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João Azevedo Fernandes

Selvagens Bebedeiras:
Álcool, Embriaguez e Contatos Culturais no
Brasil Colonial

Tese de doutoramento a ser apresentada ao


Curso de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de Doutor
em História.

Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Vainfas


Universidade Federal Fluminense

Niterói
2004
SUMÁRIO

Capítulo I 1
A Embriaguez dos Outros:
As Bebidas e o Contato Interétnico no Brasil

Prólogo 1
1. Os Povos Nativos e a Expansão Etílica da Europa. 4
2. Do Problema do Álcool ao Álcool como Problema. 11
3. Índios e Bebidas entre o Silêncio e a História. 32
4. As Bebidas Alcoólicas na Historiografia e Etnologia Brasileiras. 40
5. Métodos e Fontes para uma História Indígena das Bebidas no Brasil. 46

Capítulo II 51
Descobertas e Invenções:
As Bebidas Alcoólicas nas Sociedades Indígenas

1. As Bebidas entre a História Natural e a Social. 51


2. As Formas Etílicas das Sociedades Indígenas. 58
3. A Saliva Criadora: O Cauim e Outras Cervejas Indígenas. 72

Capítulo III 86
Homens e Mulheres, Amigos e Inimigos:
As Bebidas Como Um Sistema Cultural

1. A Fermentação e a Origem da Cultura. 86


2. As Bebidas Como Signos da Diferença. 99
3. Cauinagens: A Expressão Social de um Regime Etílico. 112

Capítulo IV 126
Do Mel ao Vinho:
Álcool e Cultura nas Origens da Europa
1. Bebida e Choque de Culturas no Nascimento da Europa. 126
2. A Cannabis e o Complexo da Bebida. 132
3. Os Gregos e o Presente de Dioniso. 146

Capítulo V 165
O Vinho e a Cerveja:
A Formação dos Regimes Etílicos Modernos

1. Roma e a Democratização do Vinho. 165


2. Vinho e Trocas Culturais no Fim do Mundo Antigo. 182
3. A Idade Média e a Luta pela Moderação. 206

Capítulo VI 229
Da África ao Brasil:
O Aprendizado Etílico da Colonização

1. Portugal e a Civilização do Vinho. 229


2. A Bebida dos Outros: Álcool e Alteridade no Desvendar do Mundo. 244
3. Vinho e Contato na Colonização do Brasil. 267

Capítulo VII 294


A Guerra do Cauim:
A Destruição de Um Regime Etílico

1. O Brasil e o Pecado da Embriaguez. 294


2. Os Jesuítas e a Luta Contra as Cauinagens. 316
3. O Fim do Antigo Regime Etílico. 347

Considerações Finais 365

Bibliografia 373
AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, ao orientador desta tese, Ronaldo Vainfas. Desde o


princípio, ele se mostrou um leitor atento e entusiasmado com as possibilidades deste
trabalho. Sem as suas críticas, sempre rápidas e certeiras, mas sempre suaves e generosas,
minhas dificuldades seriam ainda maiores na abordagem de um tema enciclopédico que,
frequentemente, parecia querer escapar de minhas mãos, e se perder em uma montanha de
informações. Não obstante, Ronaldo jamais me podou, jamais disse que deveria me conter,
algo comum em tantos orientadores: pelo contrário, constantemente me incentivava a ir
atrás dos meus próprios pensamentos. Sempre solícito e atencioso, não poderia ter desejado
uma orientação melhor do que a dele.
Os excelentes comentários e o incentivo de Eduardo Viveiros de Castro
(PPGAS/Museu Nacional - UFRJ) e de Maria Regina Celestino de Almeida (Departamento
de História – UFF), membros de minha banca de qualificação, foram essenciais para o
refinamento de minha pesquisa e para a determinação de meus objetivos. Igualmente
importante foi o permanente incentivo de John Manuel Monteiro (Departamento de
Antropologia – Unicamp).
Também colaboraram, com seu incentivo e sugestões, os professores André Vieira
de Campos e Hebe Mattos de Castro (Departamento de História – UFF), bem como meus
colegas no curso de Pós-Graduação em História da UFF.
A professora Maria Yara Campos Matos, diretora do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UFPB, sempre esteve presente com seu apoio pessoal e institucional,
especialmente em um momento em que isto foi mais necessário. Agradeço também aos
meus colegas do Departamento de História da UFPB, Raimundo Barroso, Lúcio Flávio
Vasconcelos e Ariane Sá, por sua amizade e apoio.
Para minha tia, Marly Azevedo Gama, tenho um agradecimento especial, por seu
carinho e disponibilidade em me hospedar no Rio de Janeiro, enquanto cursava as
disciplinas da pós-graduação.
Para Nayana Mariano, cuja capacidade de trabalho e boa vontade na realização das
pesquisas documentais foram fundamentais para o resultado desta tese.
Ao PICD-Capes e à PRPG-UFPB pelo apoio financeiro à realização deste trabalho.
Peço desculpas e agradeço à minha família e amigos, por suportarem toda a
variabilidade do meu humor, e toda a alienação que apenas os doutorandos são capazes de
ter.
Por fim (but last not least...), os agradecimentos mais importantes:
Para Serioja, cujo carinho e amor imensos foram vitais para mim. Em um momento
difícil, em que minha presença seria mais necessária, ela suportou com firmeza e bom
humor inesgotáveis os muitos momentos de ausência. Sua herança tapuia jamais se
enciumou de minhas predileções tupinambás, e meu amor por ela, que já era imenso, só fez
aumentar.
E para Paulinho, que veio ao mundo em abril, e que colocou tudo de pernas para o
ar. Em pleno gozo dos quarenta e um anos, jamais imaginei que ainda era um menino, e que
só me tornaria um homem ao ver aquele rostinho risonho me fitando. Espero que, no futuro,
você leia e goste deste trabalho, e saiba que, apesar das noites mal dormidas, jamais me
senti tão feliz como agora.
Dedico este trabalho a meu pai
João Teixeira Fernandes
(Braga, 1936 – Olinda, 1994)
CAPÍTULO I

A EMBRIAGUEZ DOS OUTROS:

AS BEBIDAS E O CONTATO INTERÉTNICO NO BRASIL

Antigamente tinha muita festa. A gente dançava muito,


mas agora não tem mais festa. Por isso nós não
sabemos mais fazer as nossas festas. Depois que nós
encontramos com caraíbas, nós fomos parando de fazer
nossas festas. (...) Nós precisamos sempre fazer festas,
para nós é muito bom. Se a gente esquecer, a gente vai
virar caraíba porque não tem mais festa. 1

Prólogo

Brasil, século XVI. Na maloca, iluminada por fogueiras, vários homens se

reúnem em volta de uma grande panela, uns sentados no chão, outros sobre pedaços de

madeira. Algumas mulheres muito ágeis trazem cuias cheias de uma bebida densa e

clara. Um dos homens se levanta e, vibrando um pequeno maracá, começa a dançar e

cantar em torno da panela. Sua música fala de um irmão morto, capturado quando da

última expedição contra os inimigos do outro lado da montanha. O homem pede às

vozes do maracá que o ajude a vingá-lo, matando e devorando os odiados vizinhos.

De repente um velho que estava afastado se aproxima, um tanto trôpego, e

começa a discursar. Fala de sua proximidade com o morto, já que era seu tio materno, e

1
Takapianim Kayabi, As festas estão acabando, 4 de agosto de 1981, Escola do Diauarum, versão oral, in
Ferreira, 1994: 122.
2

também cunhado. Conta que já havia matado, e comido, muitos daqueles inimigos, e

que eles não eram grandes guerreiros, sendo mais afeitos às emboscadas do que ao

combate direto. Os homens, e muitas mulheres, respondem ao discurso com risos e

gritos altos. As cuias esvaziam-se em um ritmo cada vez mais rápido, e agora muitos

estão dançando e discursando sobre lutas e sonhos. Alguns gritam e pedem mais cauim

às mulheres, porém a bebida daquela maloca está esgotada. Cambaleantes, mas ainda

bastante dispostos a continuar a bebedeira, os homens levantam-se e vão para a maloca

seguinte, onde os esperam vários potes cheios, e a promessa de uma grande noite de

cantos e danças, e de um dia de vitória e cabeças inimigas esmagadas 2 .

Quando pisaram no solo que se tornaria o território brasileiro, os europeus

encontraram sociedades nativas que tinham, em suas bebidas alcoólicas e em suas

formas específicas de embriaguez, um espaço crucial para a expressão de suas visões de

mundo e para a realização de eventos e práticas centrais em suas sociedades e culturas.

Estas formas nativas de experiência etílica estavam, muitas vezes, em flagrante

contradição com aquilo que os europeus consideravam como a forma correta de

relacionamento com o álcool e com a ebriedade.

Além disso, durante e após as cerimônias etílicas dos índios, os europeus viam

suas nascentes estruturas de poder, e seus instáveis mecanismos de controle, serem

desafiados por nativos que, aos olhos dos europeus, pareciam “possuídos” por uma

força demoníaca, que aparentemente fruía das jarras e cuias nas quais suas estranhas

bebidas espumavam. Uma grande parte dos esforços europeus foi inicialmente dirigida à

2
Baseado em Staden, 1974 (1557): 74, 148-9, 162-3.
3

extinção destes regimes etílicos dos índios, vistos como uma ameaça à colonização dos

corpos e das mentes dos povos nativos.

No decorrer desta luta contra o beber indígena, defrontaram-se dois mundos

etílicos muito diferentes, que possuíam lógicas mentais e práticas sociais distintas, as

quais haviam sido desenvolvidas durante milênios, de acordo com condições ecológicas

e históricas muito específicas. No seio destas diferenças, foram construídos estereótipos

e identidades étnicas que permitiram a elaboração de discursos que justificavam o

domínio europeu, mas que, por outro lado, também permitiram aos índios manter

esferas de autonomia espiritual que foram fundamentais para o seu próprio esforço de

resistência e adaptação ao torvelinho da expansão européia.

Como estudar a luta dos europeus contra as bebidas nativas e, ao mesmo tempo,

escapar a uma visão que, a pretexto de denunciar a colonização e clamar contra a

“dizimação” dos índios, vê as bebidas alcoólicas unicamente como armas,

conscientemente usadas pelos agentes da colonização para o domínio de nativos

passivos, inteiramente sujeitos às inexoráveis determinações do sistema mundial? Esta é

a questão que esta tese se propõe a enfrentar.


4

1. Os Povos Nativos e a Expansão Etílica da Europa.

Em sua obra sobre a cultura material do capitalismo, Fernand Braudel apontou

um dos aspectos mais importantes e menos estudados da expansão européia durante a

era moderna: a introdução das bebidas destiladas entre sociedades que conheciam

unicamente as fermentadas, ou que sequer conheciam as bebidas alcoólicas. Como

afirmou o historiador francês:

O alambique deu à Europa uma superioridade sobre todos estes povos, a possibilidade
de fabricar um licor superalcoólico, à escolha: rum, uísque, Kornbrand, vodca,
calvados, bagaceira, aguardente, gim: que é que se deseja tirar do tubo refrigerado do
alambique? (...) é inegável que a aguardente, o rum e a agua ardiente (o álcool da cana)
tenham sido presentes envenenados da Europa para as civilizações da América. (...) Os
povos indígenas sofreram enormemente com este alcoolismo que se lhes oferecia. 3

São inúmeras as evidências documentais que atestam o impacto negativo da

introdução das bebidas destiladas entre os nativos da América, bem como da radical

transformação nos padrões de consumo das próprias beberagens nativas a partir do

contato com os europeus. Considerar, a partir daí, que as bebidas alcoólicas e o

alcoolismo tenham se constituído em uma das “armas da colonização”, representa um

pequeno passo, que alguns não hesitaram em dar.

Como afirmou, por exemplo, John Hemming, em seu clássico sobre a conquista

dos índios no Brasil, “durante sua breve estada no Brasil a frota (de Cabral) deixou atrás

de si duas das mais potentes armas do colonialismo. Uma delas foi o primeiro gosto do

álcool (...)”. 4 Por sua vez, Nathan Wachtel, tratando da conquista espanhola da

3
Braudel, 1995: 220-1.
4
Hemming, 1995: 6. Como veremos mais tarde esta primeira experiência com o álcool europeu não
trouxe qualquer satisfação aos nativos.
5

América, identificou a presença do “alcoolismo” no período colonial: “um dos sintomas

mais dramáticos da desintegração da cultura nativa e da angústia a que ela dava origem

era o alcoolismo: um fenômeno observado por todos os cronistas”.5 Henrique Carneiro,

no contexto de um excelente trabalho sobre as drogas no mundo moderno, também fala

no álcool destilado como “grande instrumento aculturador. Álcool, doenças e a Bíblia

eram o cartão de visitas do colonialismo para os índios que sobreviviam ao extermínio

direto”. 6

Tratar desta questão é uma tarefa revestida de inúmeras dificuldades,

dificuldades inerentes a qualquer abordagem do assim chamado contato interétnico.

Afinal, ao se falar abertamente ou, o que é mais comum, implicitamente, nas bebidas

como “arma da colonização”, o espaço fica aberto para argumentos que apresentam os

índios como meras vítimas da expansão européia, em uma visão tão politicamente

correta quanto historiográfica e etnologicamente equivocada. Como bem observou

Manuela Carneiro da Cunha a este respeito:

Por má consciência e boas intenções, imperou durante muito tempo a noção de que os
índios foram apenas vítimas do sistema mundial, vítimas de uma política e práticas que
lhes eram externas e que os destruíram. Essa visão, além de seu fundamento moral,
tinha outro teórico: é que a história, movida pela metrópole, pelo capital, só teria nexo
em seu epicentro. A periferia do capital era também o lixo da história. O resultado
paradoxal dessa postura ‘politicamente correta’ foi somar à eliminação física e étnica
dos índios sua eliminação como sujeitos históricos. 7

Este é, por certo, um ponto central para a reflexão do historiador que se propõe a

estudar as sociedades indígenas e suas relações com os europeus e com a sociedade

nacional oriunda da colonização. E isto é ainda mais verdadeiro para o caso do Brasil,

5
Wachtel, 1998: 218.
6
Carneiro, 1993: 48.
7
Carneiro da Cunha, 1992: 17-8.
6

onde - ao contrário do que ocorreu nas Américas inglesa e hispânica - os povos

indígenas permaneceram, por décadas, como um tema inacessível à historiografia.

Presos entre o vaticínio de Varnhagen – para quem os índios não tinham história, apenas

etnologia - e a esmagadora influência do marxismo, que via os índios como uma nota de

pé de página na formação do escravismo colonial, os historiadores tendiam a ignorar o

tema ou a tratá-lo de forma assaz insatisfatória.

As grandes modificações, teóricas e metodológicas, ocorridas na historiografia

das últimas décadas, e o desenvolvimento de um diálogo mais aprofundado com a

antropologia, trouxeram à tona a necessidade de levar em conta as diferentes histórias

dos povos indígenas, permitindo assim o surgimento de um número crescente de

trabalhos relevantes, e favorecendo um refinamento cada vez maior das análises dos

historiadores.

Contudo, o diálogo com a antropologia (ou com outras disciplinas

potencialmente necessárias para o estudo da história indígena, como a arqueologia) deve

ser realizado com alguma prudência. Afinal, o historiador sempre estará sujeito a tomar

um determinado tipo de antropologia como representante de toda a antropologia,

geralmente escolhendo aquela corrente que mais se aproxima de suas próprias idéias a

respeito do contato interétnico. Isto, me parece, é particularmente relevante no que se

refere aos estudos antropológicos a respeito do contato, em que as divergências teóricas

são profundas e acirradas. 8

Pode ser tentador, para o historiador, recusar uma etnologia “clássica” ou

“estruturalista” que, supostamente (e sublinho o “supostamente”), trataria as sociedades

indígenas como “congeladas” no tempo – reproduzindo, desta forma, um velho

8
Oliveira Fº, 1998; Viveiros de Castro, 1999.
7

preconceito a respeito da obra de Lévi-Strauss - e aderir a um tipo de etnologia que vê

na sociedade colonial ou pós-colonial, ou mesmo no “sistema mundial”, o fator decisivo

para a compreensão daquelas sociedades, parecendo conferir à história um papel mais

relevante do que o faz a etnologia “clássica”. Marshall Sahlins, em Ilhas de História,

define com precisão a proposta desta última corrente, bem como alguns de seus limites:

Tenho observado entre teóricos do ‘sistema mundial’ a seguinte proposição: dado que
as sociedades tradicionais que os antropólogos habitualmente estudam são submetidas a
mudanças radicais, impostas externamente pela expansão capitalista ocidental, não é
possível manter a premissa de que o funcionamento dessas sociedades está baseado em
uma lógica cultural autônoma. Essa proposição resulta de uma confusão entre um
sistema aberto e a total ausência de sistema, tornando-nos incapazes de dar conta da
diversidade de respostas locais ao sistema mundial, em especial daquelas que
conseguem persistir em seu rastro. 9

Ora, reconhecer o fato de que o contato alterou profundamente as sociedades

indígenas não nos deve levar à idéia de que, a partir de então, a “situação de contato”

passou a definir o “situado”, isto é, os índios. Prefiro antes acreditar, como Eduardo

Viveiros de Castro, que:

Uma situação é uma ação; ela é um situar. O ‘situado’ não é definido pela ‘situação’ –
ele a define, definindo o que conta como situação. Por isso, ao introduzir o ‘Brasil’ na
‘situação histórica’ dos índios, não estou simplesmente dizendo em outras palavras que
o dispositivo colonial explica (‘situa’) as sociedades indígenas. O que Peirano chamou
‘Brasil’ só é parte da situação histórica das sociedades indígenas porque ele é um dos
objetos de um trabalho histórico ativo de posição em situação realizado pelas
sociedades indígenas. 10

Este é, certamente, um ponto importantíssimo para o nosso tema. Ao contrário

do que pensou Hemming, os europeus não “introduziram” o gosto do álcool entre

sociedades que, em sua maioria, conheciam amplamente as bebidas fermentadas, e que


9
Sahlins, 1990: 8.
10
Viveiros de Castro, 1999: 135; ver também Vainfas (1995: 14) acerca da influência da posição
“vitimizadora” na historiografia brasileira.
8

desenvolveram inúmeras formas de manipulação dos microorganismos responsáveis

pela fermentação. No que concerne às bebidas destiladas, é necessário concordar com o

que disse Braudel a respeito da superioridade alcançada pelos europeus neste campo,

mas devemos nos precaver contra a noção de um “presente envenenado”, muita próxima

à da “arma da colonização”.

É importante perceber que as bebidas destiladas não chegaram às sociedades

indígenas no Brasil – diferentemente do que ocorreu em regiões como a América do

Norte ou a Austrália – em um contexto de “vazio etílico”, no qual os nativos não

conhecessem as bebidas alcoólicas e a experiência da embriaguez. Tão importante

quanto estudar as maneiras pelas quais as bebidas destiladas representaram um

incentivo à desagregação ou sujeição das sociedades indígenas é perceber como as

bebidas nativas foram combatidas ou incorporadas ao sistema colonial, e como as

formas especificamente européias de beber e de viver a experiência etílica foram

apresentadas e, em última instância, impostas aos índios.

Naturalmente, não deve haver qualquer ilusão a respeito das dificuldades em

realizar uma tarefa deste tipo, já que as vias de acesso às representações e práticas

sociais dos atores nativos são mínimas. Mínimas, mas não inexistentes: é possível, a

partir da documentação histórica e da etnologia das sociedades indígenas

contemporâneas, reconstruir aspectos importantes das experiências etílicas destas

sociedades e de suas relações com a alteridade etílica, e de como estas experiências e

práticas sociais se articulavam na criação de regimes etílicos próprios.

É necessário tratar deste ponto de forma mais detida. As sociedades humanas são

extremamente variadas no que concerne ao lugar ocupado pelas bebidas alcoólicas em

seus contextos culturais, revelando o caráter eminentemente histórico e local de suas


9

experiências etílicas. Desta forma, é perfeitamente possível falar da existência, em cada

sociedade, de um ou mais regimes etílicos, isto é, de um conjunto de práticas, materiais

e mentais, que organizam e conferem sentidos sociais a um ato que, se olhado de forma

meramente neurológica, representa apenas a ingestão de uma substância alteradora da

consciência. Tal ato, contudo, jamais deixa de estar inscrito em determinadas

configurações culturais, que podem, inclusive, modificar os efeitos neurológicos da

ingestão do álcool. 11

Assim, é necessário reconhecer que os índios no Brasil possuíam maneiras de se

relacionar com as bebidas alcoólicas – seja na escolha dos tipos de bebidas, seja nos

contextos sociais em que estas eram consumidas – que lhes eram próprias, e que eram

dependentes de uma formação étnica e cultural e de um processo histórico

determinados. Muitas destas características ainda podem ser encontradas nas sociedades

indígenas atuais, o que nos permite compará-las, embora sempre se deva ter em mente

que os atuais regimes etílicos indígenas – entendidos como uma rede complexa de

práticas e sentidos - não são idênticos aos do passado, e nem estes foram, de maneira

teleológica, formadores imediatos dos regimes atuais.

Seguindo por este caminho, deve-se ter em mente que, ao recusar o simplismo

das noções de “arma da colonização” ou “presente envenenado”, estamos reconhecendo

a impossibilidade de ver, nas sociedades indígenas que receberam o primeiro impacto

da expansão européia, corpos “amorfos”, que ofereceram uma resistência meramente

“vegetal” à “dominação líquida” que lhes era oferecida. As formas pelas quais os índios

responderam aos desafios que lhes foram colocados pelo contato interétnico são

fundamentais para a compreensão dos regimes etílicos nativos atuais (inclusive no que

11
Peele e Brodsky, 1996.
10

diz respeito à presença dos destilados), e mesmo aos regimes etílicos presentes na

sociedade nacional que se desenvolveu a partir do processo de colonização.


11

2. Do Problema do Álcool ao Álcool como Problema.

Antes de iniciarmos este trajeto, contudo, é necessário abordar alguns problemas

que são inerentes à própria história das bebidas. Esta história, aliás, é tão problemática

quanto o estudo do contato interétnico: as bebidas alcoólicas, e o próprio ato de beber e

se inebriar, trazem suas próprias interrogações e zonas obscuras. Vivemos em uma

sociedade profundamente dividida pela questão das substâncias alteradoras de

consciência. Produzimos uma enorme quantidade destas substâncias (legalmente, no

caso do álcool e remédios), que circulam em um mercado multibilionário e, ao mesmo

tempo, criamos toda uma indústria, igualmente miliardária, de combate a tais

substâncias, seja no campo policial e militar, seja na esfera cultural e acadêmica.

Em nosso mundo, os alteradores de consciência – popularmente conhecidos

como drogas - representam, antes de qualquer coisa, um problema a ser resolvido,

sendo a própria palavra “droga” carregada de uma conotação extremamente negativa.

Muitas vezes relegada a alguns parágrafos de sisudos e assustadores manuais

toxicológicos 12 , a história das drogas está profundamente marcada por esta identificação

com uma perspectiva contemporânea, medicalizada e ocidental.

Tal visão “patologizante” tolda nossa percepção do fato de que estas substâncias

foram universalmente desenvolvidas para suprir uma das necessidades mais básicas da

humanidade: a exploração da verdadeira terra incognita que é o inconsciente humano, a

psicosfera de Edgar Morin, “a fonte das representações, do imaginário, do sonho, do

pensamento”. 13 Como lembra Richard Rudgley, o fato de sonharmos todas as noites

12
Escohotado, 1999: vii.
13
Morin, 1992: 109.
12

revela uma pulsão natural pela alteração dos estados de consciência, mas esta busca

também é realizada por meios mais ativos, através do uso do que ele chama (em lugar

do termo “drogas”) substâncias essenciais, entre as quais devem ser incluídos os

inebriantes alcoólicos. 14

O estudo das substâncias essenciais representa um meio privilegiado de acesso à

riqueza da diversidade cultural humana. As diferentes sociedades variam enormemente

no que diz respeito às suas escolhas dos alteradores que são considerados aceitáveis e

daqueles que são censurados ou mesmo proibidos. As sociedades ocidentais, por

exemplo, tendem a anatematizar os alucinógenos, os quais, por sua vez, são vitais para

sistemas culturais tão afastados quanto os da Sibéria, com o uso do cogumelo Amanita

muscaria 15 , e da Amazônia, com seus yajé, ayahuasca, paricá e yopo 16 . Por outro lado,

algumas sociedades ocidentais concedem um lugar fundamental em seus sistemas

religiosos a um inebriante alcoólico, o vinho, enquanto tais substâncias são condenadas,

a partir de um argumento de fundo religioso, por várias tradições islâmicas. 17

Para o historiador, o reconhecimento da variabilidade cultural contemporânea é

extremamente importante, na medida em que isto representa um seguro contra a

tendência a naturalizar nossas próprias escolhas culturais. Tão vital quanto isto, porém,

é a consciência de que mesmo em uma dada sociedade - a brasileira, por exemplo – a

apreensão social de uma determinada substância pode variar consideravelmente no

tempo, sendo o caso do álcool bastante emblemático deste tipo de mudança histórica.

14
O autor evita a palavra “droga”, já que esta pode ser usada para substâncias que não alteram a
consciência: Rudgley, 1995: 3-7.
15
Rudgley, 1995: 36-46.
16
Bebidas feitas a partir de plantas como B. caapi, A. peregrina, e as do gênero Virola: Escohotado,
1999: 50-7; Rudgley, 1995: 63-77.
17
Escohotado, 1999: 29-34.
13

A principal característica deste processo de mudança é o surgimento do conceito

de alcoolismo, isto é, de uma patologia oriunda da dependência do álcool. Para além

das críticas que possam ser feitas a este conceito - e elas existem 18 - é um fato inegável

de que a idéia do alcoolismo como uma doença aditiva tem uma história bastante

recente. Foi apenas em 1785 que o médico americano Benjamim Rush, no livro Inquiry

into the effects of ardent spirits upon the human body and mind, relacionou o consumo

de álcool a doenças como a diabetes e a apoplexia, e somente em 1849 surgiu o termo

“alcoolismo”, com a obra do médico sueco Magnus Huss, Alcoholismus chronicus. 19

A noção de “alcoolismo”, tão natural para nós, está relacionada a um

progressivo controle social dos prazeres e do comportamento individual, processo

diretamente ligado ao desenvolvimento da sociedade capitalista. Como afirma Fernando

dos Santos: “o processo de implantação da racionalidade capitalista, apoiado por uma

nova moralidade, produziu um instrumental normalizador e disciplinador capaz de

difundir uma nova maneira de pensar, uma nova mentalidade”. 20

É claro que a crítica à embriaguez não é nova: desde a antiguidade mais remota

as sociedades buscam controlar a liberdade comportamental possibilitada pelos

inebriantes etílicos. Na Mesopotâmia, por exemplo, era exigido que as sacerdotisas se

abstivessem do consumo do álcool, sob pena de serem queimadas 21 e era esperado,

mesmo em relação às pessoas comuns, que os excessos no beber fossem evitados. 22

Alguns textos egípcios também mostram que, apesar da grande popularidade das

bebidas alcoólicas, não se via com bons olhos o pendor exagerado pela embriaguez. A

18
Peele, 1990.
19
Santos, 1995: 85-6.
20
Santos, 1995: 49.
21
“Se uma (sacerdotisa) nadïtum ou ugbabtum, que não mora em um convento, abriu uma taberna ou
entrou na taberna para (beber) cerveja, queimarão essa mulher”, parágrafo 110 do Código de Hammurabi,
in Bouzon, 1986: 126.
22
Joannès, 1998: 67.
14

Sabedoria de Ani, conjunto de máximas e preceitos de cunho moralizante, elaborado

durante o período da XVIIIª dinastia (1580-1314 a.C.), criticava o consumo desbragado

da cerveja:

Não te permitas beber cerveja


Pois quando falares, então
O contrário do que pensas sai de tua boca.
Ignoras mesmo o que acabas de dizer.
Cais, pois tuas pernas fraquejam diante de ti!
Ninguém, pois, toma tua mão
E os que bebiam contigo
Levantam-se e dizem:
‘Que se afaste esse bêbado!’
Se alguém vem te procurar
Para pedir um conselho,
E se te encontrarem caído por terra,
És como uma miserável criança. 23

A Bíblia apresenta vários exemplos de crítica à embriaguez, como no primeiro

livro de Samuel. Quando Ana pede ao Senhor que lhe conceda um filho, o faz sem

pronunciar palavras, o que leva à crítica – equivocada, mas bastante sintomática para

nós – do sacerdote Eli:

Demorando-se ela no orar perante o Senhor, passou Eli a observar-lhe o movimento dos
lábios, porquanto Ana só no coração falava; seus lábios se moviam, porém não se lhe
ouvia voz nenhuma; por isso Eli a teve por embriagada, e lhe disse: Até quando estarás
tu embriagada? Aparta de ti este vinho. Porém Ana respondeu: Não, senhor meu, eu
sou mulher atribulada de espírito; não bebi nem vinho nem bebida forte; porém venho
derramando a minha alma perante o Senhor. 24

Também os gregos esperavam que os indivíduos civilizados moderassem seu

consumo do vinho. Não se tratava, é claro de uma crítica à bebida em si: o vinho,

23
In Noblecourt, 1994: 328; cf. Tannahill, 1988: 49.
24
Samuel (I), 12-15.
15

juntamente com os cereais, representava para a cultura helênica a marca distintiva do ser

humano, enquanto presentes das divindades civilizadoras Dioniso e Deméter. O vinho,

que entre os gregos era pouco usado nas refeições, possuía uma aura sacra, sendo a

embriaguez considerada como um meio de contato com o mundo espiritual e com os

deuses. Contudo – pelo menos no que diz respeito aos hábitos etílicos da elite - a

euphrosyne (alegria) motivada pelo vinho deveria, idealmente, ser limitada pelas

necessidades da moderação, a qual permitiria a discussão construtiva dentro do

symposion, o banquete reservado ao consumo da bebida.

Entre estas regras estava a obrigação de se misturar o vinho e a água: apenas

excepcionalmente bebiam os gregos o vinho puro, ato que, para eles, era um apanágio

dos povos bárbaros. Para os gregos, o ato de inventar a bebida não era o suficiente para

determinar o grau de civilização de uma sociedade: afinal, os bárbaros também tinham

suas próprias bebidas alcoólicas. Era também necessário que os homens praticassem o

autocontrole, e que soubessem a hora de parar de beber, de forma que fosse o homem o

senhor do vinho, e não o contrário. 25 Por volta de 375 a.C., Eubulo resumiu bem o

pensamento grego a respeito da forma como deveria se portar o bebedor civilizado:

Três taças preparo para os comedidos: uma para a saúde, que esvaziam primeiro; a
segunda para o amor e o prazer, a terceira para o sono. Depois de tomar esta última taça,
os convidados prudentes vão para casa. A quarta taça já não é nossa, mas pertence à
violência; a quinta, ao tumulto; a sexta, à folia; a sétima, aos olhos roxos; a oitava, ao
policial; a nona, à bílis; e a décima, à loucura. 26

As infrações ao princípio da moderação não apenas lançavam os homens ao

nível dos povos selvagens como também eram, muitas vezes, punidas pelos deuses ou

causadoras do caos social, como no caso da guerra entre os centauros e os lápitas,

25
Montanari, 1998a: 110.
26
Apud Johnson, 1999: 52.
16

motivada por um episódio de embriaguez. 27 A nobreza macedônica, que acabou por

dominar a Grécia a partir do século IV a.C., era uma freqüente vítima da aversão

helênica à embriaguez compulsiva e desbragada: quando os panegiristas Ésquino e

Filócrates elogiavam Filipe da Macedônia como “ótimo orador, belíssimo homem e

formidável bebedor”, o filósofo Demóstenes - no contexto de seus acerbos discursos

contra o rei “bárbaro”, as Filípicas – troçava destes elogios, definindo “o primeiro como

destinado a um sofista, o segundo a uma mulher, e o terceiro a uma esponja; nenhum a

um rei”. 28

Já para os romanos - que esmaeceram o caráter sacro do vinho e que o

consideravam como parte integrante das refeições e da vida quotidiana - a embriaguez

era vista quase que como uma instituição cívica. As reuniões nas tabernas ou nos

collegia – associações privadas que reuniam indivíduos de vários estratos sociais, e que

podiam compartilhar uma mesma atividade profissional ou adorar a um deus específico

– muitas vezes se transformavam em bebedeiras que, com muita facilidade, levavam a

discussões e motins políticos. A grande popularidade dos collegia dedicados ao culto do

deus Baco (o Dioniso dos gregos), cujo objetivo principal era beber à farta, demonstra a

importância social do ato de se embriagar, para o qual também contribuía o evergetismo

dos muito ricos, sempre dispostos a fornecer aos plebeus as oportunidades para a prática

dos prazeres etílicos. 29

Isto não significa que não existissem, em Roma, interdições à embriaguez.

Assim como entre os gregos, o vinho dos romanos deveria, idealmente, ser misturado à

água: para eles, o vinho não diluído era como um ser vivo e perigoso, contra o qual o

27
Vetta, 1998: 173-5.
28
Montanari, 2003: 36.
29
Veyne, 1995: 184-189.
17

homem civilizado deveria se bater. 30 Havia proibições ao consumo por parte de

mulheres e crianças, e quando da grande repressão aos cultos báquicos, ocorrida em 186

a.C. (quando cerca de sete mil pessoas foram executadas), o cônsul Spurius Postumus

afirmou, a respeito das cerimônias dos adoradores de Baco, que “(...) quando o vinho

inflama suas mentes, e a noite e a promiscuidade... fazem desaparecer qualquer

sentimento de modéstia, toda forma de corrupção começa a ser praticada”. 31

Não obstante, pode-se afirmar que as críticas à embriaguez entre os romanos

ficaram limitadas às perorações dos magistrados mais empedernidos e dos filósofos

estóicos mais otimistas. Durante os séculos em que a civilização romana floresceu, a

embriaguez foi sempre considerada, especialmente entre os plebeus, como um direito,

como uma ammoenitas que a cidade deveria garantir aos cidadãos e até mesmo aos

escravos: dizia o escritor Horácio, no século I a.C., a um seu escravo que lamentava ter

que viver no campo, cuidando de sua villa, que “eu e tu não apreciamos as mesmas

coisas (...) agora aspiras à Cidade, e aos jogos, e aos banhos, agora que és rendeiro (...)

que não tens ao teu alcance uma taberna para te fornecer de vinho, nem uma jovem

complacente que toque flauta até caíres redondo no chão”. 32

Deve-se aguardar o surgimento do cristianismo para se assistir à construção de

um verdadeiro discurso antietílico. Durante a Antiguidade Tardia e a Idade Média

européia se verá uma tensão permanente entre o lugar central ocupado na cultura e na

vida quotidiana por bebidas como o vinho, a cerveja e o hidromel, e a tendência dos

Padres da Igreja e dos fundadores do monasticismo a abominar o uso profano do álcool.

O tom ascético do cristianismo dos primeiros séculos equiparou, muitas vezes, a

embriaguez a um pecado: Paulo de Tarso, no século I d.C., colocava as “bebedices e


30
Dupont, 1998: 209.
31
apud Escohotado, 1999: 21.
32
Grimal, 1988: 231.
18

glutonarias” como “obras da carne”, que afastavam o homem do Espírito e cuja

“concupiscência” jamais deveria ser satisfeita. 33 Dirigindo-se aos romanos, o apóstolo

advertia-os de que deveriam andar “dignamente, como em pleno dia, não em orgias e

bebedices”. 34

Por seu turno, Agostinho de Hipona considerava, em princípios do século V

d.C., que os alimentos e bebidas deveriam ser considerados como remédios (em uma

comparação que marcará profundamente o pensamento cristão acerca do álcool), e

consumidos unicamente na medida das necessidades mais básicas: lamentava o teólogo

africano não poder, tal como havia feito com o vício da carne, abandonar por completo

o vinho, pois assim “morreria de sede”. 35 Por sua vez, o monasticismo medieval,

preocupado com a criação de novas formas de disciplina pessoal, entre elas a renúncia à

sexualidade, também construiu um paradigma de aversão à embriaguez.

Os principais formuladores desta forma de religiosidade, homens como Bento de

Nórcia (480-547), Gregório Magno (540-604) e Bernardo de Clairvaux (1109-1153),

viam no comer e beber sem medida uma rendição ao corpo, e à parte sensual e animal

da pessoa, o que levava ao desprezo dos cuidados da alma. A mortificação do corpo, e a

renúncia a prazeres como a embriaguez, representavam o único acesso possível à união

da alma com Deus, esta sim a embriaguez espiritual total e perfeita: “esta experiência,

buscada por todos os monges e lograda por poucos, só poderia se dar negando a outra

embriaguez, a da bebedeira, pois neste caso a perda do autocontrole provocava o triunfo

da sensualidade”. 36

33
Gálatas, 5: 16-21.
34
Romanos, 13: 13.
35
apud Mancera, 1991: 60.
36
Mancera, 1991: 66.
19

Os resultados práticos destas recomendações foram mínimos. Como veremos

mais tarde, as bebidas alcoólicas ocupavam um lugar cultural central no medievo, e a

embriaguez estava presente em todas as esferas da sociedade, a começar pelos próprios

mosteiros, grandes produtores de vinho e cerveja. Contudo, o pensamento antietílico

medieval conformou e influenciou decisivamente as formas modernas de pensar o ato

de beber, cuja compreensão é fundamental para entendermos as reações dos europeus, e

não apenas dos religiosos, aos regimes etílicos dos povos indígenas americanos.

Com o alvorecer da era moderna surge uma nova onda de discursos contra a

embriaguez. Na esfera laica, estes discursos se relacionam com o surgimento do modo

de vida e de comportamento burguês, contrário aos excessos no comer e no beber

típicos da nobreza e do populacho do medievo. Cada vez mais, um novo tipo de

comportamento social, que se expressa não apenas na vida pública e no

desenvolvimento de uma nova ética, mas também em um refinamento da etiqueta

alimentar e etílica, propaga-se pelos diferentes níveis das sociedades européias.

Um exemplo disso é a popularidade do tratado De quinquaginta curialitatibus

ad mensam, escrito em dialeto lombardo por volta de 1300 pelo magister grammaticae

milanês Bonvesin de la Riva, e que se tornou uma bíblia do comportamento ao ser

adaptado para o italiano (como Zinquanta Cortesie da tavola) no século XVI. Entre

recomendações como não falar com a boca cheia, não acariciar gatos e cães durante as

refeições e não fazer alarde ao se encontrar uma mosca ou sujeira na comida, havia a

condenação da embriaguez. Como afirma Daniela Romagnoli, tal condenação decorria

da “vitória, bem burguesa e duradoura, da parcimônia sobre a prodigalidade”. 37 A

embriaguez era vista, pelo gramático milanês, como um desperdício injustificável:

37
Romagnoli, 1998: 507.
20

“aquele que se embriaga comporta-se como um louco e peca de três maneiras: prejudica

seu corpo, prejudica sua alma e ‘perd lo vin k’el spende’ (‘perde o vinho que gasta’)”. 38

Ao lado deste desenvolvimento da normatização burguesa, o discurso religioso

que equiparava a embriaguez a um pecado também se fazia presente. Um exemplo deste

tipo de elaboração antietílica pode ser encontrado em um trecho do fascinante tratado

contra a embriaguez indígena, Histoire de l’eau-de-vie em Canada, escrito

(presumivelmente em princípios do século XVIII, mas somente publicado em 1840)

pelo missionário francês François Vachon de Belmont. O missionário critica

acerbamente os colonos franceses, ingleses e holandeses que introduziram as bebidas

espirituosas entre os nativos do Canadá, e aproveita para também execrar a própria

embriaguez dos europeus:

(...) entre os alemães e bretões a embriaguez é chamada magnificência – um traço de


elegância: eles a tratam como algo que mantém a sociedade unida, como a fonte da
alegria e como um prazer que se dão os amigos e os bravos uns aos outros, e como algo
que sempre esteve, em todos os tempos e lugares, na moda; dizem, enfim, que em
nenhum lugar os magistrados parecem muito ocupados com este assunto. Nós podemos
responder que em todos os tempos e em todos os lugares a embriaguez passou por vício
vergonhoso e por uma ofensa a Deus, ela sempre horrorizou, não apenas aos cristãos,
mas a todas as Leis, como algo contrário à Fé Cristã e a toda boa moral. 39

Apesar de certas semelhanças superficiais com o discurso contemporâneo, os

discursos modernos contra a embriaguez, tanto o religioso quanto o laico, apresentam

diferenças de fundo, que devemos nos esforçar para compreender. Como mostra Harry

G. Levine - em artigo seminal acerca do surgimento da noção de alcoolismo – o

discurso contemporâneo associa o consumo pesado do álcool a uma doença aditiva, cujo

sintoma é a perda de controle sobre o comportamento etílico, e cujo único remédio é a

38
Apud Romagnoli, 1998: 507.
39
Belmont, 1840: 1.
21

abstinência de todas as bebidas alcoólicas. Este novo paradigma, surgido na virada do

século XVIII para o XIX, e desenvolvido durante o oitocentos, representa uma quebra

radical com as idéias tradicionais a respeito do assunto. Como afirma Levine:

Durante o século XVII, e na maior parte do XVIII, considerava-se que as pessoas


bebiam e ficavam embriagadas porque queriam, e não porque ‘precisavam’ beber. No
pensamento colonial, o álcool não prejudicava permanentemente a vontade, não era
aditivo, e a embriaguez habitual não era encarada como uma doença. 40

Na América colonial inglesa - e também no Brasil colonial, vale dizer – o álcool

era visto, popularmente, como parte da nutrição, como um remédio e como um

lubrificante social. Contudo, em função das diferenças entre os regimes etílicos

praticados por ingleses e portugueses, as bebidas possuíam um papel social muito mais

visível entre os americanos do norte do que entre os brasílicos. Mesmo religiosos

puritanos, como Cotton Mather (1663-1728), consideravam que o álcool era uma “boa

criatura de Deus”, e o próprio Benjamim Rush, que seria um dos responsáveis pela

criação do conceito de alcoolismo, dizia em sua juventude (1722), que não entendia

(...) todo este barulho acerca do vinho e das bebidas fortes. Já não temos visto centenas
que fizeram disso uma prática constante e ficaram embriagados diariamente por trinta
ou quarenta anos e que, apesar disso, chegaram à idade avançada com tão boa saúde do
que aqueles que seguiram estritas regras de temperança? 41

Que não se pense, porém, que não existissem críticas à embriaguez: durante os

primeiros séculos da colonização na América inglesa muitos deploraram o pendor para

o consumo do álcool entre os colonos. Na década de 1760, o futuro presidente John

Adams iria propor a limitação do número de tabernas, e Benjamim Franklin chamava-as

40
Levine, 1979: 493.
41
apud Levine, 1979: 495.
22

de “a Peste da Sociedade”. 42 Contudo, a embriaguez era sempre vista como uma opção

moral daquele que bebia em excesso, e considerava-se que aqueles bebedores

contumazes viciavam-se na embriaguez, e não na bebida.

Ora, esta é uma diferença crucial com relação à visão contemporânea. Durante o

século XIX o pensamento médico desenvolveu a idéia de era o álcool que viciava,

independentemente de qualquer opção moral: quem bebia sempre e em grande

quantidade acabaria por se tornar um viciado em álcool e, portanto, um alcoólatra. Se

para o jovem Benjamim Rush o álcool não representava um problema grave, para o

autor do Inquiry into the effects of ardent spirits..., o bêbado contumaz era um adicto,

condição que surgia gradual e progressivamente. Aos poucos, dizia o dr. Rush, o livre

arbítrio do viciado em álcool era destruído: “o uso das bebidas fortes é, inicialmente,

fruto do livre arbítrio, mas com o hábito torna-se uma questão de necessidade”. 43 A cura

proposta para esta doença só poderia ser a abstinência total: “taste not, handle not, touch

not” deveria ser o lema de todo homem que quisesse curar o hábito da intemperança. 44

Foi esta noção - a de que a culpa da embriaguez estava na substância ingerida, e

não de uma fraqueza moral ou de uma propensão ao pecado – que serviu de base para

toda uma série de atitudes antietílicas, seja através dos chamados “movimentos de

temperança”, seja através de leis repressivas, como a lei seca dos Estados Unidos, e que

está no centro de terapias utilizadas ainda hoje, como os “12 passos”, dos Alcoólicos

Anônimos. 45 Embora este seja um tema que escapa aos objetivos deste trabalho, é

oportuno notar que o fracasso da lei seca e dos movimentos de temperança, bem como o

desenvolvimento da ciência da genética, acabaram por levar ao desenvolvimento

42
Levine, 1979: 496.
43
apud Levine, 1979: 500.
44
Levine, 1979: 500.
45
Musto, 1996.
23

daquilo que Harry G. Levine chama de “pensamento pós-proibição”, isto é, a idéia de

que não é o álcool em si mesmo que provoca, necessariamente, a doença, mas sim uma

característica individual, seja o “metabolismo lento” de algumas raças, em especial os

índios, seja a presença de um “gene do alcoolismo”. 46

O que importa notar para este trabalho é que ambas as formas de pensamento

contemporâneo - a do álcool como fonte dos problemas e aquela que lança o foco sobre

“deficiências” individuais – contribuem para obliterar um dos fatos mais estabelecidos

da pesquisa antropológica sobre as bebidas: o reconhecimento dos determinantes

culturais, e não biológicos ou médicos, de sua utilização. Como afirmou Dwight B.

Heath a este respeito:

A associação do ato de beber com qualquer tipo específico de problema associado –


físicos, econômicos, psicológicos, de relacionamento social ou outros – é rara entre
culturas através da história e no mundo contemporâneo. (…) enquanto a maioria dos
antropólogos que estudam o álcool tende a se concentrar nas crenças e no
comportamento, concedendo atenção tanto aos padrões ‘normais’ quanto aos
‘desviantes’, muitos outros tendem a focalizar o ‘alcoolismo’ (definido de várias
formas), o que implica que o hábito de beber está invariavelmente associado com algum
tipo ou tipos de problemas. 47

O mais grave, ao menos no que diz respeito à história do contato entre europeus

e índios, é que esta visão extremamente limitada dos prazeres etílicos foi,

retrospectivamente, lançada ao passado colonial, servindo como pano de fundo para a

idéia das bebidas alcoólicas como uma “arma da colonização”, ou como um “presente

envenenado”. Esta espécie de imprinting ideológico se manifesta naquilo que

poderíamos chamar “modelo da guerra do ópio”: 48 algo ruim e deletério (no nosso caso,

o álcool) é imposto por uma ou mais potências coloniais a uma ou mais sociedades

46
Levine, 1979: 494.
47
Heath, 1987: 15.
48
Esta é uma idéia de Eduardo Viveiros de Castro (comunicação pessoal).
24

dominadas (as sociedades indígenas), com vistas a reforçar e estender este domínio e,

em última instância, a destruir aquelas sociedades.

A idéia - pouco explicitada, mas comum - de que as bebidas se constituíram em

uma arma da colonização se enquadra muito bem neste modelo, nem sempre apoiado

em evidências claras. As referências feitas por alguns historiadores ao consumo de

bebidas pelos índios após o contato estão invariavelmente marcadas por esta

identificação, contemporaneamente produzida, entre o álcool e a doença e desagregação

social. Desta forma, a “distribuição de bebidas” aparece, ao lado da guerra justa e da

catequese, como uma das estratégias de “civilização” utilizadas pelos portugueses,

estratégias que podiam exterminar “tribos inteiras”. 49

Esta é uma postura que claramente vê o álcool com algo necessariamente

prejudicial, independentemente das condições, sociais e culturais, em que o ato de beber

é praticado. Além disso, tal visão está marcada por um profundo etnocentrismo: mesmo

reconhecendo os óbvios problemas que o álcool – notadamente em suas formas

destiladas – causou (e causa) às sociedades indígenas, é forçoso reconhecer a existência

de um viés etnocêntrico quando lançamos o foco sobre a embriaguez dos índios e, ao

mesmo tempo, deixamos de tocar no fato de que muitas sociedades ocidentais aderiram

apaixonadamente à “revolução dos destilados”, com as conseqüências previsíveis.

Em 1751, o inglês William Hogarth produziu esta imagem que representava bem

a percepção da elite inglesa do século XVIII a respeito da catástrofe provocada pela

popularidade das bebidas destiladas – no caso, um gim de péssima qualidade – entre as

massas urbanas:

49
Flexor, 1995: 85.
25

A destruição moral e física provocada pelo gim 50

Os europeus do período moderno deram inúmeras mostras de “debilidade” em

relação ao álcool, mas esta fraqueza não estava inserida em um contexto de

desagregação social causada pela pressão colonial, como ocorreu com os povos nativos

americanos, e com outros “primitivos” colhidos pela expansão européia. Lançar o foco

unicamente aos problemas sofridos pelos índios significa vê-los (mais uma vez...) como

vítimas passivas de uma deliberação “civilizadora” consciente dos agentes da


50
William Hogarth, Gin Lane (1751), in Rudgley, 1995: 22; na mesma série de gravuras, Hogarth
apresentou Beer Street, em que mostra cidadãos saudáveis e felizes consumindo a benéfica cerveja
britânica: o inimigo era o destilado, e não o álcool (Rudgley, 1995: 20-2).
26

colonização, quando a tarefa do historiador deveria ser a de reconhecer, como afirma

Peter Mancall, “(...) que os índios que escolheram beber o fizeram por suas próprias

razões. E estas razões estavam profundamente relacionadas com a maneira pela qual os

índios entendiam o mundo ao seu redor e as forças que controlavam este mundo”. 51

Insistir na denúncia, velada ou não, da utilização das bebidas como arma da

colonização também representa, mesmo que de forma inconsciente, uma adesão à idéia

clássica de uma “fraqueza” atávica dos índios, fraqueza que, muitas vezes, foi

exemplificada pela derrota indígena frente às bebidas européias 52 . Mesmo em épocas

mais recentes, os muitos problemas que as sociedades indígenas enfrentam com as

bebidas foram tratados como uma decorrência de características genéticas: desta forma,

na década de setenta do século XX, foi afirmado que os índios apresentam um

metabolismo do álcool mais lento do que outras etnias, o que faria com que o álcool

permanecesse por mais tempo no organismo e causasse problemas de saúde mais graves

entre os nativos americanos.

Pesquisas posteriores, contudo, mostraram que as diferenças metabólicas são

muito mais individuais do que étnicas, e que japoneses e chineses (etnias geneticamente

mais próximas aos índios) possuem um metabolismo mais rápido do que os brancos

norte-americanos. Além disso, revelou-se que asiáticos orientais, e também hispânicos,

que migravam para os Estados Unidos apresentavam taxas de metabolismo mais lentas

que as populações da própria Ásia ou da América Latina, com um aumento equivalente

de problemas associados ao consumo do álcool. 53 Por fim, comprovou-se que as taxas

de metabolismo entre índios e brancos norte-americanos são virtualmente idênticas, o

51
Mancall, 1995: 100.
52
Gerbi, 1996: 65; 141.
53
Saggers e Gray, 1998: 69-70.
27

que mostra a prevalência dos fatores ambientais e culturais sobre os genéticos, no que

concerne aos efeitos do álcool. 54

De todo o modo, à figura do índio bêbado uniu-se a do índio “fraco” e

“pusilânime” na construção de um paradigma de inferioridade racial dos ameríndios. O

ato de beber, entendido não como uma doença, mas como imoralidade e signo de

debilidade, tornou-se parte fundamental dos discursos e imagens construídos pelos

europeus a respeito dos índios, fato que não pode ser desconsiderado quando se analisa

este tema.

Um exemplo disto é dado por Yves d’Evreux, missionário que conheceu os

Tupinambá do Maranhão, durante sua estadia de dois anos em princípios do século

XVII. Para este capuchinho francês, os índios gostavam tanto do vinho, que era

“considerada a embriaguez por eles, e até mesmo pelas mulheres, como uma grande

honra”. 55 Também francês, o naturalista Charles-Marie de La Condamine, que desceu o

Amazonas em 1743, definia os índios por sua “insensibilidade”, a qual constituía a base

de seu caráter, deixando “em aberto a decisão de honrá-la com o nome de apatia, ou

aviltá-la com o nome de estupidez”. Estes indígenas, disse, são ”incapazes de

previdência e reflexão”, sendo “pusilânimes e poltrões ao extremo, se a embriaguez não

os transporta”. 56

Esta apreciação persistia em fins do período colonial. Manuel Aires de Casal,

que em sua Corografia Brasílica, de 1817, descrevia os índios que habitavam o

território brasileiro, insistia em colocar a embriaguez como uma de suas principais

características:

54
Bennion e Li, 1976.
55
Evreux, 2002 (1615): 124.
56
La Condamine, 1992 (1745): 55.
28

Os aborígines ou povos brasileiros são geralmente bem feitos, enquanto pequenos; mas
perdem a gentileza mui cedo; inconstantes, desconfiados, e apaixonados de todo o
gênero de licor forte, que bebem sem medida, e com que de ordinário são furiosos e
temíveis enquanto não lhes passa a embriaguez. 57

Para os naturalistas alemães Johann von Spix e Carl von Martius, que
exploraram as florestas brasileiras em princípios do século XIX, os índios só
abandonavam sua frieza e indolência “naturais” para se dedicar ao álcool:

Insensível aos prazeres do paladar, dado sobretudo à alimentação animal, o índio, em


geral, é sóbrio, e, sem respeito a horário, contenta-se com atender à necessidade de
refazer-se; até freqüentemente jejua por comodidade. De outro lado, porém, quanto à
bebida, é apaixonado da sua vinhaça ou cachaça, quando a pode obter. 58

Décadas mais tarde, em um contexto de extrema pressão sobre os povos


indígenas, motivada pela Lei de Terras de 1850, até mesmo a espoliação dos territórios
indígenas pelos europeus pôde ser justificado pelo vício da bebida, como nos diz João
Francisco Lisboa:

Se considerarmos por outro lado que a sua possessão (dos índios) também se fundava
no esbulho que uns contra os outros praticavam quotidianamente, e que todo o seu
direito repousava na violência, na conquista e na guerra, ordinariamente deliberada no
meio de brutas orgias de sangue e vinho, então o abuso da espoliação, de que os
europeus são acusados, ficará imediatamente atenuado. 59

O viés etnocêntrico também pode se manifestar quando nos propomos a estudar

a história dos inebriantes alcoólicos naquelas sociedades, tradicionalmente chamadas de

primitivas, em um contexto anterior ao contato com os europeus. Poderia ser tentador,

especialmente para os menos afeitos à bibliografia etnológica, aderir a uma forma

qualquer de “teoria da ansiedade” – como a proposta por Donald Horton há meio século

– a qual afirma que os primitivos viviam em um permanente estado de ansiedade,

57
Casal, 1976 (1817): 36.
58
Spix e Martius, 1976 (1828-9) (I): 203.
59
Lisboa, 1976 (1855): 174.
29

privação e medo, o que os teria levado à invenção de mecanismos de redução de

ansiedade, como as bebidas alcoólicas e outras substâncias essenciais. 60

Chama a atenção o caráter irremediavelmente datado, e equivocado 61 , desta

visão das sociedades primitivas, mas o problema mais sério desta posição é a recusa de

qualquer possibilidade de compreensão do papel determinante ocupado pelas bebidas

alcoólicas na história tecnológica do homem, especialmente no que diz respeito à

domesticação e manipulação de plantas e microorganismos: alguns dos momentos

cruciais na história social humana, como a invenção da agricultura e da cerâmica,

podem estar intimamente ligados ao desenvolvimento das bebidas alcoólicas.

Em 1986, Solomon Katz e Mary Voigt, retomando uma sugestão feita nos anos

cinqüenta por Robert Braidwood e Jonathan Sauer, propuseram que o consumo de

caldos fermentados e etílicos produzidos a partir da cevada selvagem teria antecedido a

domesticação propriamente dita, na região do Crescente Fértil. A partir das mudanças

climáticas ocorridas ao fim do Pleistoceno, e a conseqüente diminuição do acesso a esta

cerveja primitiva, os homens se viram forçados a investir na domesticação da cevada,

com o intuito de manter seus crescentes padrões de consumo etílico. A domesticação

das plantas no Oriente Próximo, evento cuja importância dispensa maiores

considerações, teria sido, portanto, diretamente oriunda da busca por uma substância

essencial: o álcool 62 .

O estudo de populações tradicionais no mundo contemporâneo mostra com

clareza que a tese de Katz e Voigt é bastante plausível. Várias destas sociedades

dedicam enorme esforço, em trabalho e em tecnologia, para obter substâncias etílicas,

servindo assim como um possível modelo para o que ocorreu entre os habitantes pré-
60
Buhner, 1998: 10-14.
61
Sahlins, 1978.
62
Katz e Voigt, 1986.
30

históricos do Crescente Fértil. Entre os Chagga da região do Kilimanjaro (Tanzânia),

encontraremos sistemas extensivos, e seculares, de irrigação, voltados unicamente para

o cultivo do painço, que serve para a produção de cerveja, sendo raramente consumido

como alimento. Para os Lepcha, do Himalaia, que também possuem sistemas de

irrigação, o painço é considerado tão sagrado que jamais é consumido, sendo sempre

utilizado para a fermentação. 63

Muito embora esta hipótese tenha sido atacada, e recusada por muitos, 64 não foi

inteiramente descartada, demonstrando, esteja correta ou não, a importância de

abandonarmos os preconceitos contemporâneos acerca dos inebriantes etílicos, e tratar

as bebidas com o olhar atento que o tema merece. Independentemente do que tenha

ocorrido no Oriente Próximo, é inegável que a produção das bebidas alcoólicas

representou um passo tecnológico fundamental, seja no relacionamento com os

microorganismos responsáveis pela fermentação, seja na manipulação das plantas.

No caso da maior parte dos nativos do Brasil, a produção dos fermentados estava

– e, em alguns casos, ainda está - diretamente ligada ao principal recurso tecnológico

disponível, a produção da cerâmica, e motivava enormes esforços coletivos de produção

e armazenamento, marcando, cerimonial e culturalmente, eventos centrais do ciclo de

vida e das relações com a alteridade, revelando assim a necessidade de reconhecer na

experiência etílica indígena um objeto de estudo independente, e não um capítulo menor

do empreendimento colonial. Como afirmou Peter Mancall, em um trecho que poderia

muito bem ser aplicado ao caso brasileiro, “(...) muito embora os historiadores tenham

reconhecido a força destrutiva do álcool para os índios norte-americanos, poucos

63
Buhner, 1998: 147.
64
Especialmente por conta da ausência, no registro arqueológico, de recipientes adequados à
fermentação: Kavanagh, 1994.
31

trataram o beber indígena como um sujeito de direito próprio”. 65 Reconhecer a ausência

de uma reflexão mais aprofundada sobre os regimes etílicos indígenas por parte da

historiografia não significa, porém deixar de apontar alguns trabalhos que oferecem um

excelente ponto de partida para a minha pesquisa, como se verá a seguir.

65
Mancall, 1995: xii.
32

3. Índios e Bebidas entre o Silêncio e a História.

O lugar ocupado pelas bebidas alcoólicas, nos diversos processos de contato e

colonização, tem importância fundamental para a constituição dos modos atuais de

produção e consumo de bebidas nas sociedades americanas. Muito embora não exista,

no Brasil, qualquer trabalho historiográfico de vulto a respeito deste tema, algumas

obras de cunho histórico e etnológico serão de importância fundamental para, ao menos,

estabelecer os limites de nosso conhecimento acerca do papel das bebidas na

colonização e no contato interétnico. Por outro lado, e especialmente em língua inglesa,

existe uma produção bem mais significativa a respeito do impacto das bebidas

alcoólicas nas sociedades indígenas. Qual o motivo desta diferença?

Poder-se-ia, naturalmente, lançar a responsabilidade sobre a disparidade de

recursos técnicos e financeiros à disposição dos pesquisadores anglo-saxões. É de se

duvidar, contudo, de uma explicação tão simplista. Afinal, existem vários temas, tão

complexos quanto este, em que a produção acadêmica brasileira nada fica a dever –

quando não é superior - à estrangeira, como é o caso, por exemplo, dos estudos sobre a

escravidão africana ou sobre as mentalidades no período colonial.

Na verdade, para além dos problemas narrados nos textos dos antropólogos

citados anteriormente, a discrepância pode ser explicada pelos diferentes loci ocupados

pelas bebidas alcoólicas nos distintos processos de colonização da América. Entender as

razões destas diferenças é o primeiro passo para a compreensão do lugar ocupado pelas

bebidas em nossa formação cultural. Além das distinções entre as próprias sociedades

indígenas americanas, que variavam do total desconhecimento das bebidas alcoólicas


33

até aquelas que conferiam um profundo significado mítico e ritual às bebidas, temos

importantes diferenças entre as próprias sociedades européias envolvidas no processo de

colonização.

Neste sentido, assumem grande importância os trabalhos de Ruth Engs. 66 Esta

autora argumenta, de forma bastante sólida e bem documentada, a respeito da flagrante

diferença entre as práticas etílicas do norte e do sul da Europa, e a existência destes dois

padrões de consumo desde a antiguidade: assim, o sul do continente, de clima mais

tolerante – próprio para a viticultura - e de herança cultural romana, aceita o vinho (a

bebida mais consumida) como uma parte normal da dieta diária. O vinho, geralmente, é

consumido junto com as refeições, a embriaguez é mal vista, mesmo nas celebrações, e

as crianças freqüentemente recebem vinho diluído para acompanhar a comida. Nestas

sociedades existem poucos problemas psicossociais relacionados ao consumo de álcool

e um número reduzido de políticas de controle. Além disso, existe pouca pressão social

para o consumo de bebidas.

Em contraste com estas atitudes da zona do Mediterrâneo, o norte europeu, de

clima impróprio para a uva, demonstra um padrão ambivalente de consumo das bebidas

alcoólicas, com extremos de consumo pesado e de abstinência. As bebidas – que até os

tempos modernos não estavam disponíveis durante todo o ano - são provenientes de

grãos (cervejas e destilados) e, geralmente, consumidas fora das refeições. Episódios de

forte embriaguez ocorrem freqüentemente em ocasiões especiais e comemorações. É

comum que se beba com o objetivo de alcançar a embriaguez. O consumo e a

intoxicação pública são mais ou menos aceitos, mas uma alta porcentagem da população

é abstêmia. Limitações de idade e de consumo por parte de crianças – mesmo em

66
Engs, 1995; 2000.
34

ocasiões familiares – são comuns, e existem muitos problemas sociais relacionados ao

álcool. A esmagadora maioria dos movimentos de abstinência surgiu nestas sociedades.

Ao lado destes dois padrões mais marcados, temos algumas regiões que

apresentam um padrão “misto”: é o caso da Alsácia e de algumas áreas da Alemanha e

Suíça, que combinam as duas principais tradições. Caracterizam-se pelo consumo

freqüente de vinho, e por vezes cerveja, junto com as refeições. Estas bebidas, além dos

destilados, também são consumidos fora das refeições, aproximando-se, assim, do

padrão nórdico. O consumo de álcool per capita é bem alto, mas a embriaguez pública

tende a ser mal vista. São áreas em que tanto línguas germânicas quanto latinas são

faladas, com terras apropriadas para o cultivo da vinha, e todas foram antigas províncias

romanas. 67

É importante notar o criativo uso, por parte de Engs, de variantes ecológicas e

culturais na construção de uma hipótese que dá conta das diferenças entre as posturas

etílicas das sociedades nórdicas e mediterrânicas, ponto importantíssimo de nosso

trabalho, e que ajudará a explicar as diferentes percepções das bebidas alcoólicas nas

distintas sociedades e suas tradições acadêmicas. As bebidas eram vistas de formas

muito diferentes entre as diversas sociedades européias, o que se reflete necessariamente

em suas tradições historiográficas, e nas historiografias das sociedades oriundas da

colonização.

Ainda no campo das tradições etílicas européias, temos o trabalho, já citado, de

Fernand Braudel, o qual, além de fazer um inventário excelente dos usos das bebidas

pelas distintas sociedades européias, nos mostra o grande impacto da invenção dos

destilados dentro da própria Europa, deixando evidente que este salto qualitativo da

67
Engs, 1995.
35

experiência etílica representou uma enorme surpresa, além de uma nova fonte de

problemas sociais, para seus próprios inventores.

Falando especificamente sobre o impacto das bebidas nas sociedades indígenas

colhidas pelo colonialismo, temos algumas obras fundamentais em língua inglesa. O

melhor e mais completo trabalho sobre este tema é Deadly Medicine: Indians and

Alcohol in Early América, de Peter C. Mancall. 68 Tratando de uma situação colonial

muito distinta da brasileira, Mancall mostra as catastróficas conseqüências do encontro

entre sociedades indígenas que desconheciam as bebidas alcoólicas e uma sociedade

européia, a inglesa, resolutamente “nórdica” em seu trato com o álcool.

A típica dicotomia, apontada por Engs, entre o consumo pesado e as tentativas

de forçar a abstinência, teve largo curso nas relações entre ingleses e índios: assim,

enquanto ministros religiosos e muitos funcionários laicos tentavam a proibição das

bebidas entre os índios, outros agentes da colonização, como os comerciantes de peles,

transformavam o rum caribenho na moeda básica em suas relações com os povos

nativos. Deve-se ressaltar a enorme quantidade de documentos disponíveis para a

pesquisa de Mancall, permitindo ao autor o estudo das tentativas de combate ao álcool

por parte dos próprios índios, o que, lamentavelmente, não é possível fazer para o nosso

período colonial.

Enquanto Deadly Medicine se interrompe com a independência americana,

William E. Unrau, em White Man's Wicked Water, estuda as relações entre índios e o

álcool durante o século XIX, no momento da grande expansão para o Oeste. 69 Unrau

constata que a expulsão dos ingleses permitiu, por várias razões, que o comércio do rum

com os índios – e entre os próprios índios - se desenvolvesse quase sem limites. Sem,

68
Mancall, 1995.
69
Unrau, 1999.
36

porém, tomar uma atitude de denúncia contra uma “arma da colonização”, Unrau mostra

que o grande consumo das bebidas pelos índios era uma conseqüência inevitável de sua

confluência cultural com uma sociedade, a americana, que consumia enormes

quantidades de álcool, e que abrigava acerbos debates sobre este consumo e sobre as

possibilidades de sua proibição.

Ao contrário de qualquer tendência “inata” dos índios, o autor revela que os

nativos buscavam emular o comportamento dos “civilizados”, em uma tentativa de

acomodação que mimetizava uma das características mais evidentes, para os índios, da

sociedade branca. Unrau também discute uma série de mitos e preconceitos, biológicos

e culturais, que envolvem este tema, na busca de explicações para o devastador impacto

das bebidas alcoólicas nas sociedades indígenas. Em combinação com a obra de

Mancall, seu livro é fundamental para o nosso trabalho, especialmente por trazer uma

preciosa pesquisa documental, mas também por apontar a importantíssima questão da

mimese comportamental, que me parece central para a compreensão do processo

brasileiro.

Para a América espanhola, temos o já clássico trabalho de William B. Taylor,

Drinking, Homicide and Rebellion in Colonial Mexican Villages. 70 Embora assuma, em

alguns momentos, uma postura, um tanto antiquada hoje, de denúncia da bebida, Taylor

fez uma pesquisa documental notável e exaustiva. Trata-se de uma situação colonial

distinta da América inglesa, em que uma sociedade mediterrânea encontra sociedades

nativas (a base da pesquisa é a área Asteca no México central e a região de Oaxaca) que

tinham na bebida um componente importante de sua vida social e ritual. Diferentemente

do Brasil, contudo, estas sociedades fortemente estratificadas tendiam a reservar as

70
Taylor, 1979.
37

bebidas para sua elite e proibi-las para os macehuales, os homens comuns. Além disso,

a embriaguez pública poderia ser punida com a morte. A conquista espanhola rompeu

estas regras e tornou o pulque um bem de consumo disponível para todos, causando

uma enorme gama de problemas sociais e contribuindo em muito para a desagregação

de tradicionais modos de vida.

Este ponto, aliás, foi bem percebido pelo frei Bernardino de Sahagún.

Afirmando, em 1576, que os nativos tinham uma maneira de viver “muito conforme à

Filosofia Natural e Moral”, Sahagún debita à chegada dos espanhóis todos os males

pelos quais passavam os nativos, “(...) e porque eles derrocaram e lançaram por terra

todos os costumes e maneiras de reger que tinham estes naturais e quiseram reduzi-los à

maneira de viver da Espanha (...) perdeu-se todo o regimento que tinham”. 71 A principal

tragédia, para Sahagún, era o excesso de álcool:

A todos nós parece que a causa principal disto é a bebedeira que, como cessou aquele
rigor antigo, de castigar com a pena de morte as bebedeiras, embora sejam castigados
açoitando-os, tosquiando-os e vendendo-os como escravos por anos ou por meses, este
não é castigo suficiente para que parem de se embebedar (...), e são estas bebedeiras tão
desregradas e prejudiciais à república e à saúde e salvação dos que a praticam, que por
elas se causam muitas mortes porque se matam uns aos outros estando bêbados (...).72

Ainda com relação ao México, temos as obras de Sonia Corcuera de Mancera: El

fraile, el índio y el pulque: Evangelización y embriaguez en la Nueva España (1523-

1548 [1991], e Del amor al temor: Borrachez, catequesis y control en la Nueva España

(1555-1771) [1994], ambas tratando do papel das bebidas alcoólicas na catequese dos

índios mexicanos. São trabalhos indispensáveis à compreensão do processo brasileiro:

devido à pequena elaboração teórica dos missionários do Brasil colonial, o estudo

71
“Relação etnográfica de Bernardino de Sahagún sobre a degeneração da disciplina e dos costumes
indígenas causada pela destruição de suas ‘idolatrias’” (1576), in Suess, 1992: 218.
72
“Relação...”, in Suess, 1992: 218.
38

daquilo que foi produzido pelos religiosos espanhóis no México revela-se de

importância crucial, tendo em vista que portugueses e espanhóis compartilhavam de

princípios e visões semelhantes acerca do ato de beber e da embriaguez, os quais foram

constantemente aplicados em sua prática evangelizadora. Apesar das diferenças entre as

sociedades indígenas no México e no Brasil, a noção de “pecado”, utilizada pelos

missionários em ambas as regiões, é fundamental para entendermos o que se passou no

Brasil.

Recentemente, Henrique Carneiro tratou da questão das bebidas alcoólicas, no

contexto de seu trabalho sobre afrodisíacos e alucinógenos no período moderno. 73

Infelizmente, o autor limitou-se a tratar da documentação e bibliografia referentes à

América espanhola, mas assinala um fato importante para nós, ao mostrar as grandes

diferenças existentes entre as percepções européia e nativa do que significava beber

corretamente.

Influenciado por William Taylor e por Sonia Mancera, Carneiro aponta que, para

os europeus – europeus latinos, poderíamos acrescentar – as bebidas deveriam ser

consumidas durante as refeições, de forma moderada e cotidiana, evitando-se os grandes

episódios de embriaguez. Ora, nada mais distante da etiqueta asteca ou inca, para a qual

o ato de beber diariamente era extremamente condenado, reservando-se as bebidas para

as ocasiões cerimoniais, em que a embriaguez era ativamente buscada.74 Embora, no

que concerne às bebidas alcoólicas, não trate do Brasil, o livro de Henrique Carneiro é

indispensável para a compreensão da visão européia a respeito das substâncias

essenciais.

73
Carneiro, 2002: 171-205.
74
Carneiro, 2002: 183-4.
39

Esta rápida revisão revela bem as dificuldades da reflexão historiográfica

nacional a respeito de nosso tema. Não existe qualquer trabalho no Brasil, a respeito do

tema desta tese, que sequer se aproxime da abrangência e profundidade analítica dos

livros aqui citados. Seria injusto e equivocado, contudo, deixar de reconhecer em vários

autores elementos que nos permitem iniciar uma pesquisa acerca das relações entre os

índios no Brasil e as bebidas alcoólicas, e do papel destas no processo de colonização.


40

4. As Bebidas Alcoólicas na Historiografia e Etnologia Brasileiras.

Quando nos debruçamos sobre a história das bebidas no Brasil, um nome

imediatamente se destaca: o de Luis da Câmara Cascudo. Pode-se afirmar que o autor

potiguar ocupa nesta área o lugar que pertence a Gilberto Freyre nos estudos sobre a

família brasileira. Com uma importante diferença: enquanto Freyre deu início a toda

uma nova área de estudos, Câmara Cascudo permaneceu, infelizmente, como um

precursor sem seguidores. Seria tema para um outro trabalho explicar as diferentes

trajetórias de autores que, em vários aspectos, muito se assemelham. Uma das possíveis

causas reside no fato de Freyre ter se notabilizado por seus estudos em uma área

“estrutural” – a organização social e familiar – em um período que dedicava pouca

atenção a temas aparentemente mais ligados à vida cotidiana.

Para o pesquisador contemporâneo, contudo, é impossível deixar de ver em

Prelúdio da Cachaça (1968) 75 uma obra ímpar em interesse e importância. Neste livro,

tão notável quanto virtualmente desconhecido, o etnógrafo faz um estudo bastante

amplo, e que hoje chamaríamos de interdisciplinar, da cachaça na cultura e na sociedade

brasileira. O autor discute a etimologia das palavras cachaça e jeribita (nome mais

comum da aguardente de cana durante o período colonial) e apresenta vários

testemunhos históricos acerca do papel da “branquinha” em nossa formação. Além

disso, traça um amplo quadro do folclore associado à bebida, inclusive com suas muitas

aplicações terapêuticas.

75
Câmara Cascudo, 1986 (1968).
41

Apesar de suas insuficiências, que não são poucas, Câmara Cascudo realiza aqui

uma obra que constitui, sem sombra de dúvidas, o ponto de partida para qualquer

história das bebidas no Brasil, até mesmo no que diz respeito ao impacto dos destilados

nas sociedades invadidas pelos europeus. Vejamos este trecho:

Para os africanos, sudaneses e bantos, do Atlântico e do Índico, o europeu revelou o


perturbador alambique, incluído na parafernália civilizadora. Os pretos, como os
indígenas antes dos portugueses, desconheciam totalmente qualquer bebida destilada,
produzindo unicamente as cervejas, garapas, na base de frutas ou raízes (...). Pelos
séculos XIX e XX é que o alambique dominou a predileção na África negra, tornando-
se fabricável pelos nativos e surgiram aguardentes de todos os tipos, desorganizando
reinados e comprando servidores. 76
Infelizmente, a preocupação do etnólogo potiguar não teve, até este momento,

seguidores, e sua obra continua sendo o único trabalho mais sistemático a respeito da

bebida mais importante do Brasil. Além deste livro, outras obras de Câmara Cascudo,

como o Dicionário do Folclore Brasileiro (1954), Folclore do Brasil (1967), e História

da Alimentação no Brasil (1967-8), entre muitas outras, estão mais próximas à

preocupação central desta tese, ao descrever as bebidas fermentadas nativas e sua

importância na cultura brasileira e na formação da tradição culinária nacional.

Também dentro deste campo, é fundamental o livro de Nunes Pereira, Panorama

da Alimentação Indígena: Comidas, Bebidas e Tóxicos na Amazônia Brasileira (1974).

Sem maiores preocupações analíticas, mas com uma preocupação verdadeiramente

enciclopédica, Pereira ajuda a revelar a fantástica proficiência dos povos indígenas no

Brasil nas artes da fermentação, e as inúmeras formas pelas quais as bebidas

fermentadas de origem indígena penetraram e influenciaram a cultura brasileira.

O mais importante livro já escrito sobre as bebidas dos índios brasileiros,

contudo, é Pulque, Balchê e Pajauaru. Na etnobiologia das bebidas e dos alimentos

76
Câmara Cascudo, 1986: 15.
42

fermentados (1975), 77 do microbiólogo pernambucano Oswaldo Gonçalves de Lima.

Verdadeiro monumento ao detalhe e à erudição, este livro dificilmente se enquadra em

qualquer classificação simples: combinando a microbiologia com a etnologia, a história

e a memória, Lima insere as bebidas dos índios brasileiros no amplo quadro das técnicas

de fermentação, comparando-as com bebidas e alimentos de todos os continentes. É

obra indispensável e, em sua abrangência, única. Gonçalves de Lima é também autor de

El maguey y el pulque en los códices mexicanos (1956), livro unanimemente

considerado pelos autores mexicanos, como Sonia Mancera, 78 como um clássico no

estudo do papel das bebidas fermentadas nas religiões da Mesoamérica.

E é só. Se quisermos conhecer mais a respeito das bebidas nativas teremos que

nos dirigir aos antropólogos e a seus estudos sobre os povos indígenas contemporâneos.

Encontraremos alguns trabalhos interessantes sobre a cachaça (embora não estejam no

mesmo nível do de Câmara Cascudo), nos quais os povos indígenas encontram-se

singularmente ausentes. De todos eles, o mais interessante é Medicina Rústica, de Alceu

Maynard de Araújo (1959), belíssimo trabalho de etnomedicina, realizado em uma

pequena comunidade alagoana. A aguardente ocupa aqui um lugar da maior

importância, e Araújo se compraz em apresentar exemplos das inúmeras aplicações

medicinais da bebida. Deliciosas são as loas à cachaça recolhidas pelo autor, que faz um

estudo aprofundado da etiqueta dos bebedores inveterados, como este, em que a

cachaça, e sua distribuição pela estratificação social brasileira, são apresentadas de

forma irônica:

De primeiro só bebia
negro, caboco e mulato,
hoje até os home alto

77
A edição brasileira (UFPE, 1975) está esgotada. Utilizo a edição mexicana, de 1990.
78
Mancera, 1991: 17-42.
43

veve bebo todo dia,


na rua tombá e pendê
contano os passo errado
até o seu delegado
já tenho visto bebê. 79

Menos interessante, mas sintomático quanto à ausência dos historiadores em um

tema tão importante, é um artigo do psiquiatra Clóvis de Faria Alvim, “Alcoolismo no

Brasil Colonial” (1975), que traz uma boa pesquisa documental sobre as origens e

desenvolvimento da produção e consumo da aguardente de cana no período colonial,

especialmente no que se refere aos africanos e seus descendentes. É um trabalho que

chama a atenção para as insuficiências de uma abordagem não profissional de um tema

histórico. A visão do autor é essencialmente a de um patologista, o que deixa

transparecer certos preconceitos e anacronismos:

O alcoolismo alastrou-se assustadoramente entre os escravos, principalmente nas zonas


açucareiras e de mineração. (...) Ainda adolescentes, iniciavam-se os negros na bebida
danada, como prova da sua machidão ou da sua maioridade. E não a largavam mais,
esquecidos das suas mágoas e das suas misérias de pretos cativos. 80

Não é de surpreender, aliás, que o próprio autor apresente elementos

documentais que poderiam matizar sua posição, como é o caso de uma carta de Rodrigo

César de Menezes, governador da capitania de São Paulo entre 1721 e 1727. Na carta,

D. Rodrigo mostrava o valor da cachaça, ao afirmar “(...) ser experiência certa que o

senhor de escravos, que não a dava aos seus sofria maior mortandade em suas senzalas

do que aqueles que por este meio os animava e fortificava”. 81

Gilberto Freyre também nos traz informações importantes para o estudo dos

padrões de consumo etílico no Brasil colonial, embora se limite a abordar a cachaça.

79
Araújo, 1979: 266.
80
Alvim, 1975: 45.
81
Alvim, 1975: 46.
44

Mostra, por exemplo, a marcante diferença nos comportamentos etílicos de holandeses e

luso-brasileiros durante a ocupação neerlandesa, ao tratar da paixão dos nórdicos pela

embriaguez, em contraste coma relativa frugalidade etílica dos portugueses e seus

descendentes americanos, sem deixar, contudo, de apontar que “negros e caboclos”

mostravam-se apaixonados pela cachaça.. 82 Infelizmente, Freyre não nos mostra como

os “caboclos”, os descendentes dos índios, teriam abandonado seus cauins e aderido tão

apaixonadamente à cachaça.

Um trabalho mais recente é o de Julita Scarano, “Bebida Alcoólica e Sociedade

Colonial” (2001), artigo inserido em obra coletiva acerca das festas no Brasil colonial. 83

Embora seja um artigo interessante, especialmente quando aborda as questões de

distribuição e tributação da cachaça, passa ao largo das bebidas nativas e das festas de

índios, as cauinagens, durante o período colonial. Ao lermos o artigo de Scarano, temos

a impressão que a experiência etílica só teve início no Brasil com a chegada dos

portugueses, e com a invenção da cachaça.

Partindo deste quadro bibliográfico pouco animador, fica a pergunta: como

abordar as bebidas nativas e seu papel nas culturas indígenas, em especial daquelas que

sentiram, em primeiro lugar, o impacto da expansão européia. Embora seja crucial

estudar o papel da cachaça no processo de contato, tarefa que ainda está para ser feita

pelos historiadores brasileiros, é necessário fazermos, antes disso, um estudo do papel

das bebidas nativas neste processo, de como estas bebidas, e as formas nativas de

embriaguez, foram vistas pelos primeiros europeus, e de como os nativos se apoiaram

em suas próprias experiências etílicas e na sua visão geral do mundo para enfrentar o

desafio da chegada dos estranhos invasores que chegavam do oceano. Neste esforço de

82
Freyre, 2003 (1936): 280.
83
Scarano, 2001.
45

pesquisa, a vasta bibliografia disponível sobre a etnologia indígena brasileira, os relatos

de viajantes e cronistas, e a documentação administrativa pertinente constituirão as

bases fundamentais.

