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Calibán - RLP, 18(1) - Volume 18-1, 218-222 · 2020 pécie de metafísica da vida, capaz de fornecer corpo.

pécie de metafísica da vida, capaz de fornecer corpo. Mais que considerá-lo como a conse-
uma alternativa a uma grande parte da tra- quência da presença de um sistema nervoso,
dição ocidental. O aspecto mais espetacular deveríamos começar a encará-lo como uma
desta revolução é certamente aquele ligado ao das manifestações possíveis da inteligência
reconhecimento da inteligência das plantas. anatômica dos seres vivos. O cérebro é apenas
Emanuele Coccia* Foi possível mostrar que uma planta é perfei- uma das soluções encontradas pelo design que
tamente consciente do que se passa ao redor e todo ser vivo exerce sobre seu corpo para tor-
dentro dela, e que, sem precisar de um sistema nar possível a atividade de pensar. A inteligên-
nervoso e de um cérebro, ela é dotada de me- cia não é uma faculdade acessória à vida: ela
A virada vegetal mória e inteligência não menos refinadas que é a expressão mais imediata de sua fisiologia.
as dos animais. Há, entre-
Este tipo de obser- tanto, um outro
vação permite-nos aspecto – talvez
compreender em mais profundo e
1. que medida o pre- importante – que
botânica: por muito tempo, esta ciência este-
conceito zoocên- levou a botânica a
ve paralisada por um sentimento de inferio-
trico nos impediu conquistar um lu-
Durante séculos, elas foram sistematicamen- ridade em relação à zoologia, que sempre foi
de afirmar a iden- gar e um papel de
te ignoradas pelas ciências humanas e sociais. o canal pelo qual a ciência biológica propôs
tidade entre vida destaque no jogo
Há alguns anos, entretanto, todas e todos fa- as questões mais importantes sobre o mundo
e pensamento. É de xadrez dos co-
lam delas. As plantas passaram da negligência vivo. Sempre pedimos aos cachorros, gatos,
simplesmente por- nhecimentos con-
absoluta a uma espécie de culto coletivo que elefantes, crocodilos, pássaros etc., que nos
que pedimos a um temporâneos so-
as transformou em novas heroínas do plane- revelassem os segredos dos corpos. Sempre
animal (principal- bre a vida e o meio
ta. Esta transformação tem várias razões. Pri- pedimos aos animais para nos iniciar nos mis-
mente ao animal ambiente. Desde
meiramente, houve a emergência biológica. térios da vida e de suas formas. Durante sécu-
humano) que nos o início do século
A gravidade da situação ecológica planetária los, a botânica se limitou à tarefa de examinar,
revelasse a nature- passado – partin-
e os riscos ligados à explosão demográfica já revisar e classificar a infinita variedade das
za da inteligência, do das hipóteses
eram conhecidos no início dos anos 1970 – ao formas vegetais. Durante anos, tratava-se, aci-
que nos inibimos de Mereschkowsky
menos a partir da publicação do relatório do ma de tudo, de uma ciência vegetal sistemáti-
de pensar na in- (1905) sobre a
Clube de Roma sobre, Os limites do crescimen- ca. Há algumas décadas, no entanto, as coisas
teligência vegetal simbiogênese dos
to (D. H. Meadows, D. L., Meadows, Randers mudaram. Há pelo menos cinquenta anos,
ou na inteligência cloroplastos, pas-
e Behrens, 1972). No entanto, é apenas meio graças a figuras pioneiras como Francis Hallé
bacteriana. É por sando pelas pro-
século mais tarde que a opinião pública parece ou Patrick Blanc na França, Stefano Mancuso
causa do narci- posições de Ivan
ter tomado consciência de maneira maciça do na Itália, Frantisek Baluska na Alemanha, Karl
sismo animal que Wallin (1922a,
risco da perda de uma enorme porção da bio- Niklas e Anthony Trewavas nos Estados Uni-
continuamos a 1922b) sobre a ori-
diversidade da Terra, ou do desaparecimento, dos (para citar apenas alguns), a botânica se
supor que somente a presença de um sistema gem simbiótica das mitocôndrias e chegando
sem mais, da vida no planeta. As plantas re- desvencilhou de vez do domínio absoluto da
nervoso garante a presença de inteligência. Se às pesquisas de Lynn Margulis (1970) sobre
presentam a parte predominante da biomas- zoologia sobre as ciências do mundo vivo, e
nós acreditamos que as neurociências vão nos a generalização do mecanismo simbiótico
sa visível: é, pois, evidente que, após séculos nos liberou definitivamente do narcisismo que
revelar o segredo do pensamento e da cons- como motor fundador do processo evolutivo
de ignorância voluntária e ativa, a atenção, os nos havia conduzido a fazer dos animais o pa-
ciência é, unicamente, porque somos obce- –, a biologia revisou profundamente a vulga-
cuidados e o entusiasmo em relação a elas te- radigma da vida e da dignidade da vida. Estes
cados pelos animais. Esta mudança de pers- ta darwiniana, que havia feito da guerra, da
nham crescido tão rapidamente. pioneiros começaram a perguntar às plantas
pectiva não tem consequências apenas para a competição e da luta de todos contra todos a
Há, em seguida, uma razão mais profunda, questões que jamais haviam sido perguntadas
nossa relação com as plantas. A descoberta da forma transcendental de relação do organis-
uma verdadeira revolução interna na ciência anteriormente e fizeram da botânica uma es-
inteligência e da consciência das plantas obri- mo vivo. Descobriu-se que uma das maiores
ga-nos, acima de tudo, a imaginar de maneira e mais avançadas invenções da vida no plane-
diferente o pensamento e sua relação com o ta, a construção da célula eucarionte, não se
* Filósofo, professor de la École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.

