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Conceito(s) de Natureza

RESUMO
A natureza foi alvo de profundas cogitações desde a antiguidade até aos nossos dias, no
entanto esse “objecto de estudo” variou significativamente. A complexidade e a abrangência
do conceito de natureza, tal como a sua dificuldade e ambiguidade, justificarão as mudanças
e oscilações marcantes ao longo do tempo. Na verdade, não existe um único conceito mas sim
vários conceitos de natureza.
Palavras-chave: natureza, natural, artificial, sobrenatural

«O universal é o local sem paredes.»


Miguel Torga

«O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado


Porque lhe pesa o fato que os homens lhe fizeram usar.»
Alberto Caeiro

O conceito de natureza é nuclear ou axial no âmbito da filosofia e da ciência.


A filosofia da natureza e a ciência da natureza coincidiram ao longo de
séculos e a sua separação, no contexto europeu, só ocorreu no século XVII 1 e
mesmo desde então no mundo de língua inglesa ambas as expressões
continuaram sinónimas (Henry Margenau inHEINEMANN et al., 2004: 365). A
investigação da natureza (physis) está no cerne do modelo de racionalidade
inaugurado, a partir do século VI a.C., pelos filósofos, astrónomos,
matemáticos e médicos gregos (CARDOSO et al., 2015: 11).
As mais representativas escolas gregas encararam a vida como modelo da
ordem natural devido à regularidade dos processos biológicos e à
espontaneidade e finalidade intrínseca dos actos vitais (Ibidem: 12). O
naturalismo renascentista realçou esta tendência, no século XVI, exaltando
em especial a perfeição, a beleza e a proporcionalidade do corpo humano
enquanto expressão suprema do universo, do qual foi considerado arquétipo e
símbolo.
A natureza gosta do comum (do repetitivo), evidenciado sob a forma de
ordem e de regularidade. No entanto, também se revela de modo incomum
(inusitado ou insólito), através de singularidades, deformidades, “fugas ao
padronizado”. A natureza expressa inequívoca espontaneidade e
simultaneamente remete para a transcendentalidade. A manifestação da
natureza surge, pois, sob diversas roupagens e parece que esta gosta de se
velar (ocultar sob véus). A opção, que se assume intencional, de falar da
natureza como se esta fosse um ente deve-se ao facto desta, por vezes, ser
equiparada a Deus (ou fazer parte deste), à imagem do Homem 2 e daí a
narrativa antropocêntrica adveniente.
Uma diferenciação conceptual, que procede da filosofia grega, considera uma
natura naturans (natureza geradora que cria) e uma natura naturata
(natureza criada). Averróis (1126-1198), nos seus comentários sobre a Physica
de Aristóteles (350 a.C.), volta a recuperar estes conceitos, tal como,
posteriormente, muitos outros pensadores. Os escolásticos mantêm a
distinção da filosofia grega entre naturans e naturata, para justificar a
Criação: Deus é necessário e é natura naturans (Leandro Sequeiros in BORGES
et al., 2014: 114). A natureza naturante não é senão Deus. Para Baruch
Espinosa (1632-1677) dizer Deus ou Natureza é a mesma coisa. A ideia de uma
natureza naturante é, aliás, bastante anterior ao pensamento espinosiano.
Diversos pensadores gregos conceberam uma natureza plena de Deus – e.g.
Tales de Mileto (623/624-546/548 a.C.) – no sentido de haver uma dimensão
divina na natureza. Face a essas concepções, consideradas por alguns como
panteístas ou paneteístas, não poderemos ignorar posicionamentos
diametralmente opostos. Por exemplo, o filósofo Robert Boyle (1627-1691)
defendia que a natureza não era mais do que um ente da razão e o sacerdote
e filósofo Teodoro de Almeida (1722-1804) alegava que a noção de natureza
não passava de uma invenção pagã.
Na obra De humani corporis fabrica(1543), de Andreas Vesálio, a natureza é
concebida como produção do artista supremo (sumus opifex), sendo a sua
obra mais admirável o corpo humano, frequentemente designado como
“artifício” (artificium), quer dizer o produto de uma arte (CARDOSO et al.,
2015: 12). Mas não esqueçamos que no final do século XV, cerca de meio
século antes de Vesálio publicar a sua obra-prima, Leonardo da Vinci (1452-
1519), já tinha antecipado muito do que, do ponto de vista científico, iria
acontecer nos séculos seguintes.
A física moderna fundada, entre outros, por Kepler, Galileu e Newton, no
século XVII, teve por base uma «imagem medieval da natureza, que via nesta
acima de tudo, a criação de Deus» (HEISENBERG, 1981:7). A natureza era
pensada como obra do Criador, sendo considerado absurdo conceber o mundo
material independentemente de Deus. No entanto, no decurso de poucos
decénios, a atitude ante a natureza mudou radicalmente.

