Você está na página 1de 14

.

r~ii~
A.p~8~~
DAVID LE BRETON

~ .•
I>~
~T~
-::::.,/ Antropologia do corpo
e modernidade

TRADUÇÃO DE
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Fábio dos Santos Creder Lopes
Le Breton, David
Antropologia do corpo e modernidade / David Le
Breton ; tradução de Fábio dos Santos Creder
Lopes. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2011.

Título original: Anthropologie du corps et modernité


Bibliografia
ISBN 978-85-326-2449-9

1. Corpo humano - Aspectos sociais I. Título.

10-10370 CDD-304.2
lb
Y
EDITORA
VOZES
índices para catálogo sistemático:
1. Antropologia do corpo e modernidade : Petrópolis
Sociologia 304.2
1

o inapreensível do corpo'

1.1 O mistério do corpo

As representações sociais atribuem ao corpo uma po-


sição determinada no seio do simbolismo geral da socie-
dade. Elas nomeiam as diferentes partes que o compõem
e as funções que desempenham, explicitam-lhe as rela-
ções, penetram o interior invisível do corpo para aí re-
gistrar imagens precisas, elas situam seu lugar no seio do
cosmos ou da ecologia da comunidade humana. Este sa-
ber aplicado ao corpo é imediatamente cultural. Mesmo
se é apreendido de um modo rudimentar pelo sujeito,
ele permite-lhe dar um sentido à espessura de sua carne,
saber do que é feito, vincular suas doenças ou seus sofri-
mentos a causas precisas e conformes à visão de mundo

.As teses apresentadas nesta primeira parte foram propostas pela pri-
meira vez, sob outra forma, em LE BRETON,D."Corps et lndlvidualisme"
Dioqêne, n. 131, 1985 .• "Dualisme e Renaissance: aux sources d'une
représentation moderne du corps" Dioqéne, n. 142, 1988.
de sua sociedade, permite, enfim, conhecer sua posição
A explosão atual dos saberes sobre o corpo', que faz
perante a natureza e os outros homens, a partir de um
da anatomofisiologia uma teoria entre outras, mesmo se
sistema de valor.
esta permanece dominante, denota outra etapa do indi-
As representações do corpo, e os saberes que as al-
vidualismo' aquela de um recolhimento ainda mais forte
cançam, são tributários de um estado social, de uma
no ego: a emergência de uma sociedade na qual a atomi-
visão de mundo, e, no interior desta última, de uma
zação dos atores se tornou um fato importante, seja ela
definição da pessoa. O corpo é uma construção sim-
suportada, desejada ou ainda indiferente'. Trata-se aí de
) bólica, não uma realidade em si. Donde a miríade de
um traço bem significativo das sociedades nas quais o
representações que procuram conferir-lhe um sentido,
individualismo é um fato de estrutura: o desenvolvimen-
e seu caráter heteróclito, insólito, contraditório, de uma
to de um caráter infinitamente plural, polifôníco da vida
\ sociedade a outra.
coletiva e de suas referências. Nessas sociedades, com
\.\ O corpo parece evidente, mas, definitivamente, na-
efeito, a iniciativa pertence antes aos atores, ou aos gru-
da é mais inapreensível. Ele nunca é um dado indiscu-
pos' do que à cultura, que tende a se tornar um simples
tível, mas o efeito de uma construção social e cultural.
quadro formal.
A concepção mais correntemente
dades ocidentais encontra
admitida nas socie-
sua formulação na anato-
Assistimos hoje a uma aceleração dos processos so- I
mofisiologia, isto é, no saber biomédico. Ela repousa
ciais sem que o nível cultural a acompanhe. Um divórcio >
é frequentemente detectável entre a experiência social
sobre uma concepção particular da pessoa, que faz o
do ator e sua capacidade de integração simbólica. Dis- .I
ator social dizer "meu corpo", segundo o modelo da
posse. Essa representação nasceu da emergência e do 1 Pesquisas desmesuradas de outras teorias do corpo, tomadas do
desenvolvimento do individualismo no seio das socie- Oriente, da astrologia, do esoterismo, recurso cada vez mais frequente
às formas tradicionais de cura,que igualmente veiculam teorias do cor-
dades ocidentais a partir do Renascimento, conforme
po diversas e sem relação com o modelo anatomofisiológico da medi-
veremos nos capítulos seguintes. As questões que ire- cina, recurso às medicinas "suaves" desapreço pela medicina moderna

mos abordar nesta obra implicam essa estrutura in- e por sua visão um tanto quanto mecanicista do corpo, cf. infra.

dividualista, que faz do corpo o recinto do sujeito, o 2 A pesquisa atual de novas formas de sociabilidade,de troca e de triba-
lismo, é uma forma de resistência à atomização do social. Uma maneira
lugar de seu limite e de sua liberdade, o objeto privi-
de manter uma aparência de vida comunitária, mas de um modo con-
legiado de uma fabricação e de uma vontade de do- trolado e voluntarista, como o ilustra bem o fenômeno associativo. So-
bre este tema, duas visões diferentes: BAREL,Y.La societé du vide. Paris:
mínio.
Seuil, 1983.' LlPOVETSKI, G. t'ére du vide. Paris: Gallimard, 1985.

