia,
plantas ou filosofia
Plants and philosophy, plants or philosophy

Michael Marder*
Tradução do original inglês por Ana Clara Abrantes Simões
e Andityas Soares de Moura Costa Matos

Resumo: O presente artigo reflete sobre Abstract: This paper reflects on the
o atual interesse da filosofia e das current interest of philosophy and
ciências em geral nas plantas, em sciences in general in plants, especially in
especial tendo em vista seu caráter view of its collective and decentralized
coletivo e descentralizado, o que, longe character, which, far from guaranteeing
de garantir qualquer mudança radical no any radical change in thought and in the
pensamento e no mundo, pode world, may represent a deepening of the
representar um aprofundamento da inherent displacing character of
deslocalização inerente ao capitalismo. capitalism. Thus, starting from the
Dessa maneira, partindo das complexas complex (ir)relations between plants and
(ir)relações entre plantas e filosofia, philosophy, the text points to the
aponta-se para a dimensão metafísica metaphysical dimension that the debate
que o debate sobre a suposta about the supposed “intelligence” of
“inteligência” das plantas envolve hoje, o plants involves today, which can be
qual pode ser contraposto a outro opposed to another model, difficult to be
modelo, dificilmente capturável pelo captured by capitalism, that of the plant-
capitalismo, qual seja, o do pensar- thinking, briefly outlined here.
planta aqui brevemente delineado.
Keywords: plants; philosophy;
Palavras-chave: plantas; filosofia; metaphysics; capitalism; thought.
metafísica; capitalismo; pensamento.

Este é um artigo publicado em


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Attribution, que permite uso,
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que o trabalho original seja
corretamente citado.

* Ikerbasque Research Professor no Departamento de Filosofia da Universidade do País Basco (UPV-EHU).


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DOI: https://doi.org/10.53981/destroos.v2i1.34168
I. na derrubada e na negação do ser
vegetal.
Quando, há pouco mais de dez anos,
comecei a trabalhar com o nexo entre a A marginalização das plantas no cânone
filosofia e a vida das plantas,1 existiam intelectual do Ocidente não é mero
pouquíssimos estudos sobre o tema. esquecimento; é um sintoma de mal-estar,
Presente de maneira subterrânea na senão de repressão, surgido a partir da
história intelectual do Ocidente, o mundo fonte de repúdio que é a filosofia
vegetal ainda não era um tema legítimo metafísica, que a apresenta com uma
no repertório da autorrespeitada imagem de espelho invertido. Ao invés
pesquisa filosófica em 2008. Uma da conjunção “plantas e filosofia”, a
exceção notável à regra geral foi o tendência da metafísica tem sido
estudo meticuloso de Elaine Miller, The produzir a disjunção “plantas ou
vegetative soul: from philosophy of nature filosofia”, omitindo convenientemente o
to subjectivity in the feminine (A alma fato de que o pensamento metafísico se
vegetativa: da filosofia da natureza à consolidou em virtude de sua
subjetividade no feminino).2 Apreciei muito autocompreensão como não-planta.
as explorações de Miller sobre como a
subjetividade das plantas foi construída A abordagem da vida vegetal que
no pensamento do século XIX, desenvolvi objetiva revolucionar a
particularmente sob a óptica hegeliana, metafísica a partir de dentro: dar-lhe a
e como os seus traços foram, então, volta e obrigá-la a confrontar seu
atribuídos à feminilidade humana. repúdio em relação à planta. As
implicações de tal gesto foram forçadas
A minha própria preocupação era com o a exceder o escopo da filosofia teorética
lugar das plantas na tradição metafísica propriamente dita, estendendo-se aos
do Ocidente, tradição que, iniciada com domínios da ética, da política, da
Platão, valoriza o ser imutável, imune às estética e da ecologia, entre outros. Para
mudanças no mundo “empírico”: ideias, mim, essas foram e são algumas das
motor imóvel, substância, Deus, ramificações positivas da crítica da
subjetividade transcendental, e assim por metafísica, da qual o meu pensamento
diante. Concluí que não só as plantas tinha recebido seu impulso inicial.
eram definidas por sua capacidade de
metamorfose, crescimento e decadência Enquanto isso, um grupo de cientistas de
nas antípodas desses devaneios plantas, que se comprometeu em
metafísicos, mas também que a elaborar o problema da “inteligência
metafísica encontrou a sua raison d’être das plantas” – o qual, posteriormente, foi
renomeado como “sinalização e
comportamento das plantas”3 –, buscou

1 Até agora, além de vários artigos e capítulos de livros sobre o assunto, publiquei cinco livros dedicados
à filosofia e às plantas: Pensar-planta: a filosofia da vida vegetal (Plant-thinking: a philosophy of vegetal
life, New York: Columbia University, 2013); A planta do filósofo: um herbário intelectual, com desenhos
de Mathilde Roussel (The philosopher’s plant: an intellectual herbarium. New York: Columbia University,
2014); O herbário de Tchernóbil: fragmentos de uma consciência explodida, com fotogramas de Anaïs
Tondeur (The Chernobyl herbarium: fragments of an exploded consciousness, London: Open Humanities,
2016); Através do ser vegetal: duas perspectivas filosóficas, com Luce Irigaray (Through vegetal being:
two philosophical perspectives, New York: Columbia University, 2016); e Enxertos: escritos sobre as plantas
(Grafts: writings on plants, Minneapolis: University of Minnesota, 2016).
2 MILLER, The vegetative soul.
3 Referenciado pela associação e revistas científicas pelo mesmo nome.