«Nos tempos que se seguiram, os métodos da mecânica newtoniana foram aplicados com
sucesso a campos cada vez mais vastos da natureza. Tentou-se, por meio de experiências,
isolar determinadas partes do processo natural, observá-las objectivamente e compreender a
sua regularidade.» (HEISENBERG, 1981:8)

Em nome desta recente abordagem científica foi instituído um novo “credo”


com preconceitos rígidos e formais!… Segundo Bookchin (1989: 10):
«Imaginava-se, por exemplo, que a natureza era muda, cega, indiferente e
insensível, e que apenas era dado ao homem percebê-la através de equações
e de enunciados matemáticos». O dito do físico Galileu Galilei (1564-1642),
contido na sua obra O Ensaiador (1623), passou a ser regra: «O Livro da
Natureza está escrito em caracteres matemáticos» (BORGES et al., 2014: 56).

Natural versus Artificial?


Numa determinada perspectiva filosófica, o universo é composto de natureza
e de alma3. Para Ralph Waldo Emerson (1803-1882), estritamente falando,
tudo o que a filosofia considera como o “não eu”, isto é, a natureza (incluindo
o próprio corpo humano) e a arte, deve ser classificado com a designação de
“natureza”.No entanto, a natureza, no sentido corrente do termo, «refere-se
às essências não alteradas pelo homem: o espaço, o ar, o rio, a folha»
(EMERSON, 2009:74). Segundo esse transcendentalista de Concord, a arte
corresponde, numa perspectiva vulgar, à acção da vontade humana que se
expressa sob a forma de objectos como, por exemplo, uma casa, um canal,
uma estátua ou um quadro. Essa forma de senso comum peca pela sua
simplicidade insustentável e levanta uma série de questões pertinentes que
obrigam a um pensamento mais profundo e, portanto, filosófico. Nessa
perspectiva como poderemos classificar um ninho de uma ave, uma barragem
construída por castores ou um ramo trabalhado por um chimpanzé para
funcionar como instrumento, entre tantos outros fenómenos do género? Tal
como os artifícios e artefactos humanos (toda a acção ou objecto pelos quais
se age sobre a natureza), estas expressões não humanas também teriam de
ser consideradas, nessa lógica, como artificiais. E, daí, decorreria
prontamente a questão sobre onde situar a fronteira entre o natural e o
artificial. Questão, essa, que, só por si, para alguns, já é“artificial”… A arte
nasce na ou da natureza e tem, sem dúvida, a capacidade de transformar a
própria natureza, numa manifesta complementaridade ou mesmo
interpenetração. Para alguns, natureza e arte, natural e artificial, serão uma
e a mesma “coisa”, que também poderá ser designada por “realidade
material” (de matéria). Nesse contexto, não surpreenderá, portanto, que o
filósofo italiano Julius Evola (1898-1974), considerasse que a natureza é
também «los diques, las turbinas y las fundiciones, la red tentacular de grúas
y los muelles de un gran puerto moderno o un complejo de rascacielos
funcionales» (Philippe Baillet in EVOLA, 2003: 25).
A natureza enquanto Criação, em grande parte por influência do cristianismo 4,
remete para o conceito de natureza como artefacto e a «vida como o mais
belo dos artifícios» (CARDOSO et al., 2015: 11). Deus surge como artífice (e.g.
relojoeiro) e a natureza como artefacto (e.g. relógio), no entanto essa forma
de pensar evidencia manifestas insuficiências. Não restam dúvidas no tocante
ao facto do artífice criar o artefacto mas surge de imediato a dúvida sobre
quem criou o artífice. Algo, aliás, à semelhança da narrativa pós-moderna (do
agrado de inúmeros ateístas) acerca da criação do universo a partir do big
bang. O que havia antes dessa grande explosão de matéria e energia ou, numa
outra formulação, quem criou o big bang?Mysterium tremendum et fascinans…
É na linha de pensamento que considera a natureza como criação de um Deus
que surge a concepção de arte como capacidade de aperfeiçoamento da
natureza. Concepção que curiosamente continua igualmente a ser defendida,
nos dias de hoje, por acérrimos seguidores de uma (“deusa”) ciência
supostamente acima de quaisquer crenças! Aquilo que para alguns é
“naturalmente” resultado da vontade divina ou das maravilhas da ciência, e
que se poderá consubstanciar na imagética do aperfeiçoamento de uma
“natureza selva” em “jardim”, para outros surge como um sério risco de
desnaturação e/ou de destruição da natureza.