18
19
so resulta uma carência de sentido que às vezes torna a atribuir aos seus corpos uma espécie de suplemento de
a vida difícil. Do fato da ausência de resposta cultural alma. Assim justifica-se o recurso a concepções do corpo
para guiar suas escolhas e suas ações, o homem é aban- heteróclitas, frequentemente contraditórias, simplifica-
donado à sua própria iniciativa, à sua solidão, despro- das, reduzidas por vezes a receitas. O corpo da Moderni-
vido perante numerosos eventos essenciais da condição dade se torna um rnelting pot bem próximo das colagens
humana: a morte, a doença, a solidão, o desemprego, o surrealistas. Cada ator "bricola" a representação que faz
envelhecimento, a adversidade ... Convém na dúvida, e às de seu próprio corpo, de maneira individual, autônoma,
vezes na angústia, inventar soluções pessoais. A tendên- mesmo se retira, para tanto, no ar do tempo, o saber vul-
cia ao recolhimento em si, e a busca da autonomia, que garizado das mídias, ou a casualidade de suas leituras e
mobiliza inúmeros atores, não são sem consequências de seus encontros pessoais.
sensíveis sobre o tecido cultural. A comunidade dos sen- É a um reconhecimento do progresso do individua-
tidos e dos valores se dispersa na trama social sem soldá- lismo na trama social, e de suas consequências sobre as
Ia realmente. A atomização dos atores acentua ainda o representações do corpo, que um estudo das relações en-
distanciamento dos elementos culturais tradicionais, que tre o corpo e a Modernidade nos impõe imediatamen-
caem em desuso ou tornam-se indicações sem espessura. te. Veremos inicialmente o quanto a noção de "corpo" é
< Eles tornaram-se pouco dignos de investimento e desa- problemática, indecisa. A noção moderna de corpo é um
parecem, deixando um vazio que não preenche os proce- efeito da estrutura individualista do campo social, uma
dimentos técnicos. Ao contrário, as soluções pessoais se consequência da ruptura da solidariedade que mescla a
proliferam, e visam suprir as carências do simbólico por pessoa a um coletivo e ao cosmos por meio de um tecido
empréstimos de outros tecidos culturais ou pela criação de correspondências no qual tudo se entrelaça.
de novas referências.
No âmbito do corpo, uma mesma dispersão de re-
ferências se produz. A concepção, um tanto quanto de- 1.2 "Vocês nos trouxeram o corpo"
sencantada, da anatomofisiologia, e os avanços recentes
da medicina e da biotecnologia, além de favorecerem a Um relato espantoso, contado por Maurice Leenhardt
denegação da morte, não tornam essa representação do em um de seus estudos sobre a sociedade canaque, nos
corpo nem um pouco atraente. Inúmeros atores entre- permitirá melhor colocarmos este problema de mostrar
gam-se a uma busca incansável de modelos destinados igualmente o quanto os dados estudados nesta obra são

20 21
sob esse nome. Quanto aos intestinos, são assimilados
necessariamente solidários com uma concepção de cor-
aos emaranhados de cipós que adensam a floresta. O cor-
po tipicamente ocidental e moderna. Mas, antes de che-
po aparece aqui como outra forma vegetal, ou o vegetal
gar a isso, é preciso situar as concepções melanesianas
como uma extensão natural do corpo. Não há qualquer
do corpo', assim como aquelas que estruturam e dão um
fronteira discernível entre esses dois domínios. Apenas
sentido e um valor à noção de pessoa.
nossos conceitos ocidentais permitem essa divisão, sob o
Entre os canaques, o corpo recebe suas características
risco de uma confusão e de uma redução etnocêntricas
do reino vegetal'. Parcela não destacada do universo, que
das diferenças.
o banha, ele entrelaça sua existência às árvores, aos frutos
O corpo não é concebido pelos canaques como uma
e às plantas. Ele obedece às pulsações do vegetal, confun-
forma e uma matéria isoladas do mundo; ele participa em
dido a essa gemeinschaft alies lebendigen (comunidade de
sua totalidade de uma natureza que, ao mesmo tempo, o
tudo aquilo que vive), da qual Cassirer dizia outrora. Kara
assimila e o banha. A ligação com o vegetal não é uma
designa, ao mesmo tempo, a pele do homem e a casca da
metáfora, mas uma identidade de substância. Numero-
árvore. A unidade da carne e dos músculos (Pié) remete
sos exemplos tomados da vida cotidiana dos canaques
à polpa ou ao caroço dos frutos. A parte dura do corpo, a
ilustram bem o jogo dessa semântica corporal. De uma
ossatura, é nomeada com o mesmo termo que o coração
criança raquítica, diz-se que ela "brota amarela", seme-
da madeira. Essa palavra designa igualmente os cacos de
lhante nisso a uma raiz cuja seiva escasseia, e que fenece.
coral lançados sobre as praias. São as conchinhas terres-
Um velho se insurge contra o policial que vem procurar
tres ou marinhas que servem para identificar os ossos
seu filho para constrangê-lo aos trabalhos difíceis exigi-
envolventes, tais como o crânio. Os nomes das diversas
dos pelos brancos. "Veja esse braço, diz ele, é de água:' A
vísceras vertem igualmente do seio de um vocabulário
criança é idêntica "a um rebento de árvore, inicialmente
vegetal. Os rins e as outras glândulas do interior do cor-
aquoso, depois, com o tempo, lenhoso e duro" (p. 63).
po trazem o nome de um fruto cuja aparência seja pró-
Numerosos exemplos podem assim suceder-se (p. 65-66);
xima à sua. Os pulmões, cujo envoltório lembra a forma
as mesmas matérias operam no seio do mundo e da car-
da árvore totêmica dos canaques, Kuni, são identificados
ne; elas estabelecem uma intimidade, uma solidariedade
3 Veremos com certeza que se trata apenas de uma maneira de falar. As entre os homens e seu ambiente. Na cosmogonia cana-
concepções melanesianas do corpo jamais o autonomizam como uma
que, todo homem sabe de qual árvore da floresta provém _
realidade à parte.
cada um de seus ancestrais. A árvore simboliza a pertença Q(
4 LEENHARDT, M. Do Kamo. Paris: Gallimard, 1947, p. 54-70.