5. Métodos e Fontes para uma História Indígena das Bebidas no Brasil


46

As bebidas fermentadas ocupavam, e ocupam, um lugar central nos sistemas

culturais indígenas, mas não existem muitos trabalhos antropológicos que sintetizem as

informações de caráter histórico e etnográfico existentes sobre o tema. De todo o modo,

tais informações nos permitem inserir a documentação histórica em um contexto

etnográfico, e vislumbrar o forte impacto provocado nas mentes européias pelos hábitos

etílicos dos nativos. Estas bebedeiras tradicionais, nas quais os índios tornavam-se

“furiosos e temíveis”, eram encaradas pelos primeiros missionários como um dos

principais, senão o maior, obstáculo para a conversão daqueles pagãos:

Y lo que más los tiene ciegos, es el inçassiable appetitu que tienem de venguança, en lo
qual consiste su honra, y con esto el mucho vino que beven, hecho de raízes o de
fruitas, que todo a de seer masticado por sus hijas y otras moças, que de solas ellas en
quanto son vírgines usão pera este officio. Ni sé otra mejor traça de infierno que ver una
multitud dellos quando beven, porque pera esso combidan de mui lexos; y esto
principalmente quando tienem de matar o comer alguna carne humana, que ellos traen
de moquen. 84

Tais sessões de embriaguez possuíam uma profunda relação com o sistema de

guerra e vingança das sociedades ameríndias, apresentando-se como um instrumento

mnemônico em que a história de cada grupo, as crônicas de suas guerras e

deslocamentos, as agruras e angústias causadas pelas ações dos inimigos e seus atos

violentos, as honrarias conseguidas por seus campeões eram lembradas e

permanentemente reconstruídas: “De facto, quando estão mais bêbados, renova-se a

memória dos males passados, e começando a vangloriar-se deles logo ardem no desejo

de matar inimigos e na fome de carne humana”. 85 Como percebeu brilhantemente o

jesuíta Jácome Monteiro, em 1610:

84
Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Roma (Bahia, 27/12/1554) in Leite, 1954 (II): 132-3.
85
“Carta do Ir. José de Anchieta ao P. Inácio de Loyola, Roma (São Vicente, fim de março de 1555)”, in
Leite, 1954 (II): 194.
47

(...) tomando novos nomes, conforme aos contrários que matam, dos quais chegam
alguns a ter cento e mais apelidos, e em os relatar são mui miudos, porque em todos os
vinhos, que é a suma festa deste gentio, assi recontam o modo com que os tais nomes
alcançaram, como se aquela fora a primeira vez que a tal façanha acontecera; e daqui
vem não haver criança que não saiba os nomes que cada um alcançou, matando os
inimigos, e isto é o que cantam e contam. Contudo os cavaleiros nunca fazem menção
dos seus nomes, senão quando há festa de vinhos, na qual só se ouve a prática da guerra,
como mataram, como entraram na cerca dos inimigos, como lhe quebraram as cabeças.
Assim que os vinhos são os memoriais e crónicas de suas façanhas. 86

Os cronistas e viajantes também apontaram um ponto extremamente valioso para

nós: estas sessões de embriaguez eram objeto de um eficiente controle social, como fica

claro por este trecho de Claude d’Abbeville:

Se esses índios são grandes dançarinos são ainda melhores bebedores; em verdade não
costumam beber senão nos dias de reuniões festivas, como quando matam algum
prisioneiro para comer, quando deliberam sobre a guerra, em suma quando se juntam
por prazer ou para tratar de negócios importantes, os quais não seriam bem sucedidos se
antes não preparassem o cauim e não cuidassem à vontade. 87

O capuchinho francês mostra aqui que havia uma demarcação cerimonial e

religiosa que limitava, quando não impedia, a ocorrência de excessos alcoólicos entre os

índios dentro de seu modo de vida tradicional. E não se trata apenas do pequeno

potencial alcoólico das cervejas e hidroméis de baixa fermentação dos índios, pois são

bebidas efetivamente embriagantes: “A bebida tem sabor semelhante ao de nossa

cerveja de malte: tomando-se muito, embriaga, efeito que no fim da festa se percebia de

sobra pelos pulos desordenados e pelo canto delirante de li-lá-lá”. 88

Como abordar, de um ponto de vista histórico, o lugar social e espiritual destas

bebidas em culturas que não mais existem? Naturalmente, as etnografias sobre os povos

86
Monteiro, 1949 (1610): 409-10.
87
Abbeville, 1975 (1614): 237.
88
Spix e Martius, 1976 (1828-9) (I): 200.
48

indígenas atualmente existentes serão muito importantes, visto que os grandes quadros

mentais que situavam as bebidas alcoólicas nas sociedades do passado, ainda moldam,

em grande medida, as experiências etílicas dos indígenas de hoje, especialmente aqueles

que mantiveram alguma autonomia, ou que permanecem parcialmente isolados da

sociedade nacional.

Trabalhos recentes, como as etnografias de Tânia Stolze Lima sobre os Juruna,

de Márnio Teixeira-Pinto sobre os Arara, de Marco Antônio Gonçalves sobre os Pirahã

e de Aparecida Vilaça sobre os Wari’ 89 , entre outros, são fundamentais para a

compreensão do beber indígena. Por outro lado, a antropologia também ajuda a iluminar

as conseqüências da alteração radical da experiência etílica após o contato. Tanto para o

exterior 90 , quanto para os indígenas no Brasil 91 , temos excelentes trabalhos sobre este

tema.

Não obstante, é óbvio que não se pode, pura e simplesmente, transplantar a

experiência dos povos nativos atuais para os povos do passado, por mais que existam

inúmeros pontos de contato entre estas experiências, e por mais que existam povos “do

passado” que conseguiram sobreviver até hoje. Nem a sociedade nacional, nem as

sociedades indígenas, são as mesmas de quinhentos ou quatrocentos anos atrás, o que

torna a contextualização histórica, baseada na pesquisa documental, indispensável aos

nossos objetivos.

Já nos referimos aqui ao enorme valor dos relatos de viajantes e cronistas,

especialmente no que concerne aos Tupinambás, mas também a várias outras nações

indígenas. Além destes relatos, temos uma série de documentos oriundos da burocracia

governamental que nos permitem, com muitas limitações, acompanhar a evolução das
89
Lima, 1995; Teixeira-Pinto, 1997; Vilaça, 1992.
90
Hamer, 1965; Saggers e Gray, 1998.
91
Litaiff; 1996.
49

relações entre os índios e a sociedade nacional através das bebidas. Mesmo que o foco

principal do trabalho esteja voltado aos relatos daqueles indivíduos que travaram um

contato direto com os nativos, e suas formas de beber, é fato que o Estado, muitas

vezes, participou ativamente, ao lado de missionários que constantemente solicitavam

seu apoio, de um longo processo de controle das formas nativas de beber e de se

embriagar.

Uma palavra sobre a delimitação espacial e cronológica desta tese. Em uma

situação ideal, seria desejável a posse de uma documentação detalhada e contínua a

respeito de uma mesma sociedade indígena e suas relações com as bebidas, do momento

do contato em diante. Como seria de se esperar, não existe este corpus documental, nem

ao menos em forma parcial. As informações são fugazes e esparsas, e impedem uma

visão de conjunto e bem localizada sobre uma nação indígena específica, além de tornar

obrigatória a tomada de certas liberdades quanto à cronologia.

De todo modo, é um fato que existem, pelo menos em relação aos Tupinambá,

um conjunto de informações que nos permite traçar uma história da descoberta, do

combate, e da “vitória” (que jamais foi absoluta) européia sobre as bebidas e sobre as

formas nativas de embriaguez. Outros povos, e “naçoens”, indígenas, como os

chamados “tapuias”, embora não sejam tão bem documentados, também sofreram o

impacto da luta dos europeus - especialmente os missionários – sobre aquilo que era

considerado uma forma “selvagem”, quando não demoníaca, de relacionamento com a

experiência etílica, forma que afastava aqueles povos “primitivos” de tudo aquilo que

era considerado como “civilizado” e “cristão”.

Desta forma, o principal foco de observação desta tese será lançado aos

Tupinambá do litoral, e à documentação relativa aos dois primeiros séculos de


50

colonização no Brasil, quando se deu o principal esforço europeu de evangelização, de

controle, e de combate a estes povos. Outros povos, épocas e conjuntos documentais

participarão de forma acessória, mais importante, na medida em que o estudo dos

Tupinambá não esgota, em absoluto, todo o espectro das experiências etílicas indígenas

e do impacto europeu sobre estas experiências. Não é possível esquecer, em nenhum

momento, o fato de que, para vários povos indígenas contemporâneos, o contato com a

sociedade ocidental, com seus “pecados” e, principalmente, seus destilados, é

extremamente recente, ou nem sequer se iniciou.


CAPÍTULO II

DESCOBERTAS E INVENÇÕES:

AS BEBIDAS ALCOÓLICAS NAS SOCIEDADES INDÍGENAS

1. As Bebidas entre a História Natural e a Social.

Mayowoca se pôs então a organizar o mundo,


Que o dilúvio tornou inabitável.
Pela pura força de seu pensamento fez
Crescerem as árvores, correrem os rios, nascer os animais.
Entreabriu uma montanha de onde saiu
Uma nova humanidade a quem ensinou as artes da civilização,
As cerimônias religiosas e a preparação das bebidas fermentadas
Que permitem comunicar-se com o céu. 1

Antes de abordar os fundamentos, técnicos e simbólicos, dos regimes etílicos

dos nativos que habitavam o território que viria a se tornar o Brasil, é importante criticar

a noção de que o homem, tal como um Prometeu embriagado, tenha arrancado da

natureza os segredos da fermentação, descobrindo-os com o uso de sua mente

privilegiada. Quando Donald Horton 2 , por exemplo, viu nas bebidas alcoólicas um

mecanismo de redução de ansiedade, imaginava um ativo processo de invenção por

parte do homem, o que não é propriamente exato. Afinal, as substâncias etílicas

1
Mito de origem Yabarana, in Lévi-Strauss, 1970: 135.
2
Cf. pp. 28-9 desta tese.
52

encontram-se com relativa facilidade na natureza, sendo até mesmo utilizadas, de forma

mais ou menos deliberada, por outros animais, como morcegos, pássaros e elefantes.

Estes últimos, aliás, já foram observados derrubando palmeiras, fazendo buracos em

seus troncos, esperando que estes se enchessem com a seiva e que esta fermentasse, para

só então sorver o líquido embriagante. 3

Entre nossos parentes mais próximos, os primatas, esta atração pelas substâncias

fermentadas é ainda mais nítida 4 , tendo sido convincentemente demonstrado que o

pendor pelo álcool é algo que está profundamente relacionado à nossa história

evolucionária. 5 Por que isto ocorre? Seria difícil explicar uma tendência tão espalhada

pela natureza com hipóteses a respeito de mecanismos de inibição da ansiedade e,

portanto, devemos olhar em outra direção.

Em primeiro lugar, como foi dito acima, é preciso atentar para a disponibilidade

das substâncias etílicas na natureza 6 . A acessibilidade a estas substâncias essenciais é

assegurada pela enorme quantidade de microorganismos que sobrevivem a partir dos

açúcares produzidos pelos seres vivos, em especial pelas plantas. Tais microorganismos

– como os lêvedos (ou leveduras) e algumas bactérias - executam uma tarefa bem

diferente das plantas verdes. 7

Estas plantas, responsáveis pela vida na terra ao converter luz solar em oxigênio,

utilizam-se da clorofila para produzir - a partir do dióxido de carbono e da água - a

glucose. Uma parte da glucose é transformada em frutose, e as duas moléculas juntas

3
Buhner, 1998: 137.
4
Glausiusz, 2000.
5
Dudley, 2000.
6
Masur, 1978: 531.
7
Buhner, 1998: 62-4.
53

formam a sucrose, principal fonte de energia das plantas. A sucrose é o alimento dos

lêvedos, que a transformam em dióxido de carbono e álcool etílico. 8

As plantas buscam defender sua sucrose do ataque das leveduras através de

vários meios, em especial com o uso de grossas cascas. Sua principal defesa, porém, é a

transformação da sucrose em amido, substância não consumível pelos lêvedos. Este é,

obviamente, um ponto importantíssimo para nós, visto que o amido representa uma

indispensável fonte de nutrientes. E o que ainda é mais importante: nossa saliva possui

uma enzima – a ptialina - que pode reverter o processo de formação do amido,

transformando-o novamente em açúcar. Ao mascar amiláceos como a mandioca ou o

milho, as índias no Brasil nada mais faziam, e fazem, do que atrair as leveduras úteis e

colocá-las a seu serviço para a produção dos diferentes tipos de cervejas insalivadas. 9

Por que os homens se interessam tanto pelas substâncias fermentadas? É

impossível compreender este ponto, especialmente no que diz respeito às bebidas, sem

abandonarmos nossa concepção moderna a respeito do álcool, encarado como algo

meramente recreativo e/ou patológico. Para as sociedades pré-históricas (e para os

“primitivos” contemporâneos), os fermentados representavam uma fonte essencial de

nutrientes, raramente obtidos por outros meios.

Stephen Buhner toma o exemplo de uma bebida indonésia feita a partir do arroz,

o tape, para demonstrar estas vantagens nutricionais: durante a fermentação, a

quantidade de lisina é aumentada em 15%, a de tiamina em 300%, e o conteúdo de

proteínas é dobrado (no caso da mandioca, aliás, o incremento protéico é ainda maior: a

mandioca não-fermentada possui 1,5% de proteínas, contra 8% da fermentada). As

8
O dióxido de carbono é reaproveitado pelas plantas para a produção de mais sucrose, que é novamente
atacada pelos lêvedos. O dióxido de carbono produzido pelas leveduras é uma das substâncias naturais
mais importantes para o homem, pois é a partir dela que o pão é produzido.
9
Lima, 1990: 296-302.
54

leveduras sintetizam vitaminas do complexo B para favorecer a fermentação,

constituindo-se na principal fonte destas vitaminas na maioria das sociedades pré-

industriais. Além disso, cervejas e outras bebidas fermentadas contêm minerais nobres

como selênio, cromo e cobre. 10

No caso dos grãos, como o milho ou a cevada, a fermentação traz outros

benefícios: além de todas as vantagens já citadas, a fermentação inibe a presença dos

fitatos, os quais impedem a total absorção dos nutrientes por parte do organismo. 11 Em

sociedades basicamente vegetarianas, como a maioria das sociedades humanas, a

fermentação representa uma importantíssima arma contra uma série de doenças de

fundo nutricional. Dietas vegetarianas tendem a provocar deficiência da vitamina B12; o

consumo único do arroz leva à deficiência de riboflavina e tiamina (provocando o

beribéri) enquanto a exclusividade do milho leva à pelagra, por falta de niacina. Além

disso, muitas destas dietas provocam a falta de vitamina C e, portanto, causam o

escorbuto. Todas estas substâncias vitais são produzidas abundantemente durante a

fermentação. 12

Esta breve relação de alguns dos benefícios dos alimentos fermentados nos deve

alertar quanto ao risco de encararmos o uso do álcool a partir de um ponto de vista

unicamente recreativo, ou somente como um ritual. Como afirmou - em sua obra

clássica sobre a antropologia das técnicas – André Leroi-Gourhan: “a maioria destas

bebidas são, aliás, muito fracas em álcool, desempenhando, na maior parte dos casos,

um papel mais alimentar do que tóxico”.13 O componente nutricional das bebidas

fermentadas é um aspecto fundamental, mas freqüentemente relegado a um segundo

10
Buhner, 1998: 70-1; cf. Masur, 1978: 532.
11
Katz e Voigt, 1986: 30.
12
Buhner, 1998: 72; cf. Lima, 1990: 471-3.
13
Leroi-Gourhan, 1984: 136.
55

plano. Comumente se condena a cachaça por seu efeito deletério sobre as sociedades

indígenas, mas pouco é dito a respeito dos problemas ocasionados pela transformação

de seus padrões tradicionais de consumo etílico, ou mesmo de sua abolição.

O caso dos Tiriyó, povo de língua caribe do Planalto das Guianas é exemplar. 14

Com seu território dividido entre o Brasil e o Suriname, este povo também se viu sujeito

a duas orientações missionárias distintas, a partir dos anos sessenta do século XX. Os

Tiriyó do Brasil foram contatados pelos franciscanos, que privilegiaram um estilo de

catequese gradual, procurando harmonizar as crenças preexistentes com o ideário

católico e investindo mais na assistência médica do que em um proselitismo religioso

agressivo. Os Tiriyó do Suriname, por seu turno, foram missionados por protestantes,

que tudo fizeram para extirpar os costumes tradicionais, notadamente suas festas e

cerimônias regadas a sakura, uma bebida fermentada do tipo caxiri, feita com

mandioca.

Ora, como nos mostra Protásio Frikel – missionário franciscano que se tornou

etnólogo – o abandono da sakura pelos índios do Suriname trouxe conseqüências

extremamente danosas:

Parece que (a abstinência) não teve boas conseqüências, já que hoje se sabe que o caxiri
contém, pela fermentação, vitaminas necessárias para o organismo do índio, as quais
dificilmente se obtém por outros meios. A carência destas vitaminas durante um período
de cinco anos parece haver causado um certo depauperamento físico do tiriyó. Se nota
em uma série de pessoas um tipo de avitaminose que, em alguns casos, chega a ser uma
anemia profunda. 15

14
Pereira, 1999.
15
Apud Lima, 1990: 471.
56

De forma pouco surpreendente, os Tiriyó do Suriname acabaram por se adaptar à

situação de contato, deixando de beber a sakura na presença dos missionários, mas

fazendo abundante uso desta quando de suas visitas festivas aos parentes no Brasil:

Os Tiriyó do Suriname, eu não sei como eles fazem no Natal porque os pastores de lá
não permitem que eles dancem e a sakura é mais ou menos controlada. Agora, aqui não,
quando eles vêm aqui, eles bebem até arrebentar. Aqui eles esquecem de tudo que os
protestantes dizem pra eles lá. 16

O exemplo dos Tiriyó nos mostra a necessidade de se observar a história das

bebidas a partir de uma perspectiva culturalmente ampla, que reconheça os inúmeros

problemas ocasionados pela introdução dos destilados entre os povos nativos, mas que

também leve em conta outros aspectos, quer sejam estes recreativos, rituais ou

nutricionais. Mas o reconhecimento da complexidade da experiência etílica leva,

naturalmente, a novos problemas de ordem metodológica: como organizar os dados

sobre a miríade de práticas e ritos associados às bebidas entre os povos indígenas?

Esta é uma questão importante para o historiador, já que este deve,

necessariamente, cotejar as parcas informações documentais com o registro etnográfico,

bem mais abundante. Mas quem deve ser comparado? Os povos indígenas não formam

um todo homogêneo, mas antes um mosaico de experiências distintas. Deveríamos, por

exemplo, fazer comparações simples entre os Tupinambá - produtores de cervejas

insalivadas – e os Guató, consumidores de seivas fermentadas, colhidas diretamente das

árvores? Certamente que não. Cada material ou técnica utilizada na produção das

bebidas está diretamente relacionada às adaptações ecológicas, aos diferentes tipos de

organização social e às distintas estruturas espirituais das sociedades indígenas.

16
João Piritü, índio Tiriyó, apud Pereira, 1999: 440.
57

O trabalho de Oswaldo Gonçalves de Lima oferece uma chave interessante para

a resolução do problema. 17 Munido de uma perspectiva francamente evolucionista, este

autor realiza um inventário dos diferentes processos de fabricação das bebidas e

descreve os aspectos bioquímicos envolvidos em cada processo, traçando uma linha

evolutiva que vai dos bebedores de seivas aos fabricantes de fermentados complexos,

como o paiauru. Descontada a progressividade desta perspectiva, seu inventário é

utilíssimo, e permitirá abordar nosso problema a partir de uma história e de uma

antropologia das técnicas.

17
Lima, 1990.
58

2. As Formas Etílicas das Sociedades Indígenas

Antigamente o Dono da Água era o sapo.


O menino foi atrás da água, foi pedir ao sapo,
Djopiká, o Dono da Água.
-Minha mãe está com sede, vim pedir água!
-Está aqui, pode levar!
No começo, o sapo, Djopiká, não sovinava água.
Água, para o sapo, naquele tempo era muito valiosa,
era como chicha,
não gostava de dar à toa. 18

De todos os nutrientes indispensáveis ao organismo, o mais importante é, sem

dúvida, a água. Ao tomarmos um gole de água mineral, ou ao prepararmos nossa

comida com a água da torneira, facilmente esquecemos as imensas dificuldades que os

homens, no passado e mesmo nos tempos de hoje, tiveram para obter água potável e

agradável. Na verdade, ainda hoje a água se constitui em um problema para o homem,

mesmo quando em abundância: as fontes de água sempre podem estar contaminadas,

envenenadas ou impróprias para o consumo. Não é por acaso que os homens, desde

muito cedo em sua história, tenham procurado substitutos para a água pura, como os

vinhos e cervejas dos europeus ou os chás e águas fervidas dos chineses. 19

Dentre os substitutos possíveis, as seivas vegetais se destacam, por sua relativa

abundância, diversidade e por acompanharem o homem desde a pré-história mais

18
Mito Jabuti, in Mindlin, 1999: 107-8.
19
Braudel, 1995: 202-5.
59

remota. 20 Os povos caçadores-coletores atuais são eméritos conhecedores e aplicadores

das qualidades das seivas vegetais como confiáveis mitigadoras da sede, não por serem

“meros coletores”, 21 mas certamente pelo notável conhecimento das oportunidades

oferecidas por seus ambientes. Tais seivas, ricas em açúcares, são facilmente

fermentáveis, e por todo o globo os homens aprenderam a retirar das seivas o seu

máximo potencial alcoólico, desde os africanos com seus “vinhos” de palmeiras (como

o malafu, ao qual voltarei mais tarde) até os astecas com seu octli (ou pulque).

Ao contrário de povos de outros continentes, que geralmente preservam as

plantas produtoras de seivas, alguns nativos sul-americanos tendem a aproveitá-las

completamente. Tal é o caso dos índios do Orinoco, observados pelo padre José

Gumilla em 1741, que derrubavam a palmeira muriqui e abriam buracos em seu tronco:

“(...) luego que están formadas aquellas concavidades que llaman canoas, empiezan las

palmas a manar y a fluir de su interior um licor albugineo, com notable abundancia”. 22

Também os Timbira do Maranhão, encontrados pelo major Francisco de Paula Ribeiro

em 1819, consumiam completamente a “palmeira brava, de cuja árvore aproveitam

também o olho, ou palmito (...), por ser de natureza branda, cheio de um suco agradável,

e que serve até para fazer vinho”. 23

Nem todos, porém, derrubam as árvores. Os Guató do Pantanal, por exemplo,

embora sejam tecnicamente um povo caçador-coletor, fazem um verdadeiro manejo das

palmeiras acuri, transplantando as árvores em início de desenvolvimento para as áreas

20
Lima, 1990: 14.
21
“O aproveitamento da seiva vegetal forma parte da hidroeconomia dos animais e dos homens que
exercem a atividade de meros coletores (...)”: Lima, 1990: 14-5.
22
Apud Lima, 1990: 75.
23
Ribeiro, 1841 (1819): 188.
60

de seu interesse. 24 O etnólogo alemão Max Schmidt, que estudou estes índios em

princípios do século XX, deixou-nos uma rica descrição deste processo:

Cada família possuía o seu próprio depósito de palmeiras. (...) Na base superior do
tronco, escava-se, por meio de uma concha ou pedacinho de ferro, um orifício, onde se
ajunta a seiva. A bebida leitosa e de bom sabor é servida no tronco por meio de um
canudo. Dizem que pela manhã ela é ainda mais embriagadora do que à noite. Isto se
explica pelo fato de, durante a noite, o líquido completar a fermentação (...). 25

Vale salientar que o método dos Guató, e de outras nações indígenas, era

virtualmente idêntico ao utilizado na África ocidental na produção do malafu: “(...)

vinho de palma, da sorte que se usa na Cafraria, de que se pode fazer muita quantidade,

por abundar a terra de semelhantes plantas”. 26 Os Tupinambá do Maranhão usavam de

técnica semelhante ao fazer bebidas de palmeiras como a inajá, considerada pelo

capuchinho Claude d’Abbeville, em princípios do século XVII, como:

(...) a maravilha das árvores e tão admirável quanto misteriosa, pois representa a cruz, a
igreja, o homem de bem e outras infinitas criações de Deus. É muito alta, e do seu
tronco se tira uma espécie de vinho branco, de boa bebida, próprio para fazer vinagre e
aguardente. 27

Esta palmeira é ainda utilizada por povos indígenas contemporâneos, como os

Arara (PA), que fabricam, a partir de sua seiva, a bebida aremko. Durante a estação

chuvosa os homens constroem andaimes, com os quais atingem o topo das árvores,

perfuram o tronco, e aguardam que a seiva seja derramada e fermente. As árvores não

são destruídas. 28

24
Oliveira, 1996: 116.
25
Apud Oliveira, 1996: 116-7.
26
Brandão, 1997 (1618): 147.
27
Abbeville, 1975 (1614): 170.
28
Teixeira-Pinto, 1997: 59.
61

Embora Gonçalves de Lima trate a utilização das seivas vegetais como uma

forma “primitiva” de obtenção de fermentados alcoólicos, é oportuno lembrar que

mesmo povos cultivadores podem preferir fazer suas bebidas a partir de frutos da coleta:

é o caso dos Parakanã, que embora possuam a mandioca, somente fazem bebidas das

amêndoas do babaçu. 29 Até mesmo uma sociedade tecnologicamente avançada, como a

dos Astecas, produzia sua principal bebida, o octli, a partir da seiva de um arbusto

bromeliáceo, o maguey. 30 Além de servir como intoxicante – sujeito a inúmeras

interdições culturais e legais - o octli era importante fonte de vitaminas, substituindo a

água durante os meses secos e os estios periódicos. 31

Seivas de arbustos tiveram larga utilização também entre os sul-americanos. Um

exemplo é dado por Simão de Vasconcelos, que narra a técnica – muito parecida àquela

dos astecas - utilizada pelos “tapuias” para a obtenção da seiva do caraguatá, arbusto do

gênero Agave:

(...) ferido o espigão desta planta depois de bem madura, é cousa muito para ver lançar
de dentro de sua cavidade tão grande quantidade de licor que pode encher um grande
pote, o de uma somente. Deste licor fazem os índios vinho, vinagre, mel, e açúcar; (...) e
do mesmo sumo misturado com água fazem vinho (...). 32

Os Guaicuru do Pantanal – observados por Alvar Nuñes Cabeza de Vaca em um

momento (1542) bem anterior à sua transformação nos “índios cavaleiros” do século

XVIII - faziam suas bebidas a partir da algaroba:

São nômades, não parando mais que dois dias num mesmo lugar, logo levantando suas
casas de esteiras e mudando para uma ou duas léguas dali. (...) Além do que tiram dos
outros, mantêm-se da pesca, caça ao veado e de alfarroba, da qual, quando está madura,

29
Fausto, 2001: 151-2.
30
Lima, 1986.
31
Taylor, 1979: 30.
32
Vasconcelos, 1977 (1663), v. I: 148.
62

pelo mês de novembro ou entrada de dezembro, eles fazem farinha e vinho, que sai tão
forte que seguido eles se embebedam com ele. 33

Tão presentes quanto as bebidas de seiva são aquelas feitas a partir do mel.

Possuidor de notáveis qualidades nutricionais e terapêuticas 34 , o mel – oriundo de várias

espécies de abelhas e vespas - é encontrado com abundância no Brasil, servindo como

um dos principais alimentos para muitos povos nativos. Em sua descrição dos tapuias, o

holandês Elias Herckman, governador holandês da Paraíba entre 1636 e 1639, aponta

para o papel central do mel para aquelas sociedades, em um comentário que bem

poderia ser estendido a povos de outras regiões:

Dizem ainda que em suas terras não há gado ou animais que sirvam para alimento, salvo
os porcos selvagens, dos quais apanham alguns de vez em quando. Acrescentam que, às
vezes lhes sucede viajar dois ou três dias sem encontrar água, a não ser a que procede
do orvalho da manhã e se junta nos cantos e recantos das penhas. Também se encontra
ali um mel tão espesso e branco como leite, eles os tiram das árvores, e dele se servem
para se alimentarem. 35

Mesmo aqueles povos, como os Tupinambá e Guarani, que tinham na mandioca

e no milho suas principais fontes de alimento, impressionaram os cronistas com sua

proficiência no uso do mel. O missionário Yves d’Evreux, escrevendo sobre os

Tupinambá do Maranhão em princípios do século XVII, também louvava as qualidades

do mel e da bebida fermentada produzida a partir deste:

Há muitas árvores carregadas de cortiço de mel de abelhas, as quais são mais pequenas
e franzinas do que as nossas, porém mais industriosas, pois fabricam mel excelente,
líquido e tão claro como água potável pura (...). Com este mel fabrica-se vinho muito
forte e quente para o estômago, semelhante na cor e no gosto ao de Canária. 36

33
Cabeza de Vaca, 1999 (1555): 182-3.
34
Buhner, 1998: 18-59; Lima, 1990: 171-3.
35
Herckman, 1982 (1639): 72.
36
Evreux, 2002 (1615): 75-6.
63

José de Anchieta, por seu turno, maravilhava-se com a extraordinária variedade

de abelhas conhecidas pelos índios, e foi um dos primeiros a escrever sobre a faculdade

cicatrizante do mel encontrado no Brasil:

Encontram-se quase vinte espécies diversas de abelhas, das quais umas fabricam o mel
nos troncos das árvores, outras em cortiços construídos entre os ramos, outras debaixo
da terra, donde sucede que haja grande abundancia de cera. Usamos do mel para curar
as feridas, que saram facilmente pela proteção divina. 37

Havia uma grande confiança nas capacidades curativas deste vinho: “há vinho de

mel, muito excelente coisa, para os resfriados, opilados, asmáticos e boubáticos”. 38 A

grande disponibilidade de mel nos sertões brasileiros permitia a um entusiasmado

Brandônio confrontar o ceticismo de Alviano, nos Diálogos das Grandezas do Brasil,

escrito em 1618 pelo cristão-novo Ambrósio Fernandes Brandão:

Brandônio: (...) porque nestes campos achareis rios de mel excelentíssimo e de


manteiga maravilhosa, de que se aproveitam seus moradores com pouco trabalho.
Alviano: Não sei como isso possa ser.
Brandônio: Pois crede-me que assim passa: porque pelas muitas árvores de que
abundam os campos, nas tocas delas criam o seu favo de mel inumeráveis abelhas, e
também na terra por buracos dela em tanta quantidade, que para se haver de colhêr não
é necessário mais que um machado – com o qual a poucos golpes se fura a árvore – e
um vaso para recolher o mel que de si lança, que é em tanta quantidade que somente
dele, sem mais outro mantimento, se sustentam muitas gentes (...). 39

Assim como ocorreu em outros continentes, os ameríndios também trataram de

explorar o vigoroso potencial etílico dos méis. Não é de se estranhar, contudo, que

povos como os Tupinambá e demais cultivadores não tivessem na bebida fermentada de

mel - o hidromel – seu principal produto alcoólico. As mesmas faculdades que tornam o

37
“Ao Padre Geral, de São Vicente, ao último de maio de 1560”, in Anchieta, 1988: 133. Os Araweté
contemporâneos conhecem 45 tipos de mel, enquanto os Parintintin reconhecem pelo menos 31 tipos:
Viveiros de Castro, 1986: 158.
38
Silveira, 1976 (1624): 40.
39
Brandão, 1966 (1618): 128.
64

mel um poderoso antimicrobiano também tornam sua fermentação – que, afinal, não

passa do florescimento de microorganismos em determinado meio – mais difícil do que

a da mandioca, do milho ou das frutas. 40 Desta forma, encontraremos com maior

facilidade os hidroméis entre aqueles povos que não cultivavam ou que não dispunham

de quantidades apreciáveis de matérias-primas mais favoráveis à fermentação.41

Tal é o caso dos tapuias do sertão, e de boa parte dos povos do Brasil Central e

de regiões contíguas, como a área das Missões, sociedades que sobreviviam, em grande

medida, da coleta e da caça. É entre estes povos – chamados por Jacques Vellard de

“civilização do mel” 42 - que encontraremos os melhores exemplos de utilização dos

hidroméis. “Reúnem méis e fazem as bebidas”, disse dos tapuias chefiados por Nhanduí

o alemão Jakob Rabbi. 43 Outros tapuias, os Mongoió da região de Ilhéus, “pacificados”

em 1806, oferecem-nos um vislumbre das técnicas de produção dos hidroméis, técnicas

firmemente reprovadas como grosseiras pelos observadores europeus:

(...) fazem grande provimento de mel. Em nada se observa tão pouca economia, como
no seu método de crestar: tiram toda a cera, e ainda as abelhas, que se acham em casa;
coam tudo por uma sorte de joeira; a cera, e as abelhas são delidas em certa proporção
d’água, que se deixa fermentar, e fica uma bebida embriagante, que os faz alegres, e
também furiosos. 44

Os jesuítas espanhóis tiveram muitas oportunidades de se defrontar com os

bebedores de mel, especialmente os Kaingang, chamados por eles, e pelos Guarani, de

“gualachos” 45 :

40
Lima, 1990: 171-173.
41
Cooper, 1986: 110.
42
Lima, 1990: 124.
43
Apud Ribeiro e Moreira Neto, 1993: 224. A tradicional definição de Rabbi (ou Rabe) como um judeu
parece não se sustentar: Boogaart, 2000: 109.
44
Casal, 1976 (1817): 228.
45
Monteiro, 1994: 70.
65

(...) Aunque entre todos los infieles destas partes se halla el vicio de la borrachera en
estos es tan feroz que se puede dudar si en las demas naçiones aya cosa semejante,
porque haçen un vino de miel de aveja tan fuerte, que luego al punto los priva de
sentido y los haçe tan feroçes mas que tigres ymitandolos en sus obras y bramidos. 46

Estes hidroméis dos Kaingang eram produzidos em quantidade apreciável, o que

lhes permitia demonstrar grande hospitalidade para com os visitantes:

Llego el P.e al primer pueblo de los gualachos vispera de S. Ju.º Bautista y no tenia
aquel pueblo mas que una casa, hallólos descuidados beviendo vino que tienem mucho
hecho da la miel que recojen por el monte y como los cogió de repente no huyeron, ni se
espantaron como suelen. Acaricióles el P.e pero sin hablarles palabra por ser de lengua
diferente y no aver interprete ninguno, dióles de lo poco que llebaba y ellos
correspondieron dando miel al P.e y a sus Indios vino con abundancia. 47

Os Kaingang também misturavam o mel à bebida azeda feita com milho

fermentado – o goifá – criando uma bebida agradável, mas forte, o quiquy. 48 Uma

bebida semelhante conquistou até mesmo a simpatia do morigerado Anchieta: “(...)

usamos, em lugar do vinho, de milho cozido em água, a que se ajunta mel, de que há em

abundancia; é assim que sempre bebemos as tisanas ou remédios (...)”. 49

Ainda no que se refere às bebidas elaboradas a partir dos produtos da coleta,

chegamos aos inumeráveis fermentados de sucos de frutas, muitas vezes denominados

de caiçuma. 50 Diga-se, aliás, que algumas das primeiras menções feitas por europeus às

bebidas indígenas referem-se aos vinhos de frutas. Em seu primeiro contato com os

índios da América do Sul (durante sua terceira viagem, entre 1498 e 1500), Cristóvão

Colombo descreve a forma como sua tripulação foi recebida: “mandaram trazer pão e

46
“Situacion de la Reduccion de los Angeles enadose ella (?) y los Indios que se han convertido por la
predicacion evangelica en los años de 1629 y 1630”, in Cortesão, 1951: 348.
47
“Carta anua de las missiones del Paraná y Uruguay de la Comp.ª de Jesus, del año de 1633, para el P.e
Diego de Boroa de la Comp.ª de Jesús, Provincial desta Provincia”, in Cortesão, 1969: 51.
48
Pereira, 1974: 13.
49
“Quadrimestre de maio a setembro de 1554, de Piratininga”, in Anchieta, 1988: 54.
50
Câmara Cascudo, 1998: 222.
66

muitas variedades de fruta e de vinho, branco e tinto, mas que não é feito de uvas, deve

ser de diversos tipos de fruta, (...) e parece que aquele que bebesse melhor era

considerado com maior apreço”. 51

Em sua exploração do norte da América do Sul (1499-1500), Alonso de Hojeda

conheceu os vinhos nativos: “(...) vieron próxima al mar uma población de mucha gente

pacífica, con la cual comunicaron, recibiendo de ella, entre otros obsequios, una especie

de sidra hecha de frutas (...)”.52 Também Américo Vespúcio, em sua primeira viagem ao

Brasil (1499-1500), descreve uma bebida de frutas: “descobrimos que nesta terra

bebiam um vinho feito das frutas deles e sementes à maneira de cerveja, quer branco

quer tinto, sendo o melhor feito de mirobolanos e que era muito bom”. 53

Estes vinhos de frutas sul-americanos são de baixa fermentação, não se

assemelhando, por conseguinte, aos vinhos de uva europeus, embora possuam conteúdo

alcoólico mais elevado do que as cervejas insalivadas de mandioca e milho. São, em

geral, provenientes de uma maceração simples das diversas espécies de frutas,

preservando muito do sabor original dos sucos, e sendo logo consumidos, devido ao

rápido processo de acidificação a que os sucos de frutas fermentados estão sujeitos. 54

O naturalista alemão Georg Marcgrave que esteve a serviço do Conde Maurício

de Nassau durante a dominação holandesa do Nordeste brasileiro no século XVII,

descreveu a forma típica de fabricação destes vinhos de frutas: “esmagam o fruto num

almofariz de madeira ou então com as mãos; deixam o suco um pouco em repouso; em

seguida o filtram. Este vinho 55 , se assim é permitido dizer, fica branco como o leite;

51
Colombo, 1999: 181-2.
52
M. Fernandez de Navárrete, in Cereceda, 1964: 62.
53
A. Vespúcio, “Segunda Viagem a serviço da Espanha (primeira ao Brasil) – 18/05/1499 a 08/09/1500”,
in Fontana, 1995: 169.
54
Lima, 1990: 257-8.
55
Marcgrave está se referindo ao vinho de caju.
67

depois de alguns dias, vai-se tornando pálido”. 56 Em função da característica fugaz

destes vinhos, seu consumo era bastante restrito às épocas de amadurecimento das

frutas, como atesta Anchieta: “com o vinho das frutas que é muito forte se embebedam

muito e perdem o siso, mas deste bebem pouco, e somente o tempo que elas duram”. 57

Existiam quase tantas bebidas quanto frutas disponíveis, como notou o artista

francês Jean-Baptiste Debret, em princípios do século XIX: “muitos frutos, como o

ananás, o caju, e outros, ácidos e mais ou menos resinosos, produzem, pela maceração,

licores extremamente capitosos que os selvagens bebem com paixão”. 58 Poderiam ser

feitos de frutas suculentas, como o de mangaba: “(...) são de muito bom gosto, sadias, e

tão leves que por mais que comão, parecem que não comem fructa; (...) dellas fazem os

índios vinhos”. 59 Frutos mais secos, como o cacau, eram também bastante apreciados:

“o suco adocicado da polpa envolvendo as amêndoas do cacau dá uma espécie de vinho,

que é bebida muito refrescante”.60

As frutas representavam uma importante fonte de matérias-primas para a

fabricação de bebidas alcoólicas, notadamente para aquelas nações que não praticavam a

horticultura. Algumas das migrações dos chamados “tapuias” estavam diretamente

ligadas à busca destas frutas, como escreveu, no século XVII, o jesuíta Simão de

Vasconcelos: “(partem) as mulheres, as de mais idade, umas às raízes de ervas, outras às

frutas, que possam servir-lhes de pão, e juntamente de vinho”. 61

Mas eram mesmo os Tupinambá os grandes consumidores de vinhos de frutas:

“não conhecem a vinha, mas têm certos frutos excelentes em grande abundância com os

56
Marcgrave, 1942 (1648): 273.
57
“Informação do Brasil e de suas Capitanias – 1584”, in Anchieta, 1988: 338.
58
Debret, 1975 (1834-9), (I): 21.
59
Cardim, 1978 (1625): 39.
60
Spix e Martius, 1976 (1828-9), (III): 175.
61
Vasconcelos, 1977 (1663), v. I: 108.
68

quais fazem uma bebida deliciosa”. 62 Um de seus vinhos preferidos era o de ananás,

considerado pelos europeus como a melhor e mais saborosa fruta do país: “(...) é fruto

de muito preço e real, sabem e cheiram a melões, mas são melhores e muito mais

odoríferos, e têm muito sumo, (...) o vinho que os índios fazem deles é muito forte e se

toma a miudo dele”. 63 Décadas mais tarde, o naturalista Georg Marcgrave advertia que

o nanaî “fabricado com o preciosíssimo fruto denominado nana” era “mais forte e mais

facilmente embriaga”. 64 Não apenas os índios, mas também os mamelucos e

portugueses eram adeptos entusiasmados da bebida desta fruta: “(...) de cujo sumo,

quando são maduras, os índios fazem vinho, com que se embebedam; para o que os

colhem mal maduros, para ser mais azedo, do qual vinho todos os mestiços e muitos

portugueses são mui afeiçoados”. 65

O mais afamado e apreciado vinho de frutas do Brasil era, contudo, o de caju:

“há também uma fruta, que chamam cajus, que lança muito sumo, e em mosto, é mais

doce que o das uvas, e depois de cozido (porquê ferve tanto como o das uvas) fica

palhete muito claro, e belo, porém azedo (...). 66 A semelhança com os vinhos brancos

europeus também foi apontada por Claude d’Abbeville, capuchinho francês que

participou da experiência colonial tentada por La Ravardiére no Maranhão de princípios

do século XVII: “(...) é branco e excelente, forte como os vinhos regionais de França e

com essa particularidade: quanto mais velhos melhores” 67 .

Os cajueiros se espalhavam em grande número pelas praias do atual Nordeste,

antes que a devastação causada pelo homem e a invasão dos cocos estrangeiros
62
Abbeville, 1975 (1614): 162.
63
“Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585”, in Anchieta, 1988: 438; o conteúdo
alcoólico do vinho de ananás pode chegar a 7%: Lima, 1990: 274.
64
Marcgrave, 1942 (1648): 274.
65
Souza, 2000 (1587): 163; cf. Vasconcelos, 1977 (1663), (I): 107; “(...) é este vinho entre eles, estimado
sobre todos os outros”.:
66
Silveira, 1974 (1624): 40.
67
Abbeville, 1975 (1614): 237.
69

modificassem radicalmente aquela paisagem. 68 Eram árvores “muito grandes, e

formosas”, 69 disse a respeito delas o jesuíta Fernão Cardim, no início do século XVII. A

reputação de seus frutos como bons remédios para diversos males já era sublinhada pelo

senhor de engenho Gabriel Soares de Souza, em 1587:

A natureza destes cajus é fria, e são medicinais para doentes de febres, e para que, tem
fastio, os quais fazem bom estômago e muitas pessoas lhes tomam o sumo pelas manhãs
em jejum, para conservação do estômago, e fazem bom bafo a quem os come pela
manhã, e por mais que se coma deles não fazem mal a nenhuma hora do dia, e são de tal
digestão que em dois credos se esmoem. 70

As matas de cajueiros, e suas enormes concentrações de alimentos, na forma de

frutos e castanhas, eram ferozmente disputadas pelos diferentes povos indígenas: “(...)

ser senhor de um destes cajuais para efeito dele (do vinho), é ter o morgado mais

pingue”. 71 Os Potiguara eram os senhores das melhores áreas – entre Itamaracá e o Rio

Grande do Norte - mas tinham que defendê-las de povos aparentados, como os Caeté e

os Tabajara, e também dos tapuias do sertão, que na estação do caju (entre novembro e

janeiro) desciam às praias, “porquanto pouco ou nenhum caju se encontra muito para o

interior”. 72 “É de sabor adstringente”, disse, no século XVII, o alemão Georg

Marcgrave, “forte, de sorte que embriaga, se for tomado em demasia”. 73

Sem desprezar o potencial nutritivo dos frutos e das castanhas, é inegável que a

principal atração dos cajuais estava no acesso à enorme riqueza etílica representada pelo

caju. A possibilidade de contar com grandes quantidades de vinho tornava o período de

68
Lima, 1990: 262-3.
69
Cardim, 1978 (1625): 38.
70
Souza, 2000 (1587): 148.
71
Vasconcelos, 1977 (1663), (I): 107.
72
Herckman, 1982 (1639): 67.
73
Marcgrave, 1942 (1648): 273.
70

amadurecimento das frutas uma das épocas mais marcantes do ano, para aqueles povos

que, como os Potiguara, detinham o controle de cajuais:

(...) os índios expremem o suco para fazer uma beberagem, com que completamente se
embebedam, e então se abandonam a grosseiros e bárbaros pecados. Essa fruta
amadurece somente uma vez por ano, a saber, em dezembro e janeiro, na qual época os
índios, por amor ao caju, não tem muito gosto pelo trabalho. 74

Fazia-se o vinho das diferentes espécies de cajueiro, mas especialmente do tipo

vermelho e mais ácido, o caju-pirã: “quando estão maduros os índios espremem-lhes o

suco, principalmente dos cajus-pirã, para fazerem o vinho a que chamam caju-cauim,

que é branco e muito saboroso”. 75 Gabriel Soares de Souza elogia o sabor do acayu-y:

“do sumo desta fruta faz o gentio vinho, com que se embebeda, que é de bom cheiro e

saboroso”. 76 Simão de Vasconcelos, quase um século depois, concordava com esta

avaliação positiva: “(fazem) deste em tanta quantidade, que podem encher-se muitas

pipas, de cor a modo de palhete. Deste vi em uma frasqueira, e se não fora certificado do

que era, afirmara que era vinho de Portugal”. 77 Alguns autores, como Rodolfo Garcia 78

e Ferdinand Denis 79 , entre outros, acreditam que a palavra cauim seja oriunda do nome

dado ao vinho de caju (acayu-y, ou “água de caju”). Esta é, contudo, uma questão

polêmica: Ermano Stradelli acredita que a etimologia correta seja ca’o-y (“água de

bêbado”). 80

Existem alguns indícios - muito tênues, na verdade - de que os índios tenham

ensaiado produzir vinhos mais fortes a partir dos frutos, concentrando seus sucos com

fervuras e evaporação. Frei Jaboatão, escrevendo em Pernambuco no século XVIII,


74
Herckman, 1982 (1639): 58.
75
Abbeville, 1975 (1614): 168.
76
Souza, 2000 (1587): 148.
77
Vasconcelos, 1977 (1663), (I): 106-7.
78
Em nota a Cardim, 1978 (1625): 75.
79
Em nota a Evreux, 2002 (1615): 413.
80
Câmara Cascudo, 1998: 258.
71

afirmava que os índios “sabiam fabricar dos cajus da terra e de outras diferentes frutas

seus vinhos e bebidas, compostos com diferentes ingredientes da mesma terra,

espremendo-lhes e fechando seus licores em jarras e postos a ferver, uns ao fogo e

outros ao tempo”. 81 O jesuíta Simão de Vasconcelos, escrevendo no século anterior,

confirmava a prática: “fazem-no da maneira seguinte. Espremem o caju em vasos, e

nestes o deixam estar tanto tempo, que ferva, escume, e fermente, até ficar com

substância de vinho, mais ou menos azedo, segundo a quantidade do tempo”. 82 Em São

Vicente fazia-se vinho forte de jabuticaba: “desta fruta fazem os índios vinho, e o cozem

como vinho d’uvas”. 83 Com tão poucas referências a este processo de “fortalecimento”

dos vinhos de frutas, é lícito imaginar que a técnica não tenha sido desenvolvida de

forma independente pelos índios, sendo antes uma prática inspirada pelos europeus.

81
Apud Lima, 1990: 266.
82
Vasconcelos, 1977 (1663), (I): 107.
83
Cardim, 1978 (1625): 40.
72

3. A Saliva Criadora: O Cauim e Outras Cervejas Indígenas.

Os espíritos costumam descer,


quando o doutor chama
Cantam, comem a galinha que mataram para
eles, tomam chicha.
Tomam potes grandes de chicha.
A gente não vê quando tomam, só os pajés
vêem. 84

Fizemos na seção anterior uma descrição, muito sumária, das bebidas produzidas

a partir dos frutos da coleta. São estas bebidas facilmente obtidas por meio de um

processo de fermentação que atua diretamente sobre os açúcares presentes nas seivas,

méis e sucos de frutas. Com os cultivares, porém, alcançamos um tipo mais complexo

de elaboração alcoólica, visto que o amido presente nos principais produtos da

agricultura nativa – a mandioca e o milho – deve ser convertido em açúcares para que

possa ser fermentado. 85

Partindo dos métodos usados para realizar esta conversão, podemos traçar uma

tipologia das cervejas. Simplificando bastante a classificação proposta por Gonçalves de

Lima 86 , é possível apontar a existência de três tipos básicos de cervejas “primitivas”:

a) cervejas insalivadas: as enzimas presentes na saliva cumprem o

papel de indutor da fermentação. A grande maioria das bebidas nativas no

Brasil, como o cauim, a chicha e o caxiri, pertencem a esta categoria;

84
Mito Arikapu, in Mindlin, 1999: 231.
85
Cooper, 1986: 110.
86
Lima, 1990: 293-4.
73

b) cervejas maltadas: a fermentação ocorre a partir da adição de

grãos germinados – que possuem enzimas que “quebram” o amido – ao

material original. São a base das cervejas européias, e – dependendo da

interpretação dos relatos - estão pouco representadas entre os índios no

Brasil;

c) cervejas “claras”: a quebra do amido é provocada pela ação de

fungos adicionados durante o preparo, como ocorre com o sakê japonês. Os

fungos são usados pelos índios no fabrico de bebidas como o paiauru.

Comecemos pelas cervejas insalivadas, as mais comuns. As primeiras menções

européias às bebidas dos nativos do Brasil parecem fazer referência a este tipo de

cerveja: o auto notarial de Valentim Fernandes 87 , datado de 20 de maio de 1503, afirma

que a frota de Cabral encontrou, na costa brasileira, homens que “extraem vinho do

milho”. 88 Por sua vez, a Relação da viagem do Capitão de Gonneville às Novas Terras

das Índias informa que Binot Paulmier de Gonneville, ao tocar em costas brasileiras em

1504, encontrou índios que faziam “(...) seu pão e sua bebida com certas raízes”,

referindo-se, possivelmente, ao cauim de mandioca. 89

São bebidas em que o aspecto nutricional, de bebida-alimento, transparece com a

maior nitidez. Existe uma série de preparados líquidos e pastosos, não-alcoólicos,

elaborados a partir do milho e da mandioca, que claramente precedem, bioquímica e

evolutivamente, os fermentados etílicos. São caldos ou mingaus, como o chibé e a

tiquara, descritos pelo naturalista alemão Georg Marcgrave, em sua monumental

87
Morávio radicado português, tabelião público e corretor dos mercadores alemães: Garcia, 2000: 44.
88
Garcia, 2000: 45.
89
Perrone-Moisés, 1992: 26.
74

Historia Naturalis Brasiliae, de 1648, como “uma bebida alvacenta como leite

desnatado; é de agradável sabor, um pouco ácida; é servida morna”. 90

Estas tiquaras tinham grande importância na vida quotidiana, como afirma o

jesuíta João Daniel, que missionou na Amazônia em meados do século XVIII, e que

escreveu seu Tesouro Descoberto no Rio das Amazonas em alguma data entre 1757 e

1776:

(quando falta o alimento), ou quando estão doentes, usam do seu ordinário mingao de
farinha cozida em ágoa que fica como papas ralas, que possam beber; por sobremesa,
como também quando se acham com calor, ou vão de viagem, usam do seu tiquara, que
é ágoa, em que molham ũa pouca de farinha, que juntamente os sustenta, e refresca
(...). 91

O missionário aponta um fato importante, ao notar o uso da tiquara como um

“refresco”: “(...) é o ordinário refresco nos calores, especialmente nos índios quando

andam no trabalho, ou na remagem das canoas, posto que os mesmos brancos não

desgostam dela”. 92 Sabe-se que muitas culturas indígenas abominam o consumo da água

pura, não apenas por conta dos perigos que as águas podem oferecer, mas também pela

idéia de que consumir o líquido puro – assim como a carne crua – é um ato indigno para

um ser humano, sendo antes “coisa de bicho”, de seres que se alimentam sem a

intermediação ou adição de instrumentos da cultura, como a cerâmica, a farinha ou o

fogo. 93 Para os Wari’ (RO), por exemplo, a chicha doce, não-fermentada, é a bebida

cotidiana, e comumente usada para matar a sede. 94

90
Marcgrave, 1942 (1648): 67-8.
91
Daniel, 1976 (I): 205.
92
Daniel, 1976 (I): 306; cf. Pereira, 1974: 293.
93
E. Viveiros de Castro, comunicação pessoal; cf. Lima (1990: 224-5), para confirmação deste fato entre
os índios da Amazônia e entre os tapuias do Nordeste.
94
Vilaça, 1992: 171.
75

Caldos do tipo chibé ou tiquara, se deixados a descansar por alguns dias,

fermentam, formando a puba (de pur, “apodrecer”), base de uma série de utilizações da

farinha de mandioca, como os vários tipos de beijus. 95 Esta fermentação, contudo, pode

ser acelerada pela insalivação, produzindo-se toda uma variedade de fermentados não-

alcoólicos doces, como o masato amazônico, que serve como indutor alcoólico para

algumas bebidas. 96 Este tipo de alimento deve ter surgido a partir do hábito das

mulheres nativas de oferecer alimentos mastigados às suas crianças: “a alimentação das

crianças consiste em certas farinhas mastigadas e carnes tenras juntamente com o leite

materno (...)”. 97 As mães, dizia o capuchinho Yves d’Evreux sobre as Tupinambá da

França Equinocial, mastigavam e amassavam o milho “com saliva em forma de caldo”

alimentando as crianças como fazem os pássaros, “passando de boca para boca”. 98

Sem entrar em maiores detalhes acerca da infinidade de métodos de tratamento

dos produtos do cultivo, parece lógico imaginar que tais práticas estejam na origem das

várias cervejas insalivadas, produto marcado por sua identificação com as mulheres,

principais agentes da agricultura nativa. Esta identificação estava bem clara para

viajantes como Hans Staden, que conviveu com os Tupinambá de Ubatuba em meados

do século XVI :

As mulheres fazem as bebidas. Tomam raízes de mandioca e cozinham grandes


paneladas cheias. Uma vez cozida, retiram a mandioca da panela, passam-na em outras,
ou em vasilhas, e deixam-na esfriar um pouco. Então se assentam as meninas perto,
mascam-na, colocando-a numa vasilha especial. Quando todas as raízes cozidas estão
mastigadas, põem de novo a massa na panela, deitam-lhe água, misturam ambas, e
aquecem de novo. Têm para tal vasilhas adequadas, que enterram a meio no chão, e que
empregam como aqui os toneis para vinho e cerveja. Despejam dentro a massa e fecham

95
Câmara Cascudo, 1998: 740-1; Pereira, 1974: 171.
96
Lima, 1990: 228.
97
Léry, 1960 (1578): 204.
98
Evreux, 2002 (1615): 128.
76

bem as vasilhas. Isto fermenta por si e fica forte. Deixam-na assim repousar dois dias.
Bebem-na então e com ela se embriagam. É grossa e tem bom gosto. 99

“As mulheres fabricam as bebidas...” 100

O capuchinho Claude d’Abbeville nos oferece uma descrição das práticas dos

Tupinambá do Maranhão seiscentista na qual, embora os passos principais sejam

idênticos ao relato de Staden, existe o acréscimo de um derivado do milho:

99
Staden, 1974 (1557): 165-6.
100
Anônimo, “Mulheres trabalhando na fabricação de bebidas”, in Staden, 1974 (1557): 166.
77

Fora do tempo do caju, fazem outra bebida muito forte que chamam cauim-etê.
Apanham as mulheres raízes de macacheira e as põem a ferver dentro d’água em
enormes vasilhames de barro. Já bastante cozidas e moles, tiram-nas do fogo e deixam-
nas esfriar um pouco; juntam-se em seguida as mulheres em torno dos recipientes,
tomam as raízes e as mastigam para cuspi-las depois dentro de outros vasilhames de
barro, com certa quantidade de água proporcional à quantidade de bebida que desejam
fazer. Misturam-nas então com levedura de farinha de milho miúdo ou comum e põem
tudo a ferver mexendo sem parar até completo cozimento. Tiram então essa espécie de
sopa espessa do fogo e enchem os vasos de colo estreito. Deixam a bebida assentar para
tirar a borra, cobrem os vasilhames e guardam-nos até que reúnam todos para
cauinar. 101

Este relato nos leva a pensar que os Tupinambá possam ter desenvolvido uma

cerveja do tipo maltado, dependendo de como se interprete a expressão “levedura de

farinha de milho”. Seria um milho germinado e reduzido à farinha? Gonçalves de Lima

não reconhece esta possibilidade, na medida em que, ao tratar das bebidas dos jê

Camacã – que efetivamente praticavam o malteamento – afirma, em seu típico

vocabulário evolucionista: “este fato os põem tecnologicamente em uma etapa superior

à dos tupis, que só utilizavam a saliva como sacarificante”. 102

Independente destas minúcias técnicas, o fato é que as cervejas do tipo cauim

estavam amplamente espalhadas pelos vários povos que designamos pelo termo comum

Tupinambá, e constituíam um dos traços marcantes de sua cultura, ao lado do

canibalismo ritual. São bebidas de reduzido teor alcoólico, em que a embriaguez se

origina muito mais de fatores culturais do que propriamente da potência etílica.103 José

de Anchieta nos alerta para isso, ao descrever o cauim:

São muito dados ao vinho, o qual fazem das raízes da mandioca que comem, e de milho
e outras frutas. Este vinho fazem as mulheres, e depois de cozidas as raízes ou o milho,

101
Abbeville, 1975 (1614): 238; .
102
Lima, 1990: 335.
103
Cooper, 1986: 111.
78

o mastigam porque com isso dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais. Deste
enchem muitos e grandes potes, que somente servem disso e depois de ferver dois dias o
bebem quase quente, porque assim não lhes faz tanto mal nem os embebeda tanto, ainda
que muitos deles, principalmente os velhos, por muito que bebam, de maravilha perdem
o siso, ficam somente quentes e alegres. 104

Como mostra Gonçalves de Lima, a técnica da insalivação, usada pelos

Tupinambá, e por vários outros povos indígenas no Brasil e em outras regiões do

continente americano, só esporádica e fortuitamente produzia bebidas com teor

alcoólico mais elevado; de fato, o cauim apresenta, mesmo após a fermentação,

quantidades importantes de fragmentos de amido 105 , o que nos mostra, mais uma vez, a

importância alimentar das cervejas insalivadas, fato percebido com agudeza tanto por

Luís da Grã (“a la verdad este su vino assi gruesso es comer y bever, y muchas vezes no

comen outra cosa”) 106 , quanto por José de Anchieta (“este vinho comumente o fazem

grosso e basto, porque juntamente lhes serve de mantimento e quando bebem nenhuma

outra cousa comem”). 107

Esta última informação deve ser explorada, visto que a expressão “quando

bebem não comem” aparece ad nauseam nos relatos acerca das bebedeiras dos

Tupinambá. É claro que a insistência nesta afirmação relaciona-se com a estranheza de

europeus latinos – oriundos de sociedades em que o beber vinho estava fortemente

relacionado ao consumo dos alimentos 108 - com a separação radical, feita pelos nativos,

entre o comer e o beber. 109 Contudo, para além dos aspectos metafísicos envolvidos

104
“Informação do Brasil e de suas Capitanias – 1584”, in Anchieta, 1988: 338.
105
Lima, 1990:
106
“Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Roma (Piratininga, 8/6/1556)”, in Leite, 1954 (II):
294.
107
“Informação do Brasil e de suas Capitanias – 1584”, in Anchieta, 1988: 338.
108
Engs, 1995: 228.
109
“Durante o cauim, ninguém come nada – a clássica disjunção cauim / comida que já era notada para os
Tupinambá” (Viveiros de Castro, 1986: 339).
79

nesta separação, os quais serão discutidos mais adiante, não se pode deixar de

considerar os aspectos nutricionais.

De que outra forma se poderia compreender bebedeiras que se arrastavam por

horas, ou mesmo dias, sem que se consumisse qualquer alimento, e sem debilitar os

participantes, sempre prontos a participar de guerras e elaborados rituais antropofágicos

imediatamente após estas cauinagens? Alguns dos relatos mostram que uma bebedeira

destas poderia se constituir em verdadeira tour de force: “um hábito deveras estranho

que têm é o de nunca beberem quando estão comendo, e vice-versa: quando se põem a

beber, não comem coisa alguma – e olhe que suas bebedeiras podem durar até mesmo

um dia inteiro!”. 110

Embora os vários tipos de mandioca representassem a matéria-prima por

excelência do cauim Tupinambá, este era muitas vezes feito a partir do milho (avati ou

abati), produzindo-se uma beberagem bastante substanciosa, como informa o francês

André Thevet, a respeito dos Tamoio da França Antártica, em meados do século XVI:

Há o avati preto e branco. A maior parte da colheita é empregada no fabrico desta


bebida, para o quê ferve-se o avati juntamente com outras raízes, obtendo-se um licor de
coloração semelhante à do vinho clarete. Esta beberagem é muito apreciada pelos
selvagens, que com ela se embriagam, tomando-a como nós outros bebemos vinhos,
conquanto seja o cauim espesso como mosto de vinho. 111

O cauim de milho tinha, naquelas regiões em que esta planta era cultivada, uma

função essencial, na medida em que guerras e rituais antropofágicos tinham que esperar

a época de sua colheita e preparação:

110
Thevet, 1978 (1556): 105-6; “(...) enquanto comem não bebem vinho, nem água, o que fazem depois
de comer” (Souza, 2000 [1587]: 270). Nem todos concordam integralmente com isso: Yves d’Evreux diz
que se eles “tem sêde quando comem, bebem pouco apenas para apagar a sede” (2002 [1615]: 153),
enquanto Simão de Vasconcelos (1977 [1663], v. I: 106) afirma que eles, enquanto comem, “raramente
bebem”.
111
Thevet, 1978 (1556): 89.
80

Tínhamos que nos acautelar especialmente contra os tupinambás duas vezes por ano,
épocas em que, com violência, penetram na região dos tupiniquins. Uma destas épocas é
em novembro, quando amadurece o milho, que chamam abati, e com o qual preparam
uma bebida chamada cauim. Empregam também aí a raiz de mandioca, de que misturam
um pouco. Logo que voltam de sua excursão guerreira com abati maduro, preparam a
bebida e devoram nesta ocasião os seus inimigos, se conseguiram aprisionar alguns. Já
um ano inteiro antes esperam com alegria o tempo do abati. 112

Nota-se pelo relato do artilheiro alemão que as duas plantas podiam ser

misturadas, produzindo-se uma bebida que, no Maranhão, era chamada de caracu:

(...) fabricam ainda outro tipo de vinho doce a que chamam caracu. É preparado com
raízes de mandioca e mastigado como o precedente; juntada a farinha de milho e a água
necessárias, fazem ferver tudo dentro de panelas de barro. Quando no ponto, essa
bebida se torna um caldo espesso, parecido com sopa de leite ou de arroz. Fazem então
assar algumas espigas de milho, mastigam os grãos e cospem-nos no líquido o que o
torna mais claro e fluido, permanecendo ainda assaz espesso, porquanto não o coam de
modo nenhum. 113

Não devemos cair na tentação, contudo, de imaginar que apenas sociedades

predominantemente cultivadoras, como os Tupinambá, possuíssem bebidas elaboradas a

partir da mandioca e do milho. Os nativos do Brasil Central, entre eles os chamados

“tapuias”, também produziam seus cauins. Embora alguns destes povos, em especial os

da família Jê, não possuam qualquer bebida alcoólica nativa (caso dos Suyá) 114 , isto não

se configura em regra universal, como vimos para os Kaingang.

Em princípios do século XVII, em meio à luta dos franceses para estabelecer

uma colônia no Maranhão, o capuchinho Yves d’Evreux observou que os Tremembé

“mais vagabundos do que estáveis em suas moradias” carregavam em suas andanças

apenas “arcos, flechas, machados, um pouco de cauí, algumas cabaças para guardar

112
Staden, 1974 (1557): 77.
113
Abbeville, 1975 (1614): 238.
114
Lima, 1990: 333.
81

água, e umas panelas para cozinhar a comida”, 115 o que é, sem dúvida, indicação mais

do que suficiente da importância conferida às bebidas por estes nômades, que

transportavam apenas o absolutamente indispensável.

Segundo o erudito português José Freire de Monterroyo Mascarenhas, que

publicou, em 1716, várias informações de missionários acerca dos índios dos sertões

brasileiros, os tapuias Ori (ou Orizes, ou ainda Procazes) passavam as cerimônias de

casamento “bebendo com destemperança um licor com os mesmos efeitos do vinho,

composto do sumo de várias frutas, e do suco de algumas raízes, que a experiência lhes

mostrou próprias para esta fábrica (...)”. 116

Visitando os Botocudos na década de 1830, o pintor francês Jean-Baptiste

Debret nos deixou uma precisa descrição da fabricação de um cauim de milho, além de

fornecer uma explicação “nativa” para a preferência por aquela bebida específica:

A fabricação dessa espécie de aguardente é tão incrível quão repugnante: as mulheres


reunidas dedicam várias horas consecutivas à mastigação dos grãos de milho, cuspidos,
depois de triturados, dentro de um vasilhame em torno do qual elas se colocam. Essa
estranha pasta fermenta em seguida em água quente durante doze a dezesseis horas;
após essa primeira preparação, é ela despejada em um grande recipiente de madeira no
qual é deixada ainda a fermentar, de mistura com uma maior quantidade de água
igualmente quente. Durante essas duas importantes operações tem-se o cuidado de
agitá-la com uma grande vareta; a combinação química está terminada. Esse licor,
excessivamente espirituoso, manipulado sem cessar sobre o fogo, deve ser bebido ainda
quente. A batata doce e a mandioca podem produzir o mesmo resultado, mas as
mulheres preferem o grão de milho, mais agradável para elas na primeira parte dessa
“saborosa preparação”. 117

115
Evreux, 2002 (1615): 179.
116
José Freire de Monterroyo Mascarenhas, apud Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 225.
117
Debret, 1975 (1834-9), (I): 21.
82

Anteriormente, os naturalistas alemães Spix e Martius já haviam presenciado um

preparo (“tão pouco convidativo”, segundo eles) semelhante ao testemunhado por

Debret, desta feita entre os Coroados:

Umas (mulheres) socavam milho no pilão, outras deitavam a farinha de milho numa
vasilha de barro (...) onde é cozida a farinha em grande quantidade de água. Ao nosso
aparecimento, elas fugiram, mas voltaram logo para as suas tarefas quando mostramos
caras risonhas. Uma índia velha e algumas outras mais moças retiraram do pote, com as
mãos, a farinha graúda e cozida, mastigaram-na e puseram-na outra vez na panela. Com
esse preparo, consegue-se que o cozimento, no espaço de vinte e quatro horas, entre em
fermentação alcoólica e se torne embriagante. 118

Na medida em que as frentes de expansão colonizadora penetravam mais e mais

no território que se tornaria o Brasil, em especial na Amazônia, descobriam-se novos

métodos de elaboração quimicamente mais sofisticados do que a insalivação. Muito

embora exista na Amazônia uma plêiade de cervejas do tipo cauim (geralmente

chamadas de chicha ou caxiri), o fato é que naquela região encontraremos métodos que

aprofundam a manipulação humana dos microorganismos responsáveis pela

fermentação, e que produzem bebidas de conteúdo alcoólico mais elevado.

As menções mais antigas aos índios da Amazônia são pouco informativas no que

diz respeito aos métodos usados para a fabricação das bebidas fermentadas, mas nos

trazem algumas pistas. Francisco Vásquez, integrante da malfadada expedição de Pedro

de Ursua e Lope de Aguirre à busca do Eldorado (1560-1), descreveu assim as bebidas

de um grupo indígena do Alto Amazonas:

Há um tipo de vinho que os índios bebem, preparado com muitas coisas. Põem os índios
a curtir em tinas grandes, algumas de 20 arrobas ou mais, uma espécie de papa espessa
que ferve nessas tinas à maneira de vinho da Espanha até que está feito; então o tiram e

118
Spix e Martius, 1976 (1828-9), (I): 199.
83

coam acrescentando-lhe um pouco de água e o bebem. É tão forte que embriaga se não
o temperam com bastante água. 119

Nem uma palavra sobre a ocorrência da insalivação. O mesmo Vásquez,

contudo, nos fala do masato dos Cocama: “a comida desses índios é algum milho e

muita mandioca doce e batatas; têm macato, que é mandioca ralada a apodrecer em

buracos debaixo da terra, e dele fazem pão e uma certa bebida”. 120 Ora, o masato é feito

com parte da massa que sofre a insalivação, a qual é envolta em folhas (à maneira de

pamonhas) e colocada próxima ao teto ou em cima mesmo da cobertura das casas. A

massa fermenta, por ação de bactérias e fungos, e pode ser usada posteriormente para a

elaboração de bebidas. Também serve para ser levado em viagens ou simplesmente

diluído em água, como um mingau mais ou menos espesso.121

Este tipo de manipulação dos microorganismos, especialmente dos fungos, fica

bem esclarecido ao lermos o relato do jesuíta João Daniel. Em sua detalhada narrativa, o

missionário descreve o processo de fabricação do mocororó:

Põe estes bolos (de mandioca) na quantidade que querem sobre a palma, ou palha das
suas palhoças, como a fermentar, melhor diremos a apodrecer, já ao sol, e chuva, e já de
dia, e de noite até crearem bolor, e cabeleira, apodrecerem, e bem se azedarem. Em
chegando ao ponto de azedo (...) se ajuntam as velhas, e a bocados os vão mastigando
até os desfazerem em papas, e os vão deitando nas talhas até sua medida, e depois desta
asquerosa diligência lhes lançam ágoa (não sei se mais algum ingrediente) e está feita a
vinhaça, e a podem logo beber. 122

Esta descrição nos revela uma forma de bebida que representa uma transição

entre as cervejas insalivadas e as cervejas fermentadas unicamente pela ação dos fungos.

São estas bebidas as do tipo paiauru, definidas por Câmara Cascudo como “bebida

119
“Relação verdadeira de tudo o que sucedeu na Jornada de Omagua e Dorado que o Governador Pedro
de Orsua foi descubrir… Por um Rio que chamam das Amazonas…” (1909), in Porro, 1992: 91.
120
“Relação…”, in Porro, 1992: 87.
121
Lima, 1990: 228.
122
Daniel, 1976 (I): 212.
84

fermentada feita de beiju queimado”. 123 Estes beijus tostados recebem o nome de beiju-

açú (também chamados de catimpuera), os quais, deixados a mofar, servem de base

para as “estimulantes bebidas reservadas às funçanatas”. 124 São bebidas pouco

comentadas pelos viajantes e cronistas do período abordado nesta tese, e nem sempre

foram bem descritas 125 . Spix e Martius, por exemplo, as definem desta forma sucinta e

pouco informativa: “(...) mais complicado é o preparo do pajuaru, e dos beijus da

farinha de mandioca, ou desta última quando cozida em papa. Deita-se água sobre essa

massa e deixa-se ficar para a fermentação alcoólica”. 126

Em 1649, Joan Nieuhof, escrevendo sobre o Brasil holandês, registrou que aqui

se fabricava “uma cerveja muito boa e forte, dos bolos finos assados, que se fazem da

referida farinha (de mandioca) assada. Colocam-se três bolos em um vaso com água em

cada um e deixam-se fermentar juntos”. 127 No século seguinte, Alexandre Rodrigues

Ferreira, no diário de sua viagem pelo Rio Negro (1786), descreve melhor o uso da

massa mofada da mandioca, ao falar das bebidas indígenas embriagantes que deveriam

ser proibidas:

Tirado do forno o beiju guaçú, quando quente, e ensopados uns poucos d’elles em água,
os acamam no chão entre duas camadas de folha de amabauba, onde os deixam ficar por
4 até 5 dias até abolorecerem. Em elles tendo adquirido um sabor doce, os coam e
recolhem para dentro de grandes talhas, onde os deixam azedar, si o querem forte, ou o
bebm logo, si o querem doce. Para accelerarem a fermentação, costumam alguns índios
misturar-lhe algumas porções de beiju mastigado pelas velhas, cuja saliva promove a
fermentação aos termos do seu. 128

123
Câmara Cascudo, 1998: 659.
124
Pereira, 1974: 172
125
Para uma boa descrição, cf. Lima, 1990: 448-66.
126
Spix e Martius, 1976 (1828-9), (III): 198.
127
Joan Nieuhof, em nota de Alexandre Correia a Piso, 1948 (1648): 318.
128
Ferreira, 1983: 700.
85

Depreende-se deste texto que nem todos os índios acrescentavam massa

insalivada à bebida, alguns deles preferindo unicamente a ação sacarificante dos fungos.

Estes beijus tostados também são usados na fabricação da aguardente amazônica, a

tiquira 129 , da qual falaremos mais tarde, já que nesta bebida combinam-se a técnica

nativa de preparação e fermentação da mandioca, e a técnica européia da destilação.

Neste capítulo fizemos o esboço, muito sumário, de uma antropologia das

técnicas indígenas de fabricação de bebidas alcoólicas. Foi demonstrado que as bebidas

alcoólicas relacionavam-se profundamente com toda a infra-estrutura alimentar dos

povos nativos, apresentando-se, muitas vezes, como verdadeiras bebidas-alimento. É

hora, portanto, de abordar as formas pelas quais estas bebidas se inseriam nos sistemas

culturais indígenas, sua função como facilitador dos transes xamanísticos, seu papel nas

relações de gênero e seu uso como “lubrificante” social e regulador das expressões de

violência e inimizade.

129
Lima, 1990: 452.
CAPÍTULO III

HOMENS E MULHERES, AMIGOS E INIMIGOS:

AS BEBIDAS COMO UM SISTEMA CULTURAL

1. A Fermentação e a Origem da Cultura.

Os urubus foram deitar, pensando em fazer chicha.


O milho era deles, o feijão, a taioba, a fava.
Faziam chicha de todos esses produtos.
Macaxeira e cará não tinham. Só tinham os grãos.
Os urubus estavam fazendo muita chicha, porque
queriam matar Nonombziá. Iam tomar chicha e aspirar
rapé na festa, comer a carne de Nonombziá. Mas
Nonombziá já sabia, embora ninguém falasse com ele,
tinha conseguido descobrir com uma mulher urubu. 1

As seções precedentes apresentam uma abordagem que privilegia francamente os

aspectos infra-estruturais das bebidas, e existe uma sólida razão para isso. A

documentação disponível - notadamente os relatos de cronistas e viajantes e as cartas

jesuíticas - é bastante rica quando trata dos materiais e métodos de fabricação das

bebidas, permitindo até mesmo que se faça uma análise etnológica comparativa.

Não obstante, isto não ocorre quando nos deparamos com os aspectos simbólicos

dos regimes etílicos indígenas. Se, por um lado, os documentos são extremamente

1
Mito Jabuti do roubo do feijão e do milho por Nonombziá, in Mindlin, 1999: 113-4.
87

detalhados quando tratam da materialidade das práticas culturais, são também

decididamente parcos quando se referem aos sentidos destas práticas. Tais limitações

não representam, contudo, um obstáculo intransponível na tarefa de tentar desvendar

alguns daqueles sentidos que as bebidas possuíam para os povos nativos que estou

estudando. Para isso, a comparação etnográfica com os povos nativos contemporâneos é

vital, guardados os cuidados necessários a este tipo de metodologia.

É importante fazer este preâmbulo, na medida em que, ao privilegiar os aspectos

infra-estruturais, deliberadamente aceitei alguns riscos. O maior deles é o de se

considerar que, agindo desta maneira, esgotei o tema em suas dimensões mais

importantes. Dizendo de outra forma: poder-se-ia imaginar que, para os índios, os

modos de produção e preparação das bebidas fermentadas ocupem um lugar social

equivalente àquele que concedemos à economia dos alimentos e bebidas em nossa

própria cultura, um lugar abertamente secundário quando comparado ao valor que

concedemos à religião, à política ou à filosofia acadêmica.

Ora, nada mais distante da realidade do que isso. Os valores culinários – aí

incluídos as bebidas alcoólicas – possibilitam aos nativos a formulação de uma lógica

filosófica e social tão complexa quanto a nossa, uma metafísica das qualidades sensíveis

que compõe toda uma visão de mundo extremamente elaborada. Como foi dito a

respeito do canibalismo funerário dos Wari’: “esta é uma área da experiência humana

capaz de fornecer um conjunto de esquemas conceituais fundamentais, de operadores

lógicos de discriminação e organização da realidade natural e social. O caminho que vai

da panela ao conceito pode ser bem curto (...)”. 2

2
Viveiros de Castro, 1992: xiii.
88

Certamente seria um equívoco imaginar que apenas aquelas culturas

consideradas primitivas expressem suas visões de mundo através da culinária. Embora

este ponto de vista tenha servido de base para muitos estudos antropológicos, 3 o fato é

que, mesmo nas sociedades industrializadas, comidas e bebidas carregam consigo uma

forte carga cultural, transformando-as em um verdadeiro discurso social: afinal, não é

por acaso que consideramos a carne assada - como o churrasco - apropriada para o

consumo em ocasiões festivas, em que tomam parte pessoas alheias ao círculo mais

íntimo de parentesco, enquanto o cozido é considerado mais apropriado ao consumo

doméstico.

Distinções deste tipo nada têm de naturais ou utilitárias, sendo antes exemplos de

escolhas culturalmente determinadas. 4 Contudo, e sem encarar isto como uma

confirmação de primitivismo, é inegável que a culinária possui, nas culturas indígenas,

um “rendimento” sociológico e filosófico muito superior ao que ocorre nas sociedades

industriais. Relações cruciais para a existência do socius podem ser discutidas e

elaboradas - cerimonial e simbolicamente - através do que se come, e também do que se

bebe.

Estas elaborações simbólicas, por certo, não estão construídas sobre bases

cosmológicas semelhantes às ocidentais. Ao contrário da tradição judaico-cristã, em que

uma natureza reificada se opõe à humanidade consciente (a qual recebeu da divindade o

direito de usufruir daquela natureza), os povos nativos vêem os seres do mundo natural

como possuidores de características que consideraríamos humanas: os animais pensam

em si próprios como “humanos”, ou, melhor dizendo, como possuidores de uma

3
Mintz, 2001: 36.
4
Cf. Sahlins (1979: 185-99), para um comentário acerca do valor cultural dos alimentos nas sociedades
ocidentais.
89

perspectiva própria, casando-se, fazendo a guerra, produzindo o cauim, e observando os

homens (reais) como animais, como presas ou como inimigos.

Dentro deste modo de ver o mundo - que os antropólogos recentemente

passaram a denominar como perspectivismo, e que não se confunde em absoluto com

qualquer espécie de animismo 5 - as plantas representam um problema metafísico

importante. Embora não possuam, para a maioria das filosofias ameríndias, uma

“consciência” (ou “perspectiva”) equiparável à dos animais, as plantas podem

apresentar um potencial de ação (através dos venenos, por exemplo) que as aproximam

de uma posição de “sujeitos”.

Para os Wari’ (RO), por exemplo, algumas plantas podem possuir aquilo que se

chama jam, uma espécie de “duplo” ou “sombra” do ser real, e que pode provocar

doenças nos seres humanos. Esta é uma questão polêmica para os próprios xamãs Wari’

(os únicos que podem perceber a existência de um jam), que discutem a possibilidade de

um vegetal possuir esta característica. Alguns acham que as doenças são provocadas não

pelas plantas, que não possuiriam um jam, mas sim pelos animais que se alimentam

delas. O mais interessante, me parece, é que apenas os xamãs são capazes de perceber

que, para estes animais, as plantas não são apenas um alimento, mas também a sua

chicha. 6

Desta forma, independentemente da polêmica “selvagem” acerca do jam das

plantas, as bebidas fermentadas surgem como uma metáfora fundamental da relação

entre os seres que possuem uma ação consciente, sejam estes homens ou animais, e a

natureza. Para estes seres, a relação com a natureza é sempre transformadora, seja esta

transformação “real” ou não: assim, aquilo que vemos como uma onça comendo carne

5
Cf. Lima, 1996 e Viveiros de Castro, 2002b.
6
Vilaça, 1992: 59.
90

crua ou bebendo da água de um rio é, para os xamãs e para as próprias onças, um

indivíduo consciente comendo carne moqueada e consumindo chicha. As bebidas

fermentadas constituem-se, portanto, em um meio privilegiado de relação

transformadora com a natureza vegetal, e isto para qualquer sujeito possuidor de uma

perspectiva.

Para os Arara (PA), esta função transformadora das bebidas fermentadas atinge

um grau de complexidade realmente extraordinário, e uma breve discussão acerca de

sua filosofia etílica pode ser um bom guia para a compreensão do papel desempenhado

pela fermentação na visão de mundo dos povos nativos. Para estes índios –

“pacificados” definitivamente pela Funai apenas em 1987 – o universo é sustentado por

um constante fluxo de substâncias vitais, chamadas coletivamente de / kuru /. “Presentes

em todos os seres vivos do plano terrestre”, informa o etnólogo dos Arara, Márnio

Teixeira-Pinto, “as substâncias / kuru / circulam no mundo de forma precisa: se os

animais as têm é porque as tiraram de outros animais ou dos vegetais, que tiraram da

terra que, por sua vez, tirou dos animais mortos que jazem diretamente no solo”. 7

É um jogo de soma-zero, em que os seres do mundo exercem uma predação

generalizada, uns em relação aos outros, todos buscando sua cota da quantidade finita de

/ kuru / existente no cosmos. Ora, a forma privilegiada de acesso a estas substâncias

vitais, por parte dos homens, se dá através do consumo das bebidas fermentadas: “os

vegetais que usam na sua produção alimentam-se das substâncias que os animais

perderam para a terra”. 8 As diferentes maneiras de fabricar, consumir e repartir as

bebidas fermentadas definem o lugar social e mesmo cosmológico ocupado pelos

indivíduos que as consomem. Esta noção de uma “substância vital” é, aliás, bastante
7
Teixeira-Pinto, 1997: 160.
8
Teixeira-Pinto, 1997: 160. Nada a ver, portanto, com a rósea visão new age de autores como Stephen
Buhner, que vê na fermentação uma “dádiva dos deuses” para a humanidade: Buhner, 1998: 80.
91

comum entre outros povos indígenas, como os tupi Asuriní (PA), que vêem nos

fermentados o canal principal de transmissão do seu princípio vital, a ynga. 9

Embora não seja possível penetrar a fundo nas complexas minúcias da filosofia

etílica Arara, é importante notar como o paradigma / kuru / é usado na classificação e

nos diferentes graus de valorização concedidos às bebidas produzidas naquela

sociedade. Os Arara possuem dois tipos de bebidas fermentadas: um vinho produzido a

partir da seiva da palmeira inajá, o aremko 10 , e uma cerveja, o piktu, elaborada com

uma variedade de materiais, como a mandioca, o milho ou a banana. Em um nível

técnico, a diferença básica entre as duas bebidas está no uso, quando da elaboração do

piktu, da saliva como agente sacarificante, o que não ocorre com a seiva da inajá,

fermentada naturalmente.