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melhorar a forma como o assunto de sua uma mentalidade metafísica que está
disciplina tinha sido enquadrado como (aqui vem uma amarga ironia!) na raiz do
um objeto imerso em um torpor tratamento antiético dedicado a plantas,
inconsciente. Seus experimentos sobre animais e incontáveis humanos. A
aprendizagem, tomadas de decisão e libertação das plantas de sua
outros processos cognitivos das plantas objetificação é igualmente uma
exigiram interpretações ousadas que oportunidade para a emancipação
atribuíam agência e atividade às humana dos laços fabricados por nossa
plantas. No entanto, eles não deslocaram identificação como sujeitos, os quais nos
as coordenadas para uma interpretação separam do mundo exterior.
sensata do mundo e deixaram a noção
de agência intacta, apesar de torná-la Para que não se pense que estou me
potencialmente mais inclusiva a entregando a sutilezas conceituais, a
entidades anteriormente consideradas questão em jogo não é puramente
passivas. acadêmica. As discussões científicas
sobre o que as plantas sabem,5 sobre
Embora eu seja profundamente simpático inteligência vegetal,6 sinalização e
a esse projeto científico heterodoxo, comunicação das plantas,7 parecem
acredito que um encontro do pensamento romper com o desrespeito (ou até mesmo
com as plantas demanda uma mudança abuso) com nossos “primos verdes”,
mais radical: desacoplar as agora postos em seus devidos lugares
características ativas, autônomas, como sujeitos. Não devemos ter ilusões,
soberanas e, no fundo, dominadoras da todavia: os conhecimentos sobre as
subjetividade da própria ideia de um plantas não são poupados do destino
sujeito e questionar a lógica por trás reservado a todos os outros modos e
dessa categoria filosófica. A escolha sistemas de conhecimento sob o
entre objetos passivos para agir sobre e capitalismo, que os extrai dos cientistas
sujeitos produtivos-ativos é falsa; de para transformá-los em lucrativas formas
fato, trata-se de uma parte do legado de valor. Ser considerado um sujeito não-
metafísico que teima em durar hoje, humano ou uma pessoa não-humana8 não
mesmo quando a divisão sujeito-objeto é uma panaceia da exploração político-
está passando por um desmantelamento econômica; ao contrário, são os sujeitos e
ou uma desconstrução maciça. Esse é o as pessoas os titulares temporários de
problema com o, em outro sentido bem- valor econômico nas “economias do
intencionado, livro de Matthew Hall, conhecimento”. O perigo inconsciente que
Plants as persons (Plantas como pessoas).4 espreita nas sombras da concessão de
Para justificar a necessidade de um subjetividade a plantas, a animais e a
tratamento ético das plantas, Hall sente ecossistemas inteiros não é só que o
que deve provar que elas são sujeitos capitalismo global pode astutamente
com posições autônomas no mundo, cooptar desafios ao antropocentrismo,
incluindo a busca de fins determinados e mas também que o novíssimo status de
personalidade. Escapa-lhe que tal se vidas outras não humanas pode, na
deve, de modo geral, às imposições de verdade, ser o próximo passo lógico na

4 HALL, Plants as persons.


5 CHAMOVITZ, What a plant knows.
6 MANCUSO; VIOLA Brilliant green.
7 BALUŠKA; MANCUSO, Communication in plants e TREVAWAS, Plant behavior and intelligence.
8 Recentemente, o termo “pessoas não-humanas” foi utilizado em MORTON, Humankind.