23
22
ao grupo, enraizando o homem à terra de seus ances-
aquela de um ambiente de troca no seio de uma comuni-
trais e atribuindo-lhe, no seio da natureza, um lugar sin-
dade onde nada pode ser caracterizado como indivíduo.
gular, fundido entre as inúmeras árvores que povoam a
O homem aí só existe pelas suas relações com outrem, ele
floresta. No nascimento da criança, lá onde se encontra
não tira a legitimidade de sua existência de sua própria
enterrado o cordão umbilical, planta-se um rebento que,
pessoa erigida em totem", A noção de pessoa, no senti-
pouco a pouco, afirma-se e cresce segundo a medida do
do ocidental, não é, portanto, perceptível na sociedade e
amadurecimento da criança. A palavra karo, que designa
na cosmogonia tradicional canaque. A jortiori, o corpo
o corpo do homem, entra na composição das expressões
não existe. Pelo menos não no sentido em que o enten-
que batizam: o corpo da noite, o corpo do machado, o
demos hoje em nossas sociedades. O "corpo" (o karo) é
corpo da água etc.
aqui confundido com o mundo; ele não é o suporte ou a
Compreende-se imediatamente que a noção ociden-
prova de uma individualidade, porquanto esta não está
tal de pessoa é sem consistência na sociedade melanesia-
fixada, uma vez que a pessoa repousa sobre fundamentos
na. Se o corpo está em ligação com o universo vegetal,
que a tornam permeável a todos os eflúvios do meio am-
entre os vivos e os mortos, não existem mais fronteiras.
A morte não é concebida sob a forma do aniquilamento,
biente. O "corpo" não é fronteira, átomo, mas elemento
indiscernível de um todo simbólico. Não existe aspereza -
t....>(

ela marca o acesso a outra forma de existência, na qual o


entre a carne do homem e a carne do mundo.
defunto pode tomar o lugar de um animal, de uma árvo-
Eis agora o relato do qual falamos. Maurice Leenhardt,
re ou de um espírito. Ele pode até mesmo voltar à aldeia
curioso por melhor delimitar a relação dos valores oci-
ou à cidade e misturar-se aos vivos sob o aspecto do bao
dentais sobre as mentalidades tradicionais, interroga um
(p. 67ss.). Por outro lado, durante sua vida, cada sujeito
velho canaque e este responde, para grande surpresa de
só existe em suas relações com os outros. O homem é
Leenhardt: "o que vocês nos trouxeram foi o corpo" (p.
apenas um reflexo. Ele não tem sua espessura, sua con-
263). A imposição da weltanschauung ocidental em cer-
I sistência, a não ser na soma de suas ligações com seus
I parceiros. Traço relativamente frequente nas sociedades
tos grupos, aliada à sua evangelização", conduz aqueles

\. tradicionais, e que, de resto, remete-nos aos trabalhos da 5 Segundo a fórmula de LÉVI-STRAUSS,C.La pensée sauvage. Paris: Plon,

sociologia alemã do começo do século XX, na oposição 1962, p. 285.

que ela faz, com Tonnies, por exemplo, entre o vínculo 6 Sobre a importância do fato da individuação no cristianismo,cf. MAUSS,
M."La notion de personne" Sociologie et anthropologie. Paris: PUF,1950.
comunitário e o vínculo social. A existência do canaque é
• DUMONT, L. Essai sur l'individualisme. Paris: Seuil, 1983.