Estas distinções, de origem e de técnica de fabricação, estão na base de uma

diferenciação simbólica central para a compreensão do papel das bebidas entre os Arara.

A produção do aremko exige um grande esforço coletivo, especialmente dos homens,

que constroem grandes andaimes com os quais atingem o alto das palmeiras, e grandes

traves com as quais transitam de uma árvore a outra, e de onde retiram a seiva

fermentada com uso de finos pedaços de bambu. O aremko é usado muito mais como

um aperitivo ou refrigerante, em virtude da pequena quantidade que é produzida, e é

uma bebida marcada por um caráter masculino.

O piktu, por seu turno, é produzido pela já conhecida técnica dos bochechos

(ibabuk, na língua Arara). A massa produzida a partir dos diferentes materiais utilizados

na fabricação das bebidas é bochechada por um grande número de pessoas – mulheres,

preferencialmente, mas também por homens – que a deitam em muitos recipientes, nos

9
Müller, 1993, 22.
10
Cf. p. 60.
92

quais descansa por cerca de três dias. Durante este período, acrescenta-se água até se

atingir a consistência e o grau de fermentação desejados. Tal como outras cervejas

nativas, o piktu é uma bebida marcada pelo signo feminino.

Mas a principal distinção simbólica está relacionada à quantidade de / kuru / que

pode ser obtida através destas bebidas. Neste sentido, o piktu é claramente preferido ao

aremko. Sendo obtido de árvores altas e distantes do chão, o aremko dispõe de muito

pouco / kuru /, ao contrário do piktu, produzido a partir de plantas mais próximas ao

solo. Aliás, o piktu de mandioca é considerado superior ao de milho, por exemplo, já

que sua matéria-prima está em contato direto com a terra depositária do / kuru /. Dizem

os Arara que, no princípio dos tempos, a vida era bem mais difícil, por não conhecerem

as técnicas de fabricação do piktu e estarem limitados ao consumo do aremko. 11

Faz-se necessário o máximo cuidado ao se tentar extrair uma conclusão

generalizante a partir do material etnográfico Arara, e não apenas por conta das

obrigatórias ressalvas que devem ser feitas quando se comparam povos nativos

contemporâneos e os índios do passado. Mesmo entre os contemporâneos podemos

encontrar diferenças marcantes na apreensão cultural das bebidas fermentadas. 12 Mas é

importante perceber que os Arara constroem uma gradação de valor para as bebidas que

está diretamente ligada à maior ou menor complexidade dos processos de fermentação,

e a conseqüente possibilidade de obtenção das substâncias / kuru /.

Um outro exemplo etnográfico importante a respeito dos valores metafísicos

envolvidos na fermentação nos é dado pelos Piro, povo da Amazônia peruana. Na

cultura Piro os padrões de decoração, de corpos e objetos, ocupam um lugar central, e

organizam conceitualmente as relações dos Piro com a natureza e com os outros,


11
Teixeira-Pinto, 1997: 58-9.
12
Recorde-se, por exemplo, o caso Parakanã, em que o cauim é produzido a partir de amêndoas coletadas,
jamais da mandioca. Cf. p. 61.
93

inimigos e afins. Estes padrões, os yonchi, são desenhos - que qualificaríamos de

“geométricos”, embora os Piro não possuam este conceito - feitos pelas mulheres nos

vasos cerâmicos, no vestuário e nas próprias pessoas. 13

A noção Piro de “beleza” (giglenchi), expressa a partir da competência técnica e

estilística na realização destes padrões, é um operador conceitual fundamental: desta

forma, os povos vizinhos são classificados em escalas valorativas de acordo com sua

proficiência artística. Os Piro se consideram mais próximos em “substância” de povos

como os Conibo e Shipibo, cujos padrões são qualificados como superiores aos seus

próprios, do que aos seus vizinhos imediatos, Campa e Machiguenga (com os quais se

casam preferencialmente), que não têm padrões ou, quando os têm, são considerados

“feios”. 14

Os yonchi também operam na vida quotidiana, organizando, por exemplo, os

objetos de uso prático: as tigelas de cerâmica podem ou não possuir os yonchi, de

acordo com o valor concedido à atividade relacionada a cada tipo de tigela. As tigelas

usadas para a fermentação da cerveja, assim como aquelas reservadas ao consumo das

bebidas, devem, necessariamente, possuir os padrões, enquanto as panelas de cozinhar

jamais os recebem. 15

O correlato negativo dos yonchi é representado pelas manchas desorganizadas,

fortuitas e sem padrões, chamadas coletivamente de kasoliru, ou “manchadas”. São

consideradas feias, repugnantes e associadas à podridão, sendo representadas pelas

manchas de um cadáver em putrefação, das roupas manchadas de mofo, ou daquelas

provocadas por doenças de pele. Contudo, e este é um ponto crucial, o termo kasoliru é

extremamente valorizado, e dito com grande prazer, quando se refere às manchas


13
Gow, 1999: 302.
14
Gow, 1999: 304-5.
15
Gow, 1999: 303.
94

produzidas pela espuma da fermentação da cerveja: para os Piro, a “podridão” induzida

pela fermentação ocupa um status categórico diametralmente oposto a outras formas de

apodrecimento. 16

Este valor de base concedido à fermentação configura um tipo de relação

simbólica com a natureza claramente distinta daquela que encontraremos, por exemplo,

nas mitologias indo-européias e do Oriente Próximo, em que a fertilidade da terra e as

técnicas de cultivo servem como metáforas da divindade (lembremos de Adonis, Cíbele

ou Osíris). Para os Arara, Piro e outros povos indígenas, é a fermentação (e a caça) que

são privilegiadas como chaves para sua relação com o mundo natural, relação esta que

sempre se apresenta como uma predação. 17

É interessante comparar esta visão de mundo com a forma pela qual os antigos

hebreus – cultura fundamental para a compreensão da própria civilização ocidental que

se chocou com os povos nativos a partir dos descobrimentos – trataram a fermentação, o

que permite perceber o enorme hiato existente entre o Velho e o Novo mundos no que

tange ao lugar social das bebidas fermentadas. Não obstante o fato de que os hebreus

fossem uma sociedade mediterrânica, que produzia e consumia o vinho como parte

integrante de sua vida cotidiana, eles também delimitavam claramente o seu uso,

proibindo-o a todos aqueles que exercessem uma função sagrada.

Como determina o Levítico (10, 9-10): “vinho nem bebida forte tu e teus filhos

não bebereis, quando entrardes na tenda da congregação, para que não morrais; estatuto

perpétuo será isso entre a vossas gerações; para fazerdes diferença entre o santo e o

profano e entre o imundo e o limpo”. A proibição e separação radicais estabelecidas

16
As manchas do mel também são valorizadas: Gow, 1999: 305.
17
Como afirmou, a este respeito, Eduardo Viveiros de Castro (1993: 185): “(...) as sociedades
amazônicas, tecnologicamente ‘neolíticas’, são ideologicamente ‘paleolíticas’: seu paradigma da
produção e da reprodução não é o casamento fecundo com a terra-mãe, mas a predação canibal,
cinegética e guerreira, entre inimigos-afins”.
95

entre a esfera sagrada e o consumo do vinho, que prenunciam o olhar crítico dos jesuítas

em relação ao amor dos índios pelas bebidas alcoólicas, estão diretamente ligadas à

identificação da fermentação com a impureza. Enquanto processo de apodrecimento 18 , a

fermentação conspurca alguns dos princípios fundamentais da cultura religiosa hebraica.

O próprio Levítico (2, 11) deixa isto claro, ao explicar as razões da proibição do vinho e

de outros alimentos fermentados, como o pão: “nenhuma oferta de manjares, que

fizerdes ao Senhor, se fará com fermento: porque de nenhum fermento, e de mel

nenhum, queimareis por oferta ao Senhor”.

Ao tratar das práticas culinárias hebraicas, Jean Soler esclareceu as sólidas

razões religiosas que estão por trás desta aversão litúrgica à fermentação:

Para ser comestível pelo homem, um animal deve respeitar o lugar que lhe foi fixado no
plano da Criação, e o homem, para se alimentar, não deve fazer nada que possa
perturbar essa ordem. (...) Esse respeito com a Criação também tem como conseqüência
o princípio que estabelece que um alimento vegetal é tanto mais puro quanto mais
próximo ele é do seu estado original. Os alimentos derivados, que passaram por uma
elaboração modificando seu sabor natural, ainda que sejam comestíveis, não podem
fazer parte dos sacrifícios. (...) Nas oblações (sacrifícios de produtos vegetais pelo
fogo), oferece-se farinha ou pão sem levedura, mas nunca o pão fermentado. 19

Seria um erro olvidar o fato de que os regimes etílicos europeus do período

moderno são oriundos de diversas fontes e influências. Gregos, latinos, celtas e nórdicos

possuíam suas próprias tradições etílicas que, muitas vezes, chocavam-se frontalmente

com a tradição judaica, como se depreende, aliás, do uso do vinho no ritual cristão. Mas

também é necessário reconhecer que os escritos do Velho Testamento são cruciais para

a compreensão das mentalidades envolvidas na empresa colonizadora, especialmente a

dos jesuítas e de outros missionários, como veremos nos próximos capítulos.

18
É oportuno lembrar que o vocábulo tupi pur significa “apodrecer” e está na base da palavra puba, ou
farinha fermentada: cf. p. 75.
19
Soler, 1998: 87.
96

Não se pode deixar de utilizar este momento para reafirmar o caráter de

positividade que as filosofias ameríndias conferem à fermentação. Como sabemos,

desde as Mythologiques de Lévi-Strauss, as filosofias nativas classificam os modos de

preparação dos alimentos em um gradiente construído sobre a maior ou menor

elaboração cultural desta preparação. Abomina-se, desta forma, o consumo de alimentos

crus (ou mesmo da água pura) por ser esta prática própria dos animais e dos seres não

humanos.

Em contraste, aquelas formas mais elaboradas de preparação culinária – no caso

da carne, o moqueado e, principalmente, o cozido – são consideradas as mais próprias

ao consumo humano. Mesmo no interior desta classificação existe uma distinção

importante: assim, o moqueado – em que a carne é apenas suspensa acima do fogo – é

considerado uma prática culturalmente “inferior”, quando comparado ao cozido, em que

o alimento é separado do fogo por um produto eminentemente cultural: a cerâmica. Não

é por acaso que, nas sociedades tupis, a carne moqueada é, idealmente, consumida por

homens e oferecida aos estranhos (afins e aliados), enquanto o cozido é a forma de

consumo doméstica e feminina por excelência. Recorde-se, a propósito, que nos festins

canibais cabia às mulheres, velhos e crianças o consumo da carne cozida, enquanto que

as partes assadas eram ingeridas pelos avás, os guerreiros adultos. 20

Ora, as diferentes formas de apodrecimento ocupam aqui um lugar dos mais

interessantes. O apodrecimento e seu correlato, a fermentação, constituem-se em uma

forma de elaboração dos alimentos, caracterizando assim uma prática que se distancia

do consumo dos alimentos crus. Deixar apodrecer, ou favorecer este apodrecimento

através da fermentação, é uma atividade inacessível à maioria dos animais, com exceção

20
Staden, 1974 (1557), 183-4; cf. Fernandes, 2003: 97.
97

de carniceiros como os urubus que, não por acaso, ocupam muitas vezes uma posição

privilegiada nos mitos de origem da cultura, como doadores de bens culturais como o

fogo e o cultivo da mandioca.

É importante desenvolver este ponto. Para os gregos, o fogo era uma propriedade

de Zeus, que não permitia o acesso dos homens a este fundamento da cultura, e foi

apenas através da coragem e iniciativa (severamente punidas) de um homem, Prometeu,

que os humanos puderam escapar à selvageria e ao consumo dos alimentos crus. Ora,

para índios como os Asuriní (PA) são os urubus que ocupam a posição de dono original

do fogo. Diferentemente do mito grego, contudo, os homens tiveram que passar através

do casamento e de uma personagem feminina para ter acesso à cultura. Um homem, um

avá, casou-se com a irmã do urubu, a garça branca (uirasinga), que preparava, com o

fogo, o mingau fermentado. Foi através deste casamento que aquele homem conheceu e

transmitiu o conhecimento do fogo, evento mítico que é permanentemente recordado no

ritual xamanístico maraká, em que uma mulher (a uirasimbé), representando a garça

primordial, ocupa um lugar tão importante quanto o próprio xamã. 21

Nada representa melhor esta fermentação transformadora, e a distinção entre a

humanidade e a natureza / sobre-natureza, do que as bebidas alcoólicas. Estas, tal como

a farinha ou a carne cozida, ocupam o papel de alimentos culturais por excelência,

absolutamente fundamentais para a construção da identidade humana. Quando um

Wari’, por exemplo, mata um inimigo, torna-se um ser extremamente perigoso,

“animalizado” e agressivo, e cheio do sangue do inimigo. Ao chegar à aldeia, o matador

é imediatamente pintado de urucum – e, posteriormente, untado com sangue de caititu -

e colocado em uma rígida reclusão, envolta em um sem número de interdições

21
Müller, 1993, 183.
98

alimentares, de forma bastante semelhante ao que acontecia com os Tupinambá que

matavam os inimigos no rito antropofágico.

Neste período, a chicha doce de milho, produzida e servida pelas mulheres, é seu

principal alimento: bebem sem parar, de dia e de noite, dizendo “Omka pi’ am ürüt pain

xim. Tok ürüt pain ximiai xim” 22 . Como nos diz, a este respeito, Aparecida Vilaça:

A chicha é fundamental para que o matador engorde: se não beber, não engordará,
mesmo tendo dentro de si o sangue do inimigo morto. Alimento cultural por excelência
(os jamikarawa, enquanto humanos, são bebedores de chicha 23 ), a chicha parece
promover a ‘culturalização’ interna desse sangue incorporado, da mesma forma que o
urucum e, posteriormente o sangue do caititu, o ‘culturalizam’ enquanto exudação
cutânea. A ingestão de chicha permite a elaboração desse sangue de modo que ele possa
ser plenamente incorporado, tornado o próprio corpo do matador, que engorda. 24

Os exemplos Wari’, Asuriní ou Arara mostram, à exaustão, que não se deve ver

as bebidas alcoólicas unicamente a partir de um aspecto alimentar ou recreativo. Fica

bem evidente, me parece, que ao embriagar-se nas cauinagens, índios como os

Tupinambá não estavam simplesmente buscando o lúdico ou a embriaguez, mas sim

construindo e reconstruindo cotidianamente sua humanidade, a qual somente era

possível através de uma permanente atividade de transformação e humanização dos

objetos da natureza. Ao contrário dos sacerdotes hebraicos, em sua vigília eterna contra

a “impureza”, os índios no Brasil buscavam – e buscam – na fermentação exatamente a

“pureza” de sua condição humana.

22
“Nós não dormimos à noite. Nós bebemos no meio da noite”.
23
Jamikarawa são animais perigosos e agressivos, como as onças, que podem matar os humanos. Os
xamãs possuem a capacidade de observar estes animais enquanto “humanos”, isto é, como sujeitos
possuidores de uma perspectiva.
24
Vilaça, 1992: 110.
99

2. As Bebidas Como Signos da Diferença.

Nonombziá virou mulher velha,


mulher velha virou o corpo de Nonombziá.
Assim disfarçado, ouviu outra mulher dizendo
que iam ficar alegres, misturar, fazer chicha
para tomar com a carne dele.
Uma mulher estava trabalhando para fazer massaco,
milho torrado, pisado no pilão de pedra, tuk, tuk.
Explicou a Nonombziá que as mulheres casadas iam
comer a carne de Nonombziá misturada com massaco,
tomar chicha também. 25

Apesar da importância de se observar as beberagens nativas a partir de seu lugar

na infra-estrutura nutricional e de sua posição metafísica nas culturas indígenas, não se

pode esquecer que as bebidas exercem um papel crucial nos sistemas sociais, seja como

marcadores das diferenças de status e de gênero, seja como instrumentos de mediação

entre posições hierarquicamente distintas. Deve-se notar que a produção, distribuição e

consumo das cervejas e outras bebidas nativas são indissociáveis da estrutura social em

que são elaboradas, e estão umbilicalmente ligadas aos sistemas hierárquicos presentes

em cada sociedade. No caso da maioria das sociedades indígenas no Brasil, estes

sistemas hierárquicos podem ser considerados como politicamente igualitários, na

medida em que suas principais clivagens se dão em torno de divisões por gênero e

idade.

25
Mito Jabuti do roubo do feijão e do milho por Nonombziá, in Mindlin, 1999: 114.
100

Contudo, nem todas as sociedades indígenas apresentam esta característica

igualitária. Os registros arqueológicos, etnográficos e históricos nos mostram uma série

de sociedades ameríndias que construíram sistemas hierárquicos mais complexos e

estratificados, mas que não deixaram de ter nas bebidas fermentadas um elemento

fundamental de suas estruturas sociais. Alguns exemplos desta imbricação entre as

bebidas e os diferentes contextos sociais nos são oferecidos pelas chamadas “altas

culturas” sul-americanas. Na região dos Andes e na costa do Pacífico desenvolveram-se

civilizações que valorizavam em alta medida as bebidas alcoólicas, no caso a cerveja

(chicha) de milho. Estas chichas (maltadas, e não insalivadas) cumpriam vários papéis

nos sistemas alimentares, hierárquicos e de reciprocidade, papéis que variavam

enormemente, de acordo com a identidade e posição social de seus produtores e

consumidores.

A arqueologia e os dados etno-históricos mostram que existiam pelo menos três

tipos diferentes de contexto social envolvendo a produção e o consumo da chicha. 26

Temos um tipo de produção doméstica, feminina, não-especializada, e relacionada às

atividades quotidianas, de forma semelhante à que encontramos entre os nativos no

Brasil, e base para o enorme consumo popular da cerveja de milho. 27 Um segundo tipo,

presente na costa peruana, envolve uma produção altamente especializada – e, de forma

algo surpreendente, masculina 28 – em localidades isoladas das áreas cultiváveis. Estes

chicheros exclusivos trocavam sua produção por alimentos, têxteis e outros produtos

necessários à sobrevivência.

26
Moore, 1989: 688-9.
27
Bauer, 1999: 416-21.
28
Pode-se estabelecer o gênero dos produtores a partir dos relatos históricos e do contexto arqueológico:
assim, restos materiais da produção da chicha (como os jarros para a fermentação) podem estar
associados a restos de atividades sabidamente masculinas (como a pesca, no caso da costa peruana), ou
femininas, como é o caso da tecelagem: Moore, 1989: 689.
101

O exemplo mais interessante, contudo, nos é dado pelos Estados andinos. Neste

caso, a chicha ocupa um lugar fundamental, seja no âmbito ritual, econômico ou

político. Os Estados pré-incaicos Huari e Tihauanaco compartilhavam rituais de

embriaguez coletiva que ajudavam a cimentar as relações entre superiores e inferiores

hierárquicos, rituais em que grandes quantidades de chicha eram consumidas, em

primorosos vasos especialmente confeccionados para este fim. 29 Esta característica de

“lubrificante social” foi amplamente utilizada pelos Estados andinos, em especial o dos

Incas: seus soberanos utilizavam a chicha como pagamento das atividades laborais

compulsórias (corvéia) de camponeses e povos tributários, e para estreitar laços

políticos com chefes locais, cuja fidelidade era reafirmada em brindes mútuos de

chicha. 30

O uso da chicha pelo Estado Inca se baseava no terceiro tipo de produção: a

fabricação da cerveja pelas artesãs especializadas, chamadas de “mulheres escolhidas”

(mamakuna ou accla), escolhidas entre as populações tributárias, e cujo trabalho

permitia aos soberanos incas exercitar seus muitos deveres de hospitalidade e

reciprocidade, os quais, dada a extraordinária dimensão geográfica e humana do

império, alcançavam níveis que somente poderiam ser satisfeitos a partir de uma

produção em larga escala. 31

Estes exemplos nos mostram como processos de fabricação semelhantes podem

assumir características sociológicas muito distintas, de acordo com os agentes e

contextos envolvidos. No caso das sociedades indígenas no Brasil, também

encontraremos uma íntima relação entre o consumo das bebidas e suas estruturas

29
De acordo com o que foi descoberto no sítio de Cerro Baúl, na fronteira entre o Peru e a Bolívia:
Williams, 2000.
30
Bauer, 1999: 433; Moore, 1989: 685.
31
Bauer, 1999: 429; Moore, 1989: 688.
102

sociais, menos estratificadas do que as sociedades comentadas acima. Por certo, nem

todas as sociedades nativas no Brasil eram igualitárias, e aquelas que apresentavam

divisões de castas ou estamentais também se valiam das bebidas enquanto símbolos

hierárquicos. Este é o caso dos Bauré, índios que habitavam regiões próximas ao Alto

Xingu, em princípios do século XVIII. Segundo Alfred Métraux: “os caciques Bauré,

chamados arama, formavam uma casta aristocrática (...) e só um filho seu de mãe nobre

tinha o direito de sucedê-lo. Os caciques não trabalhavam, e recebiam alimento e bebida

de seus súditos”. 32

É de se imaginar que aquelas culturas altamente complexas que se

desenvolveram na Amazônia, como a do Tapajós e a Marajoara, também reservassem

um lugar importante para as bebidas alcoólicas em seus sistemas hierárquicos, mas a

comprovação desta hipótese específica dependeria de pesquisas arqueológicas. No caso

daquelas sociedades conhecidas a partir da documentação histórica e da pesquisa

etnológica, destaca-se o exemplo dos Guaicuru, caçadores-coletores que desenvolveram,

a partir dos séculos XVI e XVII, uma sociedade fortemente hierarquizada e

expansionista com base na domesticação dos cavalos extraviados dos espanhóis, e na

utilização destes como arma de guerra contra povos nativos vizinhos, como os Terena,

Chamacoco e Guaná. Em suas cerimônias, o hidromel era fartamente consumido, em

bebedeiras rituais nas quais se reafirmavam hierarquias e laços de dependência:

(...) o nascimento das crianças de alta estirpe constituía uma oportunidade para a
realização de festas que se repetiam em todas as fases do seu crescimento: o desmame,
os primeiros passos, a participação nos jogos, etc. Os arautos proclamavam os títulos da
família e profetizavam ao recém-nascido um futuro glorioso; designava-se outro bebê,
nascido no mesmo momento, para se tornar o seu irmão de armas; organizavam-se
beberetes, no decurso dos quais o hidromel era servido em vasos formados por chifres

32
A. Métraux, apud Heckenberger, 1999: 145.
103

ou crânios; as mulheres, utilizando o equipamento dos guerreiros, enfrentavam-se em


combates simulados. Os nobres, sentados de acordo com a sua estirpe, eram servidos
pelos escravos, que não tinham o direito de beber, a fim de ficarem capazes de ajudar os
seus donos a vomitar, em caso de necessidade, e de tomarem conta deles, até
adormecerem, na expectativa das visões deliciosas que a embriaguez lhes traria. 33

Não obstante exemplos deste tipo, o fato é que a maioria das sociedades

indígenas encontradas pelos europeus e seus descendentes no Brasil se organizava em

torno de distinções mais simples e igualitárias, das quais as diferenças de gênero eram,

sem dúvida, as mais significativas. Neste sentido, chama a atenção o caráter

marcadamente feminino das bebidas fermentadas. Na maioria das sociedades indígenas,

estas são produzidas exclusivamente pelas mulheres, que fornecem o trabalho agrícola

ou de coleta necessário, fabricam e decoram os recipientes apropriados ao preparo das

bebidas e, em última análise, influenciam decisivamente sobre sua utilização. A

exploração desta característica feminina representa uma interessante porta de entrada

para a compreensão do papel ocupado pelos fermentados alcoólicos nos sistemas

culturais nativos. 34

O tema das relações de gênero nas sociedades “primitivas” é um campo marcado

por disputas epistemológicas e preconceitos científicos, mas existe uma concordância

geral em que a antropologia, durante boa parte de sua história, relegou a um segundo

plano o papel social das mulheres. 35 Os antropólogos ocidentais, homens em sua

maioria, muitas vezes sucumbiram a um duplo “viés masculino” em seus trabalhos,

unindo seus próprios preconceitos àqueles de seus informantes nativos, também

majoritariamente homens. Desta forma, as figuras paradigmáticas do caçador, do

33
Lévi-Strauss, 1986, 176.
34
“Enquanto produto marcado, prática e simbolicamente, pela feminilidade, as bebidas poderão nos guiar
na elucidação da natureza das relações de gênero nas sociedades amazônicas”: Viveiros de Castro, 1992:
XVI-II.
35
Fernandes, 2003: 30-41; Lasmar, 1999.
104

guerreiro e do xamã constituíram-se nos símbolos daquelas atividades e esferas sociais

mais valorizadas, e conseqüentemente mais estudadas, naquelas sociedades.

Não obstante, a etnologia contemporânea, e mesmo a documentação histórica,

revelam claramente que, àquelas imagens representativas da dominação masculina,

poderíamos perfeitamente acrescentar as figuras da ceramista, da produtora de bebidas e

das “velhas canibais”, mulheres de grande prestígio que comandavam o festim

antropofágico, rito central para os povos que receberam em primeiro lugar o impacto da

invasão européia. 36 Dentro deste complexo cultural (cerâmica / bebidas / canibalismo),

a produção dos diversos tipos de cauins ocupava um lugar de destaque, e representava

um importante meio para a obtenção de posições de prestígio por parte das mulheres,

como ainda hoje ocorre entre os índios sul-americanos. Deve-se notar, aliás, que as duas

práticas tecnológicas mais “avançadas” – segundo um ponto de vista ocidental –

disponíveis à maioria das sociedades indígenas no Brasil eram apanágios femininos: a

fabricação das cerâmicas e a manipulação dos microorganismos responsáveis pela

fermentação.

Os primeiros cronistas observaram que a fabricação das cerâmicas era uma

atividade altamente valorizada entre as mulheres Tupinambá, e deixaram-nos relatos

vivos a respeito de suas técnicas de manufatura, que é bem conhecida através do

registro arqueológico. 37 Hans Staden deixou-nos uma descrição do processo:

36
Algumas interpretações historiográficas recentes tratam a figura da mulher canibal como um produto
direto do imaginário europeu, desconsiderando o valor etnográfico dos relatos do período colonial (cf.
Fleischmann et al., 1990-1; Raminelli, 1994: 257-8 e 1997). Cf. Fernandes (2003: 142-67) para uma
abundante demonstração documental acerca do papel central das mulheres no ritual antropofágico, e
Forsyth (1983), para uma consistente defesa do caráter etnográfico daqueles relatos.
37
A cerâmica Tupinambá faz parte do que os arqueólogos chamam Tradição Tupiguarani, e era fabricada
através da técnica do acordelamento (também chamada de roletado ou anelado) a qual consiste na
preparação de cilindros de argila, os roletes, que são colocados um em cima do outro; uma pressão dos
dedos realiza depois a junção entre cada linha, partindo-se então para o cozimento: Prous, 1992: 91.
105

As mulheres fabricam as vasilhas de que carecem do seguinte modo: tomam barro,


amassam-no e fazem então as vasilhas que querem ter. Depois as deixam secar durante
algum tempo. Sabem também pintá-las com gosto. Quando querem queimar as vasilhas,
debruçam-nas sobre pedras, põem aí bastante cortiça sêca, que ateiam. Assim se
queimam as vasilhas, de modo que incandecem como ferro em brasa. 38

“Sabem também pintá-las com gosto...”; de fato a decoração da cerâmica era

uma forma artística crucial para os Tupinambá, e constituía-se em base para exibições

de virtuosismo técnico por parte das mulheres:

Estas mulheres, a partir de certas tinturas acinzentadas próprias para tal, fazem com
pincéis um sem número de pequenos e graciosos enfeites, como guilochis, las d’amours
e outras coisas delicadas no interior destas vasilhas de barro, principalmente naquelas
onde se guarda a farinha e as carnes. Assim é tudo servido com muito asseio; diria
mesmo que de forma mais decente do que aqueles que para isto não possuem senão
vasilhas de madeira. 39

Este virtuosismo dependia de um longo aprendizado, e somente estava

disponível àquelas mulheres mais velhas que obtinham, desta maneira, um grande

prestígio. Gabriel Soares de Souza confirma esta posição especial ocupada pelas

Uainuy, as velhas Tupinambá:

(...) as que são muito velhas têm cuidado de fazerem vasilhas de barro à mão como são
os potes em que fazem os vinhos, e fazem alguns tamanhos que levam tanto quanto uma
pipa, em os quais e em outros, menores, fervem os vinhos que bebem; fazem mais estas
velhas, panelas, púcaros e alguidares a seu uso, em que cozem a farinha, e outros em
que a deitam e em que comem, lavrados de tintas de côres; a qual louça cozem numa

38
Staden, 1974 (1557): 165.
39
Léry, 1975 (1578), 277; embora esteja trabalhando com a única (infelizmente) tradução da obra de Léry
disponível em português, de Sérgio Milliet (edição de 1960, São Paulo, Livraria Martins) fui forçado a
usar, neste trecho, o texto original, em virtude dos defeitos de tradução. Milliet traduz a expressão las
d’amours por “lavores eróticos” (p. 210), o que é totalmente equivocado: las d’amours significa, no
francês quinhentista, os desenhos geométricos do tipo “gregas”, encontrados, em abundância, no registro
arqueológico dos Tupinambá (Prous, 1992: 55). Quanto a Guilochis, significa “desenho formado de
linhas e traços que se cruzam com simetria” (Léry, 1975 (1578): 408).
106

cova que fazem no chão; e põem-lhe a lenha por cima; e têm e crêem estas índias que se
cozer esta louça outra pessoa, que não a que a fez, que há de arrebentar no fogo. 40

Ora, as cerâmicas recebem tratamentos diferenciados, de acordo com a sua

utilização. Como foi visto em relação aos Piro, panelas destinadas ao uso quotidiano não

são tão valorizadas, e portanto são menos elaboradas e decoradas, do que aquelas

destinadas à fermentação das cervejas. Isto ocorre porque as duas atividades –

fabricação de cerâmicas e de cerveja – estão diretamente relacionadas à expressão

feminina e à busca de prestígio social por parte das mulheres.

Tratando dos Desâna (Tukano), do alto Rio Negro, Berta Ribeiro nos mostra a

importância, para as mulheres, da proficiência na fabricação dos cauins:

(...) existe certa competição entre as mulheres quanto a obter um caxiri mais ou menos
forte ou com melhor sabor. Em função disso e de sua disposição a enfrentar tamanha
tarefa, bem como do prestígio da família na comunidade, conseguem maior ou menor
cooperação. 41

Stephen Thompson, referindo-se aos Cubeo da Amazônia Ocidental, aponta o

fato de que a fabricação da chicha requer um aumento considerável na quantidade de

trabalho feminino, porém “entre muitos grupos este trabalho adicional é inteiramente

voluntário” já que significa a possibilidade de ascensão a posições de prestígio

associadas à proficiência no cultivo da mandioca e no fabrico da bebida. 42

Contudo, esta relação privilegiada das mulheres com a fermentação não é apenas

fruto de um cálculo de obtenção do prestígio social. O ponto fulcral é a profunda

imbricação entre a fabricação das bebidas e a posição metafísica ocupada pelas

mulheres na visão de mundo das sociedades indígenas. O lugar especial ocupado pela

40
Souza, 2000 (1587): 272. Lévi-Strauss (1986b: 37) lembra que entre os Jivaro “para merecer um
marido bom caçador, uma mulher tem de saber fabricar uma louça de qualidade, para cozinhar e servir a
caça. Mulheres incapazes de fazer cerâmica seriam, realmente, criaturas malditas”.
41
Ribeiro, 1995: 148.
42
Thompson, 1977: 909.
107

fermentação nas relações de gênero destas sociedades é exemplificado à perfeição

quando pensamos na equiparação, feita por muitas culturas nativas, entre o cauim e o

sêmen.

Eduardo Viveiros de Castro observou, entre os Araweté (Tupi), uma interessante

correlação entre o sêmen e o cauim, que me parece crucial para a compreensão da

imbricação profunda entre os regimes etílicos indígenas e as relações de gênero. Para os

Araweté, o sêmen parte dos homens para as mulheres, e “fermenta” em suas barrigas,

produzindo as crianças. 43 Por sua vez, o cauim parte das mulheres - as quais o

“fertilizam” com sua saliva, e o “fervem” nas cerâmicas (outro produto feminino) – para

os homens, os principais bebedores. O esperma é “azedo como o cauim”, dizem as

mulheres Araweté, apontando a relação sêmen / cauim como um elemento fundamental

para a construção quotidiana de seu mundo. 44 No ritual Arara do ieipari – em que o

inimigo é representado por um tronco que é agredido pelos homens, abraçado pelos

“afins” e tratado sexualmente pelas mulheres, que roçam suas vaginas contra ele – uma

panela de cerveja é colocada aos pés do tronco, para que as mulheres a bebam, dizendo

“estou bebendo um filho... bebo um recém-nascido”, em uma óbvia identificação da

cerveja com o sêmen do inimigo. 45

Esta relação de troca entre estas substâncias “vitais” fica ainda mais evidente

quando pensamos na complexidade da filosofia etílica dos Arara, e nas implicações

desta filosofia em suas formas de classificação social. Como vimos anteriormente, o

mundo Arara se funda em um permanente intercâmbio das substâncias vitais (kuru)

43
Lembremos que para os Tupinambá, as mulheres eram vistas como “recipientes” para a formação das
crianças (“y no (casam) ansí la (filha) del hermano, que es como hija, porque tienem para sí que el niño
no recibe carne de la madre, que es como un sacco, sino del padre”. Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio
de Loyola, Roma [Piratininga, 08/06/1556] in Leite, 1954 [II]: 292).
44
Viveiros de Castro, 1986: 343.
45
Teixeira-Pinto, 1996: 93.
108

entre os seres do mundo, e isto também ocorre quando se trata da relação entre sêmen e

cauim, isto é, entre homens e mulheres. Para os Arara, uma criança só pode ser formada

através de múltiplas cópulas, já que a quantidade de substância masculina, de sêmen

(ekuru), é insuficiente em uma única relação. 46

Às mulheres cabe alimentar o feto através de suas próprias substâncias: o seu

sangue (imankuru), e o seu leite, chamado sintomaticamente de monukuru, ou “sêmen

do peito”. Enquanto atos complementares, fazer um filho e alimentá-lo são cruciais na

definição do relacionamento entre os genitores e seus filhos, e todo indivíduo Arara se

reconhece como fruto de uma dupla herança: as partes “duras” e “secas”, como os ossos,

são oriundas dos pais, enquanto as “úmidas” e “moles”, como o sangue e as vísceras,

provêm das mães. Esta distinção entre duro/seco :: mole/úmido como signo das

diferenças de gênero perpassa todo o sistema de classificação social: assim, os homens

são “duros” e “secos” como a carne moqueada que preparam, enquanto as mulheres são

“úmidas” e “moles” como as bebidas fermentadas que produzem. 47

É também importante perceber que, apesar de todo o prestígio da carne como

alimento e da cinegética como prática social, são os alimentos vegetais que são

considerados como os verdadeiros alimentos. Dizem os Arara que “ter mãe é melhor

porque ela prepara toda a comida”, 48 e realmente os vegetais, e as bebidas produzidas a

partir destes, são cruciais para a obtenção das substâncias vitais, como vimos

anteriormente. Esta relação íntima das mulheres com os vegetais representa uma

46
Isto faz com que, ao contrário dos Tupinambá, seja aceitável aos Arara a existência de vários “pais”, de
acordo com o número de homens que participou da transmissão do ekuru para uma determinada criança:
Teixeira-Pinto, 1996: 242. Os tupi Asuriní também aceitam a paternidade múltipla: “(...) e quanto mais
sêmen ela (a mulher) consegue para o feto, melhor, mais forte será o bebê” (Muller, 1993: 67).
47
Teixeira-Pinto, 1996: 243.
48
Teixeira-Pinto, 1996: 243.
109

importante distinção de gênero, que nos aproxima mais um pouco de uma compreensão

do caráter feminino das bebidas fermentadas.

Os Achuar, povo Jívaro da Amazônia equatoriana, relacionam-se com a natureza

a partir das mesmas noções de consangüinidade e afinidade que se utilizam em suas

relações sociais: assim, os homens tratam os animais caçados como “cunhados”, 49 em

uma relação difícil e perigosa, enquanto as mulheres tratam as plantas que cultivam

como consangüíneas, como crianças com as quais se conversa e se acompanha até a sua

maturidade. 50 Ora, esta função de “mães” das plantas traz às mulheres responsabilidades

tão grandes quanto a maternidade real, mas também infinitas possibilidades de

expressão social, especialmente quando se trata de extrair das plantas aqueles princípios

vitais obtidos através da fermentação.

È o que ocorre, por exemplo, quando as mulheres Asuriní participam do ritual do

maraká, em que um dos pontos centrais, tão importante quanto a comunicação entre o

xamã e os espíritos através do tabaco, é justamente a transformação, que é uma

verdadeira transubstanciação, do cauim na substância vital yinga. Herdeira da garça

branca, que transmitiu o fogo ao homem, a mulher que exerce a função de uirasimbé

acrescenta uma contribuição ainda mais importante, a sua saliva fecundante:

A obtenção do fogo, bem da humanidade, instaurando a diferença homem-animal, deu-


se, no passado mítico, através da mulher. (...) No maraká, a ação da uirasimbé atualiza
este mito, mas temos condição de dizer agora, que vai além: estabelece a relação dos
humanos com os espíritos. No maraká, o fogo, transformador como o tabaco, se associa
a outro elemento feminino, a saliva, que dá origem à principal manifestação da

49
Lembrar a relação, feita entre os Tupinambá, do prisioneiro a ser devorado e a afinidade, expressa na
“entrega” de uma mulher, do grupo de parentesco do matador, ao cativo. O inimigo devia ser “afinizado”
antes de ser devorado: cf. Fernandes, 2003: 147-8 e Viveiros de Castro, 1993: 190.
50
Descola, 1999: 118.
110

substância vital. Na segunda unidade do maraká, o mingau fermentado é tomado por


espíritos e xamãs, ele próprio substância vital (kauíyng). 51

Kauíyng: kauí = yinga, cauim = substância vital, bebida = vida. Quão diferente é

esta perspectiva da visão ocidental e contemporânea das bebidas alcoólicas! No rito do

maraká, que logo nos traz à mente as cauinagens dos Tupinambá, as mulheres surgem

como efetivas construtoras do mundo, par a par com os homens em sua função de

xamãs. Para além da constatação, nada óbvia, de que as mulheres ocupam um lugar tão

importante quanto o dos homens na vida espiritual das sociedades indígenas, é crucial

apontar aqui que elas o fazem, fundamentalmente, através das técnicas de fermentação e

produção de inebriantes alcoólicos.

Deve-se notar, aliás, que a cerveja é essencial na relação entre os próprios xamãs

e os espíritos: entre os Macurap (RO), quando morre alguém, os espíritos dos mortos, os

Dowari têm que descer à terra para levar o espírito do falecido. È, como se pode

imaginar, uma operação extremamente perigosa, e que deve ser manejada com cuidado

pelos xamãs, que possuem, como principal “moeda de troca” com os Dowari, a chicha:

Os espíritos têm que vir de noite, para ninguém ver. Os pajés, os curadores, os chamam
para tomar chicha. Ninguém os vê; só o mamoa, o pajé, é que vê. Os pajés não dormem
nada, ficam a noite toda acompanhando os Dowari, os espíritos visitantes, cada vez que
morre alguém. (...) Os pajés invocam os espíritos, chamam para virem comer e dançar
com os vivos no pátio da aldeia, para beberem chicha. Os Dowari vêm alegres, fazendo
zoada, conversando alto. (...) De dia ou de noite, os Dowari vão descendo. Os pajés, os
doutores, lhes dão chicha, comida, brincam com eles, dão banho, pintam de jenipapo, de
breu o seu corpo. Os Dowari ficam dias e dias na terra, contentes, alegres, misturados
aos parentes vivos. Num certo momento, os pajés os mandam de volta para o reino dos
Dowari. Vão embora. 52

51
Müller, 1993: 183.
52
O caminho das almas Macurap, in Mindlin, 1999: 217.
111

Partindo desta análise dos aspectos culturais e sociológicos dos regimes etílicos

indígenas, é possível lançar agora um olhar às formas pelas quais os produtos da

fermentação eram usados pelos índios que entraram em choque com a expansão colonial

européia. É indispensável entender estes modos de usar as bebidas, já que foram estas

práticas que moldaram as formas pelas quais os índios se relacionaram com os europeus.
112

3. Cauinagens: A Expressão Social de um Regime Etílico.

Tragam uma cabaça pequena, eh eh


tragam uma cabaça pequena, eh eh
tragam uma cabaça grande, eh eh
tragam uma cabaça grande, eh eh
eu vou tomar tudo o que trouxerem
tragam uma cabaça grande, eh eh
estava passeando, agora estou chegando
eu estou chegando
as cabaças, eh. 53

Ao contrário do que ocorre com as dimensões mais simbólicas das bebidas

nativas, os relatos de viajantes e cronistas europeus são bastante ricos quando tratam dos

usos dos cauins em rituais, festas e reuniões. Os bailes e festas eram a “ocupação

favorita dos selvagens d’esta parte do globo”, 54 mas vários europeus perceberam que

estes bailes exerciam um papel social muito mais importante que o de simples diversão,

como esclarece o naturalista português setecentista Alexandre Rodrigues Ferreira:

É verdade, que entre eles a dança se não deve chamar divertimento, antes é uma
ocupação muito séria e importante, que se envolve em todas as circunstâncias da sua
vida pública e particular, e de que depende o princípio, e o fim de todas as suas
deliberações. Se é necessário entenderem-se entre si duas aldeias, dançando é que se
apresentam os embaixadores, e entregam o emblema da paz. Se se declara a guerra ao
inimigo, por outra dança é que de parte a parte se principia a exprimir o seu
ressentimento e a vingança que se medita. 55

53
Canto dos visitantes na chegada à aldeia (Arara), in Teixeira-Pinto, 1997: 77-8.
54
Ferreira, 1983: 622.
55
Ferreira, 1983: 623.
113

As descrições destes bailes ocupa boa parte das crônicas a respeito dos

Tupinambá. Sabemos bem que, para estes índios, nada de importante poderia ser

decidido ou executado sem que fossem consumidas generosas quantidades do cauim,

como vimos, anteriormente, em trechos de Staden e Abbeville. 56 O jesuíta Simão de

Vasconcelos, em sua Crônica escrita em 1663, mostrava a importância das cauinagens

como um espaço de decisão política, e como expressão do papel dominante dos

principais entre os Tupinambá da Bahia:

As consultas de suas guerras são muito para ver, escolhem-se quatro, ou cinco dos mais
anciãos, que foram afamados de valentes. Eleitos esses, assentam-se em roda, em lugar
separado, e pondo primeiro no meio provimento de vinho bastante, vão consultando e
bebendo, e tanto dura a consulta, como a bebida. (...) Por fim das contas, o que estes
sábios veneráveis, e bem animados do Baco, ali concluem, isso sem falência se cumpre
(...). 57

As regras de etiqueta praticadas nestas sessões de embriaguez prescreviam um

tratamento especial aos anciãos importantes, os Thuyuae. Como nos informa o

capuchinho Yves d’Evreux, descrevendo sua experiência de dois anos entre os

Tupinambá da França Equinocial, estes velhos eram os primeiros a se assentarem e a

serem servidos, sempre pelas moças “de mais consideração” e “parentas mais próximas

do que fez o convite”. 58

Os cauins eram fundamentais para as cerimônias que marcavam alguns dos

momentos mais importantes do ciclo de vida dos Tupinambá, como os casamentos e

funerais. Para os homens, o casamento representava um verdadeiro “ritual de iniciação”,

uma modificação de status que os transformava em adultos completos, mudança que era

simbolicamente marcada através do consumo do cauim:

56
Ver supra os trechos de Abbeville (p.47) e Staden (p. 80-1).
57
Vasconcelos, 1977 (1663, v. I): 100.
58
Evreux, 2002 (1615): 131.
114

(...) ao tempo de lhe entregarem a mulher faziam grandes vinhos, e acabada a festa
ficava o casamento perfeito, dando-lhe uma rede lavada, e depois de casados
começavam a beber, porque até ali não o consentiam seus pais, ensinando-os que
bebessem com tento, e fossem considerados e prudentes em seu falar, para que o vinho
lhe não fizesse mal, nem falassem coisas ruins, e então com uma cuia lhe davam os
velhos antigos o primeiro vinho, e lhe tinham a mão na cabeça para que não
arrevesassem, porque se arrevesava tinham para si que não seria valente, e vice-versa. 59

Da mesma forma, os funerais eram realizados em meio a grandes libações:

“depois de enterrado o defunto os parentes estão em continuo pranto de noite e de dia,

começando uns e acabando outros; (...) e as mulheres ao segundo dia cortam os cabelos,

e dura este pranto toda uma lua, a qual acabada fazem grandes vinhos para tirarem o

dó”. 60 André Thevet descrevia os funerais com mais detalhes:

Decorrido um mês do falecimento, os filhos do morto convidam os amigos para uma


festa solene que mandam celebrar em honra do pai. Reúnem-se todos, pintados de
diversas cores, ornados de penas, executando mil rituais e cerimônias. (...) Então se
entregam a danças, disputas e cantorias, acompanhadas de flautas feitas de ossos dos
braços e pernas de seus inimigos, e outros instrumentos típicos. Os mais velhos,
enquanto isso, não param de beber durante todo o dia, sem nada comer, servidos pelas
esposas e demais parentes do falecido. 61

Tais cerimônias não estavam reservadas unicamente aos grandes guerreiros, mas

também às mulheres de prestígio:

Costumam os índios, quando lhes morrem as mulheres, deixarem crescer o cabelo (...) e
tingem-se de jenipapo por dó; e quando se querem tosquiar, se tornam a tingir de preto à
véspera da festa dos vinhos, que fazem a seu modo, cantando toda a noite, para a qual se
ajunta muita gente para estes cantares, e o viúvo tosquia-se à véspera, à tarde, e ao outro
dia há grandes revoltas de cantar e bailar, e beber muito; e o que nesse dia mais bebeu
fez maior valentia, ainda que vomite e perca o juízo. 62

59
Cardim, 1978 (1625): 103-4.
60
Cardim, 1978 (1625): 11-2.
61
Thevet, 1978 (1556): 140.
62
Souza, 2000 (1587): 290; cf. Salvador, 1975 (1627): 92.
115

Muito embora os Tupinambá tenham se notabilizado como grandes bebedores,

os assim chamados tapuias também associavam as bebidas fermentadas aos ritos

funerários, desta feita como uma “dádiva” ao morto, demonstrando assim o caráter de

bem de prestígio conferido às bebidas:

Antes de se proceder a inumação do cadáver, tornada indispensável, coloca-se na cova,


inicialmente, uma tigela chamada ‘cui’ e, em seguida, uma pequena marmita de barro
cheia de ‘cauim’, licor espirituoso cuja estranha preparação já descrevemos, e
acrescentam-se arcos e flechas. Coloca-se depois o corpo sobre esses objetos, expressão
de crença que têm os índios numa prolongação de suas necessidades no além. 63

As bebidas também poderiam ser utilizadas como veículos para o endo-

canibalismo funerário, como se dava entre os extintos Arapium, descritos pelo jesuíta

João Daniel como praticantes eméritos do “abuso de conservarem os ossos dos mortos,

que nas suas festas e beberronias costumam as velhas dar embebidas dos seus vinhos,

desfeitos em pó, (...) talvez por julgarem ser o seu ventre a melhor sepultura, em que

podiam dar-lhe honrado jazigo”. 64

Além destas ocasiões mais propriamente cerimoniais, os “vinhos” eram

fartamente usados nas atividades quotidianas, especialmente quando se tratava de

coordenar o trabalho de indivíduos de várias malocas diferentes, o que ocorria, por

exemplo, nos mutirões. O jesuíta português Fernão Cardim, que viveu no Brasil do final

do século XVI, percebeu que, nestas ocasiões, as bebidas eram utilizadas como

lubrificantes da socialidade Tupinambá

Esta nação não tem dinheiro com que possam satisfazer aos serviços que lhes fazem,
mas vivem comutatione rerum e principalmente a troco de vinho fazem quanto querem;
e assim quando hão de fazer algumas cousas, fazem vinho e avisando os vizinhos, e

63
Debret, 1975 (1834-9), (I): 29-30; o artista francês refere-se, neste trecho, aos Mongoió da Bahia.
64
Daniel, 1975 (I): 265-7.
116

apelidando toda a povoação lhes rogam os queiram ajudar em suas roças, o que fazem
de boa vontade, e trabalhando até as 10 horas tornam para suas casas a beber os vinhos,
e se aquele dia se não acabam as roçarias, fazem outros vinhos e vão outro dia até as 10
horas acabar seu serviço. 65

Para os principais Tupinambá, homens que alcançavam grande prestígio a partir

de sua proficiência na guerra e de sua habilidade política, era fundamental dispor de

grandes quantidades de comida e bebida com forma de cimentar relações de

dependência com os homens mais jovens de seu próprio grupo local e como um meio de

travar contatos com indivíduos de outros grupos. O capuchinho francês Yves d’Evreux

percebeu que os principais maranhenses de princípios do século XVII dependiam

bastante do fornecimento do cauim para garantir o apoio e o acesso à capacidade de

trabalho de um grande número de indivíduos:

Os principais, que ordinariamente têm mesa franca, para o que necessitam de roças
maiores, preparam um cauim geral, e como todos partilham dele, se incumbem de
cuidar nas plantações, o que fazem com alegria numa ou duas manhãs, e depois vão
beber na casa daquele para quem trabalham, bebendo cada um quando chega a sua vez
(...). 66

Nota-se, por este trecho, que o caráter redistributivo, típico da chefia em

sociedades como a dos Tupinambá, dependia fortemente da produção de bebidas como

meio de cimentar alianças, sempre fluidas na ausência de classes sociais ou sistemas

hierárquicos rígidos. Esta fluidez transparecia no fato de que a dádiva das bebidas tinha

um sentido duplo: era obrigatório aos principais oferecer cauinagens, mas também era

necessário que os indivíduos menos gabaritados convidassem aqueles para suas próprias

festas. Para o frade franciscano Vicente do Salvador, que escreveu a primeira história

conhecida do Brasil, em 1627, estes oferecimentos aos líderes eram o único indício das

65
Cardim, 1978 (1625): 109.
66
Evreux, 2002 (1615): 95.
117

hierarquias sociais entre os nativos: “(...) tem cada casa seu principal, que são também

dos mais valentes e aparentados e que têm mais mulheres; porém nem a estes, nem ao

maioral pagam os outros algum tributo ou vassalagem mais que chamá-los, quando tem

vinhos, pera os ajudarem a beber, ao que são muito dados (...)”. 67

Mas a quantidade das bebidas não era o único fator a ser levado em conta. Yves

d’Evreux afirma que os índios eram especialmente sensíveis à qualidade das bebidas

oferecidas, que, se aprovadas, provocavam grandes manifestações de regozijo, com

danças ao som do maracá, e com cantigas que celebravam o sabor da bebida: “(...) ‘oh!

o vinho, o bom vinho, nunca ele teve igual; oh! o vinho, o bom vinho, nós o bebemos à

vontade, oh! o vinho, nele não acharemos preguiça”. Esta “preguiça”, esclarece o

capuchinho, dizia respeito ao baixo teor alcoólico do cauim, que era chamado de

“preguiçoso” quando não embebedava e levava ao vômito. 68

Estes relatos apontam, mais uma vez, o caráter de exo-bebida conferido aos

cauins: eram produtos moldados para a dura e constante tarefa de cimentar os laços

entre indivíduos não diretamente relacionados por laços de parentesco e comensalidade.

Podemos observar que existe uma diferença marcante entre as bebidas de baixa

fermentação – como o chibé ou a tiquara - e os cauins alcoólicos: enquanto estes são

considerados exo-bebidas por excelência, apropriadas para o consumo em grupos extra-

familiares, aquelas são destinadas ao consumo doméstico, estabelecendo-se aí uma

marcante diferença, culturalmente elaborada, entre as duas formas de preparação. Não

resta dúvida de que as principais ocasiões em que esta dimensão “externa” das bebidas

alcoólicas era exercitada se davam durante os festins canibais e cerimônias correlatas.

67
Salvador, 1975 (1627): 85.
68
Evreux, 2002 (1615): 95.
118

Como aprendemos a partir do relato de Hans Staden, 69 tanto a guerra quanto os

rituais antropofágicos, e principalmente estes, dependiam por completo da produção dos

cauins, da qual se encarregava aquele indivíduo que era considerado o “dono” do cativo

a ser devorado. Cabia a ele, e a seu grupo familiar, convidar os amigos e vizinhos e

preparar a grande quantidade de cauim necessária para o festim: “o dono deste, como

dissemos, convida todos os seus amigos para o grande dia, para que venham comer sua

parte dos despojos e beber muito cauim”. 70 Amigos e vizinhos ansiavam pelo momento

em que o dono do cativo estivesse preparado para recepciona-los: “zombavam de mim,

dizendo que queriam vir logo à cabana do meu amo para comer-me e beber junto”. 71

A consecução das atividades femininas relacionadas ao preparo do cauim

marcava o início de todo o ritual antropofágico:

Determinado o tempo em que há de morrer, começam as mulheres a fazer louça, a


saber: panelas, alguidares, potes para os vinhos, tão grandes que cada um levará uma
pipa; isto prestes, assim os principais como os outros mandam seus mensageiros a
convidar outros de diversas partes para tal lua, até dez, doze léguas e mais, para o qual
ninguém se escusa. Os hóspedes vêm em magotes com mulheres e filhos, e todos
entram no lugar com danças e bailos, e em todo o tempo em que se junta a gente, há
vinho para os hóspedes, porque sem ele todo o mais gazalhado não presta (...). 72

Ao prisioneiro não era negada a participação nas libações: “vão livremente aos

cauins e danças públicas enfeitando de mil maneiras o seu corpo, quer com pintura, quer

com penas (...)”. 73 Aliás, beber muito era parte integrante do desempenho de qualquer

cativo cônscio de suas responsabilidades para com o ritual, e seus captores eram

obrigados, “para não serem julgados cruéis” a dar-lhes “comida e bebida à vontade”. 74

69
Cf. pp. 80-1.
70
Thevet, 1978 (1556): 132.
71
Staden, 1974 (1557): 100.
72
Cardim, 1978 (1625): 114-5.
73
Evreux, 2002 (1615): 108.
74
Abbeville, 1975 (1614): 231; cf. Salvador, 1975 (1627): 95.
119

“Os prisioneiros vão livremente aos cauins...” 75

Um cativo dos Tupinambá do Maranhão seiscentista afirmou ao missionário

Yves d’Evreux que pouco se importava com o fato de ser comido, já que “quando se

morre, nada mais se sente: quer eles comam ou não” e que o correto não era morrer

amofinado na cama e sim “à maneira dos grandes, no meio das danças e dos cauins, a

fim de vingar-me, antes de morrer, dos que iriam comer-me”. 76

Faziam-se troças do prisioneiro, por ocasião destas cauinagens: “quando

principiam a beber, levam consigo o prisioneiro que bebe com eles, e com o qual se

75
Anônimo, “O prisioneiro ao centro bebe em companhia dos seus executores, que também fumam
sentados a sua roda”, in, Staden, 1974: 183.
76
Evreux, 2002 (1615): 105.
120

divertem”. 77 Mesmo para os europeus – nada entusiasmados com sua participação

compulsória em tal cerimônia – a bebedeira era obrigatória:

Depois do festim trouxeram-me os dois irmãos e mais um outro indivíduo de nome


Antônio, que havia sido capturado pelo filho do meu amo, de sorte que éramos quatro
cristãos juntos. Tivemos que beber com eles, mas antes de começarmos, rogamos a
Deus que fosse misericordioso com a alma de Jerônimo e também para conosco, quando
chegasse a nossa hora. Os selvagens taramelavam conosco, em alegre azáfama; nós,
porém, nos sentíamos muito infelizes. 78

A participação do cativo nas bebedeiras canibais não se esgotava com a sua

morte e com o consumo ritual de sua carne. Seus ossos, transformados em instrumentos

musicais, marcariam, para sempre, os ritmos e movimentos das festas vindouras:

Tambem tem por costume (...) o trazerem assobios e flautas, feitos dos ossos das pernas,
coxas e braços de seos inimigos, dos quaes arrancam sons fortes, agudos e claros, e ao
som d’elles entoam seos cantos usuaes, especialmente quando estão nos Cauins, ou
quando vão a guerra. 79

Alguns índios da Amazônia também associavam o sacrifício dos inimigos ao

consumo das bebidas fermentadas, como afirma o missionário setecentista João Daniel:

O dia, em que matam algum, ou alguns conforme a multidão dos irmãos da mesa, é para
eles muito solene, e de primeira classe (...) convidam para a festa e para a mesa as
nações vizinhas suas aliadas; e para se brindarem tem já de antemão preparadas, e bem
atestadas as igaçabas, e bem providas as adegas com as suas costumadas vinhaças, tais
como já dissemos, que se as compararmos com uma lavagem de porcos, não ficará
desproporcionada e suja a semelhança. 80

77
Staden, 1974 (1557): 180.
78
Staden, 1974 (1557): 138.
79
Evreux, 1874 (1615): 39.
80
Daniel, 1975 (I): 226-7.
121

A cauinagem canibal. 81

Não obstante este papel como instrumento de coesão social, a embriaguez

também era responsável por episódios de violência que, por vezes, levavam mesmo à

cisão do grupo, como ocorreu com os Tupinambá do Maranhão:

Muitos desses índios ainda vivem e se recordam de que, tempos após a sua chegada na
região, fizeram uma festa, ou vinho, a que dão o nome de cauim e à qual assistiram os
principais e os mais antigos, juntamente com grande parte do povo. Aconteceu que,
estando todos embriagados, uma mulher esbordoou um companheiro de festa, disso
resultando grande motim que provocou a divisão e a separação do povo todo. Uns

81
“Black Drink”, in Mancall, 1995: 66. Equívoco monumental: Peter Mancall acredita que esta imagem
(que ele afirma ser retirada de Johan von Staden, America Pars Tertia, Frankfurt, 1592; tenho lá minhas
dúvidas quanto a esta referência...) se refira à “Bebida Negra” dos índios da América do Norte, feita com
o suco do tabaco e usada em suas cerimônias (Mancall, 1995: 67; Saggers e Gray, 1998: 42), quando é
óbvio que se trata de uma cópia de calcografia de Theodore de Bry representando a cauinagem canibal,
parte do terceiro volume (América tertia pars), de sua coleção Grandes Viagens, este sim publicado em
1592.
122

tomaram o partido do ofendido e outros o da mulher e de tal modo se desavieram que,


de grandes amigos e aliados que eram, se tornaram grandes inimigos; e desde então se
encontram em estado de guerra permanente, chamando-se uns aos outros de tabajaras, o
que quer dizer, grandes inimigos, ou melhor, segundo a etimologia da palavra: tu és meu
inimigo e eu sou o teu. 82

A violência originada da embriaguez também poderia ser utilizada para resolver

questões em aberto entre cônjuges, com a animada participação de terceiros:

(...) ao outro dia pela manhã começam a beber, bailar e cantar; e as moças solteiras da
casa andam dando o vinho em uns meios cabaços, a que chamam cuias, aos que andam
cantando, os quais não comem nada enquanto bebem, o que fazem de maneira que vêm
a cair de bêbados por esse chão; e o que faz mais desatinos nessas bebedices, esse é o
mais estimado dos outros, nos quais se fazem sempre brigas; porque aqui se lembram de
seus ciúmes, e castigam por isso as mulheres, ao que acodem os amigos, e jogam às
tiçoadas uns com os outros. 83

As bebidas eram um instrumento para as práticas xamanísticas, em especial

aquelas que utilizavam os maracás como meios de acesso aos antepassados. Enquanto

era espicaçado pelas mulheres, e introduzido em sua nova vida de cativo destinado ao

repasto canibal, Hans Staden observava que os homens dedicavam-se ao contato com os

mortos, com o indispensável auxílio do cauim:

(...) introduziram-me elas na choça, onde tive que deitar-me numa rede, e de novo
vieram, bateram-me, escarapelaram-me os cabelos e significaram-me, ameaçadoras,
como iriam devorar-me. Os homens estavam durante este tempo reunidos em uma outra
choça. Lá bebiam cauim e cantavam em honra dos seus ídolos, chamados Maracá, que
são matracas feitas de cabaças, os quais talvez lhes houvessem profetizado que iriam
fazer-me prisioneiro. O canto eu ouvia, mas durante meia hora não houve nenhum
homem perto de mim, apenas mulheres e crianças. 84

82
Abbeville, 1975 (1614): 209.
83
Souza, 2000 (1587): 271.
84
Staden, 1974 (1557): 88.
123

Os pajés recebiam generosas quantidades de bebidas, por ocasião das cerimônias

destinadas a inquirir os espíritos acerca do resultado de suas guerras contra os inimigos:

Em primeiro lugar, mandam que se construa uma choça nova, não permitindo que
ninguém nela habite antes de findar a cerimônia. No interior, armam uma rede branca e
limpa. A seguir, levam para lá uma grande quantidade de víveres, incluindo sua bebida
tradicional, o cauim, que deve ter sido preparado por uma virgem de dez ou doze anos, e
também a farinha de raízes, que usam em lugar do pão. Tudo assim arrumado, reúne-se
o povo e conduz seu profeta à cabana. 85

As bebidas eram vitais para os pajés, na medida em que os auxiliavam a alcançar

a condição de leveza necessária à comunicação com os mortos, operação complexa e

reservada a alguns homens especiais. 86 À primeira vista, pode parecer estranho que as

culturas indígenas construam uma relação entre a “leveza” xamanística e os cauins, já

que estes são bebidas extremamente substanciosas, e mesmo “pesadas”. Um exemplo

etnográfico nos permite esclarecer este ponto: para os Parakanã (Tupi), da bacia do

Tocantins (PA), as bebidas não causam embriaguez (ka’o), mas uma sensação de

“pular-voar” (mo-wewé), obtida através de vômitos, que expelem tudo aquilo que os

torna pesados, seja o que foi efetivamente ingerido, sejam seres (“habitantes do

estômago”) que se supõe causarem doenças. 87 Durante as cauinagens dos Parakanã, os

homens bebem e saltam durante horas a fio, ao som de músicas cantadas pelas

mulheres, que os incentivam a saltar cada vez mais ao dizer coisas como “Vá voe-voe,

vá voe-voe, Eu vôo, eu vôo”. 88

Nota-se, por este exemplo, a importância da exaustão física – através de longas e

elaboradas danças 89 - para a obtenção do estado de leveza, o que nos mostra que as

85
Thevet, 1978 (1556): 118.
86
Vainfas, 1995: 60-1.
87
Fausto, 2001: 423-4.
88
Fausto, 2001: 424.
89
Notar a semelhança com os Tupinambá: Vainfas, 1995: 60.
124

bebidas se inscreviam em um quadro mais amplo de técnicas extáticas, no qual aquelas

não possuíam o papel principal, certamente ocupado pela “erva-santa”, o tabaco. Tanto

para boa parte dos índios descritos na documentação histórica, quanto para a maioria

dos povos indígenas contemporâneos, o tabaco representa a forma privilegiada para a

obtenção da leveza xamanística, ao permitir que aquele que utiliza o petim alcance um

estado de “sonho”, representado por desmaios, estado em que o sonhador pode viajar ao

mundo dos espíritos e dos mortos. 90 O xamã Asuriní deve aprender a dançar e a fumar o

tabaco de forma a perder, de forma “controlada”, os sentidos, quando então se

transporta para o mundo dos espíritos, convive com eles e aprende os cantos que lhe

permitirão atrair estes espíritos à terra durante os rituais xamanísticos. 91

Entre os Tupinambá, as cerimônias em que o tabaco era usado tinham que ser

conduzidas por homens considerados como grandes pajés (pajé-açu), ou caraíbas,

únicos que podiam ultrapassar a simples cauinagem e enfrentar os riscos associados ao

contato direto com os espíritos, obtido unicamente através do tabaco. 92 É bem possível

que esta diferença em prestígio possa estar associada à diferença de gênero que existe

entre as duas substâncias: enquanto o cauim está associado às mulheres que o produzem

e distribuem, o tabaco possui uma posição metafísica abertamente masculina. Esta

diferença será importante mais tarde, tanto para compreendermos o lugar do tabaco nas

santidades do século XVI, quanto para a compreensão da ação das mulheres em apoio à

luta dos missionários contra as bebidas nativas.

Neste capítulo tentamos traçar um quadro muito amplo, e certamente não

exaustivo, dos diferentes papéis ocupados pelas bebidas alcoólicas nas sociedades

indígenas, sejam estes papéis de ordem nutricional, política ou cultural. Embora


90
Fausto, 2001: 441.
91
Müller, 1993: 137.
92
Vainfas, 1995: 61.
125

tenhamos abordado, ou apenas tocado, em uma longa série de assuntos, uma conclusão

importante pode ser retirada neste momento. É fundamental notar que, ao contrário do

que ocorreu entre os índios norte-americanos, a maior parte dos brasílicos conhecia e

destinava às bebidas fermentadas – e à embriaguez - um lugar essencial em seus

sistemas culturais. Ao iniciarmos o estudo do impacto etílico da invasão européia,

devemos também nos preocupar com as maneiras pelas quais este lugar concedido aos

inebriantes etílicos se alterou, pela transformação geral ocorrida nas sociedades

indígenas (transformação que, muitas vezes, significou seu desaparecimento), e pela

deliberada ação missionária no sentido de combater um tipo de experiência etílica que

desafiava as noções européias de “bons costumes” e de “pecado”.


CAPÍTULO IV

DO MEL AO VINHO:

ÁLCOOL E CULTURA NAS ORIGENS DA EUROPA

1. Bebida e Choque de Culturas no Nascimento da Europa.

De onde vem, realmente, a bebida que embriaga?


Quem fará para mim a cerveja de cevada,
Quem tornará o hidromel abundante
Para o povo da Terra do Norte
Que virá para as bodas de minha filha,
Que virá beber em suas núpcias?
Não compreendo a fermentação do cereal,
Nem a origem da cerveja.
Nunca aprendi o seu segredo. 1

Como vimos nos capítulos precedentes, existe um grande número de

informações a respeito dos regimes etílicos indígenas, informações que nos permitem,

mesmo que de forma limitada, vislumbrar alguns dos significados que as bebidas

alcoólicas possuíam para as sociedades nativas que foram colhidas pela expansão

colonial européia. Não podemos saber, contudo, mesmo com o auxílio da arqueologia,

como e quando surgiram as várias práticas e discursos nativos associados ao universo

das bebidas, e como estas práticas e discursos se modificaram no tempo, até serem

1
Mito de origem da fermentação, no Kalevala, épico finlandês (c. 1000 d.C.), in Buhner, 1998: 148.
127

conhecidos pelos primeiros europeus e por seus descendentes. O que temos é um

“instantâneo etnográfico”, necessariamente filtrado pelos pressupostos, e preconceitos,

daqueles viajantes e cronistas que conheceram sociedades indígenas muito diferentes,

em momentos distintos do processo de contato. Este fato torna imprescindível o apelo à

etnologia dos povos nativos contemporâneos, para que possamos compreender os

relatos, crônicas e documentos que tratam do beber indígena, inserindo-os em contextos

culturais que confiram sentidos àquelas práticas.

Ora, quando se trata dos regimes etílicos do Velho Mundo, em especial dos

europeus, o campo de possibilidades é bem mais amplo. É possível, dentro de certos

limites, escrever uma verdadeira história destes regimes, de sua constituição e de suas

transformações técnicas, e dos diferentes papéis culturais e sociais ocupados pelas

bebidas alcoólicas nas sociedades que se formaram no continente europeu. Isto permite

que possamos compreender o modo como aqueles homens e mulheres, que se chocaram

com os povos indígenas a partir de 1492, inseriam os inebriantes etílicos em seu mundo

material e espiritual, e como os diferentes grupos que constituíam aquelas sociedades

construíram paradigmas também distintos de apreensão das bebidas alcoólicas.

Conhecer os regimes etílicos dos europeus, pelo menos em suas linhas mais

gerais, representa um passo essencial, na medida em que os vários europeus que se

relacionaram com os nativos brasileiros, como conquistadores ou como viajantes,

provinham de sociedades em que as bebidas alcoólicas ocupavam posições sociais e

culturais muito variadas, variações que marcaram profundamente seus atos e discursos

com relação ao beber indígena. Tais diferenças, contudo, não se constituíram

“naturalmente”, mas foram plasmadas a partir das distintas circunstâncias ecológicas,

étnicas e históricas que marcaram a formação das sociedades européias modernas,


128

circunstâncias que começamos a abordar no capítulo I, ao tratarmos dos regimes etílicos

mediterrânico e nórdico. 2

Estudar, em profundidade, este desenvolvimento desde a pré-história seria uma

tarefa cujo escopo estaria muito além dos objetivos desta tese, já que a origem imediata

dos regimes etílicos europeus da era moderna localiza-se no choque entre os mundos

romano e “bárbaro”, em fins do mundo antigo e princípios do medievo. Não obstante, é

impossível deixar de perceber que as raízes deste processo de contato cultural complexo

e contraditório, em que os sistemas culturais do vinho e da cerveja (e também do

hidromel) se defrontaram - com conseqüências notáveis para a constituição cultural da

modernidade ocidental - se inscrevem em uma longue durée que deve ser explorada em

alguma medida.

A oposição cultural entre o vinho e a cerveja, o civilizado e o bárbaro, entre o

beber moderadamente e a embriaguez desmedida, serviu como base para a elaboração

de modelos de comportamento e para a construção das identidades latina e nórdica,

cujas diferenças serão sentidas com toda a força, por exemplo, durante a presença

holandesa no Brasil, quando os luso-brasileiros buscaram, muitas vezes, se diferenciar

dos invasores a partir de seus hábitos etílicos. Como afirmou Massimo Montanari, a

respeito da oposição alimentar (e etílica, vale dizer) entre o Mediterrâneo e a Europa

central e nórdica:

Dentre todos os aspectos que definem a cultura alimentar do que denominamos ‘mundo
clássico’, um dos mais significativos é a vontade de o apresentar como o domínio da
civilização, como uma zona privilegiada e protegida, em oposição ao universo
desconhecido da barbárie. O regime alimentar tem um papel essencial nesse processo de
definição de um modelo de vida civilizado (modelo já por si profundamente ligado à

2
Cf. pp. 32-3.
129

noção de cidade); e pode-se dizer que ele funda a própria ‘diferença’ no que diz respeito
ao não-civilizado e ao não-citadino (...). 3

É importante assinalar que estas diferenças se inscrevem profundamente na

história, e mesmo na pré-história, do continente europeu. Durante milhares de anos os

dois mundos etílicos se desenvolverão de forma paralela, seguirão caminhos

relativamente distintos, fundados especialmente nas diferenças ecológicas que

impedirão a expansão da vinha - e das civilizações que a cultivavam - em direção às

frias regiões do centro e do norte da Europa, cujos povos construíram seus regimes

etílicos com os materiais que lhes eram disponíveis, os méis e cereais fermentados .

Seria um engano, contudo, ver estas diferenças entre mediterrânicos

(basicamente, gregos e latinos) e nórdicos (os “bárbaros” celtas e germânicos) como se

constituíssem compartimentos estanques e incomunicáveis. Os gregos e romanos que

nos legaram suas descrições acerca do comportamento etílico dos povos do norte viram

estes modos de beber, aparentemente tão diferentes dos seus próprios, como uma

confirmação de seus pressupostos acerca do que seria um comportamento “civilizado”:

para eles, os regimes etílicos fundavam “a própria ‘diferença’ no que diz respeito ao

não-civilizado e ao não-citadino (...)”.

Ao observador contemporâneo, contudo, tais diferenças parecem ser menos

radicais. É preciso lembrar que todos estes conjuntos étnicos, que construíram a Europa

que conhecemos hoje, 4 faziam parte – com algumas raras exceções - de um mesmo

tronco lingüístico, o indo-europeu, compartilhando, para além das próprias origens

lingüísticas, uma “gramática cultural profunda”, mesmo que os escritores da antiguidade

não tivessem consciência disso. Esta história – melhor seria dizer uma “pré-história” –
3
Montanari, 1998: 108.
4
Os povos bálticos e eslavos, também de origem lingüística indo-européia, e muito interessantes do ponto
de vista etílico, não serão tratados neste trabalho, já que não tiveram participação relevante na
colonização da América.
130

comum se reflete também na maneira como mediterrânicos e nórdicos exercitavam o ato

de beber e de se embriagar. Apesar de todas as diferenças, podemos discernir um fundo

cultural comum, que se expressou de distintas formas ao sabor das circunstâncias

ecológicas e culturais que afetaram aquelas sociedades durante milhares de anos. A

noção de uma “herança cultural indo-européia” é, por certo, extremamente

problemática, como veremos mais à frente. Não obstante, é necessário encarar o

problema, visto ser este um caminho indispensável para a compreensão da formação dos

regimes etílicos europeus.

Ao falarmos de conjuntos culturais e étnicos de origem indo-européia estamos,

também, tratando de vários processos complexos de mudança que envolvem migrações,

conquistas e difusão cultural. Afinal, os primitivos falantes de línguas proto-européias

não eram nativos do continente europeu, e se instalaram a partir de uma série de

conquistas militares e de complexas mestiçagens culturais e biológicas 5 . Ao chegarem

na Europa, vindos das estepes eurasiáticas, estes povos (que chamaremos de “indo-

europeus”, entre aspas, para marcar as dificuldades que envolvem sua identificação

étnica) encontraram outras pessoas – representadas por povos falantes de línguas

“isoladas” como os antigos Etruscos (Itália) e Pictos (Escócia), e pelos atuais Bascos6 –

que tinham culturas muito diferentes e que também se relacionavam de formas

diferentes com as substâncias modificadoras da consciência.

Sem querer entrar nas minúcias do extraordinariamente complexo processo de

formação dos povos europeus contemporâneos – processo cuja compreensão foi

marcada, historicamente, por dificuldades científicas e por injunções políticas e

5
Sergent, 1990: 9-17.
6
Cavalli-Sforza, 2003: 177-225.
131

ideológicas 7 - é interessante lançar um rápido olhar para a pré-história das substâncias

essenciais na Europa, e suas correlações com aquele processo de formação étnica. Este

olhar nos permitirá perceber que o papel do álcool como mediador cultural e como sinal

diacrítico é muito anterior ao choque entre os mundos europeu e indígena. Na verdade, a

história das relações entre as primeiras sociedades agrícolas do centro-norte da Europa e

os invasores “indo-europeus” oferece-nos alguns dos primeiros exemplos bem

documentados do papel do álcool no choque de culturas, e de um fenômeno que

encontraremos repetidas vezes durante a história: a vitória dos inebriantes etílicos sobre

outras formas de expansão da consciência.

7
Sobre este complexo tema ver, entre muitos outros, Cavalli-Sforza, 2003; Gimbutas, 1975 e 1991;
Menon, 1995; Piggott, 1981; Powell, 1965; Sergent, 1990.
132

2. A Cannabis e o Complexo da Bebida.

Ymbeode þa ides Helminga


duguþe ond geogoþe dæl æghwylcne,
sincfato sealde, oþ þæt sæl alamp
þæt hio Beowulfe, beaghroden cwen
mode geþungen medoful ætbær

Então, através do hall, veio a Senhora de Helming,


Que aos mais jovens e aos mais velhos, em todos os lugares,
Trazia a taça, até chegar o momento
Em que a rainha do anel, a do coração real,
A Beowulf concedeu a copa de hidromel. 8

Os primeiros agricultores do centro-norte europeu - chamados por Marija

Gimbutas de “Civilização da Velha Europa”, e conhecidos pela arqueologia como

“cultura danubiana” ou “cultura da cerâmica linear” 9 – desenvolveram-se entre os VIIº e

o IIIº milênios a.C., e caracterizavam-se, entre outros aspectos, pela presença de uma

agricultura baseada no cultivo de cereais, lentilhas e linho. Ocupavam regiões de

florestas fechadas, praticando a técnica da queimada, e desenvolveram um tipo de

ocupação itinerante, com grandes casas e túmulos comunais, o que geralmente está

associado a estruturas sociais relativamente igualitárias. 10

Apesar da expressão “Velha Europa”, estes povos da Europa central se

diferenciavam bastante dos primeiros cultivadores dos Bálcãs, da península grega e do

8
Beowulf (linhas 620-4), épico anglo-saxão, composto por volta do século VI, e escrito pela primeira vez
no século X.
9
Gimbutas, 1991: vii; Sergent, 1990: 122; Piggott, 1981: 62.
10
Piggott, 1981: 63.
133

Egeu (de onde emergiu a civilização cretense), cujas culturas estão relacionadas a

influências demográficas e culturais oriundas do Oriente Próximo, através da Anatólia.

Estes possuíam uma agricultura mais eficiente e permaneciam durante muito tempo nos

mesmos sítios, produzindo (assim como as culturas neolíticas do Oriente Próximo)

grandes montes formados por restos de ocupação humana, os tells. 11 Serão os primeiros

europeus a cultivar a vinha, como veremos na próxima seção.

Quanto à “Velha Europa”, aparentemente não conhecia as bebidas alcoólicas.

Para Richard Rudgley, os tipos de açúcares disponíveis aos homens primitivos para a

elaboração de bebidas – mel, frutas, grãos germinados e leite – eram pouco abundantes

na Europa temperada pós-glacial. Além disso, a ausência, no registro arqueológico, de

recipientes apropriados ao longo processo de fermentação, o leva à conclusão de que os

inebriantes etílicos não foram inventados independentemente na Europa, tendo sido uma

inovação importada do Oriente Próximo. É uma conclusão bastante discutível,

especialmente no que diz respeito ao mel, matéria-prima usada na fabricação de bebidas

por caçadores-coletores em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, 12 mas o fato

concreto é que não existe uma comprovação arqueológica do uso de inebriantes etílicos

nesta primeira fase do Neolítico europeu. 13

É claro que isto não significa que aqueles povos não usassem outras substâncias

modificadoras da consciência. Para além do uso, ritual e terapêutico, de ervas e plantas

como a Artemisia absinthium (absinto ou losna), Hyoscyamus niger (meimendro), e a

Atropa mandragora (a mandrágora, do latim mensdragora, “dragão da mente”), cujos

primórdios são inalcançáveis pelo historiador 14 , podemos discernir pelo menos duas

11
Piggott, 1981: 53-5.
12
Cf. pp. 64-7.
13
Rudgley, 1995: 31-2.
14
Buhner, 1998: 210-5; Flandrin, 1998a: 34.
134

tradições de uso de substâncias essenciais anteriores ao aparecimento das bebidas

alcoólicas na Europa.

A arqueologia e a paleobotânica estabeleceram, com elevado grau de certeza,

que a Papaver somniferum – a papoula de onde se extrai o ópio – foi domesticada no

Mediterrâneo ocidental em algum momento entre 6000 e 5000 a.C., e o fato de que

sinais inequívocos de seu cultivo tenham sido encontrados em locais tão distantes

quanto a Itália, a Inglaterra e a Polônia, mostra uma estável e contínua tradição de

cultivo. 15

Como afirma Richard Rudgley, isto não significa, necessariamente, que o ópio

tenha sido usado enquanto narcótico, já que as sementes da papoula podem servir de

alimento e como fonte de extração de óleo comestível. Contudo, sepultamentos

descobertos na Espanha, datados de 4200 a.C., mostram que as cápsulas não-

comestíveis da papoula, de onde se extrai o ópio, ocupavam um importante lugar

cerimonial, revelando que a grande capacidade da P. somniferum como indutora do

transe hipnótico poderia ser conhecida e utilizada pelos europeus pré-históricos.

Também foram encontrados, em túmulos megalíticos no norte da França e no sul

da Inglaterra (de princípios do IIIº milênio a.C.), braseiros associados a restos de

papoula, que podem ter sido usados para queimar as cápsulas. Além disso, sabemos que

os egípcios do IIº milênio a.C. importavam ópio de Chipre, com objetivos medicinais e,

possivelmente, também como narcótico, inspirados, talvez, pela civilização minoana de

Creta, cujos laços comerciais com o Egito eram profundos. 16 Em Creta foram

encontradas estatuetas votivas em que uma deusa aparece coroada por cápsulas de

papoula, nas quais as incisões, feitas para se extrair o ópio, foram ressaltadas pelo

15
Escohotado, 1999: 6; Rudgley, 1995: 24.
16
Rudgley, 1995: 24-8.
135

artesão, comprovando seu uso como modificador de consciência, e não como

alimento. 17

A segunda grande tradição girava em torno do cânhamo, a Cannabis sativa. O

cânhamo é uma planta originária das estepes da Ásia central, onde era usada para a

fabricação de cordas e roupas ainda antes de sua domesticação. A facilidade com que os

traços culturais, e os próprios povos, se movimentam nas estepes levou o uso do

cânhamo aos dois extremos da Eurásia, a Europa e a China, e é da China que provêm os

primeiros indícios claros de domesticação, por volta de 4000 a.C. 18

A pesquisa lingüística mostra que os chineses conheciam muito bem o caráter de

modificador da consciência exercido pela Cannabis. A palavra chinesa para cânhamo é

ta-ma (“grande fibra”), identificando seu uso quotidiano mais comum. Porém, como

mostra Richard Rudgley (baseado em lingüistas chineses), o ideograma ma tinha, no

chinês arcaico, dois significados. O primeiro é “caótico” ou “numeroso”, em referência

à forma e quantidade das fibras. O segundo é “entorpecer” ou “adormecer”, revelando

que os chineses usavam o cânhamo com propósitos terapêuticos e rituais, o que é

atestado por fontes chinesas históricas. Para Rudgley, este uso foi tomado de

empréstimo aos primeiros usuários do cânhamo, os nômades das estepes. 19

Ora, esta é uma conclusão que concorda perfeitamente com o que sabemos

acerca das práticas xamanísticas dos povos das estepes. Como afirma Mircea Eliade, o

xamanismo e a embriaguez extática produzida pela fumaça do cânhamo é algo

profundamente inscrito nas tradições religiosas da Ásia central e meridional, sendo,

inclusive, bem conhecido pelos antigos persas e por seus parentes lingüísticos, os citas.