Natureza selvagem (Wilderness): o exemplo da


alta montanha
Uma área de natureza selvagem, em contraste com as áreas onde o homem e
as obras dominam a paisagem, pode ser reconhecida como aquela em que a
terra e a sua comunidade de vida não foram manipuladas pelo homem, onde o
próprio homem é um visitante que não permanece (JAMIESON et al., 2005:
358). Essa definição, com todas as limitações filosóficas aduzidas do que já foi
referido atrás acerca do natural e do artificial, aplica-se numa Europa
intensamente ocupada e intervencionada pelo homem, desde há milhares de
anos, em escassas áreas excepcionais de que se destacam as profundas
cavidades subterrâneas e as altas montanhas.

O facto de na segunda metade do séc. XVII começar a generalizar-se o


sentimento do esplendor e da beleza das paisagens montanhosas, a par da
concepção mecanicista da natureza, é bastante curioso. Durante a Idade
Média e, segundo o clérigo anglicano William Gilpin (1724-1804), até pelo
menos 1791, a maior parte das pessoas não gostava da natureza selvagem
(wilderness) e até a achava hostil. As altas montanhas eram consideradas
esteticamente repelentes, excrescências, verrugas da terra, “desertos” e até
mesmo– com as suas cristas labiais e vales vaginais – ‘partes pudendas da
natureza’ (!), habitats do sobrenatural e de um tão variado quanto
imaginativo bestiário a condizer… No entanto, esse paradigma foi substituído
precisamente pelo oposto, facto a que não estará alheio o pensamento
inovador ou original (de ir às origens) do filósofo/cientista/artista Leonardo
da Vinci. Este de forma notoriamente à frente do seu tempo terá subido, em
1511 ou 1516, o monte Bô (2556 m), entre outras ascensões efectuadas pelo
anseio de descobrir essas paragens pouco conhecidas e que revelavam
“saberes”, até então ignorados, a quem os soubesse interpretar… Da Vinci ao
abrir os olhos da humanidade, em inúmeros campos do conhecimento, fez
também com que esta descobrisse os encantos da alta montanha e, portanto,
da natureza selvagem.