24
25
Mas essa noção de pessoa cristalizada em torno do eu,
que extrapolam o limite, aqueles que aceitam despojar-
'111 que consiste o indivíduo, é ela mesma uma aparição
se de seus antigos valores, a uma individualização que
recente no seio da história do mundo ocidental. Algumas
reproduz, sob uma forma atenuada, aquela das socieda-
reflexões se impõem aqui para mostrar a solidariedade que
des ocidentais. O melanesiano conquistado, ainda que de
vincula as concepções modernas da pessoa e aquelas que,
maneira rudimentar, por esses valores novos, liberta-se do
consequentemente, atribuem ao corpo um sentido e um
tecido de sentido tradicional que integra sua presença no
estatuto. Desde logo importa sublinhar o curso diferen-
mundo no seio de um continuum; ele se torna em germe
dado do individualismo no seio de diversos grupos sociais.
indivisum in se. E as fronteiras delimitadas por seu corpo o
Já em Le suicide, É. Durkheim demonstra perfeitamente
distinguem doravante de seus companheiros, mesmo da-
que a autonomia do ator nas escolhas que se lhe apresentam
queles que perfizeram o mesmo percurso. Distanciamen-
não é a mesma segundo o meio social e cultural no qual
to da dimensão comunitária (e não desaparecimento, na
ele se enraíza. Em certas regiões francesas, por exemplo, a
medida em que a influência ocidental só pode ser parcial,
dimensão comunitária não desapareceu inteiramente; ela se
citadina, antes que rural), e desenvolvimento de uma di-
verifica mesmo na sobrevivência e na vivacidade de certas
mensão social na qual os vínculos entre os atores são mais
concepções do corpo postas em jogo pelas tradições popu-
lassos. Certo número de melanesianos acaba, portanto, por
lares de curandeirismo, onde a tutela simbólica do cosmo,
se sentir antes indivíduo em uma sociedade do que mem-
da natureza, é ainda perceptível. Ela se confirma também,
bro dificilmente discernível de uma comunidade, mesmo
nessas regiões, pela desconfiança testemunhada em relação
se, nessas sociedades um tanto quanto híbridas, a passa-
,I uma medicina tributária de uma concepção individualista
gem não se estabelece de maneira radical. O estreitamento
do corpo. Voltaremos a isso na sequência deste textos.
em direção ao eu, o ego, que resulta dessa transformação
A noção de individualismo, que serve de base a esta
social e cultural, induz à verificação nos fatos de uma forte
argumentação, é, aos nossos olhos, mais uma tendência
intuição de Durkheim, segundo a qual, para distinguir um
dominante do que uma realidade intrínseca às nossas
~ sujeito de outro, "é necessário um fator de individuação, e
\ é o corpo que desempenha esse papel'".
H Vemos, por exemplo, na feitiçaria, que as fronteiras do sujeito trans-
bordam os limites de seu próprio corpo, para englobar sua família,
1 7 DURKHEIM, t. Formes élémentaires de Ia vie religieuse. Paris: PUF, 1968,
seus bens, à maneira de um emaranhamento típico da estruturação
~ p. 386ss. De resto, Érnile Durkheim encontra aí o princípio de indivi-
omunitária na qual o homem não é uno (indiviso), mas um homem-

l duação pela matéria que, na tradição cristã, remete a Santo Tomás de


Aquino.
em-relação, ou, antes, um tecido de relações.

fo.r \.,

26
27

'\ ~
sociedades ocidentais. Em contrapartida, é justamente ( uspir no carpete ou nos assentos. Serve-se dos toale-
essa visão de mundo que põe em seu centro o indivíduo II'S, subindo sobre o assento, e suja a cabine etc. Ele vi-
(o ego cogito cartesiano), que está na origem de nossas vln em Bumbai, em um armário da casa de seu mestre;
concepções dominantes do corpo". ('1\1 Washington, ele se vê destinado ao mesmo espaço.
Uma novela de V.S. Naipaul'? ilustra, por um atalho Em um primeiro momento, nada muda da relação de
compreensível, os propósitos do velho canaque inter- submissâo que ele nutre em relação ao seu patrão. A cidade
rogado por Maurice Leenhardt. Em alguns meses de 111 icialmente o apavora. Mas nela ele dá, angustiadamente,
estadia nos Estados Unidos, um empregado doméstico seus primeiros passos, e acaba por se encorajar. Com o ta-
de Bumbai vai viver o processo de sua "individuação" e haco trazido de Bumbai, que vende aos hippies, ele compra
descobrir-se possuidor de um rosto, e, em seguida, de um terno. E pela primeira vez esconde algo de seu patrão.
um corpo. Em Bumbai, esse homem vivia à sombra de Ikscobre um dia, com espanto, seu rosto no espelho:
seu patrão, um funcionário do governo. À noite, ele en- Eu tinha ido me olhar no espelho da sala de banho,
contra seus amigos, os outros empregados domésticos da simplesmente para estudar meu rosto no vidro.