A própria palavra iraniana que designa o cânhamo, bangha, espalhou-se pelos povos
17
Kerényi, 2002: 22.
18
Escohotado, 1999: 6.
19
Rudgley, 1999: 137-40.
136

não-iranianos das estepes, por vezes designando o cogumelo alucinógeno Amanita

muscaria (como na palavra panga, dos mordovinos), ou designando a própria

embriaguez, como no vogul pânkh. Eliade também lembra, muito apropriadamente, o

papel do haxixe entre os iranianos islamizados, alertando, desta forma, para a

profundidade temporal e cultural dos usos ritualísticos da Cannabis. 20

A partir de 3000 a.C., uma indústria cerâmica voltada ao uso ritual do cânhamo

espalha-se pela Europa, oriunda das planícies da Rússia e Ucrânia atuais. São tigelas

polípodes que eram usadas como braseiros, e nas quais foram encontrados restos

calcinados de cânhamo. Muito provavelmente, o cânhamo queimado nestes braseiros

era inalado, ocasionando transes xamanísticos, tal como ocorria, em tempos históricos,

entre os trácios e os citas da Europa oriental, conforme descrito por Herôdotos: “os citas

tiram as sementes deste cânhamo (...) e lançam as sementes sobre as pedras rubras de

tão quentes; lançadas assim, elas soltam uma fumaça perfumada (...). Esse banho de

vapor leva os citas a urrar de prazer”. 21 Deve-se apontar que estes citas históricos

possuíam braseiros, bem conhecidos pela arqueologia, virtualmente idênticos aos vasos

polípodes europeus pré-históricos. 22

Por volta de 2500 a.C., um novo conjunto de culturas, proveniente das estepes ao

norte do Mar Negro, penetra na Europa central. Embora alguns tenham visto neste

florescimento desta cultura um desenvolvimento autóctone, a visão mais comum é a de

que ela representa a chegada de migrantes belicosos, que acabaram por suplantar - não

necessariamente de forma violenta - as populações mais antigas. A identificação destes

migrantes é uma questão extremamente complexa, pois envolve uma discussão acerca

das origens das línguas, e povos, “indo-europeus”. O que importa, para nós, é que
20
Eliade, 1998 (1951): 429-38.
21
Herôdotos, 1988 (IV, 75): 220-1.
22
Rudgley, 1995: 29-31.
137

ocorreu nesta época um “corte” cultural, arqueologicamente comprovado, e que se

caracteriza, entre outras coisas, por uma mudança no relacionamento dos homens com

as substâncias modificadoras da consciência.

Chamada, alternativamente, de “cultura das Ânforas Globulares”, “cultura dos

Machados de Guerra”, ou “cultura dos Enterramentos Individuais”, esta tradição

adventícia caracteriza-se pela presença de grandes machados de guerra e de uma

profusão de vasos claramente associados ao consumo de bebidas, meticulosamente

trabalhados e colocados em tumbas individuais como signos de status dos guerreiros

que ali eram enterrados. Estas inovações representam uma clara mudança econômica e

social, em direção a sociedades mais estratificadas, com elites que baseavam seu poder

no valor guerreiro, na posse de grandes rebanhos (que eram mais importantes, simbólica

e economicamente, do que os produtos agrícolas), e no uso ritual e social das bebidas

alcoólicas. 23 Estas novas culturas chegaram em várias “ondas”, que deram origem,

sucessivamente, aos ramos grego, itálico, celta e germânico das línguas indo-

européias. 24

Para Andrew Sherratt, arqueólogo que estudou o uso de narcóticos e outras

substâncias essenciais na Europa pré-histórica, esta mudança cultural e étnica marca o

início de um “Complexo da Bebida” (drinking complex) que, embora tenha sido

influenciado pela cultura mais antiga de usuários do cânhamo e ópio, acabou por

substituí-la completamente. Por volta de 2000 a.C. os grandes túmulos individuais eram

encontrados nas ilhas britânicas e na costa do Atlântico, recheados de vasos para a

bebida, machados de guerra e das primeiras armas feitas de cobre. Como afirmou

Sherratt:

23
Piggott, 1981: 105-13.
24
Cavalli-Sforza, 2003: 208-16; Sergent: 1990: 126-8; Gimbutas, 1991: 395-6.
138

A expansão do complexo da bebida (…) teve lugar durante um período de mudança


social, cultural e econômica inusitadamente rápida. Durante esta época, a Europa se
abriu: literalmente, em termos de desflorestamento de suas paisagens, e
metaforicamente, em termos de novos contatos e oportunidades. Fundamental para este
processo foi a crescente importância dos rebanhos, e a emergência de elites de
guerreiros cuja subcultura era representada por uma característica combinação de armas
e vasos de bebida em seus túmulos. 25

Com base em vestígios químicos encontrados nos vasos de madeira ou cerâmica,

a arqueologia contemporânea é capaz de apontar os tipos de bebidas que eram

armazenados, e consumidos, nestes recipientes. Não foram realizados testes deste tipo

(pelo menos até agora) nos vasos do período das “ânforas globulares”. Vasos mais

recentes, contudo - encontrados na Escócia (c. 1750 a.C.) e na Dinamarca (c. 1370 a.C.)

– mostraram que estes europeus das regiões frias consumiam uma mistura de hidromel e

cervejas de cereais, “temperados”, e fortalecidos, com seivas (de bétula, por exemplo),

sucos fermentados de frutas (maçãs e amoras) e ervas, como o mirtilo. 26

Para Richard Rudgley, os guerreiros dos grandes machados consumiam o

mesmo tipo de bebida, em associação com o cânhamo e o ópio. 27 É, naturalmente, uma

especulação, à falta de pesquisas diretas, mas podemos supor que ele esteja correto,

tendo em vista a longa tradição de celtas e germânicos no uso dos hidroméis e cervejas

“temperados”. Não se sabe se os primeiros migrantes das estepes conheciam os

processos de fabricação da cerveja, que exigem a prática do cultivo de cereais, mas é

certo que produziam o hidromel, como mostram os dados lingüísticos.

25
Apud Rudgley, 1995: 34.
26
Pain, 1999: 54.
27
Rudgley, 1995: 35.
139

A raiz indo-européia *medhu, associada ao produto das abelhas, ocorre em quase

todas as línguas da família, com o significado de “mel”, 28 como “doce”, 29 como

“embriaguez”, 30 ou como o próprio hidromel. 31 Nos Rig-Veda, textos sagrados dos

hindus, e escritos em sânscrito, os deuses Vishnu e Indra são chamados de Madhava,

“os nascidos do mel”, e seu símbolo era a abelha. Entre os gregos, o hidromel estava

relacionado ao culto de Zeus: o Senhor dos deuses era, comumente, apresentado como

um “deus do mel” (Meilikhios: “doce como o mel”). 32 Uma antiga tradição religiosa

afirmava que o jovem Zeus (também chamado de Melissaios) havia matado seu pai, o

deus Cronos, que devorava os próprios filhos, após embriagá-lo com mel fermentado de

abelhas selvagens, bebida que o próprio Cronos teria inventado. 33

Esta amplitude geográfica e semântica mostra que o conhecimento do mel, e de

sua bebida fermentada, foi trazido pelos migrantes “indo-europeus” a partir de suas

terras natais nas estepes, sendo, portanto, bastante lógico ver o hidromel como a bebida

preferencialmente consumida e armazenada nos vasos armazenados nos túmulos dos

guerreiros, 34 muito embora isso não signifique que estes não tenham também se

aproveitado dos cereais, frutas e seivas (bem como dos narcóticos), encontrados na

Europa, para elaborar novos tipos de bebidas, como quer Rudgley. É também possível,

embora isto não tenha sido constatado arqueológica e historicamente na Europa, que os

nômades “indo-europeus” – os primeiros a domesticar o cavalo (no IVº milênio 35 ) e a

28
Sânscrito mādhu, grego méli, latim e português mel, francês e espanhol miel, italiano miele.
29
Sânscrito medo.
30
Grego methýein, gaélico meldb, sânscrito mādhavī.
31
Grego méthē, gaélico metheglin, inglês mead, alemão met e germânico antigo mjöd.
32
Sissa e Detienne, 1990: 200.
33
Kerényi, 2002: 33; Buhner, 1998: 24.
34
Buhner, 1998: 19-59.
35
Sergent, 1990: 125; Menon, 1995.
140

inventar o carro de guerra - consumissem o leite fermentado alcoólico das éguas (o

kumiss), assim como faziam, e ainda fazem, cavaleiros siberianos, como os mongóis. 36

Em que contexto estas bebidas eram consumidas? A lingüística e a história

cultural comparadas encontraram semelhanças e paralelos entre as estruturas sociais e

mentais dos povos de línguas indo-européias que permitem, de forma limitada,

“reconstruir” alguns aspectos sociológicos e culturais dos primitivos falantes daquelas

línguas. É claro que os povos de línguas indo-européias atuais – e mesmo os da

antiguidade – não são descendentes diretos daqueles nômades das estepes, como

pensaram os teóricos da superioridade “ariana”. Como afirmou, a este respeito, Bernard

Sergent:

É patente que cada um dos povos ‘indo-europeus’, na sua localização histórica, resulta
de uma síntese étnica entre, pelo menos, populações pré-históricas locais, isto é, cujas
raízes remontam no local até aos tempos paleolíticos, e, por outro lado, imigrantes
portadores de uma língua indo-européia cuja imposição à região e evolução local
desembocam nas línguas historicamente atestadas: ‘os Irlandeses’ são um povo formado
na Irlanda a partir da união entre os portadores de uma língua céltica e as populações
anteriores (...); os Celtas ‘vêm’ da região do alto Danúbio, mas os Irlandeses não ‘vêm’
do alto Danúbio. De igual modo, ‘os Gregos’, ainda que os portadores da primeira
forma da sua língua tenham ocupado o norte dos Bálcãs numa época pré-histórica, não
são ‘originários’ do baixo Danúbio – tal como os Franceses não são originários de
Roma: eles são um produto da sua (proto)-história. Neste sentido, todos os povos indo-
europeus conhecidos são indo-europeizados. 37

Feita esta ressalva, é possível abordar o contexto etílico dos povos que

introduziram o “Complexo da Bebida” no continente europeu, pelo menos em sua

parcela não-mediterrânica, já que os cretenses – e talvez outras populações do

Mediterrâneo e Bálcãs, como os trácios – certamente consumiam o vinho à larga, mas

em bases sociológicas e culturais diferentes. De saída, constata-se a importância da

36
Tannahill, 1988: 123.
37
Sergent, 1990: 15-6.
141

aristocracia guerreira que está sepultada naqueles túmulos individuais. Ao contrário das

civilizações orientais, com seus reis-deuses que controlavam elites de funcionários

palacianos, os *reg indo-europeus 38 exerciam muito mais um papel de primus inter

pares, com uma marcada função religiosa, e também econômica, já que eram sempre os

indivíduos mais poderosos economicamente, possuidores dos maiores rebanhos. 39

O verdadeiro poder político, contudo, estava concentrado nas assembléias de

guerreiros, tão presentes nas descrições de celtas e germanos e também nos poemas

homéricos. Ora, estes guerreiros caracterizavam-se, entre outras coisas, por aquilo que

os germânicos antigos chamavam mutantrinken, “embriaguez de honra”. 40 Beber muito,

desmesuradamente, era uma das obrigações do ethos guerreiro “indo-europeu”, como se

constata quando observamos que os deuses guerreiros destes povos (como o grego Ares,

o germânico Thôrr, o hindu Indra, o persa Varuna), assim como seus heróis belicosos

(como o grego Heracles, o nórdico Starcatherus, o celta Cúchulainn) eram

rematadíssimos beberrões. A embriaguez produzida pelas bebidas era equiparada à

“loucura” advinda do furor militar, da sede pelo sangue dos inimigos, que transformava

os guerreiros em seres perigosos e incontroláveis. Os escandinavos, aliás, usavam o

mesmo termo (ôdr) para designar a embriaguez provocada pela bebida e a fúria que

acometia os guerreiros vitoriosos. 41

Guardadas as muitas diferenças, poder-se-ia traçar um paralelo entre esta

concepção da embriaguez e o que ocorria nas cauinagens dos Tupinambá, em que os

indivíduos se enraiveciam e se preparavam para o ato de matar, como disse Anchieta:

“de facto, quando estão mais bêbados, renova-se a memória dos males passados, e

38
Latim rex, gaulês rix, gaélico rí, sânscrito rājān, alemão reich (para “reino”).
39
Os termos para designar o homem abastado (rico, rich, riche) provêm justamente da raiz para “rei”.
40
Lima, 1990: 213.
41
Sergent: 1990: 56-70.
142

começando a vangloriar-se deles logo ardem no desejo de matar inimigos e na fome de

carne humana”. 42 Porém, tanto em um caso quanto no outro, estas bebedeiras nada

tinham de patológico, mas representavam, antes de tudo, um ato cerimonial.

A assembléia dos guerreiros reunia-se em torno de banquetes com farta

distribuição de comida e bebida, cujo caráter de dissipação se assemelhava aos potlatch

dos índios norte-americanos, em que os bens (no caso “indo-europeu”, bens alimentares

e etílicos) eram literalmente destruídos, demonstrando, desta forma, o poderio

econômico do indivíduo que patrocinava o banquete. 43 É, aliás, bem atestada pela

arqueologia a presença, nas habitações dos povos “indo-europeus”, de grandes salões -

como o megaron grego e o hall germânico - especificamente destinados a tais

bebedeiras.

Nestes festins, a aristocracia guerreira se engajava em disputas discursivas em

torno de suas façanhas, e se buscava alcançar o melhor quinhão do banquete, sempre

reservado ao mais corajoso, ao mais forte, ao maior entre todos. Era aquilo que os

gregos dos poemas homéricos chamavam de “parte da honra” (géras): a melhor parte

dos despojos conseguidos em combate, disputa que terminava, constantemente, em

conflitos provocados pela embriaguez e por discussões de precedência. A noção de

“despojo”, de “conquista guerreira”, ocupa, aliás, um lugar central na mentalidade

“indo-européia”, dado que as palavras que o designam, em diversas línguas, provêm de

uma mesma raiz. 44

42
Cf. pp. 46-7.
43
Sergent, 1990: 65.
44
Como no grego lēis, latim lucrum, germânico antigo laun, eslavo antigo lavu: Sergent, 1990: 58.
143

A Senhora do Hidromel, dos banquetes germânicos. 45

Este tipo de disputa está muito bem exemplificado na Ilíada, que se inicia

exatamente quando Agamenon, se aproveitando da condição de chefe da expedição à

Tróia, toma a parte que cabia a Aquiles nos despojos de um saque feito a Tebas.

Tomado de um embriagante “furor guerreiro”, Aquiles vocifera contra o rei de Micenas:

“bêbedo, que tens a vista do cão e a coragem do veado, nunca a armadura envergaste

para ir combater como os outros. (...) Mais lucrativo, de fato, é correr todo o exército

aquivo, para esbulhar de seus prêmios a quem se atrever a objetar-te. Devorador do teu

povo!”. 46

Mais tarde, dirigindo-se a sua mãe, Tétis, que lhe pergunta o porquê de sua

cólera, Aquiles reclama de Zeus, por ter permitido que sua géras lhe fosse tomada:

“pois (Zeus) consentiu que o potente senhor, de Atreu filho, Agamenon, me desonrasse;

45
Disponível em http://www.vikinganswerlady.com/index.html.
46
Ilíada, I, 225-31.
144

meu prêmio tomou, de que, ufano, se goza”. 47 No decorrer do poema, quando

Agamenon decide reparar a ofensa feita a Aquiles, desculpa-se dizendo que seu ato foi

provocado por uma “loucura”, 48 atê, palavra usada para designar um estado de espírito

alterado, um obscurecimento temporário do comportamento normal, que tanto poderia

ser provocado pela ação de um deus, quanto pela embriaguez provocada pelo vinho. 49

Veremos, mais tarde, que os gregos do período clássico (ao menos os

aristocratas) possuíam uma concepção completamente diferente do que deveria ser um

comportamento etílico adequado, enquanto que povos “bárbaros”, como celtas e

germânicos, mantiveram muitas das tradições “indo-européias” em torno das bebedeiras

e da embriaguez “heróica”. Uma das características mais notáveis dos festins etílicos

dos povos europeus da antiguidade - representados pelo symposion grego, o daps

romano, o trinkfest celta e o sumbel nórdico – é sua capacidade de transformarem-se no

devir histórico, assumindo novas formas de acordo com as variações culturais dos

descendentes daqueles migrantes.

O que é mais importante para nós, neste momento, é perceber que as bebidas, e

os modos de beber, dos “indo-europeus” surgiram, naqueles momentos de

transformação étnica e cultural da Europa, enquanto signos e, quem sabe, instrumentos

de dominação cultural de uma população recém-chegada sobre outra, já estabelecida. É,

certamente, impossível saber se as bebidas foram “impostas” aos consumidores de

cânhamo e ópio pelos guerreiros beberrões. Mas é notável perceber que, por toda a

história, não se conhece qualquer caso, quando se trata de choque de culturas, de

substituição do álcool por outras substâncias essenciais: é sempre o contrário que

ocorre.
47
Ilíada, I, 354-5.
48
Ilíada, IX, 119.
49
Sobre a relação entre a atê e o vinho, cf. Dodds, 1988: 12.
145

Arrisco-me a dizer que isto se deva ao duplo caráter do álcool, de inebriante e de

alimento, não apresentado por outras substâncias, além do fato de que encontrar uma

boa água para beber era sempre uma tarefa complexa e arriscada. A predominância, no

mundo contemporâneo, das bebidas destiladas e de fermentados industriais, nos leva a

esquecer, freqüentemente, que os povos do passado tinham nas bebidas uma importante

fonte de nutrientes, como vimos, em relação aos índios, no capítulo II.

Ao lançarmos, a partir de agora, nosso olhar sobre os lugares assumidos pelas

bebidas, nas distintas formações sociais oriundas das transformações étnicas ocorridas

no IIIº milênio a.C., será importante perceber como cada sociedade viu, em seus

inebriantes específicos e na maneira de consumi-los, uma chave para a expressão das

diferenciações sociais, culturais e étnicas. Nenhuma bebida, contudo, expressou esta

capacidade de significação social de forma tão clara quanto aquele inebriante que os

“indo-europeus” vieram a conhecer quando se estabeleceram às margens do

Mediterrâneo. Com o vinho, os povos mediterrânicos - vale dizer, gregos e romanos -

descobriram um símbolo da vida civilizada, um sinal que os diferenciava enquanto

indivíduos, e enquanto civilizações, daqueles povos (considerados “bárbaros”) que

consumiam bebidas feitas de produtos da coleta (como o hidromel) ou bebidas

“grosseiras” como as cervejas primitivas.


146

3. Os Gregos e o Presente de Dioniso.

(Hefesto) representou uma vinha, também, carregada e belíssima;


de ouro brilhante era a cepa e de viva cor negra os racimos,
que sustentados se achavam por muitas estacas de prata.
De aço era o fosso gravado em redor; mas a cerca de cima
de puro estanho. Um caminho, somente ia dar até a vinha,
que os vinhateiros percorrem no tempo da bela vindima.
Moços e moças, no viço da idade, de espírito alegre,
o doce fruto carregam em cestas de vinho trançado.
Com uma lira sonora, no meio do grupo, um mancebo
hino de Lino entoava com voz delicada, à cadência
suave da música, e todos, batendo com os pés, compassados,
em coro, alegres, o canto acompanham, dançando com ritmo. 50

Enquanto que, na Europa central, ocorriam os dramáticos eventos que puseram

fim aos complexos culturais da Papaver e da Cannabis, e que levaram ao surgimento

das culturas da cerveja e do hidromel, desenvolviam-se no Mediterrâneo as civilizações

que se construíram em torno da tríade formada pelo vinho, o trigo e o azeite. Mais cedo,

ou mais tarde, quase todas as sociedades estabelecidas às margens do Mediterrâneo

acabaram por se dedicar ao plantio da uva e à fermentação do seu suco. Assim como a

América do Sul é a pátria dos cauins e chichas, o Mediterrâneo e áreas próximas, como

as margens do Mar Negro e o Cáucaso, são a terra do vinho.

Falar em “terra do vinho”, contudo, não significa dizer que todas as sociedades

que produziam e consumiam o fermentado de uvas concediam a ele a mesma posição

social ou cultural. Assim como ocorria com as bebidas na América, onde a chicha do

50
Ilíada, XVIII, 561-72.
147

Império Inca e o cauim dos Tupinambá poderiam ser elaborados, tecnicamente, da

mesma forma, mas possuir sentidos sociais completamente distintos, existiam também

enormes diferenças quanto ao lugar, sociológico e cultural, ocupado pelo vinho na

Grécia ou em Roma. Seria também um erro imaginar, ao se falar em “terra do vinho”,

que gregos e romanos dispusessem unicamente do vinho como bebida embriagante, e

que, no interior de suas estratificações sociais, todos os indivíduos tivessem um franco

acesso a esta bebida. A exploração de algumas das diferenças, e semelhanças, nos

lugares ocupados pelo vinho naquelas sociedades, pode representar um bom ponto de

partida para a compreensão das representações sociais que se construíram em torno do

vinho nas sociedades européias.

Antes de tratar do vinho, contudo, deve-se notar que, também no Mediterrâneo,

o vinho foi precedido pela bebida fermentada de mel, o hidromel. Existia uma forte

tradição, entre os gregos, que reservava ao hidromel o papel de primeira bebida

inebriante conhecida pelos homens, o que não deixou de se traduzir em sua religião e

mitologia, como já vimos para o caso do Zeus Meilikhios. Este exemplo, aliás, nos

alerta para o fato de que os gregos muito deviam a uma civilização mais antiga, e que

não era de origem “indo-européia”: a civilização cretense, ou minóica. Afinal, a tradição

que ligava o pai dos deuses ao mel era de origem cretense, e parece ter se originado em

religiosidades muito anteriores à chegada dos proto-gregos.

De acordo com a versão cretense do mito de Zeus, sua mãe, Réia, o pariu em

uma caverna, fugindo da sanha filicida de Cronos. Esta caverna (situada no monte Ida,

local considerado como casa de Zeus) era habitada por abelhas sagradas, as quais

nutriram a criança divina com seu mel, o qual preenchia toda a caverna. De fato, é bem

comprovado, a partir dos dados arqueológicos, que as cavernas eram locais de culto
148

entre os antigos cretenses, 51 e dizia-se, a propósito da caverna do monte Ida, que, em

determinada época do ano, o sangue que havia restado do parto de Zeus “fermentava”

(zein) e transbordava pela boca da caverna. Segundo Carl Kerényi, este

“transbordamento” está claramente relacionado ao hidrómelī (“mel misturado à água”),

que também transborda dos vasos quando fermenta, e que era preparado, em vários

locais da região do Egeu, no interior das cavernas. 52

Novamente defrontamo-nos com uma cultura que relaciona a fermentação à

fertilidade, ao nascimento e à “doação de vida”, assim como fazem índios como os

Araweté e os Arara, quando equiparam o sêmen ao cauim, e a fermentação à gestação. 53

Um outro mito grego (mas também de origem cretense), o do nascimento do caçador

Oríon, esclarece ainda mais esta íntima relação simbólica entre a fermentação do mel e

a “doação de vida”. O herói Hirieu não tinha filhos, e os deuses, bem recebidos em sua

casa, prometeram-lhe que um filho lhe nasceria de um odre de couro, no qual deixaram

“fluir” (em grego ourêin, que é um trocadilho com Oríon) seu sêmen. Ora, a substância

que preenchia o odre, e que recebeu o sêmen do herói, era o mel: hýron era o termo

cretense para “enxame” e “colméia”, e hýria significava “lugar de apicultura”. 54

A relação feita entre o mel e Oríon – um caçador e, portanto, um “primitivo” –

mostra também que os gregos consideravam o hidromel como uma bebida mais

primitiva, mais próxima a um “estado natural” da humanidade, visto ser oriunda de um

produto da coleta, e não de uma planta cultivada, como era a videira. É importante

apontar este fato, já que um dos apanágios da selvageria de “bárbaros”, como os celtas,

51
Finley, 1990: 45-6.
52
Kerényi, 2002: 28-44.
53
Cf. pp. 107-9
54
Kerényi, 2002: 39.
149

era justamente o consumo de bebidas feitas a partir da fermentação do mel e de frutas

silvestres.

Esta visão evolutiva das bebidas, por parte dos gregos, transparece ao

observarmos que as diferentes gerações dos deuses se relacionavam de formas também

diferentes com os inebriantes etílicos. Assim, o velho deus Cronos, um deus da “idade

do ouro”, e anterior à existência dos próprios gregos, só dispunha do hidromel, e feito a

partir do mel obtido de abelhas selvagens, o qual teria causado sua própria ruína. Seu

filho, Zeus, aparece como um deus de transição: nasceu do mel e devia sua própria vida

ao mel, por ter assassinado um Cronos embriagado por aquela bebida. Os sacrifícios

feitos a Zeus sempre se iniciavam com uma libação de melīkratos (“mel misturado”,

isto é, misturado à água), e não com vinho. 55 A um deus mais “recente”, Dioniso, é que

estará reservada uma ligação privilegiada com o vinho, como logo veremos.

Os registros burocráticos dos palácios micênicos 56 mostram que o mel (chamado

de me-ri: note-se a raiz indo-européia), e seus derivados, eram importantes itens de

comércio 57 e de culto: em um tablete de argila, encontrado em Cnossos, lê-se a

inscrição pa-si-te-o-i / me-ri, da-pu-ri-to-jo / me-ri (“para todos os deuses, mel... para a
55
Sissa e Detienne, 1990: 200. Sacrifícios feitos aos mortos também envolviam o hidromel, em vista de
seu componente “subterrâneo”, já que estava ligado às cavernas. Quando Ulisses vai viajar ao reino dos
mortos, a feiticeira Circe diz-lhe que deve fazer “libações para todos os mortos: primeiramente de mel
misturado (melīkratos); depois, de bom vinho (...)”, Odisséia, X, 518-9.
56
A civilização que se desenvolveu na península grega durante o IIº milênio a.C. é tradicionalmente
denominada de micênica, para diferenciá-la da civilização grega clássica, que floresceu no milênio
seguinte. Embora fortemente influenciada pela civilização, mais antiga, de Creta, a civilização micênica
apresentava importantes diferenças: ao contrário dos palácios cretenses (grandes e labirínticas estruturas
abertas ao exterior) os centros micênicos eram palácios-fortaleza, construídos em terrenos elevados, e que
dispunham de grandes armazéns. Também ao contrário dos minóicos, as elites micênicas construíam
grandes túmulos, recheados de objetos suntuários. Seus registros, feitos em tabletes de argila, eram
vazados em uma escrita silábica (derivada da escrita cretense Linear-A, ainda não decifrada), chamada de
Linear-B. Esta escrita só foi decifrada nos anos cinqüenta do século passado, quando se demonstrou que
representava uma forma arcaica do grego. A partir de c.1400 a.C. os micênicos dominam Creta, cuja
civilização já se encontrava em declínio. Os palácios micênicos desapareceram por volta de 1200 a.C.,
quando o Egeu e o Oriente Próximo foram tragados pelas invasões dos chamados “Povos do Mar”, o que
lançou a Grécia no período conhecido como “Idade das Trevas”, em que a escrita desapareceu, e que é
conhecido a partir dos poemas de Homero e Hesíodo. Sobre a civilização micênica ver, entre muitos
outros, Taylour, 1970; Piggott, 1981; Marazzi, 1982; Vernant, 1987 e Finley, 1990.
57
Marazzi, 1982: 45.
150

senhora do labirinto, mel”) 58 , e outras plaquetas mostram que o mel era bastante usado

também nos sacrifícios aos deuses. 59 De igual modo, as plaquetas micênicas apresentam

os primeiros testemunhos escritos a respeito do vinho entre os gregos: são registros de

grandes jarros, chamados de wanaktero (de wa-na-ka, “rei”) que continham vinho ou

azeite para o serviço real, e referências a um festival religioso, chamado de me-tu-wo

ne-wo (“festa do vinho novo”) em honra a uma divindade feminina.

Também aparecem nos tabletes menções a um grupo especial de mulheres

“sagradas”, chamadas de wo-no-wa-ti-si (“mulheres do vinho”), bem como registros de

bois chamados de wo-no-ko-so (“cor de vinho”), os quais apontam para uma relação

ritual entre este animal e o vinho: tanto entre os minóicos, quanto entre os gregos

micênicos, usava-se, para beber o vinho, grandes cornos (naturais e artificiais), os rhýta,

além de enormes cálices em forma de crânio de boi. Dioniso, o deus do vinho,

costumava ser chamado de bougenés, “filho da vaca”. 60

O estudo da cultura material também mostra que o vinho exercia um papel

central na vida destes primeiros gregos revelados pela história. A arqueologia aponta,

inclusive, a existência de “adegas”, muito bem supridas, localizadas no interior dos

palácios-fortaleza. No palácio de Pilos (pátria do mítico herói homérico Nestor), aqueles

que participavam dos banquetes e festins etílicos, realizados em um grande recinto

construído para este fim, o megaron, passavam antes por uma sala onde havia dois

enormes vasos (pithoi), cheios de vinho, o qual era consumido em um sem número de

taças (kylikes), encontradas perto dos pithoi. 61 Muitas destas taças eram de bronze, o

que mostra uma aguda diferenciação hierárquica, já que taças de metal jamais foram

58
Kerényi, 2002: 79.
59
Marazzi, 1982: 214.
60
Kerényi, 2002: 48-9.
61
Taylour, 1970: 92; Johnson, 1999: 41.
151

encontradas nas casas modestas dos sítios micênicos. Estas somente contêm taças de

cerâmica, que imitam, nas formas e motivos decorativos, as taças de bronze usadas

pelos poderosos. 62

Os tabletes de argila nos trazem a primeira menção escrita a uma divindade

que acompanhará o vinho durante boa parte de sua história, e que marcará esta bebida

com um caráter duplo, de fonte de inspiração divina, elitizada e “superior”, e de fonte de

desorganização e desordem social: di-wo-nu-so-jo, “Dionysoio”. 63 A história mítica

deste deus, e, portanto, da bebida da qual era patrono, mostra que o vinho chegou aos

gregos através de múltiplas origens. Devemos lembrar que os proto-gregos,

descendentes daqueles “indo-europeus” oriundos das estepes eurasiáticas, certamente

não bebiam vinho, inebriante que só vieram a conhecer quando se instalaram no

Mediterrâneo.

Para algumas tradições, Dioniso seria um deus de origem cretense, 64 enquanto

que, para outras, teria vindo da Trácia (região que se localiza, hoje, na Bulgária e na

parte européia da Turquia), 65 cujo povo era considerado, pelos gregos do período

clássico, como bárbaros que jamais aprenderam a usar a bebida corretamente, e que se

embriagavam até mesmo para ir à guerra, 66 o que representava, para os inventores das

disciplinadas falanges, um sinal inequívoco de selvageria. Como afirma Carl Kerényi,

esta confusão mítica é um reflexo da origem diversificada da viticultura egéia,

influenciada tanto pelas civilizações egípcia e mesopotâmica, quanto pelas civilizações

anatólicas, como os hititas e frígios. 67

62
Taylour, 1970: 124.
63
Kerényi, 2002: 61.
64
Kerényi, 2002: 47-109.
65
Brandão, 1991 (I): 286.
66
Kerényi, 2002: 121.
67
Kerényi, 2002: 51.
152

Nativo do Mediterrâneo o vinho não era. Embora existam variedades nativas de

Vitis vinífera sylvestris da Península Ibérica ao Cáucaso, estas uvas não domesticadas

não possuem uma quantidade de açúcar suficiente para a produção de uma bebida

fermentada. 68 Escavações em Çatal Hüyük (Turquia), Biblos (Líbano), e em outros

pontos do Oriente Próximo revelam que a uva, provavelmente ainda silvestre, era

consumida por volta de 8000 a.C., e sinais inequívocos de cultivo – modificações nos

caroços promovidas pela domesticação - foram encontrados na Geórgia (país ex-

soviético do Cáucaso), e datadas de c. 6000 a.C. 69

Através de análises químicas de depósitos residuais, foi descoberto que a bebida

foi armazenada em um jarro (datado de c. 5500 a.C.) encontrado em Haji Firuz, no Irã,

sendo este, até o momento, o exemplar mais antigo já encontrado. 70 Será do Oriente,

portanto, que o conhecimento do vinho chegará aos gregos, os quais transformarão esta

bebida em um símbolo de sua civilização. Mas chegará através de Creta, como

demonstram os aspectos minóicos do culto dionisíaco e a própria arqueologia, que

revelou, inclusive, a existência de villas especializadas na produção do vinho no IIº

milênio a.C. 71

Independentemente do problema das origens, o fato é que os gregos tinham

consciência de que o vinho (oinos) lhes havia sido dada como um “presente” de um

deus específico. Seria impossível tratar de todas as versões míticas acerca da invenção

do vinho por Dioniso, 72 mas o que parece muito claro é o seu caráter “estrangeiro”, com

relação às elites guerreiras proto-gregas e gregas, estando seu culto evidentemente

68
Andrew Sherratt, apud Rudgley, 1995: 32.
69
Tannahill, 1988: 63; Johnson, 1999: 20.
70
McGovern, 1996; cf. Perlès, 1998: 51.
71
Kerényi, 2002: 50.
72
Também conhecido, entre outros nomes, por Baco (Bákkhos), palavra de etimologia desconhecida.
Aliás o próprio nome Dioniso não foi ainda resolvido em seu significado, mas parece se originar dos
termos trácios para “céu” (Dio) e “filho” (Nysa), portanto, “filho do céu”: Brandão, 1991 (I): 286.
153

relacionado aos cultos de fertilidade típicos das religiões antigas da “Velha Europa” e

do Oriente Próximo. É, também, um deus de caráter marcadamente popular: os poemas

homéricos, criados para serem executados nos festins das elites, praticamente o

ignoram. 73 As várias versões de seu mito são, contudo, concordes em apontar que o

vinho exercia nos ritos dionisíacos um papel religioso profundo, provocando em seus

participantes uma “embriaguez divina” que poderia alcançar níveis considerados

extremamente perigosos para as elites gregas. Como afirmou, a este respeito, E. R.

Dodds:

Dioniso oferecia liberdade (...). E suas alegrias eram acessíveis a todos, incluindo até os
escravos, bem como àqueles homens livres a quem era impedida a entrada no velhos
cultos gentios. Apolo moveu-se apenas na melhor sociedade, desde o tempo em que era
patrono de Heitor até quando canonizava atletas aristocráticos; mas Dioniso foi, em
todas as épocas, dêmotikos, um deus do povo. As alegrias de Dioniso tinham um campo
extremamente vasto, desde os prazeres singelo do homem simples, dançando uma giga
sobre odres gordurosos, até ao ômophagos charis da bacanal extática. Em ambos os
níveis e nos níveis intermediários, ele é Lúsio, ‘o Libertador’ – o deus que, através de
meios muito simples, ou por outros meios menos simples, habilita uma pessoa a deixar
de ser ela própria durante algum tempo, e por isso a liberta. 74

Em Dioniso, o vinho não é apenas um modificador de consciência ou um

alimento inebriante, mas um verdadeiro enteógeno, isto é, uma substância que traz para

o interior daquele que participa do rito uma real experiência de contato com a

divindade, sendo, portanto, algo que gera aquilo que os gregos chamavam de

enthūsiasmós, ou “trazer o deus para dentro de si”. 75 Esta característica poderosamente

mística do vinho já surge de sua própria invenção.

73
Brandão, 1991 (I): 286.
74
Dodds, 1988: 88-9.
75
Enteógeno é um termo composto, e que significa, ao mesmo tempo, algo que “contém a divindade” e
que “traz a divindade para dentro”. Sobre a definição de enteógenos ver Furst, 1994: 1-28, e sobre o
enthūsiasmós, ver Brandão, 1991 (I): 80.
154

Filho de Zeus com uma mulher mortal, Dioniso foi perseguido, desde seu

nascimento, pela esposa do pai dos deuses, Hera, deusa que velava pelos casamentos

“corretos” e que estava sempre pronta para vigiar as aventuras de seu divino esposo e

punir os frutos destas uniões. A criança foi escondida pelo pai no Monte Nisa, aos

cuidados de seres relacionados à natureza, as ninfas, e seres semibestiais, os sátiros. Ali,

exilado entre animais selvagens e plantas não-cultivadas, o jovem Baco descobriu a

videira, “luxuriante e selvagem”, e “cheia, a ponto de rebentar, de sua carga de sumo

fresco”.

Dioniso cavou um orifício na rocha, em forma de lagar, e chamou os Sátiros

para que colhessem os frutos da videira. Depois de colhidos, e limpos de seus ramos, os

cachos foram colocados no lagar pelo próprio deus. Escrevendo nos estertores da

antiguidade pagã (séc. V d.C.), o egípcio Nonnos descreveu o que ocorreu a partir de

então:

Depois que depositou a inteira colheita no oco espaço, pôs-se a pisar as uvas com
passos de dançador. E os sátiros também, sacudindo ao vento os cabelos, em desvario,
de Dioniso o aprenderam. Peles de corço mosqueadas eles nos ombros atavam, e o
canto de Baco, altíssonos, descantavam, esmagando os bagos com repetidas pisadas, a
gritar ‘Evoé!’ E o vinho esguichava no covo cheio de parras e empurpureciam-se os
tanchões. Premidas pelo alternado repisar, borbulhavam as uvas manando o vermelho
sumo junto com uma espuma branca. Eles o apanhavam com chifres de touro em vez de
copas – coisa que ainda não se tinha visto -, de modo que o próprio vinho misturado
depois tirou o seu nome do cantil feito de cornos. 76

Recolhido o vinho, beberam todos: Dioniso, os sátiros e as ninfas, os quais,

embriagados pelo delírio provocado pela bebida, caíram desfalecidos. De posse do

vinho, e de seu enorme poder extático e enteogênico, Dioniso retornou, triunfante, ao

convívio dos homens e deuses, acompanhado dos sátiros, furiosos de sexualidade, das
76
Nonnos, Dionysiaca, apud Kerényi, 2002: 52-4. Nonnos fez, neste trecho, um trocadilho entre o vinho
misturado (kerannýmenos) e o chifre do touro (kéras).
155

feras, agora mansas, e das ninfas, convertidas em acompanhantes do deus, e chamadas

de mênades ou bacantes. 77

Todos os anos, à época da vindima, celebravam-se festas em honra de Dioniso,

nas quais se representavam os eventos míticos que deram origem ao vinho. Impossível

descrever aqui todos os passos destas festas, que, aliás, assumiam aspectos

diferenciados de acordo com as diferentes tradições regionais. 78 Em várias cidades, mas

principalmente em Delfos, as sacerdotisas de Dioniso, e muitas mulheres que a elas se

juntavam, assim como homens de todas as classes sociais, iam para os montes beber e

dançar em honra do deus.

Como diz Junito Brandão, nestas cerimônias buscava-se ativamente alcançar o

ékstasis através da embriaguez e do fascínio exercido sobre as multidões pela música e a

dança. A partir do ékstasis, as mulheres tornavam-se mênades, isto é, “possuídas” pela

manía, ou “loucura sagrada”, e atingiam um estado de agitação incontrolável, ou órguia

(daí a nossa “orgia”), até caírem desfalecidos:

É nesse estado, que algo de sério e grave acontecia, porque a embriaguez e a euforia,
pondo-os em comunhão com o deus, antecipavam, uma vida do além muito diversa
daquela que, desde Homero até os grandes e patriarcais deuses olímpicos, lhes era
oferecida. (...) Esse sair de si significava uma superação da condição humana, uma
ultrapassagem do métron, a descoberta de uma liberação total, a conquista de uma
liberdade e de uma espontaneidade que os demais seres humanos não podiam
experimentar. (...) A mania e a orgia provocavam uma como que explosão de liberdade
e, seguramente, uma transformação, uma liberação, uma distensão, uma identificação,
uma kátharsis, uma purificação. 79

77
Brandão, 1991: 290.
78
Cf. Brandão, 1991: 78-81; Johnson, 1999: 53-65; Ruck , 2001: 6-14; Kerényi, 2002: 250-333.
79
Brandão, 1991: 79-80.
156

A festa dos pobres: as órguias báquicas. 80

Muitos viram nestas cerimônias sintomas de uma “histeria coletiva”, 81 mas é,

certamente, desnecessário apelar para qualquer interpretação patologizante deste tipo.

Como já vimos em outros momentos deste trabalho, a cultura é, em última instância, a

principal responsável pelos efeitos que uma substância ou outra possa ter sobre a

consciência humana. Mas é lógico pensar, e os textos dos escritores da antiguidade

apóiam esta pretensão, que os vinhos consumidos nos cultos báquicos pudessem ser

“fortalecidos” pelo acréscimo de outras substâncias essenciais, como a resina

fermentada do pinheiro (poderoso excitante), o ópio (as mênades são, por vezes,

80
Bacanal: detalhe de um mural romano (Vila Panfílio, séc. I d.C.), in Toynbee, 1987: 228.
81
Sobre esta visão cf. Brandão, 1991: 80, Johnson, 1999: 56 e Ruck, 2001: 8.
157

representadas com coroas de papoulas), cogumelos como o Amanita muscaria (que se

desenvolve, na Grécia, precisamente na época das orgias báquicas), fungos parasitas da

cevada (o mesmo do qual é extraído o LSD) e o olíbano da Síria, que também possui

propriedades narcóticas. 82

Nos centros urbanos também eram realizadas festas dionisíacas, como as que

eram promovidas em Atenas, as Antestérias (“festa das flores”). Embora menos

“entusiasmadas” do que as órguias, festas como as Antestérias – que duravam vários

dias, cada um com uma motivação religiosa específica - carregavam inúmeros

significados místicos para o vinho, e motivavam grandes explosões de consumo e

embriaguez populares.

Um exemplo desta riqueza simbólica nos é dado pelas cerimônias realizadas no

primeiro dia, chamado de Pithoigía, ou “dia da abertura dos pithoi”, os grandes vasos de

barro onde o vinho era armazenado. As tampas dos pithoi eram retiradas e os vasos

eram deixados abertos, para que as almas dos mortos, as kéres, sentissem seu aroma e

viessem à terra. Para os atenienses, a cidade ficava cheia de fantasmas neste dia, e a

ninguém, incluindo os escravos, era proibido se embebedar.

Esta relação entre os mortos e o vinho parece ser muito antiga no pensamento

grego, já que as próprias plaquetas micênicas chamam as almas dos mortos de di-pi-si-

jo-i (“as sedentas”), 83 e considerava-se que os mortos – e tudo que era enterrado, como

as sementes – eram os produtores e distribuidores das riquezas: dizia um tratado

atribuído a Hipócrates que “é dos mortos que nos vêm os alimentos, os crescimentos e

os germes”. 84 Os mortos vinham à terra para serem recompensados, através do vinho,

pelas dádivas que concediam aos vivos. Ao encerrarem-se as Antestérias, costumava-se


82
Johnson, 1999: 56; Ruck, 2001: 6-8.
83
Kerényi, 2002: 260.
84
Apud Brandão, 1991: 79.
158

dizer “fora, Kéres, já não é mais Antestéria!”, e os mortos eram tangidos de volta ao

mundo subterrâneo, com as cabeças pesadas de vinho. 85

Bebia-se muito nestas festas. Havia, inclusive, um concurso em que o vencedor

era aquele que bebesse mais rapidamente uma grande kýlix (taça) de vinho. 86 Durante as

peças de teatro (eventos intimamente relacionados a Dioniso) os próprios espectadores

assistiam às representações dos eventos da vida do deus consumindo a trimma, um

vinho temperado com uma mistura desconhecida de ervas, 87 e era bastante comum que,

à noite, se encontrassem velhos cambaleantes e embriagados, que representavam as

peças de um autor arcaico semimitológico, Téspis, um precursor do teatro ateniense do

período clássico. 88

Aos khrêstoí, aos aristoí - a nobreza aristocrática que dominava as póleis

helênicas, e que nos legou sua visão de mundo através dos textos que chegaram até nós

– todas estas manifestações populares, bastante relacionadas ao substrato “pré-indo-

europeu” da cultura grega, pareciam decididamente primitivas e selvagens,

especialmente no que tange ao trato com o álcool. Afinal, desde o período dos poemas

homéricos, esta nobreza de sangue vinha desenvolvendo um tipo de relação cerimonial

com a bebida que se caracterizava justamente pelo comedimento e pelo controle da

embriaguez.

Esta relação se dava, privilegiadamente, no seio de uma cerimônia denominada

symposium, reunião dedicada exclusivamente ao consumo do vinho, e separada da

refeição propriamente dita. 89 Embora representassem uma clara reminiscência dos

velhos banquetes dos guerreiros “indo-europeus”, os symposia se diferenciavam

85
Kerényi, 2002: 261.
86
Johnson, 1999: 57; Kerényi, 2002: 268-9.
87
Johnson, 1999: 53-4.
88
Kerényi, 2002: 281-2.
89
Pantel, 1998: 157; Vetta, 1998: 170.
159

bastante daqueles, especialmente no que se refere às práticas de moderação e

refinamento do comportamento etílico. Nos banquetes antigos, comia-se e bebia-se à

farta, como é demonstrado pelos mitos e pela presença, nos grandes salões (megara) dos

palácios micênicos, da eschara, braseiro circular que ocupava o lugar central. 90

No período homérico, um outro objeto, a cratera - grande vaso em que se diluía

o vinho em água, e em que este era, por vezes, misturado ao mel, à farinha, e a frutas

como a cereja silvestre 91 - passa a ocupar o lugar central, embora ainda se tratasse de

um ato de caráter alimentar, conforme descrito na Odisséia, quando Ulisses dirige-se a

Alcínoo, rei dos Feácios:

Sim, digo mesmo que a nada se pode aspirar de mais alto


que ver a paz entre o povo e a alegria no rosto de todos,
e, no interior do palácio, os convivas sentados em ordem,
todos o aedo a escutar, tendo mesas na frente, repletas
de pão e carne, no tempo em que o vinho nas grandes crateras
deita o escanção, para os copos de todos encher até às bordas:
eis o que a mim se afigura a mais bela e inefável ventura. 92

É somente na obra do poeta lírico Alceu (630-580 a.C.) que a palavra symposion

(“beber junto”) surge pela primeira vez, aparentemente como uma forma de marcar a

identidade de uma aristocracia em um período de grande instabilidade social. Nos

symposia nada se comia - “quando bebem não comem” poderíamos dizer, parafraseando

os relatos sobre os índios – e ninguém que não fosse homem e nobre poderia participar:

somente as “companheiras” (hetaíras), mulheres consideradas dissolutas, eram

admitidas, e mesmo assim em um papel francamente secundário. 93

90
Vetta, 1998: 170.
91
Maffre, 1989: 86; Johnson, 1999: 49; Kerényi, 2002: 281.
92
Odisséia, IX, 5-11.
93
Maffre, 1989: 128; Vetta, 1998: 171-2; Johnson, 1999: 50.
160

Nos symposia celebravam-se acontecimentos especiais, não se tratando,

portanto, de eventos corriqueiros. Discursava-se, declamava-se um tipo de poesia

especialmente composta para estas ocasiões, discutia-se a política da cidade, formavam-

se associações políticas (as hetairiai), faziam-se libações aos deuses, fazia-se sexo:

(...) o symposion apresenta-se como o principal meio de agregação social. Os bebedores


são ligados por sua pertença à classe aristocrática, pela sua formação intelectual e
poética, assim como por uma visão comum dos objetivos e das modalidades da luta
política. O symposion teve, durante muito tempo, um papel importante porque soube
aliar, na esfera privada, uma significação religiosa, uma intenção pragmática e um
espírito de puro divertimento. 94

Inúmeras e complexas regras presidiam, nestas cerimônias, o ato de beber. Era

justamente este excesso de regulamentações, aliás, que fazia do symposion um ato

civilizado por excelência, e um progresso cultural. Através destas regras, os homens

superiores diferenciavam-se tanto dos kakói, dos homens comuns, imersos em seus

desregramentos dionisíacos, quanto dos “bárbaros” não-gregos, que bebiam de forma

selvagem, ignorando as sutilezas cerimoniais. Dentre estas regras estava a da escolha de

um simposiarca, o líder que determinava as proporções da mistura do vinho com a

água, e a quantidade de bebida que cada participante deveria consumir, para que todos

se mantivessem em um mesmo estado de euphrosyne (“alegria”). Era o simposiarca,

através do controle da mistura e quantidade do vinho consumido, que garantia que o

symposion se desenrolasse da forma correta: partindo das libações aos deuses, passando

pelas discussões políticas e poéticas, e terminando com a alegria dos jogos e práticas

eróticas, quando então, muitas vezes, formavam-se cortejos (kômos, de onde nos vêm

94
Vetta, 1998: 172.
161

comédia), em que um bando de aristocratas embriagados se deslocava para outras casas,

para continuar a beber e se divertir. 95

A festa dos nobres: o symposion. 96

Uma característica importante dos symposia era o grande valor concedido à

embriaguez que levava à criatividade poética. Os grandes poetas, quase sempre

membros da elite, eram também grandes bebedores: para Demócrito, os melhores

poemas eram aqueles compostos “com inspiração e um sopro divino”, isto é, sob efeito

da embriaguez, e negava que alguém pudesse ser um grande poeta sem a posse deste

furor etílico, de origem dionisíaca. 97 O poeta Anacreonte de Teos, que viveu no século

VI a.C., era o visto como um modelo a ser seguido, pelo menos no que diz respeito aos

95
Vetta, 1998: 172.
96
Cratera ática do século V a.C.,
Disponível em http://www.iath.virginia.edu/~umw8f/Barbarians/first.html.
97
Dodds, 1988: 95.
162

seus pendores etílicos, já que sua radical homossexualidade não era tão apreciada.

Dizia-se de Anacreonte que ele teria morrido afogado em um grande pithos de vinho, e

durante toda a antiguidade os poetas cantaram a memória de Anacreonte sem esquecer

sua marca de grande bebedor:

Videira, mãe da uva e do vinho que a tudo apaziguas,


possa a teia de tuas gavinhas tortuosas
florescer, exuberante, no chão frio e coroar
a estela da tumba do teano Anacreonte,
para que ele, festeiro e ébrio do vinho a que é tão dado,
tangendo sua lira de amante de rapazes
noite afora, sob a terra, tenha acima da cabeça
os galhos com o esplêndido racimo maduro,
e que possa umedecê-lo sempre o sereno da noite
que sua boca de ancião tão doce respirava. 98

Ao compararmos os festejos báquicos populares - com suas explosões etílicas de

comunhão democrática e democratizante – e os aristocráticos symposia, percebemos

que o beber álcool representava, para os gregos, muito mais do que uma simples forma

de obtenção de um estado alterado de consciência. As formas pelas quais o vinho era

consumido identificavam algo fundamental: o lugar que um indivíduo ocupava em uma

sociedade que, para além de suas experiências de participação política popular, estava

profundamente marcada pela divisão entre os “melhores” e a “turba”, além de

determinar as diferenças entre o que era visto pelos helenos como uma verdadeira

civilização e aqueles povos que não sabiam como usufruir convenientemente do

presente de Dioniso aos homens.

98
Simônides, in Paes, 2001: 15; mil anos depois, Anacreonte e suas bebedeiras ainda eram lembrados,
como mostra este diálogo poético do egípcio Juliano (século VI d.C., in Paes, 2001: 93):
“A. Morreste de beber muito, Anacreonte.
B. Deliciei-me: tu, que não, virás também para o Hades.”
163

Não era apenas na forma de consumo que as diferenças sociais se manifestavam,

mas também nas próprias bebidas consumidas. Os pobres, muito raramente, bebiam

vinho: preferiam (ou eram forçados a consumir) o hidrómelī, o kykéon (bebida feita com

cevada cozida e menta), ou a zurrapa, feita com o bagaço fermentado das uvas (ou

vinagre) acrescido de água. Mesmo quando um camponês pobre era vinhateiro, não

costumava consumir o seu próprio vinho, e sim vendê-lo. 99

Os ricos, por sua vez, tinham à disposição uma infinidade de tipos de vinhos,

tintos e brancos, geralmente doces e licorosos, e de fermentação muito lenta. O

preferido parece ter sido o da ilha de Quios: suas ânforas – devidamente identificadas –

foram encontradas do Egito à França, da Toscana à Rússia. Lesbos e Tasos também

eram famosas por seus vinhos de alta qualidade. 100 Todos estes vinhos se

caracterizavam por serem bastante espessos, como os xerez e tokay de hoje, já que eram

deixados, após a colheita, a descansar ao sol por alguns dias, a fim de concentrar

bastante o seu açúcar. 101 O importantíssimo comércio dos vinhos se baseava neste

consumo de luxo: em um mundo onde praticamente todos podem produzir seu próprio

vinho, o que se comerciava era a variedade e a exclusividade, e os signos de status que

eram garantidos pela possibilidade de um indivíduo poder servir vinhos caros e de

variadas procedências. 102

Com os gregos do período clássico, encontraremos um tipo de cultura em que o

consumo das bebidas alcoólicas é algo extremamente ritualizado, de grande significado

religioso, e em que o beber e o comer eram, muitas vezes, considerados como atos que

deveriam ser separados, como no caso do symposion. Com os romanos, ingressaremos

99
Amouretti, 1998: 142-7.
100
Amouretti, 1998: 144; Johnson, 1999: 45-9; Tannahill, 1988: 64.
101
Johnson, 1999: 47.
102
Finley, 1986: 185.
164

em um mundo novo, em que o consumo do álcool - e especialmente do vinho - torna-se

um ato cerimonialmente desmarcado, corriqueiro, quotidiano, um mundo que prepara o

surgimento de um regime etílico que encara o vinho como um alimento, e a embriaguez

como uma prática que deve estar separada da religião. Também com os romanos,

veremos algo que, se já é anunciado entre os gregos, alcança níveis nunca vistos antes: o

uso do álcool como veículo de intercâmbio cultural e étnico, como símbolo de

superioridade cultural, e como um meio de construção e manutenção de identidades.


CAPÍTULO V

O VINHO E A CERVEJA:

A FORMAÇÃO DOS REGIMES ETÍLICOS MODERNOS

1. Roma e a Democratização do Vinho.

O que é um dia? Nada além de um espaço impiedoso.


Mal temos tempo de nos virar, eis que a noite já chega.
Assim nada mais sábio do que passar diretamente da
cama para a mesa.
Não se teve ainda tempo de refrescar e não é preciso
um banho para aquecer.
Porém, uma bebida quente é o melhor dos mantos.
Oh! Bebi como um trácio, de modo que não sei mais o
que pronuncio. O vinho me subiu à cabeça. 1

Com o estudo do regime etílico dos romanos atingimos um ponto central nesta

pesquisa. Apesar da influência do cristianismo, e apesar das modificações ocasionadas

pelo contato com os povos celtas e germânicos, é possível afirmar que as bases

principais dos modos de beber dos povos mediterrânicos – portugueses incluídos –

foram lançadas durante o desenvolvimento da civilização romana. O próprio modo de

beber dos nórdicos, aliás, somente se desenvolveu, em sua expressão moderna, como

uma contraposição cultural ao regime etílico romano.

1
Petrônio, Satíricon, XLI: 55.
166

Em Roma, o vinho perderá, em grande medida, o caráter enteogênico que

possuía entre os gregos, e se tornará um gênero alimentar de primeira necessidade.

Fautor das alegrias e tranqüilizações quotidianas, o vinho alcançará, entre os romanos,

uma importância política e econômica nunca vistas anteriormente. Mesmo quando o

Estado romano resolveu, em termos relativos, o enorme problema da água potável -

sempre difícil de ser conseguida nos tempos antigos, e mesmo modernos – o povo

romano exigia que o vinho estivesse disponível ao consumo quotidiano.

Isto ficou bem claro durante o principado de Augusto (27 a.C. a 14 d.C.), quando

seu genro, o cônsul Agripa, executou uma grande quantidade de obras hídricas e

aquedutos, levando água potável a toda a cidade, que crescia de forma cada vez mais

desordenada. Isto, contudo, não foi suficiente para impedir o povo de solicitar que o

princeps distribuísse vinho, como parte da tradicional distribuição de trigo gratuito, a

annona, levando um exasperado Augusto a afirmar que “o meu genro Agripa já vos deu

muita água para beber!”. 2 A irritação de Augusto foi inútil, já que as distribuições de

vinho tornaram-se uma forma freqüentemente usada pelos imperadores para conseguir

as graças do violento e instável populacho romano. 3

Curiosamente, não se pode dizer que este amor ao vinho fosse algo tradicional

na cultura romana. Na verdade, o uso do vinho pelos romanos se desenvolveu de forma

lenta, conforme a cidade ia se expandindo e conquistando novas terras e povos

tributários. Quando se fala em “civilização clássica” ou “civilização greco-romana” -

colocando-se gregos e romanos em um mesmo “saco” cultural - comete-se um grande

equívoco, pelo menos no que diz respeito ao papel social do vinho: tal como ocorreu na

Grécia, os antepassados (de origem lingüística indo-européia) dos romanos também não

2
Grimal, 1988: 220.
3
Tannahill, 1988: 71.
167

traziam consigo o conhecimento do vinho feito de uvas; mas, diferentemente do que

ocorreu com os gregos em relação aos cretenses, os proto-latinos não se defrontaram, de

imediato, com uma civilização vinícola, que lhes transmitisse as técnicas de fabricação e

os prazeres do consumo do vinho.

Os primitivos romanos viviam em comunidades pastoris, que tinha no leite sua

bebida principal. Muito lentamente, o conhecimento da vinha foi penetrando na região

do rio Tibre, a partir de várias influências. Entre estas, estava a das colônias gregas do

sul da Itália, região que já produzia vinho desde c. 800 a.C., e que era chamada de

Oenotria, ou “terra das videiras escoradas”. 4 Outra influência veio dos etruscos, que

parecem ter obtido as técnicas vitícolas e vinícolas dos gregos italiotas, e que, por volta

de 600 a.C., produziam vinho e o comerciavam entre os gauleses do norte da Itália e sul

da França. 5

Como mostram autores como Andrew Sherratt e Rod Phillips, 6 o vinho somente

começa a ser produzido - por uma sociedade que não o fazia tradicionalmente - após

esta tê-lo conhecido como uma mercadoria importada (commodity), como um item de

seu comércio com sociedades que exportam o vinho. É a partir da necessidade de

satisfazer o consumo interno que a vinha e a vinicultura são introduzidas, e foi

exatamente assim que o vinho tornou-se a bebida nacional dos romanos, mas não sem

antes ultrapassar uma série de impedimentos culturais.

Estes impedimentos estavam relacionados à prevalência da noção de virtus,

noção que constituía e dirigia todo o sistema cultural das gentes, os clãs tradicionais que

formaram a sociedade romana. No mundo das gentes, privilegiava-se tudo aquilo que

4
Em alguns locais do sul da Itália, as videiras representam mais de 30% da vegetação reconstituída pelos
arqueólogos para os séculos IV e III a.C.: Phillips, 2003: 61.
5
Johnson, 1999: 66-7; Phillips, 2003: 61.
6
Sherratt, 2000: 122; Phillips, 2003: 36.
168

representasse a permanência: a repetição das colheitas, a renovação regular das pessoas

e dos animais, a estabilidade da propriedade, a monotonia dos ritmos naturais e sociais.

Condenava-se, por outro lado, tudo aquilo que fosse anárquico, inovador, desenraizador.

Condenava-se o luxus, termo que designava, originalmente, as ervas que

cresciam espontâneas e indisciplinadas, comprometendo as colheitas úteis. Por

extensão, luxus significava tudo aquilo que excedia as medidas: um vestuário

exagerado, um comportamento inovador, uma abundância de prazer. Um verdadeiro

homem, um vir (daí o termo virtus, isto é, a qualidade do homem) em todo o significado

do termo, deveria se afastar de tais excessos, que levam à preguiça e à fraqueza, no

trabalho e, principalmente, no campo de batalha. Como disse Ovídio, expressando bem

o que se entendia por virtus: “bem sabes que o ócio deteriora o corpo do indolente. (...)

Não sou um homem que se entregue a ócios inativos; a inércia me é mortal. Não gosto

de me embriagar até que o dia nasça (...). 7 Ao homem virtuoso, imerso em sua seriedade

e moderação, em sua gravitas, só restava condenar e olhar com desprezo a fraqueza, a

impotentia, que equiparava os homens amantes dos prazeres às mulheres e às crianças. 8

Durante muito tempo, o consumo do vinho foi incluído entre os atos passíveis de

serem considerados um luxus e, portanto, desestimulado pelos códigos morais. As

mulheres, por exemplo, eram terminantemente proibidas de ingerir bebidas alcoólicas: o

marido que encontrasse sua mulher bebendo poderia se divorciar, ou mesmo matá-la.

Temia-se a “possessão”, provocada pela embriaguez, que colocaria as fracas mulheres

sob o alcance de divindades perigosas, como Líber Pater,9 ou Vênus, e as deixaria

propensas a cometer adultérios. Séculos mais tarde, o autor satírico Juvenal (c. 55-127

7
Ovídio, Epistulae ex Ponto, 1997 (I, V): 81-3.
8
Sobre a noção de virtus, cf. Grimal, 1988: 67-8
9
Líber era uma antigo deus italiano da criação e da fertilidade, que nada tinha a ver, em princípio, com o
vinho, mas que acabou por ser identificado ao grego Dioniso, e tendo obscurecidas suas características
originais. Um festival, as Liberalia, era realizado em sua honra: Harvey, 1998: 304.
169

d.C.) ainda criticaria a embriaguez feminina nestes termos: “quando ela está bêbada, o

que significa para a Deusa do Amor? Ela não consegue governar seu púbis com a

cabeça”. 10

Além destas interdições morais, existiam razões mais prosaicas para a

sobriedade da Roma arcaica. Sendo um bem suntuário, adquirido através do comércio

internacional, o vinho tinha pouco espaço em uma sociedade marcada pela pobreza e

pela frugalidade alimentar. A dieta romana dos primeiros séculos consistia,

basicamente, em legumes (couve, acelga, pepino, etc.) cozidos juntamente com um

pedaço de carne salgada de porco (os bovinos eram muito preciosos e raramente

comidos), e consumidos com maçãs e pêras selvagens e bolotas de carvalho.

A pièce de résistance, porém, era uma papa de cereais, chamada puls: os gregos,

comedores de pão de trigo, costumavam chamar os romanos de pultiphagi (“comedores

de papa”), ou pultiphagonides (“grandes papa-sopas”). 11 O puls não era feito de trigo –

que não era cultivado no Lácio – e sim de espelta, um grão inferior, muito duro, e que

não fermentava, impedindo, assim, a fabricação do pão. Ao puls eram acrescentados,

comumente, leite, queijo, mel e ovos. 12 O uso da espelta como cereal principal, em

aliança com as interdições religiosas, ajuda a explicar o surpreendente fato de que os

romanos, sendo uma sociedade consumidora de cereais, e não produzindo o vinho de

uvas, não tenham desenvolvido a produção e o consumo da cerveja, como ocorreu com

outras sociedades granívoras.

Conforme os romanos, entre os séculos IV e II a.C., iam conquistando a

península italiana, sua sociedade paulatinamente sofria radicais transformações, no

10
Apud Phillips, 2003: 77; sobre as interdições ao consumo de vinho pelas mulheres ver também Grimal,
1988: 166 e Johnson, 1999: 67.
11
Sassatelli, 1998: 189.
12
Corbier, 1998: 229; Phillips, 2003: 77-8; Sassatelli, 1998: 188-9.
170

sentido de uma riqueza cada vez maior, e de um crescente aumento da complexidade

social e da abertura cultural. A conquista da Magna Grécia e a participação nos assuntos

políticos e militares do Mediterrâneo oriental solaparam a tradicional rusticidade e o

provincianismo da sociedade romana, e trouxeram uma vaga de costumes e influências

helênicas e orientais, 13 possibilitando o surgimento de um mercado de artigos de luxo

que, como diz Hugh Johnson, “teria escandalizado os primeiros romanos”. Entre estes

artigos de consumo suntuário estava, naturalmente, o vinho. 14

Ao mesmo tempo em que a demanda interna pelo vinho aumentava, Roma ia

conquistando as regiões produtoras e trazendo, como escravos, homens de todo o

Mediterrâneo que possuíam grande experiência como vinhateiros. 15 As conquistas

também revolucionaram a dieta tradicional romana, e isto foi um fator fundamental para

a transformação do vinho, de “commodity” em gênero de primeira necessidade. Ora,

tanto o sul da Itália quanto a Etrúria, ao norte de Roma, eram tradicionais produtoras de

trigo, e este se tornou um produto acessível aos romanos: entre 171 e 168 a.C. foram

abertas as primeiras padarias em Roma, 16 iniciando um processo que faria de Roma a

primeira sociedade a desenvolver uma indústria alimentícia voltada para o consumo das

massas urbanas, indústria formada por grandes latifúndios escravistas, moinhos

(bastante avançados para os padrões da antiguidade), padarias e sofisticados sistemas de

distribuição e comércio internacionais. 17

Embora o puls jamais tenha desaparecido completamente da dieta romana,

especialmente entre os pobres, o pão passou a ser o alimento principal do dia a dia,

marcando uma importante distinção entre aqueles que podiam comprá-lo e os muito

13
Lévêque, 1987: 183-192.
14
Johnson, 1999: 68; Phillips, 2003: 77.
15
Johnson, 1999: 69.
16
Johnson, 1999: 68; Phillips, 2003: 78.
17
Tannahill, 1988: 71-8.
171

pobres, ou muito avarentos. 18 Como mostra Rod Phillips, esta transformação dietética –

de um alimento molhado, como o puls, para um seco, que era o pão – foi crucial: era

necessário um líquido que acompanhasse a refeição, algo em que se pudesse molhar o

pão, e este líquido era o vinho. O desaparecimento das proibições ao consumo por parte

das mulheres revela bem o novo status alcançado pelo vinho. 19 A partir de então, o pão

e o vinho tornaram-se os símbolos máximos da alimentação civilizada, para os romanos

e para todas as sociedades que se desenvolveram a partir de sua herança cultural. 20

Um dos indícios mais evidentes da popularização do vinho era o seu crescente

papel religioso. O vinho tornou-se indispensável aos sacrifícios, que constituíam o

evento principal das cerimônias religiosas romanas: a libatio, isto é, o ato de derramar

algumas gotas de vinho nos altares domésticos, 21 tornou-se algo tão corriqueiro que até

hoje subsiste em nosso costume popular de derramar a bebida “para o santo”. Ao lado

das práticas cerimoniais, desenvolveu-se toda uma “metafísica” do vinho que, embora

influenciada pelos gregos, tinha decididamente um espírito romano. Pode-se dizer que,

enquanto os gregos “bebiam o deus”, isto é, usavam o vinho como um enteógeno, como

uma forma de alcançar uma possessão divina ou poética, os romanos “bebiam para si e

para o deus”, mantendo, desta forma, o vinho em um nível religioso mínimo,

instrumental. Como afirmou, sobre este tema, Florence Dupont:

Cultura sacrificial como a da Grécia, Roma, no entanto, não tem uma cultura do
banquete. Os romanos jamais adotaram o symposion grego, em que aquele que bebe é
possuído pelo vinho e recebe em seu corpo divindades, como Eros, Dioniso ou as
Musas. Com efeito, a civilização romana não tem uma tradição de possessão religiosa,
quer seja erótica, profética ou poética, e, por conseguinte, não tem um espaço capaz de
acolher o culto a Dioniso dos banquetes gregos. Em outras palavras, os romanos não

18
Corbier, 1998: 228.
19
Phillips, 2003: 77-8.
20
Dupont, 1998: 200; Montanari, 1998: 278-81; 2003: 19-22.
21
Veyne, 1995: 206.
172

acreditam na possessão dionisíaca e vêem nela apenas charlatanismo. O banquete


romano serve aos convivas, ao mesmo tempo, a carne e o vinho; este não é uma bebida
sagrada, mas, simplesmente, uma bebida, ainda que um tanto especial. 22

Este aspecto prosaico é evidenciado no papel que os cultos báquicos assumem

em Roma. Conquanto Dioniso (ou Baco, denominação preferida pelos romanos), assim

como na Grécia, tenha se tornado um deus adorado pelos pobres e desclassificados,

jamais possuiu, entre os romanos, o prestígio que obteve junto aos gregos, como

demonstra o fato de que, raramente, lhe fossem dedicados sacrifícios ou ex-votos, como

se fazia aos deuses domésticos (os Lares e Penates) ou aos deuses da religião oficial,

como Júpiter Pater ou Marte. Era visto como um deus benfazejo e civilizador, que

velava pelos pequenos excessos da vida quotidiana, e que era contraposto a Hércules,

símbolo da virtus cívica e intelectual.

Após um início conturbado, em que os cultos báquicos realizados à moda grega,

com suas mênades e órguias, foram proibidos pelo Senado (186 a.C.), a adoração a

Baco se refugiou nos collegia, que, como já vimos, 23 eram associações civis voltadas

para a sociabilidade (regada a muito vinho) e para a garantia dos ritos funerários de seus

integrantes, mais do que associações religiosas, mesmo que fossem dedicadas a um

deus. Este papel de “seguro funerário” exercido pelos collegia fez de Baco o deus mais

representado nas tumbas romanas. Enquanto que, entre os gregos, Baco era uma

divindade perigosa e ameaçadora, que poderia levar os homens à loucura orgiástica, e

que atraía as almas dos mortos com o aroma do seu vinho, em Roma era um deus do

renascimento, que prometia aos homens, aos pobres especialmente, uma vida mais feliz

após a morte. Veremos, mais tarde, como este caráter funerário do Baco romano

22
Dupont, 1998: 200.
23
Cf. p. 16.
173

influenciou o culto cristão, notadamente no que diz respeito ao papel cerimonial do

vinho.

Em Roma, o vinho atingiu um grau de universalidade no consumo jamais

atingido em qualquer outra sociedade, inclusive a da Grécia. Enquanto as terras

conquistadas pelas legiões transformavam-se em latifúndios, trabalhados por escravos e

outros trabalhadores de estatuto mais ou menos dependente,24 a urbs romana se enchia

de ex-camponeses, de ex-escravos, e de pobres e despossuídos de todos os tipos, todos

ávidos por sorver um bom gole de vinho. A prática do evergetismo, isto é, a doação, por

parte dos muito ricos e do Estado, de alimentos e diversões aos pobres, garantia que

todos tivessem acesso, em algum momento, ao consumo do vinho. 25

É claro que esta universalidade não pode ser confundida com qualquer espécie

de “democracia etílica”. Seja na forma de beber, nos locais onde se bebia, ou na

qualidade do que se bebia, as hierarquias sociais se expressavam ativamente através da

bebida de Baco. Nem sempre, aliás, se bebia um verdadeiro vinho: os plebeus e os

soldados costumavam beber a posca, água “acidulada pelo acréscimo de vinagre, ao

mesmo tempo desinfetada e azedinha”, com a qual os lábios do Cristo crucificado foram

umedecidos, 26 ou mesmo a lorca, idêntica à zurrapa grega. 27 Ambas eram bebidas

baratas, feitas com os restos da produção vinhateira, e que permitiam aos pobres a fuga

aos riscos sanitários da água, sem, contudo, levar à embriaguez.

Quando se queria embriagar, ia-se às tabernae ou às popinae: as primeiras eram

lojas de bebidas, onde também se comia, e as segundas eram lugares onde se comia, e

24
Sobre as transformações no campo ocasionadas pela expansão romana, cf. Anderson, 1987: 51-99;
sobre o estatuto social dos trabalhadores do campo, cf. Veyne, 1995: 63-4.
25
Grimal, 1988: 258; Veyne, 1995: 187.
26
Corbier, 1998: 223-4.
27
Johnson, 1999: 79; Phillips, 2003: 80-1.
174

onde também se bebia. 28 Constituíam-se no centro do convívio entre as pessoas,

especialmente porque os pobres romanos não se alimentavam em suas próprias casas,

que não possuíam cozinhas: vivendo, em geral, nas insulae, grandes edifícios de

apartamentos minúsculos, e permanentemente sujeitos a incêndios, os romanos

evitavam o uso do fogo, e se alimentavam na rua. Encontravam-se com os amigos no

Fórum, nas praças e nas termas, e passavam a noite bebendo e fazendo amor com as

prostitutas: tal como ocorria com as tabernas medievais, as popinae eram lugares mal

afamados, nos quais, da mesa ao sexo, caminhava-se muito pouco. 29

Nota-se aqui uma das grandes distinções sociais no que diz respeito aos

costumes etílicos: os pobres bebiam fora de casa, pagando por uma bebida de baixa

qualidade, ou recebendo-a como parte da annona. É claro que os ricos, nem sempre,

podiam ou queriam evitar as tabernae e popinae: em suas viagens, mesmo eles faziam

suas refeições nestes locais, e alguns personagens importantes nutriam grande

predileção por estes ambientes, considerados muito pouco apropriados às pessoas de um

nível superior, e nos quais as hierarquias sociais eram, por breves momentos, anuladas.

O satírico Juvenal, por exemplo, criticava os ricos freqüentadores destes locais

populares ao falar de um cônsul que perdeu o seu cargo porque o imperador teve que

mandar buscá-lo em uma popina: “tu o encontrarás deitado lado a lado com qualquer

sicário, misturado com marujos, ladrões e escravos fugitivos, entre carrascos e

fabricantes de caixões (...). Lá todos têm as mesmas liberdades; as taças são comuns, o

leito não é diferenciado para ninguém, a mesa está à mesma distância de todos”. 30

As tabernae e popinae, (juntamente com os collegia) constituíam-se no principal

espaço de discussão política disponível à plebe, e, justamente por isso, eram locais
28
Corbier, 1998: 231-2; Veyne, 1995: 186-7.
29
Grimal, 1988: 231-5; Corbier, 1998.
30
Apud Corbier, 1988: 232.
175

olhados com desconfiança pelas autoridades romanas. 31 Estas tentavam, na medida do

possível, controlar aquilo que se dizia sob efeito do vinho: Nero, por exemplo,

costumava enviar agentes policiais provocadores, que sentavam junto aos clientes e

começavam a falar mal do imperador, prendendo os ébrios incautos que concordassem.

Outra prática de Nero era enviar homens, suposta ou efetivamente embriagados, cantar

suas músicas nas tabernae e popinae, e ai de quem não as considerasse como belíssimas

composições! 32

Na maior parte dos casos, porém, os ricos bebiam em casa, oferecendo aos

convidados o vinho produzido em suas propriedades e produtos de alta qualidade, e

variadas procedências, adquiridos no comércio. Ter a riqueza e o bom gosto suficientes

para oferecer vinhos de qualidade em sua própria casa representava um dos signos mais

evidentes de pertença a uma classe social elevada, e todos os que tinham recursos

suficientes tratavam logo de organizar banquetes: aceitar um convite destes, e beber às

custas de outrem, era conceder ao anfitrião uma mostra, exterior pelo menos, de respeito

e consideração.

Um homem rico sempre tinha uma infinidade de visitas, de vários níveis sociais,

em especial “amigos” que esperavam ser contemplados no testamento e uma multidão

de clientes, homens que, por vários motivos, se ligavam a um patrono, e se viam

obrigados a fazer-lhe visitas diárias (a salutatio), além dos libertos, ex-escravos (que

poderiam ser muito ricos) que, mesmo após serem libertados, permaneciam ligados ao

ex-amo. Quanto maior o número de pessoas recebidas em um daps, em um banquete

(“tive muitos clientes” era uma frase que indicava uma vida de sucesso 33 ), maior era o

prestígio alcançado por um homem rico. Como diz Paul Veyne: “nada há de
31
Veyne, 1995: 186.
32
Grimal, 1988: 235.
33
Veyne, 1995: 98.
176

surpreendente no fato de um homem rico ou influente viver cercado de protegidos e

amigos interessados, mas entre os romanos tal evidência tornou-se uma instituição e um

rito. ‘A arraia miúda’, escreve Vitrúvio, ‘são aqueles que fazem visitas e não recebem

ninguém’”. 34

É claro que nem todos obtinham o mesmo nível de respeito: era muito diferente

participar de um banquete oferecido por uma grande personagem, um senador ou um

cônsul, e uma refeição patrocinada por um ex-escravo, mesmo que este fosse

imensamente rico, como o Trimálquio do Satíricon, de Petrônio, verdadeiro ícone para

todos os nouveaux riches da história. O desejo de exibir a riqueza deveria, idealmente,

ser acompanhado pela elegância: Trimálquio era rico o suficiente para oferecer sempre

vinhos oriundos de suas propriedades, 35 mas tão grosseiro que não sabia fruí-los

convenientemente: “façamos correr nosso vinho, amigos, e bebamos para que os peixes

que comemos tenham onde nadar”. 36

A mistura anárquica de comida e bebida servidas sem qualquer ordem

hierárquica, indicava a falta de elegância, acidamente apontada por Petrônio em sua

notável descrição do banquete de Trimálquio. O banquete era uma arte, que deveria ser

executada de acordo com uma série de regras de etiqueta e de precedência: as diferentes

categorias de convidados recebiam comidas e bebidas também diferentes, respeitando-

se seus estatutos sociais distintos. 37 Tal como ocorria entre os gregos, bebia-se vinho

diluído em água, cabendo ao “rei” do banquete determinar as proporções da diluição, de

acordo com o humor e temperamento dos convivas. Vale salientar que os romanos

34
Veyne, 1995: 99.
35
“Se este vinho não vos agrada, eu o farei substituir por outro. (...) Graças aos céus, eu não o compro.
Tudo que aqui sacia nossos gostos provém de uma de minhas quintas, que ainda nem visitei”. Petrônio,
Satíricon, XLVIII: 65.
36
Petrônio, Satíricon, XXXIX: 52.
37
Veyne, 1995: 99.
177

eram, neste sentido, bem menos disciplinados do que os aristocratas gregos, sendo bem

comum que os banquetes terminassem com todos caindo de bêbados, e carregados para

suas casas pelos escravos. 38

Esta dessacralização do vinho, promovida pelos romanos de todas as classes, era

acompanhada por uma exuberância de tipos e procedências inimaginável pelos gregos

do período clássico. Quando os romanos começaram a beber vinho em grandes

quantidades, por volta do século II a.C., preferiam os vinhos gregos, mas conforme a

demanda interna se expandia, os vinhos do sul da Itália alcançaram o topo da lista dos

melhores, e entre estes o mais considerado era o vinho de Falerno, localidade da

Campânia. Um menu, pintado em uma parede do bar de Hedonus, uma das tabernas de

Pompéia, revelava a preferência reservada a este vinho: “por um as podes tomar vinho,

por dois podes tomar o melhor, por quatro podes tomar Falerno”. 39 Com o Falerno,

pode-se afirmar, iniciou-se a prática de reconhecer os vinhos por suas safras: os

romanos consideravam o Falerno produzido em 121 a.C. (chamado de opimiano, em

honra de Opimius, cônsul daquele ano) como o melhor vinho já produzido pelo homem,

tornando-o um dos objetos preferidos dos falsificadores.

É claro que este vinho, caríssimo, não poderia faltar no banquete do liberto

Trimálquio, em que os convidados recebiam ânforas de cristal etiquetadas com a

legenda FALERNO DE OPIMIUS, FABRICADO HÁ CEM ANOS, motivando o

anfitrião a expressar, em sua linguagem e falta de modos características, todos os

componentes de simbolismo hierárquico contidos no vinho: “Muito bem! Muito bem!

Então é verdade que o vinho vive mais do que o homem! Portanto, bebamos como

esponjas. Meus caros, o vinho é a vida. O que agora vos ofereço é Opímio garantido.

38
Grimal, 1988: 257.
39
Johnson, 1999: 70; Phillips, 2003: 85.
178

Ontem, embora tivesse jantado em melhor presença, o vinho servido não era tão

bom”. 40

A democratização do uso do vinho, e sua transformação em um produto de uso

quotidiano, foram processos que, embora iniciados na Grécia, alcançaram sua expressão

mais profunda com os romanos. Tais processos, contudo, não ocorreram apenas por um

tipo de “escolha cultural” voluntarista – já vimos que a cultura tradicional dos romanos

não favorecia o uso corriqueiro do vinho – mas também foram favorecidos por uma

série de inovações agrícolas, industriais e comerciais que permitiram a elaboração de

enormes quantidades de vinho, dos mais variados tipos e qualidades, em uma escala

jamais vista na história.

Já se calculou que os romanos do século II d.C. consumiam cerca de 250 litros

per capita/ano, 41 o que, ainda hoje, representaria um nível de consumo extraordinário, 42

mas devemos considerar que a maior parte deste vinho era consumida como posca,

sendo o restante bastante diluído, já que nunca se bebiam puros os dulcíssimos vinhos

da antiguidade. 43 Para Ruth Engs, esta capacidade da indústria vinícola romana de

atender à enorme demanda da população do Império ajuda a explicar a formação de um

tipo de regime etílico que se caracterizava pela moderação no consumo, e pela

associação do vinho com as refeições, tal como ainda hoje fazem as sociedades

mediterrânicas: bebia-se pouco a cada dia, porque era possível beber todos os dias.44

Esta transformação do vinho em um produto corriqueiro também mudou a

maneira pela qual o vinho era culturalmente apreciado. As formas desenvolvidas pelos

40
Petrônio, Satíricon, XXXIV: 48.
41
Engs, 1995: 231; cf. Phillips, 2003: 64.
42
Os franceses, por exemplo, consumiram 76,5 litros per capita entre os anos de 1984 e 1986: Engs,
1995: 230.
43
Phillips, 2003: 79-81.
44
Engs, 1995: 231; cf. pp. 33-4.
179

romanos para beber o vinho, nos lugares públicos ou nos banquetes, para além de todas

as implicações em termos de hierarquias sociais, revelam alguns importantes pontos em

comum, que distinguiam bastante o regime etílico romano do regime grego. Tanto

gregos quanto romanos se embriagavam, e tanto gregos quanto romanos lançaram, em

muitas oportunidades, um olhar crítico à embriaguez. O que os diferenciava - além de

uma presença quotidiana do vinho bem maior entre os romanos do que entre os gregos –

era o arcabouço simbólico e ritual que envolvia o ato de se inebriar.