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extensão das mercadorias imateriais, casos empíricos pode ser subsumida sob
subjetivas e mediadas cognitivamente. A a generalidade de teses e conclusões
ampliação da esfera subjetiva é propícia filosóficas e científicas. Uma indústria
ao crescimento não de plantas, mas de editorial começou assim praticamente da
capital. Afinal, a forma dominante da noite para o dia.
mercadoria hoje não é um objeto
consumível; ela é o próprio sujeito em A sociologia ambiental, por sua vez, tem
todo seu esplendor multicolorido e a chance de ir muito além do caminho
pluralista. trilhado pela aplicação da teoria do
ready-made. Para começar, o nome da
Então, como a filosofia deve se engajar disciplina é próprio do ser das plantas.
com as plantas de modo a evitar cair nas Mais fielmente que a botânica, a
armadilhas da metafísica e do psicologia e a filosofia, a socio-logia
capitalismo, este último sendo um avatar reflete a subjetividade vegetal. Primeiro,
contemporâneo do primeiro? A cada planta é um socium, uma sociedade
abordagem dessa questão, que vem me de crescimento semi-independente – um
incomodando há algum tempo, constituirá “ser coletivo” nas palavras de Brisseau-
a maior parte do texto a seguir. Contudo, Mirbel, botânico francês do século XIX10
antes de fazer isso, são necessárias – de fungos, bactérias e outros
algumas palavras sobre a contribuição microrganismos que habitam zonas de
única que a sociologia ambiental pode transição em torno das raízes, ou de
trazer para se repensar a vida vegetal. insetos e animais pairando em torno de
suas porções acima do solo. Em segundo
Uma verdadeira explosão de “estudos lugar, ao invés de uma pilha aleatória, o
críticos sobre as plantas” nos últimos três conjunto de multiplicidades vegetais e
anos levou estudiosos de humanidades de não vegetais é uma articulação ou, para
diversas origens (principalmente de colocar em grego, o lógos da vida e das
estudos literários, culturais e vidas. Dessas teses decorrem que uma
cinematográficos) a assumirem os fios teoria robusta do ser planta deve ser
das investigações científicas e filosóficas. socio-lógica. O qualificador “ambiental”
Em muitos casos, os esforços críticos se também está longe de ser meramente
contentam em aplicar as teorias decorativo, pois a subjetividade vegetal
emergentes da vida vegetal às suas não é uma interioridade retirada do
próprias preocupações disciplinares.9 mundo (no caso dos humanos, tal
Seguindo esse método, eles se arriscam a interioridade pode não ser mais do que
replicar a dinâmica exploradora do uma ficção metafísica), mas um modo de
capitalismo que extrai valor dos existência voltado para o exterior, uma
conhecimentos das plantas. Para os coexistência com seu meio.
estudos aplicados, a filosofia e a ciência
fornecem uma espécie de mais-valia que Interpretada nessas linhas, a sociologia
contém, em poucas palavras, as ambiental supera a polarização entre a
perspectivas que as disciplinas sociedade humana e o ambiente não-
humanísticas e as ciências sociais humano. Trata-se de uma sociedade por
posteriormente transferem para direito próprio, repleta de suas próprias
determinado filme, obra literária ou logói-articulações, que não pode mais
processo sociopolítico. Uma miríade de denotar o contexto imperceptível para

9 Uma exceção notável é a obra de VIEIRA; RYAN; GAGLIANO, The Language of plants.
10 Apud CANGUILHEM, Knowledge of life, p. 41.
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nossa existência cultural, política e Por um lado, o foco na constituição
econômica. Principalmente se tiver a ver coletiva das plantas – as fronteiras
com a vida das plantas. borradas entre espécimes individuais e
comunidades inteiras – determina a
teoria evolucionista convencional,
II. enredada em um círculo vicioso de
Voltemos à questão do engajamento da feedback com autoconcepções humanas
filosofia com as plantas, questão que histórico e culturalmente situadas. Uma
trataremos ao longo dessas reflexões. representação típica da interação
Dizer que ela é puramente teórica, sem organismo-ambiente é a de uma
relação com os processos sociais e maximização oportunista de energia e
políticos aos quais pode ser aplicada outros recursos a serviço da
posteriormente, é errar o ponto de sobrevivência individual, seja do fenótipo
partida. Como argumento em meus ou do “gene egoísta” do genótipo que,
trabalhos mais recentes, ainda inéditos, a por assim dizer, regula quase
vegetalidade, ou a essência das plantas, transcendentalmente os padrões de
é inseparável das vicissitudes históricas, comportamento nas costas do espécime.
sejam elas parte de histórias “naturais” Obras como a de Eduardo Kohn, How
ou “culturais”: forests think (Como as florestas pensam),12
e de Peter Wohlleben, The hidden life of
O que quer que estejamos infligindo trees (A vida secreta das árvores),13
coletivamente às plantas na atual e em
qualquer outra interseção de histórias oferecem um contraponto vegetal,
humanas e vegetais, intervém diretamente em segundo o qual o tema da evolução não
sua essência. A produção comercial de
sementes estéreis, por exemplo, rouba das
é uma versão naturalizada da utilização
plantas seu potencial reprodutivo e consolida burguesa maximizada dos indivíduos,
a própria vegetalidade como algo estéril, mas uma agência plural de
finito, não reprodutível em si mesmo, mas
orientado para o crescimento infinito, compartilhamento altruísta e alocação de
correspondente às infinitas e insatisfatórias recursos comunitários. Esses autores
demandas do capital, ao qual a compõe uma história do presente em
vegetalidade é forçada monotonamente a
dizer seu sim.11 relação às plantas como um local de
contestação ontológica e política da
Dizendo de outra maneira, nossas ideologia dominante que reina sobre a
interações com as plantas escrevem o que pesquisa científica supostamente
Michel Foucault chamou de “uma história desinteressada.
do presente”, sobrescrito pelo conceito a-
histórico (sem planta) de essência. Por outro lado, a promessa do modo
descentralizado de inteligência
Quero destacar dois momentos da característico das plantas (digamos, o
história vegetal do presente, juntamente pensamento de enxame das raízes14)
com suas consequências multifacetadas, pode ser muito exagerado. Embora seja
momentos que representam verdade que a teoria dos séculos XIX e
aproximadamente a ontologia e a XX sobre o Estado como totalidade
epistemologia das plantas. orgânica modelada a partir de um corpo
animal está ultrapassada, não há