rua. Sua mulher e seus filhos estão longe, ele raramente Atualmente, eu dificilmente consigo crê-lo, mas,

os vê. Seu patrão é subitamente nomeado para um posto em Bumbai, uma semana ou mesmo um mês se
podia passar sem que eu me olhasse no espelho. E
em Washington. Após algu~as dificuldades, este obtém
quando eu me olhava, não era para ver com quem
do governo que seu criado o siga. A viagem de avião o
eu parecia, mas para assegurar-me de que o bar-
confronta a uma primeira experiência intercultural. Suas
beiro não me tinha cortado os cabelos curtos de-
más vestimentas atraem sobre si a atenção, e ele se vê mais, ou para me abotoar. Aqui, pouco a pouco, eu
relegado ao fundo do avião. Prepara para si uma mistura fiz uma descoberta: eu tinha um rosto agradável,
de bétel, mas se vê obrigado a engoli-Ia para não ter que eu nunca me tinha visto assim, ao contrário, eu me
via ordinário, com traços que apenas serviam para
me identificar (p. 42).
9 Todo campo conceitual, qualquer que seja o objeto, contém certa
visão do mundo e atribui ao homem (ainda que apenas no oco, em Simultaneamente à descoberta de si como indiví-
negativo) certa posição, sobretudo no âmbito das práticas que ele sus-
duo, o homem descobre seu rosto, sinal de sua singu-
tenta. t o que permite dizer que certas concepções (a medicina, por
exemplo) contêm um importante coeficiente de individualismo. laridade, e seu corpo, objeto de uma posse. O nasci-
10 NAIPAUL, V.5."Umparmi d'autres" Dis-moi qui tuer. Paris: Albin Michel, mento do individualismo ocidental coincidiu com a
1983, p. 42 [Trad. de Annie Saurnart].
promoção do rosto.

28 29
Em outras palavras, ele compreende, cada vez melhor,
1.3 Polissemia do corpo
os "truques" da sociedade americana. Um dia, símbolo de
sua emancipação crescente da einstellung de sua socieda-
de, ele tem uma aventura amorosa com uma faxineira do De uma sociedade a outra, as imagens que tentam

edifício onde vive. Envergonhado de seu ato, ainda sobre a reduzir culturalmente o mistério do corpo se sucedem.

linha de transição, ele passa horas se purificando e orando. Uma miríade de imagens insólitas delineia a presen-

Logo em seguida ele deixa seu patrão, sem avisá-10, e vai ça em pontilhado de um objeto fugaz, inapreensível e,

trabalhar em um restaurante. Meses se passam, no curso no entanto, aparentemente incontestável". A formula-

dos quais ele perfaz o processo de individuação, o qual per- ção da palavra corpo como fragmento de certa maneira

corre a despeito de si mesmo. Desposa então a faxineira e, autônomo em relação ao homem, cujo rosto ele porta,

por conseguinte, torna-se um cidadão americano cada vez pressupõe uma distinção estrangeira a numerosas co-

mais integrado a um modo de vida que lhe pareceu insólito munidades humanas. Nas sociedades tradicionais, de

nos primeiros tempos de sua estadia. Significativas são as composição holista, comunitária, nas quais o indivíduo

últimas linhas do texto, que voltam a fechar a história desse é indiscernível, o corpo não é o objeto de uma cisão, e

homem, a descoberta da posse de um corpo e o retraimen- () homem está misturado ao cosmos, à natureza, à co-

to em si, que corta com o sentimento experimentado antes munidade. Nessas sociedades, as representações do cor-

de sua partida para os Estados Unidos, de ser confundido po são, de fato, representações do homem, da pessoa. A

ao mundo, formado das mesmas matérias. "No passado, imagem do corpo é uma imagem de si, alimentada das

escreve o homem, eu estava dissolvido na água do grande matérias-primas que compõem a natureza, o cosmos, em

rio, eu jamais estive separado, com uma vida minha, mas lima espécie de indistinção. Essas concepções impõem o

eu me contemplei em um espelho e decidi ser livre. A única sentimento de um parentesco, de uma participação ativa

vantagem dessa liberdade foi a de me fazer descobrir que do homem na totalidade do vivente, e, ademais, encon-

eu tinha um corpo, e que eu devia, durante certo número tramos ainda traços ativos dessas representações nas tra-

de anos, alimentar e vestir esse corpo. E depois tudo estará dições populares de curandeirismo (capítulo 4: "Hoje, o

terminado" (p. 68). Se a existência se reduz a possuir um orpo .."), Por vezes uma língua continua a guardar raízes
) precisas unindo o microcosmo do corpo aos elementos
corpo à maneira de um atributo, então, com efeito, a pró-
pria morte não tem mais sentido: ela não é senão o desapa-
l recimento de um ter, isto é, pouca coisa.
li Cf. LE BRETON, D.Lo sociologiedu
? - 3. éd. cor, 1996).
corps. Paris: PUF, 1992 [Col.Que sais-