«Atravesó varios neveros sin miedo y sus ojos de artista comprobaron el potente azul del
cielo, comparándolo con el de las gencianas. Luego, en sus pinturas dejará de vez en cuando
que los Alpes figuraran como fondo (…) Se sabe que aquel genio admiró y sintió en su más
profundo ser la belleza clásica de las montañas. Él era precisamente la encarnación del
Renacimiento.»(FAUS, 2003: 47-48)

A influência de Da Vinci fez-se sentir de forma morosa mas, contudo,


imparável. Facto é que no decurso de três séculos sedimentou-se uma nova
forma de conceber a natureza…

«Over the course of three centuries, therefore, a tremendous revolution of perception


occurred in the West concerning mountains. (…) That is to say, when we look at a landscape,
we do not see what is there, but largely what we think is there. (…) What we call a mountain
is thus in fact a collaboration of the physical forms of the world with the imagination of
humans – a mountain of the mind. And the way people behave towards mountain has little or
nothing to do with the actual objects of rock and ice themselves.»(MACFARLANE, 2004: 18-
19)

Um exemplo bastante expressivo do modo ilusório como muitas vezes o Homem


interpreta a natureza traduz-se na aparente imobilidade das montanhas resultante não
da realidade subjacente à própria montanha mas sim da escala do tempo geológico
(medida em milhões de anos) face ao diminuto período de vida humana e à deficiente
observação por parte da generalidade dos “observadores”. De facto, as montanhas
movem-se mas nem sempre isso é perceptível. Para ver não basta olhar…
As fortes influências do cristianismo na generalidade da população – tal como
a perspectiva mecanicista, que irá prevalecer durante os séculos XVII e XVIII,
sobretudo nas classes cultas – serão paulatinamente substituídas pelo retomar
do ancestral tópico nuclear da relação entre o Homem e a Natureza. Questão
que não deixará de se colocar até hoje de forma cada vez mais pertinente,
sobretudo a partir da década de 1970, face à alarmante destruição da
natureza, mormente no que concerne à perda de biodiversidade e às
alterações climáticas.

É nesse contexto que surgem novas abordagens filosóficas de que destacamos a


ecologia profunda, surgida em 1973, na sequência da publicação de um artigo seminal
da pena do filósofo norueguês Arne Naess (1912-2009): O movimento ecológico de
longo alcance, superficial e profundo. A ecologia profunda baseia-se no conhecimento
e no desenvolvimento do “eu” (self). Não um “eu” atomista e, portanto,
limitado mas sim um “eu”limiar que faz parte de um todo e, daí, o mais
alargado possível. Este modo de pensar implica abandonar um
antropocentrismo (ou egocentrismo) de vistas curtas e adoptar uma
perspectiva alargada ecocêntrica. Naess defendeu uma forma de ecosofia –
que baptizou de “ecosofia T” (do nome da sua cabana de montanha:
Tvergastein) – assente numa dimensão ontológica e cosmológica de carácter
transpessoal, de comunhão com o todo/outro (animado ou inanimado), com
vista à Auto-realização. Esta forma de pensar não se limita à teoria dando
uma especial importância à prática, razão pela qual não será de todo estranho
que muitos ecologistas profundos sejam simultaneamente montanhistas e/ou
pedestrianistas: Arne Naess, Bill Devall, George Sessions, Nils Faarlund, etc..

As concepções inerentes à ecologia profunda vêm na sequência de pensadores


revolucionários como John Muir (1838-1914)5e Aldo Leopold (1887-1948)6. Este
último na obra Pensar como uma Montanha (1949) esboça uma ética da terra
e perspectivas assumidamente ecocêntricas que irão influenciar
profundamente diversos autores até à actualidade, entre eles os filósofos
português José Manuel Heleno (1957-)e o estadunidense David Abram (1957-).