Para os gregos, pobres ou ricos, beber o vinho sempre envolvia a busca de uma

possessão, orgiástica no caso dos pobres, intelectual e poética no caso da nobreza. De

certa forma, e ressalvadas as muitas diferenças, os gregos mantinham uma relação

“indo-européia” com as bebidas: embriagar-se significava entrar em contato com a

divindade, não sendo, jamais, uma operação corriqueira ou meramente alimentar. Com

os romanos tudo isso muda. Apesar de todas as referências etílicas a Baco, este é

sempre visto de uma forma um tanto jocosa, e nenhum romano imaginaria que pudesse

entrar em contato com qualquer entidade sobrenatural ao entornar uma ânfora de

Falerno. Bebia-se, em Roma, por motivos profiláticos (para evitar a água, sempre

arriscada), por motivos nutricionais e pela simples diversão etílica.

O mais importante é que os romanos, ainda mais do que os gregos, radicalizaram

o processo de inclusão do vinho na tríade alimentar que se tornou um símbolo das

civilizações mediterrânicas, tríade formada também pelo trigo e pelo azeite: os três

originários da agricultura, e os três necessitando de transformações culturais

suplementares a fim de serem consumidos. Os três produtos, e outros que giravam em

torno destes, como as verduras e o peixe, formavam um sistema alimentar

extremamente coerente, e que se opunha a outros sistemas alimentares, como o dos


180

povos “bárbaros” do interior e do norte da Europa. Estes se caracterizavam por

consumir produtos “selvagens”, oriundos, direta ou quase que diretamente, da natureza,

como a carne de caça, o kumiss elaborado a partir do leite de jumentas e éguas, a cidra

feita de frutos silvestres, e a cerveja, pouco considerada entre gregos e romanos. 45

Estes sistemas conformavam identidades culturais que se reproduziam e que se

opunham: os chamados bárbaros eram diferentes, e também inferiores, porque não

colocavam uma marca humana (ou o faziam de forma insuficiente) naquilo que

consumiam, aproximando-se, desta maneira, dos animais. Como afirma Massimo

Montanari:

É este o nó da questão: intervir ativamente na fabricação do alimento, construí-lo


artificialmente, ‘inventá-lo’; não se limitar a tomar o que a natureza (mesmo que
estimulada pelo homem) pode oferecer. (...) Uma distância abissal separava o mundo
dos ‘romanos’ do mundo dos ‘bárbaros’; os valores, as ideologias, as realidades
produtivas de um e de outro. Parecia impossível preenchê-la, e com efeito, devemos
admitir que dois milênios de história comum não foram o bastante para apagá-la: o
caráter da Europa ainda agora é por ela profundamente marcado. 46

Esta marca de alteridade é uma herança da cultura romana, e de sua extremada

atenção aos detalhes dos comportamentos alimentares individuais e étnicos. 47

Impossível comparar, por exemplo, o doce e refinado Falerno com a cervogia dos

teutônicos, líquido encorpado e espesso, mais uma papa do que uma bebida

verdadeira. 48 O que se bebia, e como se bebia, era um índice fundamental para a

identificação de um indivíduo, ou de uma etnia, como pertencente àquilo que os

romanos consideravam como uma vida civilizada: “a regra geral aplicada pelas classes

altas romanas e gregas rezava que um povo não era civilizado se não bebesse vinho; se

45
Montanari, 2003: 18-25.
46
Montanari, 2003: 21.
47
Dupont, 1998: 200-1.
48
Montanari, 2003: 20.
181

bebesse vinho puro, sem diluí-lo em água; ou se bebesse em excesso o que quer que

fosse”. 49

Mas os limites entre os regimes alimentares e etílicos eram permeáveis,

especialmente no que se refere à expansão dos hábitos romanos para as periferias de seu

mundo, mas também no sentido inverso: no século VI d.C., já destruído o império, o

médico Antimo, em seu De observantia ciborum (“Da observância dos alimentos”),

descreve longamente as qualidades medicinais da cerveja, revelando, desta forma, que

os produtos e práticas das culturas marginais também possuíam a capacidade de se

imiscuírem na cultura latina. 50

A Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média, sob o ponto de vista do estudo das

bebidas alcoólicas, são períodos que se caracterizam por um intenso processo de trocas

culturais, mas também de constituição de identidades etílicas distintas. Enquanto que o

vinho, na esteira dos soldados e comerciantes romanos, e depois dos monges e seus

mosteiros, penetrava nas sociedades do centro e do norte da Europa (especialmente

enquanto um bem suntuário), a cerveja, o hidromel e a cidra continuavam a ser as

bebidas quotidianas das camadas populares, e permaneciam como um item importante

na alimentação aristocrática. Por outro lado, os comportamentos etílicos se

solidificaram, constituindo-se aquelas distinções que marcarão as identidades etílicas de

mediterrânicos e nórdicos na era moderna, aqueles “sóbrios”, estes “bêbados”.

49
Phillips, 2003: 100.
50
Mazzini, 1998: 263.
182

2. Vinho e Trocas Culturais no Fim do Mundo Antigo.

Bebi um pouco do hidromel mágico,


Tomado de Othrorir.
Então eu comecei a saber e me tornei sábio,
E a criar e fazer crescer os poemas. 51

Em um dia qualquer do ano de 616 – conta-nos o monge Beda, o Venerável,

escrevendo um século após – o bispo Mellitus celebrava uma missa em uma igreja de

Londres, importante porto fluvial que havia sido transformado em capital pelos saxões,

um dos povos germânicos que havia invadido a antiga província romana da Britânia. De

repente, três nobres saxões pagãos, e suas comitivas, penetraram na igreja e exigiram

beber o vinho da missa. Deixemos Beda descrever o que ocorreu então:

Mellitus recusou, dizendo que somente aqueles que haviam sido batizados poderiam
tomar o pão e o vinho. Os três irmãos se enfureceram, mas Mellitus permaneceu firme.
Finalmente eles o colocaram para fora da igreja, gritando que ele e seus seguidores
deveriam deixar a província. 52

Nesta cena estão representados alguns dos principais lugares-comuns da

literatura clássica e cristã a respeito dos chamados bárbaros, entre eles a violência, a

impiedade e a ânsia pela embriaguez, lugares-comuns que, mil anos mais tarde, também

seriam usados para descrever os nativos americanos. Durante a expansão da civilização

romana pelo interior da Europa - expansão que, nos braços da Igreja, continuou muito

após o próprio Império haver soçobrado –, expandiu-se também o uso de seus principais

bens simbólicos, dos quais o vinho era, muito provavelmente, o mais significativo. Os
51
Runahal, tradicional poema nórdico, in Buhner, 1998: 23.
52
Beda, o Venerável, A History of the English Church and People, (3.2), in Weyer, 1997: 31.
183

conflitos culturais que se desenrolaram quando os mundos mediterrânico e nórdico se

encontraram, nos estertores da Antiguidade e princípios do Medievo, tiveram no choque

entre o vinho e a cerveja (além do hidromel) sua expressão etílica mais acabada.

Será neste período de instabilidade criadora, em que as estruturas sociais e

culturais da Europa medieval surgiram e se desenvolveram, que as bases dos regimes

etílicos dos homens que conquistaram a América foram lançadas. Durante séculos, os

dois mundos etílicos se influenciaram e se interligaram, mas mantiveram algumas

distinções profundas: as diferenças em relação ao que se bebia, e como se bebia,

permaneceram no centro da cena, ajudando a construir as identidades que, no alvorecer

da era moderna, com a Reforma Protestante, se afastariam definitivamente.

A expansão do vinho, e sua transformação em principal bebida das novas

sociedades européias que emergiram dos escombros do Império Romano, representou o

corolário de um longuíssimo processo, no qual o vinho passou a ser consumido, e

produzido, em terras muito distantes daquelas que haviam assistido ao seu surgimento,

às margens do Mediterrâneo oriental. Fenícios e gregos, em suas respectivas

colonizações do Mediterrâneo ocidental, já haviam apresentado o vinho a povos que não

pertenciam ao tronco lingüístico indo-europeu, como os Lígures da Itália e os Iberos da

Espanha, e, principalmente, aos celtas, conjunto de povos de língua indo-européia que, a

partir do ano 1000 a.C., ocuparam boa parte da Europa central, e que se expandiram

fortemente entre os séculos V e III a.C., tendo, inclusive, saqueado Roma (390 a.C.) e o

oráculo de Delfos (273 a.C.), além de ocuparem o atual sul da França, a Península

Ibérica e as Ilhas Britânicas, tornando-se um fator fundamental no conjunto das relações

políticas européias. 53

53
Powell, 1965: 15-65; Momigliano, 1990: 51-70; Dietler, 1994; Witt, 1997.
184

Os vários povos que são incluídos no rótulo “celta” compartilhavam diversos

traços culturais, entre os quais estava a grande importância conferida aos banquetes

etílicos cerimoniais, chamados de Trinkfest. Nestes banquetes, fartamente regados pela

cerveja de cevada (o zythus) e pelo hidromel (o meddyglyn), uma aristocracia guerreira

disputava precedências e “partes de honra”, sentada em peles de lobo, ouvindo a poesia

épica dos bardos (cujo papel se assemelhava ao dos aedos do período homérico grego),

e bebendo em chifres ricamente decorados e em vasos e cálices de bronze, os quais

acompanhavam seus possuidores até o túmulo.

As bebidas, além deste importante papel cerimonial, também ocupavam um

lugar relevante na esfera religiosa. Os celtas possuíam várias divindades e heróis

associados ao consumo e à elaboração das bebidas alcoólicas. Os irlandeses, por

exemplo, adoravam o deus Gobniu, que utilizava um caldeirão mágico para a fabricação

de um zythus sagrado, servido aos deuses em festas chamadas de Fled Gobniu. Esta

cerveja era um elemento fundamental na eterna luta dos deuses contra os perigos do

fomoire (o mau olhado, o azar). 54

Um outro mito esclarece ainda mais a função sagrada das bebidas alcoólicas

para os celtas, e seu papel como fonte da sabedoria e da criatividade. A deusa dos

cereais, Cerridwen, tinha dois filhos, uma bela e radiante menina e Afagddu, um feio e

taciturno rapaz. Para diminuir a má sorte de seu filho, Cerridwen resolveu preparar uma

cerveja sagrada, que daria a ele a dádiva da inspiração e do conhecimento, e que lhe

permitiria conhecer toda as coisas passadas, presentes e futuras. Estas dádivas seriam

concedidas àquele que primeiro tomasse da bebida, e que deveria ser, presumivelmente,

o triste Afagddu.

54
Powell, 1965: 130.
185

Cerridwen ordenou que dois homens se encarregassem de velar pela elaboração

da cerveja mágica. Um velho cego, Morda, deveria manter a fogueira acesa, enquanto

um jovem, Gwion Bach, cuidaria de observar o processo de fermentação, durante o

tempo necessário (um ano e um dia). Tudo correu bem até o último dia, quando a

cerveja, espumando com a fermentação, derramou-se do vaso em que estava sendo

elaborada. Três gotas caíram sobre o polegar de Gwion Bach, que, instintivamente, o

lambeu. Imediatamente, Gwion Bach passou a ver o futuro, que seria trágico para ele:

Cerridwen iria matá-lo.

O jovem, então, fugiu da deusa, furiosa por Gwion Bach ter roubado a cerveja de

seu filho. O mito passa a descrever as inúmeras peripécias de Gwion Bach, que se

transformava em animais, a fim de escapar de Cerridwen. Transformou-se em lebre, a

deusa tornou-se um cão de caça; transformou-se em peixe, a deusa em lontra, e assim

sucessivamente. Até que o esperto Gwion Bach se transformou em um grão de trigo,

imaginando que não seria visto, mas a deusa tornou-se uma galinha, e comeu o grão.

Ao chegar em casa, Cerridwen descobriu que estava grávida. Nove meses depois

deu a luz ao próprio Gwion Bach, tão belo que a deusa não pode matá-lo. Ela fechou o

bebê em uma bolsa e a lançou em um rio, sendo recolhida por um humano, Elphin.

Extasiado pela beleza da criança, Elphin chamou-o de Taliesin (“sobrancelha radiante”),

nome pelo qual a criança passou a ser chamada. Ao crescer, Taliesin tornou-se o mais

famoso poeta e sábio de seu tempo. 55

Através do mito de Gwion Bach é possível perceber que as bebidas possuíam,

para os celtas, uma capacidade enteogênica, de veículo para a integração dos homens

com as divindades e com seus atributos, tais como a coragem e proficiência guerreira e

55
Buhner, 1998: 156-7.
186

a sabedoria e clarividência. Reencontraremos este papel religioso - muito típico das

tradições daquelas sociedades que compartilhavam uma origem lingüística e cultural

indo-européia - entre os povos germânicos. Celtas e germânicos também

compartilhavam a grande valorização cultural concedida àqueles que comiam e bebiam

exageradamente, para além de qualquer medida: “os bárbaros só te consideram homem

se és capaz de comer uma montanha”. 56

Pelo menos no que diz respeito aos celtas – que interagiam culturalmente com os

gregos, e depois com os romanos, desde o século VII a.C. – o forte vinho mediterrânico

foi aceito com entusiasmo, em substituição ao fraco zythus e ao hidromel, que, embora

etilicamente potente, era muito sazonal e de difícil obtenção. A colônia grega de

Massalia (a atual Marselha), fundada por volta de 600 a.C, e que se especializou na

produção de vinho para a exportação, parece ter sido a principal introdutora do vinho

entre os celtas, que o adquiriam como um bem de prestígio extremamente valorizado,

juntamente com vasos e crateras de argila e bronze, trocados por estanho, ferro,

escravos, couro, lã e ouro. 57

Um exemplo desta influência é dado pela gigantesca cratera de Vix, um túmulo

do sul da França, datado de c. 500 a.C., onde foi enterrada uma mulher da elite,

juntamente com uma grande quantidade de bens suntuários, como vasos e jarros para

armazenamento e consumo de vinho, todos importados das colônias gregas, da Etrúria,

e mesmo da própria Grécia. Entre estes bens estava um vaso de 1.100 litros de

capacidade e mais de um metro e meio de altura, o maior vaso grego já encontrado.

Enorme e, ao mesmo tempo, delicadamente produzido, o vaso de Vix tinha, claramente,

56
Aristófanes, apud Montanari, 2003: 37; para os irlandeses, o mínimo que um grande guerreiro deveria
comer era um porco inteiro: Powell, 1965: 114.
57
Momigliano, 1990: 54-5; Dietler, 1994: 46..
187

um papel suntuário, já que suas paredes finíssimas não permitiam que fosse

completamente cheio. 58

A cratera de Vix. 59

Os celtas do sul da França não apenas compravam o vinho e os vasos dos

gregos, mas também os comercializavam com seus parentes do centro e norte da

Europa, como o demonstram os luxuosos serviços para bebidas gregos e etruscos,

encontrados em sítios da Alemanha, Inglaterra e Irlanda. 60 Também aprenderam a

produzir o vinho, como afirmou o historiador romano Justino: “com os gregos os

58
Eydoux, 1979: 22-7; Johnson, 1999: 46.
59
Disponível em http://www.iath.virginia.edu/~umw8f/Barbarians/first.html.
60
Powell, 1965: 100; Dietler, 1994: 48.
188

gauleses aprenderam a viver de forma civilizada (...) a cultivar a vinha e a oliveira. Seu

progresso foi tão grande que a Gália parecia ter se tornado parte da Grécia”. 61

Apesar destes ensaios de produção autóctone, o comércio (entre os próprios

celtas ou com os comerciantes gregos e romanos) era o principal meio de expansão do

vinho pelo interior da Europa céltica. No início da Era Cristã os príncipes belgas, ainda

independentes, só iam para o tumulo acompanhados de grandes quantidades de vinho

acondicionado em ânforas romanas, 62 e os irlandeses, que jamais foram conquistados

pelos romanos, trocavam o vinho por cães ferozes, através de rotas atlânticas de

comércio. 63 Os celtas chegaram a inovar os aspectos técnicos da produção e consumo

do vinho, ao inventar o barril. Grandes artífices da madeira, os celtas consideravam o

barril superior às pesadas e frágeis ânforas em que os vinhos eram transportados, e no

decorrer do século III d.C. os próprios romanos passaram a se utilizar desta invenção

celta. 64

Os barris celtas no comércio de vinho romano. 65

61
Apud Johnson, 1999: 45.
62
Powell, 1965: 114.
63
Paor e Paor, 1958: 26; 50.
64
Eydoux, 1979: 144; Johnson, 1999: 92.
65
In Johnson, 1999: 100.
189

Que não se veja nisso qualquer processo de popularização do vinho entre os

celtas: a bebida mediterrânica era um bem de luxo, reservado ao consumo suntuário das

elites, continuando a cerveja como a bebida quotidiana.66 Nas regiões mais distantes da

influência grega e romana, como o norte de Portugal, o vinho era encontrado muito

raramente, como nos revela o geógrafo grego Estrabão, escrevendo no século I d.C a

respeito da chamada cultura “castreja” (de origem celta) do norte português.:

“geralmente bebem cerveja e raramente vinho, e o pouco que conseguem depressa o

consomem em banquetes familiares”. 67

Vinhos e jarros eram incorporados à vida céltica, mas dentro de suas tradições

etílicas, que nada tinham a ver com os banquetes gregos e romanos. Entre os celtas:

(...) o uso do vinho e de implementos para o seu consumo, ambos importados,


definitivamente não faziam parte de uma desajeitada tentativa bárbara de imitar o
mundo mediterrânico. Os bens importados eram incorporados nas práticas e rituais
festivos nativos de maneira a se conformar à lógica da cultura e economia política
locais. A existência prévia de bebidas nativas (cerveja e hidromel) indicam que os celtas
já possuíam instituições de controle do consumo do álcool bem estabelecidas. 68

Os gregos e romanos tinham, evidentemente, uma opinião menos tolerante.

Diodoro da Sicília, escrevendo em fins do século I a.C., descreve como os gauleses

consumiam o vinho importado de Massalia e da Itália:

Os gauleses são excessivamente amantes do vinho e se enchem com o vinho que é


trazido ao seu país pelos mercadores, bebendo-o puro, e desde que o bebem sem
moderação, porque assim o querem, quando estão bêbados caem em um estupor ou em
um estado de loucura. Conseqüentemente, muitos dos comerciantes italianos, induzidos
pelo amor ao dinheiro que os caracteriza, acreditam que o amor ao vinho mostrado por
estes gauleses é uma dádiva dos céus. Suas embarcações sobem os rios navegáveis, suas
carroças percorrem as estradas de terra para levar-lhes esse produto, que alcança preços

66
Powell, 1965: 114.
67
Estrabão, apud Silva, 1990: 324.
68
Dietler, 1994: 48.
190

inacreditáveis: por uma ânfora de vinho recebem um escravo, assim trocando a bebida
pelo escanção. 69

Este trecho mostra, com bastante clareza, a importância do comércio na

transformação do regime etílico celta. O vinho era a principal moeda de troca entre os

romanos e a nobreza guerreira céltica, mesmo antes que a Gália tivesse sido

conquistada. As inúmeras guerras entre os próprios celtas produziam grandes

quantidades de escravos, que eram trocados pelo vinho romano, que subia o rio Ródano

em direção às terras mais ao norte: quando Júlio César chegou ao centro da Gália com

suas tropas encontrou, estabelecidos entre os celtas, dois comerciantes de vinho

romanos. 70

Percebe-se, portanto, que seria um equívoco ver nesta expansão do vinho uma

simples imposição da conquista militar: os celtas buscavam ativamente obter acesso a

este produto, e incluí-lo em suas próprias práticas etílicas, mesmo à custa de guerras

intestinas, e mesmo enquanto guerreavam com os próprios romanos. É certo que as

relações de poder sempre jogam um papel importante na substituição de hábitos tão

arraigados quanto aqueles vinculados à alimentação ou ao uso de substâncias essenciais,

mas devemos nos acautelar quanto ao risco de ver nesta substituição uma “arma” de

colonização ou conquista: as sociedades pretensamente dominadas sempre dispõem de

uma margem de manobra para recusar a importação de determinados itens culturais,

especialmente os relacionados às estruturas alimentares. Enquanto César lutava contra

os gauleses, entrou em contato com os suevos, povo germânico que recusou

frontalmente o uso do vinho, preferindo manter-se com suas cervejas e hidroméis:

69
Diodoro da Sicília, apud Witt, 1997; cf. Johnson, 1999: 92.
70
Johnson, 1999: 95-6.
191

“proíbem absolutamente a entrada do vinho, por julgarem que com ele se enervam e

efeminam os homens para o trabalho”. 71

Como analisar, portanto, o papel do álcool neste tipo de mudança cultural?

Mesmo levando em conta as abissais diferenças entre processos ocorridos na Europa

pré-histórica ou da antiguidade, e aqueles ocorridos na América colonial, creio que é

possível traçar alguns paralelos que podem nos ajudar a compreender o lugar das

bebidas em um processo de contato étnico e de choque cultural, para além das visões

vitimizadoras e patologizantes, e que desconsideram os aspectos internos das culturas

dominadas.

Diferentemente do que ocorreu com a substituição da Cannabis, no terceiro

milênio a.C., que pode ter ocorrido por meio de conquistas violentas (é impossível saber

ao certo), a atração do vinho mediterrânico sobre os povos da Europa interior se deu

muito mais como uma imposição civilizadora do que militar. Onde quer que fosse

possível produzir o vinho, ou onde quer que as populações nativas tenham incorporado

hábitos e comportamentos típicos de gregos e romanos, a bebida tradicional das

civilizações mediterrânicas impunha-se como o principal inebriante etílico, pelo menos

no que diz respeito ao consumo cerimonial e suntuário. Isto não ocorria, certamente,

apenas por ter o vinho facilitado “os contatos entre culturas distantes, fornecendo

motivos e meios para o comércio e reunindo estranhos na alegria e na cordialidade”, nas

palavras de um entusiasmado apologista da bebida. 72

Penso que foi Andrew Sherratt, tratando prioritariamente da expansão das

civilizações da antiguidade, quem melhor desenvolveu um quadro teórico que nos

permite compreender o lugar das bebidas em um processo de mudança histórica. Para

71
Júlio César, s.d., (IV, II): 74.
72
Johnson, 1999: 14.
192

este autor, os produtos criados nos centros urbanos das civilizações antigas exerciam

uma forte atração sobre os chamados bárbaros, mas não apenas por seu valor funcional:

na verdade, estes produtos possuíam um valor ideológico muito maior do que o

meramente utilitário, e era o desejo de se possuir estes bens que mantinha seu sistema

de produção em funcionamento.

Para Sherratt, o desenvolvimento externo da produção destes centros urbanos,

em direção à periferia do sistema (leia-se: em direção aos “bárbaros”), pode ser descrito

como “a expansão de um regime de valores hegemônico, no qual novas práticas de

consumo são promovidas”. Tais práticas de consumo se relacionam, tipicamente, com

“objetos de metal, têxteis e psicotrópicos consumíveis, tal como as bebidas alcoólicas”,

envolvidas em um sistema de crenças e práticas no qual aqueles bens possuem um papel

ideológico orgânico e coerente. Como insiste Sherratt, os aspectos ideológicos e

materiais estão, neste processo, intimamente interligados: tal como ocorreu na América,

os ”missionários dizem aos nativos que eles estão nus, e os comerciantes vendem

roupas a eles! O fluxo de idéias é tão importante quanto o de produtos”. 73

Ora, encontramos aqui uma conclusão extremamente importante para nós: o

valor simbólico (ou ideológico, como diz Sherratt), para os “bárbaros”, dos produtos de

consumo das civilizações, é tão ou mais importante do que seu valor econômico ou

utilitário. Impossível não traçar um paralelo entre esta conclusão e aquilo que sabemos a

respeito do valor, conferido pelos nativos americanos, aos bens de consumo das

sociedades européias, ou àqueles produzidos pelas sociedades oriundas do processo

colonial. Como veremos nos próximos capítulos, os índios também viam nos produtos

europeus muito mais do que seu valor utilitário ou, no caso das bebidas, seu potencial

73
Sherratt, 2000: 122.
193

embriagante. Ao consumir o vinho europeu ou a aguardente, os índios buscavam

também superar uma diferenciação, social e cultural, que lhes parecia insuportável.

Os diferentes processos de mudança cultural, ocorridos na Europa (seja a

substituição da Cannabis pelas bebidas fermentadas no terceiro milênio a.C., seja a

transformação do vinho em bebida de alto status a partir da expansão greco-romana),

nos alertam para o fato de que as substâncias essenciais jamais podem ser vistas como

algo separado de um complexo contexto histórico e cultural. É por isso que a expansão

do vinho entre os povos do centro-norte europeu não foi acompanhada,

automaticamente, pela expansão dos hábitos etílicos de gregos e romanos.

Os “bárbaros” consumiam o vinho a partir de suas próprias idéias a respeito de

como se deveria beber e de como se deveria embriagar. Como mostra Andrew Sherratt,

o vinho que era levado à periferia do mundo mediterrânico carregava em si uma enorme

carga simbólica, mas esta carga tinha, necessariamente, que ser expressa em termos

culturalmente aceitáveis para aqueles povos que recebiam esta “commodity” tão

especial. Ora, se os celtas representam um bom exemplo desta supremacia das culturas

locais sobre o arcabouço civilizacional que cercava o vinho, os povos germânicos

representam um exemplo ainda mais claro.

Assim como os celtas, os germânicos tinham na produção e no consumo das

bebidas fermentadas uma importante prática social e ritual. Também como os celtas, os

germânicos possuíam instâncias específicas – os banquetes cerimoniais, chamados de

sumbel – em que as bebidas eram servidas e consumidas de acordo com as hierarquias

sociais e com determinadas ordens de precedência, que eram objeto de disputa entre os

chefes guerreiros. Por fim, os germânicos também viam nas bebidas um veículo para a
194

obtenção de habilidades visionárias e poéticas e para o relacionamento com suas

divindades.

Um exemplo deste último ponto é dado pelo mito do Hidromel da Inspiração,

que guarda várias semelhanças com o mito celta de Gwion Bach. No princípio dos

tempos, os deuses lutavam ferozmente entre si, sem que qualquer um dos lados (os

velhos deuses, os Vanir, e os jovens, Aesir) alcançasse a supremacia. Cansados da

disputa, resolveram fazer a paz, através do método tradicional: um grande vaso de argila

foi fabricado, e todos cuspiram dentro dele, até que os fluidos de todos se misturassem e

enchessem o vaso até a borda. Temerosos de que este símbolo de paz fosse tomado por

alguém, transformaram-no em um homem, Kvasir, que tinha o dom da onisciência e que

podia responder a qualquer pergunta, tocando a todos com o poder de sua voz e de sua

relação com os deuses. Kvasir foi o primeiro dos skalds, poetas épicos que eram a

versão nórdica dos bardos celtas e dos aedos gregos, e que, dizia-se, possuíam gotas do

sangue de Kvasir em seu próprio sangue.

Embora amado pelos deuses, Kvasir era odiado por dois malévolos anões, que

invejavam sua sabedoria e proficiência poética. Através de um estratagema, os anões

conseguiram prendê-lo e matá-lo, lançando seu sangue em três jarros, e misturando-o

com mel. Com esta mistura, fizeram um hidromel mágico, o “hidromel da inspiração”,

que permitia àqueles que o bebiam tornarem-se tão sábios quanto o próprio Kvasir. Os

anões guardaram ciumentamente o precioso hidromel, mas sua fama chegou aos

ouvidos de um gigante, Suttung, que roubou os vasos e os escondeu em um local ermo,

Hnitbjorg, onde foram guardados por sua filha, Gundlad.

Então, o líder dos Aesir, Odin, soube do ocorrido e resolveu encontrar o

hidromel. Após inúmeras peripécias, chegou Odin a Hnitbjorg, e com “voz doce e
195

coração suave” convenceu Gundlad de suas boas intenções, levando a gigante – há

muito tempo solitária - a convidá-lo para sua cama. Depois de três dias, Gundlad,

muitíssimo feliz e satisfeita, e totalmente esquecida das recomendações do pai, ofereceu

a Odin um pouco do hidromel, para aplacar-lhe a sede. Fingindo que bebia apenas uma

gota de cada vaso, Odin acabou por beber todo o conteúdo dos jarros, fugindo em

direção à casa dos deuses, Asgard.

Furioso, Suttung perseguiu Odin, ambos transformados em águias. Por muito

pouco, Suttung não alcançou Odin, que foi salvo pela ação dos outros deuses. Estes

colocaram jarros do lado de fora de Asgard, permitindo que Odin vomitasse o hidromel

nestes jarros, escapando desta forma, da vingança de Suttung. Contudo, três gotas

escaparam e caíram na Terra. Os homens, que perambulavam pela Terra, colheram as

gotas do hidromel mágico e passaram-nas em seus lábios, sentindo, desta forma, o gosto

do sangue de Kvasir e do mel produzido pelas abelhas. Este foi o início da poesia e da

música, e é por isso que a música era chamada de “presente de Odin”, ou “bebida dos

Aesir”, e os poetas eram conhecidos como “os portadores do hidromel de Odin”. 74

Neste mito, tal como no de Gwion Bach, encontramos uma série de temas

comuns a vários povos de origem lingüística e cultural indo-européia, especialmente o

fato de que a bebida seja um veículo para a expressão artística e para a clarividência e

sabedoria, todos estes apanágios divinos, somente acessíveis aos homens através do

consumo de substâncias essenciais. Assim como os gregos e celtas, os germânicos viam

nas bebidas fermentadas uma metáfora da criação do mundo e da humanidade,

concedendo a elas um papel fundamental em seus ritos e em suas cerimônias de caráter

alimentar ou festivo. Seria inútil procurar, entre os romanos, uma visão deste tipo, o que

74
Buhner, 1998: 21-3.
196

revela uma discrepância fundamental na apreensão cultural das bebidas, discrepância

que estará na base das distinções que se construirão, em torno das bebidas, entre os

povos latinos e os nórdicos durante os períodos medieval e moderno.

Outro tema importante encontrado no mito de Kvasir é o do papel criador e

fertilizante da saliva. Os europeus que se enojavam, ao ver as índias mastigarem a

mandioca para a fabricação do cauim 75 , certamente não imaginavam que, em seu

próprio ambiente cultural, a saliva gozasse de um tal prestígio mítico, indicando, aliás,

que a saliva deve ter sido efetivamente usada como elemento sacarificante pelos

europeus antigos. Não apenas a saliva dos deuses, como no mito germânico, mas

também a dos animais: “recolha a espuma dos lábios dos furiosos, dos lábios dos ursos

em combate. (...) Encontre os ursos nas montanhas selvagens, de cujos lábios pinga a

espuma (...) use a espuma do urso como fermento”, diz o épico finlandês das origens da

fermentação, o Kalevala. 76

Os germânicos possuíam um rol de bebidas muito semelhante ao dos celtas.

Bebia-se, além do mjöð (o onipresente hidromel), a cidra – no inglês antigo beor, no

nórdico antigo björ – e a verdadeira cerveja de cereal, chamada no inglês antigo ealu, e

no nórdico öl, origem da palavra inglesa ale. 77 O ealu / öl era a bebida do dia-a-dia: no

Colóquio de Ælfric - obra didática anglo-saxônica do século VII, escrita em inglês

antigo – a cerveja era preferida à água. Quando perguntado sobre o que bebia

normalmente, o jovem noviço que dá o nome à obra afirma: “ealu gif ic hæbbe, oþþe

wæter gif ic næbbe ealu (“ale se eu a tiver, água se não tiver a ale”). 78

75
“A fabricação dessa espécie de aguardente é tão incrível quão repugnante” (Debret, 1975 [1834-9], [I]:
21), cf. pp. 81-2.
76
Buhner, 1998: 150-1.
77
Ward, 2003; somente mais tarde, durante a Baixa Idade Média, é que beor/björ perdeu o significado de
“cidra” e tornou-se sinônimo de cerveja, originando os atuais beer e bier.
78
Ward, 2003.
197

Mas a característica mais marcante dos modos de beber dos europeus do norte,

pelo menos aos severos olhos dos romanos, era sua espantosa capacidade de ingerir

bebidas fortes, como o hidromel, vários tipos de cervejas, cidras e seivas fermentadas, e,

no longo processo de contato cultural e étnico com os romanos, o vinho puro, não-

diluído. Para Ruth Engs, este modo de beber estava diretamente relacionado às

circunstâncias ecológicas: ao contrário do que ocorria entre os romanos – que

dispunham, permanentemente, de grandes quantidades de bebida, o que levava a um

tipo de consumo moderadamente distribuído por todo o ano – os nórdicos sofriam com

a imprevisibilidade do clima e do fornecimento de grãos e frutas para a fabricação de

suas bebidas. Isto levava a um padrão de consumo que Engs chama “feast or famine”

(“festa ou fome”): bebia-se tudo o que era possível sempre que o álcool estava

disponível. Se levarmos em consideração que as cervejas e cidras tinham vida curta, e

estragavam com rapidez, veremos que fazia sentido para os germânicos, de um ponto de

vista ecológico e cultural, beber muito, e de forma cerimonial e não quotidiana. 79

Tácito, no século I d.C., foi um dos primeiros a apontar esta característica,

decididamente “bárbara”, dos germânicos que habitavam o Reno:

O fato de passar um dia e uma noite bebendo não é desgraça para ninguém. Suas
disputas, como seria de se esperar em se tratando de pessoas embriagadas, raramente se
limitam aos impropérios, mas comumente acabam em ferimentos e derramamento de
sangue. Mas é nestas festas que eles geralmente fazem a reconciliação dos inimigos,
formam suas alianças matrimoniais, escolhem seus chefes, fazem a paz e a guerra,
porque acreditam que, em nenhum outro momento, está a mente mais aberta à
simplicidade de propósitos e favorável às nobres aspirações. Sua bebida é feita de
cevada ou outros grãos, e fermentada de maneira semelhante ao vinho. Os habitantes da
margem do rio também compram vinho. Sua comida é simples, consistindo de frutas
selvagens, carne de caça, e leite coalhado. Satisfazem sua fome sem guloseimas
delicadamente elaboradas. Ao matar sua sede são igualmente moderados. Se você

79
Engs, 1995: 229-30.
198

permitir que seu amor pela bebida seja suprido com a quantidade que eles desejam, eles
serão vencidos pelos seus próprios vícios tão facilmente quanto pelas armas dos
inimigos. 80

Tácito aponta neste trecho a existência de uma efetiva dicotomia entre os

comportamentos etílicos mediterrânicos e germânicos, os quais esperavam que um

verdadeiro guerreiro, pleno de seus atributos de virilidade, fosse alguém capaz de beber

muito, assim como seu deus guerreiro e beberrão, Thorr. Enquanto que um grego, como

Xenofonte, poderia afirmar que “o ponto mais importante na educação de um homem ou

de uma mulher” era a sobriedade em relação à comida (e à bebida), os germânicos viam

no grande bebedor alguém que exprimia uma “superioridade genuinamente animalesca

sobre seus semelhantes”. 81

É, naturalmente, necessário tomar certas cautelas quanto a este tipo de relato. Tal

como os relatos dos europeus que entraram em contato com os índios no Brasil, e que

também viam em seu comportamento etílico a existência de uma “animalidade”

indesejável, os romanos tinham todo o interesse em exagerar determinadas

características pouco aceitáveis, segundo o seu código cultural de referências. O próprio

Júlio César ao se encontrar, um século antes de Tácito, com o povo germânico dos

suevos, afirmou que eles recusaram frontalmente o uso do vinho, preferindo manter-se

com suas cervejas e hidroméis: “proíbem absolutamente a entrada do vinho, por

julgarem que com ele se enervam e efeminam os homens para o trabalho”. 82 Além

disso, no Colóquio de Ælfric, revela-se que a potência etílica do vinho também era

considerada, pelos germânicos “beberrões”, como algo perigoso: “vinho não é uma

80
Tácito, Germânia (I, IV).
81
Montanari, 2003: 36-7.
82
Júlio César, s.d., (IV, II): 74.
199

bebida para crianças ou tolos, mas para os mais velhos e sábios”. 83 Estes exemplos

mostram a necessidade de não “essencializar” estes relatos, e ter em mente que os

diferentes povos germânicos poderiam construir sua relação com as bebidas de formas

diferentes, de acordo com suas próprias histórias particulares.

Não obstante, a documentação histórica não deixa lugar a dúvidas quanto à

discrepância entre os dois regimes etílicos, colocados em choque no decorrer do

processo de integração e conflito cultural que levou ao desaparecimento do mundo

clássico. É sempre necessário observar, contudo, que este processo apresentou um duplo

sentido: se o vinho penetrou no mundo germânico enquanto um requisitado bem de

prestígio, alguns elementos da cultura alimentar destes povos também invadiram as

sociedades mediterrânicas.

Um exemplo disso é dado pela valorização da carne como um alimento de elite,

o que não ocorria no mundo clássico, que valorizava fortemente - além da tríade

vinho/azeite/trigo – os alimentos vegetais. Com as conquistas germânicas, o lauto

consumo da carne deixou de ser considerado como um ato de selvageria, passando a ser

considerado como um apanágio das elites guerreiras que conquistaram seu poder através

da força das armas. Como afirma, a este respeito, Massimo Montanari:

Na cultura das classes dominantes, principalmente, este valor primário da carne é


fortemente considerado e afirmado. A carne surge, aos olhos desses grupos, como um
símbolo de poder, o instrumento para obter energia física, vigor, capacidade de
combate; qualidades que constituem a primeira e verdadeira legitimação do poder. E
vice-versa, abster-se de carne é um sinal de humilhação, de marginalização (mais ou
menos voluntária, mas ou menos ocasional) da sociedade dos fortes. 84

83
Apud Phillips, 2003: 103.
84
Montanari, 2003: 28.
200

Encontraremos igualmente, durante a formação dos regimes etílicos modernos,

esta tensão entre o excesso e a abstinência, tensão que será extraordinariamente

amplificada quando forem inventadas as bebidas destiladas, e o ato de beber for

separado de sua intima relação com os regimes alimentares, relação que vicejava

quando aquilo que se bebia era também um alimento, como no caso do vinho e da

cerveja.

Embora germânicos e celtas compartilhem, do ponto de vista etílico, um mesmo

“fundo cultural”, é necessário atentar para as diferenças nas respostas dadas por cada

um destes conjuntos culturais ao contato com as sociedades mediterrânicas, diferenças

que se explicam pelos também diferentes modelos de integração e conflito cultural. Os

celtas se chocaram com o Império em um momento em que a sociedade romana estava

no auge de sua força militar e de seu desenvolvimento cultural e político. Além disso,

muitos dos povos celtas habitavam em regiões próximas, ecológica e geograficamente,

das áreas centrais da civilização romana. Desta forma, constituiu-se, em regiões como a

Provença, uma cultura “galo-romana”, que tinha no vinho - produzido em sua própria

região ou importado da Itália – sua bebida principal, acompanhada de bebidas

tradicionais dos celtas, como a cidra e o hidromel. 85

Ora, os germânicos construíram um tipo de integração bastante diferente,

baseado em um processo histórico consideravelmente distinto. Germânicos e romanos

se chocaram em um momento em que a sociedade romana já estava muito transformada

com relação aos tempos de Júlio César e Tácito. Não apenas o Império Romano já não

possuía a força militar para se impor aos novos atores oriundos do norte, quanto a

própria sociedade romana - até certo ponto - “germanizava-se”. A partir do século III

85
Eydoux, 1979: 282; cf. Alarcão (1990b: 420), para o mesmo processo em Portugal.
201

d.C. era possível ver um imperador de origem germânica (o que jamais ocorreu com um

celta), como Maximino (o Trácio), filho de um godo e de uma alana, beber uma ânfora

(20 l) de vinho puro por dia, para escândalo dos cronistas romanos. 86

Apesar destas distinções, é necessário apontar alguns pontos de convergência

nos contatos entre os romanos e os “bárbaros”, tanto celtas e germânicos quanto outros

povos, como os hunos, oriundos das estepes asiáticas. Em todos estes casos, foi o

comércio o principal veículo de expansão do vinho em direção às populações

periféricas. Já vimos que as legiões romanas foram, tanto na Gália quanto na Germânia,

precedidas pelos comerciantes de vinho, em um processo que se repetiu em outras áreas

de fricção interétnica.

Como alertou Andrew Sherratt, este tipo de interação étnica estava sempre

marcada pela valorização, concedida pelos chamados bárbaros, aos produtos da

civilização, entre os quais o vinho se sobressaía. Na ausência de registros escritos

oriundos dos próprios povos “bárbaros”, a evidência arqueológica torna-se crucial, para

a compreensão deste fenômeno. Um estudo realizado em sítios nativos na Escócia,

datados de 1 d.C. a 400 d.C., no qual foram analisados vasos e cálices de vidro,

demonstrou a existência de um importante comércio de vinho e de objetos associados ao

seu consumo. Ao contrário dos sítios romanos localizados na Britânia - nos quais existe

uma ampla variedade de recipientes, para os mais diversos usos -, os sítios dos nativos

escoceses apresentam uma quantidade desproporcional de recipientes voltados para o

serviço e o consumo do vinho, recipientes que, por sua qualidade, demonstram ter sido

adquiridos em virtude de suas características de bens de prestígio.

86
Montanari, 2003: 24.
202

Para Dominic Ingemark, a motivação principal para estas importações de vinho

era política, mais do que comercial. Ao se utilizarem destes bens de origem estrangeira,

as elites das sociedades periféricas construíam uma esfera de exclusividade que

contribuía para a manutenção de sua influência e para a legitimação de seu poder. Estes

objetos, e as bebidas que eram consumidas neles, não eram apenas um símbolo de

status, mas representavam, em si mesmos, instrumentos de poder. As elites nativas

usavam estes bens de prestígio, e a possibilidade de distribuí-los, como um meio para

garantir o relacionamento entre os chefes e seus guerreiros e para reforçar a lealdade

entre estes e aqueles.

Por outro lado, o conhecimento necessário ao “uso correto” deste tipo de objeto,

conhecimento que era adquirido juntamente com os próprios objetos, representava uma

espécie de barreira contra a ascensão daqueles indivíduos que não dispunham de um

acesso privilegiado ao comércio com os romanos, e que não dispunham do mesmo tipo

de técnica social desenvolvida para o consumo do vinho e para o uso dos vasos e cálices

correspondentes. Não saber como usar os cálices, ou não saber como consumir o vinho

da forma apropriada, representava, como afirma Ingemark, uma “falha humilhante”, o

que permitia a manutenção, e mesmo a expansão, de distinções hierárquicas cada vez

mais agudas. 87

O Estado romano tentou controlar e limitar este tipo de comércio, e estreitar as

possibilidades para que seus súditos entrassem em contato com povos que não estavam

sujeitos ao seu controle. Uma lei de 368 d.C., inserida no Codex Iustinianus, chegou a

proibir totalmente o comércio de vinho e óleo com os “bárbaros” além das fronteiras,

com resultados praticamente nulos. 88 Onde quer que os comerciantes romanos, ou de

87
Ingemark, 2003.
88
Maenchen-Helfen, 1973: 186.
203

outras partes do Império, conseguissem acesso às populações bárbaras, o vinho era

vendido e consumido de acordo com as regras culturais de cada uma daquelas

sociedades.

Os hunos – povo mongólico das estepes asiáticas, que atacou a Europa no século

V d.C., provocando uma reação em cadeia que levaria os povos germânicos a penetrar

nas fronteiras romanas - representam um exemplo muito claro dos limites e

possibilidades do comércio etílico com os povos que se encontravam além das

fronteiras do Império. Enquanto que os hunos do distante Mar Negro não bebiam vinho,

porque não tinham acesso ao comércio romano, os hunos que se instalaram na atual

Hungria, comandados por Átila, tinham largo acesso ao fermentado de uvas. 89

Através dos hunos podemos vislumbrar a forma pela qual o vinho era utilizado

pelos povos “bárbaros”. Os hunos de Átila – na verdade, uma confederação de povos

asiáticos, de godos germânicos, de sármatas (citas) e até mesmo de eslavos –

importavam, e recebiam como tributo, grandes quantidades de vinho, o que permitia

inserir a bebida em seus rituais e práticas cerimoniais em uma posição de destaque. O

grego Priscus – que fez parte de uma embaixada enviada a Átila, em 448, por Teodósio

II, imperador romano do Oriente – deixou-nos uma notável descrição dos usos etílicos

da elite huna.

Já na chegada ao país dos hunos, Priscus pode perceber a diferenciação

hierárquica que era feita através das bebidas, já que enquanto os embaixadores eram

recebidos com hidromel, aos seus criados foi oferecida uma bebida feita de cevada,

chamada de kam, parecendo evidente que, ao hidromel, era conferida uma superioridade

em relação à cerveja. Mais tarde, ao entrar em contato direto com o próprio Átila,

89
Maenchen-Helfen, 1973: 189.
204

Priscus pôde observar a forma pela qual o vinho era usado como marcador de

diferenciação hierárquica, segundo as normas culturais dos próprios hunos. Ao chegar

em uma cidade, Átila era recebido com carne e vinho, oferecidos pelas esposas dos

nobres, o que representava, segundo Priscus, “a maior honra que podia ser feita entre os

Citas”. Mais tarde, em um banquete, o papel cerimonial do vinho, e as complicadas

regras para o seu uso, ficavam ainda mais evidentes. Acompanhemos a descrição de

Priscus:

Quando chegou a hora fomos para o palácio (...) e paramos na entrada do salão, na
presença de Átila. Os serviçais deram-nos uma taça, de acordo com o costume nacional,
para que pudéssemos rezar antes de sentarmos. Tendo bebido da taça, procuramos
nossos assentos; todas as cadeiras estavam colocadas junto às paredes, de cada lado do
salão. Átila sentava no meio, em um divã (...). Os lugares à direita de Átila eram
ocupados pelos mais nobres, e os lugares à esquerda (onde estávamos) pelos segundos
em honras. Quando todos estavam sentados, um serviçal deu à Átila uma taça de
madeira, com vinho. Ele a tomou, e saudou os primeiros em precedência, os quais,
honrados pela saudação, levantaram-se, não podendo voltar a sentar até que o rei, tendo
experimentado ou tomado o vinho, retornasse a taça ao escanção. Então, todos os
presentes honraram Átila da mesma forma, saudando-o, e bebendo; mas ele não se
levantou. Cada um de nós tinha seu próprio escanção, que serviu o vinho depois que o
serviçal de Átila se retirou. Quando os segundos em precedência, e aqueles próximos a
eles, foram saudados de maneira semelhante, Átila nos saudou da mesma forma, de
acordo com a ordem dos assentos. (...) Quando os pratos da primeira leva foram
consumidos, todos nos levantamos, e não voltamos a nos sentar até que cada um, na
mesma ordem observada anteriormente, bebêssemos à saúde de Átila. 90

Priscus, e todos os outros estrangeiros, se retiraram após a refeição propriamente

dita, deixando os hunos entregues a uma longa sessão de bebedeira pela madrugada.

Seria interessante que tivéssemos uma descrição destas bebedeiras, e dos

comportamentos sociais associados ao consumo do álcool, já que sabemos que os hunos

eram conhecidos por seu pendor para a embriaguez: no século sexto, os masságetas –
90
Priscus, “Fragmenta Historicum Graecorum”, fragmento 8, (Disponível em
http://ccat.sas.upenn.edu/jod/texts/priscus.html).
205

fração dos hunos que se empregaram como mercenários no exército bizantino – eram

conhecidos por serem os bebedores mais destemperados, o que é não é pouca coisa, pois

competiam por esse título com os godos. 91 O que é importante notar é que, ao contrário

dos preconceitos e lugares comuns lançados pelos romanos ao beber “bárbaro”, estes

povos eram perfeitamente capazes de construir suas próprias normas e interdições a

respeito do consumo do vinho, afastando-se por completo de qualquer tipo de

“animalização” de sua conduta etílica.

Com o fim do Império Romano do Ocidente, ingressaremos em uma nova fase

da história etílica européia. Os lautos banquetes regados a vinho dos ricos, e as festas

dionisíacas dos pobres romanos deixaram de existir (pelo menos em suas formas

tradicionais), mas as dicotomias, construídas secularmente, entre os regimes etílicos

mediterrânico e nórdico não desapareceram. Estas diferenças assumiram novas formas,

mediadas pela emergência de um novo ator social e cultural, que possuía suas próprias

idéias a respeito das bebidas e da embriaguez: a Igreja.

91
Maenchen-Helfen, 1973: 189.
206

3. A Idade Média e a Luta pela Moderação

Olha o vinho de Soissons!


Podeis provar que é bom!
No jardim ou na mesa
É o melhor com certeza!
Bebida, aqui, é pra todo lado.
Bebe o doutor, bebe o soldado,
Bebe o médico, bebe o padeiro,
Mesmo quem não tiver dinheiro... 92

A conquista germânica da Europa ocidental representou uma modificação

profunda no panorama étnico e cultural de uma região cuja história é crucial para a

compreensão do processo de contato interétnico ocorrido na América da era moderna.

Não sendo possível, dados os limites deste trabalho, abordar exaustivamente a história

etílica da Europa medieval, lançaremos o foco sobre os paradigmas de apreensão do ato

de beber e sobre a formação dos comportamentos etílicos que encontraremos bem

estabelecidos entre os europeus do período moderno.

De um ponto de vista etílico, pode-se afirmar que o panorama europeu se

enriqueceu na passagem da antiguidade ao medievo, na medida em que a produção do

vinho espalhou-se por regiões não alcançadas pelo vinho romano, enquanto que a

cerveja permaneceu como um gênero de primeira necessidade em suas áreas

tradicionais, sendo consumida até mesmo em regiões que, anteriormente, não se

interessavam por ela.

92
Courtois d’Arras, peça anônima do século XIII, in Lauand, 1998: 220.
207

A vaga germânica, se não teve a força para fazer a cerveja suplantar o vinho,

enquanto bebida considerada universalmente como superior, permitiu que, durante toda

a Idade Média, a bebida tradicional dos povos do norte permanecesse extremamente

popular e de uso quotidiano naquelas áreas menos romanizadas. A dicotomia

vinho/cerveja, acompanhada da dicotomia comportamental entre sobriedade e

embriaguez, marcará a cultura medieval, servindo como base para a constituição dos

regimes etílicos modernos, e para as diferentes abordagens feitas pelos europeus ao

modo de beber dos nativos americanos.

Estas dicotomias se desenvolveram em um quadro social marcado pela

emergência do cristianismo, o que representa uma virada fundamental na história das

bebidas. Com o cristianismo, uniram-se duas perspectivas etílicas que, até então,

pareciam ser absolutamente excludentes. Como religião mediterrânica, e oriental, o

cristianismo incorporou, em seu próprio cerne doutrinário, o caráter enteogênico das

bebidas alcoólicas; ao mesmo tempo, porém, desenvolveu ao máximo a antiga noção

romana de virtus, condenando a embriaguez e o uso recreativo do vinho e de outras

bebidas.

A condenação ao uso imoderado do vinho não é uma novidade do cristianismo,

já existindo anteriormente na tradição hebraica. 93 É uma condenação, contudo, bastante

relativa, na medida em são inúmeras as passagens bíblicas em que o consumo do vinho

aparece como algo positivo, e mesmo desejável. Na própria vida de Jesus existe um

exemplo claríssimo desta tolerância ao uso imoderado do vinho: durante as bodas de

Caná, os convidados acabam com toda a bebida, ficando sem nada. Então Jesus diz aos

93
Phillips, 2003: 94-7; cf. p. 14 desta tese.
208

serventes para que encham algumas talhas (que eram usadas para a purificação ritual)

com água, a qual logo é transformada em um vinho de primeira qualidade.

É interessante observar o que o despenseiro, ao ver a grande quantidade e

qualidade do vinho apresentado pelos serventes, e sem saber a sua procedência, diz ao

noivo: “todos costumam pôr primeiro o bom vinho e, quando já beberam fartamente,

servem o inferior; tu, porém, guardaste o bom vinho até agora”. 94 Este é um relato um

tanto inusitado, quando visto à luz das condenações cristãs ao uso imoderado do vinho:

afinal, Jesus transforma a água em vinho depois que os convidados já haviam bebido

“fartamente”.

O espanto diminui quando percebemos que o cristianismo se desenvolveu em

um contexto de rivalidade com outras religiões, inclusive com religiões dionisíacas não-

gregas, religiões “do vinho”, que existiam à farta no Oriente Próximo. Não é à toa que

Jesus afirma, em determinado momento, que é “a videira verdadeira”,95 indicando,

portanto, que existiam “videiras falsas”. Segundo Carl Kerényi, estas videiras falsas

eram as religiões que percebiam no fermentado de uvas um veículo enteogênico, uma

forma de “beber o deus”, e que podem ser discernidas entre os sumérios, hititas,

canaanitas, e mesmo nas tradições semíticas mais profundas, que falam de um deus do

vinho, Dusares ou Orotalt (que Herôdotos traduz por Dioniso 96 ), e de uma “mãe da

uva”, Umm Unkud, a quem, durante a vindima, se dizia: “ó mãe da uva, perdoa-nos! A

uva é morta! Nós não sabíamos!”. 97

Desta forma, quando os evangelistas fazem Jesus dizer, na última ceia, “isto é o

meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos. Em verdade

94
João, 2: 1-12.
95
João, 15: 1.
96
Herôdotos, 1988 (III, 8): 151.
97
Kerényi, 2002: 220-3.
209

vos digo que jamais beberei do fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber,

novo, no reino de Deus”, 98 eles estavam, não apenas, se integrando às antigas tradições

enteogênicas das religiões nas quais se “bebia o deus”, mas também, ao mesmo tempo,

afastando-se destas tradições, ao fazer Jesus retirar-se voluntariamente da comunidade

dos bebedores, e diferenciando o cristianismo das religiões de tipo dionisíaco. Como

afirma Kerényi: “era necessário dissociá-lo da videira ‘falsa’, ou seja daquela que

desencaminhava o povo... porque escondia no seu interior um falso deus e uma falsa

religião”. 99

Esta dissociação, contudo, não é capaz de esconder as similitudes entre o

cristianismo e os cultos dionisíacos e órficos. Tal como Dioniso (ou Baco), Jesus era

filho de um deus com uma mulher mortal, e deve-se recordar 100 que, em Roma, Baco

havia se transformado em um deus do além-morte, que tinha o poder de conceder a vida

eterna. As representações do Cristo também se confundem com os cultos báquicos,

como nesta imagem cipriota, do século V d.C., em que o Baco menino, sentado no colo

de Eros e com um halo coroando sua cabeça, recebe uma procissão de adoradores com

presentes, em uma clara identificação com a Adoração dos Reis Magos. Túmulos

cristãos, como o de Constância, filha do imperador Constantino, também fazem uso de

imagens báquicas: neste, em especial, além de vários símbolos da religião dionisíaca, a

morta se fez representar com uma grinalda de videira. 101

98
Marcos, 14: 24-5.
99
Kerényi, 2002: 222.
100
Cf. pp. 172-3.
101
Sobre a identificação do cristianismo com a religião de Dioniso, cf. Johnson, 1999: 63-4 e Phillips,
2003: 96-7.
210

O Dioniso menino inspira as representações de Jesus nos primórdios do cristianismo. 102

Mesmo após 392, quando o imperador Teodósio baniu o paganismo, a presença

báquica no mundo cristão fazia-se sentir com força, especialmente entre os camponeses

ocidentais, a população mais refratária à influência cristã, e que mais preservou os

antigos costumes pagãos, não sendo ocioso, aliás, recordar que “pagão” vem de pagus,

palavra que designava um território rural cercado e, por extensão, qualquer localidade

situada no campo. Em princípios do século VI, Cesário de Arles (470-543), em um

sermão dirigido a uma paróquia rural, era obrigado a criticar a identificação, feita pelos

camponeses, entre as festas cristãs e os antigos ritos pagãos:

102
Mosaico de Pafos, Chipre, séc. V, in Johnson, 1999: 65.
211

Evitai as danças organizadas nas festas religiosas, com suas canções torpes e obscenas
(...). Esses infelizes e miseráveis que, sem vergonha e sem temor, promovem seus bailes
e danças bem diante das próprias basílicas dos santos, tendo vindo à igreja como
cristãos, dela saem como pagãos: pois tais bailes são restos do paganismo. 103

Ainda em 691-2, durante o II Concílio de Constantinopla, a Igreja tinha que

proibir elementos religiosos relacionados a Baco, como as danças públicas de mulheres

(“fonte de todos os males e ruínas”), o canto coral e os mistérios (“costumes antigos

inteiramente alheios à vida cristã”). Também proibiu que os camponeses, durante a pisa

das uvas, e seguindo um costume ancestral, invocassem o nome de Baco e usassem

máscaras de sátiros e silenos. 104

Para realizar esta “auto-conversão”, de um culto de base enteogênica para uma

religião crítica ao uso das bebidas e à embriaguez, o cristianismo se apoiou na própria

ética das classes médias e pobres da sociedade romana. Como mostra Peter Brown, os

primeiros cristãos herdaram dos despossuídos romanos a valorização da “simplicidade

do coração”, e a crítica ao uso supérfluo dos alimentos e bebidas, tão comum entre os

ricos. 105 Esta sobriedade (“comemos tanto quanto a fome exige; bebemos tanto quanto a

sobriedade permite” 106 ), absolutamente simétrica à condenação ao luxus feita pelos

antigos romanos, serviu de base para a percepção cristã a respeito das bebidas, e de seu

uso “incontrolado”, por toda a Idade Média e pela Era Moderna. 107

Esta postura - que buscava a sobriedade e, no limite, a abstinência do consumo

de bebidas alcoólicas – tinha boas possibilidades de se enraizar no ambiente cultural das

áreas mais tradicionais da civilização romana, como a Itália, a Provença e a Península

103
In Lauand, 1998: 46.
104
Johnson, 1999: 64; Kerényi, 2002: 60.
105
Brown, 1995: 250-1.
106
Tertuliano, apud Thébert, 1995: 355.
107
Cf. pp. 17-20.
212

Ibérica. Mais para o norte, contudo, a posição crítica da Igreja a respeito do consumo do

álcool chocava-se frontalmente com a valorização, conferida pelos germânicos, ao

grande bebedor, e com o valor cerimonial das bebedeiras e comilanças. Como afirmou,

a este respeito, Michel Rouche: “as refeições – sendo a da noite sempre mais importante

que a do meio-dia – constituem verdadeiros rituais religiosos. Partilhar uma refeição

com outrem torna a pessoa intocável. Participar dos banquetes une a comunidade e

coloca-a em comunicação com os deuses, pois eles são regeneração e fonte de vida”. 108

Esta importância cerimonial, e religiosa, dos alimentos e bebidas fez com que a

esfera alimentar, e etílica, surgisse como uma importante arena para a luta da Igreja pela

conversão dos germânicos. Esta luta dirigia-se não apenas ao comportamento etílico,

mas à própria escolha do que se deveria beber: para a Igreja da Alta Idade Média, a

única bebida aceitável era o vinho, símbolo etílico máximo do Cristo e de seus

seguidores. Em um contexto de conquista de corações e mentes dos germânicos, era

necessário combater o complexo cultural construído em torno da cerveja, a bebida mais

tradicional daqueles povos.

No início do século VII, o missionário irlandês Columbano (543-615),

posteriormente canonizado, visitou os suevos – o mesmo povo que, seis séculos antes,

havia se recusado a beber o vinho de César 109 - e encontrou-os em meio a uma

celebração sacrifical, em torno de um enorme vaso de cerveja. Perguntando a eles o

motivo daquela festa, Columbano ouviu que se tratava de um sacrifício em honra do

deus Wotan (Odin). O monge Giona, que escreveu, em 643, uma Vita Columbani, nos

diz o que fez o missionário: “Columbano, então, soprou dentro do vaso, que se fez em

mil pedaços com um horrível estrondo; e, junto com a cerveja, dele saiu a força

108
Rouche, 1995: 428.
109
Cf. p. 198.
213

maléfica, uma vez que no vaso estava escondido o demônio, que por meio do líquido

sacrílego queria apoderar-se da alma dos sacrificantes”. 110

Introduzir o vinho no regime etílico germânico, enquanto portador de um caráter

religioso, retirando da cerveja este mesmo caráter, representava uma forma de

transmissão da mensagem religiosa cristã aos “bárbaros”, significando também, para

aqueles germânicos que aceitavam o vinho e seu simbolismo, um importante fator de

legitimação e santificação de seu poder, recente e belicosamente conquistado. Além

disso, o vinho se apresentava também como um veículo para a ação direta de Deus

sobre os homens, incorporando os milagres que justificavam a escolha do cristianismo –

uma religião anti-bélica, poder-se-ia dizer - por parte dos chefes guerreiros.

Quando, no século V, o rei franco Clóvis preparava-se para entrar em batalha

contra o visigodo Alarico – que professava o arianismo, sendo, portanto, um herege –

recebeu do bispo de Reims, Remígio, uma benção na forma de um frasco de vinho, que

lhe daria força para combater os inimigos da fé verdadeira. Clóvis, então, bebeu “com

toda a família real, e uma grande multidão; e se saciaram com abundância, mas o vinho

não tinha mais fim: brotava sempre do frasco, como de uma nascente”, e naturalmente,

alcançou a vitória. 111

É claro que a Igreja não tinha o poder suficiente para alterar por completo os

milenares regimes etílicos dos germânicos, os quais possuíam, inclusive, vigor

suficiente para influenciar as próprias sociedades mediterrânicas, como lembra Massimo

Montanari, ao apontar a importância da cerveja na cultura alimentar ibérica. Montanari

também nos mostra que, mesmo com o poder ideológico assumido pelo vinho após a

ascensão do cristianismo, a bebida não foi aceita com facilidade pelos germânicos:

110
Giona, Vita Columbani, apud Montanari, 2003: 33.
111
Hincmar de Reims (século IX), Vita Remigi, apud Montanari, 2003: 32.
214

ainda no século XII, um príncipe da Inglaterra se recusava a beber vinho, considerando-

o uma “bebida estrangeira”. 112

No século VIII, o monge inglês Alcuíno – secretário de Carlos Magno e homem

devotado (tanto quanto se poderia ser na Alta Idade Média) à cultura clássica, tendo

sido um dos responsáveis pelo chamado “renascimento carolíngio” – teve várias

oportunidades para se defrontar com o vigor dos regimes etílicos germânicos. Em 780, a

serviço do imperador, visitou a Frísia (a atual Holanda), sendo recebido pelo bispo

Alberico, homem, diz Alcuíno, “poderoso em vacas” (vaccipotens). No frugalíssimo

banquete, além dos alimentos sólidos, apenas mel, “porque a Frísia não possui azeite

nem vinho”. 113 Durante uma visita de dois anos à Inglaterra, o latinizado monge

germânico deplorava a falta de vinho em sua terra natal, ao escrever a um amigo na

corte carolíngia: “lamenta-me, homem de Deus! O vinho desapareceu de nossos odres e

a amarga cerveja ruge em nosso estômago. Assim, bebe em nosso nome e passa um dia

alegre; manda-nos (vinho), pois não temos com que nos alegrar, nem com que nos

revigorar”. 114

O cristianismo, contudo, acabaria por incorporar a cerveja ao rol dos alimentos

aceitáveis, após a extirpação de seus aspectos pagãos mais evidentes. O próprio São

Columbano, aliás, é responsável por alguns milagres relacionados à bebida bárbara,

entre eles um caso de multiplicação de pães e cerveja, similar ao milagre de Jesus, o

que, como diz Massimo Montanari, “confere à bebida do norte uma singular e

inesperada dignidade evangélica”. 115 Não poderia ser de outra forma, na medida em que

a cerveja se constituía em um item crucial da dieta dos povos do norte, de todas as

112
Montanari, 2003: 34.
113
Doehaerd, 1974: 26.
114
Apud Johnson, 1999: 123.
115
Montanari, 2003: 34.
215

classes, posto que o vinho - conquanto tenha alargado em muito sua área de utilização

durante o medievo - tenha permanecido, pelo menos entre os nórdicos, como uma

bebida de elite, e reservada a ocasiões mais especiais.116

Este papel central da cerveja, para além de suas qualidades nutricionais, estava

relacionado ao velho problema da água potável, de obtenção sempre complexa.

Desconfiava-se profundamente da água, e o hábito de misturá-la com o vinho revela não

apenas a necessidade de diminuir a densidade ou a acidez da bebida fermentada, como

também de minimizar as possibilidades de contaminação. 117 Para Hildegarda von

Bingen, religiosa alemã do século XII, a água só poderia trazer “mais dano que

utilidade”, sendo especialmente contra-indicada para os enfermos, que deveriam beber

vinho ou cerveja:

O vinho cura e torna a pessoa alegre, com seu bom calor e sua grande força. A cerveja
pode fazer com que os tecidos do indivíduo voltem a ser adiposos, e dá ao semblante
uma boa cor por causa de sua força e da boa seiva do cereal. A água, entretanto, debilita
o organismo (do enfermo)... porque é débil e não tem riqueza (poder) especial; mas se a
pessoa se encontra saudável a água não prejudica, se for bebida de vez em quando. 118

No mesmo século, os médicos italianos do rei da Inglaterra desaconselhavam a

ingestão da água pura, a qual provocaria desarranjos intestinais e dificultaria a digestão,

recomendando que o monarca bebesse vinho, especialmente o branco suave. 119 As

frutas, cujos sumos poderiam aliviar a necessidade de água potável, também eram vistas

como patogênicas e prejudiciais à digestão, devendo, aliás, serem acompanhadas de

116
Montanari, 1998: 286-7.
117
Montanari, 1998: 287.
118
Apud Lima, 1990: 392.
119
Riera-Melis, 1998: 395.
216

vinho, para diminuir seus riscos 120 , e sendo usadas, geralmente, apenas para a

fabricação de bebidas, como a cidra. 121

Neste contexto, as bebidas fermentadas assumiam um lugar central, em especial

a nutritiva e pouco alcoólica cerveja, ideal para ser consumida no dia a dia. É claro que

as hierarquias sociais, e as culturas alimentares de cada região, influenciavam

agudamente na escolha das bebidas. Desta forma, enquanto o vinho permanecia como

bebida quotidiana nas sociedades mediterrânicas, era pouco acessível aos pobres do

norte. Aliás, quando se era muito pobre, beber água era a única alternativa possível. Na

novela alemã do século XIII, Helmbrecht, um camponês recomenda a um filho

ambicioso, e pouco realista, que se contente com a água: “tu deves viver daquilo que eu

vivo, daquilo que tua mãe te dá. Bebe água, meu querido filho, antes de comprar vinho

com roubalheira”, ao que responde o filho: “podeis beber água, meu pai, eu quero beber

vinho”. 122

Não obstante, mais do que combater as bebidas que tradicionalmente eram

consumidas pelos povos germânicos, a Igreja medieval tentou alterar as práticas etílicas

que incentivavam e glorificavam o consumo excessivo e a embriaguez, com resultados,

vale dizer, modestíssimos. Pode-se afirmar, a propósito, que quando os religiosos na

América lamentavam e combatiam a embriaguez dos índios tinham atrás de si uma

longa trajetória, na própria Europa, de crítica e combate aos excessos etílicos.

Como já vimos em outros momentos, os povos germânicos compartilhavam com

seus antepassados de origem indo-européia a visão da embriaguez como um ato de

coragem e de virilidade. Na Europa central e setentrional, as bebedeiras públicas – com

120
Cf., p. ex., o provérbio inglês: “after a pear, wine or a priest” (“depois da pêra, o vinho ou o pároco”):
Flandrin, 1998b: 494.
121
Flandrin, 1998c: 595.
122
Wernher der Gartenaere, Helmbrecht, apud Montanari, 2003: 77.
217

as conseqüentes cenas de embriaguez, vômitos, e violência - eram freqüentes, e a

sobriedade, tão louvada pelos Padres da Igreja, era vista como um sinal certo de

fraqueza e de falta de masculinidade. O amor à embriaguez comprova-se pelas inúmeras

taças encontradas em túmulos da França e sul da Alemanha, muitas com resíduos de

vinho ou cerveja, e que apresentavam inscrições do tipo “encha toda, chefe, derrame” e

“alegre-se, estou cheio de alegria”. 123

A Historia Francorum, de Gregório de Tours (539-594), importante obra da

historiografia medieval, está repleta de casos de embriaguez, dos mais variados tipos,

envolvendo os nobres - e prelados - francos. A respeito de Eberulf, chambellan

(camarista) do rei franco Childeberto II, disse que “estava continuamente ocupado com

bebedeiras e vaidades; e quando um padre recusou-lhe vinho, porque ele já estava

visivelmente bêbado, arremessou-o contra um banco e bateu nele com os punhos e

outros golpes, de forma que ele parecia ter morrido”. 124

Bebia-se, literalmente, até cair, como ocorreu ao final de um banquete: “tirada a

mesa, de acordo com os costumes dos francos, todos ficaram nos bancos onde se

haviam instalado; beberam tanto vinho e se empanturraram de tal modo que até os

escravos ficavam bêbados em todos os cantos da casa, segundo o lugar onde cada um

tinha caído”. 125 E não eram apenas os nobres e seus escravos que se entregavam à

mutantrinken, 126 mas também muitos religiosos, como o padre bretão Vennoc:

Era tão dado à abstinência que vestia apenas roupas feitas de pele, só comendo ervas
selvagens cruas e apenas tocando o vinho com os lábios, de forma que se poderia pensar
que ele o beijava, mais do que bebia. Mas os devotos, em sua generosidade,
freqüentemente lhe davam vasos desta bebida, e é triste dizer que ele aprendeu a beber

123
Phillips, 2003: 113-4.
124
Gregório de Tours, Historia Francorum, VII, 22.
125
Gregório de Tours, Historia Francorum, X, 27.
126
Cf. p. 141.
218

tão imoderadamente que era visto sempre bêbado. E sua embriaguez ficou cada vez
pior, até que ele foi tomado por um demônio, e tornou-se tão violento que usava facas,
pedras, ou quaisquer outros tipos de armas que lhes caíam nas mãos para atacar outros
homens, em uma raiva insana. Foi necessário atá-lo com correntes e prendê-lo em uma
cela. Enraivecido, após dois anos morreu. 127

É claro que não era apenas no território franco que alguns religiosos seguiam os

passos de seus compatriotas e entregavam-se às bebedeiras: na Inglaterra do século VII,

“até os padres cristãos estavam mais freqüentemente bêbados do que sóbrios”. 128 No

século X, na Renânia, o monge Regino de Prüm (840?-915), a serviço do arcebispo de

Trier, escreveu uma De ecclesiasticis disciplinis, em que estavam contidas

recomendações várias e um questionário que deveria ser aplicado pelos agentes do

arcebispado para avaliação da conduta moral dos clérigos da região. Entre as perguntas

que deveriam ser feitas pelos inquiridores, estavam a de se saber se os padres

celebravam missas “de casa em casa, fora da igreja”, se eram “dados a jogos com cães e

pássaros”, se “permitiam que mulheres se aproximassem do altar e tocassem o cálice do

Senhor”, ou se “coletavam usura”, entre muitas outras.

Os hábitos etílicos, naturalmente, não estavam ausentes do questionário. Os

agentes deveriam estar atentos à possibilidade dos padres serem “dados a bebidas ou

brigas”, se costumavam “beber nas tabernas”, e se “celebravam missa depois de ter

comido e bebido”. Através da obra de Regino ficamos sabendo que alguns padres

ficavam bêbados, e influenciavam outros a beber, em honra dos mortos, o que era um

costume pagão, além de permitir que se cantassem músicas pagãs, e que as mulheres

dançassem, dentro das igrejas. 129

127
Gregório de Tours, Historia Francorum, VII, 34.
128
Beda, o Venerável, A History of the English Church and People, (1. 11), in Weyer, 1997: 18.
129
Regino de Prüm, De ecclesiasticis disciplinis, v. I, in Adams, 1969: 104-9.
219

A necessidade de controlar os maus hábitos etílicos dos clérigos fazia com que,

nas obras de caráter disciplinar, sempre constassem recomendações contra a

embriaguez, e isto desde os princípios do cristianismo. Já na Monosticha Catonis, obra

moralista do século IV, constavam os versos convivare raro, vino tempera (“não abuses

de festas, usa do vinho com moderação”). 130 Os fundadores das ordens monásticas

insistiam na moderação etílica, e esta mesma insistência mostra que esta tarefa era

bastante difícil. Basílio de Cesaréia, um dos fundadores do monasticismo oriental, no

século IV, aceitava o prazer do vinho, mas dizia que “o Senhor deu-nos o vinho para a

alegria do coração e não para a embriaguez”. 131

No Ocidente, Bento de Nórcia admitia que era impossível evitar que os monges

bebessem, mas pregava a moderação: “o vinho não é uma bebida para monges; mas

como hoje em dia os monges não se convencem disso, vamos ao menos chegar a um

acordo: bebamos moderadamente sem buscar a saciedade”. 132 A Igreja não se limitou a

pedir que os monges moderassem seu consumo: durante todo o medievo várias normas,

das mais variadas procedências, buscavam punir aqueles que exagerassem nas

bebedeiras. O Concílio de Aix, em 816, regulamentou a quantidade diária de vinho (1 l )

e de cerveja ( 5 l ) que os monges poderiam consumir, medida que visava não apenas a

moderação etílica mas também tentava evitar que os mosteiros – grandes produtores de

vinho e de cerveja - formassem estoques e especulassem com as bebidas. As normas

disciplinares dos mosteiros também puniam os bebedores inveterados: o manual de

penitências do mosteiro de Silos (Espanha) obrigava os que se embriagavam a se

130
In Lauand, 1998: 51.
131
In Lauand, 1998: 148.
132
Apud Phillips, 2003: 105.
220

penitenciar por 20 dias; se vomitassem, a pena subiria para 40 dias; e se o monge tivesse

o desplante de vomitar durante a eucaristia, sua penalidade seria de 60 dias. 133

Apesar destas tentativas de controle, os religiosos medievais ficaram marcados

pela fama de grandes bebedores, o que estava plenamente de acordo com as práticas

sociais e com o fato de que a Igreja, secular ou regular, dispunha de grandes

quantidades de bebidas, seja a título de presentes e tributos, seja por conta da produção

no interior das propriedades eclesiásticas. No século XII, o historiador Hughes

d’Orléans exprimia em versos aquilo que todos pensavam a respeito dos clérigos:

Eis enfim promovido o monge a bispo:


Pálido e emagrecido pelo jejum,
Com um dente incansável e ruidoso,
Em breve ele consegue, em seis bocados,
Engolindo seis peixes dos maiores,
No jantar devorando um lúcio enorme,
Em menos de dois anos ganhar peso e banha,
À imagem dos porcos esfaimados
Ele que, no claustro, bebia no rio,
Hoje faz com o vinho um tão grande dilúvio,
Que o levam para a cama pelo braço, bêbado (...). 134

133
Phillips, 2003: 116.
134
In Duby, 1988: 17.
221

O monge beberrão assalta o barril do mosteiro... 135

O que fica claro, a partir dos fatos descritos acima, é que existia um flagrante

descompasso entre um ideal de comportamento etílico moderado e o fato de que as

bebidas ocupavam um lugar central na vida quotidiana da Europa medieval. Para além

das necessidades nutricionais e recreativas, o vinho e a cerveja eram produtos cruciais

para a vida econômica e social, bastando, para comprová-lo, notar que o vinho e a

cerveja (acompanhados do trigo) eram os principais itens do comércio medieval. 136 Em

um período (a Alta Idade Média) tradicionalmente considerado como de decadência das

135
Iluminura satírica inglesa do século XIII, in Johnson, 1999: 121.
136
Doehaerd, 1974: 189.
222

rotas comerciais, os reis francos da dinastia merovíngia compravam, tal como os ricos

gregos e romanos na antiguidade, os dulcíssimos vinhos de Quios e Gaza. 137

Para os nobres medievais, aliás, as bebidas alcoólicas representavam um

instrumento crucial para a constituição de seu poder, seja como itens de suas relações

com outros nobres, posicionados acima ou abaixo na série hierárquica, seja como meios

de manutenção de seu domínio sobre as pessoas comuns. Esta importância se

expressava no alto status ocupado pelos indivíduos que exerciam funções que, para nós,

parecem “triviais”: o sinis kalk (o senescal, mordomo-mor) era, ele próprio, um nobre,

assim como era um nobre o escanção que preparava e servia o vinho. Nos túmulos da

nobreza franca dos séculos V e VI, encontraremos inúmeras garrafas, copos e taças de

vinho e cerveja, demonstrando, desta forma, o papel central ocupado pelas bebidas. 138

Por outro lado, as bebidas serviam como meios de intercâmbio, econômico e

simbólico, entre a nobreza e os camponeses e artesãos. Estes poderiam, em

determinadas situações, como nas guerras, serem obrigados a buscar refúgio nos

castelos, ocasião em que estratos sociais tão diferentes se viam reunidos sob o mesmo

teto, permitindo que os camponeses praticamente assaltassem a adega do senhor,

bebendo do seu vinho e da sua cerveja. 139 No quotidiano, é claro, as coisas se passavam

de forma muito diferente: as bebidas eram usadas para o pagamento das taxas e

obrigações devidas pelos camponeses aos nobres e aos mosteiros. Uma lei bávara do

século VII obrigava os servos a pagarem “15 siclos de cerveja ao ano para o senhor”,

enquanto os colonos que queriam terra tinham que pagar por ela em cerveja. 140

137
Doehaerd, 1974: 183.
138
Rouche, 1995: 411-5.
139
Duby, 1992: 39.
140
Doehaerd, 1974: 101-4.
223

A Igreja, e principalmente os mosteiros, também sugavam à vontade a produção

etílica das aldeias e comunidades camponesas. No século IX, a abadia de Prüm, na

Baviera, recebeu, de dois mil mansos (lotes cultivados), a extraordinária quantidade de

272.000 l de vinho, 141 enquanto que a vila de St. Riquier, na Picardia, era obrigada a

entregar ao mosteiro local, a cada semana, 32 galões de vinho, e 60 galões de cerveja

por dia. 142

Tal abundância era fartamente utilizada para cimentar as relações entre os dois

principais setores – Igreja e nobreza – que constituíam a elite medieval. Os nobres

costumavam pedir bebidas às abadias, a fim de poderem exercer seus deveres de

hospitalidade. Os reis, por seu turno, recebiam periodicamente da Igreja presentes de

vinho. A necessidade de possuir grandes estoques fazia com que abadias e famílias

nobres trocassem terras: as abadias do norte europeu, por exemplo, situadas em regiões

não apropriadas à produção do vinho, cediam territórios nortistas em troca de terras no

sul, onde poderiam produzir o vinho que necessitavam. 143

É sempre importante recordar que, ao falarmos em “Idade Média”, estamos nos

referindo a um período bastante longo (cerca de mil anos) e multifacetado. Durante este

milênio, as formas como os homens se relacionaram com as bebidas alcoólicas sofreram

várias alterações, de acordo com as diferentes regiões e períodos estudados. Seria, por

certo, impossível dar conta de todas estas alterações, mas é necessário apontar alguns

dos processos mais importantes, que deram forma aos regimes etílicos e aos paradigmas

de abordagem da experiência etílica que encontraremos bem estabelecidos no alvorecer

da era moderna.

141
Doehaerd, 1974: 117.
142
Tannahill, 1988: 98.
143
Doehaerd, 1974: 147-8.
224

O primeiro destes processos é o da expansão do vinho como uma bebida de uso

quotidiano, em regiões e em classes sociais que não costumavam consumi-lo. Até

princípios do século XIV, a Europa ocidental experimentou um grande desenvolvimento

econômico, expresso principalmente na enorme expansão das fronteiras agrícolas –

realizada às custas das florestas virgens e dos pântanos – e no aumento da população. 144

Especialmente nos séculos XII e XIII, os europeus viveram em um mundo de relativa

abundância alimentar, cujos efeitos, em maior ou menor grau, alcançaram todas as

classes sociais. Como afirma, acerca deste ponto, Massimo Montanari:

Sem dispensar tensões, contradições e contrastes, a sociedade européia parece ter


atingido, na primeira metade do século 13, uma situação de difuso, ainda que não
generalizado, bem-estar: o crescimento econômico, mesmo que com os custos que todo
crescimento comporta em termos de marginalização e de desigualdade social, não
deixou de produzir efeitos benéficos sobre a ordem global das cidades e dos campos. O
equilíbrio entre populações e recursos continua frágil, instável; a sucessão de
desmatamentos e de obras de colonização agrária, sinal de uma necessidade alimentar
crescente e sempre insatisfeita, talvez seja a melhor prova. Mas tudo isso produz
também riqueza, difunde entre os extratos mais amplos da população possibilidades de
consumo, e até mesmo de luxo, que nos séculos precedentes eram decisivamente mais
limitados. 145

Este desenvolvimento econômico trouxe profundas alterações no panorama

etílico europeu. Uma destas alterações foi o progressivo desaparecimento do hidromel

como bebida quotidiana, fenômeno que está, provavelmente, relacionado ao

desflorestamento e à crescente dificuldade para a obtenção da matéria-prima, o antes

abundante mel das abelhas silvestres.146 Por outro lado, o hidromel foi superado,

enquanto bebida forte, pelo próprio vinho de uvas: boa parte do desenvolvimento

agrário, durante os séculos de abundância, foi promovido pelos senhores feudais e pelos

144
Anderson, 1987: 177-90.
145
Montanari, 2003: 75-6.
146
Lima, 1990: 209-10.
225

mosteiros, 147 os quais, como já vimos, eram grandes produtores e armazenadores de

vinho, e dedicavam suprema atenção ao desenvolvimento da vinicultura.

Com esta expansão, o vinho tornou-se uma bebida cada vez mais popular, em

um processo - guardadas as diferenças - semelhante ao que ocorreu entre os romanos: a

grande oferta acabou por introduzir o vinho, antes uma bebida unicamente reservada às

elites, na dieta dos mais pobres. O vinho possuía, para estes, uma série de vantagens, em

especial sua capacidade nutritiva, suas propriedades anti-sépticas e, é claro, seus efeitos

euforizantes. 148 Pode-se afirmar, portanto, que durante este período de crescimento

econômico, o vinho, e a embriaguez que se poderia obter com ele, se democratizaram.