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explica pela competição e pela seleção, mas de forma diferente da lógica do consumo e 2. Só podemos ser totemistas: não podemos
somente por um processo de simbiose, de co- da entropia recíprocas. O milagre e o parado- (mais) fingir acreditar que temos ideias e no-
Contrariamente àquilo em que acreditamos e
laboração e de hibridação entre dois organis- xo (mesmo termodinâmico) das plantas é que ções não influenciadas por nossa relação coti-
que repetimos durante séculos, cada conheci-
mos autônomos que se fundem para formar elas mostram a capacidade da vida de se cons- diana com outras espécies. Além disso, todo
mento e cada ciência, em qualquer momento
um terceiro. Não é a hostilidade e a guerra truir a partir de quase nada, daquilo que não discurso sobre a relação interespecífica entre
de seu desenvolvimento, em qualquer latitu-
que permitem à vida melhorar e mudar, mas vive, e de se multiplicar tão espontaneamente. os não-humanos inclui uma reflexão direta
de geográfica e cultural, é uma forma de to-
a solidariedade. Esta é a ideia na base do bes- Mas, sobretudo, as plantas mostram que cada sobre a forma como pensamos as relações en-
temismo, no sentido que Lévi-Strauss deu
t-seller que desencadeou a moda das árvores, ser vivo vive uma vida que anima indiferente- tre os humanos – e vice-versa. A ideia de uma
a este termo. Como sabemos, Lévi-Strauss
A vida secreta das árvores, de Peter Wohlle- mente seu próprio corpo e aquele de uma infi- separabilidade entre as formas humanas e as
(1962) definiu o totemismo como a utiliza-
ben (2015). A tese de Wohlleben é mais ou nidade de outros indivíduos de outras espécies. não-humanas de sociabilidade não é apenas
ção de categorias que descrevem associações
menos a seguinte: para entender como viver Uma planta não apenas estoca em seu corpo a um contrassenso, mas também algo que as
não-humanas intra ou interespecíficas para
em sociedade, basta olhar para uma flores- energia solar que permitirá aos animais viver, ciências sociais e biológicas contradizem em
compreender, nomear e classificar formas de
ta, pois este modelo de coabitação tem uma mas até mesmo os dejetos de sua existência (o suas práticas. A sociologia “humana” nasceu
socialidade humana.
taxa de hostilidade muito menor do que toda oxigênio) permitem que outros vivam. Uma quando Auguste Comte tomou de Lamarck a
Mais amplamente, no sentido de conhe-
a comunidade animal. Para além dos julga- planta não é somente uma vida que adquiriu noção de meio. Inversamente, toda ecologia
cimentos retirados da observação de outras
mentos trazidos no livro, trata-se de um ges- uma forma específica e diferente das outras, é uma forma de sociologia que se aplica às
espécies para refletir sobre nossa vida, po-
to revolucionário: pela primeira vez, a flores- mas representa a vida como o poder de animar plantas e aos animais, com ideias e conceitos
deríamos dizer que é sempre ao observar o
ta, que há séculos era tratada como o oposto os mais diversos e mais distantes de sua pró- inventados para pensar a socialidade huma-
não-humano que o homem se compreendeu.
da cidade, aquilo que existe fora do político pria forma, ou a impossibilidade de definir a na. Há séculos, o modelo de reflexão a res-
E o contrário, sobretudo, é igualmente verda-
– a palavra forêt1 vem de foris – torna-se o vida simplesmente pela forma específica como peito das relações sociais é a caça, a predação.