11 MARDER, Vegetality.
12 KOHN, How forests think.
13 WOHLLEBEN, The hidden life of trees.
14 CISLAK, Swarming behavior in plant roots, e29759.

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garantias de que a decantação vegetal metafísica, ou seja, o indivíduo possessivo
(ou qualquer outro tipo de decantação) de utilidade maximizada. Quando a
seja a chave mágica para a separação hiperbólica entre uma
emancipação. Já vivemos em um mundo entidade viva e outras (além de
de redes sem um único centro de ecossistemas, do mundo inorgânico dos
comando e controle, ou seja, em uma elementos e assim por diante) é mitigada,
realidade social e política que é vegetal, quando as divisões sólidas se
apesar de não termos conhecimento metamorfoseiam em membranas
razoável dessa transformação. Não é respiráveis, então a competição
fácil abandonar definições milenares do selvagem por recursos finitos, que tanto o
humano como um animal político pensamento evolutivo quanto a ideologia
(Aristóteles) e nos considerar como capitalista tomam como certo, vê seu
plantas políticas. No entanto, a verniz de inevitabilidade se esfacelar.
maleabilidade do capitalismo significa Além disso, como as plantas não
que ele pode acomodar essa mudança acumulam energia, mas a canalizam
de base e até mesmo lucrar com ela verticalmente (no eixo terra-atmosfera),
mediante transições de produção de horizontalmente (entre si) e lateralmente
valor do modo industrial para o modo (entre si e formas de vida não-vegetais),
pós-industrial. Quando desejos dispersos, a acumulação de valor não-restituído
prazeres e conhecimentos são que define o capital é estranha a elas. O
aproveitados com o propósito de criação que lhes é de vital importância circula na
e extração de valor, “a planta em nós” superfície: a folha desenrolada e
torna-se um local de meta mais-valia, o receptiva à energia solar, a umidade e
ponto cego de todo o sistema os minerais que as raízes absorvem por
disseminado que lhe dá sentido e permite meio da osmose... As plantas não
a continuação mais ou menos precisam recorrer às operações de
imperceptível da exploração. As críticas extração, de destruição das conchas
à forma subjetivada de mercadoria no exteriores das coisas e de enucleação do
capitalismo de consumo ainda têm que que é essencial. Nesse caso, também, os
lidar com a forma vegetal da processos vegetais divergem das
subjetividade descentralizada, a “rede operações capitalistas, inerentemente
interna” (agora incluindo a estrutura do extrativas na medida em que retiram o
cérebro15) que prevê o bom valor de troca imaterial da
funcionamento da rede social, econômica materialidade do valor de uso. Se a
e política “externa”; ou, mais extração de petróleo, gás natural e
fundamentalmente ainda, com a carvão do corpo da terra tem muito em
interface dos dois tipos de rede que comum com a extração de trabalho e
passam sem problemas de um para o conhecimento de corpos e mentes
outro sob a forma de existência da humanas e não humanas, isso se dá
planta, evitando barreiras entre porque ambas são formas de
interioridade e exterioridade. extrativismo de valor prevalecentes na
metafísica, tendo sido aperfeiçoadas em
O desafio vegetal ao egoísmo enraizado sua atual encarnação capitalista.
na teoria evolucionista pode de fato
interferir e perturbar o substrato Na tradição da filosofia alemã, Marx
subjetivo da variação capitalista sobre a chama uma sequência de separações