A figura do grande beberrão, antes tão associada à nobreza e ao valor militar,

acabou por se tornar um apanágio do camponês “que não sabia beber”, como vemos no

Courtois d’Arras, peça anônima do século XIII, baseada na parábola do filho pródigo,

na qual um jovem camponês abandona o lar paterno e vai ser embriagado e “depenado”

por espertalhões da taberna da cidade. Uma das espertalhonas, Pourette, assim incentiva

o ingênuo Courtois:

Bebe, garoto, cai na festança,


Que Deus abençoe teu olhar de criança
Que já não será mais tão inocente.
Vai, garoto, vai em frente...
Esvaziem a taça teus lábios de mel
Que ainda tem muito vinho no tonel...
Vai, vai bebendo, meu jovem rapaz
Ao final, de nossa turma serás. 149

A mesma Pourette, mais tarde, e sem ser ouvida pelo jovem, mostrava o fim

reservado a quem se embriagava em um local e com as companhias erradas:

147
Anderson, 1987: 180.
148
Riera-Melis, 1998: 405.
149
Courtois d’Arras, in Lauand, 1998: 222.
226

Caipira idiota, tapado,


Quero vê-lo bem embriagado.
E aí vou fazer esse bicho-do-mato
Pagar boa lebre e comer mau gato.
Vou abocanhar a bolsa de dinheiro
Que o trouxa amarrou ao traseiro.
A Pourette, aqui, vai é metê a mão...
(...) Temos aqui, pronto para depenar,
(E não será difícil de fato...)
Um tolo apaixonado, um pato
Com uma bolsa muito recheada... 150

O filho pródigo acaba, depois de muitas peripécias e sofrimentos, por retornar à

casa, sem roupa, sem dinheiro, e com o gosto amargo da ressaca provocada pelo vinho

barato e pela humilhação. Mais do que uma história moralista, as desventuras de

Courtois revelam uma importante modificação no comportamento etílico das massas

européias, modificação que foi percebida pelas elites.

Para estas, o excesso, alimentar ou etílico, já não representava um sinal

diacrítico, uma forma de se diferenciar das pessoas comuns, como ocorria nos princípios

do período medieval. Era necessário se diferenciar a partir dos tipos de bebidas

consumidas e da etiqueta etílica. Os vinhos da nobreza se diferenciavam daqueles

consumidos pelo popolo minuto, pelos pobres. Eram vinhos mais encorpados e doces,

diferentes dos vinhos jovens e ácidos disponíveis aos camponeses e pobres urbanos. 151

Tão importante quanto a qualidade do que se bebia era o comportamento etílico.

Neste sentido, o fim da Idade Média marcou uma mudança fundamental, que aproximou

os modelos de comportamento das elites daqueles pregados pela Igreja desde o início do

cristianismo. Na antiguidade, e na Alta Idade Média, era importante que os grandes

150
Courtois d’Arras, in Lauand, 1998: 226.
151
Montanari, 2003: 120.
227

senhores distribuíssem, à farta, alimentos e bebidas entre seus seguidores, e que

participassem dos seus excessos, o que era crucial para a manutenção dos laços de

solidariedade e dependência entre os guerreiros. No fim do medievo, contudo, as coisas

se passavam de maneira bem diferente: as diferenciações entre as categorias sociais

estavam mais marcadas, e era necessário estabelecer um tipo de relação com os

alimentos e bebidas que deixassem estas diferenciações bem claras.

Neste período, surgem as festas corteses, nas quais se desenvolvia um tipo de

comportamento que, por seu refinamento e exclusividade, marcava diacriticamente as

diferenças sociais. As bebedeiras coletivas dos povos germânicos eram importantes para

demonstrar a existência de relações de amizade entre os indivíduos, necessidade que os

grandes senhores da Baixa Idade Média já não possuíam: a embriaguez não era uma boa

forma de manifestar um laço de dependência senhorial. 152 Quando o excesso se

democratizou, as elites passaram a investir na diferenciação qualitativa e no refinamento

comportamental: a dimensão qualitativa passou a ser “o sinal de uma identidade social,

que se é levado a observar corretamente para não minar a justeza dos equilíbrios e das

hierarquias existentes”. 153

Como vimos no capítulo I, 154 o final da Idade Média assiste ao surgimento de

uma nova etiqueta à mesa, e de uma visão da embriaguez como um ato indigno de um

homem “superior”. 155 Um autor catalão do século XIV, Francesc Eiximenis, nos mostra

como um homem deste tipo deveria tratar um copo de bebida: “cumpre segurar a taça

corretamente, com a mão, levando-a à boca, e não a boca à taça. (...) Alguns bebem sem

levantar o cotovelo da mesa (...) assemelhando-se a (...) porcos”. Apesar deste elogio ao

152
Althoff, 1998: 307.
153
Montanari, 2003: 111.
154
Cf. p. 19.
155
Romagnoli, 1998: 507.
228

refinamento, Eiximenis não aceita que se cometam excessos neste campo, criticando os

italianos que agem como esnobes. Sua crítica mostra que nas elegantes cidades da

renascença italiana desenvolvia-se um modo de comportamento etílico diametralmente

oposto àquele que era valorizado nos princípios da Idade Média: “(os italianos) bebem

por etapas, ingerindo pequenas quantidades de cada vez. Examinam e reexaminam o

vinho como os médicos fazem com a urina e provam-no repetidas vezes, mastigando-o

devagar por entre os dentes até acabar de tomá-lo”. 156

Desta forma, encontraremos no final do medievo uma configuração etílica que

se assemelhava ao ideal vigente no mundo clássico: aos homens superiores, a

moderação; aos “bárbaros internos” (os camponeses e pobres de todos os tipos) e

“externos” (os povos da periferia da Europa, como os eslavos), a embriaguez

desmedida. Ao desembarcarem na terra que se tornaria o Brasil, os europeus

encontraram povos decididamente “selvagens”, que andavam nus, que praticavam o

canibalismo e que, tal como faziam os “bárbaros” que destroçaram o mundo clássico,

bebiam alegre e excessivamente. A história da colonização européia no Brasil é também

a história do choque entre estas duas concepções a respeito do beber e da embriaguez, e

é esta história que investigaremos nos próximos capítulos.

156
Apud Johnson, 1999: 139.
CAPÍTULO VI

DA ÁFRICA AO BRASIL:

O APRENDIZADO ETÍLICO DA COLONIZAÇÃO

1. Portugal e a Civilização do Vinho.

Em Lixboa sobre lo mar


barcas novas mandei lavrar,
ai mia senhor velida!
Em Lixboa sobre lo lés
barcas novas mandei fazer,
ai mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ai mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ai mia senhor velida! 1

Durante o desenvolvimento desta tese, abordamos os regimes etílicos indígenas

e europeus enquanto experiências isoladas. De fato - para além das óbvias distinções

ecológicas, históricas e culturais entre os continentes americano e europeu – os regimes

etílicos aqui tratados apresentam inúmeras diferenças, quer nos aspectos mais técnicos

(no que diz respeito às matérias-primas e aos processos de elaboração) quer nos lugares

sociais e culturais ocupados pelas bebidas naquelas sociedades.

1
Poema do século XIII, atribuído a João Zorro. Sobre o autor, cf. Spina, 1991: 24.
230

Estes mundos isolados foram, contudo, subitamente conectados a partir do

século XV, com conseqüências que, para alguns dos atores envolvidos, foram

catastróficas. No seio destas catástrofes, o mundo assistiu a um processo de

intercâmbio, biológico e cultural, sem paralelos em qualquer lugar ou época. Plantas e

animais foram transferidos e aclimatados a lugares estranhos, e milhões de pessoas

foram, voluntária ou forçadamente, transladadas para outras terras, carregando consigo

suas culturas e práticas sociais.

Não obstante, seria um equívoco ver este processo unicamente através de um

prisma que privilegie os aspectos de conquista e de destruição de culturas nativas ao

redor do mundo, por parte de uma Europa que se expandia. Tomando de empréstimo as

palavras de Serge Gruzinski, “a dilatação dos espaços europeus é um processo

complexo, porque é acompanhado constantemente da descoberta simultânea de outras

sociedades e de outros saberes”. 2

Naquilo que nos interessa mais de perto, tradições e experiências etílicas muito

distintas foram colocadas em choque e em interação, com resultados que se revelaram

fundamentais para a construção do mundo contemporâneo. 3 Para melhor compreender

este ponto, contudo, é necessário reconhecer que as relações etílicas que seriam

construídas entre os nativos americanos e os europeus não se formaram em um “vazio”

histórico e cultural, mas foram plasmadas pela história de todas as etnias envolvidas.

Neste sentido, é importante observar mais de perto a experiência histórica dos

portugueses, principais responsáveis pelo contato etílico com os nativos americanos, no

território que se tornaria o Brasil.

2
Gruzinski, 2001: 94.
3
Mancall, 1995: 170.
231

A história etílica de Portugal seguiu, em suas linhas mais gerais, os caminhos

típicos daquelas regiões submetidas ao domínio romano, e que puderam desenvolver,

por conta de suas características ecológicas, a tríade mediterrânica do vinho, do azeite e

do trigo. 4 Ainda antes da conquista romana, no século I a.C., os povos que habitavam a

região que se tornaria o Portugal atual cultivavam a vinha, 5 além de importar o vinho da

Itália e da Bética (Andaluzia), como um artigo de luxo, a ser utilizado nas festas das

famílias poderosas 6 e como um bem de consumo para a elite. 7

Com a conquista romana, grandes e ricas villae no Alentejo se especializaram na

produção da bebida 8 , a qual era, inclusive, exportada para a própria Itália. 9 De forma

razoavelmente rápida, a Lusitânia tornou-se auto-suficiente em vinho, como mostra a

súbita diminuição das importações da Itália e da Bética, a partir do primeiro século da

era cristã. 10 Apesar do torvelinho de invasões godas e revoltas camponesas que marcou

o declínio do Império Romano do Ocidente, a produção vinícola portuguesa viu-se

preservada pelos próprios guerreiros que haviam desferido o golpe de misericórdia no

Império. A lei visigoda, por exemplo, punia severamente quem destruísse vinhedos, e

no século IX o rei godo Ordono determinou que os vinhedos de Coimbra fossem

colocados sob a proteção de uma ordem monástica. 11

4
Engs, 1995: 235-6.
5
Silva, 1990: 313. A constituição étnica destas sociedades representa um problema bastante complexo,
mas é provável que elas tenham se formado a partir das inter-relações entre uma população mais antiga
(que não era de origem lingüística indo-européia), e migrantes celtas: cf. Alarcão, 1990a: 352-9. A vinha
pode ter sido introduzida em Portugal pelos gregos, a partir do século VIII a.C, mas isto é controverso: os
fenícios também são bons candidatos, assim como a hipótese de que a cultura da vinha tenha se
desenvolvido de forma independente na Península Ibérica: Phillips: 2003: 61.
6
Silva, 1990: 310.
7
Alarcão, 1990a: 356.
8
Alarcão, 1990b: 420.
9
Alarcão, 1990b: 431.
10
Alarcão, 1990b: 437.
11
Phillips, 2003: 101-2.
232

A conquista muçulmana também não parece ter trazido prejuízos graves à

produção vinícola do Portugal medieval 12 , na medida em que as proibições religiosas

quanto ao consumo do vinho, emanadas do próprio Maomé, foram bastante matizadas

quando os povos islâmicos conquistaram regiões tradicionalmente vinícolas, como era o

caso da Península Ibérica.

O Alcorão, aliás, é um tanto contraditório quando trata das bebidas alcoólicas,

parecendo antes proibir a embriaguez do que o consumo moderado. Em um de seus

primeiros versículos, o vinho aparece como uma das boas coisas dadas por Deus aos

homens: “Nós vos damos os frutos da palmeira e da vide, dos quais tirareis bebidas

inebriantes e alimentos saudáveis”. Mais tarde, o livro sagrado dos muçulmanos adverte

– de forma semelhante às leis judaicas13 - contra a embriaguez durante os atos

religiosos: “fiéis, não rezeis quando estiverdes embriagados, mas esperai até poderdes

compreender o significado de vossas palavras (...)”. 14

Até mesmo Maomé parece ter bebido costumeiramente o nabidh, uma bebida de

baixo teor alcoólico, feita de tâmaras ou de uvas, que se fermentava em odres de couro,

como afirmam suas próprias mulheres neste versículo: “costumávamos preparar nabidh

em peles de animais. Pegávamos um punhado de tâmaras ou um punhado de uvas,

colocávamos dentro de um recipiente e adicionávamos água. O nabidh era assim

preparado de manhã e bebido por ele à tarde; e quando preparávamos à tarde, ele bebia

na manhã seguinte”. 15

Esta postura contraditória, além de ter promovido debates teológicos infindáveis

acerca dos limites da interdição às bebidas, permitiu também o surgimento de várias

12
Johnson, 1999: 116.
13
Cf. pp. 94-6.
14
Apud Johnson, 1999: 109.
15
Apud Phillips, 2003.
233

escolas de poesia báquica a partir do século VIII, que floresceram no ambiente das elites

das regiões islamizadas, muitas vezes adeptas dos prazeres etílicos. Em seus banquetes,

muito semelhantes aos symposia gregos 16 , os nobres muçulmanos ouviam homens

como o poeta do séc. IX Abu Nuwas (“você me fez temer a Deus, seu Senhor... Se você

não beber comigo por ter medo da punição [divina], beberei sozinho”. 17 ), ou Omar

Khayyam, que no século XI cantava seu amor ao vinho:

Sabeis, meus amigos, há quanto tempo em minha casa


Novas bodas celebrei:
Divorciei de meu leito a velha razão estéril
E a filha da vinha por esposa tomei
Pode a uva, com lógica absoluta,
As setenta de suas seitas dissonantes refutar:
É o sutil alquimista que, num instante,
O plúmbeo metal da vida em ouro transmuta. 18

Ao conquistarem a Península Ibérica, os mouros islâmicos foram, geralmente,

bastante tolerantes com a produção e o consumo do vinho, especialmente na Andaluzia

e na região em torno de Coimbra, tolerância que se justificava, entre outros motivos,

pela possibilidade da cobrança de impostos sobre esta atividade. 19 É bem verdade que

alguns governantes islâmicos não foram tão tolerantes: no século X, o califa Ozman

mandou destruir dois terços dos vinhedos de Valência, permitindo apenas o consumo de

uvas frescas ou passas. 20 Descontadas estas exceções, o fato é que os mouros não

apenas bebiam como incentivavam o cultivo da vinha nas terras que conquistaram:

16
Johnson, 1999: 113-4; Phillips, 2003: 119-20.
17
Phillips, 2003: 120.
18
Johnson, 1999: 112.
19
Phillips, 2003: 119.
20
Phillips, 2003: 120.
234

muitas vezes, ao ocupar terras retomadas dos islamitas, os cristãos encontravam grandes

extensões de vinhedos. 21

Esta tolerância ao consumo do vinho não era, contudo, estendida a todos os

estratos sociais. O médico e filósofo judeu de Córdoba, Maimônides (séc. XII) - tão

influente e respeitado que se tornou médico privado de Saladino - deixou bem claro que

apenas os homens de escol poderiam se arriscar ao consumo do vinho, pois apenas eles

sabiam auferir suas qualidades sem exageros: “Muitos são os benefícios que o vinho

produz, quando tomado na medida correta, pois mantém o corpo saudável e cura muitas

enfermidades. No entanto, as massas desconhecem tais coisas; o que querem é

embriagar-se, e a embriaguez causa danos”. 22 Neste pequeno trecho, escrito por um

judeu a serviço de monarcas islâmicos, está contida toda a doutrina etílica do mundo

europeu mediterrânico: beber com moderação e evitar a embriaguez, apanágio dos

“bárbaros” e “incivilizados”.

Entre aqueles homens nobres, que podiam (segundo Maimônides) dedicar-se ao

vinho, destacava-se a figura do príncipe Marwan ben Abd al-Rahmin, conhecido como

Al-Taliq, e morto em 1009. Expoente do lirismo arábigo-andaluz, e adepto da poesia

báquica, Al-Taliq deixou-nos um magnífico exemplo do olhar que a aristocracia

andaluza dedicava ao vinho, ao descrever a forma pela qual a mulher amada sorvia a

bebida:

Seu talhe era um ramo que balouçava sobre o montão de areia de seus quadris,
e da qual colhia meu coração frutos de fogo.
Os ruivos cabelos que cobrem suas têmporas debuxavam um lam
na branca página da maçã do rosto, com ouro que escorre sobre prata.
Estava no apogeu de sua beleza, como o ramo se veste de folhas.
O vaso cheio de roxo néctar era, entre seus dedos brancos,

21
Saraiva, 1988: 70.
22
Johnson, 1999: 113.
235

como um crepúsculo que amanheceu em cima de uma aurora.


Saía o sol do vinho, e era sua boca o poente, o oriente a mão do copeiro,
que ao despejar o vinho pronunciava fórmulas corteses.
E, ao pôr-se no delicioso ocaso de seus lábios,
deixava o crepúsculo nas maçãs de seu rosto. 23

Com o avanço da Reconquista, o vinho volta a ocupar, de uma forma bem

“mediterrânica”, um lugar cultural de proa nas sociedades ibéricas. A embriaguez,

contudo, continua a ser mal vista, principalmente quando sua prática impedia a

consecução dos papéis sociais, notadamente os reservados aos homens da aristocracia.

As cantigas de escárnio e de mal dizer são pródigas em reprovações aos maus

comportamentos etílicos: é o caso do poema – composto pelo rei Afonso de Castela e

Leão, por volta de 1272 – que critica os nobres que deixam de cumprir suas obrigações

na guerra contra os mouros de Granada, como aquele “que se foi con medo dos

martinhos e a sa terra foi bever los vinhos”. 24

Em outra cantiga da mesma época, o poeta Martin Soárez critica acerbamente o

comportamento do trovador Afonso Eanes do Cotom, conhecido por sua fidelíssima

dedicação à vida boêmia. Seguindo as convenções da época, Soárez escreve como se as

palavras saíssem da boca do próprio trovador beberrão:

Nostro Senhor, com’ eu ando coitado


con estas manhas que mi quisestes dar:
sõ[o] mui gran putanheir’ aficado
e pago-me muito dos dados jogar;
des i ar ei mui gran sabor de morar
per estas ruas, ond’ and’ apartado.
Podera-m’ eu ben, se foss’ avegoso,
Caer em bom prez e onrado seer;
mais pago-m’ eu deste foder astroso

23
Al-Taliq, A Formosa na Orgia, in Spina, 1972: 371.
24
Lapa, 1965: 49; os martinhos eram soldados livres mouros, muito temidos dos cristãos (Lapa, 1965:
713).
236

e destas tavernas e deste bever;


(...) E pois, quando me vej[o] en meu lezer,
merendo logo; e pois vou mia via;
e leix[o] i putas de mi bem dizer,
e de mias manhas e de mia folia. 25

Apesar destas recriminações ao “beber supérfluo”, a vinicultura se expandiu e o

vinho se tornou um importante item de comércio: são comuns, a partir do século XII, os

contratos de exploração agrícola em que aparece a obrigação de cultivar a vinha. A

fórmula legal casas, vineas, sautos, pumares, terras ruptas vel inruptas 26 , que descrevia

as propriedades rurais e que era freqüentemente encontrada nas escrituras deste período,

revela bem a importância dos vinhedos na paisagem rural portuguesa, em particular, e

ibérica, em geral. 27

Dentro de certos limites, o comércio de vinho também era protegido pela ação

do Estado português. Em 1308, por exemplo, o rei D. Dinis (1279-1325) determinava

que os estudantes de Coimbra pudessem adquirir livremente os produtos dos vinhateiros

– os quais eram premidos por uma infinidade de taxas e impostos locais – “sob pena dos

corpos e dos averes” daqueles que os impedissem. 28 No contexto do esforço de D. Dinis

pela centralização administrativa e fiscal, 29 era importante fazer com que a capacidade

de tributar ficasse concentrada na Coroa, o que era uma tarefa extremamente difícil,

especialmente no que dizia respeito ao vinho e “outras viandas”, tradicionais objetos da

tributação local.

Não é à toa, portanto, que o rei tenha sido obrigado, por várias vezes, a repetir

suas ordens de manter os estudantes de Coimbra livres dos impostos sobre os vinhos: “e

25
Lapa, 1965: 433.
26
“Casas, vinhas, soutos, pomares, terras arroteadas e por arrotear”.
27
Saraiva, 1988: 70; acerca do mesmo caso em Aragão, cf. Phillips, 2003: 120.
28
“Carta de D. Dinis determinando que os escolares do Estudo Geral de Coimbra possam ter açougues,
carniceiros, vinhateiros, etc.” (27/11/1308), in Moreira de Sá, 1966: 42-3.
29
Saraiva, 1988: 89.
237

vos devedes de saber que eu tenho por bem das viandas se correrem todas pollo meu

Senhorio (...)”. 30 Veremos, mais tarde, que a questão tributária, e a ânsia do Estado

português em auferir lucros da cobrança de impostos sobre as bebidas, é absolutamente

vital para a compreensão da história etílica brasileira, notadamente no que tange à

cachaça.

Portugal, durante o século XIII e princípios do XIV, era um importante

entreposto para os navios que faziam o comércio entre o Mediterrâneo e a Europa

setentrional, os quais costumavam parar nos portos do Tejo e do Minho, abastecendo-se,

entre outros produtos, de vinho. 31 Os próprios portugueses participavam ativamente

deste comércio, enviando seus barcos, e seus vinhos, aos portos do Atlântico, do Mar do

Norte e do Báltico. 32 Segundo os testemunhos coevos, os vinhos portugueses eram

ácidos e rascantes, e próprios para o consumo dos indivíduos mais pobres dos países

importadores. 33

Este desenvolvimento sofreu um duro golpe durante o século XIV. As grandes

mudanças climáticas ocorridas neste século34 (entre outras causas), levaram à crise nas

lavouras e, como conseqüência, à inflação e à fome. A Europa ocidental viu-se, em

vários momentos da primeira metade deste século, à beira da catástrofe alimentar. Em

1302 ocorreu uma carestia tão grande na Península Ibérica que, talvez, um quarto da

30
“Carta de D. Dinis ordenando que deixem levar os mantimentos para os escolares do Estudo Geral de
Coimbra” (01/12/1311), in Moreira de Sá, 1966: 42-3.
31
Os cruzados oriundos do norte europeu, em suas viagens para a Terra Santa ou para as lutas contra os
infiéis na Espanha, eram grandes compradores dos vinhos portugueses: Johnson, 1999: 181.
32
Braudel, 1995: 208; Coelho, 1998: 124-5.
33
Johnson, 1999: 181.
34
Durante o chamado Período de Aquecimento Medieval (800-1200), a Terra tinha temperaturas que
eram de um a dois graus centígrados superiores às atuais. Por conta disso, a agricultura européia foi
extraordinariamente produtiva nestes quatro séculos, o que representou uma das bases do grande
crescimento econômico que marcou a fase áurea da Europa feudal (Montanari, 2003: 75). A partir de
1300, tem início a Pequena Era do Gelo (1300-1900), em que as temperaturas desabam subitamente,
arrastando com elas o desenvolvimento agrícola. Sobre estas mudanças climáticas cf. Baliunas e Soon,
2001.
238

população tenha perecido: segundo a crônica de Fernando IV de Castela, “nunca, em

nenhum tempo, a humanidade tinha conhecido um flagelo de tão grandes proporções”,

flagelo que se repetiu em 1314-9 e 1331-4. 35 Apesar de certa melhoria climática em

meados dos trezentos, a Peste Negra atingiu Portugal em 1348, matando pelo menos um

terço de uma população que não ultrapassava o milhão e meio de pessoas. 36

Importantes modificações sociais resultaram destas catástrofes econômicas e

demográficas, modificações que deram forma ao Portugal que se lançaria ao Atlântico e

à África durante o século seguinte. A diminuição da população e da atratividade da

economia agrícola levou ao abandono dos campos pelos pequenos agricultores e pelos

trabalhadores livres, com um conseqüente aumento da concentração fundiária em mãos

da nobreza e da Igreja. Ambas as ordens viram seu poder político e social

consideravelmente aumentado, no que Maria Helena Coelho chamou de

“recrudescimento do senhorialismo”, o qual havia sido, anteriormente, contido pelas

reformas centralizadoras do reinado de D. Dinis. 37

Por outro lado, os pobres do campo migraram para as cidades, em um fenômeno

que acabou por beneficiar a comerciantes e mesteirais urbanos, que viram aumentados o

seu mercado consumidor, sua força de trabalho e seus lucros. As crises do século XIV

favoreceram a formação de uma elite comercial – na qual se incluíam alguns

“cavaleiros-mercadores”, nobres que se dedicavam ao comércio – a qual, em proporções

cada vez maiores, vendia para o norte da Europa produtos rentáveis como o vinho, o

azeite e o cânhamo. 38 Conforme os domínios ibéricos dos muçulmanos iam minguando,

35
Apud Montanari, 2003: 92; cf. Coelho, 1998: 126.
36
Coelho, 1998: 126; em alguns locais a mortandade foi ainda maior, como nos diz uma crônica
monástica da época: “pelo S. Miguel de Setembro se começou esta pestilência. Foi grande a mortandade
pelo mundo, assim que igualmente morreram duas partes das gentes” (apud Saraiva, 1988: 101).
37
Coelho, 1998: 128; Saraiva, 1988: 89.
38
Coelho, 1998: 127; Blackburn, 2003: 125-7.
239

e a navegação pelo Estreito de Gibraltar se tornava menos arriscada, a maior parte do

comércio entre o Mediterrâneo e os ricos mercados da Europa do norte desviou-se das

rotas comerciais da Europa central em direção ao Atlântico, beneficiando sobremaneira

os portos e comerciantes portugueses. 39

Os produtores e comerciantes de vinho portugueses também foram favorecidos

por uma importante mutação do gosto europeu, na direção de vinhos muito doces e

refinados. Com a recuperação dos efeitos das crises do século XIV, a Europa se viu em

um novo período de (relativa) abundância alimentar e etílica. 40 No que concerne ao

consumo do vinho, as pesquisas apontam para cifras elevadas, distribuídas por todas as

classes sociais, em um consumo per capita que poderia alcançar o triplo, e mesmo o

quádruplo, do consumo atual em países “enófilos”, como a Itália e a França.

Mesmo reconhecendo que o vinho era visto como um alimento quotidiano

indispensável, alguns números impressionam: os familiares do bispo de Arles, em 1442,

receberam, cada um, a quantidade de oitocentos litros de vinho. É claro que nem todos

tinham, à sua disposição, quantidades semelhantes, mas mesmo os pobres urbanos - de

Florença, por exemplo - dispunham de duzentos e sessenta litros anuais. 41 A partir do

século XV o vinho tornou-se, com alguns altos e baixos, um alimento barato,

especialmente no que diz respeito aos vinhos jovens e de baixa qualidade. 42

Como vimos no capítulo anterior, 43 esta abundância etílica trouxe importantes

modificações no que diz respeito à hierarquia das bebidas. Enquanto os vinhos jovens e

ácidos 44 eram consumidos pelos pobres, os ricos e a nobreza preferiam os vinhos

39
Coelho, 1998: 131.
40
Montanari, 2003: 97.
41
Cortonesi, 1998: 417-8.
42
Braudel, 1995: 210.
43
Cf. pp. 219-23.
44
Estes eram feitos com cepas tradicionais, sendo chamados, muito apropriadamente, de “latinos”.
240

encorpados e doces. 45 O poeta Cecco Angiolieri, escrevendo em fins do século XIV,

mostrou bem a divisão, socialmente construída, de opiniões a respeito dos diferentes

tipos de vinho:

E eu quero somente gregos e vernaccia,


Porque o vinho latino é mais intragável
Do que a minha mulher quando me aborrece. 46

Os vinhos doces eram, em geral, bastante embriagantes, tendo em vista que

podiam alcançar um teor alcoólico de até 17%. 47 Eram oriundos do Mediterrâneo

Oriental, sendo apreciados, pelas elites européias, não apenas por seu dulcíssimo sabor,

mas também pela exclusividade do consumo, garantida por preços elevadíssimos. Seu

comércio estava em mãos de genoveses e venezianos, que dominavam as regiões

produtoras, como o porto grego de Monemvasia (de cuja corruptela surgiram os termos

Malmsey e Malvasia) e Candia (Creta), que produzia vinhos de sabor mais suave a

partir da variedade muscat. Os próprios italianos, aliás, também produziam vinhos

doces, chamados coletivamente de vernaccia. 48

O monopólio italiano, e seus altos preços, incomodavam sobremaneira os

principais importadores de vinho (ingleses e outros povos do norte da Europa 49 ), que

passaram a buscar novas fontes. A partir da década de 1380, com o fortalecimento das

relações anglo-portuguesas, 50 novos vinhos doces, oriundos da Península Ibérica,

surgiram nos mercados do norte europeu. Entre eles estava o “Osoye”, que vinha do
45
Braudel, 1995: 207.
46
Phillips, 2003: 148.
47
Mais do que o dobro da maioria dos vinhos europeus e sendo, por vezes, elaborado a partir de uvas
passas, o que aumentava a quantidade de açúcar disponível para a fermentação: Johnson, 1999: 169;
Phillips, 2003: 132.
48
Phillips, 2003: 130.
49
“Os flamengos, os ingleses, os hibérnios e dinamarqueses não fabricam vinho, contentam-se com
cerveja, e se querem beber vinho abrem a bolsa, e aí vão os melhores vinhos do universo”: Evreux, 2002
(1615): 235.
50
Recorde-se que arqueiros ingleses apoiaram a pretensão de João de Avis ao trono, e que o futuro João I
casou-se com a neta do rei da Inglaterra, Filipa de Lencastre, em 1387.
241

porto de Azoia, ao sul do Tejo, e que era elaborado a partir de uvas muscat

contrabandeadas (possivelmente por ingleses) do Oriente, sendo o ancestral dos atuais

vinhos Moscatel de Setúbal. Os portugueses também vendiam o bastardo, uma versão

mais barata feita de vinho comum misturado com mel. Além do sabor e da força

embriagante, estes vinhos doces eram muito valorizados por sua resistência à

acidificação (e conseqüente transformação em vinagre), fator muito importante quando

se dependia do comércio marítimo, em um momento em que ainda não eram usadas

garrafas, rolhas e conservantes. 51

De forma gradual - e apesar da importante concorrência com as bebidas que

compunham o regime etílico nórdico, como a sidra, o hidromel e a cerveja 52 - os

portugueses 53 tornavam-se grandes exportadores de vinho refinado para os importantes

mercados norte-europeus (notadamente o inglês), especialmente depois de 1453, com a

queda de Constantinopla, e o profundo golpe que este evento produziu nos comerciantes

italianos. 54 Os mercados do norte foram inundados pelos vinhos doces ibéricos, cuja

potência alcoólica era bastante apreciada por aqueles povos nórdicos que tinham na

embriaguez, como vimos anteriormente, uma característica vital de sua cultura etílica, e

isto em um momento em que as bebidas destiladas apenas começavam sua inebriante

trajetória. Como diria o beberrão shakespeariano Falstaff:

A habilidade no manejo das armas de nada vale sem o sherry, que é o que a põe em
movimento. O saber não é mais do que uma mina de ouro guardada por um demônio,
que só vale depois que o sherry a explora e a põe em obra e uso (...). Se eu tivesse mil

51
Braudel, 1995: 209; Johnson, 1999: 210-5; Tannahill, 1988: 243.
52
Cortonesi, 1998: 418.
53
E também os espanhóis, com o saca, produzido na região de Jerez, e chamado pelos ingleses
contemporâneos de sack. Posteriormente, passou a se chamar sherry, corruptela do espanhol xerez.
54
Johnson, 1999: 175-93; Phillips, 2003: 131-2.
242

filhos, o primeiro princípio humano que lhes inculcava, seria absterem-se de bebidas
fracas e entregarem-se ao sherry. 55

Os homens do norte recebem os vinhos doces do Mediterrâneo. 56

Como se vê, aqueles homens que, durante o século XV, iniciaram o périplo

africano e alargaram as fronteiras do conhecimento geográfico e etnológico europeu,

estavam profundamente imbuídos de uma cultura etílica na qual a produção, o consumo

e o comércio do vinho de uvas ocupavam um lugar de proa. Esta característica

econômica e cultural dos portugueses influenciou decisivamente os rumos de sua

expansão marítima e as formas pelas quais se relacionaram com os novos povos e


55
Shakespeare, Henrique IV (ato IV, cena III); cf. Johnson (1999: 192) e Phillips (2003: 163).
56
Porto de Antuérpia, ilustração de um livros de orações flamengo do séc. XVI, in Johnson, 1999: 125.
243

culturas que seriam descobertos. Os povos da costa atlântica africana seriam os

primeiros a sentir o impacto desta expansão, e durante este riquíssimo processo de

contato construíram-se muitas das práticas sociais e culturais que fizeram das bebidas

alcoólicas um dos principais meios de contato interétnico e de controle (e descontrole)

social no mundo moderno.


244

2. A Bebida dos Outros: Álcool e Alteridade no Desvendar do Mundo

MARINHEIRO: Tomastes vós hoje a altura,


por saberdes onde estais?
(...) Quem vos houve a pilotagem
pera a Índia, desta nao?
Porque um piloto de pao
Sabe mais na marinhagem.
PILOTO: Fernão Vaz, verdade é
que me acho eu cá reboto:
porque nunca fui piloto
senão lá pera Guiné.
MARINHEIRO: Esta é ũa errada,
que mil erros traz consigo:
ofício de tanto perigo
dar-se a quem não sabe nada (...). 57

Nos documentos que descrevem as primeiras décadas das navegações na costa

da África, o vinho surge muitas vezes como um importante instrumento de contato

comercial e diplomático com os povos africanos. Além disso, os portugueses também

demonstraram um especial interesse na descrição dos costumes etílicos daqueles povos,

realizando um aprendizado dos sentidos que seria crucial para a formação do seu olhar

sobre os regimes etílicos dos índios no Brasil. Será interessante, portanto, explorar o

papel das bebidas durante as navegações portuguesas do século XV.

Além disso, deve-se notar que o termo “contato” é geralmente entendido como o

conjunto de interações que se estabeleceram entre europeus e indígenas, mas isto é algo

profundamente inexato. O mundo atlântico foi formado a partir de vários processos de

57
Gil Vicente (1471?-1537?), Triunfo do Inverno, in Paula e Ferreira, sd.: 146.
245

contato, incluindo o contato entre africanos e índios, sendo importante lembrar que a

expansão européia no continente americano é, também, uma expansão africana,

expansão que forneceu parte considerável dos novos habitantes do continente e que

tornou possível o empreendimento europeu. Por outro lado, a expansão africana trouxe

conseqüências importantes no que concerne à formação dos regimes etílicos modernos.

A abordagem das relações etílicas entre europeus e africanos pode ajudar a iluminar as

relações euro-indígenas, bem como aprofundar a compreensão a respeito do contexto

onde estas relações se desenvolveram. 58

Após a conquista de Ceuta (1415), os lusos procuraram, de forma persistente e

metódica, o contato marítimo com a África negra, de onde vinham produtos exóticos,

como o marfim, vários tipos de especiarias, o ouro que cobria os palacetes de Ceuta e

(como os portugueses logo vieram a descobrir) escravos. 59 Nesta busca, Portugal

executou dois movimentos articulados de expansão, ambos cruciais para a história das

bebidas: um movimento de colonização das ilhas atlânticas, fundamentais para a

formação histórica da agricultura de plantation que viria a se instalar no Brasil; e um

movimento de contato, comércio e conquista no continente africano, através do qual os

portugueses entraram em contato com uma grande variedade de povos e culturas, e no

qual se forjou a instituição que marcaria profundamente a história brasileira: a

escravidão. 60

Nas ilhas atlânticas, notadamente na Ilha da Madeira, colonizada a partir de

1419, os portugueses buscaram implantar culturas agrícolas rentáveis, como o trigo, e

um corante, a urzela. Ali também iniciaram sua carreira como produtores comerciais de

açúcar, produto altamente valorizado e que era, assim como os vinhos doces, produzido
58
Altman e Butler, 1994: 480.
59
Thornton, 1992: 26-7; Alencastro, 2000: 44-9.
60
Thornton, 1992: 29-36; Alencastro, 2000: 44-57; Blackburn, 2003: 127-43
246

no Mediterrâneo oriental e traficado pelos monopolistas italianos. 61 Em uma descrição

da ilha, contida no “Manuscrito Valentim Fernandes”, de princípios do século XVI,

afirmava-se que a terra era “muito fértil, onde há trigo com fartura (...), canas de açúcar,

de que fabricam açúcar em tal quantidade, que é exportado para as regiões orientais e

ocidentais”. 62

Logo se percebeu que algumas ilhas, em especial a Madeira, eram propícias à

viticultura. Os portugueses aclimataram nesta ilha uvas malmsey, vindas de Creta, na

tentativa de produzir, também ali, seus ozoyes e bastardos. O “Manuscrito Valentim

Fernandes” afirma que a ilha possuía “óptimo vinho de Malvasia”, 63 e até mesmo o

italiano Alvise de Cadamosto – que em 1455, a serviço de D. Henrique, chegou à altura

de Cabo Verde e escreveu um relato circunstanciado de tudo o que viu – rendeu-se ao

vinho “grosso e bom” da Madeira. 64 O sucesso dos portugueses com este “vino grasso”

foi total: o vinho da Madeira era mais durável, intenso e suave do que os europeus, e

tornou-se, entre os séculos XV-XVII, um bem de consumo dos mais importantes,

antecipando, em vários aspectos, a revolução dos destilados. 65

61
Blackburn, 2003: 127-9.
62
Valentim Fernandes, “Relações do descobrimento da Guiné de Diogo Gomes” (1507?), in Brásio, 1958
(2ª ser., v. I, doravante denominado como MMA [I].): 211. Valentim Fernandes era um impressor
morávio, radicado em Portugal desde o fim do século XV, que recolheu e organizou vários relatos de
viagens à costa africana, tendo sido um dos maiores divulgadores, para o resto da Europa, dos
descobrimentos portugueses. Estes relatos foram reunidos em um manuscrito, conhecido como
“Manuscrito Valentim Fernandes”, possivelmente concluído em 1507: cf. Pina Martins, 1998: 186;
Garcia, 2000: 44; e p. 75 desta tese.
63
Valentim Fernandes, “Relações...” (1507?), MMA (I): 211.
64
“Primeira Viagem de Cadamosto” (1455), MMA (I): 295; os espanhóis também produziram vinho doce
nas Canárias, chamado pelos ingleses de canary sack. O francês André Thevet, escrevendo em meados do
século XVI, elogiou sobremaneira os novos vinhos doces produzidos por portugueses e espanhóis nas
ilhas atlânticas, apontando-nos, ademais, sua extraordinária potência embriagante: “hoje em dia (...),
contudo, os vinhos que estão adquirindo reputação cada vez maior são os da Madeira e os da Ilha da
Palma, uma das Canárias, onde se produz vinho branco, tinto e clarete, dos quais se faz considerável
trafico com a Espanha e outros países. No seu lugar de fabricação, os melhores são vendidos a nove ou
dez ducados a pipa. Ao serem transportados para outra parte, entretanto, tornam-se excepcionalmente
fortes. Então, se não forem tomados com grande moderação, serão antes veneno que alimento” (Thevet,
1978 [1556]: 37).
65
Johnson, 1999: 189-90; Phillips, 2003: 205-7.
247

Na África continental, contudo, os portugueses se depararam com uma miríade

de povos belicosos, que não permitiam ocupações permanentes por parte dos europeus.

Os lusos, imersos na mentalidade da reconquista e da cruzada contra os infiéis mouros

(além, é claro, de interesses comerciais mais chãos, mas não menos importantes), 66

tentaram, de início, combater e escravizar estes povos, com resultados pouco

animadores. Mortes como a do fidalgo Nuno Tristão e mais dezoito “hómeẽs de sangue

e que de móços se criáram na cámera do jnfante (D. Henrique), e assi outros scudeiros e

hómeẽs de pé de sua criáçam”, 67 mostraram aos portugueses que estes teriam mais a

ganhar estabelecendo um comércio regular e pacífico com sociedades que, claramente,

possuíam a capacidade de resistir aos seus ataques. 68

O próprio D. Henrique incentivava seus capitães a estabelecer relações pacíficas

com os africanos. Como afirmou o cronista João de Barros: “(...) o jnfante encomendáua

muyto aos capitães que nam rompessem guérra com os moradóres da térra que

descobrissem se nam muy forçádos, e isto depois de lhe fazer suas amoestações e

requerimentos da fé, paz, e amizade”. 69 A principal intenção do Infante, ainda segundo

o cronista das Décadas da Ásia, era “(...) buscar gẽte desta térra tam remóta da jgreja e a

trazer ao baptismo: e depois tér cõ elles cõmunicaçam e cõmércio pera honra e proueito

de reyno”. 70

Descontados os aspectos “róseos” desta apreciação, 71 o fato é que uma das

principais formas de se tentar estabelecer “cõmunicaçam e cõmércio” era através do

66
Santos, 1998: 148-52.
67
João de Barros, Ásia de Ioão de Barros dos fectos que os portugueses fizeram no descobrimento &
conquista dos mares & terras do Oriente (1552: 1ª década, I, XIV), MMA (I): 135.
68
Thornton, 1992: 38.
69
João de Barros, Ásia..., (1552: 1ª década, I, XIV), MMA (I): 136.
70
João de Barros, Ásia..., (1552: 1ª década, I, VI), MMA (I): 93.
71
Deve-se recordar que o Infante foi o maior beneficiário do primeiro grande carregamento de escravos
vindos da África, em 1444: Gomes Eanes de Zurara, Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné
(1453): xxv, MMA (I): 18-20; Blackburn, 2003: 130-5.
248

oferecimento de comida e bebida aos nativos. É possível perceber, a partir dos relatos

acerca do périplo africano, que as bebidas ocuparam um lugar de grande importância no

jogo de palavras e gestos que configurava os primeiros contatos entre os europeus e os

nativos, os quais, aos olhos dos marinheiros, pareciam saídos dos bestiários

medievais. 72 Participar de uma refeição em comum e, portanto, estabelecer uma relação

de comensalidade, representava um passo importante para anular, ou ao menos

minimizar, uma alteridade que parecia, à primeira vista, insuperável.

Em um primeiro momento, enquanto os portugueses desciam a costa africana na

altura do deserto do Saara, este tipo de relação era extremamente difícil, até mesmo por

conta das circunstâncias ecológicas 73 , as quais impediam que se penetrasse pelo

interior, em busca das rotas de comércio que se cruzavam em Timbuktu, no Mali. Além

disso, os nativos da região - beduínos muçulmanos, chamados pelos lusos de azanegues

– tinham pouco a oferecer para o estabelecimento de relações de comensalidade etílica.

Eram “maometanos e inimicíssimos dos cristãos”, e não possuíam bebidas alcoólicas,

bebendo apenas “leite de camelo e outros animais”. 74

Foi somente quando os portugueses chegaram à Guiné, a “terra dos negros”, 75 é

que tais relações se tornaram possíveis. Os primeiros povos negros a serem contatados

pelos portugueses viviam na região conhecida atualmente como Senegâmbia, 76

estrategicamente situada entre o Saara (e suas rotas comerciais manejadas pelos

“infiéis” muçulmanos) e a floresta tropical, com suas valiosas especiarias, como a noz-

72
Alencastro, 2000: 53.
73
“Por razom das muytas areas (areias) que hi há, e desy verdura que em ella nõ parece, e esto hé pollo
fallecimẽto das auguas que geera ẽ ella grande secura” (Zurara, Chronica...(1453), lix, MMA [I]: 25).
74
“Primeira Viagem de Cadamosto”, MMA (I): 302.
75
“E esta gente desta terra verde, hé toda negra, e porem hé chamada terra dos negros, ou terra de Guinee,
por cujo aazo os homeẽs e molheres della som chamados guineus, que quer tanto dizer como negros”:
Zurara, Chronica...(1453), lx, MMA (I): 27-8; cf. Duarte Pacheco Pereira (“assi que no rio de Çanagá são
os primeiros negros [...] e tem os cabelos curtos e crespos feitos como frisa de pano”), Esmeraldo de Situ
Orbis (1504: I, 27), MMA (I): 633.
76
Alencastro, 2000: 46; Priore e Venâncio, 2004: 96-110.
249

de-cola e o índigo, além do ferro. Subindo os grandes rios que desembocam em sua

costa – o Senegal e o Gâmbia – alcançavam-se os grandes centros comerciais do

Império Mali, como Timbuktu, mercado que para o qual convergiam inúmeras rotas de

comércio.

À época da chegada dos portugueses, a região era o centro de vários reinos,

como o dos “idólatras” uolofes (chamados de jalofos nos relatos coevos), confederação

de Estados comandados por um “rei dos reis”, o burba de Jalofo, além de reinos

vizinhos, como os dos mandingas e felupes, os quais, embora mais ou menos

islamizados, mantinham uma grande identidade cultural com os jalofos. 77

Estes povos formavam sociedades altamente hierarquizadas, com linhagens

aristocráticas e uma nobreza guerreira, um campesinato livre e uma série de castas

profissionais de artesãos, artistas e comerciantes. Na base da hierarquia situava-se um

complexo estamento de escravos, que reunia desde militares altamente treinados e

valorizados, usados como uma guarda “pretoriana” dos reis, até indivíduos colocados

para trabalhar na lavoura 78 (sobre os quais tinham os senhores direito de vida e morte),

passando por uma categoria intermediária de escravos domésticos que poderiam, em

certos casos, ser integrados às famílias de seus donos. 79

Adquiridos por guerra e por comércio, 80 os escravos eram objeto de um intenso

tráfico com os beduínos do Saara, trocados que eram por várias mercadorias,

especialmente tecidos e cavalos, “muyto prezados porque os alcançã cõ grãde[s]

77
Priore e Venâncio, 2004: 96.
78
“E destes scravos hã de rouçar semear e colher ẽ suas quintaãs” (Valentim Fernandes, “Descripção da
costa ocidental de Africa do Senegal ao Cabo do Monte” [1507 ?], MMA [I]: 672).
79
Priore e Venâncio, 2004: 101.
80
“(...) esses povos, quando guerreiam uns com os outros, vendem os prisioneiros”: Jerônimo Münzer,
Itinerarium (1494), MMA (I): 234.
250

difficuldades (...) e taãbẽ porque nõ podẽ viuer muyto pella grãde quẽtura (...)”. 81 Para

os lusos, penetrar neste mercado representava uma importante fonte de lucros: afinal,

“em troca dum cavalo velho” ou de “cavalos que pouco prestavam”, os portugueses

recebiam de vinte e cinco a trinta escravos. 82 O aparecimento dos navios europeus

representou, para os jalofos, a abertura de uma alternativa à rota do deserto e, para os

portugueses, a porta de entrada e um aprendizado para o tráfico de escravos. 83

Ao estabelecer relações com os jalofos – e, a partir destes, com toda a costa da

África Atlântica - os portugueses também travaram contato com sociedades que

desenvolveram regimes alimentares e etílicos muito distintos do regime europeu

mediterrânico, tão bem representado pelos ibéricos. Os jalofos, afinal de contas,

comiam “em terra sobre huã pelle de vaca bestialmẽte, os grãdes cõ seus clerigos, os

outros de x ou xij jũtos de huã gamella, e comẽ muytas vezes no dia. Em toda Ethyopia

nõ nace trigo nẽ ceuada nẽ cẽteo nẽ vinho de uvas”, em uma descrição que sublinha as

incompatibilidades alimentares e etílicas entre os dois povos. 84

Também no que concerne aos regimes etílicos, as diferenças eram inúmeras,

servindo estas, muitas vezes, para reforçar as identidades de cada um dos atores deste

processo de formação do mundo atlântico. Tanto nos materiais e técnicas utilizados na

produção das bebidas, quanto no lugar ocupado pela experiência da embriaguez em suas

culturas, os africanos mostravam-se para os portugueses como um “novo mundo

etílico”. Este mundo foi explorado com o uso das chaves de interpretação desenvolvidas

durante a antiguidade e o medievo europeus, chaves que organizavam simbolicamente

81
Valentim Fernandes, “Descripção...”, (1507 ?), MMA (I): 673.
82
Jerônimo Münzer, Itinerarium (1494), MMA (I): 235-6.
83
Alencastro, 2000: 47; Priore e Venâncio, 2004: 102.
84
Valentim Fernandes, “Descripção...”, (1507 ?), MMA (I): 676.
251

os diferentes modos de beber, em escalas de maior ou menor “civilização” ou

“barbárie”, de acordo com o quê se bebia e como se bebia.

Desta forma, os relatos dos portugueses combinam um cuidadoso olhar sobre as

práticas de elaboração e distribuição das bebidas, com uma abordagem crítica de todas

as formas de consumo que se afastavam daquilo que era considerado como a forma

“correta” de se utilizar o álcool, tal como definida na Europa mediterrânica. Como

vimos anteriormente, as culturas mediterrânicas desenvolveram um paradigma de

apreensão dos prazeres inebriantes que percebia o vinho como parte das refeições, e a

embriaguez “supérflua” como algo reprovável, mesmo que as práticas sociais reais

freqüentemente se afastassem deste ideal de comportamento.

Esta visão da embriaguez como algo a ser repreendido foi bem explicitada por

Duarte Pacheco Pereira, ao elogiar, em 1504, a vida de donzelo do casto príncipe D.

Henrique: “viveu sempre tão virtuosa e castamente que nunca conheceu mulher nem

bebeu vinho nem foi achado em outro vício que de repreender fosse, trazendo

continuadamente cilício a redor de suas carnes (...)”. 85 Um outro exemplo coevo, acerca

do caráter moralmente negativo da embriaguez, é dado pelo cronista Fernão Lopes, ao

desenhar um retrato de Eirea Gonçalves do Carvalhal, mãe do Condestável Nuno

Álvares Pereira. Esta “muy boõa e muy nobre molher (...) viveo em grande castidade e

abstinencia, nom comendo carne nem bebẽdo vinho per espaço de quarenta annos,

fazendo grandes esmolas e grandes jejuũs, e outros muytos beẽes”. 86

Dentro de tal perspectiva, não é de se estranhar que as práticas etílicas dos

africanos (a começar dos jalofos e outros povos da Senegâmbia e Mali) fossem

observadas com severidade e espírito crítico, características que também encontraremos,

85
Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo... (1504: I, 22), MMA (I): 254-5.
86
Fernão Lopes, Cronica do Condestabre (séc. XV), in Vasconcellos, 1959: 83.
252

posteriormente, nos relatos a respeito dos modos de beber dos nativos americanos. Os

jalofos, por exemplo, foram vistos pelos exploradores do século XV como grandes

adeptos da embriaguez: “os gyloffos som grãdes bebados (...) e bebem vinho de palma,

e vinho de mel de abelhas e vinho de milho”. 87

Os mandingas, que possuíam hábitos alimentares e etílicos semelhantes aos dos

jalofos, 88 também foram descritos desta maneira. O mesmo Duarte Pacheco Pereira, que

tanto elogiou a pia abstinência do Infante, não poderia deixar de criticar a alegre

propensão aos prazeres etílicos demonstrada pelos mandingas: “esta gente toda é

viciosa, de pouca paz uns com os outros, e são muito grandes ladrões e mentirosos, que

nunca falam verdade, e grandes bêbados e muito ingratos, que bem que lhe façam não

no agradecem, e muito desavergonhados que nunca deixam de pedir”. 89

Em outro trecho, o autor do Esmeraldo de Situ Orbis repete o julgamento,

acrescentando a luxúria à lista de pecados dos mandingas, em um tipo de acusação

praticamente idêntica às que serão, mais tarde, dirigidas aos índios no Brasil: “são gente

de muitos vícios, tem as mulheres que querem, e a luxúria antre eles totalmente é

comũa; são muito grandes ladrões, bêbados, e mentirosos e ingratos, e tôdolos males

que há-de ter um mau, eles os tem”. 90 É importante notar que os mandingas estavam,

87
Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 687. A palavra “milho” não significa aqui,
como é óbvio, o milho originário da América, Zea mays. A palavra é oriunda do latim vulgar millium, e
estava relacionada a qualquer gramínea que apresentasse um grande número de sementes. Várias formas
eram usadas durante a Idade Média, como millo, minlho e mjlho. Os portugueses utilizaram o termo, ao
descreverem gramíneas africanas como o sorgo e o painço, entre outras, que eram (e ainda são)
amplamente utilizadas para a elaboração de cervejas na África (Lima, 1990: 389-90). É somente quando
da introdução da planta americana em Portugal, a partir de 1520 (Montanari, 2003: 132), que a palavra
passou a designar, exclusivamente, o Zea mays: cf. o verbete “milho”, no Dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa (Houaiss e Villa, 2001). Deve-se apontar que, também na língua inglesa, a palavra “milho”
(corn) significava, antes da descoberta da América, qualquer tipo de grão. Com a chegada do milho
americano, corn começa a ser usada exclusivamente para o novo cereal: Buhner, 1998: 155-6.
88
“Seus manjares som como os de Gyloffa”: Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I):
706.
89
Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo..., (I, 27), MMA (1): 633.
90
Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo..., (I, 29), MMA (1): 644.
253

durante o século XV, vivendo um período de intenso proselitismo religioso islâmico, 91

o que não os impediu de manter um papel central para as bebidas em sua cultura, a

ponto do impressor Valentim Fernandes afirmar que o ato de beber era “ho principal

delles”. 92

Os portugueses não se limitaram a lamentar o ardor etílico dos povos da Guiné.

Os documentos que narram a expansão marítima na costa africana são pródigos em

descrições muito detalhadas das técnicas de elaboração e das formas pelas quais as

diferentes bebidas circulavam pelas complexas estruturas sociais africanas. Nestes

relatos se estabeleceram formas “canônicas” de narrativa acerca da alteridade etílica,

formas estas que seriam, posteriormente, aplicadas aos regimes etílicos dos nativos no

Brasil.

Juntamente com as condenações aos modos nativos de beber, os relatos

descreviam minuciosamente o quê e como se bebia. E os africanos - tal como os índios

no Brasil – foram extremamente criativos em se aproveitar de todas as muitas

oportunidades que suas circunstâncias ecológicas abriam para a experiência etílica. Uma

das principais fontes de material para as bebidas era a seiva retirada de várias espécies

de palmeiras (como o dendezeiro e o coqueiro, entre outras 93 ), a qual, depois de

fermentada, tornava-se a bebida que os primeiros documentos chamam de minhol. No

“Manuscrito Valentim Fernandes” encontra-se uma descrição precisa da técnica de

obtenção da seiva fermentada pelos mandingas:

Em estas terras fazẽ vinho de palma nesta maneyra .s. a palmeyra no olho em cima
lança huũs cachos muy grãdes á feyçã de pinha, e se daquelle cacho querẽ tirar vinho

91
“Ha muytos nesta terra que tem a secta de Maffoma e assy andã muytos bisserijs, que sõ clerigos
mouros, por esta terra, que ensynã sua fé a esta gẽte. E toda outra gẽte som ydolatras do modo e maneyra
de gylloffos (...)”: Valentim Fernandes, “Descripção...”, (1507 ?), MMA (I): 705.
92
Valentim Fernandes, “Descripção...”, (1507?), MMA (I): 704.
93
Buhner, 1998: 133-4; Câmara Cascudo, 1998: 346-7; Lima, 1990: 80-3.
254

(...) cortã aquelle cacho ẽçima no pee, e poem alli huũ cabaz pella manhãa e á noyte, e
tanto stilla de dia como de noyte, e esto atee xv dias, e este vinho he tã doçe e tã
saboroso como Maluesia e brãco como leyte, e embebeda como o nosso e se fica per
huũ dia pera outro logo se faz azedo como vinagre”. 94

Existem várias informações relevantes neste pequeno trecho. Os homens da

Guiné - ao contrário da maioria dos índios no Brasil, que geralmente destroem a

palmeira para fabricar o vinho 95 - preservavam as palmeiras durante o processo de

retirada da seiva, em uma prática de conservação que, certamente, contribuía para que

Valentim Fernandes pudesse chamar a Guiné de terra “muyto abastada de todolos

mãtijmẽtos e vinhos”. 96

Os vinhos de palmeira dos mandingas (e de outros povos da África Atlântica),

doces e leitosos, certamente agradaram aos paladares dos europeus, como se depreende

da entusiasmada comparação feita com o valorizado Malvasia. O veneziano Alvise de

Cadamosto, aliás, não deixou por menos: o minhol era um “boníssimo licor”, que

embriagava “como vinho não misturado com água” e que, se consumido no primeiro

dia, era “tão doce quanto o vinho mais doce do mundo”. Cadamosto confessa que bebeu

o minhol “várias vezes no tempo em que estive naquele país e eu o preferia ao do nosso

país”. 97

Conforme os portugueses desciam a costa africana, entrando em contato com

outras etnias e culturas, percebiam que os vinhos de palma exerciam um papel muito

importante na vida econômica, política e espiritual de povos muito diferentes. Apesar

destas diferenças, o vinho de palma - chamado, conforme a região, de vários nomes,

como tope (Guiné Equatorial), malafo (Congo-Angola) e tembo (Zanzibar), entre

94
Valentim Fernandes, “Descripção...”, (1507?), MMA (I): 711.
95
Com algumas exceções, como os Guató, que utilizavam técnica virtualmente idêntica à africana: cf. pp.
61-2 desta tese.
96
Valentim Fernandes, “Descripção...”, (1507?), MMA (I): 712.
97
“Primeira Viagem de Cadamosto” (1455), MMA (I): 330.
255

outros 98 - era sempre obtido da mesma forma, preservando-se a planta para coletas

posteriores. Esta característica técnica acarretava marcantes conseqüências sociais e

econômicas, especialmente no que se refere à valorização das áreas em que se

localizavam os palmeirais.

O potencial embriagante do minhol, embora inferior ao dos Malvasias - que

podiam alcançar, como vimos, os 17% de concentração alcoólica –, era próximo aos dos

vinhos comuns europeus, já que alcançava, em média, os 10% de concentração. 99

Diferentemente do vinho de uvas, contudo, o minhol acidulava com extrema rapidez, 100

aspecto dos mais importantes, na medida em que abriu caminho, dentro das complexas

redes comerciais africanas, para bebidas mais duráveis e embriagantes, como os vinhos

e aguardentes europeus.

Teremos a oportunidade, mais adiante, de discutir outros aspectos importantes

do papel ocupado pelas bebidas tradicionais nas culturas da África, e do impacto das

novas bebidas em suas estruturas econômicas e sociais. Seria interessante, neste

momento, observar algumas das formas pelas quais os inebriantes foram usados, no

contexto das navegações e explorações do século XIV, como lubrificantes das relações

interétnicas. Deve-se ter em mente o fato de que, quando os portugueses chegaram ao

Brasil, agiram em relação aos índios com base na experiência acumulada em décadas de

contato com os povos da África Atlântica, inclusive no que diz respeito às bebidas

alcoólicas.

No seio deste complexo processo de contato, em que se alternavam relações

amistosas e de conflito, a comensalidade emergia como uma das principais instâncias de

98
Lima, 1990: 80; Alencastro, 2000: 311-2; cf. 42-4 desta tese.
99
Buhner, 1998: 133.
100
Como afirma, a respeito do minhol dos jalofos, o impressor Valentim Fernandes: “(...) este vinho nõ se
tẽ mais que de huũ dia pera o outro, cá despois se faz muyto azedo”: Valentim Fernandes,
“Descripção...”, (1507 ?), MMA (I): 688.
256

neutralização das diferenças culturais. Usavam-se os alimentos e bebidas para atrair os

ariscos e apaziguar os hostis, permitindo assim que os portugueses se imiscuíssem nas

redes de troca locais em posição de vantagem, na medida em que controlavam uma

grande quantidade de mercadorias atraentes, como panos, cavalos e armas. Não

obstante, para além destes tradicionais produtos de tráfico (que também eram adquiridos

dos beduínos), os ibéricos logo perceberam que os africanos se interessavam

sobremaneira por um produto que suas redes comerciais endógenas não poderiam

suprir: o vinho de uvas, produzido em Portugal ou nas ilhas atlânticas.

Em sua importante viagem de exploração (1458), 101 o “caravelista do infante”

Diogo Gomes conseguiu, com a crucial ajuda dos presentes de vinhos, estabelecer

relações pacíficas com os nativos da Guiné, deixando-nos (através do impressor

Valentim Fernandes) um relato que é exemplar quanto ao papel do vinho como

facilitador das relações com os povos que seriam tragados pela expansão colonial.

Tendo entrado em contato com um certo Batimansa, senhor da margem sul do rio

Gâmbia, Gomes iniciou aquele que seria um dos principais negócios da era moderna: a

troca de álcool por gente.

De acordo com o relato contido no “Manuscrito Valentim Fernandes”, o luso

encontrou-se, “em uma grande selva de árvores”, com o próprio rei, o qual trazia

consigo “gente infinita armada com setas venenosas, e azagaias e espadas e adagas”:

E eu caminhei para ele levando-lhe eu minhas ofertas e biscoito e vinho nosso, porque
não têm vinho senão de palmeira, isto é, das árvores das tâmaras.
E ele deu-me três negros, duas mulheres e um homem.

101
Importante por ter sido dos primeiros a tratar pacificamente com os africanos ao sul do Saara, mas
também por ter-lhe permitido negar, e até ridicularizar, a idéia de que existisse uma “zona tórrida”, na
qual seria impossível a sobrevivência de europeus: Bennassar, 1998: 87.
257

E ficou muito contente e muito agradecido, folgando comigo e jurando-me por Deus
vivo e uno, que mais não faria guerra aos cristãos, e que seguros podiam ir pela sua terra
tratando da sua mercadoria. 102

Posteriormente, o capitão tratou com outro rei, ainda mais hostil aos

portugueses, com sucesso semelhante. Para falar com o recém-chegado, veio o rei “à

margem do rio com grande poder, e assentando-se na praia mandou que me

aproximasse, o que eu fiz com as minhas cerimónias, do melhor modo que pude”.

Satisfeito com os resultados da conversação – na qual o chefe nativo prometia (ou fingia

prometer...) abandonar o islamismo em troca do batismo – o luso convidou o rei,

(...) com os seus doze cortesãos mais velhos, e oito mulheres que fossem comigo à
caravela comer, o que todos fizeram sem armas. E dei-lhes galinhas e carnes preparadas
ao nosso uso e vinho branco e tinto quanto quiseram beber, e eles diziam e repetiam que
nenhuma outra gente era melhor que a dos cristãos. 103

Na viagem de retorno, Diogo Gomes continuou usando o vinho para travar

relações amistosas com os africanos. Tendo cruzado com duas embarcações, “tomou”

os ocupantes (cerca de oitenta) e levou-os a bordo da caravela, onde lhes deu “de comer

e beber e presentes”. O discurso do capitão português, acerca da hostilidade dos nativos

da região, é lapidar quanto àquilo que os lusos esperavam de suas relações com os

africanos:

E eu disse-lhe: Porque é ele (o chefe nativo) tão mau para os cristãos? Era melhor para
ele fazer a paz com os cristãos, e que uns e outros trocassem as suas mercadorias, e teria
cavalos, etc., como faz Burbruque e Budumel e outros senhores dos negros. E digam-lhe
lá que eu vos tomei neste mar, e que por amor dele vos deixo ir livres para terra. 104

102
Valentim Fernandes, “Relações...” (1507?), MMA (I): 197.
103
Valentim Fernandes, “Relações...” (1507?), MMA (I): 200.
104
Valentim Fernandes, “Relações...” (1507?), MMA (I): 200.
258

Deve-se notar, neste trecho, a “naturalidade avassaladora” 105 com que os

europeus seqüestravam (“tomavam”) os nativos a seu bel-prazer, prática que

reencontraremos na viagem de Cabral. A tranqüilidade com que os lusos se apoderavam

dos corpos nativos demonstra, à saciedade, que seu olhar e suas práticas com relação ao

outro se caracterizavam por um viés hierarquizante, que dedicava aos “bárbaros” um

lugar irremediavelmente subalterno, enquanto objetos da ação conquistadora e

colonizadora.

Como mostra Robin Blackburn, este tipo de raciocínio é parte integrante, e

crucial, do processo de constituição das identidades modernas dos povos europeus, e da

“crescente consciência racial cristã, européia ou “branca”, que tanto protegia os

europeus dos rigores da total escravidão quanto apontava os africanos ou negros como

vítimas adequadas”. 106

Ao afirmar isso, não quero dizer que os próprios “bárbaros” não agissem, eles

próprios, com violência contra os europeus, sempre que isto fosse possível, conforme

demonstrado pelo destino de Nuno Tristão e seus homens. A história do fidalgo

escandinavo Vallart (ou Valarte, ou ainda Balarte, conforme a fonte) é ainda mais

explícita quanto aos riscos que os europeus corriam em mãos africanas, e também

quanto ao papel ocupado pelas bebidas alcoólicas no processo de contato. Este gentil-

homem da corte do rei da Dinamarca, “cobyçoso de veer mundo”, 107 conseguiu do

105
Giucci, 1993: 39.
106
Blackburn, 2003: 26. É de se notar, a propósito (e guardadas as devidas proporções e diferenças
temporais), a semelhança entre este processo de criação de um tipo de ideologia que reservava a alguns –
“bárbaros”, “selvagens”, “negros”, “índios”, e quejandos – o lugar de objetos da ação e do poder de
outros, e aquilo que ocorreu quando da criação da escravidão-mercadoria na antiguidade clássica, em que
o surgimento da noção de “cidadão” caminhou, pari passu, com o nascimento da noção do escravo como
uma “coisa” que podia ser manipulada ao bel-prazer do senhor. Como afirmou Moses Finley: “qualquer
tentativa de obter mais direitos e privilégios para um homem, para uma classe ou para um setor da
população implica necessariamente uma redução correspondente dos direitos e privilégios de outros”
(Finley, 1989: 85).
107
Zurara, Chronica...(1453), lRiv, MMA (I): 74.
259

infante autorização de ir à África, em 1447 (em navio comandado pelo cavaleiro da

Ordem de Cristo, Fernando Afonso), para, entre outras coisas, “vér hũ elefante viuo”. 108

Ao chegar à Guiné, Vallart pareceu ter entrado em boas relações com os

africanos, que lhe prometeram, senão o tal elefante vivo, ao menos “a pelle e os dentes e

os ossos com algũa parte da carne”, em troca de “hũa tenda de pano de linho, na qual se

possã alloiar de xxv ataa xxx homeẽs, tã leue que huũ a possa leuar ao pescoço”. 109

Segundo João de Barros, os homens da Guiné pareceram aceitar a transação: “os négros

como lhe prometéram préço: disséram que lógo lhe trariam hũ elefante a lugar onde o

visse, e tornádos dhy a tres dias, viéram chamar Balárte, dizendo trazerem o que lhe

tinham prometido”. 110

Tudo não passava, contudo, de um ardil, em tudo semelhante àqueles que os

lusos e outros europeus usariam, em tantas oportunidades, com os próprios africanos ou

com os nativos da América. Assim prosseguia, em sua descrição, o cronista das

Décadas da Ásia:

Balárte entrádo no batél do nauio sómente com os marinheiros que o remáuam chegou a
térra: e sobre tomar hũa cabáça de vinho de palma que hũ négro dáua a hũ
marinheiro, 111 debruçouse tanto no bórdo da batél que cayo o marinheiro ao már. E na
préssa de recolher o marinheiro, descuidaranse do batél, de maneira que déram as ondas
com elle em térra por o már andar hũ pouco empolládo. Os négros véndo que os nóssos
nam podiam ser socorridos do nauio, derã sobrelles: dos quáes nam escapou mais que
hũ que sabia nadar, o qual deu razam deste cáso: e que vindo nadando oulhára pera trás
e vira estar Balárte em a pópa do batél pelejando como homem esforçado. Per esta
maneira acabou este gentil hómem cõ desejo de ganhar honra fóra de sua patria: tam
remõtádo anda o desejo dos hómeẽs, que sendo este Balárte nascido em Dinamarca, veo

108
João de Barros, Ásia..., (1552: 1ª década, I, XV), MMA (I): 140.
109
Zurara, Chronica...(1453), lRiv, MMA (I): 78.
110
João de Barros, Ásia..., (1552: 1ª década, I, XV), MMA (I): 140.
111
Zurara (Chronica...(1453), lRiv, MMA (I): 78) descreve assim esta passagem: “e seẽdo acerca de terra
pareceo hi huũ negro que trazia hũa cabaaça com vinho ou augua, fingẽdo que lha querya dar, e Vallart
disse aos que remauã que se chagassem (...)”.
260

buscar per própria vontáde sua sepultura em Guiné, térra a ella tã contraria em todalas
cousas. 112

Nota-se, neste trecho, o uso apaziguador – conquanto “traiçoeiro” – do

oferecimento da bebida, desta feita por parte dos africanos. O que importa ressaltar é o

fato de que portugueses e africanos compartilhavam a noção de que era possível, dentro

de limites muito estreitos, conviver com o inimigo a ponto de dividir o alimento com

este. Mesmo que os objetivos de cada um dos lados fossem muito diferentes, e até

contraditórios, os atores do drama da colonização da África eram suficientemente

próximos, em suas práticas sociais, para que a comensalidade pudesse se constituir em

um espaço de neutralização (provisória, por certo) de suas profundas diferenças.

Neste contexto, o vinho de uvas parece ter sido, como vimos, muito bem

recebido nos primeiros contatos entre os lusos e os africanos: “os gyloffos som grãdes

bêbados e folgam muyto cõ nosso vinho quãdo ho podẽ auer”. 113 O vinho de uvas

acabou por se integrar ao mundo etílico das sociedades da África Ocidental, já pródigo

em diversos tipos de bebidas. Além de sua bebida mais valorizada, o vinho de palma, os

africanos produziam cervejas de sorgo ou de painço - denominadas de walu, pombe,

dolo, pito, e uma infinidade de outros nomes, de acordo com a região, 114 e chamadas,

pelos portugueses, de “vinho de milho” 115 - além de uma importante produção de

hidroméis 116 e de uma grande variedade de vinhos de frutas. 117

112
João de Barros, Ásia..., (1552: 1ª década, I, XV), MMA (I): 140; cf. Zurara, Chronica...(1453), lRiv,
MMA (I): 78-9.
113
Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 687.
114
“Vinho de milho fazẽ desta maneyra. Tomã o milho e pisã no muy bem pisado e fazem farinha dello e
a esta farinha deytam agoa quẽte que ferue. Emtã coã no per huũ pano de palma feito pera aquello. E
aquella agoa deitã em panellas e a deixã cozer por certos dias. E este vinho quãto mais velho tãto
melhor”: Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 688; cf. Lima, 1990: 379-82.
115
Cf. p. 252.
116
“Vinho de mel fazẽ assi. Tomã o mel cõ sua cera, e entã tomã agoa .s. tres terços, e delinhã aquelle
mel em aquella agoa, e deytã na em panellas ou cabaças grãdes, e çarrã nas muy bem as suas bocas e
deixã as estar por dias, porẽ cada dia as leuã ao sol. E assi ferue cõ [a] quẽtura do sol. E despois que passa
[m] vij ou xv dias abrem aquella penella e tyrã lhe a çera que se veo toda açyma. E aquelle vinho bebem,
261

Todas estas bebidas eram objetos de intenso comércio nas feiras e mercados

africanos. 118 Os portugueses se surpreenderam com a riqueza das feiras dos Banhuns

(povo da atual Guiné Bissau), e elogiaram sua grande organização, apontando, ademais,

sua importância, não apenas comercial, mas como um espaço central de sociabilidade,

no qual o consumo das bebidas ocupava um papel crucial:

Vem a esta feyra muyta gẽte de 15 e 20 leguas em derrador e ordenaçã delrey da terra
he que nenguẽ emtra nesta feyra cõ armas e se alguẽ emtra cõ ellas perdeas. Grade
ordenaçõ delrey he nesta feyra assi que todallas mercadorias que aqui vem ter cada hũa
tem seu prop[r]io lugar pera ella deputado e nõ mesturados, saluo em tẽpo que se faz ho
vinho de mõpatás, do qual fruito já se fez mençã;119 este vinho se vende per toda a feyra
e assi vinho de mel, porque os outros vinhos se vendẽ ẽ seu lugar. Vem a esta feyra sete
e oyto mil pessoas e trazẽ de todallas cousas pera esta feyra que há em suas terras pera
vender e assi daquellas que vem de Portugal. E assi andã nesta feyra dous alcaydes
delrey da terra, os quaes oulhã que se no faz nenhũa cousa maa a nenhũa pessoa de fora
que vem; e esso mesmo vem a esta feyra muytos fidalgos, homẽs e molheres sem terẽ
que venderẽ, saluo pera beberẽ, porque hũas das principaes mercadorias que nella se
guasta he o vinho (...). 120

Tal como ocorria à sociedade como um todo, a percepção cultural das bebidas

estava marcada por um agudo viés hierarquizante. Aos nobres cabia o vinho de palma,

enquanto que as cervejas eram consideradas como bebidas baratas e consumíveis por

qualquer um. Esta dicotomia malafu :: walu (para usar os termos de Congo e Angola)

reproduzia fielmente a própria dicotomia social - entre uma elite (e seus agregados e

e sabe muy bẽ porque ha alguũs que ho sabẽ fazer muy bem, porque nesta terra naçe muyto mel, e tem
muytas abelhas”: Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 688; cf. Lima, 1990: 204-7.
117
Lima, 1990: 255-7.
118
Alencastro, 2000: 311.
119
“Outra aruore ha em Mãdinga como enzyna e dá fruito tã grãde como pessigos e dura todo ãno e
sempre dá fruito. Esta fruyta elles chamã mabijs e nós mẽpatagẽs, e desta fruita tambẽ fazẽ vinho e tem
sabor de mançaãs bayonesas”: Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 710.
120
Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 718.
262

escravos) e os homens comuns - das sociedades estatais ou proto-estatais com os quais

os europeus se defrontaram na África Atlântica.121

Além deste valor simbólico, o vinho de palma era um dos mais importantes itens

dos tributos coletados pelos reis africanos, como o Mansa Falup, rei dos felupes: “esta

gẽte de quãto cria assy das vacas como doutras animálias e vinhos e azeites, de todo

dam ho quarto a seu rey, e nenhuũ rey de toda Ethiopia he tã bem pagado do seu tributo

como este e esto por ser muy cruel e muy temjdo”. O consumo da bebida era parte

central do ritual de apresentação de Mansa Falup: “este rey nõ come se nõ á tarde,

porem des da manhaã atee noyte sempre está hũu cabaz apar delle de vinho de palma e

scassamẽte pode dizer tres palavras, alça o cabaz e bebe”. 122

Na medida em que os portugueses alcançavam outras regiões da África,

percebiam a ubiqüidade da utilização do vinho de palma como índice de status e de

poder real. Em 1560, quando o embaixador português, Paulo Dias de Novais, rendia as

homenagens de praxe ao ngola de Ndongo (atual Angola) - um importante chefe

tributário do Mani (rei) do Congo – foi recebido com toda a pompa e circunstância. O

ngola estava vestido com roupas coloridas e portava os símbolos de seu poder: um

chifre de antílope na mão esquerda e uma cabaça de vinho de palma na direita.

Como afirmou, sobre esta cena, Marina de Mello e Souza: “como sempre, o

chefe cercava-se de insígnias e rituais que legitimavam e apresentavam ao público seu

poder, construído sobre bases diversas: linhagens e alianças matrimoniais,

conhecimentos religiosos e acúmulo de indicadores de prestígio”. 123 Este poder,

contudo, não residia apenas no acúmulo destes bens suntuários, mas também na sua

distribuição: os chefes e reis da África Atlântica deviam mostrar reciprocidade fazendo


121
Ferreira, 2001: 348-9.
122
Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 715.
123
Souza, 2002: 101.
263

doações de comidas e bebidas aos súditos, revelando-se, desta forma, como “grandes

homens” redistribuidores. 124

O vinho de palma também era um item fundamental nos cultos religiosos e

funerários. Apesar das grandes diferenças existentes entre, por exemplo, os povos

sudaneses da Senegâmbia e os bantos do Congo-Angola (para não falar nos povos

islamizados, que costumavam manter parte de seus cultos pré-islâmicos), alguns pontos

em comum podem ser vislumbrados em suas estruturas religiosas. O principal destes

pontos era a presença de um importante culto aos ancestrais, representados por

estatuetas e máscaras possuidoras de uma força mágica, manipulada por sacerdotes

especializados. 125 Por ocasião dos funerais, ou durante os cultos reservados aos mortos,

o ato de beber e de distribuir o vinho de palma revestia-se de importância crucial.

A grande hierarquização da maioria destas sociedades revelava-se – como sói

acontecer durante a formação dos Estados – com força durante os funerais de reis e

nobres, inclusive com a presença de sacrifícios humanos. O jesuíta Baltasar Barreira,

escrevendo da Serra Leoa, em 1607, afirmava que era costume enterrar os mortos de

alto status em “huã coua a modo de aboboda, e sobre ella lhe armaõ huã casa a modo de

ermida, aonde uaõ falar cõ o defunto e emcomendarlhe suas cousas; assentaõ o corpo

em seu assento, e se he alguã pessoa nobre mataõlhe escrauos e escrauas, pêra que os

uaõ seruir a outra uida”. Ao enterrar (à moda cristã) uma velha nobre que havia se

convertido, Barreira percebeu que os nativos ficaram “marauilhados de naõ fazerẽ por

ella os prantos que por elles costumaõ fazer, os quaes cõ mor rezaõ lhe podẽ chamar

124
Priore e Venâncio, 2004: 29.
125
Priore e Venêncio, 2004: 24-30.
264

festas, porque cõforme a calidade da pessoa que morre, assi cõcorre a gẽte de diuersas

partes, mais por ceremonia e por comer e beber, que por chorar”. 126

As bebidas também tinham um lugar especial nos cultos “ao diabo”, como

diziam os missionários europeus ao se referirem aos sacrifícios de animais e outros ritos

religiosos africanos. O capuchinho espanhol Filipe de Yjar, visitando o Benim, em

1654, afirmou que: “en este tiempo pudimos ver muy bien sus Ritos y Çerimonias

diauolicas, que son muchas e muy grandes (...), tienem casas propias dedicadas al

Diablo, em donde le offrezen sacrifiçio de vino, frutos e diuersos animales de su

tierra”. 127

Nestes sacrifícios de animais ficava bem patente a importância cerimonial do

vinho de palma, como perceberam os portugueses, já no século XIV. O “Manuscrito

Valentim Fernandes” traz uma copiosa descrição de um destes sacrifícios, feito pelos

Banhuns, povo da atual Guiné Bissau. Os nativos adoravam “hũu pao a que chamã

hatichina” para o qual era escavada uma cova, na qual era colocado “hũu cabaz de vinho

de palma que leuará tres ou quatro canadas”, além de azeite e arroz. Derramava-se,

dentro da cova, o vinho, o azeite e o arroz, sacrificando-se, em seguida, um cão.

Deixavam, então, “correr todo o sangue do cam em a dita coua sobre o vinho, azeite e

arroz”. 128

Como é possível perceber, a partir destes relatos, as bebidas africanas eram

diferenciadas em função de seus lugares sociais de produção e consumo. Ao vinho de

palma estava reservado, de forma bastante explícita, o lugar de proa, de bebida mais

valorizada, tanto como índice de alto status social, quanto como veículo para a

comunicação com os mortos e com os deuses. Neste contexto, não é de se estranhar que
126
“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal” (09/03/1607), MMA (IV): 238.
127
“Carta do Padre Filipe de Yjar ao Núncio Apostólico em Madrid” (02/06/1654), MMA (XI): 366.
128
Valentim Fernandes, “Descripção...” (1507?), MMA (I): 719.
265

o vinho europeu tenha assumido uma posição crucial entre os povos africanos que se

relacionaram mais intimamente com os europeus. Sendo raro, e caro, o vinho de uvas

possuía um caráter de exclusividade que o fazia altamente desejado pelas elites

africanas, tendo se tornado, por conseguinte, um dos bens mais valorizados no trato com

os europeus, pelo menos até a entrada em cena da cachaça brasileira, a partir do século

XVII. 129

Fornecer o vinho aos nobres africanos representava, para os europeus, um meio

indispensável para o estabelecimento de relações amistosas e de tratos comerciais com

povos suficientemente poderosos para negociar suas lealdades com os estrangeiros que

lhes trouxessem maiores vantagens. O padre Baltasar Barreira, por exemplo, percebeu

este poder do vinho de uvas durante sua viagem a Serra Leoa. Ao “convencer” o rei

Fatema (“dos mais principaes destas partes”) a se batizar, notou o jesuíta que havia duas

dificuldades: o rei tinha “alguã dificuldade o deixar as molheres que tem, que segũdo

dizem seraõ oitocentas”, e fazia questão de receber bens europeus: “o anno passado

escreui que estando este Rey pera se baptizar, hũ homem dos que uieraõ á colla lhe

persuadio que se detiuesse algũs dias, porque logo auia de tornar e lhe traria uestidos

ricos e vinho de Portugal e outras cousas pera a festa do seu baptismo”. 130

Era simplesmente impossível tratar com os africanos sem que se fizessem

presentes deste tipo. Durante as obras de restauração da fortaleza de São Jorge da Mina

(duramente atingida pelos canhões de uma armada holandesa), em 1607, os portugueses

foram obrigados a dar “aos capitaẽs dos negros que ajudaraõ á defençaõ (...) quatro

129
Curto, 1999: 69-70; Alencastro, 2000: 312.
130
“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal” (09/03/1607), MMA (IV): 233.
266

pipas de vinho, e huã cabaya descarlata a cada hum, porque com isso se animaraõ a

pelejarem em semelhante occasiaõ, se se offereçer (...)”.131

Os europeus, em especial os portugueses, tiveram, na África, um espaço de

“aprendizagem” das práticas de exploração e de colonização que seriam largamente

utilizadas na América. Dentre estas práticas destacava-se o uso das bebidas alcoólicas

enquanto lubrificantes e facilitadoras das relações interétnicas, além de itens vitais no

comércio com os povos nativos. Esta experiência, contudo, estava marcada pelas

características específicas das sociedades e culturas da África. Portugueses, e outros

europeus, tiveram que adaptar estas experiências anteriores ao novo mundo surgido a

partir da descoberta da América e de seus povos nativos, que possuíam um tipo de

relação muito diferente com as bebidas. Tal diferença, como veremos, foi determinante

para os rumos tomados pela história etílica no primeiros tempos do Brasil.