«Importa, então, compreender o percurso que vai da interioridade defendida por Agostinho à
ideia que «ser real quer dizer não estar dentro de mim» (Caeiro). Da interioridade absoluta
ou «realidade de dentro» (de origem divina) transita-se assim para a ideia que «antes de
sermos interior somos exterior/Por isso somos exterior essencialmente» (Caeiro).
(…) O que se dá na experiência sensível – do poeta ou do pintor –, é o entrelaçamento entre o
visível e o vidente.» (HELENO, 2002: 18)
«(…), não são apenas essas entidades reconhecidas pelas civilizações ocidentais como “vivas”,
não são apenas os outros animais e plantas que falam, como espíritos, aos sentidos de uma
cultura oral, mas são também o rio serpenteante onde esses animais bebem, as torrenciais
chuvas da monção e a pedra que encaixa perfeitamente na palma da mão. A montanha
também tem os seus pensamentos.» (ABRAM, 2007: 13)

A natureza selvagem surge, em autores como Heleno e Abram, numa


perspectiva fenomenológica, como “paisagem de múltiplas vozes” que cabe
ao Homem descortinar. A ecologia profunda e a ecosofia voltam a integrar o
Homem no Cosmos, o humano passa novamente a fazer parte da natureza, a
ser natureza.

O Homem: avis rara?


O lugar do humano na natureza esteve, no pensamento ocidental,
invariavelmente no centro de todas as problemáticas. A superfície de
contacto entre o Homem e a Natureza, a sua relação e interacção, foi desde
sempre um dos problemas mais fascinantes da filosofia, da ética e da cultura.
O cristianismo e, talvez mais do que este, o catolicismo, com o seu poderoso
e enraizado preconceito anti-naturalista e anti-pagão, substituiu de modo
quase absoluto a riqueza e a complexidade da visão greco-romana por um
sobrenatural único e, por isso, empobrecido e sobretudo desgarrado da
natureza. De certa forma, este empobrecimento corresponde àquilo que os
filósofos e os investigadores do Renascimento, particularmente com Descartes
e Galileu, vão ajudar a consolidar de forma radical (BOOKCHIN, 1989: 9).
Até ao século XVII, o pensamento médico-filosófico considerava a vida como o
resultado da actividade da alma, que tinha a função essencial de animar o
corpo. No Tratado do Homem (1662), Descartes rompe com esta tradição,
inaugurando uma nova forma de conceber o ser vivo e em especial o Homem
como uma máquina apta a executar por si mesma, mecânica e
automaticamente, o conjunto das operações vitais, nomeadamente mover-se,
respirar, alimentar-se e reproduzir-se (CARDOSO et al., 2015: 19). É a partir
de meados do século XVII que começa a ser defendido que o corpo é que
possui automatismo e que a alma é espontânea. A alma até então fez parte da
natureza – sendo que em algum platonismo e nas“religiões do Livro” (desde o
judaísmo) tal não aconteceu –, mas é nesse século que a separação da alma e
da natureza surge como um divórcio tão inequívoco quanto generalizado 7.
Numa tentativa arrebatadora de mecanização da natureza, os pensadores
setecentistas retiraram a alma da natureza e apartaram de forma drástica o
Homem do natural8. O corpo e a alma passam a ter“naturezas” distintas,
diferenciando-se a natureza (corpo) da “natureza do Homem” (alma)! Será
igualmente de destacar, neste contexto, a mudança conceptual da “natureza
do corpo” para uma máquina terrestre (terrestrem) – feita de terra – em
detrimento de concepções anteriores em torno de humores líquidos (água) 9.
O Homem (de corpo e alma) surge indubitavelmente como um ser anfíbio: por
um lado é natural (faz parte da natureza), por outro será sobre-, supra- ou i-
natural. Tendo em conta esta perspectiva filosófica, o Homem no contexto da
evolução das espécies surge como avis rara sem paralelo. Posicionamento
bastante questionado no âmbito da biologia actual, que não encontra
diferenças substanciais entre os homens e os animais. Aliás, já Fernando
Pessoa, nas suas Reflexões Sobre o Homem (1926-1928), salientava que o ser
humano era um animal exactamente como os outros: «A única diferença é que
os outros são animais irracionais simples, o homem um animal irracional
complexo.» As diferenças serão de ordem meramente quantitativa e não
qualitativa…
As competências cognitivas, tanto do Homem como dos restantes animais, são
naturais, são meras disposições naturais. As dúvidas surgem no tocante à
cultura enquanto pretenso atributo exclusivo do Homem 10. E, neste contexto,
mais uma vez vem à colação a diferenciação do natural e do artificial: o
Homem, para além de uma dimensão natural, comportará uma dimensão
artificial (cultural). No entanto, esse atributo, para muitos autores, também
deixou de ser um monopólio humano tendo-se estendido ao não humano. No
domínio das eventuais diferenças, é a linguagem verbal (e talvez mais ainda a
escrita) que se destaca enquanto algo muitíssimo enigmático.
Todas as tentativas de definição da linguagem saem goradas, desde logo
porque o único meio que podemos usar para definir a linguagem é a própria
linguagem. A verbalização surge como uma espécie de corpo para o
pensamento. A língua pensa na medida em que há determinados jogos de
linguagem que nós sabemos fazer e outros não. Cada língua surge como uma
espécie de canto único… Será a linguagem natural ou não-natural?