deiro: é aplicando conceitos que descrevem
modelo do político, até mesmo o político por ela vive. As plantas nos mostram que os seres Darwin foi vítima disto. E uma grande parte
a nossa vida que compreendemos a vida das
excelência. vivos constroem e começam uma vida que da antropologia continuou a enobrecer esta
espécies e das formas de vida diferentes da
Após esta descoberta da natureza simbióti- nutrirá e avivará outros seres vivos além deles forma de totemismo.
nossa. Deste ponto de vista, o totemismo e o
ca da construção da vida no planeta, as plantas mesmos, que fará viver outros sujeitos. Para di- O que se passa agora é que mudamos re-
antropomorfismo são dois processos idênti-
desempenham um papel epistemológico muito zer um pouco mais radicalmente, cada pessoa pentinamente nosso guia para assuntos do
cos: se descobrimos que uma parte de nossa
importante em relação ao paradigma da vida viva constrói uma vida que fará viver outros, mundo vivo: não mais os grandes predadores,
vida é idêntica à dos não-humanos, podemos
animal na medida em que podemos ver, ob- constrói um corpo que se tornará alimento de mas as plantas. Passamos de um totemismo
reconhecer traços de humanidade nestes úl-
servar e compreender esta forma não hostil de outros, o teatro da vida de outros. E esta passa- predador a um totemismo vegetal. Aliás, não
timos; inversamente, cada vez que atribuí-
ser no mundo; não porque elas não conhecem gem de vida – que é o alimento, o ato pelo qual apenas o guia deixou de ser o animal carnívo-
mos um traço de humanidade a uma planta
a hostilidade, evidentemente, mas porque a o corpo de uma pessoa é trazido à vida ou à ro e, pois, predador, para se tornar a planta.
ou a um animal, reconhecemos igualmente
hostilidade não pode jamais ser uma dinâmica vida de outra espécie – é, graças às plantas, algo Agora, a relação fundamental que define a re-
que há algo em nós que não tem uma nature-
fundadora e estrutural da vida vegetal, já que sublime. Quando comemos, afinal, buscamos e lação entre o humano e o não-humano não é
za puramente humana. E estes dois processos
as plantas são organismos autótrofos - capazes encontramos a luz do sol que as plantas insufla- mais a caça, o pastoreio ou a agricultura, mas
são estruturalmente necessários: se cada es-
de viver unicamente de luz, dióxido de carbono ram no corpo mineral de Gaia. O alimento não uma certa forma de jardinagem.
pécie é definida como uma modificação mí-
e água, sem precisar matar ou sacrificar ou se é nada além deste comércio de luz extraterres- Se as plantas se tornaram paradigmas, não
nima de uma espécie precedente, então todo
alimentar de outros seres vivos. Ou seja, a fonte tre que se transmite de mão em mão, de espécie é somente porque elas não são animais, mas
o conhecimento de uma espécie particular é
de hostilidade mais evidente – a predação ali- em espécie, de reino em reino, e que continua porque elas encarnam uma forma de sociabi-
constitutivamente interespecífico. De certa
mentar – não existe nas plantas. Mais que isto, a iluminar o planeta, garantindo, dia após dia, lidade diferente daquela que tentamos estabe-
forma, todo conhecimento é totêmico, pois
a autotrofia das plantas faz delas organismos a continuidade e a proximidade entre a Terra lecer. A planta encarna uma forma de vida que
não pode haver conhecimento que não seja
vivos que se definem, acima de tudo, por sua e o Sol. Ou, caso prefira: nas plantas, torna-se é hoje politicamente mais importante que a do
retirado de outros seres vivos. E vice-versa:
capacidade de dar vida a outros organismos particularmente evidente que a vida é algo que animal. Ou, se preferir, ela torna mais visível
todo conhecimento sobre uma forma de vida
vivos. Com as plantas, a biologia é obrigada a vem sempre de um outro ser vivo para ir para um aspecto da vida no planeta que o animal
particular é sempre um conhecimento sobre
pensar a inter-relação de todos os seres vivos um outro ser vivo. dissimula ou pressupõe sem fazer ver explici-
as outras formas de vida, pois cada forma de
tamente – ao menos ativamente. Refiro-me ao
vida é sempre multiespecífica, uma colagem
fato de que a vida que cada um de nós constrói
de várias espécies.