15 VAN DEN HEUVEL; HULSHOFF POL, Exploring the brain network.


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hiperbólicas entre cada indivíduo na existência humana é irredutível, o que
humano e todos os outros, bem como torna o trabalho dialético de mediação
entre a humanidade e a natureza não- ainda mais necessário. Acreditar no
humana, de alienação. Vários tipos de contrário significa varrer uma
alienação instigam uns aos outros: quanto contradição real e prática para debaixo
mais alienados somos dos seres humanos, de um tapete teórico, ostentando um belo
mais distância se abre entre cada design vegetal.
indivíduo e o mundo não-humano; quanto
mais a humanidade (nossa espécie-ser) se Como a pluralidade ontológica, a
separa da vida não-humana, mais dispersão da inteligência em uma
psíquica e socialmente fragmentados se multiplicidade de mentes, distribuídas
tornam os espécimes do homo sapiens. O pela extensão senciente das plantas, não
ser planta, por outro lado, oferece a é uma rota de fuga segura do domínio
perspectiva de uma coincidência direta metafísico-capitalista. Em nossas
entre individualidade e coletividade, “economias do conhecimento”, a
indicando que cada indivíduo vegetal é inteligência é a mercadoria que produz
inerentemente coletivo. Em seu terreno, o e se reproduz, com o excesso da mais-
bem de um é o bem de todos, o interesse valia, para além do que é estritamente
“privado” e o bem-estar “universal” são necessário para sua autorreprodução.
imediatamente um e o mesmo. O que é Por que a inteligência das plantas seria
ser planta, senão comunismo? diferente? O capitalismo e a metafísica
extraem conhecimentos, lhes atribuem
Dito isso, a superação da alienação, valor e traficam com eles. O excedente
alegando que os elementos do conjunto sobre o saber e o conhecido é a
são, na verdade, indiferenciados e capacidade de saber, uma
imediatamente idênticos, é uma receita potencialidade antes de sua atualização.
para o desastre. Além da forte ânsia de A onda de interesse em inteligência das
transformar a vida vegetal em uma plantas não fixa (e capitaliza) essa
utopia, ao contrário de sua capacidade das plantas que, então, se
representação como uma “selva” onde há converte nos princípios da robótica
uma guerra desenfreada de todos contra vegetal, do sensoriamento ambiental ou
todos, o problema com essa solução é da sinalização bioquímica? Não há nada
que ela considera a vida vegetal como de intrinsecamente errado em aprender
um modelo, como se um modo de essas coisas com as plantas em uma
existência fosse diretamente traduzível pedagogia de espécies ou reinos
em outro. De fato, a lacuna entre o cruzados que não se limita ao
indivíduo e os níveis universais na vida capitalismo. A parte problemática é a
humana se alargou de maneira abismal. forma que tal aprendizado e seus
É também verdade que, mesmo no resultados objetivos assumem: uma
humano, a “individualidade” é plural mercadoria. Evidentemente, nada nem
(dividualidade) e que sua consolidação ninguém está seguro diante do poder de
em uma única busca de interesse privado longo alcance da mercadorização, que
é um subproduto da repressão da se infiltra nos domínios anteriormente não
herança vegetal que prolifera de econômicos da vida (no discurso da
maneira selvagem em nossa economia: “externalidades”). Se, no
subjetividade. Contudo, por mais bem entanto, a inteligência das plantas
sucedidos que sejamos em estreitá-lo, também está sob o feitiço da forma
uma distância mínima entre um e muitos mercadoria, então não podemos afirmar
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que ela mantém e fomenta um potencial “recursos” vitais como objetos e, segundo,
redentor inato no meio da atual investida porque o alvo solar de seu esforço é
capitalista-metafísica. inalcançável. Desdobrando-se entre a
terra e o céu desde a bifurcação inicial
Por essa razão, prefiro falar em “pensar- da semente em germinação, o
planta”, expressão que cunhei com a pensamento espacializado de uma
inspiração da phutiké noesis (“mente planta é a inquietação do e no meio.18
vegetal”) de Plotino, deixando de lado a Pensar-planta é um crescimento
expressão “inteligência das plantas”. Em intermediário, o lugar intermediário ou o
resumo, a inteligência é instrumental; o meio, mais tarde formalizado em meio-
pensamento não. A inteligência se ambiente. Em certo sentido, pensar-planta
destina a resolver problemas e atingir é o pensamento ambiental.
objetivos determinados; o pensamento
problematiza as coisas e as torna Na maioria das vezes, nossa inquietação
indeterminadas. A inteligência é a é totalmente não-vegetal: ela se
aplicação triunfante e algoritmicamente expressa na insatisfação com o lugar
verificável16 da mente à matéria ou ao físico ou simbólico onde a pessoa se
meio ambiente. O pensamento acontece encontra. Com base na turbulência
quando a abordagem instrumental falha; existencial, a inquietação da mais-valia
é um sinal positivo de fracasso, de autorreprodutiva (isto é, capital) se
inquietude, de uma busca interminável, infiltra em nossas vidas que se
embora finita. A inteligência é a desenraizam, por exemplo, na
ferramenta do sucesso evolutivo, necessidade de tornar o trabalho
permitindo a sobrevivência do mais apto; “flexível”, ou seja, abandonar todos os
o pensamento é uma marca de apegos pessoais e sofrer deslocamentos
adaptação-dentro, sem a qual, no em conjunto com as mudanças nas
entanto, a própria adaptação não seria condições do mercado de trabalho. O
possível. Por fim, a inteligência permite a pensamento pode seguir esse exemplo e
mercadorização, enquanto o pensamento sua incompletude genética apresentará
pode resistir a este fenômeno que se então cada lugar como um ponto de
espalha cada vez mais. passagem para outro, a caminho de
lugar nenhum. O estado intermediário da
Pensar-planta, portanto, não é planta indica que ela pertence a mais de
inteligência das plantas; as duas podem um elemento; ela habita ao mesmo tempo
muito bem ser incompatíveis entre si. A o dia e a noite, aquecendo-se à luz do
extensão das partes da planta – folhas, sol acima do solo e navegando nos
raízes, brotos – para as outras, sua labirintos de água, minerais, fungos e
tendência em todas as direções ao bactérias debaixo do solo. A
mesmo tempo, é uma imagem dinâmica, intermediação do humano é, em
material e viva de intencionalidade.17 A contraste, um emblema do nosso não
intencionalidade vegetal estendida e pertencimento, da nossa exclusão de
extensiva vai além do uso daquilo para todo meio objetivo. Acentuada pela
o que ela se esforça; primeiro, porque metafísica e pelo capitalismo, essa
não representa a luz solar e outros diferença transforma a não