30
31
da natureza, enquanto as tradições populares ainda vivas ruptura de solidariedade com o cosmo. Nas sociedades
não mais retêm em suas crenças senão uma parte dessas dt' tipo comunitário, em que o sentido da existência do
correspondências. O Euskara, a língua basca, uma das homem marca uma submissão fiel ao grupo, ao cosmo
mais antigas das línguas indo-europeias, com cinco mil I' .) natureza, o corpo não existe como elemento de indi-
anos de idade, sem dúvida o testemunha. Cinco catego- viduação, uma vez que o próprio indivíduo não se dis-
rias, que correspondem aos elementos naturais dos anti- ungue do grupo, sendo, no máximo, uma singularidade
gos bascos, cinco divindades igualmente atestadas pela tl.1 harmonia diferencial do grupo. Ao contrário, o iso-
antropologia e pela história do povo basco, ordenam os l.uncnto do corpo no seio das sociedades ocidentais (cf.
componentes da pessoa humana: a terra, a água, o ar, a inlra) testemunha uma trama social na qual o homem
madeira e o fogo. Os cinco princípios da cosmogonia for- I' separado do cosmo, separado dos outros e separado
necem as cinco raízes lexicais que engendram todo um 411' si mesmo. Fator de individuação no plano social, no
vocabulário anatômico que inscreve nas veias da língua a pl.mo das representações, o corpo é dissociado do sujei-
correspondência entre o corpo humano e o cosmo". to c percebido com um de seus atributos. As sociedades
O corpo como elemento isolável do homem, ao qual III identais fizeram do corpo um ter, mais do que uma es-
empresta seu rosto, não é pensável senão nas estruturas II'pc identificadora. A distinção do corpo e da presença
sociais de tipo individualista, nas quais os homens estão humana é a herança histórica do retraimento na concep-
separados uns dos outros, relativamente autônomos em \.10 da pessoa, do componente comunitário e cósmico, e
suas iniciativas, em seus valores. O corpo funciona à ma- II deito da divisão operada no seio mesmo do homem.
neira de um marco de fronteira para delimitar perante U corpo da Modernidade, aquele que resulta do recuo
os outros a presença do sujeito. Ele é fator de individua- da\ tradições populares e do advento do individualismo
'- ção. O vocabulário anatômico estritamente independen- 111 idental, marca a fronteira entre um indivíduo e outro,
te de qualquer outra referência marca bem igualmente a 1I cucerramento do sujeito em si mesmo.
A específicídade do vocabulário anatômico e fisio-
12 Sobre esse ponto, cf. PEILLEN, D. "Symbolique de Ia dénomination lúgico, que não encontra qualquer referência, qualquer
des parties du corps humain en langue basque" Le corps humain, na- I.IIZ, fora de sua esfera, ao contrário de alguns exemplos
ture, culture et surnature/ [110' Conqrés National des Societés Savan-
I u.idos anteriormente, traduz igualmente a ruptura on-
tesoMontpellier, 1985]. Um exemplo da mesma ordem:THERRIEN, M. Le
eorps inuit (Quebec Arctique). Paris: Selaf/PUB, 1987. Cf. tb. as tradições tulógica entre o cosmo e o corpo humano. Um e outro
budistas, hinduístas etc.
\iIO postos em uma exterioridade radical. Os entraves

32 33
IIH'SlnO título que o conjunto do mundo; a divisão entre
epistemológicos alçados pelo corpo perante as tentati-
I1 homem e seu corpo, tal como existe na tradição platô-
vas de elucidação das ciências sociais são múltiplos; estes
lIil ! ou órfica", é para ela um não sentido. O mundo foi
l

pressupõem frequentemente um objeto que existe apenas


, I Lido pela palavra, "pela boca de Yhwh os céus foram
no imaginário do pesquisador. Herança de um dualismo
I,</I()s, e pelo sopro de sua boca, todo o seu exército [...]
que dissocia o homem de seu corpo. A ambiguidade em
IlIlis ele disse e tudo foi feito; ele ordenou e tudo existiu"
torno da noção de corpo é uma consequência da ambi-
(p.B). A matéria é uma emanação da palavra, ela não é
guidade que cerca a encarnação do homem: o fato de ser
1'~1.\lica,morta, fragmentada, não solidária com as outras
e de ter um corpo.
lormas de vida. Ela não é indigna como no dualismo. A
A antropologia bíblica também ignora a noção de um
"lIlarnação é o ato do homem não sem artefato.
corpo isolado do homem. Muito afastada do pensamen-
to platônico ou órfico, ela não considera a condição hu- Eu não percebo um "corpo': o qual conteria uma
"alma", eu percebo imediatamente uma alma viva,
mana sob a forma de uma queda no corpo, de uma enso-
com toda a riqueza da sua inteligibilidade que eu
matose. O dualismo típico da episteme ocidental não se
decifro no sensível que me é dado. Essa alma é
deixa aí perceber ... "O hebraico, diz Claude Tresmontant,
para mim visível e sensível porque está no mundo,
é uma língua concreta, que só nomeia aquilo que existe.
porque assimilou elementos dos quais se alimenta,
Portanto, ela não tem palavra para significar a 'matéria: e
os quais ela integrou e que fazem com que ela seja
tampouco o 'corpo: uma vez que esses conceitos não vi- carne. A essência dessa carne, que é o homem, é a
sam realidades empíricas, contrariamente ao que nossos alma. Se se retira a alma não sobra nada, não sobra
velhos hábitos dualistas e cartesianos nos levam a crer. um "corpo': Nada resta senão a poeira do mundo.
Ninguém nunca viu a 'matéria, nem um 'corpo: no senti- Também o hebraico emprega indiferentemente,
do em que o compreende o dualismo substancial'T'. No
universo bíblico o homem é um corpo, e seu corpo não é , Da mesma forma entre os canaques, o conhecer é uma moda lida-
dI' flsica de apropriação e não um ato puramente intelectual. Assim,
outra coisa senão ele mesmo. O próprio ato de conhecer
M.lurice Leenhardt observa que o costume melanesiano de consultar
não é o ato de uma inteligência separada do corpo". Para iluuérn passa pela questão "qual é teu ventre?" Um canaque, conhe-
I ,'ndo alguma migalha de francês, que se interroga sobre a opinião de
essa antropologia, o homem é uma criatura de Deus, ao
'1lcJuém de sua cidade, responde: "Eu, não conheço o ventre para ela':
I) conhecer melanesiano é corporal, não é feito de um espírito, de um
13 TRESMONTANT,C.Essai sur Ia pensée hébraique. Paris: Cerf, 1953, p.53. "" ontologicamente distinto, mais exatamente o conhecer canaque é
exlstencial,
14lbid.