131
“Carta Régia ao Conselho da Índia” (30/10/1607), MMA (V): 355; “cabaia” era um tipo de túnica,
confeccionada à moda turca..
267

3. Vinho e Contato na Colonização do Brasil

Devo agora falar do vinho que, entre todos os


alimentos úteis e necessários à vida humana, se
não ocupa o primeiro lugar, garanto que
mereceria pelo menos o segundo, por sua
excelência e perfeição. 132

Anoitecia, quando o piloto Afonso Lopes saltou em um esquife e pôs-se a

investigar o porto no qual a frota de Pedro Álvares Cabral havia fundeado. Na praia,

algumas dezenas de homens nus observavam a cena. Lopes havia sido escolhido para a

tarefa por ser “homem vivo e destro para isso”, e confirmou esta apreciação, ao “tomar”

e trazer a bordo dois daqueles homens, “mancebos e de bons corpos”.

A partir deste ponto, o escrivão Caminha fez o que pode ser considerada como a

primeira “etnografia” dos índios brasileiros. Descreveu os cabelos “corredios” e

“tosquiados”, os “bons rostos e bons narizes, bem feitos”, e os “ossos de osso branco”,

enfiados nos seus beiços. Surpreendeu-se com a sem-cerimônia com que os índios

exibiam suas “vergonhas”, e com a falta de cortesia para com o capitão e os outros

notáveis da frota portuguesa.

O mais interessante, contudo, é a descrição do comportamento alimentar dos

dois rapazes. Ao contrário do que os portugueses poderiam esperar, os índios nada

comeram, recusando o pão e pescado cozido, os “confeitos e fartéis” (que devem ter

132
Thevet, 1978 (1556): 37.
268

parecido algo estranhíssimo aos jovens) e o mel e passas de figo. Quanto à água que

lhes foi oferecida, “não beberam; somente lavaram as bocas e (a) lançaram fora”. 133

Talvez o que mais tenha chamado a atenção dos portugueses, porém, foi a reação

dos nativos ao vinho europeu: “trouxeram-lhes vinho per uma taça, puseram-lhe assim a

boca tão malaves e não gostaram dele nada, nem o quiseram mais”. 134 Alguns dias

depois, mesmo que os nativos estivessem mais à vontade entre os portugueses,

continuavam resistindo ao vinho: Sancho de Tovar levou, ao seu navio, “dous

mancebos, despostos”, que comeram tudo que lhes foi oferecido (inclusive presunto),

mas não receberam vinho “por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem”. 135

Herdeiros da longa tradição européia de trocas culturais mediadas pelas bebidas

alcoólicas, nas quais o vinho de uvas ocupou, na maior parte das vezes, um lugar

privilegiado, os portugueses devem ter se surpreendido bastante com aquela reação de

asco e desaprovação à sua bebida nacional. Devem ter imaginado o quão diferentes

eram aqueles selvagens dos negros da Guiné, que pareciam adorar o vinho.

Ora, na recusa dos índios aos alimentos e bebidas oferecidos já ficava patente a

radical diferença entre os significados conferidos àquele encontro pelas duas culturas.

No contexto dos sistemas culturais nativos do Brasil, o ato de comer e beber com o

outro jamais se constitui em uma operação “neutra”, ou (como no caso dos europeus)

“instrumental”. Só é possível compartilhar o alimento (ou a bebida) com aqueles

indivíduos com os quais se compartilha a mesma “substância”, ou com os inimigos cujo

potencial de risco esteja colocado em um nível mínimo através de relações de afinidade.

Como afirmou Aparecida Vilaça, a respeito dos Wari’ (RO):

133
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 20-2.
134
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 22.
135
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 30-1.
269

A comensalidade, para os Wari’, caracteriza de forma tão marcada as relações de


consubstancialidade, que aqueles que comem os mesmos alimentos são concebidos
como formando parte de um grupo de substância, que em seu limite mínimo é
constituído pelos pais, filhos e irmãos, além do cônjuge – os cônjuges são tornados
consubstanciais com o casamento, pois seus sangues se misturam. 136

Ingerir qualquer alimento, ou bebida, com aqueles estranhíssimos personagens

(que só poderiam ser associados a inimigos, visto não serem nem parentes nem afins)

constituiria, para os rapazes levados a bordo do navio de Cabral, um ato bastante

inusitado. Os índios observaram os portugueses com enorme interesse (principalmente

por conta das ferramentas européias), mas buscaram, durante todo o tempo em que a

frota cabralina permaneceu em praias brasileiras, manter-se a uma distância segura dos

recém-chegados.

Esta tentativa de apartação é bem revelada por sua atitude para com os

degredados: por diversas vezes, mandou o capitão que aqueles homens, condenados por

crimes em Portugal, passassem a noite com os índios, mas estes sempre os mandavam

de volta: “e mandou (o capitão) com eles, pera ficar lá, um mancebo degradado (...), a

que chamam Afonso Ribeiro, pera andar lá com eles e saber de seu viver e maneira. (...)

Tornamos e eles mandaram o degradado e não quiseram que ficasse lá com eles”. 137

Para os portugueses, por outro lado, o oferecimento daqueles víveres

representava não apenas um ato de aproximação com aquela alteridade radical, mas

também um meio de aferir sua própria superioridade em relação a homens que, para os

lusos, se afiguravam como verdadeiros selvagens, ainda mais “bárbaros” do que os

negros da Guiné. Os marinheiros esperavam, certamente, que os índios aceitassem suas

oferendas com alegria e, quem sabe, até com gratidão, diferentemente do que havia

136
Vilaça, 1992: 34.
137
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 22-3. Sobre este primeiro encontro entre os
portugueses e os índios no Brasil cf. Giucci, 1993: 27-76; Fernandes, 2003: 207-9.
270

ocorrido, dois anos antes, quando os representantes do Samorim de Calicute riram e

desprezaram os paupérrimos presentes oferecidos por Vasco da Gama. 138

Não se imaginava que aqueles pobres homens, “nus, sem nenhuma cousa que

lhes cobrisse as vergonhas”, 139 agissem da mesma forma que os orgulhosos orientais.

Os portugueses, muito provavelmente, esperavam dos índios uma atitude semelhante

àquela tomada pelos povos da costa ocidental africana, os quais vinham sendo

contatados, guerreados e escravizados pelos europeus durante as décadas precedentes.

Todas as atitudes dos portugueses com relação aos índios, naquele primeiro encontro,

eram coerentes com a sua experiência africana, seja o ato de “tomar” os nativos e

levarem-nos a bordo, seja o de fazer-lhes oferendas de comida, de bebida e daquilo que

era considerado, pelos europeus, como “bugigangas”.

Ao oferecer suas dádivas, os portugueses “testavam” os índios, aferindo o seu

grau de civilização e, principalmente, a possibilidade de usufruir seus corpos e eventuais

riquezas que possuíssem. Aliás, no final da estadia da frota em águas brasileiras, alguns

índios já aceitavam a comida que lhes era oferecida: alguns deles, que passaram a noite

com os portugueses, foram “mui bem agasalhados, assim de vianda como de cama, de

colchões e lençóis, polos mais amansar”. 140 E, o mais importante, alguns já se

aventuravam a saborear o vinho: “traziam alguns deles arcos e setas, e todolos deram

por carapuças e por qualquer cousa que lhes davam. Comiam connosco do que lhes

dávamos e bebiam alguns deles vinho, e outros o não podiam beber, mas parece-me que

se lho avezarem (acostumarem), que o beberão de boa vontade”. 141

138
Velho, 1998 (1838): 84.
139
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 19.
140
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 32.
141
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 31.
271

A aceitação das ofertas representava, como percebeu argutamente o escrivão da

frota cabralina, o início de um processo de “amansamento” que seria crucial para o

futuro sucesso dos lusos na terra recém-descoberta. Este sucesso se daria em bases

profundamente distintas daquelas sobre as quais se construiu a presença portuguesa na

África. Diferentemente do que ocorria na Guiné, os índios pareciam singularmente

desprovidos de uma mentalidade mercantil, que reconhecesse na aceitação da dádiva o

estabelecimento de uma relação de reciprocidade e, principalmente, de dívida.

Enquanto que, na África, a reciprocidade se expressava na cessão de

informações, de ouro, de escravos, ou o que fosse, por parte dos nativos, os índios, à

primeira vista, pareciam querer simplesmente pegar os presentes de roupas ou contas e

voltar à praia, sem qualquer mostra de compreensão dos princípios de uma

reciprocidade que, para os portugueses, era essencial para o estabelecimento de uma

relação de dívida, a qual, como afirmou Guillermo Giucci, só era visível “para quem

distribui para subjugar”. 142

Os nativos que habitavam o território que se tornaria a América Portuguesa, ao

contrário dos povos da África Atlântica, não possuíam mercados onde as mercadorias

européias pudessem ser trocadas e postas em circulação, nem elites governantes que

usufruíssem os bens suntuários europeus. Em virtude de sua extraordinária capacidade

de reconhecer, nas culturas nativas, espaços de exercício de poder, portugueses e outros

europeus logo perceberam que o estabelecimento de relações de dependência com os

índios no Brasil deveria se dar a partir de bases adaptadas às condições e culturas locais.

Como em outras regiões do continente americano, os índios no Brasil utilizaram

estratégias de comportamento, com relação aos europeus, extremamente variadas, e

142
Giucci, 1993: 45; cf. Monteiro, 1994: 63..
272

fortemente determinadas por suas próprias percepções a respeito de quem eram aqueles

recém-chegados. Em alguns casos, como o dos Tupinambá da costa brasileira, os índios

mostraram-se extremamente plásticos, estabelecendo com os europeus laços de aliança

e afinidade que levaram-nos, inclusive, a combater e escravizar outros índios. Outros

nativos, por seu turno, como os Mbayá-Guaicuru do Pantanal, tudo fizeram para se

apartar das influências e contatos com os portugueses e outros europeus. Entre estes

dois extremos, uma miríade de formas de relacionamento foi construída, de acordo com

as circunstâncias históricas e culturais particulares. 143

Ora, refletir sobre tais diferenças representa, por certo, um passo fundamental

para compreender as formas pelas quais europeus e indígenas se relacionaram em torno

da experiência etílica. Seria de todo impossível, contudo, abordarmos estas diferenças

sem nos perdermos na infinidade de casos e processos particulares que envolveram (e

ainda envolvem) o contato interétnico no Brasil. Mais proveitoso, presumo, seria

observar aquilo que existe de comum entre os diferentes casos, sempre reconhecendo a

impossibilidade de, em um único trabalho, abranger toda a gama de experiências

possíveis em um tema tão complexo.

É claro que este ponto em comum é a presença européia, com seus produtos e

instrumentos, e suas práticas sociais e culturais de exploração e de “improvisação de

poder”, isto é, “a habilidade européia de insinuar-se várias vezes dentro das estruturas

políticas, religiosas e também psíquicas preexistentes dos nativos e utilizá-las em

proveito próprio”. 144 É sempre necessário, não obstante, reafirmar que o processo de

contato não representa, em qualquer hipótese, uma via de mão única: “a mudança

cultural sofrida pelos povos nativos americanos não teve apenas um lado, e nem foi

143
Wilson e Rogers, 1993: 4; Monteiro, 1994: 30-1; Fernandes, 2003: 205-6.
144
Stephen Greenblatt, apud Giucci, 1993: 207.
273

comandada unicamente pelas intenções e estratégias européias”, sendo antes “um

extenso processo de descoberta mútua (...) que continua até os dias de hoje”. 145

Um exemplo importante da centralidade das percepções nativas dentro do

processo de contato interétnico é dado pelo papel dos bens e instrumentos de origem

européia. Assim como ocorreu na África Atlântica, o vinho apareceu para os nativos no

Brasil como mais um daqueles utensílios maravilhosos, que aqueles homens que

vinham do mar pareciam possuir de forma inesgotável. É necessário, para

compreendermos a maneira pela qual o vinho foi visto pelos índios, que analisemos um

pouco o papel que os bens de origem européia tiveram no processo de contato.

Tradicionalmente, os índios aparecem como receptores passivos de bens de

baixo valor (“bugigangas”), alegremente recebidos em troca de produtos tropicais

altamente valorizados, como o pau-brasil. A noção de que o álcool servia como uma

“arma da colonização” se enquadra bem neste tipo de pressuposição, ao imaginar que os

índios simplesmente não podiam recusar ou manejar o perigoso “presente etílico”

oferecido pela cobiça européia. 146

Na verdade, está cada vez mais claro nos dias de hoje que os bens europeus

jamais são incorporados pelas sociedades nativas de forma passiva ou “inconsciente”,

antes pelo contrário: o desejo nativo por estes bens é algo que, além de extremamente

variável, é totalmente determinado por suas próprias percepções culturais. A noção de

“utilidade”, por exemplo, é bastante estranha às culturas nativas, e não pode responder

pela aceitação de tal ou qual bem de origem européia, ou neo-européia. Como afirmou,

sobre este tema, Terence Turner:

145
Wilson e Rogers, 1993: 3.
146
Hemming, 1995: 6.
274

O desejo kaiapó por mercadorias brasileiras se deve apenas em parte à sua maior
eficiência e utilidade frente aos produtos nativos, e muito pouco a uma competição por
prestígio fundada no ‘consumo conspícuo’. O valor primordial da posse de mercadorias,
para os Kaiapó, - especialmente objetos próprios para ser exibidos, como roupas, casas
e gravadores - reside na neutralização simbólica da desigualdade entre eles e os
brasileiros, na medida em que esta é definida em termos da posse dos produtos mais
complexos e eficazes da indústria ocidental, e da capacidade de controlar a tecnologia a
eles associada. O valor das roupas, rádios e aviões para os Kaiapó, em outras palavras,
reside acima de tudo na negação do contraste humilhante entre eles como seres
‘selvagens’ e os brasileiros como ‘civilizados’, contraste que os Kaiapó experimentam
como se definindo, da maneira mais simples e óbvia, em termos da posse e uso de tais
bens. Isto é verdadeiro, acima de tudo, para as roupas, visto ser a nudez o signo
fundamental da selvageria aos olhos dos brasileiros. 147

A exterioridade contida nos bens europeus representava, por si própria, um valor

a ser alcançado, 148 mas isto não significa, por certo, que os índios fossem infensos ao

caráter de utilidade ou eficiência dos objetos e instrumentos europeus. Segundo frei

Vicente do Salvador, os índios agradeciam aos portugueses por terem trazido “todas as

coisas boas (...) de que êles dantes careciam e agora as têm em tanta abundância, como

são machados, foices, anzóis, facas, tesouras, espelhos, pentes e roupas (...)”. 149

Em todos os testemunhos a respeito do contato interétnico, tanto os do passado

quanto os do presente, percebe-se claramente o fascínio demonstrado pelos ameríndios

em relação às maravilhosas ferramentas européias, que se assemelhavam, aos olhos dos

nativos, às obras de seus heróis culturais, chamados de maí ou karaiva. Este fascínio

fica claro, por exemplo, na descrição feita por Caminha da confecção de uma cruz:

E enquanto nós fazíamos a lenha, faziam dous carpinteiros uma grande cruz, dum pau
que se ontem pera isso cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros, e creio
que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro, com que a faziam, que por verem a
cruz, porque eles não têm cousa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com

147
Turner, 1993: 61; cf. Altman e Butler, 1994: 491.
148
Viveiros de Castro, 2002a: 223.
149
Salvador, 1975 (1627): 141; cf. Monteiro, 1994: 63.
275

pedras feitas como a cunhas, metidas em um pau antre duas talas, muito bem atadas
(...). 150

Em princípios do século XVII, durante o empreendimento francês no Maranhão

(a “França Equinocial”), o chefe Tupinambá Japi-açu, em discurso aos franceses,

ofereceu-nos uma notável racionalização mítica das diferenças técnicas entre índios e

europeus, entendidas em termos de uma maior proximidade entre os recém-chegados e

os mair:

Éramos uma só nação, vós e nós; mas Deus, tempos após o dilúvio, enviou seus profetas
de barbas para instruir-nos na lei de Deus. Apresentaram êsses profetas ao nosso pai, do
qual descendemos, duas espadas, uma de madeira e outra de ferro e lhe permitiram
escolher. Êle achou que a espada de ferro era pesada demais e preferiu a de pau. Diante
disso o pai de quem descendestes, mais arguto, tomou a de ferro. Desde então fomos
miseráveis, pois os profetas, vendo que os de nossa nação não queriam acreditar nêles,
subiram para o céu (...). 151

Quando o Padre Luiz Figueira exerceu sua atividade missionária na Serra de

Ibiapaba, em 1608, percebeu com bastante clareza o caráter metafísico que os bens

europeus possuíam para os nativos no Brasil, por mais “ordinários” que fossem. Os

“tapuias” do Ibiapaba, por exemplo, deliciaram-se com uma “boceta de Flandres que lhe

mandamos cheia de fumo”, mas se extasiaram com alguns calções: “(...) todos os

vestidos que levava lhe pediram, e todos deu, mas tinha pouco que dar, e um a quem ele

dera os calções, depois de os calçar se lhe ajuntaram as mulheres a roda a pranteá-lo por

vestir os feitiços de branco como elas diziam (...)”. 152

Os europeus souberam utilizar-se muito bem deste tipo de racionalização,

mostrando aos índios que estes deveriam manter uma relação de dependência, se

quisessem continuar a ter acesso aos “feitiços de branco”. Um dos comandantes

150
Carta de Pero Vaz de Caminha, in Garcia, 2000: 32.
151
Abbeville, 1975 (1614): 60-1.
152
Luiz Figueira, Relação da Missão do Maranhão (c. 1609), in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 274.
276

franceses no Maranhão, Charles des Vaux, deixou isto muito evidente, respondendo a

um discurso do chefe Tupinambá Momboré-uaçu, em que este manifestava dúvidas

quanto às boas intenções dos franceses:

E não sabes quanto seria infeliz a tua nação sem o auxilio dos franceses? (...) Que seria
de vós, se os franceses não vos tivessem procurado para trazer-vos machados, foices, e
outros gêneros que vos são necessários e sem os quais não podeis preparar vossas roças
e viver? Que faríeis se não atravessassem o mar todos os anos, não só para vir ver-vos,
mas ainda trazer-vos novas mercadorias destinadas à substituição das antigas já gastas?
Onde obteríeis outras? 153

Esta dependência dos índios, tão bem explorada por europeus como Charles des

Vaux, deve ser vista de forma matizada. Afinal, os nativos sempre podiam jogar com as

rivalidades entre as nações européias, ou entre os indivíduos de uma mesma nação. Os

primeiros povoadores (portugueses, em sua maioria), além de depender fortemente dos

nativos para a obtenção de mantimentos, também dependiam da repressão da metrópole,

de forma a mantê-los como os únicos a terem acesso às trocas com os nativos.

Não é por acaso que, desde muito cedo, a Metrópole tenha reservado o comércio

com os índios aos colonos. Esta determinação é bem explicitada no Foral da Capitania

de Porto Seguro, cujo donatário era Pero do Campo Tourinho. Este documento proibia

que qualquer pessoa “de meus Reinos, e Senhorios, como de fóra delles” pudesse tratar,

comprar ou vender “cousa alguma com os gentios da terra”, somente tratando com “o

Capitão, e povoadores della”, sob pena de perder “em dobro todalas mercadorias, e

cousas, que com os ditos gentios contratarem”, proibição que era estendida a “todo

vizinho e morador , que houver na dita Capitania, e for feitor, ou tiver companhia com

alguma pessoa, que viver fóra de meus Reinos, e Senhorios”. 154

153
Abbeville, 1975 (1614): 116.
154
“Traslado do Foral e Privilegio da Capitania de Porto Seguro do Brasil, que é de Pero do Campo”
(23/09/1534). DH, XXXVI: 274-5.
277

Neste contexto, no qual os bens e mercadorias representavam um passaporte

vital para o estabelecimento de relações com os índios, o vinho surgiu como mais uma

daqueles produtos que deixavam tão evidente a inferioridade técnica e simbólica dos

nativos. Grandes especialistas na produção de bebidas fermentadas, como eram os

índios no Brasil (e especialmente os Tupinambá, primeiros a sentir o impacto da

invasão européia), não poderiam deixar de se extasiar com a capacidade embriagante do

vinho. À sensação de asco demonstrada no primeiro encontro com o cãoy áyà, 155 logo

se seguiu o desejo de possuir aquele bem tão prestigiado pelos pero e mair, e tão mais

potente que suas próprias bebidas tradicionais.

Um exemplo disso é dado pela descrição, feita pelo calvinista Jean de Léry, da

tomada de uma caravela portuguesa, por parte dos índios, em meados do século XVI.

No contexto de uma discussão acerca do amor que os Tupinambá dedicavam à

embriaguez, Léry nos apresenta uma história que lhe foi contada por um velho Tamoio:

Antes de terminar este assunto, e a fim de que os leitores se convençam de que se


tivessem vinho à vontade enxugariam galhardamente o copo, vou contar uma história
tragicômica que em sua aldeia me contou um mussacá, isto é, um bom e hospitaleiro pai
de família. “Surpreendemos uma vez, disse ele na sua rude linguagem, uma caravela de
pêros, (isto é, portugueses, que como já referi são inimigos mortais dos nossos
tupinambás) na qual, depois de mortos e comidos todos os homens e recolhida a
mercadoria existente, encontramos grandes caramemos (tonéis e outras vasilhas de
madeira) cheios de bebida que logo tratamos de provar. Não sei que qualidade de cauim
era, nem se o tendes no vosso país; só sei dizer que depois de o bebermos ficamos por
três dias de tal forma prostrados e adormecidos que não pudemos despertar”. É
verossímil que fossem tonéis de bom vinho da Espanha, com os quais os selvagens, sem

155
“Vinho agro”: José de Anchieta, “Informação dos Casamentos dos Indios do Brasil” (1584), in
Anchieta, 1988: 459; Fernão Cardim (1978 [1625]: 178) diz que os índios chamavam o vinho português
de cagui-été (“vinho verdadeiro”), mas Anchieta (fonte lingüística mais confiável), no trecho já citado,
afirma que o “vocábulo etê, que quer dizer legítimo, usam eles nas coisas naturais da sua terra, e assim a
seu vinho chamam cãoy etê, vinho legítimo verdadeiro (...)”. O vinho de uvas também era chamado de
cauim piranga (“cauim vermelho”): Rodolfo Garcia, em nota a Anchieta, 1988: 464; Ferdinand Denis, em
nota a Evreux, 2002 (1615): 409.
278

o saber, festejaram a Baco. Não é pois de admirar que o nosso homem se tivesse sentido
tão repentinamente atordoado. 156

Apesar desta demonstração entusiasmada de aceitação do vinho por parte dos

índios, a bebida européia tinha pouquíssimas possibilidades de se tornar um item

importante de comércio, ou “resgate”, entre europeus e nativos. Ao contrário do que

ocorreu na África, o lugar social reservado às bebidas e à embriaguez pelos índios

deixava um espaço reduzido para uma bebida fermentada de difícil obtenção, como era

o caso do vinho. Uma rápida comparação entre o que ocorreu no Brasil e na África

Atlântica pode ser muito útil, para compreendermos as razões do relativo fracasso do

vinho em se estabelecer como um eficiente “lubrificante” das relações interétnicas na

América Portuguesa, papel que foi mais bem ocupado por ferramentas e instrumentos

de trabalho.

Como vimos, na seção anterior, as sociedades africanas dispunham de um

“ranking” dos inebriantes alcoólicos, o que lhes permitia manter um determinado tipo

de bebida, o vinho de palma, como um item exclusivo, para uso das elites e dos rituais

religiosos. O vinho penetrou neste mundo como um substituto (ainda mais valorizado,

por certo) desta bebida de elite, enquanto que, às massas, continuavam reservados os

fermentados de obtenção mais fácil, as cervejas de sorgo e painço e os hidroméis, pelo

menos até o século XVII, quando a cachaça brasileira foi introduzida no continente

africano.

Ao chegarem ao litoral brasileiro, contudo, os portugueses encontraram povos

que possuíam hierarquias sociais muito pouco marcadas, o que se refletia diretamente

no tipo de utilização que se fazia do álcool. Entre aqueles nativos – os Tupinambá,

Guarani e vários grupos “tapuias” – não existiam “bebidas de elite”, por não existirem

156
Léry, 1960 (1578): 120-1.
279

elites de qualquer tipo. As bebidas fermentadas, de uma forma geral, eram consumidas

por todos os membros do grupo, respeitadas as interdições de idade (transitórias) e de

gênero (frouxas). Além disso, consumiam-se estas bebidas (muito suaves, do ponto de

vista da potência embriagante) em grandes quantidades e em um espaço de tempo

bastante reduzido, durante os dias em que se realizavam festas de casamento,

cerimônias de iniciação (como a perfuração dos lábios dos meninos, entre os

Tupinambá) e rituais antropofágicos.

Desta forma, seria impossível que uma bebida fermentada de origem estrangeira,

mesmo que mais potente, ocupasse um lugar importante nas relações euro-indígenas no

Brasil. Para isso, teria sido necessário que esta bebida estivesse disponível em grandes

quantidades, de forma a substituir, com vantagem, as bebidas nativas. Isto jamais

aconteceu. O vinho sempre teve uma distribuição relativamente restrita no Brasil

colonial, e nunca esteve disponível, em grandes quantidades, aos índios.

Mesmo quando se percebia, em função do contato como os europeus, a

formação de “proto-elites” entre os relativamente igualitários índios no Brasil, o vinho

de uvas, assim como outros bens de origem européia, mostrava-se inadequado como

veículo de diferenciação social. Os chefes nativos, para permanecerem nesta posição,

deviam se mostrar como redistribuidores generosos, não havendo, entre os índios do

litoral brasileiro, e do sertão mais próximo, qualquer coisa que se assemelhasse a um

“sistema tributário”, que justificasse que alguns bens estivessem disponíveis apenas a

uma elite.

O intérprete Roulox Baro, atuando, em 1647, como embaixador da Companhia

das Índias Ocidentais junto aos “tapuias” do sertão do atual Nordeste, teve a

oportunidade de observar as limitações do uso dos bens europeus enquanto estratégia de


280

cooptação da fidelidade de uma “elite” indígena. O famoso chefe Janduí, um dos mais

importantes aliados nativos dos holandeses, reclamava acerbamente da reduzida

quantidade de presentes recebidos dos holandeses, e que não lhe permitiam exercitar, a

contento, seu papel de grande redistribuidor:

(...) um capitão dos tapuias, chamado Vvariju, veio visitar Janduí, com sua gente
conduzida por trinta e quatro chefes e regalaram-se com farinha, ratos e milho, que
tinham trazido. (...) No dia 3 de junho, o velho (Janduí) deu a Vvariju uma parte dos
presentes que eu lhe trouxera, sob a promessa de seguir o seu partido, que é o nosso, e
despediu-o. Depois disse-me: - “Vês, meu filho, como é necessário que eu dê aos
tapuias parte do que ofereceste? Pois, de outro modo, eu ficaria só: não tenho o
suficiente para distribuir aos outros chefes.” Prometi-lhe que, dali em diante, eu me
abasteceria de presentes suficientes para todos. 157

O problema, portanto, estava na capacidade européia de satisfazer a demanda

nativa pelo fermentado de uvas, e não na falta de desejo pelo vinho por parte dos

nativos. Pelo contrário, estes apreciavam muitíssimo a bebida européia, como nos diz o

jesuíta Fernão Cardim. Ao acompanhar, em 1583, o padre Cristóvão de Gouveia em sua

visitação à Bahia, Cardim pôde observar com clareza o valor concedido ao vinho pelos

índios Tupinambá: “o padre lhes dava das cousas de Portugal, como facas, tesouras,

pentes, fitas, gualteiras, Agnus Dei em nominas de seda; mas o com que mais folgavam

era com uma vez de cagui-été, sc. vinho de Portugal”. 158

O vinho não era usado apenas na troca de presentes durante as ocasiões festivas.

Durante o processo de conquista do território aos índios, o vinho foi utilizado, em

algumas ocasiões, para dirimir tensões com os índios “aliados” ou para travar relações

pacíficas com os índios “brabos”. Em princípios do século XVII, no contexto das

guerras de conquista da Paraíba e do Rio Grande do Norte aos franceses e seus aliados

157
Baro, 1979 (1651) 101; cf. Pompa, 2003: 254.
158
Cardim, 1978 (1625): 178.
281

nativos, o vinho era frequentemente oferecido ao turbulento chefe Zorobabé. Este

principal dos Potiguar havia passado para o lado luso-espanhol, após a derrota dos

franceses no Rio Grande, em 1598, tendo prestado grandes serviços aos colonizadores

ibéricos, inclusive ao fazer, junto com 1500 flecheiros, guerra (1603) aos Aimoré que

atacavam engenhos e povoações na Bahia. 159

Era uma aliança das mais instáveis, não apenas por conta da tradicional

“inconstância” dos nativos, mas também pelo fato de Zorobabé ser um indivíduo

“inquieto e revoltoso”, principalmente nas ocasiões em que se embebedava, o que não

impedia os “brancos da Paraíba” de fazer-lhe freqüentes visitas com “boas peroleiras de

vinho e outros presentes, ou por seus interêsses de índios por seus serviços e

empreitadas, ou por temor que tinham da sua rebelião, por o verem tão pujante”. Tais

presentes não foram suficientes para atrair a fidelidade absoluta do principal, que

acabou por ser preso em 1608 e enviado a Portugal, onde morreu. 160

Os Potiguara não eram os únicos a serem “amaciados” com presentes de vinho.

Apesar das inumeráveis violências cometidas contra os povos indígenas durante o

processo de colonização, era política da Coroa portuguesa - e espanhola, durante o

período da União Ibérica (1580-1640) – e, muitas vezes, dos próprios administradores

locais, buscarem formas de se relacionar com os nativos sem fazer uso da guerra aberta,

sempre perigosa e imprevisível. O governador Diogo de Menezes (1608-12) resumiu

bem, em carta a Filipe II, a estratégia preferida (embora nem sempre praticada) para o

contato com os índios:

O terceiro ponto he a forma em que se deve fazer a jornada e conquista a qual me


pareçeo sempre se não devia fazer com grandes custos nem exercitos de gente por que

159
Salvador, 1975 (1627): 333-4; cf. Vainfas, “Zorobabé”, in Vainfas, 2000: 592.
160
Salvador, 1975 (1627): 351-2; cf. Vainfas, “Zorobabé”, in Vainfas, 2000: 592.
282

como a gente que se vai conquistar se não pode sugeitar pela força, senão por invenção
e manha, quanto menos poder ver o gentio em nos e nos que o vão conquistar, tanto
mais se fiarão do que dissermos, e assi se redusirão facillissimamente porque não he
gente que se deffenda por força, senão por fugir de nos fasendo que a falta das cousas
nos desbarate, e sem elle mal se podera remediar nem povoar tão larga costa assi pera
remedio de a deffender aos estrangeiros como de a cultivarem e assi a força moderada
não ficara espantado o gentio pêra se afastar de nos e a gente que for ira segura de lhe
poder acontecer hum desastre. 161

Aliás, naquela mesma guerra, já referida, contra os Aimoré da Bahia (1603), os

ibéricos exercitaram à farta as estratégias de guerra (com o apoio de Zorobabé) e de

“manha”, esta com a sempre bem vinda ajuda do vinho da Europa. Tendo tomado “com

o seu gentio em um assalto” a uma mulher Aimoré, Álvaro Rodrigues 162 ensinou-lhe:

A língua dos nossos tupinambás, e aprendeu e fêz a alguns nossos aprender a sua. Fêz-
lhe bom tratamento, praticou-lhe os mistérios da nossa santa fé católica, que é
necessário crer um cristão, batizou-a e chamou-lhe Margarida. Depois de bem instruída
e afeta a nós, vestiu-a de sua camisa ou saco de pano de algodão, que é o traje das
nossas índias, deu-lhe rêde em que dormisse, espelhos, pentes, facas, vinho e o mais que
ela pôde carregar, e mandou-a que fosse desenganar os seus, como fêz, mostrando-lhes
que aquêle era o vinho que bebíamos, e não o seu sangue, como eles cuidavam, e a
carne que comíamos era de vaca e outros animais e não humana; que não andávamos
nus, nem dormíamos pela terra, como êles, senão em aquelas rêdes, que logo armou em
duas árvores e nenhum ficou que se não deitasse nela e se não penteasse e visse no
espelho. Com o que, certificados que queríamos sua amizade, se atreveram alguns
mancebos a vir com ela à casa do dito Álvaro Rodrigues na cachoeira do rio Paraguaçu,
donde êle os trouxe a esta cidade ao capitão-mor Álvaro de Carvalho, que logo os
mandou vestir de pano vermelho e mostrar-lhes a cidade, onde não havia casa de venda
ou taverna em que não os convidassem e brindassem. Com o que mui certificados foram
acabar de desenganar os companheiros, e se fêz paz com os aimorés em tôda esta costa.
Queira nosso Senhor conservá-la e que não demos ocasião a outra vez se rebelarem. 163

161
“Carta de D. Diogo de Menezes a Filipe II, dando-lhe parecer sobre a conquista do Maranhão e divisão
das terras” (Bahia, 01/03/1612), in Saragoça, 2000: 323.
162
Experimentado sertanista, que já havia se notabilizado na guerra aos Caeté de Sergipe, quando se fez
acompanhar de três mil “frecheiros tapuias”: Bandeira, 2000: 112.
163
Salvador, 1975 (1627): 334.
283

Apesar destes exemplos, seria um grande erro, repito, afirmar que o vinho de

uvas representou um papel dos mais importantes nas relações interétnicas na América

Portuguesa, pelos motivos já referidos anteriormente. Ao contrário do que pensa John

Hemming – imerso em uma perspectiva norte-americana, na qual as bebidas alcoólicas

representaram, efetivamente, uma “arma da colonização”, utilizada contra nativos

despreparados para resistir ao rum e ao corn whiskey – os índios brasileiros pouco

sofreram com “a arma mais poderosa do colonialismo”, 164 pelo menos se

considerarmos, como faz Hemming, que esta arma era o vinho de uvas.

Nas listas de mercadorias e bens oferecidos aos índios durante todo o período

tratado nesta tese, o vinho de uvas raramente aparece. O que existe é uma sucessão,

quase que monótona, de referências a itens de tráfico mais prosaicos, em especial

objetos e instrumentos de trabalho e vestimentas, pontuados por alguns itens um pouco

mais valiosos, cedidos aos chefes nativos. Havia o cuidado de não dar aos índios objetos

que pudessem ser utilizados contra os próprios colonizadores: no regimento de Tomé de

Souza (c. 1549) foi feita uma lista dos bens que estavam vetados ao tráfico com os

nativos. Estava proibida a entrega de

artilharia, arcabuzes, espingardas, pólvora nem munições para elas, bestas, lanças,
espadas e punhais nem manchis, nem foices de cabo de pau, nem facas da Alemanha
(facas de boa qualidade), nem outras semelhantes, nem algumas outras armas de
qualquer feição que forem assim ofensivas e defensivas, e qualquer pessoa que o
contrário fizer morra por isso morte natural e perca todos seus bens a metade de seus
cativos e a outra metade para quem o acusar. 165

O Regimento definia o que poderia ser comercializado com os índios. Eram

produtos de baixo preço e qualidade (para os europeus), e de baixo ou nulo potencial

164
Hemming, 1995: 6.
165
“Primeiro Regimento que levou Tomé de Souza Governador do Brasil” (c. 1549), in Ribeiro e Moreira
Neto, 1992: 146.
284

ofensivo, tais como “machadinhas, machados, (...) facas pequenas de foices de cabo

redondo, podões de mão, cunhas, (...) facas pequenas de tachas e tesouras pequenas de

dúzias”. 166 Nem uma palavra sobre o vinho, ou sobre qualquer outra bebida. Outras

relações seguem por esta linha: davam-se “pentes, facas, machados, espelhos, miçangas

e outras bugigangas”; 167 ou “duas dúzias de tesouras (...), dez maços de miçangas (...),

uma dúzia de espelhos pequenos, 400 anzóis de tamanho médio, 4 dúzias de facas de

baixa qualidade (...)”. 168

Tais determinações legais, emanadas de um contexto muito distante da vida

prática da colônia, raramente eram seguidas à risca. Os colonos, e especialmente seus

descendentes com as mulheres nativas, os mamelucos, 169 frequentemente escapuliam

destas proibições. Os mamelucos, agindo como mediadores culturais entre os mundos

europeu e indígena, e transitando entre sentidos e práticas muito díspares entre si,

sentiam-se bastante livres para, por um lado, andarem nus, praticarem o canibalismo e a

poliginia, e participar das cauinagens e, por outro lado, agirem como facilitadores e

agentes da dominação européia, guiando tropas de colonos à caça de índios

escravizáveis e comandando guerras contra nativos hostis.

Por vezes, mamelucos e índios criavam uma prática “mestiça” de relações, em

que aqueles adquiriam prisioneiros e mulheres em troca de bens vedados pela legislação

portuguesa, como cavalos, pólvora, armas de fogo, espadas, facas de boa qualidade...

Como afirmou, acerca deste ponto, Ronaldo Vainfas, “o movimento de aculturação –

processo complexo e de mão dupla – acabava, no limite, por armar os índios contra a

166
“Primeiro Regimento que levou Tomé de Souza Governador do Brasil” (c. 1549), in Ribeiro e Moreira
Neto, 1992: 146.
167
“Relação da viagem do Capitão de Gonneville às Novas Terras das Índias” (1505), in Perrone-Moisés,
1992: 23.
168
“Relación de lo recebido y pagado por Enrique Montes em la isla de Santa Catalina” (1527), in Ribeiro
e Moreira Neto, 1992: 131.
169
Cf. Vainfas, 1995: 141-51, e Vainfas, “Mamelucos”, in Vainfas, 2000: 365-7.
285

colonização escravocrata”. 170 A confissão do mameluco Domingos Fernandes

Tomacaúna, feita ao visitador do Santo Ofício na Bahia (1592), mostra bem esta fluidez

das práticas da vida colonial. Disse o mestiço ao visitador que “haverá vinte anos, no

sertão de Pernambuco no Rio de São Francisco deu uma espada e rodelas e adagas e

facas grandes de Alemanha e outras armas aos gentios que são inimigos dos cristãos, e

os matam e guerreiam, quando tem lugar para isso”. 171

Apesar destas importantes exceções, é importante ressaltar que, sempre que a

Coroa e seus agentes mais diretos possuíam alguma margem de controle sobre as

relações com os povos nativos, observamos uma grande coerência no que se refere aos

tipos de mercadorias que eram usados. Esta coerência não se dava apenas em função da

disponibilidade dos próprios europeus: os índios somente aceitariam aqueles produtos

que lhes interessassem.

Quando a Coroa Ibérica determinou, em 1637, que fossem dadas aos “índios do

Camarão” (de papel crucial na luta contra os invasores neerlandeses) mercadorias para

obrigá-los “a assistir na guerra”, estas se constituíram em “panno de linho, pentes, facas,

thesouras, espelhos e velerios, e outras, cousas semelhantes (...)”. 172 Quando o Conde

de Óbidos, governador do Brasil entre 1663 e 1667, mandou aparelhar uma entrada ao

sertão de Jacobina, na Bahia, não teve dúvidas em ordenar que fosse entregue o

sortimento tradicional de “seis milheiros de anzoes, e seis duzias de facas de resgate

(isto é, facas de baixa qualidade) para os Indios amigos”. 173

170
Vainfas, 1995: 147.
171
“Confissão de Domingos Fernãdes, Nobre de alcunha tomacauna mestiço cristão-velho no tempo da
graça do Recôncavo no último dia dela” (11/02/1592), in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 245.
172
“Registo de uma carta de Sua Magestade escripta a Mathias de Albuquerque sobre os Indios e
Camarão” (22/07/1637), DH, XVI: 466.
173
“Portaria para se darem anzoes e facas para o resgate do Sertão” (19/09/1664), DH, VII: 193.
286

É claro que, em muitas oportunidades, as condições práticas da vida na colônia

levavam à elisão deste tipo de norma. Mesmo um representante direto da Coroa

portuguesa poderia armar os índios, na medida em que esta providência se afigurasse

como uma necessidade para a defesa do sistema colonial, seja contra as outras potências

européias, seja contra os índios “bárbaros” que atacassem povoações e fazendas. Foi o

que ocorreu, por exemplo, com o visconde de Barbacena (Afonso Furtado de Castro do

Rio Mendonça, governador-geral e vice-rei do Brasil entre 1671 e 1675), quando este se

viu às voltas com os ataques de “topins” contra os estabelecimentos coloniais baianos.

Em 1671, o governador-geral mandou aprestar uma tropa – composta de paulistas e

índios “mansos” – para fazer o combate a estes índios do sertão, ordenando que se desse

“assim à gente branca como aos índios, ferramentas, Machados, foices, Armas de fogo,

Pólvora e balas”. 174 De todo modo, esta era sempre uma medida tomada com extrema

relutância e má-vontade pelos administradores coloniais.

Os ibéricos não eram os únicos a limitar o tipo de bens que poderiam ser

fornecidos aos índios. Em seu livro de 1615, o capuchinho francês Yves d’Evreux

instruía “aos que vão pela primeira vez às Índias” a levarem uma série de utensílios e

mercadorias, sem as quais a viagem e a vida no Brasil seriam muito difíceis, quiçá

impossíveis. Ao fazer sua lista, o missionário deixava bem evidente que os bens

deveriam ser divididos “por duas formas, uma para si e outra para os selvagens”. Sendo

quem era (um missionário dos mais dedicados), a divisão de Evreux denota sua visão

acerca do que seria apropriado ceder aos índios, tendo em vista sua evangelização e

“civilização”.

174
Juan Lopes Sierra, Vida ou Panegírico Fúnebre. Ao Senhor Afonso Furtado de Castro do Rio
Mendonça (...), 1676, in Schwartz e Pécora, 2002: 101. Sobre esta expedição cf. Puntoni, 2002: 110-6.
287

Entre as provisões que os franceses deveriam levar, para si próprios, na viagem,

estavam a “aguardente forte” e o “melhor vinho de Canária, em bons frascos de estanho,

bem arrolhados e acondicionados numa frasqueira fechada a chave, e esta tão bem

guardada como o seu coração, para servir nas necessidades e moléstias que podem

aparecer”. 175 Neste trecho, transparece com muita clareza o tipo de olhar que era

lançado às bebidas antes que se desenvolvesse a ideologia do “álcool como problema e

patologia”: 176 as bebidas eram vistas como gêneros de primeira necessidade, e mesmo

como um remédio para uma série de males. 177

Destas qualidades nutricionais e médicas das bebidas européias, contudo, os

índios não deveriam participar. Ao explicitar as mercadorias que poderiam ser entregues

aos nativos, Evreux deixou de fora as bebidas (no que não foi acompanhado por seus

compatriotas leigos, como veremos mais tarde), construindo um rol de produtos em

tudo semelhante às listas portuguesas e luso-espanholas:

As mercadorias pelas quais dos índios obtereis em troca víveres e outros gêneros do
país, e escravos para servir-vos e cultivar vossas roças, são as seguintes: facas de cabo
de pau, de que usam os magarefes, e muito apetecidas pelos selvagens, muitas tesouras
de bolsa de couro, muitos pentes, contas de vidro verde-gaio, a que chamam miçangas,
foices, machados, podões, chapéus de pouco valor, fraques, camisolas, calções de
adelos, espadas velhas, e arcabuzes de pouco preço. Dão muito apreço a tudo isto, e
assim tereis escravos e bons gêneros. Não esqueçais também panos verdes-gaios e
vermelhos de pouco valor, porque não fazem grande diferença dos estofos, rosetas,
assobios, campainhas, anéis de cobre dourado, anzóis, alicates de latão chatos, com um
pé de comprimento e meio de largura, tudo isto por eles muito apreciado. 178

É de se notar a presença, entre os bens reservados ao comércio com os índios,

das “espadas velhas, e arcabuzes de pouco preço”, terminantemente proibidos pela

175
Evreux, 2002 (1615): 239.
176
Cf. pp. 11-23.
177
Goubert, 2001.
178
Evreux, 2002 (1615): 240.
288

legislação portuguesa. Para os europeus que invadiam terras formalmente lusas, era

fundamental armar seus aliados nativos, mesmo que apenas com o rebotalho de suas

próprias tropas. Os holandeses, aliás, nos oferecem muitos exemplos desta prática,

principalmente quando se tratava de atrair a boa vontade dos chefes, e sempre

procurando construir, entre os igualitários nativos, hierarquias sociais que facilitassem

seus contatos e seus acordos.

Quando Mathias Beck realizou sua expedição em busca das minas do Ceará, em

1649, recebeu, por escrito, uma lista preparada pelo principal Potiguar Amunijú-

pitanga, em que este arrolava os bens que desejava, a fim de auxiliar os holandeses em

sua busca: “sendo a mesma lista escrita em língua brasílica e traduzida para o holandês

pelo ministro Kempis; constava dos seguintes objetos: para cada principal um bom

vestido com todo o ornato necessário da cabeça aos pés, um mosquete, uma espada e

um tambor grande”, sem esquecer, é claro, os tradicionais “machados e facões” para os

índios “comuns”. 179

Os documentos holandeses, por sinal, são pródigos em referências a acordos

com os nativos em torno da quantidade e qualidade dos presentes e mercadorias de

trato. Ao contrário da documentação portuguesa, na qual tudo aparece como uma

“concessão” – necessária, por certo, mas rigidamente controlada pelos agentes da

colonização – européia, nos documentos holandeses fica claro que os índios possuíam

grande margem de manobra para determinar o rol de mercadorias que lhes

interessavam. Em suas relações com o inconstante Janduí, os holandeses eram

179
Mathias Beck, “Diario da minha viagem ao Siara emprehendida, ao serviço da Patria e da Companhia
das Índias Occidentaes, de accordo com a comissão e as instrucções dos Nobres e Poderosos Senhores,
communicando-lhes todo o occorrido e relisado na mesma viagem”, 1649, in Ribeiro e Moreira Neto,
1992: 363.
289

obrigados a agir com extremo cuidado, sempre procurando saber o que agradava ou não

ao poderoso chefe “tapuia”.

No momento em que os neerlandeses se preparavam para conquistar a Paraíba,

era importante angariar o apoio de Janduí. Para isso, os comandantes batavos entraram

em contato com o “rei Tararyon” para “combinarmos o que lhe devemos dar, cada vez

que elle vier até nós com o seu povo para combater os Portuguezes, pois não gostamos

de saber que elle e o seu povo não partiram satisfeitos do Rio Grande (...)”. O controle

de Janduí sobre os “seus” índios era bastante relativo: os holandeses diziam que não

poderiam entregar muitas mercadorias naquele momento, por não disporem de índios

“que quizessem ir pelo sertão, onde ha tão pouca agua”, e porque não ousavam confiar

os presentes “á sua gente, sabendo que abriram e violaram uns pacotes que lhe

mandamos da outra vez”.

Não se poderia, apesar destes senões, deixar de entregar presentes a Janduí, e

estes se constituíram em “um vestido hungaro carmezim e outro côr de laranja, alguns

fardos de vestuarios menores, duas duzias de camisas, tres alabardas pequenas douradas,

tres facões prateados, uma duzia de machados, 200 navalhas e grande quantidade de

contas de coral e muitas bugigangas”. Neste trecho, de Johannes de Laet (1644), ficam

evidentes as diferenças entre as atitudes dos diferentes colonizadores: enquanto são

raríssimas as menções portuguesas à entrega de vinho aos índios – limitando-se, em

geral, a iniciativas particulares 180 - os holandeses não deixavam de usar as bebidas

como um meio de contato com os índios: “a cada Tapuya que tinha vindo ao Rio

Grande, deram uma camisa, algumas navalhas e uma bôa quantidade de vinho para dous

dias de viagem”. 181

180
Cf. p. 281.
181
Laet, 1919-20 (1644): 87.
290

É o momento de voltarmos a analisar as possibilidades de que o vinho de uvas se

tornasse um meio privilegiado de contato com os nativos brasileiros. Em virtude das

grandes variações que seu abastecimento sofria na América Portuguesa, o vinho não

poderia exercer o papel que seria ocupado, a partir do século XVII, pela cachaça. Muito

embora se fabricasse vinho no Brasil, especialmente em São Paulo, 182 sua quantidade

jamais foi suficiente sequer para suprir a demanda dos colonos, quanto mais para servir

de “arma da colonização”, à maneira de John Hemming.

Estes vinhos de São Paulo eram produzidos desde meados do século XVI. 183

Entre os produtores estava Brás Cubas, que afirmou (em 1567) ter, em sua fazenda no

planalto de Piratininga, “um logar e aldeia de índios que chamão Pequeri” e “que na dita

fazenda a muitos anos tem vinhas e q. ha vinho, com q. se dizem missas nesta

Capitania, quando não há vinho do Reino”. 184 O fundador de Santos aponta, neste

trecho, a possibilidade de que seus vinhos estivessem reservados, preferencialmente, ao

serviço religioso - que não poderia ser suspenso em virtude das limitações do

abastecimento do Brasil do século XVI - preferindo-se o vinho reinol para o consumo,

quando este estava disponível.

Não resta dúvida que os colonos preferiam o vinho português, dada a baixa

qualidade do vinho produzido no úmido planalto de Piratininga. 185 As uvas davam bem:

“nunca vi em Portugal tantas uvas juntas, como vi nestas vinhas”, 186 disse o jesuíta

Fernão Cardim, que também apontou a grande variedade de cepas cultivadas em São

182
Anchieta, 1988: 432.
183
Ou talvez antes: o pesquisador Inglez de Souza acredita que Brás Cubas já produzia vinho em sua
sesmaria de Jeribativa, recebida em 1536 (cf. Santos, 1998: 18).
184
Apud Santos, 1998: 18.
185
Santos, 1998: 18-9.
186
Cardim, 1978 (1625): 214.
291

Paulo: “ferraes, boaes, bastarda, verdelho, galego, e outras muitas”. 187 O excesso de

umidade, contudo, não permitia que os frutos alcançassem o grau de sacarificação

necessário, o que causava problemas insuperáveis de conservação: “já começão de fazer

vinhos, ainda que têm trabalho em o conservar, porque em madeira fura-lha a broca

logo, e talhas de barro, não nas têm; porem buscão seus remedios, e vão continuando, e

cedo haverá muitos vinhos”. 188

Entre os “remedios” estava o uso da fervura: “(...) os moradores da vila de S.

Paulo têm já muitas vinhas; e há homens nela que colhem já duas pipas de vinho por

ano, e por causa das plantas é muito verde, e para se não avinagrar lhe dão uma fervura

no fogo (...)”, 189 expediente que nos permite duvidar da veracidade do veredicto do

próprio Gabriel Soares de Souza, quando este afirma que se faz “em algumas partes (...)

vinho muito bom”, 190 opinião devida, possivelmente, ao caráter de propaganda da obra

do senhor de engenho da Bahia, homem rico o suficiente 191 para dispor dos melhores

vinhos da Madeira.

Um autor mais crítico, como o cristão-novo Ambrósio Fernandes Brandão, traça

um quadro menos colorido, nos Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). Depois de

elogiar bastante as parreiras do Brasil, que davam “muitas uvas ferrais e outras brancas

maravilhosas, com levarem duas e ainda três vezes fruto no ano”, o quase sempre

otimista alter ego do autor, Brandônio, tem que responder à questão de Alviano, sempre

crítico quanto às qualidades da América Portuguesa: “pois, se as uvas se dão com tanta

facilidade e em tão breve tempo, como se não usa delas para vinho?”.

187
Cardim, 1978 (1625): 67.
188
Cardim, 1978 (1625): 68.
189
Souza, 2000 (1587): 77.
190
Souza, 2000 (1587): 2.
191
Ronaldo Vainfas, “Gabriel Soares de Souza”, in Vainfas, 2000: 260-1.
292

“Não se usa delas para vinho...”. Através da pergunta de Alviano, Brandão

revela que o ensaio português de aclimatação de uvas e de produção vinícola em São

Paulo já havia se encerrado, pelo menos enquanto empreendimento comercial relevante.

Brandônio ainda chega a afirmar que “neste Brasil se poderia colher mais vinho que em

Portugal”, indicando a Serra da Copaoba “distante das Capitanias de Pernambuco e da

Paraíba cousa de 15 até 18 léguas” e “terra fresca, fria e sem nenhuma formiga”, como

excelente lugar para a sua produção.

Ainda assim, Brandônio é obrigado a admitir que o vinho não era fabricado no

Brasil por conta da incúria e desinteresse dos habitantes, situação que somente se

alteraria “quando a curiosidade excitar aos que cá vivemos, os quais nos não sabemos

aproveitar do que temos entre as mãos”.192 Um século depois, o missionário jesuíta João

Daniel, escrevendo da Amazônia, repetia a mesma reclamação quanto à falta de

iniciativa dos colonos: “é lástima a preguiça daquelas terras! pois sendo tão férteis nos

víveres, e nas uvas, não haja curiosidade de as cultivar, e fazer vinhos!”. 193

Exageraram na crítica, os dois últimos autores. Produzir vinho na Amazônia,

convenhamos, teria sido um verdadeiro tour de force, tão extraordinária quanto inútil.

As regiões mais propícias à vinicultura no Brasil somente seriam aproveitadas, para este

fim, a partir dos séculos XIX (Rio Grande do Sul) e XX (Vale do São Francisco).

Durante o período que nos interessa, a América Portuguesa se viu forçada a depender do

vinho do Reino, muito caro, extremamente tributado, e sujeito às vicissitudes do

comércio marítimo, à propensão do vinho reinol a se estragar na longa viagem para o

Brasil, e à incapacidade portuguesa de satisfazer à demanda brasílica pela bebida,

192
Brandão, 1997 (1618): 160-2.
193
Daniel, 1976 (II) 253.
293

especialmente após o tratado de 1703, com a Inglaterra, que lhe garantiu um enorme e

ávido mercado consumidor. 194

O vinho produzido no Brasil não representou um papel significativo na vida

cotidiana da colônia, e pouca relevância teve nos contatos entre os colonizadores e os

índios. O vinho europeu, por caro e relativamente raro, somente serviu para fazer

esporádicos mimos a um ou outro chefe nativo. A história etílica do contato interétnico

no Brasil, em seus primeiros tempos, não seria feita para introduzir o vinho entre os

“bárbaros”, enquanto item de comércio, como se fez na África, mas seria voltada ao

combate contra as onipresentes bebidas nativas, guerra que se dirigia aos próprios

fundamentos culturais das sociedades indígenas.

194
Johnson, 1999: 242-52; Phillips, 2003: 247-50.
CAPÍTULO VII

A GUERRA DO CAUIM:

A DESTRUIÇÃO DE UM REGIME ETÍLICO

1. O Brasil e o Pecado da Embriaguez.

Brandônio: Eu não disse absolutamente que no Brasil não


havia doenças, porque isso seria querer encontrar a
verdade, mas o que quis dizer é que as doenças que há nele
são tão leves e fáceis de curar que quase se não podem
reputar por tais. E senão vede quanto gentio habita por toda
esta costa, o qual com viver tão brutalmente, fazendo tanto
excesso no comer e beber em suas borracheiras, que só uma
noite das muitas que gastam nelas era bastante para matar
a mil homens, contudo a ele não faz dano, e vivem sãos e
bem dispostos. 1

Como vimos no capítulo anterior, os portugueses tiveram grandes dificuldades em

tornar o vinho de uvas, sua bebida nacional, um alicerce relevante para as suas relações

com os índios no Brasil. Este é um fato que deve nos deixar de sobreaviso contra as

tentações, sempre presentes, de considerarmos o contato interétnico durante o período

colonial como um processo comandado unicamente pelo lado europeu da equação. Isto é

tanto mais verdadeiro quando abordamos este contato através do estudo das bebidas

1
Brandão, 1997 (1618): 21.
295

alcoólicas e da prática da embriaguez, técnicas e práticas em que a maioria dos povos

indígenas possuía tradições extremamente ricas e complexas.

Antes de qualquer coisa, é preciso atentar para as circunstâncias específicas de cada

situação de contato, na medida em que cada uma delas representa uma experiência cultural

inteiramente original, que não pode ser subsumida com facilidade em processos mais

amplos. Os diferentes processos de colonização que se abateram sobre os povos indígenas

representam situações de contato etílico únicas. Em cada momento, e local, uma

determinada combinação de povos europeus e nativos se construía, criando regimes etílicos

que, por vezes, eram provisórios e instáveis, e que tiveram, por conseguinte, impactos

diferenciados nos destinos de cada sociedade indígena em particular.

No caso do território que se tornaria o Brasil, não se pode falar, por certo, na

constituição de uma única situação de contato etílico. Afinal, de acordo com cada região,

diferentes colonizadores europeus, carregando consigo seus distintos regimes etílicos,

entraram em contato com sociedades indígenas que manipulavam o savoir-faire do álcool e

da embriaguez de maneiras as mais variadas, como vimos nos capítulos II e III. Não

obstante, é evidente que uma situação de contato específica logo se impõe à análise, pelo

menos inicialmente, e sem excluir a comparação com outras situações. Refiro-me,

naturalmente, ao contato ocorrido entre os portugueses e os Tupinambá, conjunto de povos

nativos, do tronco lingüístico Tupi, que habitavam grande parte do litoral brasileiro e que

foram os primeiros a sofrer o impacto da expansão européia.

Nesta situação de contato se encontraram duas tradições etílicas muito diferentes e,

o que é mais importante, duas visões muito diversas acerca da embriaguez. Os portugueses

tinham nas bebidas alcoólicas um item básico de sua dieta diária, dentro daquilo que era

corriqueiro no regime etílico mediterrânico. Os nativos, por seu turno, também utilizavam
296

versões pouco alcoolizadas de suas bebidas (do tipo masato), como parte de sua dieta

básica, mas as semelhanças terminam aí. Os índios raramente, ou nunca, consumiam suas

bebidas juntamente com as refeições (“não comem quando bebem” é um lugar comum nas

descrições dos hábitos alimentares dos nativos), o que era algo percebido com extrema

estranheza pelos europeus.

O que mais diferenciava os dois regimes etílicos, contudo, era a existência, para os

índios, de uma cerimônia dedicada à obtenção da embriaguez, a cauinagem, realizada em

eventos como o sacrifício canibal, os rituais de passagem dos jovens à idade adulta, em

casamentos e funerais, entre outros. Nestas versões nativas das Trinkfest ou dos sumbel, os

participantes bebiam o máximo possível, buscando deliberadamente a ebriedade, uma

ebriedade social e culturalmente delimitada, é verdade, mas afastando-se, desta forma, do

ideal de moderação alcoólica que era a marca de uma milenar visão mediterrânica acerca do

ato de beber, e aproximando-os do tipo de regime etílico que caracterizava os povos do

norte da Europa (guardadas as muitas diferenças). Esta semelhança aparente de hábitos

etílicos foi percebida com sagacidade por Jean de Léry, no século XVI: “(...) seja-me

permitido à guisa de prefácio, embora não aprove o vício, dizer que nem alemães, nem

flamengos, nem soldados, nem suíços, todos enfim que se dedicam à bebedeira em França,

nada sabem do oficio em comparação com os nossos americanos aos quais tem que ceder a

primazia”. 2

Ao iniciar-se a experiência histórica de exploração colonial da América por parte

dos europeus, repetia-se nestas plagas um conflito etílico semelhante – novamente

guardando as devidas diferenças - àquele que havia oposto os mundos romano e bárbaro

durante a antiguidade tardia, ou àquele que havia, durante a Idade Média e princípios da

2
Léry, 1960 (1578): 118.
297

Idade Moderna, colocado em campos opostos uma elite que incorporava novos padrões de

consumo e de etiqueta (os quais envolviam a moderação no beber) e uma massa que agia de

forma “grosseira”, exibindo, por exemplo, padrões desbragados de consumo alcoólico.

Contudo, ainda mais importante do que esta diferenciação de identidade étnica ou

social, construída em torno dos regimes etílicos, estava a noção de que o beber em demasia

configurava uma falha de natureza religiosa, um pecado. O beberrão contumaz não

realizava apenas um ato contrário à boa ordem civilizacional, mas cometia uma falha grave

enquanto membro da comunidade cristã. Não era uma visão que condenasse, em si mesmo,

o ato de beber, que fique bem claro. Condenar a bebida de forma radical seria um absurdo

para uma “civilização do vinho”, que dependia do presente de Baco até mesmo para

substituir a água, sempre perigosa e pouco confiável, e que tinha na produção e no

comércio do fermentado de uvas uma de suas atividades mais essenciais e lucrativas.

Não havia – notadamente nas regiões européias em que se cultivava a uva e se

fabricava o vinho - qualquer incompatibilidade entre o consumo da bebida e a adoração à

divindade, como demonstrado pelas representações medievais do Cristo como um

trabalhador das vinhas e dos lagares, e pela identificação do vinho ao seu sangue, dogma da

religião cristã desde seus primórdios, conforme revelado nesta representação bávara de

c.1500, em que o Cristo crucificado pisa os racimos, sua cruz é uma prensa e seu sangue é

bebido pelos anjos.


298

O Cristo, como trabalhador da uva, verte o vinho sagrado. 3

O que se buscava evitar era a perda do autocontrole individual, indispensável à boa

consciência cristã. Durante a Idade Média – e principalmente após a revolução teológica

promovida por São Francisco de Assis – desenvolveu-se a idéia de que a salvação não se

alcança pela simples participação nos atos religiosos, mas deve ser atingida através de um

esforço pessoal de autotransformação. Como afirma Sonia de Mancera, “os atos morais

3
Detalhe, in Johnson, 1999: 89
299

começam a ‘interiorizar-se’ na Europa a partir do século XIII, inclinando a balança para um

espaço privado que a cada dia tem menos implicações comunitárias”. 4

Na busca desta introspecção, uma das principais armas era a temperança. No século

XIII, Santo Tomás de Aquino desenvolveu a idéia da temperança como uma forma

privilegiada de alcançar o “termo médio” dos comportamentos, evitando-se os extremos do

excesso. Os hábitos alimentares, sexuais e etílicos eram as principais arenas na luta pela

temperança: “os prazeres da mesa ou do sexo pertencem à virtude da temperança (...) a

moderação da comida é a abstinência; da bebida é a sobriedade e a do prazer produzido

pelo coito, é a castidade”. 5

Munidos desta definição da virtude da temperança, os europeus, notadamente

aqueles ligados à esfera eclesiástica e à empresa missioneira, defrontaram-se com

sociedades e culturas que tinham noções completamente diferentes de categorias como

“indivíduo” e “excesso”, e que valorizavam sobremaneira as bebedeiras comunitárias e a

capacidade de se embriagar como um signo de honradez e de respeito pelo anfitrião:

“gostam tanto de vinho, a ponto de ser considerada a embriaguez por eles, e até mesmo

pelas mulheres, como uma grande honra”. 6

Quase como se tivessem lido Santo Tomás de Aquino, mas com o sinal trocado, os

índios se excediam alegremente no beber e no copular (já que no comer eram bastante

moderados, segundo alguns relatos 7 ), fazendo dos próprios corpos estandartes de uma

relação com a natureza que se caracterizava por uma liberdade, por uma ausência de

4
Mancera, 1991: 73.
5
Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, apud Mancera, 1991: 86.
6
Evreux, 2002 (1615): 124; cf. p. 27.
7
“Isto (o amor aos vinhos) é tanto mais estranho quanto os índios são ao contrário extremamente sóbrios no
comer. É verdade que não tem horas certas para comer, como nós, e não se incomodam com fazê-lo a
qualquer momento, de dia ou de noite; mas não comem sem ter fome e assim mesmo com muita sobriedade”
(Abbeville, 1975 [1614]: 239).
300

“polícia” que era absolutamente inaceitável para o olhar dos missionários europeus. 8 Era

necessário reduzir os índios, isto é, conduzi-los ao “bom governo” de seus próprios corpos,

no sentido cristão (exposto por Santo Tomás), mas também conduzi-los a um

aprimoramento civil dos costumes, o qual dependia, entre outras coisas, do abandono do

“beber supérfluo” e da idéia de “honra” associada às proezas etílicas. 9

Este esforço, e esta esperança, em civilizar os índios foi bem explicitado pelo

capuchinho Yves d’Evreux, quando afirmou, no início do século XVII, que os Tupinambá

seriam “mais fáceis de serem civilizados do que os aldeões de França (os quais) estão de tal

sorte enraizados em sua rusticidade, que em qualquer conversação (...) sempre mostram

sinais de camponeses”. Para o capuchinho – exercitando o raciocínio da tabula rasa - seria

fácil ensinar aos Tupinambá, que “nunca tiveram idéia alguma de civilização” a “tirar o

chapéu”, a “beijar as mãos”, a “assentar-se à mesa, estender a tolha diante de si, a lavar as

mãos, a pegar na carne com três dedos, a cortá-la no prato e a beber em comum (...) todos

os atos de civilidade e delicadeza, que se costuma a praticar entre nós (...)”. 10

O fato, porém, é que na luta contra “lo que más los tiene ciegos”, isto é, “el mucho

vino que beven”, 11 jesuítas e outros missionários encontraram um dos maiores, senão o

maior, obstáculo à sua ação, como apontou, em 1557, José de Anchieta: “(…) êste costume

de beber, ou por melhor dizer, natureza, mui dificultosamente se lhes ha de extirpar, o qual

permanecendo, nem se poderá plantar a fé de Cristo”.12 Três décadas depois, o missionário

canarino ainda apontava as dificuldades advindas da grande adesão dos Tupinambá ao seu

8
Baêta Neves, 1978: 54-5.
9
Pompa, 2003: 70.
10
Evreux, 2002 (1615): 116.
11
Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Roma (Bahia, 27/12/1554) in Leite, 1954 (II): 132-3; cf. p.
46.
12
“Quadrimestre de setembro até o fim de dezembro de 1556, de Piratininga, abril de 1557”, in Anchieta,
1988: 110.
301

regime etílico, ao afirmar que entre “seus costumes inveterados” estavam os “vinhos em

que são muito continuos e em tirar-lhos ha ordinariamente mais dificuldade que em todo o

mais”.

Coerente com seu background mediterrânico, Anchieta não via sentido em retirar

totalmente os “vinhos” – isto é, as cervejas insalivadas e os vinhos de frutas – dos índios,

por serem “como seu mantimento, e assim não lhos tiram os Padres de todo”, localizando o

pecado no “excesso que neles ha, porque assim moderado quasi nunca se embebedam nem

fazem outros desatinos”. 13

“Quase nunca se embebedam”... Nas próprias palavras do inaciano é possível

perceber que o problema trazido aos religiosos pelo regime etílico dos nativos não estava na

constância com que se embriagavam, 14 mas antes no sentido com que fruíam esta

embriaguez. Como mostraram antropólogos como Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo

Viveiros de Castro, 15 todo o sistema cultural dos Tupinambá girava em torno da guerra e da

vingança contra os inimigos, em um interminável ciclo de vendetas que constituía uma

temporalidade, a qual era sempre atualizada nas festas e rituais regados ao cauim. “Assim

que os vinhos são os memoriais e crónicas de suas façanhas”, 16 disse o jesuíta Jácome

Monteiro, e era justamente esta “memória”, isto é, esta cultura, que deveria ser destruída

através da luta contra as cauinagens.

Em vista do lugar central ocupado pelas bebidas fermentadas na vida cotidiana e

cerimonial dos Tupinambá, não é de surpreender que a tarefa que se deparava aos

missionários fosse hercúlea, sendo necessário dizer que, para a sua consecução, a ajuda

13
“Informação do Brasil e de suas Capitanias – 1584”, in Anchieta, 1988: 341.
14
“(...) não se excedem no comer e no beber”, disse André Thevet (1978 [1556]: 152).
15
Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985; Viveiros de Castro, 2002a.
16
Monteiro, 1949 (1610): 410; cf. p. 47.
302

obtida junto à parcela laica da população foi mínima. As imensas dificuldades na obtenção

do vinho de uvas – europeu ou fabricado no Brasil – levaram a que os colonos, se não

aderissem às cauinagens, pelo menos incluíssem, em alguma medida, as bebidas nativas em

sua dieta básica, para o quê também concorria a dificuldade na obtenção de água potável

nos nascentes centros urbanos brasileiros, como apontou Frei Vicente do Salvador, nos

anos 1620. 17

O Brandônio dos Diálogos das Grandezas do Brasil, escrito quase na mesma época,

não deixou de apontar a ausência de pejo dos colonos em se aproveitar dos “vinhos”

nativos:

Não pára aqui, porque outras muitas cousas tenho ainda que vos mostrar neles, das quais a
primeira quero que seja quantidade grande de vinhos que se acham pelos seus matos, posto
que não do nosso de Portugal, que se faz de uvas (...) mas de outros, que se acham em
grande quantidade (...) vinho de mel de abelhas misturado com água, de muito gosto e assaz
proveitoso para a saúde de quem o costuma beber. Outro vinho, que se faz de uma fruta
chamada caju, de que abundam os campos, do qual se aproveita muita gente branca (...). 18

Alguns anos antes, em 1587, o senhor de engenho Gabriel Soares de Souza também

havia se referido à facilidade com que os portugueses e os mamelucos se aproveitavam da

fartura alcoólica permitida pela proficiência indígena: “este milho come o gentio assado por

fruto, e fazem seus vinhos com ele cozido, com o qual se embebedam, e os portugueses que

comunicam com o gentio, e os mestiços não desprezam dele, e bebem-no muito

valentemente”. 19

17
“Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque, atendo-se uns aos
outros, nenhum as faz, ainda que bebam água suja e se molhem ao passar dos rios ou se orvalhem pelos
caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há de cá ficar, senão do que hão de levar para o reino”:
Salvador, 1975 (1627): 59.
18
Brandão, 1997 (1618): 147.
19
Souza, 2000 (1587): 143; portugueses e mestiços também bebiam o vinho de ananás com muito gosto: cf. p.
68.
303

Para desânimo de homens como José de Anchieta, muitos portugueses e seus

descendentes pareciam ter feito mais do que simplesmente aderir às bebidas da terra,

passando também a gostar da forma “excessiva” com a qual os índios se dedicavam aos

prazeres etílicos e alimentares:

É terra desleixada e remissa e algo melancolica e por esta causa os escravos e os Indios
trabalham pouco e os Portugueses quasi nada e tudo se leva em festas, convivios e cantares,
etc., e uns e outros são mui dados a vinhos e facilmente se tomam dele e os Portugueses não
o têm por afronta e deshonra e os convivios que se dão nesta terra, além de serem muitos e
ordinarios, são de grande custo e neles se fazem muitos excessos de comeres exquisitos,
etc. 20

Fazendo justiça aos portugueses, deve-se notar que outros colonizadores também se

dispuseram a experimentar os cauins e as chichas, e mesmo a introduzir estas bebidas em

seu repertório etílico. Segundo Francisco Vásquez, cronista da expedição de Pedro de

Ursua e Lope de Aguirre à busca do Eldorado (1560-1), 21 os espanhóis e seus

acompanhantes negros e índios aproveitaram bem as bebidas (“um tipo de vinho (...) tão

forte que embriaga”) de um grupo indígena do Alto Amazonas: “tinham os índios nesse

povoado grandes adegas (‘bodegas’) dele, e os espanhóis, negros e índios do acampamento

o tomaram em poucos dias. É todo saboroso e da cor do vinho tinto claro (‘vino

aloque’)”. 22

Ainda com relação aos espanhóis, é importante apontar que estes – assim como os

portugueses no Brasil - também não tinham um acesso fácil ao vinho europeu, e nem

conseguiam produzi-lo em quantidade e qualidade suficientes, o que os impelia a beber e

mesmo produzir bebidas à moda indígena, como se depreende das lamúrias de um jesuíta

20
“Informação da Provincia do Brasil para nosso Padre” (1585), in Anchieta, 1988: 433.
21
Cf. pp. 82-3 desta tese.
22
“Relação verdadeira de tudo o que sucedeu na Jornada de Omagua e Dorado que o Governador Pedro de
Orsua foi descubrir… Por um Rio que chamam das Amazonas…” (1909), in Porro, 1992: 91.
304

anônimo acerca dos espanhóis que habitavam a região do Guairá (no atual estado do

Paraná): “(...) en muchos años no oyen palabra de dios y assi son sus costumbres poco

menos que de idolatras, olgazanes, deshonestos, borrachos, porque aunque el vino que

cojen es moderado, pero haçenle de mais, de miel, de cañas y de avejas y de otras cosas

segun la costumbre de los indios”. 23

Até mesmo os franceses das Franças Antártica e Equatorial acabaram por superar

suas resistências e experimentar (e até mesmo gostar) das bebidas da terra. Para isso,

contudo, se viram obrigados a abandonar a ojeriza - sempre presente em todos os textos dos

cronistas franceses - à insalivação, com a qual as índias fermentavam as matérias-primas

dos cauins de milho e mandioca. André Thevet, por exemplo, afirmou que “não podia ver

fabricarem essa bebida sem enjôo; mas afinal, cansado de beber água, e doente,

experimentei-a a instâncias de amigos; e achei-a boa”. 24 Yves d’Evreux, por seu turno,

asseverava que a cerveja dos índios da França Equinocial, “feita com milho bom” era

“muito mais saborosa e saudável, por causa do contínuo calor, do que o vinho e a

aguardente”. 25

Claude d’Abbeville, no Maranhão de princípios do século XVII, mostrou menos

coragem, e só bebeu um cauim com a garantia (muito duvidosa, deve-se acrescentar) de que

este não havia sido preparado pelas índias:

Bem sei que muita gente há de se espantar com o processo da cauinagem; muitos dirão sem
dúvida que os índios são pouco asseados e que, quanto a êles, prefeririam morrer de sêde a
experimentar essa bebida mastigada pelas mulheres indígenas. Confesso que assim pensei
durante algum tempo. Mas certa vez, em Juniparã, um francês de nossa companhia trouxe

23
“Relación en que se da cuenta de las ciudades de la governaçion del Paraguay y de sus indios y del estado q
tienem por el mês de desiembre de 1620 años en respuesta de lo q a cerca desto pregunto su magestad”, in
Cortesão, 1951: 173.
24
Apud Léry, 1960 (1578): 122.
25
Evreux, 2002 (1615): 164.
305

um pouco dessa bebida ao sr. de Rasilly e a mim, asseverando-nos não ser a mesma, mas
sim outra que êle próprio fizera. Bebeu o sr. de Rasilly e garantiu-me que era excelente;
provei-a e achei-a ótima, saborosa, com um gôsto picante nada desagradável. Creio que
coada seria ainda melhor. 26

Caberia a Jean de Léry, no seu “breviário de etnólogo” - conforme a definição de

sua obra por Frank Lestringant 27 - a defesa mais pungente da maneira indígena de fazer

bebidas. Comparando a insalivação das índias com as pisas das uvas dos europeus, Léry

conclui pela superioridade higiênica da técnica nativa:

Às pessoas que, em vista do que disse acima acerca da mastigação das raízes e do milho no
preparo da bebida, enjoem e engulhem, lembro o modo pelo qual entre nós se fabrica o
vinho. Pois se tivermos em vista que nos lugares onde crescem os bons vinhedos os
vinhateiros, no tempo da vindima, metem-se dentro das tinas e das cubas e com os lindos
pés, às vezes calçados de sapatões, machucam as uvas e ainda as enxovalham na lagariça,
veremos que nesse mister se passam muitas coisas talvez menos aprazíveis do que a
mastigação das mulheres americanas. Pode-se dizer que o vinho ao azedar e fermentar lança
fora de si toda a impureza; em verdade o cauim também se purga... 28

Ora, se muitos europeus gostavam dos cauins, mais ainda apreciavam-nos os seus

descendentes com as mulheres nativas, os mamelucos, 29 indivíduos marcados pelo

hibridismo cultural e pela inadequação às regras de comportamento que os missionários

gostariam de ver impostas na Terra de Santa Cruz: “trata-se de uma casta de Índios

misturados (hibridi) com Lusitanos, que as pessoas de nossa terra chamam Mamelucos (...)

eles se insinuam junto ao povo e persuadem-no a não acreditar no Padre”. 30

26
Abbeville, 1975 (1614): 238.
27
Lestringant, 1997: 37.
28
Léry, 1960 (1578): 121-2; os Tupinambá levados à França fabricaram o cauim para Montaigne, que assim
descreveu a bebida: “(...) sua bebida extrai-se de certa raiz; tem a cor de nossos claretes e só a tomam morna.
Conserva-se apenas dois ou três dias, com um gosto algo picante, sem espuma. É digestiva e laxativa para os
que não estão acostumados e muito agradável para quem se habitua a ela”: Michel de Montaigne, “Dos
Canibais” (1572), in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 164.
29
Cf. Vainfas, 1995: 141-51, e Vainfas, “Mamelucos”, in Vainfas, 2000: 365-7.
30
Annua Littera provinciae brasiliae, 1581: 106, in Pompa, 2003: 205.
306

Sempre dispostos a disputar com os padres a gestão das relações entre os índios e o

mundo europeu, eram “homens culturalmente ambíguos: meio índios, meio brancos. Um

pouco tupi, outro tanto cristãos, quer em busca de sua identidade ameríndia, quer em defesa

do colonialismo que os havia gerado”. 31 Eram homens como Domingos Fernandes

Tomacaúna, que costumava ir ao sertão, “fazer descer gentios para o povoado”, e que

acabava por permanecer entre os índios, recebendo deles “sete mulheres gentias que lhe

deram os gentios e as teve ao modo gentílico”, bebendo “seus vinhos” e fazendo “seus

bailes e tangeres e cantares tudo como gentio”. 32

Esta integração cultural entre etnias tão diferentes, realizada através das cauinagens,

não se dava sem conflitos e incompreensões mútuas, nem sem traduções equivocadas dos

sentidos que cada lado conferia ao ato de beber e de se inebriar. Para os nativos, como

vimos anteriormente, 33 os cauins eram exo-bebidas que lançavam pontes à exterioridade

social e cimentavam laços políticos com indivíduos de fora da esfera da

consubstancialidade.

As festas de consumo do cauim, portanto, eram extremamente valorizadas enquanto

espaço de interação com os europeus, não sendo de estranhar que muitos dos primeiros

contatos entre índios e europeus – incluindo os padres - tenham se dado sob o signo dos

“vinhos”. Os franceses no Maranhão, por exemplo, eram comumente recebidos nas aldeias

com “aplausos, choros, lágrimas e danças de dia e de noite”, sendo servidos com “vinhos

em abundância”, além de “porcos-do-mato e outras caças” e “raparigas das mais bonitas”. 34

31
Vainfas, 1995: 145.
32
“Confissão de Domingos Fernãdes, Nobre de alcunha tomacauna mestiço cristão-velho no tempo da graça
do Recôncavo no último dia dela” (11/02/1592), in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 245.
33
Cf. pp. 117-8.
34
Evreux, 2002 (1615): 91.
307

Mesmo os rigorosos Manuel da Nóbrega e José de Anchieta viram-se agraciados

com este tipo de recepção, ao pousar em uma aldeia de índios aliados, no caminho de sua

viagem à aldeia inimiga de Iperoig (1565), na baía de Guanabara. Chegando à localidade

amiga, perceberam que o chefe já lhes havia preparado “uma casita pequena, em meio dela,

para dizer missa”, sendo recebido por ele e pelas mulheres da aldeia “como se

ressuscitáramos áquela hora”. O chefe foi então a uma aldeia vizinha “convidar aos outros

que viessem beber á sua, onde lhes tinha grandes vinhos, e andando bebendo e bailando

com grande festa, lhes disse que não queria que ninguém nos fizesse mal, nem falasse

alguma palavra áspera”. 35

Sabedores deste papel central dos cauins nas relações dos Tupinambá com seus

“outros”, os próprios jesuítas podiam – dentro de limites bastante estreitos – driblar suas

restrições às bebidas e promover seu consumo como forma de aprimorar os laços com os

índios. Foi o que ocorreu, por exemplo, durante a viagem do visitador Cristóvão de

Gouveia (1583-5) aos aldeamentos inacianos, viagem descrita por Fernão Cardim.

Diferentemente da prática jesuítica das primeiras décadas – bem mais repressiva quanto aos

costumes etílicos indígenas, como se verá adiante – os padres da Companhia demonstravam

nesta época uma maior abertura para a cultura nativa, antes por reconhecimento de que

seria impossível reprimir totalmente os “maus hábitos” do que por qualquer tipo de

relativismo cultural avant la lettre, embora seja de justiça lembrar que muito do que

sabemos a respeito de todo este processo de contato se deve a um legítimo esforço de

compreensão do outro exercitado pelos jesuítas, mesmo que seus motivos tenham sido

instrumentais.

35
Ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente, janeiro de 1565, in Anchieta, 1988: 223.
308

Chegando ao aldeamento baiano do Espírito Santo, o visitador foi recebido

calorosamente pelos índios, retribuindo a recepção com uma “festa corporal”, e um jantar a

todos os da aldeia:

Os homens comiam a uma parte, as mulheres a outra: no jantar se gastou uma vacca, alguns
porcos mansos e do mato, com outras caças, muitos legumes, fructas, e vinhos feitos de
várias fructas, a seu modo. Emquanto comiam, lhes tangiam tambores, e gaitas. A festa para
elles foi grande, pelo que determinaram á tarde alegrar o padre, jogando as laranjadas,
fazendo motins e suíças de guerra a seu modo (...). Andam tão inflamados em braveza, e
mostram tanta ferocidade, que é cousa medonha e espantosa (...). Não se lhes entende o que
cantam, mas disseram-me os padres que cantavam em trova quantas façanhas e mortes
tinham feito seus antepassados (...) e tudo isto fazem para se embravecer (...). 36

Esta violência ritual poderia, eventualmente, transformar-se em violência efetiva

com alguma facilidade. Para os colonos leigos, as cauinagens eram vistas com uma

tolerância diretamente proporcional à sua capacidade de controlá-las, mantendo a violência

resultante dentro dos limites das aldeias, ou utilizando esta violência para a consecução de

seus próprios objetivos. No interior das fazendas em que se utilizava o trabalho indígena,

era comum que se permitisse a realização de suas festas e suas cauinagens, até mesmo para

aliviar as tensões resultantes do fardo de seu trabalho, as quais poderiam provocar fugas ou

revolta. Ambrósio Fernandes Brandão, por meio de seus célebres Diálogos, deu testemunho

inequívoco acerca disto no limiar do século XVII pernambucano:

Alviano: Os dias passados, indo visitar um amigo meu à sua fazenda, me não deixaram
dormir toda uma noite uns índios que andavam nas suas borracheiras, na qual formavam uns
cantos, qual eu nunca outros semelhantes vi.
Brandônio: Esse é o seu costume mais ordinário (...) e, juntos em roda todo um dia e noite
inteira, sem dormirem, bebendo sempre de ordinário muito vinho, até caírem todos por terra
sem acordo, e às vezes saem também dali alguns não pouco escalavrados. 37

36
Cardim, 1978 (1625): 184-5.
37
Brandão, 1997 (1618): 233
309

No contexto da luta pela conquista do território e pela sujeição ou desbaratamento

da resistência nativa, não foram poucos os casos em que os portugueses utilizaram as

cauinagens para fomentar rivalidades entre os grupos indígenas. É claro que, por vezes - e

especialmente nos princípios da ocupação portuguesa, quando os lusos ainda estavam em

processo de “aprendizado da colonização” – a interferência nos rituais etílicos dos índios

poderia trazer conseqüências não desejáveis e perigosas, como mostram alguns fatos

ocorridos durante a conquista de Pernambuco.