16 GARZÓN, The quest for cognition in plant neurobiology.


17 Cf. o capítulo intitulado “The wisdom of plants” (A sabedoria das plantas) no meu livro Plant-thinking
(Pensar-planta).
18 KOLLER, The restless plant.

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instrumentalidade do pensamento em do conhecedor e do sujeito consumidor.
uma força de pura negatividade, mortal Hoje, algo mais está acontecendo. Ao
em seu repúdio a todas as formas e nosso redor, “sujeitos-objeto binários” se
lugares determinados de existência rompem: na ontologia orientada a
finita. objetos (OOO), nas humanidades
ambientais, no pós-humanismo, na
pesquisa de ação participativa... O
III.
colapso da relação sujeito-objeto afeta
Repetindo: qual é a tarefa de uma inegavelmente o status das plantas e, à
filosofia que encontra a vida das luz dos avanços da física quântica, o que
plantas? Será ainda reconhecível como antes era considerado matéria
filosofia? Assim formulada, a questão inanimada. Descartes é enterrado,
entrelaça a ontologia e a epistemologia, repetidamente, sob o aplauso
a ética e a política. Deixei de lado o autocongratulatório de seus coveiros.
truísmo segundo o qual uma compreensão Mas e se a forma mercadoria sofreu
mais sólida de quem ou o que são as mutação mais uma vez? E se, nem
plantas deve fundamentar uma forma objetiva nem subjetiva, ela deriva agora
mais sensível de tratá-las. Se o da ruptura do acoplamento sujeito-
pensamento destitui o saber, então a objeto?
compreensão, por meio da qual o sujeito
interioriza seu objeto, não é mais o Consideremos o seguinte. As fronteiras do
princípio e o fim de um empreendimento sujeito foram distendidas a ponto de
propriamente filosófico. Assim, eu nada mais ser objeto (manipulável),
pergunto: Como pensar com as plantas, o resultando no fim da subjetividade como
que equivale a estar com elas no conceito determinado. Que tudo é objeto
intermediário? E como fazê-lo mantendo- – do aquecimento global ao jetlag, de
se vigilante quanto às defasagens, uma árvore a um unicórnio – é o reverso
lacunas e divergências entre os modos de da mesma moeda que algumas correntes
pensar-ser humano e vegetal? de pensamento, como a OOO,
favorecem. A afirmação totalizante
Muito depende do significado de pensar sobre a natureza de “tudo” rouba a
e de não se deixar refletir pelo prisma condição de objeto de seu significado. As
da filosofia moderna, especialmente por articulações dos extremos, cada um deles
meio da triangulação sujeito, objeto e afirmando ter levado a melhor sobre o
sua relação. É plenamente incontroverso outro, funcionam mal e não podem ser
anunciar que fora dessas categorias, os reparadas: estamos muito além das
elementos básicos da epistemologia e da correlações sujeito-objeto,
ontologia tornam-se essencialmente correspondências ou sínteses dialéticas.
ambientais e, portanto, vegetais. Menos Como resultado, sobrevivemos em meio
óbvia e menos consensual é a premonição às ruínas da díade, recebendo sub-
de que nossa saída de emergência dos repticiamente energia negativa de sua
discursos e das práticas filosóficas contínua desintegração.
modernas pode aumentar ainda mais o
expansionismo capitalista. O impulso inicial de fragmentação dá
lugar a um acúmulo desordenado de
O capitalismo de consumo e as economias multiplicidades. Não é por acaso que
do conhecimento subjetivaram a forma lógos, traduzido não como “estudo”
mercadoria, extraindo valor e mais-valia (como nas usuais socio-logia, bio-logia
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etc.), mas como “articulação”, é agora um mais remota que seja sua origem, é o
palavrão, e ecologia tornou-se algo estágio mais elevado dessa
incompreensível.19 Em resposta aos desarticulação, análogo às afirmações
aplausos de Timothy Morton pela “tudo é objeto” ou “tudo é sujeito”.
ecologia sem natureza,20 eu diria que a
nossa era é a do meio ambiente sem Isso nos leva ao segundo propósito do
ecologia – nossos arredores, nosso processo de substituição da matéria
entorno, são vazios de conexões formada pela forma mercadoria. Se,
integrais, assim como a nossa metafísica paradoxalmente, a interconexão global
é a queda e a falência da metafísica. coincide com a ausência de relações
externas, para não falar de uma teoria
No que diz respeito à lógica da relacional, tal é atribuível à escassez de
autovalorização do valor, ou capital, as relações internas (ou autorrelações, se
ruínas acumuladas da divisão sujeito- preferirmos, sejam elas harmoniosas ou
objeto (e nunca devemos esquecer que conflitantes e autocontraditórias) entre a
“nós” somos parte dessas ruínas) servem forma e o conteúdo das existências. A
a um duplo propósito: elas escondem as desintegração que se segue supera em
relações de exploração e suplantam muito a estrutura aberta e não
imperceptivelmente a organização organísmica da vida vegetal: sem
hilemórfica (do grego “matéria coerência, sem qualquer tipo de lógos, os
formada” ou “forma-matéria”) dos seres fragmentos do paradigma sujeito-objeto
por meio de uma forma estranha, que recebem seu sentido de fora, da forma
não é outra senão a da mercadoria. A mercadoria imposta no lugar do brilho
subjetivação da mercadoria já cumpriu, fosforescente de seu significado íntimo.
de forma significativa, o primeiro
propósito de ofuscação. Com as Quando se trata de plantas, elas (junto
potencialidades mais íntimas do sujeito com todas as outras entidades e
inteligente e do consumidor processos com os quais a ciência
mercadorizado, a exploração se experimental se ocupa) são conceitual e
escondeu, amarrando suas rotinas a fisicamente analisadas em termos de
sonhos, prazeres e desejos, incluindo redes hormonais e elementos bioquímicos,
aqueles de saber – o “impulso sinais elétricos e genomas, vias de
epistemofílico” de Sigmund Freud e transdução de cálcio e proteínas
Melanie Klein. O colapso quase psicótico transmembranares. A planta como planta
do paradigma sujeito-objeto oclui ainda desaparece. Por um lado, o que vem à
mais as relações de exploração, na tona, em seu lugar, são as tendências
medida em que impede a articulação de vegetais que a forma
quaisquer relações. A divisão sujeito- fenomenologicamente acessível das
objeto é ela mesma dividida, resultando plantas vinha, até então, obscurecendo.
em uma explosão conceitual semelhante Por outro lado, seus componentes
àquela que a fissão nuclear provoca. O desarticulados fornecem materiais
infame “efeito borboleta”, segundo o facilmente manipuláveis e sem forma. A
qual tudo está interligado e qualquer promessa com a qual a visão dinâmica
ação pode causar qualquer reação, por da planta nos acena, enfatizando suas