35
34
para designar o homem vivo, os termos "alma' ou sas, qual seja a unidade de uma ordem. Uma ordem
"carne", que visam uma única e mesma realidade, o na qual a pessoa se apaga por detrás do personagem,
homem vivo no mundo (p. 95-96). porquanto é aquele que se estabelece entre status di-

Algures, a palavra corpo pode existir assim em nu- ferenciados e não aquele da complementaridade con-
tingente de temperamentos múltiplos".
merosas sociedades africanas, mas recobrir, de um lugar
a outro, noções muito diferentes. Nas sociedades rurais O homem africano tradicional está imerso no seio do cos-
africanas, a pessoa não está limitada pelos contornos 111( IS, de sua comunidade, ele participa da linhagem de seus
de seu corpo, fechada em si. Sua pele, e a espessura de .uiccstrais, de seu universo ecológico, e isso nos fundamentos
sua carne, não delineiam a fronteira de sua individua- IIltSmOS do seu ser". Ele permanece uma espécie de intensi-
lidade. O que entendemos por pessoa é concebido nas d.ldc, conectada a diferentes níveis de relações. É deste tecido
sociedades africanas sob uma forma complexa, plural. 111' trocas que ele tira o princípio de sua existência.
A oposição essencial reside na estrutura holista dessas Nas sociedades ocidentais de tipo individualista, o l
sociedades, nas quais o homem não é um indivíduo (isto 1I1rpO funciona como interruptor da energia social; nas I
é, indivisível e distinto), mas nó de relações. O homem vociedades tradicionais ele é, ao contrário, a conexão da
I

é fundido em uma comunidade de destino, em que o energia comunitária. Pelo seu corpo, o ser humano está ..J

seu relevo pessoal não é o índice de uma individualida- 1'111 comunicação com os diferentes campos simbólicos
de, mas uma diferença favorável às complementarida- que dão sentido à existência coletiva. Mas o "corpo" não
des necessárias à vida coletiva, um motivo singular na í' .1 pessoa, porque outros princípios concorrem para a
harmonia diferencial do grupo. A identidade pessoal do tundação desta última. Assim, é entre os dogons", onde
africano não se encerra em seu corpo, este não o separa
do grupo, mas, ao contrário, o inclui. ,1\ IIASTIDE, R."Le principe d'individuation" La notion de personne em
li/tique Noire. Paris: CNRS, 1973, p. 36.
Não que os etnólogos neguem a diversidade dos indi-
r., p. ex., THOMAS, L.-V. "Le pluralisme cohérent de Ia notion de per-
víduos, afogando-os todos em uma comunidade que nnne em Afrique Noire tradicionelle" In: BASTIDE, R. La notion de
seria primeira, que seria a única realidade verdadeira, /It'rçonne en Afrique Noire. Op. cit., p. 387.

nota Roger Bastide. Ele reconhece que há gente tími- I" Nós nos apoiamos aqui no livro clássico de CALAME-GRIAULE, G.Eth-
da e gente audaciosa, gente cruel e pessoas amáveis, I/%gie et /angue - La parole chez les Dogon. Paris: Gallimard, 1965, p.
Ih.' DIETERLEN,G."L'image du corps et les composantes de Ia persone
mas essas características se organizam em um mes-
« 111'7 les Doqon" In: BASTIDE, R.La notion de personne en Afrique Noire.
mo universo, constituindo a unidade última das coi- (lp. cit., p. 205s.