é sempre uma vida que será vivida por outros
1.  N. do T.: floresta.

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além daqueles que a vivem agora. As plantas Calibán - RLP, 18(1) - Volume 18-1, 223-231 · 2020
encarnam este fato muito mais claramente:
a vida ultrapassa sempre a forma, o corpo, a
espécie que ela habita. Na verdade, o animal
também encarna este aspecto, claro, pois não
há vida que não expresse esta estrutura. Mas, Bruno Latour *
no animal, esta dimensão é constituída pelo
fato de ele ser o alimento de outros animais
e define, então, um aspecto trágico, ou mar-
cado pela negatividade. Deste ponto de vista, Desencarcerar os corpos?**
é preciso tomar cuidado para compreender
que a “virada vegetal” (plant turn) não é um
amor pelas plantas como tal. É, de um lado, a
enésima expressão do amor que os seres vivos
têm pelas outras formas de vida e, de outro,
uma nova forma de totemismo cujos efeitos,
Pediram-me que resumisse em alguns minu- doenças que – no fim das contas, depois de
talvez, só poderão ser medidos daqui alguns
tos o aporte da antropologia e da filosofia às longas estadias no hospital – são fortes e per-
milênios.
bases da psiquiatria. Esta palestra, eu receio, sistentes infecções que medicamentos à moda
corre o risco de ser um embuste ou, no míni- antiga geralmente conseguem tratar.
Referências mo, um erro de casting, já que eu não sou nem A seguir, vou me permitir empregar o nós
filósofo profissional, nem antropólogo pro- para apelar à sua boa vontade e compartilhar,
Lévi-Strauss, C. (1962). Le totémisme aujourd’hui. Paris: Plon.
fissional e, evidentemente, não sou psiquia- por alguns minutos, um pouco do seu fardo. A
Margulis, L. (1970). Origin of eukaryotic cells. New Haven: Yale
University Press. tra. Como muita gente, é principalmente do infelicidade que seu coletivo divide com tan-
Meadows, D. H., Meadows, D. L., Randers, J. e Behrens, W. W. socorro da psiquiatria que eu precisaria neste tos pacientes é tão exasperador que existe toda
(1972). The limits to growth: A report for the Club of Rome’s project
on the predicament of mankind. Nova York: Universe Books. momento... uma série de excelentes trabalhos bem docu-
Mereschkowsky von, C. (1905). Über Natur und Ursprung der Ao mesmo tempo, seria uma pena per- mentados de antropólogos e de certos colegas
Chromatophoren im Pflanzenreiche. Biologisches Centralblatt.
der esta oportunidade de compartilhar com seus que estão indignados, mas – infelizmente
25(18), 593–604.
Wallin, I. E. (1922a). On the nature of mitochondria: 1. vocês a infelicidade em que, me parece, esta- – impotentes a respeito desta situação inédi-
Observations on mitochondria staining methods applied mos mergulhados, já que sucumbimos todos ta (Kirk e Kutchins, 1998; Whitacker, 2010;
to bacteria. 2. Reactions of bacteria to chemical treatment.
American Journal of Anatomy, 30, 203-229. sem poder, de fato, reagir ao que poderíamos Estroff, 1998; Pignarre, 2001; Mol, 2003). Há
Wallin, I. E. (1922b). On the nature of mitochondria: 3. The chamar de uma sucessão de “golpes de DSM1”, algum tempo, no canal Arte, passou um filme
demonstration of mitochondria by bacteriological methods. 4. A
com centenas de novos diagnósticos para excelente sobre essas questões. Filme de Anne
comparative study of the morphogenesis of root-nodule bacteria
and chloroplasts. American Journal of Anatomy, 30, 451-471. doenças que convêm chamar de “doenças me- Georget (2011), escrito por Mikkel Borch-Ja-
Wohlleben, P. (2015). Das geheime Leben der Bäume: Was sie dicamentosas”, já que elas são criadas não para cobsen.
fühlen, wie sie kommunizieren – die Entdeckung einer verborgenen
Welt. Munique: Ludwig Verlag. combater uma doença que precederia o medi- Vou explorar esta situação com vocês a
camento, mas para dar um nome de doença aos partir de uma minúscula área das ciências so-
efeitos pouco entendidos das substâncias co- ciais que eu chamo de antropologia simétrica
locadas em nosso organismo, um pouco ao sa- e que tem por objetivo estabelecer com outros
bor do acaso (Kirsch, 2011). Isto, novamente, coletivos relações que não sejam fundadas
manda para bem longe a noção de iatrogenia, nem na noção de cultura, nem na de natureza.

* Professor emérito do Institut d’Études Politiques de Paris, Sciences Po.


** Transcrição de conferência ministrada durante a Jornada Filosofia e Psiquiatria da Associação Francesa de Psiquiatria, 11 de
novembro de 2011. Publicação original: Latour, B. (2012). Désincarcérer les corps. Psychiatrie Française, 43(1-12), 23-37.
1.  N. do E.: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM, por suas siglas em inglês).

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