19 Algumas das traduções legítimas de lógos na eco-logia são mutuamente incompatíveis. Assim, o
“estudo da habitação” impede a prática da “articulação da habitação”, mas aumenta a distância entre
os moradores e a sua morada.
20 MORTON, Ecology without nature.

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tendências (resisto às “funções” privada e a realização da possibilidade
cientificamente corretas) em oposição às de colocar carne no esqueleto abstrato
estruturas fixas, torna-se mais fraca assim novamente depende de pagar por isso.
que a ciência, a tecnologia e o capital Metade da passagem do ideal para o
que as anima recrutam suas real se desdobra em capital, enquanto a
capacidades. outra metade, afastando-se do real,
termina em desastre ecológico, na
Desnecessário dizer que a lógica que irrecuperável desrealização da
estou descrevendo não é nova. Seu biodiversidade e na extinção em massa.
protótipo é o sistema de metafísica que Bancos de genes e cofres de sementes,
afasta o sentido das entidades que como o de Svalbard na Noruega,22 unem
explica com base em um conceito ou Ser artificialmente a tese dialética e sua
único, onipotente e onipresente. Dois dos antítese: eles são os repositórios de
aspectos inovadores mais salientes da informações sobre plantas reduzidas a
atual instanciação dessa lógica são: 1) meros materiais genéticos (germoplasma)
sua notável capacidade de construir a considerados úteis, ou potencialmente
realidade não apenas no nível úteis, para seres humanos que podem
ideacional-ideológico, mas também no recorrer a eles em caso de extinção.
nível físico-material; e 2) sua derivação
de valores filosóficos, socioculturais e Em resposta aos impasses das plantas
econômicos a partir da desintegração de objetivantes e subjetivantes, bem como
unidades conceituais e corporeidades ao colapso extremamente lucrativo da
anteriores. cisão sujeito-objeto, a metafísica pré-
moderna não é uma solução. A
Durante séculos, a metafísica tem idealidade do genoma, sua primazia e
influenciado obliquamente as vidas indiferença em relação aos fenótipos
humanas e não-humanas, gerando os passados, presentes e futuros, ainda é
planos para nossas abordagens do que uma ideia platônica, sua face fria é
é e de nós mesmos. Agora, em sua forma discernível por trás das máscaras mortais
antimetafísica e perversa, ela está da “neutralidade” científica, da
moldando diretamente o mundo, tecnologia e da antimetafísica. Na
emprestando à fantasia do pesadelo um verdade, Platão foi um filósofo da
corpo real. inteligência, dos opostos polares,
Tomemos o patenteamento das incomodado com o que havia entre eles.
sequências genéticas das plantas ou de
21 Sócrates, por sua vez, era um pensador,
suas propriedades medicinais conhecidas consciente de seu lugar no meio (como “a
pelos curandeiros tradicionais muito antes parteira de ideias”) e da não realização,
do advento do capitalismo. Apoiando-se dedicado não a extrair percepções, mas
no dispositivo da ciência aplicada e a levá-las adiante, deixando-as circular
partindo da dizimação e da evisceração em conversas com outros, fazendo com
da planta, a pesquisa biomédica e que elas crescessem, muitas vezes sem um
biogenética oferece uma base ideal – o destino à vista. Embora ele não
código: vida traduzida em informação – acreditasse poder aprender nada com as
para uma possível reconstrução do que
foi destruído. O código é propriedade