«Quando enalteço o realismo não estou só a pensar no mundo dado aos sentidos, naquilo a
que chamamos mundo objectivo. Há uma dupla face da realidade: a natural e a sobrenatural.
Entre as duas, o mistério do verbo mediador. A mediação entre o mundo sensível e o mundo
inteligível, entre o natural e o divino, é que é propriamente a metáfora.» (TELMO, 2004: 87)

Segundo o filósofo José Manuel Heleno, o sagrado nasce da experiência


sensível das coisas e é não só possível apreender as coisas sem a ajuda dos
nomes como a utilização da linguagem implica «perdemos a realidade em vez
de a ganhar – daí esse desejo de silêncio anterior à própria palavra» (HELENO,
2002: 67). O enigma da poesia, por exemplo, reside em esta ser mais do que
mera “questão” de linguagem, justamente pelo facto de haver um “milagre”
da própria linguagem ou dos símbolos na sua capacidade em se transcenderem
e em dizerem o novo a partir do velho (HELENO, 2002: 73). Neste contexto,
ser original será regressar às origens, voltar naturalmente a ser natureza e a
superar a própria natureza.

Pedro Cuiça

Lisboa, 20 de Abril de 2015

Curso Complementar de Formação em Filosofia – Filosofia da Natureza (Prof. Dr. Adelino


Cardoso)

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UN)