36 37
a pessoa é constituída da articulação de diferentes pla- esse símbolo exprime a "consubstancialidade"
nos, incluindo, de maneira muito singular, aquilo que o do homem e do grão, sem a qual ele não pode-
ocidental tem o costume de denominar o corpo. Entre os ria viver" (Germaine Calamé-Griaule, p. 34). As
dogons, a pessoa é composta: crianças recebem em seu nascimento os mesmos
a) De um corpo: a parte material do homem e "o grãos que seus pais. A bissexualidade inerente
polo de atração de seus princípios espirituais': um ao ser humano é aqui marcada pelo fato de que
"grão de universo", sua substância mescla os qua- geralmente o dogon recebe em sua clavícula di-
tro elementos, como todas as coisas que existem: reita quatro grãos "masculinos" de seu pai e de
a água (o sangue e os líquidos do corpo), a terra seus ascendentes ignáticos, e em sua clavícula
(o esqueleto), o ar (o sopro vital) e o fogo (o calor esquerda, quatro grãos "femininos" de sua mãe
animal). O corpo e o cosmos estão indistintamen- e de seus descendentes uterinos. Por esses grãos,
te mesclados, constituídos dos mesmos materiais, a pessoa é marcada na filiação do grupo, e tam-
segundo as diversas escalas de grandeza. O corpo bém se enraíza no princípio ecológico que funda
não encontra, portanto, seu princípio nele mes- a vida dos dogons. Os grãos compõem uma espé-
mo, como na anatomia e na fisiologia ocidentais; cie de pêndulo vital, a existência do homem está
os elementos que lhe dão um sentido devem ser ligada à sua germinação.
buscados alhures, na participação do homem no .) A força vital (nàma), cujo princípio reside no san-
jogo do mundo e de sua comunidade. O homem gue. Marcel Griaule a definiu como "uma energia
existe por ser parcela do cosmo, não por si mesmo, potencial, impessoal, inconsciente, repartida entre
como na tradição tomista ou ocidental, na qual a todos os animais, vegetais, nos seres sobrenaturais,
imanência do corpo, porquanto ele é matéria, fun- nas coisas da natureza, e que tende a fazer perse-
da a existência do sujeito. A anatomia e a fisiologia verar em seu ser, suporte ao qual ela está afetada
dogons articulam igualmente o homem ao cosmo temporariamente (ser mortal), eternamente (ser
por todo um tecido de correspondências. imortal)?". O nàma resulta da soma dos nàrnas
b) "Oito grãos simbólicos estão localizados nas cla- dados por seu pai, sua mãe e o ancestral que re-
vículas. Esses grãos simbólicos, principais cere- nasce nele.
ais da região, constituem a base da alimentação
dos dogons, que são essencialmente agricultores; Iv (,lllflULE, M.Masques dogons. Paris: Institut d'Ethnologie, 1938, p. 160.

38 39
d) Os oito kikinu, princípios espirituais da pessoa, di- n,l mesma maneira, o corpo só adquire sentido com o
vididos em dois grupos de quatro (eles são machos ttlllill cultural do homem.
ou fêmeas, inteligentes ou bestas), gêmeos dois a A compreensão das relações entre o corpo e a Moder-
dois. Eles contribuem, segundo sua determinação, Itld.ldc impõe uma genealogia, uma espécie de "história
para delinear a psicologia da pessoa, seu humor. t1t1 presente" (M. Foucault), um regresso à construção
Estão organizados em diversos órgãos do corpo, d.1 noção de corpo na einstellung ocidental. Uma refle-
e pode-se ainda tê-los reservados em diversos lu- 1.111 também sobre a noção de pessoa, sem a qual não
gares (um poço, um altar, um animal...), segundo tll,I possível apreender os riscos dessa relação. Veremos
os momentos psicológicos vividos por aqueles que 1"llIlO a pouco, ao longo do tempo, instaurar-se uma

1,
r os trazem.
Outras representações da pessoa em terra africana
podem ser evocadas. Mas já se pressente o número de
t

tI
«nccpção do corpo paradoxal." Por um lado, o corpo
umo suporte do -indivíduo, fronteira de sua relação com
mundo, e, em outro nível, o corpo dissociado do ho-
I

V percepções do "corpo" que podemos encontrar. A de- 1111'111 ao qual confere a sua presença, e isso por meio do
\) finição de corpo é sempre dada no vazio da definição modelo privilegiado da máquina. Veremos os vínculos
_ de pessoa. Não é absolutamente uma realidade eviden- t·,1 reitos que se estabeleceram entre o individualismo e
te, uma matéria incontestável: o "corpo" existe apenas II corpo moderno.
construído culturalmente pelo homem. É um olhar lan-
çado sobre a pessoa pelas sociedades humanas, que lhe
balizam os contornos sem o distinguir, na maior parte
do tempo, do homem que ele encarna. Donde o para-
doxo de sociedades para as quais o "corpo" não existe.
Ou sociedades para as quais o "corpo" é uma realidade
tão complexa, que desafia o entendimento do ocidental.
Da mesma forma, a floresta é evidente à primeira vista,
mas há a floresta do índio e aquela de quem procura
ouro, aquela do militar e aquela do turista, aquela do
herbolário e aquela do ornitólogo, aquela da criança e
aquela do adulto, aquela do fugitivo e aquela do viajante ...

40 41

Você também pode gostar