21 JEFFERSON, The ownership question of plant gene and genome intellectual properties.
22 GRUBER, Agrobiodiversity.
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plantas,23 ele era um pensador-planta que a metafísica e o capitalismo
por excelência, que tinha que ser colocaram em perigo um planeta
fisicamente eliminado para que a habitável, de modo que sua eternidade
tradição metafísica pudesse criar raízes teórica pode ser encurtada pelo fim do
(daí a trágica cumplicidade de Platão substrato material que eles
com o veredicto que ele lamentou). silenciosamente pressupuseram e estão
Sabendo que ele não sabia de nada, destruindo. O fim do mundo seria uma
exceto de seu próprio não-saber, “externalidade” contingente no plano
Sócrates esculpiu um nicho de lógico da história da metafísica,
pensamento que não alcançou objetivos idealmente indiferente à atualidade ou à
determinados e não resolveu problemas, inatualidade da existência.
mas os criou em abundância, inclusive
para o próprio pensador. Mesmo aqui, nos efeitos práticos do mais
recente programa metafísico,
Devemos voltar a Sócrates sem Platão, detectamos a inversão da influência
com o objetivo de resistir à vegetal: esta torna o mundo habitável,
mercadorização? Ou acompanhar aquela o transforma em algo impossível
Heidegger em seu caminho para os pré- de ser vivido. Enfrentamos uma escolha
socráticos, abaixo e atrás da metafísica, entre plantas e filosofia qua metafísica,
a fim de acelerar o outro início do pensamento e filosofia, mundo e filosofia.
pensamento após o fim da metafísica? E Além disso, o momento da inversão não é
existe um “depois” vindo em seus uma ocorrência singular e única; ele se
calcanhares? repete incessantemente enquanto a vida
vegetal, entre outros tipos de vitalidade,
Tornou-se evidente que a disputa persistir tenazmente, apesar de todas as
intelectual do século XX sobre o adversidades. E a escolha decisiva que
significado do fim em relação à tradição devemos fazer é repetida da mesma
metafísica é um debate disfarçado sobre forma, continuamente: plantas ou
o fim do capitalismo, dado que o filosofia, pensamento ou filosofia, mundo
capitalismo é nosso avatar para a ou filosofia. Inspirada em Nietzsche, é
metafísica. A visão diferenciada afirma assim que uma reavaliação de todos os
que, em vez de um corte abrupto, o fim valores acontece, ou deveria acontecer,
da metafísica (e da história, que é hoje. Longe de um retorno a qualquer
invariavelmente da metafísica) é em si figura ou período histórico dado, é
interminável, tratando-se de uma necessário voltar (e seguir em frente,
repetição ostensivamente infinita de vendo que o movimento continua) para as
possibilidades passadas exauridas e um instâncias revolucionárias, violentamente
niilismo prolongado, aprofundado e fundacionais espalhadas pela história da
abrangente. (Em 1888, Nietzsche metafísica e do capitalismo que afirma
pensava que a história futura do niilismo estar terminando, interminavelmente.
duraria mais duzentos anos).24 Isso Apertando o botão de pausa em nossa
significa que o fim do capitalismo e da repetição histórica naqueles momentos
mercadorização total à la György Lukács precisos, ficaremos no limite, na fronteira
seria igualmente infinito, prolongado e que separa a filosofia e as plantas, a
cada vez mais profundo. O problema é

23 “Veja, eu gosto de aprender. Agora o campo e as árvores não vão me ensinar nada, mas as pessoas da
cidade sim” (Platão, Fedro, 230d).
24 GILLESPIE, Nietzsche’s final teaching, p. 35.

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