Notas
1. A distinção entre filosofia da natureza e ciência da natureza (na verdadeira acepção daquilo que se
considera como ciência moderna) verifica-se, a partir do século XVII, com a invenção do método
experimental.
2. A palavra “Homem” é utilizada para designar a espécie humana, incluindo portanto homens e
mulheres, sem quaisquer intenções de descriminação de género.
3. A palavra “alma” foi inicialmente empregue como sinónimo de “autómato”: a capacidade que a alma
possui de executar per si um conjunto de operações (respiração, alimentação, reprodução, etc.), de
trabalhar de forma regular como um “autómato vivo”. Com o mecanicismo, a partir do século XVII,
passou a estar separada da natureza e é nesse contexto que é referida por Emerson.
4. Situação partilhada, aliás, por outras “religiões do livro”: judaísmo, Islão e Fé Baha’i.
5. «Society speaks and all men listen, mountain speak and wise men listen.» (MUIR)
6. «Suspeito agora que, exactamente como uma manada de veados vive no temor mortal dos lobos, assim
vive uma montanha no temor mortal dos veados. E talvez com mais razão, pois que enquanto um veado
abatido pelos lobos pode ser substituído em dois ou três anos, uma cordilheira desarborizada por um
excesso de veados não consegue reconstituir-se em tantas outras décadas.» (LEOPOLD, 2008: 131)
7. Estamos cientes da existência de diferenças conceptuais entre “alma”, “mente” e“espírito” – diferenças
que por vezes não são tidas em conta (designadamente em determinadas traduções) dando origem a mal-
entendidos e confusões – mas não iremos desenvolver essa temática. Nesse contexto, vem também à
colação distinções, a ter em conta, entre “instinto”, “emoção” e “razão”.
8. Não deixa de ser interessante o facto de o filósofo e médico Francisco Sanches (1550-1622), apesar de
manifestar um posicionamento assumidamente racionalista, afirmar simultaneamente que não se pode
separar o Homem da Natureza. É de sua autoria a fórmula «Solam sequar rationem Naturem» (Vou
seguir a mera natureza com a razão) que «condensa todo o programa da racionalidade moderna»
(CARDOSO et al., 2015: 31).
9. Sendo certo que o latino homo (homem) se relaciona com humus (solo, terra), de onde deriva também
“humildade”, o Homem ao ignorar o facto de ser inseparável da terra, da natureza e dos seres vivos –
pervertendo o sentido original de cultura (cultura de integração harmoniosa no mundo e não de
desintegração violenta) –, o Homem, dizíamos, passa a re-colher(colere), não os frutos benéficos e
salutares do cultivo amoroso da terra e do espírito, mas os efeitos destrutivos da sua própria violência
(BORGES, 2014: 107). Será também oportuno salientar que a vida surgiu no mar-oceano (em meio
aquático) e que o corpo humano, sendo feito em parte de terra, é composto por cerca de 70 a 75% de
água.
10. «A origem da palavra cultura encontra-se na raiz indo-europeia kwel, que reencontramos no
sânscrito chakra, o qual designa uma roda ou disco, seja a roda da lei universal (dharma), a ronda das
existências condicionadas (samsāra) ou a dos centros de energia subtil no corpo humano. A cultura está
assim ligada à imagem dinâmica da roda, que no plano material foi uma descoberta maior da
humanidade e no plano simbólico figura a lei que rege todas as coisas, regulando a transformação dos
seres e da energia vital que os anima. A mesma raiz origina o grego kuklos, que designa toda a forma
redonda e de onde procedem o inglês wheel (roda) e o português ciclo. Em latim, é assim a raiz
originária do verbo colere, de onde procede directamente o latino cultura, no sentido literal de “mover-
se habilmente” no cultivo da terra e no sentido de cultivar o espírito (“cultura animi”, em Cícero),
cortejar alguém ou cultuar uma divindade. Daí a proximidade entre cultura, agricultura e culto. »
(BORGES, 2004: 105-106)

Referências bibliográficas
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humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, pp. 340.
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· BOOKCHIN, Murray [1983]: Sociobiologia ou Ecologia Social?. Lisboa: Sementeira, 1989, pp. 56.
· BORGES, Anselmo (2014): Deus ainda tem futuro?. Lisboa: Gradiva, 334.
· BORGES, Paulo (2014): Quem é o meu próximo. Lisboa: Mahatma, pp. 258.
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· EMERSON, Ralph Waldo [1836]: A Natureza. Cascais: Sinais de Fogo, 2001, pp. 104.
· EVOLA, Julius [1974]: Meditaciones de las Cumbres. Barcelona: Ediciones Nueva República, 2003,
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· FAUS, Agustín (2003): Historia del Alpinismo – Montañas y Hombres: Hasta los albores del siglo
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· FAUS, Agustín (2005): Historia del Alpinismo – Montañas y Hombres: De 1900 a 1960; Cuarte:
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· LEOPOLD, Aldo [1939]: Pensar como uma Montanha. Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé, 2008,
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·MACFARLANE, Robert (2004): Mountains of the Mind – A History of a Fascination; London: Granta
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·MOSCOSO, David (2003): La Montaña y el Hombre; Cuarte: Barrabés Editorial, pp. 296.
· TELMO, António (2014): Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética. Sintra:
Zéfiro, pp. 218.

Publicada porPedro Cuiçaà(s)07:01


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Etiquetas:Conceitos,Ecosofia

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