O vianês Afonso Gonçalves, um dos primeiros povoadores de Pernambuco, trouxe

de Portugal para a vila de Igaraçu vários de seus parentes e conterrâneos, que passaram a

produzir mantimentos e cana-de-açúcar, em meio a relações aparentemente amistosas com

os nativos: “(...) e em tudo os ajudavam os gentios que estavam de paz, e entravam e saíam

da vila, com seus resgates ou sem eles, cada vez que queriam”. 38 Tais relações, não

obstante, podiam revelar-se bastante instáveis:

Mas, embebedando-se uma vez, uns poucos se começaram a ferir e matar, de modo que foi
necessário mandar o capitão alguns brancos com seus escravos que os apartassem, ainda que
contra o parecer dos nossos línguas e intérpretes, que lhe disseram os deixasse brigar e
quebrar as cabeças uns aos outros, porque, se lhe acudiam, como sempre se receiam dos
brancos, haviam cuidar que os iam prender e cativar, e se haviam de pôr em resistência. E
assim foi, que logo se fizeram em um corpo e com a mesma fúria que uns traziam contra os
outros se tornaram todos ao nossos, sem bastar vir depois o mesmo capitão com mais gente
para os acabar de aquietar. 39

Apesar destes riscos, os conflitos originados das bebedeiras também podiam ser

manipulados em função dos interesses dos conquistadores. Jerônimo de Albuquerque,

governando Pernambuco na ausência de Duarte Coelho – que havia viajado para Portugal

38
Salvador, 1975 (1627): 115.
39
Salvador, 1975 (1627): 115-6.
310

em 1553 - utilizou-se do amor às cauinagens para fazer com que os próprios habitantes

originais da Nova Lusitânia, os índios Caeté, acusassem alguns dentre eles por terem

matado e comido uns portugueses e seus escravos.

Aconselhado por Vasco Fernandes de Lucena, homem de enorme prestígio entre os

nativos, Albuquerque “(...) mandou fazer vinhos e, eles feitos, mandou chamar os principais

das aldeias dos gentios e, tanto que vieram, os mandou agasalhar pelos línguas ou

intérpretes, que o fizeram ao seu modo, bebendo com eles, porque não suspeitassem ter o

vinho peçonha e o bebessem de boa vontade”. 40 Estando os índios já embriagados, Lucena

discursou de forma habilidosa, convidando-os a fazer guerra contra seus inimigos

tradicionais, os Tabajara, deixando claro, porém, que deveriam nomear os responsáveis

pelas mortes de portugueses e escravos índios, já que os culpados poderiam atacar suas

casas e famílias enquanto estivessem na guerra:

E, como eles (deve ser pela virtude do vinho, que entre outras tem também esta) nunca
falam a verdade senão quando estão bêbados, começaram a nomear os culpados, e sobre isto
vieram às pancadas e frechadas, ferindo-se uns aos outros, até que acudiu o governador
Jerônimo de Albuquerque e os prendeu e, depois de averiguar quais foram os homicidas dos
brancos, uns mandou pôr em bocas de bombardas e dispará-las à vista dos mais, para que os
vissem voar feitos pedaços, e outros entregou aos acusadores que os mataram em terreiro e
os comeram em confirmação da sua inimizade (...). 41

Durante o processo de conquista da Bahia os portugueses também fizeram uso das

cauinagens, e de ritos guerreiros como a quebra de crânios dos inimigos, como forma de

acirrar as desavenças entre os diferentes grupos de Tupinambá, evitando, desta forma, que

os índios se unissem contra os próprios colonizadores:

40
Salvador, 1975 (1627): 120.
41
Salvador, 1975 (1627): 121.
311

E em tempo que os portugueses tinham já povoado este rio de Jaguaribe, houve na sua
povoação grande ajuntamento de aldeias dos índios ali vizinhos, para quebrarem caveiras
em terreiros, com grandes festas, para os quebradores de cabeças tomarem novos nomes, as
quais caveiras foram desenterrar a uma aldeia despovoada para vingança de morte dos pais
ou parentes dos quebradores delas, para o que as enfeitavam com penas de pássaros ao seu
modo; nas quais festas houve grandes bebedices, o que ordenaram os portugueses ali
moradores para se escandalizarem os parentes dos defuntos, e se quererem de novo mal;
porque se temiam que se viessem a confederar uns com os outros para lhe virem fazer
guerra, o que foi bastante para o não fazerem, e se assegurassem com isto os portugueses
que viviam neste rio. 42

Não era apenas em busca do controle e no uso da violência que os colonizadores se

imiscuíam nas práticas etílicas nativas. Já abordamos anteriormente o papel das bebidas

fermentadas nos métodos de trabalho da sociedade Tupinambá, especialmente no que diz

respeito à reunião dos homens para a participação nos mutirões. 43 Os colonos souberam se

aproveitar destas práticas tradicionais e utilizaram ativamente as cauinagens como meio de

obter acesso, de forma consensual e não-violenta, à capacidade de trabalho dos índios: “(...)

a troco de vinho fazem quanto querem (...) e deste modo usão os brancos prudentes, e que

sabem a arte e a maneira dos Indios, e quanto fazem por vinho, por onde lhes mandão fazer

vinhos, e os chamão ás suas roças e canaveaes, e com isto lhes pagão”. 44

Apesar da informação de Yves d’Evreux acerca de proibições das cauinagens por

parte dos portugueses (“por minha vontade, os franceses deviam fazer o que fizeram os

portugueses, isto é, proibir todas estas cauinagens [...]” 45 ), a documentação é muda quanto

a isso, pelo menos no que se refere às autoridades seculares. Talvez o capuchinho estivesse

se referindo aos aldeamentos dos jesuítas. É bem verdade que, em 1583, o conselho

municipal de São Paulo proibiu que os brancos visitassem as aldeias “para beber e dançar

42
Souza, 2000 (1587): 261.
43
Cf. pp. 116-7.
44
Cardim, 1978 (1625): 109.
45
Evreux, 2002 (1615): 276.
312

segundo seu costume”, mas o que se buscava era mais impedir que alguns brancos

obtivessem, através destas táticas de aproximação, um acesso privilegiado à mão-de-obra

indígena, à custa de outros menos abertos a um contato tão íntimo com os nativos. 46

Algumas outras determinações exaradas pela administração colonial são ambíguas:

em 1735 o governador-geral José da Serra ordenou ao Capitão-mor da Capitania de Sergipe

que prendesse alguns índios da aldeia de “(...) tuba”, 47 que haviam faltado com o “respeito

e a obediência” ao missionário capuchinho Anselmo de Adorno, por conta de “algumas

desordens originadas das bebidas e folguedos em que se ocupam”, afirmando o governador

que somente o “castigo os fará reprimir para viverem como católicos, e vassalos de Sua

Magestade”. 48 O mais provável, porém, é que esta ordem se refira à aguardente, já que,

alguns dias depois, Serra ordena ao mesmo Capitão-mor que também castigue os vizinhos

das aldeias, por “perturbar e arruinar o sossêgo da missão com bebidas (a cachaça,

certamente) e fogos pelas suas lavouras”. 49

As proibições explícitas somente se dariam no contexto da entrada da cachaça nas

aldeias, mas deve-se notar que a Coroa e as autoridades coloniais buscaram, de todas as

maneiras, proibir a cachaça aos próprios colonos, e não apenas aos índios. Se os cauins e,

especialmente, as cauinagens desapareceram, isto se deveu, fundamentalmente, à ação dos

missionários, e não do Estado, muito embora este tenha tido, em alguns momentos, um

papel de apoio àqueles. Do choque de culturas e etnias que deu origem à sociedade

brasileira emergiu um regime etílico que se construiu, em sua parcela mais importante, em

torno de uma bebida destilada, e não das velhas bebidas fermentadas nativas, ao contrário

46
Dean, 1996: 87.
47
Japaratuba ou Pacatuba; o documento está ilegível neste trecho.
48
“Portaria para o Capitão-mor da Capitania de Seregipe de El-Rei” (07/03/1735). DH, LXXVI: 73.
49
“Portaria para o Capitão-mor da Capitania de Seregipe de El-Rei” (28/03/1735). DH, LXXVI: 85.
313

do que ocorreu em outras áreas de colonização européia – como o Peru e o México - onde

bebidas como a chicha e o pulque mantiveram um lugar importante nas culturas e

sociedades resultantes do contato.

Em termos de regimes etílicos, a colonização no Brasil e a posterior expansão da

sociedade nacional parecem ter tido o condão de dissolver modelos e usos tradicionais com

grande facilidade, e nisto se enquadram, claramente, ás técnicas de fermentação com base

na insalivação. Como afirmou Câmara Cascudo: “os ‘vinhos’ indígenas fermentados, na

base do sumo de frutas ou raízes, desapareceram do uso normal da sociedade que se

ampliava”; 50 persistindo apenas na Amazônia, onde a insalivação “resistiu entre a

população mestiça do interior até finais do século XIX”. 51

Restarão vestígios tênues destas técnicas nativas, como é o caso da catimpuera (ou

catambruera), que o Novo Aurélio define como “espécie de bebida fermentada, feita com

aipim cozido e amassado, de mistura com água e mel de abelha”, mas que não é citada no

Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, nem nas obras de Oswaldo

Gonçalves de Lima, e que Nunes Pereira associa, na Amazônia, ao beiju-açú, matéria-

prima dos caxiris e paiaurus, não estando relacionada, portanto, a cervejas insalivadas

como o cauim. 52

No século XVIII encontraremos referências à catimpuera (enquanto sinônimo de

cauim) no poema Caramuru, de frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), o qual se refere

às festas feitas pelos “selvagens” ao náufrago Diogo Álvares nestes termos:

Mimosas carnes mandam, doces frutas


O araçá, o caju, coco, e mangaba;
Do bom maracujá lhe enchem as grutas

50
Câmara Cascudo, 1967: 115.
51
Câmara Cascudo, 1967: 104.
52
Cf. p. 83.
314

Sobre rimas, e rimas de guaiaba:


Vasilhas põem de vinho nunca enxutas,
E a imunda catimpuera, que da baba
Fazer costuma a bárbara patrulha,
Que só de ouvi-lo o estômago se embrulha. 53

Em seu clássico sobre a cultura mameluca, Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque

de Holanda mostra que as técnicas de insalivação ainda eram praticadas em Minas Gerais,

durante o setecentos. Referindo-se à catimpuera, Holanda diz que seu fabrico era

“competência de mulheres, que mascavam o milho de canjica, lançando-o depois no caldo

da mesma canjica: já no dia seguinte tinha seu azedo e estava perfeita”, e que a massa “para

ser mais saborosa, deveria ser mascada por alguma velha, e quanto mais velha melhor”.

Holanda cita um informante anônimo, que diz que isto se fazia “por lhe aproveitar a baba, e

assim dela gostam os de bom estômago, que os nojentos a levam a socar ao pilão, e

aquentam-na com água”. 54

Esta questão das velhas é mais complexa do que pensou Sérgio Buarque, e parece

de um conteúdo claramente simbólico, já que nem sempre eram elas as únicas a fazerem

estes últimos cauins. Em sua expedição científica ao interior do Ceará (1859-1861), o

botânico Freire Alemão observou a fabricação do cauim de mandioca pelos caboclos,

“descendentes dos Pitiguares de Filipe Camarão”, que ainda praticavam os “restos destas

usanças, fragmentos dispersos”, em meio a um “embrutecimento maior, a que uma

administração cega quer dar o nome de civilização”, e bebendo a “cerveja tapuia”.

O processo de fabricação era exatamente aquele que “o ignóbil ignorante vulgo

tacha de asqueroso e nojento e que os descendentes dos adeptos, e dos alquimistas admiram

e aplaudem”, ou seja, a insalivação: “sentam-se à roda dos coches as mulheres (...) cada

mulher tira do fundo do coche pequena porção de massa, e mastiga-a bem, não para

53
Santa Rita Durão, Caramuru: Poema Épico do Descobrimento da Bahia (1781), canto XXXII.
54
Holanda, 1994 (1956): 184.
315

subdividi-la, mas para misturá-la com saliva o mais que possível; depois bota-a na mão e a

desfaz inteiramente no caldo do coche (...)”. Segundo Freire Alemão (1797-1874), eram as

jovens a fazerem o trabalho:

Dizem por êsse mundo que só as velhas é que têm êsse privilégio; podemos asseverar que
isso é pura calúnia; pois a primeira condição para ter assento em roda do coche são bons
dentes, a segunda boca limpa; o sarro do cachimbo é prejudicial ao fabrico do cauim. Já se
vê por essas exigências que as tais matronas remoçam consideràvelmente. 55

Simbólica ou real, esta preferência pelas velhas representa uma inversão curiosa e

reveladora: a bebida que deveria, idealmente, 56 ser mascada por meninas virgens, passa a

ser fabricada, séculos após os primeiros contatos, preferencialmente por velhas, “e quanto

mais velhas, melhor”. Esta inversão de preferências parece mostrar que a fabricação dos

cauins - estrutura nutricional, etílica e simbólica básica da vida dos Tupinambá e de outros

povos indígenas – deixou de ser algo vivo e quotidiano e passou a ser, dentro da sociedade

brasileira, um “conhecimento tradicional” exercido pelas pessoas mais velhas e em vias de

desaparecimento, e vista mais como um remédio (“passava por medicinal e própria para

cortar as febres” 57 ) do que como um alimento ou uma substância essencial, voltada à

alteração da consciência. Neste processo de substituição cultural, uma corrente de mudança

exerceu um papel fundamental: o proselitismo religioso dos missionários - jesuítas e de

outras ordens religiosas – contra as cauinagens e a embriaguez cerimonial dos índios, como

veremos na próxima seção.

55
Francisco Freire de Alemão Cisneiros, “Papéis da Expedição ao Ceará”, in Damasceno e Cunha, 1961: 347-
50.
56
Idealmente, mas não exclusivamente: “(...) as velhas mastigam as raízes picadas de aipimacaxera, depois a
cospem na panela e a denominam suco de caraçu. Em seguida deitam-lhe água e aquecem em fogo lento (...)
depois separam o licor que denominam cauicaracu.”: Marcgrave, 1942 (1648): 273.
57
Holanda, 1994 (1956): 184.
316

2. Os Jesuítas e a Luta Contra as Cauinagens.

É esta gente tanto mais fácil em aceitar a fé do verdadeiro


Deus, quanto menos empenhada está com os falsos; porque
nenhum conhece, ou ama, que possa roubar-lhe a afeição.
Seus ídolos são os ritos avessos de sua gentilidade, multidão
de mulheres, vinhos, ódios, agouros, feitiçarias, e gula de
carne humana; vencidos estes, nenhuma repugnância lhes
fica para as coisas da fé (...). 58

Ao tocar em terra brasileira, em 29 de março de 1549, depois de dois meses de

viagem, o jesuíta Manuel da Nóbrega estava otimista. Ao que tudo indicava, seu único

problema seria tratar com os povoadores portugueses, cerca de cinqüenta pessoas, que

viviam, em sua maioria, em “hum grande peccado”, que era “terem os homens quasi todos

suas negras por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por molheres, segundo ho

custume da terra, que hé terem muitas molheres”. 59 Quanto aos “negros”, isto é, os índios,

apesar de serem “gente ton inculta e que tan poco lo conosce” e se regerem “por inclinación

58
Vasconcelos, 1977 (1663), v. II: 15.
59
Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, Lisboa (Bahia, 09/08/1549) in Leite, 1954 (I): 119.
317

(...) e por apetite sensual”, 60 possuíam uma enorme, e decisiva, qualidade: era “gente que

nenhum conhecimento tem de Deus, nem idolos” e que “fazem tudo quanto lhe dizem”. 61

Não encontrando, entre os índios no Brasil, os templos, sacerdotes e ídolos com os

quais deveriam se defrontar e, gloriosamente, derrotar,62 os inacianos sentiram-se livres

para tratar os índios como o genus angelicum das profecias milenaristas que os inspiraram,

um povo virgem sobre o qual seria possível refundar o mundo cristão. De todo modo, era

necessário imputar-lhes algum tipo de “crença”, de “falsa religião” com a qual se pudesse

estabelecer um diálogo epistemológico com base na dicotomia verdadeiro/falso, o que foi

feito ao se conceder o estatuto de “sacerdotes” do demônio aos caraíbas - os pajés nômades

dos Tupinambá - e a seus rituais o epíteto de santidades, a falsa religião que deveria ser

derrotada pelo Deus da verdade e por seus soldados. 63

Seria ocioso retomar, nesta tese, a discussão acerca do tema da luta dos jesuítas

contra a “religião” ou “falta de religião” dos Tupinambá, tema admiravelmente trabalhado

por autores como Eduardo Viveiros de Castro, Ronaldo Vainfas e Cristina Pompa. O que

interessará a mim será perceber como os cauins e as cauinagens se enquadram no contexto

da luta dos jesuítas (e de outros missionários que, de forma deliberada ou não, tomaram os

inacianos como modelo para o seu próprio proselitismo) contra os “maus costumes” dos

índios.

Faltando a religião, deveriam os soldados de Cristo lutar contra as “gentilidades” – a

poligamia, o canibalismo, a nudez, as bebedeiras... – trazendo os bárbaros à civilização.

Somente após a transformação daqueles seres – vistos, alternativamente, como “infantis”

60
Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martín de Azpilcueta Navarro, Coimbra (Salvador [Bahia],
10/08/1549) in Leite, 1954 (I): 136.
61
Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, Lisboa (Bahia, 10/04/1549) in Leite, 1954 (I): 111.
62
Vainfas, 1995: 28-9.
63
Pompa, 2003: 35-56.
318

ou “bestiais” – em homens, em seres “policiados” e “reduzidos” (pelo controle de corpos e

mentes) à condição de súditos, sujeitos a um padre, a um rei, a um Deus. Não perceberam

(ou não puderam perceber), os jesuítas, que os tais “maus costumes” e “gentilidades” eram

“sua verdadeira religião, e que sua inconstância era o resultado da adesão profunda a um

conjunto de crenças de pleno direito religioso”. 64

Era a religião da guerra, mas não como belicosidade, e sim como devir histórico: os

Tupinambá matavam os inimigos (e eram mortos por eles) para manter em funcionamento

um ciclo infindo de vinganças, ciclo que constituía sua própria memória. Memória que era

permanentemente atualizada nos discursos e nas perorações dos “senhores da fala”, dos

grandes guerreiros a cantarem seus feitos, e de seus antepassados, pelas madrugadas das

aldeias, durante os rituais do sacrifício canibal e, notadamente, durante as cauinagens, “a

suma festa deste gentio”, como disse Jácome Monteiro, na qual somente se ouvia “a prática

da guerra, como mataram, como entraram na cerca dos inimigos, como lhe quebraram as

cabeças. Assim que os vinhos são os memoriais e crónicas de suas façanhas”. 65

“Os memoriais e crónicas de suas façanhas...” Se a religião dos Tupinambá era a sua

crônica de vinganças, de inimigos devorados e de crânios estraçalhados, as cauinagens

eram o seu templo, e se os índios não tinham templos de pedra a serem destruídos, tinham

os “vinhos” a serem extirpados, por cumprirem estes a mesma função que, entre os pagãos

idólatras, cumpriam aqueles. Como aponta Eduardo Viveiros de Castro, “os Tupinambá

bebiam para não esquecer, e aí residia o problema das cauinagens, grandemente aborrecidas

64
Viveiros de Castro, 2002a: 192.
65
Monteiro, 1949 (1610): 410.
319

pelos missionários, que percebiam sua perigosa relação com tudo aquilo que queriam

abolir”. 66

Não se deve deixar de apontar a extraordinária capacidade dos jesuítas de se

adaptarem às condições locais e de criarem formas de luta apropriadas a pagãos que não

possuíam, ou que aparentavam não possuir, religiões organizadas às quais os inacianos

pudessem se contrapor. A mais importante destas adaptações foi, sem dúvida, a criação dos

aldeamentos, instituição que estava em contradição direta com o espírito da “catequese

itinerante”, que constituía a norma da ação jesuítica na Europa, mas que parecia ser a única

forma de arrancar os nativos do ambiente (as aldeias) propício aos “maus costumes” e,

principalmente, retirá-los do convívio com os colonos leigos, somente interessados em

escravizá-los, em se amancebar com suas mulheres e - na contramão de uma suposta

“aculturação” - participar e aceitar seus costumes, entre eles as cauinagens, como ocorria

com os mamelucos, e mesmo com os reinóis. 67

Deve ser notado, por outro lado, que os jesuítas traziam da Europa toda uma

informação relativa à luta de outras ordens religiosas contra a embriaguez e os regimes

etílicos dos nativos americanos, e as implicações e conexões destes regimes para as

religiões e sistemas de pensamento dos índios, com os quais os missionários cristãos

tinham que lidar. O exemplo da Nova Espanha (México) rapidamente se apresenta, e isto

por vários motivos, não sendo o menor o fato de que alguns dos inacianos que vieram para

o Brasil, como José de Anchieta ou Azpilcueta Navarro, eram espanhóis e foram formados

como religiosos na Espanha.

66
Viveiros de Castro, 2002a: 248.
67
Pompa, 2003: 68-9.
320

Para além das origens individuais, portugueses e espanhóis possuíam regimes

etílicos praticamente idênticos, compartilhando, portanto, visões semelhantes a respeito do

ato de beber, e daquilo que deveria ser feito para extirpar os maus atos etílicos dos nativos,

na busca de transformá-los em verdadeiros cristãos e homens “civilizados”. E o mais

importante: em ambos os casos coloniais, uma impressão inicial de otimismo quanto à

evangelização daqueles povos transformou-se em uma visão pessimista, de uma América

atolada no pecado e na presença do Diabo, modificação de perspectiva para a qual

concorreu decididamente a dificuldade em extirpar a prática do “beber supérfluo”. 68

Os missionários que exerceram seu ministério no México desenvolveram toda uma

reflexão acerca do pecado da embriaguez que, provavelmente, influenciou de alguma forma

a mentalidade dos jesuítas no Brasil, embora este seja um fato de difícil análise, até mesmo

por conta do caráter relativamente iliterato da colonização portuguesa, como bem disse

Sérgio Buarque de Holanda. 69 Ao chegarem os jesuítas ao Brasil, em 1549, já haviam sido

publicadas obras como as várias Doctrinas de Juan de Zumárraga (primeiro bispo do

México, inquisidor e grande “caçador” de bruxas), Alonso de Molina e Pedro de Córdova,

que propunham as linhas de atuação para a evangelização dos povos nativos do México, e

que davam especial atenção ao pecado da embriaguez. 70

A par destas prováveis influências, os jesuítas no Brasil estavam, certamente, em

contato com as reflexões acerca da embriaguez feitas pelo respeitado teólogo espanhol

Martín de Azpilcueta Navarro (1491-1586), correspondente de Manuel da Nóbrega - que

havia sido seu aluno em Coimbra e do qual havia recebido o grau de Bacharel em Cânones,

68
Sobre esta modificação no México cf. Mancera, 1991: 11; 239-56.
69
Holanda, 1979 (1936): 61-87.
70
Mancera, 1991: 154-60.
321

em 1541 71 - e que era tio de um de seus companheiros de viagem e de missão, o padre Juan

de Azpilcueta Navarro (1521?-1557). 72 O doutor Martín era autor de uma das melhores

definições acerca do pecado da embriaguez, definição que estava perfeitamente de acordo

com a prática ibérica de consumo quotidiano e moderado do vinho, enquanto parte das

refeições e da nutrição quotidiana. Para Navarro, só havia pecado se houvesse premeditação

na embriaguez, se o indivíduo bebia “conociendo que se había de embeodar, se hizo daño a

sí mismo o a otro, privándose del uso de la razón. Si bebió sin creer que se iba a embeodar,

no hay pecado mortal”. 73

É claro que havia uma distinção marcante entre as situações de contato no Brasil e

no México, mas é possível traçar alguns paralelos, e contrastes, entre os regimes etílicos

nativos das duas regiões. As grandes e complexas civilizações nativas da Mesoamérica

possuíam formas de relacionamento com a bebida e a embriaguez que refletiam diretamente

a profunda hierarquização e estratificação de seus sistemas sociais, e que, portanto, se

diferenciavam bastante de sociedades relativamente igualitárias como a dos Tupinambá.

De todo modo, e tal como ocorria entre os Tupinambá, é impossível exagerar a

importância do octli (ou pulque 74 ) na sociedade asteca, seja ao nível do quotidiano (a seiva

não fermentada do maguey – o huitztli - era uma bebida de uso comum, e que substituía a

71
Serafim Leite, em nota à Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martín de Azpilcueta Navarro, Coimbra
(Salvador [Bahia], 10/08/1549) in Leite, 1954 (I): 134.
72
Leite, 1954 (I): 38
73
Martín de Azpilcueta Navarro, apud Mancera, 1994: 53.
74
“Pulque” é um barbarismo criado pelos espanhóis, já que a palavra tem origem no náhuatl poliuhqui
(“corrompido”), que só era aplicado ao octli que já havia se estragado (octli poliuhqui) e não ao iztac-octli, o
“vinho branco”, bebida que havia sido corretamente fermentada e que possuía um sabor agradável. Sendo
obtida a partir da seiva do agave conhecido como maguey, e fermentada e “fortificada” com o uso da casca de
uma Acacia (ocpatli), o iztac-octli estragava rapidamente (entre vinte e quatro e trinta e seis horas), como
todos os fermentados deste tipo (cf. pp. 60-4 e 247-50). Desta forma, em pouco tempo o iztac-octli já estava
sendo chamado pelos índios de poliuhqui, levando os espanhóis a imaginarem que fosse este o nome da
bebida (Lima, 1986: 13-4; Mancera, 1991: 20).
322

água quando necessário 75 ), seja na vida social e econômica (boa parte dos tributos exigidos

pelos astecas aos povos dominados era paga com a bebida 76 ), seja na esfera religiosa,

enquanto bebida relacionada ao culto de Mayáhuel (humana divinizada como deusa da

fertilidade e da seiva não-fermentada), de Pahtécatl (também um herói cultural divinizado,

inventor e senhor da fermentação), e de inúmeros outros deuses, conhecidos como

centzontotochtin (quatrocentos coelhos), os quais representavam as inumeráveis formas

possíveis de se embriagar. 77 Entre estes deuses associados ao octli estava Tezcatlipoca

(“espelho fumegante”), deus da alegria enganosa e da insegurança, e de uma embriaguez

que parecia, aos astecas, algo contraditório em sua essência e ameaçador em seus efeitos. 78

De maneira geral, não era permitido aos homens comuns um contato livre, não

mediado pelas autoridades religiosas, com a esfera divina. Sendo o octli apanágio de uma

série de divindades, ingeri-lo significava obter acesso a um tipo de possessão enteogênica

que estava vedada aos homens comuns, os macehuales. Contudo, existiam numerosos

festivais e ritos religiosos em que estas proibições ficavam relaxadas, e nos quais todos

acabavam por encontrar oportunidades de escapar aos rígidos controles impostos pelas

normas sociais.

Entre os ritos em que se exigia o consumo da beberagem alcoólica estava o

sacrifício humano. Dedicados ao deus solar, e protetor dos guerreiros, Huitzilopochtli, tais

sacrifícios envolviam a morte de cativos de guerra que eram chamados de “filhos do sol” e

muito bem tratados. Vigiados e cuidados por um velho sacerdote, os prisioneiros recebiam

– para o combate mortal com seus vencedores - escudos e clavas orladas de penas, inúteis

75
Taylor, 1979: 30.
76
Taylor, 1979: 32.
77
Lima, 1986: 100-8; 1990: 157-8; Mancera, 1991: 23.
78
Mancera, 1991: 21-2.
323

contra as clavas guarnecidas de obsidiana, portadas por seus inimigos. Aos prisioneiros, e

aos sacerdotes envolvidos no sacrifício, era oferecido um octli especial, o teoctli, “pulque

de deus”, bebida sagrada à qual eram acrescentados ingredientes (alucinógenos?) que a

fortificavam, e com a qual os prisioneiros se preparavam para o momento em que seus

corações seriam arrancados pelos sacerdotes tlamacazque. 79

Durante as festas a Huitzilopochtli era permitido que algumas outras pessoas

também se embriagassem, como era o caso dos fabricantes do pulque ou dos “velhos

águias”, guerreiros anciãos. Dependendo do deus ao qual se dedicava uma festividade,

outras categorias sociais podiam se dedicar à embriaguez: desta forma, durante a festa da

deusa do sal, os comerciantes de sal podiam beber livremente. 80 Em festas como a de

Izcalli (“crescimento”) – realizada a cada quatro anos e dedicada ao deus do fogo

Ixcozauhqui – na qual se furavam as orelhas das crianças, todos bebiam o pulque de

maneira aberta e livre, embriagando-se à vontade e sem recriminações. 81 De forma geral,

aos velhos e doentes era permitido que se dedicassem à embriaguez, mesmo fora das muitas

ocasiões especiais. 82

Afora estas ocasiões, as sociedades do México central tendiam a reprimir e a ver

com maus olhos a embriaguez, possuindo várias instâncias formais e informais nas quais o

excesso no beber era punido, com maior ou menor severidade. O Códice Florentino -

conjunto de mitos recolhidos pelo missionário Bernardino de Sahagún, e no qual está

descrita a penosa migração que trouxe os “bárbaros” ancestrais dos astecas ao México

central, vindos do norte desértico - é pródigo em demonstrações de desagrado contra a

79
Lima, 1986: 49; Mancera, 1991: 25-6.
80
Mancera, 1991: 26-7.
81
Mancera, 1991: 29.
82
Taylor, 1979: 33.
324

embriaguez desmedida, como é o caso da história de Cuextécatl, verdadeiro “mito de

origem” de todo o mal que poderia ser provocado pela embriaguez, e que tem um

paralelismo muito interessante com o mito de Noé, já que Cuextécatl também se despe e

revela seus maxtlex (órgãos sexuais), assim como fez o patriarca bíblico:

Auh in itoca cuextécatl / in intlatocauh centlamantin tlaca


amo çan navi yn quic / in oconic navi
oc quimitlani occe / ic macuilli yn quic
ic vel yvintic vel xocomic / aocmo quima yn quenin nen
auh oncan teixpan quítlaz in imaxtli / yn vel ivintic… 83

Em um trecho deste códice os antigos mexicanos revelam com clareza sua visão

acerca da ebriedade, ao dizer que o octli:

(...) é raiz e princípio de todo o mal e de toda a perdição porque este octli e esta embriaguez
são causa de toda a discórdia e dissensão e de todas as revoltas e desassossegos dos povos e
reinos: é como um torvelinho que a tudo revolve e desbarata, é como uma tempestade
infernal que traz consigo todos os males juntos. 84

Percebe-se, portanto, que, apesar de todas as suas diferenças com os europeus, os

índios mexicanos possuíam sua própria ideologia antialcoólica, tão complexa, aliás, quanto

aquela formulada pelo cristianismo, o que os afastava bastante da visão Tupinambá acerca

do álcool. Apesar disso, tanto uns quanto outros, guardadas as diferenças, possuíam uma

forma de embriaguez ritual, de possessão enteogênica, que, no entender dos cristãos,

igualava seus regimes etílicos enquanto espaços para a ação do “demônio”, e enquanto

esferas da vida nativa que deveriam ser extirpadas pela ação missionária. Tanto espanhóis

quanto portugueses procuraram reprimir estas formas enteogênicas de embriaguez a partir

83
“E um homem de nome Cuextécatl / rei de um povo numeroso / que bebeu somente quatro (jarras) / depois
que já havia bebido quatro / exigiu uma mais / e bebeu a quinta (jarra) / por isso ficou totalmente ébrio,
totalmente bêbado / e não sabia como deveria se comportar / e ali, diante do povo se despiu / porque estava
completamente ébrio...”. Poema Mexica de origem do pulque e da embriaguez, in Lima, 1990: 148.
84
Apud Mancera, 1991: 27.
325

de um ponto de vista que vê na ebriedade um atentado à temperança, noção central no

cristianismo pós-tomista.

Durante o século XVI, desenvolveu-se na Europa católica uma visão do bêbado

como alguém que tem sua razão ofuscada pelos vapores da bebida, e que se põe a rir com

liberdade e sem controle, desrespeitando a autoridade que o observa, vigia e censura. Como

afirmou Sonia de Mancera: “o bêbado não diz o que se espera que diga, o que é previsível,

o que a autoridade quer ouvir, senão aquilo que desejou expressar à margem do que é aceito

e permitido. Não faz o que é correto, senão aquilo que deseja fazer. Neste sentido, o riso é a

perfeita e maravilhosa loucura da liberdade”. 85

Será de posse desta visão da embriaguez, como “loucura da liberdade”, liberdade

que deveria ser reprimida ao ponto da sujeição e da redução, que os religiosos irão se

relacionar com a “loucura” Tupinambá. Relação sempre perigosa: aos jesuítas, e a outros

missionários (como os capuchinhos franceses do Maranhão), as cauinagens pareciam uma

verdadeira “traça de infierno”, 86 um ritual demoníaco e relacionado ao canibalismo e à

imundície, que colocava em risco a própria vida dos missionários, que jamais se sentiam

seguros “entre gente que a nada sabe ter respeito nem obediencia, e que quasi sempre anda

quente de vinho, no qual gastavam os mais dos dias bebendo e cantando todo o dia e noite,

com grandes gritos, homens e mulheres misturados, de maneira que, nem em casa nem fóra

podiamos estar sem ouvir e ver suas borracharias”. 87

Esta falta de ordem, este afastamento da razão, da moderação e do “termo médio”,

que tanto aborrecia aos religiosos, é uma constante nas descrições das cerimônias etílicas

85
Mancera, 1994: 45.
86
Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Roma (Bahia, 27/12/1554) in Leite, 1954 (II): 132-3; cf. p.
46.
87
José de Anchieta, “Ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente, janeiro de 1565”, in Anchieta, 1988: 223.
326

dos índios no Brasil. Fernão Cardim, por exemplo, aponta a confusão reinante durante as

cauinagens voltadas ao sacrifício canibal, quase que mostrando um horror maior ao barulho

e ao comportamento dos índios quando bebiam do que ao próprio ato de comer o inimigo

aprisionado:

A este tempo estão os potes de vinho postos em carreira pelo meio de uma casa grande, e
como a casa não tem repartimentos, ainda que seja de 20 ou 30 braças de comprido, está
atulhada de gente, e tanto que começão a beber é um lavarinto ou inferno ve-los e ouvi-los,
porque os que bailão e cantão aturão com grandissimo fervor quantos dias e noites os vinhos
durão: porque, como esta é a propria festa das matanças, ha no beber dos vinhos muitas
particularidades que durão muito, e a cada passo ourinão, e assim aturão sempre, e de noite
cantão e bailão, bebem e fallão cantando em magotes por toda a casa, de guerras e sortes
que fizerão, e como cada um quer que lhe oução a sua historia, todos fallão a quem mais
alto, afora outros estrondos, sem nunca se calarem, nem por espaço de um quarto de hora. 88

Os capuchinhos franceses do Maranhão também se horrorizaram com a folie etílica

dos índios brasileiros, e descreveram suas cauinagens em cores vívidas, apontando em

especial o caráter orgíaco destas cerimônias. Foi este o caso de Yves d’Evreux, que dizia

ser

(...) horrível espetáculo ver essas gentes em reuniões, parecendo antes congresso noturno de
feiticeiros do que ajuntamento de homens. Achei-me apenas uma só vez nestas reuniões,
para deles poder falar, e nunca mais lá tornei. Via aqui uns deitados em suas redes
vomitando com muita força, outros(s) caminhando ou marchando em diversos sentidos com
o juízo perdido pelo vinho, ali outros gritando, fazendo mil trejeitos, estes dançando ao som
do maracá, aqueles bebendo com muito boa vontade, aqueloutros fumando para mais se
embriagarem, e o que é ainda pior é estarem mulheres e moças aí misturadas, parecendo
bem difícil a presença de Baco sem Vênus. 89

88
Cardim, 1978 (1625): 116.
89
Evreux, 2002 (1615): 275-6.
327

O companheiro de Evreux, Claude d’Abbeville, também se impressionou

fortemente, ao ver os sátiros e mênades da América executarem suas tropelias, ao sabor do

cauim e do tabaco e ao som dos maracás:

Nunca senti tamanho espanto como quando entrei numa dessas cabanas onde estava
havendo uma cauinagem; no primeiro plano se achavam êsses grandes vasilhames de barro
cercados de fogo e com a bebida fumegando; mais adiante, inúmeros selvagens, homens e
mulheres, alguns completamente nus, outros descabelados, outros ainda revestidos de penas
multicores, uns deitados expirando a fumaça do tabaco pela bôca e pelas narinas, outros
dançando, saltando, cantando e gritando. E todos tinham a cabeça enfeitada e a razão tão
perturbada pelo cauim que reviravam os olhos a ponto de parecer encontrar-me em presença
de símbolos ou figuras infernais. E se na verdade o Diabo se deleita na companhia de Baco e
busca por meio da dança perder as almas, há de por certo comprazer-se infinitamente nas
reuniões desse miserável povo, que sempre lhe pertenceu pela barbárie, pela crueldade e
embriaguez,e que somente encontra satisfação em dançar e cauinar quando se apresenta uma
oportunidade, durante dois a três dias seguidos, sem repouso nem para dormir, até que todos
os potes se esvaziem. 90

Parecemos ver, nesta descrição dos religiosos portugueses e franceses, o mesmo tipo

de recriminação que as elites gregas ou romanas faziam à embriaguez divina dos cultos

dionisíacos, e a mesma censura ao caráter libertário que a alegria provocada pela bebida e

pela festa trazia. 91 Já foi discutido, no decorrer desta tese, que é a cultura que, em última

instância, determina os efeitos que uma substância essencial provoca naqueles que a

consomem, e isto é tanto mais verdadeiro quando se trata de uma substância de fraca

capacidade de alteração da consciência, como era o caso dos cauins.

O que faziam os participantes das cauinagens, tal como faziam os das órguias

helênicas, ou das bacchanalia romanas, era atingir o enthūsiasmós, mas não “trazendo o

deus para dentro”, como aqueles, já que não havia qualquer Deus a trazer. No enthūsiasmós

90
Abbeville, 1975 (1614): 239.
91
Cf. pp. 158-62.
328

Tupinambá buscava-se o aligeiramento, a leveza do corpo (através, por exemplo, dos

vômitos, tão mal vistos pelos observadores, ou da extenuação provocada pelas danças

intermináveis) e, mais do que tudo, o escapar – ao menos por algumas horas – de uma

humanidade que era uma condição temporal, e não uma essência, ou uma natureza. 92

Os missionários perceberam muito bem que os índios, ao se embriagar de forma tão

aparentemente louca, deixavam de ser homens, e o fato de que pensassem que aqueles se

tornavam demônios (ou bestas), e não deuses (ao contrário do que pensavam os próprios

Tupinambá), em nada altera a perspicácia (em vista de seus próprios fins) de seu olhar. Para

inverter o sentido da transformação provocada pela embriaguez - de demônios para

homens, mas homens reduzidos e sujeitos - era necessário combater as cauinagens, aquele

“templo” virtual, líquido e espumante dos selvagens.

Na luta contra o pecado mortal da intemperança alcoólica, os vários missionários, e

mais ainda os jesuítas, tiveram que se haver com os problemas trazidos pelos colonos

leigos. Era fundamental separar os nativos da má influencia destes colonos, sem o quê a

missionação seria uma tarefa mais do que hercúlea, e sim impossível. Entre estes

problemas, não era o menor o fato de que os índios, de posse dos instrumentos de ferro

fornecidos pelos europeus, melhoraram substancialmente e eficiência de seu trabalho, e sua

capacidade de intervenção em seu ambiente.

Este aumento de eficiência permitiu que o jesuíta Pero Correia criticasse os hábitos

etílicos dos nativos com base em uma generalização de cunho universalizante, ao afirmar,

em 1553, que os índios “tienen las casas llenas de heramientas”, o que lhes permitia ter as

roças que quisessem, com resultados diretos na ocorrência das cauinagens e das guerras:

“aora (...) comen y beben de continuo, y ándanse siempre a beber binos por las aldeas,

92
Viveiros de Castro, 2002a: 205; 256.
329

ordenando gueras y hazie(n)do muchos males, lo que hazen todos los que son muy dados al

vino por todas las partes del mundo”. O inaciano propunha que se parasse de dar

instrumentos e ferramentas aos índios, para que dessem obediência a quem as tivesse, “y a

conocer señorio”, voltando aos tempos em que era “la hambre tanta entre ellos, que morían

de hambre e vendíam um sclavo por una cuña (...), y también vendían los hijos y hijas, y

ellos mismos se entregavan por sclavos”. 93

Seria nos aldeamentos - espaço que, ao menos idealmente, estava localizado além

do sæculum – que os jesuítas construiriam sua estratégia de luta contra as cauinagens. É

bem verdade que os aldeamentos não estavam alheios à lógica do sistema colonial,

mantendo-se permanentemente em uma posição ambígua quanto ao conflito entre jesuítas e

colonos. 94 Por um lado, a própria Companhia de Jesus, através de seus superiores em

Roma, nutria sérias dúvidas quanto à conveniência de que a administração temporal das

aldeias ficasse em mãos inacianas, e de que os missionários ficassem tão expostos aos

perigos do convívio íntimo com os índios (e especialmente com as índias), enquanto que os

jesuítas no Brasil tinham toda a certeza de que somente assim a missão no Brasil seria bem

sucedida. 95

Por outro lado, os aldeamentos representavam uma instituição crucial para a boa

ordem do sistema colonial, na medida em que cumpriam a função básica de “civilizar” os

índios, e torná-los obedientes vassalos da Coroa. 96 Além disso, os índios aldeados, e

sujeitos, representavam uma verdadeira “polícia” (no sentido moderno do termo) do

sistema, como afirmou um jesuíta anônimo: “(...) porque elas assombram aos inimigos

93
Carta do Ir. Pero Correia [ao P. Simão Rodrigues, Lisboa] (S. Vicente, 10/03/1553) in Leite, 1954 (I): 445-
6; sobre este tema ver Monteiro, 1994: 30-1.
94
Almeida, 2003: 103.
95
Pompa, 2003: 73.
96
Almeida, 2003: 101-19.
330

estrangeiros, fazem rosto aos aimorés, refocão (sic) aos negros da Guiné que se não

levantem, e aos salteadores dos caminhos e fugitivos tomam e prendem e os entregam aos

seus senhores (...)”. 97

De todo modo, o fato de que o poder interno aos aldeamentos estivesse adscrito aos

inacianos permitiu-lhes impor regras rígidas quanto ao uso das bebidas fermentadas nativas,

pelo menos no que diz respeito ao seu consumo na forma de cauinagens: afinal, o que se

queria impedir eram as cerimônias e os riscos associados a elas, e não o consumo moderado

de bebidas que “eram o seu sustento”. Não foi algo fácil, especialmente por conta da

resistência daqueles indivíduos mais comprometidos com as “gentilidades”, geralmente os

anciãos das aldeias, velhos guerreiros de corpos riscados (que já haviam matado e comido

muitos inimigos), e velhas “feiticeiras”, que já haviam mascado muita mandioca (ou milho)

e fabricado muito cauim para os “congressos noturnos”.

Estas velhas incomodaram muito aos jesuítas, e colocaram inúmeros obstáculos à

repressão às cauinagens, o que não deve surpreender, tendo em vista que toda a produção

dos cauins era uma atividade profundamente relacionada às mulheres. Além disso – e ao

contrário da visão androcêntrica da sociedade Tupinambá popularizada pelas obras de

Florestan Fernandes – estas velhas podiam ocupar importantes posições de poder dentro do

mundo indígena, 98 como revela esta carta do inaciano Antônio Blázquez, acerca de seu

trabalho nas aldeias do Recôncavo baiano:

Huma hora antes do sol, se toca outra vez a campainha pera que venhão as velhas e velhos
que em estremo são preguisosos, aos quais torna outra vez a ensinar a doutrina. A estas
trabalha o Irmão polas ter mais benevolas porque as Aldeas regem-se cá polas velhas
feiticeiras e com ellas se toma o conselho da guerra, e se ellas quisessem persuadir aos mais

97
Anônimo, Algumas advertências para a província do Brasil (1609?), apud Pompa, 2003: 74.
98
Fernandes, 2003: 32-4.
331

a que viessem à doutrina, sem duvida que se fizesse mais proveyto e ouvera mais numero de
indios, mas hé tudo polo contrario, que totalmente estrovão a que não ousão a doutrina e
siguão nossos custumes, e por isso se tem quaa por averiguado que trabalhar com ellas hé
quasi em vão (...). 99

Os tenazes padres não se intimidavam com estas resistências, colocando claramente

para os índios que não havia acordo possível entre a aceitação do cristianismo (ou o que

quer que esta “aceitação” significasse para os nativos) e determinadas práticas, como o

canibalismo, a nudez, a poliginia e, por certo, as bebedeiras. Um bom exemplo deste tipo de

imposição é dado pela chegada dos jesuítas à aldeia de Santo Antônio, em Arembepe, na

Bahia. Escrevendo aos padres e irmãos de Portugal, o padre Antônio Pires informava que

os índios daquela localidade há muito esperavam que os inacianos os visitassem, o que foi

feito quando o provincial Luis da Grã inspecionou as aldeias daquela região, em 1560.

Pires informa que os nativos receberam os padres da mesma forma “como

custumavão fazer em outro tempo a seus feiticeyros”, colocando “huma ramada com sua

rede para o Padre descansar e comer”. O principal da aldeia, um “senhor da fala” como

costumavam ser os chefes Tupinambá, discursava em sua honra, dizendo: “vinde, muyto

folgo com vossa vinda, alegro-me muyto com isto; os caminhos folgão, as hervas, os

ramos, os passaros, as velhas, as moças, os meninos, as agoas, tudo se alegra, tudo ama a

Deos”.

Muito enternecidos com tal recepção, mas muito práticos em seus objetivos, os

padres logo trataram de impor suas exigências para “deixar aly quem os doutrynasse”. Luis

da Grã informou aos principais “os pontos mais essentiais que avião de goardar”, e entre

eles estavam: “(...) que ninguem avya de ter mais [de huma molher], e outro que não avião

99
Quadrimestre de setembro de 1556 a janeiro de 1557 pelo Ir. Antonio Blázquez (?) (Bahia, 01/01/1557) in
Leite, 1954 (II): 352.
332

de beber até se embebedar [como cus]tumavão, e que não avião de consentir os feiticeyros,

e que avião todos de aprender, e que não avião de matar nem comer carne humana: isto foy

supérfluo porque já o eles agora não fazem”.

Embora surpresos em perceber os índios tão dispostos a abandonar “semelhantes

cousas”, fato que, anteriormente, consideravam “a mayor impossibilidade do mundo”, os

padres ficaram muito satisfeitos em ver que a aceitação das exigências ia ao ponto dos

nativos quererem “comprir toda a ley que lhe puserem”, inclusive levantando “tronquo para

castiguo dos roins”. Afoitos para ganhar o apreço dos jesuítas, alguns dos principais, no

papel de “meirinhos”, foram logo “à cidade (...) para terem cuydado de prenderem os

roins”. 100

Conceder a alguns dos índios mais importantes, e mais cooperativos, o papel de

meirinhos representou uma das estratégias mais úteis no sentido de atrair apoios entre os

principais nativos. Afinal, os índios eram bastante sensíveis à concessão de honrarias por

parte dos europeus, mesmo que estas fossem de valor irrisório. Em carta a El-Rei D.

Sebastião, datada de 31 de março de 1561, o governador-geral Mem de Sá informava que

havia nomeado, na Capitania do Espírito Santo, “um meirinho dos do gentio em cada vila,

porque folgam eles muito com estas onrras e contentam-se com pouco: com os vestirem

cad’anno e às molheres huma camisa d’algodam bastará”. O objetivo do governador era,

justamente, auxiliar a catequese dos jesuítas, ao “fazer tronco em cada vila e pelourinho,

por lhes mostrar que tem tudo o que os cristãos tem, e para o meirinho meter os moços no

100
Carta do P. António Pires aos Padres e Irmãos de Portugal ([Aldeia de Santiago] Bahia, 22/10/1560), in
Leite, 1954 (III): 312-3.
333

tronco quando fogem da Escola (...) com autoridade [de] quem os ensina 101 e riside na vila.

D[isto] são muito contentes, e recebem milhor o castigo que nós”.102

Nem todos os índios nomeados como meirinhos pareciam compreender totalmente o

alcance de suas responsabilidades, pelo menos do ponto de vista dos jesuítas. Era o caso do

principal da Vila de São João, na Bahia, que apesar de ter sido nomeado meirinho “não

ajudava, mas estorvava e desobedecia muytas vezes ao Governador e aos Padres”,

especialmente por continuar a fazer guerra contra os inimigos. 103 Era o que ocorria também

com os “novamente christianos” (recém convertidos) Garcia de Sá e Bastião de Ponte,

meirinhos em aldeias na Bahia, a respeito dos quais o Irmão Antonio Rodrigues pedia a

Manuel da Nóbrega que os obrigassem a se por em “órden y policia christiana”. 104

Outros, porém, exerciam com eficiência o papel que lhes havia sido destinado, entre

eles o “alcaide” de Piratininga, mencionado por Anchieta, que obrigava os índios a entrar

na Igreja para ouvir a pregação dos padres. 105 Nenhum deles, contudo, se mostrou mais

disposto a auxiliar os jesuítas no combate aos vinhos da terra do que Urupemaíba, principal

da Aldeia do Espírito Santo (Bahia), o qual, como afirmava Antonio Rodrigues, era “muy

buen yndio”, e que sempre vinha “com los braços abiertos abraçarme, diziendo que siempre

nos avía favorecido y que siempre lo avía de hazer”. 106 Ainda que Urupemaíba não tivesse

“a vara” – ou seja, não tivesse sido oficialmente nomeado – mas “solamente la esperança de

lo ser” (ou, talvez, justamente por isso...), foi um dia com um martelo “a la media noche y

101
Isto é, os padres da Companhia: Leite, 1954 (III): 172, nota 9.
102
Carta de Mem de Sá Governador do Brasil a D. Sebastião Rei de Portugal (Rio de Janeiro, 31/03/1560), in
Leite, 1954 (III): 172.
103
Carta do P. Manuel da Nóbrega ao P. Miguel de Torres e Padres e Irmãos de Portugal (Bahia, 05/07/1559),
in Leite, 1954 (III): 59.
104
Carta do Ir. António Rodrigues ao P. Manuel da Nóbrega, Baía ([Aldeia do Espírito Santo] Bahia,
08[?]/08/1559), in Leite, 1954 (III): 122.
105
Ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente, a 16 de Abril de 1563, in Anchieta, 1988: 196.
106
Carta do Ir. António Rodrigues ao P. Manuel da Nóbrega, Baía ([Aldeia do Espírito Santo] Bahia,
08[?]/08/1559), in Leite, 1954 (III): 122.
334

quebró quantas tinajas halló llenas de vino, porque se tiene mandado que no bevan de

noche por se evitar muchas occasiones de peccados y dissoluciones que entonces se hazen.

De todo sale mucho loor al Señor. Que será después que el Governador le hiziere la

solennidad devida?”. 107

É claro que não se poderia contar apenas com o concurso de alguns principais mais

dispostos a auferir vantagens de suas relações privilegiadas com os padres da Companhia

ou com as autoridades laicas. Para a peleja contra uma estrutura tão central na vida dos

Tupinambá, como eram os cauins e cauinagens, era fundamental que as noções de

moderação e temperança, e a idéia de que a embriaguez voluntária constituía um pecado,

fossem divulgadas e praticadas para a sociedade como um todo, alcançando-se aquele

estado de coisas que o padre Leonardo Nunes percebia, ou imaginava existir, entre os

Guarani (carijós), os quais não bebiam “vino hasta emborracharse como éstos (os

Tupinambá), antes uma Aldea bebe um solo cántaro o dos de vino, y esto raramente, lo que

es gran cosa, porque el mucho bever destes es cousa de muchos males, como ya V. R.ª

terná experimentado”. 108

Era necessário fazer algo mais. Os inacianos precisavam atingir - com sua pregação,

ou com outras formas de pressão - as mulheres, para as quais eram os cauins uma instância

central na obtenção de prestígio e honra. 109 Parece-me, aliás, que o sucesso dos jesuítas em

obter a colaboração das mulheres nesta missão representou um de seus logros mais

extraordinários: tomando de empréstimo o que disse Eduardo Viveiros de Castro a respeito

do abandono do canibalismo, poderíamos dizer que o abandono das cauinagens representou

107
Carta do Ir. António Rodrigues ao P. Manuel da Nóbrega, Baía ([Aldeia do Espírito Santo] Bahia,
09[?]/08/1559), in Leite, 1954 (III): 126.
108
Carta do P. Leonardo Nunes ao P. Manuel da Nóbrega, Baía (S. Vicente, 29/06/1552), in Leite, 1954 (I):
340.
109
Cf. pp. 103-9.
335

“uma derrota, sobretudo, da parte feminina da sociedade Tupinambá”. 110 É um sucesso que

se inscreve em um movimento mais amplo, que fez das mulheres um dos esteios mais

importantes da ação jesuítica, tema que abordei em um trabalho anterior.111

Ora, se foi importante, para os jesuítas, contar com principais ambiciosos, mais

ainda o foi atrair o apoio de mulheres e meninos, como apontou, com agudeza, o provincial

Luís da Grã, em carta ao próprio Inácio de Loyola: “de los niños tenemos mucha esperança,

porque tienen habilidad y ingenio, y tomados ante que vaian a la guerra, ado van y aún las

mugeres, y antes que bevan y entiendan em desonestidades”. 112 Eram mulheres como

aquelas descritas por Anchieta, que escondiam os vasos em que os índios comiam e bebiam

“porque não usem deles as outras”, quando se preparavam para matar e comer algum

inimigo. 113 E, o que é ainda mais importante, as mulheres cristãs permitiam que seus filhos

fossem levados (seqüestrados, diria Viveiros de Castro 114 ) e internados nos colégios dos

padres, onde a visão de embriaguez como pecado pudesse lhes ser inculcada.

Acertaram em cheio os jesuítas, ao atacar justamente as clivagens centrais da

sociedade Tupinambá, que envolviam as diferenças de idade e de gênero. Construída pela e

para a guerra, enquanto mecanismo de criação de memórias e de temporalidades, a

sociedade Tupinambá reservava um lugar necessariamente subalterno aos jovens e às

mulheres, pelo menos nos discursos dominantes, os quais, nos fim das contas, fundavam o

próprio ser Tupinambá.

A centralidade da guerra fazia com que, em relação aos jovens, esta clivagem fosse

provisória e superável pela proeza guerreira. Desta forma, os relatos dos jesuítas oscilavam

110
Viveiros de Castro, 2002a: 259.
111
Fernandes, 2003: 253-64.
112
Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Roma (Bahia, 27/12/1554), in Leite, 1954 (II): 133.
113
Ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente, janeiro de 1565, in Anchieta, 1988: 211.
114
Viveiros de Castro, 2002a: 261.
336

permanentemente entre o entusiasmo e a esperança na conversão dos meninos, e a desilusão

e o desânimo ao ver que, assim que se tornavam adultos, os doces catecúmenos tornavam-

se tão “selvagens” quanto seus pais. O próprio Luís da Grã, apenas dois anos após

manifestar suas esperanças na conversão dos meninos, reconhecia que o otimismo havia

sido exagerado:

(...) sus contritiones, sus desseos de seren buenos, todo es tan remisso, que no puede hombre
certificar del. Lãs mugeres tienen más biveza en ello y mucho más se aplican a lo bueno, los
hombres hasta 18 y 20 annos dan buena muestra, dende adelante comiençan a bever y
házense tan rudos y tan ruínes que no es de creer. Este es el peccado de que parece menos se
emendarán, porque mui poco es el tiempo que no estén beodos, y en estos vinos, que ellos
hazen de todalas cosas, se tratan todalas malicias e deshonestidades (…). 115

Apesar dos percalços, o grande alvo da ação jesuítica sempre esteve voltado para os

meninos, cuja plasticidade permitia que trafegassem com maior facilidade entre os

diferentes códigos culturais, e cuja imaturidade social – não mataram inimigos, logo não

podiam beber - permitia, aos jesuítas, atingir um público “virgem” dos prêmios concedidos

pela sociedade Tupinambá aos seus heróis, como a honra de serem considerados principais,

os riscos no corpo ou a poliginia. 116 Desde os primeiros anos os inacianos trataram de

“enseñarlos a ler y a escrevir, y a algunos dellos a cantar”, pressionando todo aquele que

fosse “perezoso” a ir para a escola. Diz Pero Correia que alguns dos meninos eram “tan

vivos y tan buenos y tan atrevidos, que quiebran las tinajas llenas de vino a los suyos para

que no bevan”. 117

Alguns destes meninos, comemorava Anchieta, eram “bem instruidos em leitura,

escrita e em bons costumes”, abominando “os usos de seus progenitores”. Meninos que,

115
Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Roma (Piratininga, 08/06/1556), in Leite, 1954 (II): 294.
116
Sobre a estratégia jesuítica em relação aos meninos, cf. Gomes, 1990/1.
117
Carta do Ir. Pero Correia [ao P. Brás Lourenço, Espírito Santo] (São Vicente, 18/07/1554), in Leite, 1954
(II): 70.
337

com toda a certeza, auxiliavam os jesuítas na censura à “fraqueza” da conversão de seus

pais, já “mui diferentes nos costumes dos de outras terras”, mas sempre sujeitos a recaídas,

como aqueles que foram a uma terra vizinha de Piratininga,, onde havia um festim canibal,

“não para comer carne humana, mas por beber e ver a festa”, após o que tiveram que ser

“disciplinados” para poderem voltar a entrar na igreja.118

Bastaram cinco anos para Anchieta cair na realidade, e perceber que as

“gentilidades” tinham razões que a temperança e a “polícia” desconhecem. Escrevendo em

1560, o missionário canarino era forçado a reconhecer que o trabalho de conversão teria

que ser muito mais intenso, talvez exigindo o concurso mais incisivo do poder temporal, e o

afastamento mais radical dos colonos:

Dos moços que falei no princípio foram ensinados não só nos costumes Cristãos, cuja vida
quanto era mais diferente da de seus pais, tanto maior ocasião dava de louvar a Deus e de
receber consolação, não queria fazer menção por não refrescar as chagas, que parecem
algum tanto estar curadas; e daqueles direi sòmente, que chegando aos anos da puberdade,
começáram a apoderar-se de si, vieram a tanta corrupção, que tanto excedem agora a seus
pais em maldade, quanto antes em bondade, e com tanta maior senvergonha e
desenfreamento se dão ás borracheiras e luxurias, quanto com maior modestia e obediencia
se entregavam dantes aos costumes Cristãos e divinas instruções. Trabalhamos muito com
eles, para os reduzir ao caminho direito, nem nos espanta esta mudança, pois vemos os
mesmos Cristãos procederem da mesma maneira”. 119

Os mesmos meninos nos quais “se fazia algum fruto” estavam agora “totalmente

remetidos aos seus antigos e diabolicos costumes, exceto o de comer carne humana”, mas

fazendo “grandes festas na matança dos seus inimigos” e “bebendo grandes vinhos como

antes eram acostumados”, juntamente com seus pais. 120 Quando bêbados, e “enraivecidos”,

provavelmente agiam como os índios não convertidos, que “passavam por nós outros sem

118
Carta de São Vicente, a 15 de Março de 1555, in Anchieta, 1988: 89.
119
Ao Padre Geral, de São Vicente, a 1de Junho de 1560, in Anchieta, 1988: 166.
120
Ao Padre Geral Diogo Lainez, de São Vicente, a 12 de Junho de 1561, in Anchieta, 1988: 176.
338

nos falar, nem olhar senão de través, como homens que não nos conheciam, e assim todas

as noites, maximè quando bebiam e cantavam (...)”. 121

Com a persistência das vinhaças, os jesuítas não se arriscavam apenas a sofrerem

violências físicas, para as quais, verdade seja dita, estavam psicologicamente muito bem

preparados. Mais sérios eram os riscos para a ortodoxia religiosa. Embora os índios se

mostrassem quase sempre bem dispostos a ouvir as pregações, parecia aos padres que os

vinhos turvavam-lhes a compreensão do que lhes era dito. “Holgavan de oyrlas” disse

Azpilcueta Navarro, “mas luego se les olvidan, mudando el sentido em sus vinos y

guerras”. 122

Mais do que apenas lamentar os equívocos dos índios, preocupavam-se os inacianos

com a proliferação das caraimonhagas, ou santidades, ritos relacionados às atividades dos

pajés itinerantes, os caraíbas, “feiticeiros” que inventavam “bailes e cantares novos” e que

faziam os índios “beber e bailar todo o dia e noite, sem cuidado de fazerem mantimentos”,

dizendo “que as velhas se hão de tornar moças”, 123 prometendo abundância, sucesso militar

e o fim das doenças, entre outras coisas que perturbavam grandemente o bom andamento

do proselitismo jesuítico, 124 muito embora os índios dedicassem aos caraíbas a mesma falta

de firmeza e de constância que mostravam pelos dogmas cristãos: “(...) no hai em esta tierra

idolatria, sino ciertas sanctidades que ellos dizen que ni creen ni dexan de creer”. 125

Apesar deste laxismo dos índios quanto a seus “santos”, é fato que os caraíbas

gozavam de enorme prestígio, 126 sendo considerados como grandes “heróis” (os heróis

121
Ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente, janeiro de 1565, in Anchieta, 1988: 239.
122
Carta do P. Juan de Azpilcueta Navarro aos Padres e Irmãos de Coimbra (Porto Seguro, 24/06/1555), in
Leite, 1954 (II): 248.
123
José de Anchieta, “Informação do Brasil e de suas Capitanias – 1584”, in Anchieta, 1988: 339.
124
Cf. Vainfas, 1995; Metcalf, 1995; Pompa, 2003.
125
Carta do P. Luís da Grã ao P. Inácio de Loyola, Roma (Piratininga, 08/06/1556) in Leite, 1954 (II): 292.
126
Vainfas, 1995: 61.
339

culturais míticos, detentores do conhecimento xamânico, eram também chamados de

karaiba 127 ), e “senhores da fala”, o que fazia com que os nativos lhes proporcionassem - e

aos seus “ídolos”, os maracás - grandes festas, e “muchos cantares (...) biviendo muchos

vinos assi hombres como mugeres, todos juntos, de día y de noche, haziendo harmonías

diabólicas”. 128

Sendo também os jesuítas “senhores da fala”, foram logo identificados, e buscaram

se identificar, com eles: os padres também discursavam pelas madrugadas, e prometiam

abundância e vitória sobre os inimigos, além de curar (ou tentar curar) suas doenças, muitas

vezes trazidas por eles próprios. Mais interessante ainda do que esta “conversão” dos

jesuítas às práticas dos caraíbas, contudo, foi o movimento contrário: a aceitação por parte

destes de partes e imagens do discurso e da liturgia cristã, fenômeno de que a Santidade do

Jaguaripe, estudada por Ronaldo Vainfas, foi o exemplo mais extraordinário, embora não o

único.

Sem querer repetir aqui os argumentos e conclusões de Ronaldo Vainfas ou de

Cristina Pompa, entre outros, acerca da Santidade do Jaguaripe – religião híbrida que

floresceu por volta de 1585, e cujas informações nos chegaram, basicamente, através da

documentação inquisitorial - é importante apontar, como fez Vainfas, que as festas à moda

nativa representavam o centro do culto mestiço ao ídolo Tupanasu, que se realizava em

terras baianas. Não obstante, e talvez por conta do viés da documentação – depoimentos de

indivíduos mais do que dispostos a apagar suas culpas e diminuir o número de seus pecados

– os cauins estão singularmente ausentes. As descrições dos rituais da caraimonhaga do

Jaguaripe são extremamente vagas e genéricas.

127
Viveiros de Castro, 2002a: 202.
128
Carta do Ir. Pero Correia [ao P. João Nunes Barreto, África] (S. Vicente, 20/06/1551) in Leite, 1954 (I):
225.
340

Se nos atermos, contudo, à documentação, é forçoso reconhecer que, na mistura

entre elementos da cultura Tupinambá e da liturgia cristã, o papel do tabaco foi

grandemente inflado, às expensas das bebidas fermentadas. É possível que a “derrota da

parte feminina da sociedade”, expressa na progressiva perda de prestígio das cauinagens,

tenha chegado ao ápice quando os caraíbas assumiram (embora por pouco tempo) o papel

dos misóginos “padres”, colocando aquilo que era um apanágio dos xamãs nativos, o uso

do tabaco, como o foco central do rito.

Em sua arguta análise do papel do petum nas santidades, Ronaldo Vainfas mostra

que aquela configuração cultural específica que se construiu no Jaguaripe foi mais

importante do que qualquer potencialidade “neurológica” das substâncias essenciais

envolvidas no ritual da Santidade, e esta configuração não parece ter dedicado um papel

relevante às cauinagens. O veículo enteogênico privilegiado daquele culto foi, de fato, o

tabaco:

Seria equivocado buscar-se no maior ou menor poder alucionógeno do tabaco a fonte do


transe ameríndio (...). O transe místico é mais do que um problema de beberagem ou
ingestão de alucinógenos, inserindo-se, na verdade, em teia cultural mais complexa. Mais do
que embriagante, o fumo da santidade era divino, conforme exclamou, com fervor, certo
adepto da seita: ‘Bebamos o fumo, que este é o nosso Deus que vem do Paraíso’”. 129

Conforme disse antes, é possível que a ausência dos cauins esteja relacionada a um

determinado viés documental. O jesuíta Fernão Guerreiro, escrevendo em 1609, diz de uma

outra santidade que os índios andavam “tão cegos com aquela que chamam a sua santidade,

que totalmente teem para si que não há outra e que eles só são os que acertam (...). Usam da

cruz, mas com pouca reverência, e teem outras cerimonias ao modo da igreja (...)”. A

demonstração mais cabal de que o cristianismo era “lido” de forma totalmente

129
Vainfas, 1995: 135-7.
341

idiossincrática pelos nativos era o discurso do “padre” desta santidade: “ele estava como

quem ensina a doutrina, misturando mil desbarates, como era dizer Santa Maria, tupana,

remireco, que quer dizer Santa Maria, mulher de deus, e outros despropósitos

semelhantes”. 130

É difícil imaginar que nestas “cerimonias ao modo da igreja” não se imitasse, com o

uso dos cauins, o papel do vinho como o “sangue” do Cristo, mas este é um vôo

especulativo que a falta de lastro documental me impede de fazer. Infelizmente não temos,

para a missionação entre os Tupinambá, elementos documentais que apontem casos

semelhantes ao do cacique Guarani Miguel Atiguaye, que se fazia de padre, vestindo roupa

branca e “mitra” de penas, e bebendo a chicha de milho em uma cabaça multicolorida.131

No que diz respeito aos primeiros índios a sofrerem o impacto da expansão portuguesa, o

papel social e cultural das bebidas fermentadas parece ter diminuído conforme a

colonização lusa se estabilizava e os aldeamentos da Companhia de Jesus atingiam seus

objetivos.

Ao se encerrar o primeiro século da colonização, o discurso dos jesuítas acerca da

embriaguez dos Tupinambá já era bem mais otimista. Fernão Cardim, por exemplo,

afirmava em 1584, os índios das aldeias “(...) honram-se muito de chegarem a commungar,

e por isso fazem extremos, até deixar seus vinhos a que são muito dados, e é a obra mais

heróica que podem fazer (...)”, 132 enquanto que Anchieta, em 1585, dizia que os índios

deixavam com facilidade “os costumes depravados” como o de “embriagar-se de ordinario

com os vinhos”. 133 O nome de José de Anchieta, aliás, ficará marcado indelevelmente

130
Apud Pompa, 2003: 54.
131
Haubert, 1990: 160.
132
Cardim, 1978 (1625): 191.
133
“Informação da Provincia do Brasil para nosso Padre (1585)”, in Anchieta, 1988: 443.
342

como o maior e mais tenaz inimigo das cauinagens, especialmente por conta de seu Auto de

São Lourenço, 134 notável peça teatral em que todos os preconceitos dos padres contra os

vinhos da terra, e todos as estratégias utilizadas para desmoralizar os adeptos das

cerimônias etílicas foram utilizados.

No auto, os principais personagens são Guaixará – chefe Tamoio de Cabo Frio, que

atacou os portugueses em 1566-7 – que é identificado ao Diabo, e seus dois auxiliares,

Aimbirê e Saravaia. Guaixará inicia seus discursos reclamando da chegada dos jesuítas à

sua terra, e se apresentando como campeão dos “maus costumes” dos Tupinambá :

Esta virtude estrangeira


Me irrita sobremaneira.
Quem a teria trazido,
com seus hábitos polidos
estragando a terra inteira?
(...)
Quem é forte como eu?
Como eu, conceituado?
Sou diabo bem assado.
A fama me precedeu;
Guaixará sou chamado.
Meu sistema é o bem viver.
Que não seja constrangido
o prazer, nem abolido.
Quero as tabas acender
com meu fogo preferido

Boa medida é beber


cauim até vomitar.
Isto é jeito de gozar
a vida, e se recomenda
a quem queira aproveitar.

134
Disponível em http://virtualbooks.terra.com.br.
343

A moçada beberrona
trago bem conceituada.
Valente é quem se embriaga
e todo o cauim entorna,
e à luta então se consagra.
(...)
Vêm os tais padres agora
com regras fora de hora
prá que duvidem de mim.
Lei de Deus que não vigora.

As velhas que fabricavam o cauim, e que tantos problemas causaram aos inacianos,

não foram esquecidas:

O diabo mal cheiroso,


teu mau cheiro me enfastia.
Se vivesse o meu esposo,
meu pobre Piracaê,
isso agora eu lhe diria.

Não prestas, és mau diabo.


Que bebas, não deixarei
do cauim que eu mastiguei.
Beberei tudo sozinha,
até cair beberei.

O diabo Guaixará envia seu auxiliar, Saravaia, para assolar as aldeias e aprisionar os

índios que haviam se afastado da pregação cristã:

GUAIXARÁ
Demorou menos que um raio!
Foste mesmo, Saravaia?

SARAVAIA
Fui. Já estão comemorando
os índios nossa vitória.
344

Alegra-te!
Transbordava o cauim,
o prazer regurgitava.
E a beber, as igaçabas
esgotam até o fim.

GUAIXARÁ
E era forte?

SARAVAIA
Forte estava.
E os rapazes beberrões
que pervertem esta aldeia,
caiam de cara cheia.
Velhos, velhas, mocetões
que o cauim desnorteia.

São Sebastião chega à cena e pergunta aos demônios quem havia lhes dado o direito

de comandar os índios:

SÃO SEBASTIÃO
Quem foi que insensatamente,
um dia ou presentemente?
os índios vos entregou?
Se o próprio Deus tão potente
deste povo em santo ofício
corpo e alma modelou!

O auxiliar do Diabo, Aimbirê, responde, mostrando quem era o verdadeiro vilão, o

verdadeiro instrumento da ação demoníaca entre os nativos:

AIMBIRÊ
Bebem cauim a seu jeito,
como completos sandeus
ao cauim rendem seu preito.

Esse cauim é que tolhe


345

sua graça espiritual.


Perdidos no bacanal
seus espíritos se encolhem
em nosso laço fatal.
(...)
Têm bebida aos desperdícios,
cauim não lhes faltará.
De ébrios dão-se ao malefício,
ferem-se, brigam, sei lá!

Não faltam, também, novas recriminações contra as velhas “feiticeiras”, que

fabricavam os cauins e perturbavam, com seus feitiços, a cabeça e a sexualidade dos

jovens, retirando-os da esfera de influência dos padres:

GUAIXARÁ
Eu que te ajude a explicar.
As velhas, como serpentes,
injuriam-se entre dentes,
maldizendo sem cessar.
As que mais calam consentem.

Pecam as inconseqüentes
com intrigas bem tecidas,
preparam negras bebidas
pra serem belas e ardentes
no amor na cama e na vida.

AIMBIRÊ
E os rapazes cobiçosos,
perseguindo o mulherio
para escravas do gentio...
Assim invadem fogosos...
dos brancos o casario.

O auto irá terminar, como não poderia deixar de ser, de uma forma edificante, com

Guaixará arrasado no inferno, e com Aimbirê (que na história real bandeou-se para o lado
346

dos portugueses) atuando como algoz infernal dos imperadores romanos, Décio e

Valeriano, perseguidores dos cristãos. Ironicamente, o inferno anchietano reunia índios e

romanos, pecadores, os dois, por perseguirem e matarem os filhos de Deus, e pecadores, os

dois, por fazerem da bebida, e dos prazeres etílicos, parte essencial de sua relação com o

mundo e com a vida. Nos improvisados palcos das aldeias jesuíticas, representava-se toda a

luta cristã contra o álcool e a embriaguez: reunia-se, a um só tempo, o princípio e o fim da

história. Ali, em meio às matas brasileiras, o sonho milenarista de refundar o mundo se

realizava, em meio à guerra contra a expansão da consciência e dos sentidos, e contra a

liberdade e o riso, permitidos pela ebriedade.


347

3. O Fim do Antigo Regime Etílico.

(...) Outro trabalho diário, e de toda a attenção é a colheita


do mel, do qual fazem um pessimo vinho, para as suas
continuadas bebedeiras e festas (...). Em julho o
apparecimento das Pleyadas ou Sete Estrelas, é uma das
principais festas (...). Tudo é uma festa e uma beberronia
(...) nas quais se pintam, mascaram e ornam
extraordinariamente, e ella é completa só quando todos
ficam bebados até cahir. 135

Ao se espalhar pelo território que se tornaria o Brasil, a colonização européia

também ia espalhando suas formas de relacionamento com a experiência etílica. Colonos

leigos e missionários, soldados e funcionários, portugueses e de outras nações européias,

todos tinham que adaptar suas práticas etílicas ao novo mundo que ia sendo descoberto,

alguns optando por se abrir à experiência advinda do consumo de bebidas elaboradas de

forma muito diferente daquelas conhecidas na Europa, outros lutando para combater estas

135
Ricardo Franco de Almeida Serra, “Sôbre o aldêamento dos indios uaicurus e guanás, com a descrição dos
seus usos, religião, estabilidade e costumes” (1803). Revista Trimestral de Historia e Geographia ou Jornal
do IHGB, XIII: 354-5, 1872.
348

bebidas e a embriaguez provocada por elas, considerada como uma porta aberta ao pecado

e à degradação dos povos nativos, além de um potencial perigo para os próprios europeus.

Seria impossível, contudo, fazer agora o que fiz com os Tupinambá, na seção

anterior. Não existe, para outras situações de contato, um conjunto de informações e

documentos que nos permita – em quantidade e qualidade comparáveis ao que se pode

fazer em relação aos Tupinambá – traçar uma história coerente e razoavelmente detalhada

das relações que nativos e europeus estabeleceram em torno das bebidas fermentadas

tradicionais. De qualquer forma, existem algumas indicações, dentro de uma documentação

muito variada e de qualidade desigual, que mostram que a experiência dos jesuítas com os

Tupinambá serviu, como um modelo para as relações dos próprios jesuítas, e de outros

europeus, com outros povos nativos.

Antes de chegar a estas outras experiências, contudo, deve-se recordar que os

portugueses não foram os únicos a se relacionar com os Tupinambá. Franceses e holandeses

também tiveram a oportunidade de estabelecer um contato íntimo, embora fugaz, com os

povos deste conjunto étnico. Nestes contatos, tanto franceses quanto holandeses se

defrontaram, muitas vezes, com os mesmos problemas com que se houveram os

portugueses, escolhendo (ou sendo forçados a escolher) soluções que nos dizem muito a

respeito de suas próprias visões a respeito da experiência etílica.

Já vimos que os franceses, assim como os portugueses, se surpreenderam e, muitas

vezes, de horrorizaram com um modo de beber que lhes parecia algo extremamente

selvagem, ou mesmo inspirado pelo demônio. Os missionários franceses, especialmente

durante a tentativa frustrada de colonização no Maranhão, em princípios do século XVII,

tentaram fazer o mesmo que fizeram os jesuítas no território dominado por Portugal, isto é,
349

controlar ou mesmo extinguir as cauinagens, com resultados muito diferentes daqueles

alcançados pelos inacianos.

Os capuchinhos franceses compartilhavam com os jesuítas da mesma visão a

respeito da embriaguez: aceitavam a necessidade de manter a álcool como produto de uso

quotidiano, mas com moderação, respeitando-se a necessidade da temperança, e

condenavam a embriaguez voluntária. E, o mais importante: condenavam a embriaguez

cerimonial e enteogênica, à moda indígena, percebendo naquelas cerimônias um aspecto

“religioso” que lhes era absolutamente inaceitável.

Diferentemente dos jesuítas, porém, os franceses jamais puderam contar com o

apoio do “braço secular” em um nível semelhante ao dos inacianos. Não puderam, por

exemplo, separar, em aldeamentos, os índios da influência dos europeus laicos, o que

permitia que os intérpretes (truchement) normandos e bretões que já viviam há décadas no

Brasil, conhecendo a língua e aderindo a muitos dos costumes nativos (inclusive de rituais

antropofágicos), tivessem livre acesso aos índios, solapando, muitas vezes, a obra

catequética dos capuchinhos.

Apesar destas diferenças, os franceses enfrentaram também se viram às voltas com

as questões típicas do contato com os Tupinambá, especialmente a proliferação de

“leituras” nativas, e positivamente heterodoxas, do cristianismo, leituras que eram, muitas

vezes, realizadas pelos pajé-açu, os caraíbas que tanto trabalho deram aos jesuítas. Yves

d’Evreux foi um grande observador destes caraíbas, percebendo que eles “ocupavam entre

os selvagens o lugar de mediadores entre os espíritos e o resto do povo”, colocando-se,

portanto, como opositores naturais da empresa evangelizadora. Possuíam enorme prestígio

entre os índios, até mesmo por conta de seu comportamento diferenciado:


350

Quanto mais progressos fazem nos abusos, mais graves se mostram: falam pouco, buscam a
solidão, evitam o mais que podem as companhias, com o que alcançam mais honra e
respeito, são mais procurados depois dos principais, e estes lhes falam com atenção aí usada,
e ninguém os maltrata. 136

Como em outros lugares, os pajés eram os grandes divulgadores, através dos seus

discursos, dos pecados que os religiosos queriam ver extintos: “(só falam em) matar, comer,

assar, e secar a carne dos seus inimigos, e nas suas incontinências, libertinagens e

loucuras”. Usavam do petun, do tabaco, para “comunicar seu espírito aos outros”, mas

também imitavam as cerimônias cristãs, como a aspersão da água benta: “(...) de ordinário

enchem d’água grandes potes de barro, proferindo em segredo algumas palavras sobre eles,

deitando também fumaças de petun (...), p[õe]m-se a dançar, e depois o feiticeiro toma um

ramo de palmeira, mete dentro do pote, e com ele asperge a companhia”. 137

Além de imitar as cerimônias, os pajés também procuravam interpretar os discursos

que as fundamentavam, em termos muito diferentes daqueles dos missionários. Afirmavam,

por exemplo, referindo-se aos padres, que estes os faziam sair das igrejas 138 para que Tupã

“(descesse) diante deles, e então se ajoelham todos os caraíbas (os brancos). Bebe e come

Tupã em belos vasos de oiro, e em mesa bem preparada e ornada de belos estofos, e bonitos

panos de linho (...)”. 139

Era uma crença profundamente arraigada essa: os índios tinham certeza que, durante

a eucaristia, “Tupã descia sobre os altares, bebendo e comendo” com os padres. Para os

índios, e sua visão enteogênica, Deus estava realmente naquele rito, e sua vinda estava

obviamente relacionada à bebida e à comida que lhe era oferecida. Não é por acaso que,

136
Evreux, 2002 (1615): 301.
137
Evreux, 2002 (1615): 320-1.
138
Os índios que ainda não haviam sido batizados, e que não podiam assistir a missa, estranhavam bastante
esta discriminação: “julgaram isto uma afronta e mostraram-se ofendidos (...)”:Evreux, 2002 (1615): 376.
139
Evreux, 2002 (1615): 253.
351

certa vez, uma índia tenha manifestado verdadeiro horror a receber a hóstia e a beber o

vinho diretamente no cálice: “(...) tão grande secura da língua e boca proveio da grande

timidez dela em receber tão santo manjar”, o que me parece estar relacionado à total

inadequação deste ato no contexto da cultura Tupinambá, já que somente os grandes pajés

podiam entrar em contato tão direto com os espíritos, e ainda mais com o maior espírito de

todos. 140

Os missionários franceses também procuraram estabelecer limites ao consumo do

álcool e a reprimir a ocorrência das cauinagens, mandando, por exemplo, “atirar no mato a

comida, a bebida e o fogo que costumamos dar aos nossos parentes defuntos (...)”. 141 Um

dos principais índios convertidos, um principal e pajé da aldeia de Tapuitapera, chamado

Marentim (que recebeu o nome cristão de Martim Francisco), e que era chamado de pai-

mirí (padre pequeno, ou “vigário” dos padres), insistia com os índios para que deixassem os

cauins. Aqueles que o ouviam, diz o padre d’Evreux:

Nunca iam aos cauins e reuniões, conforme costumavam os Tupinambás: era um dos pontos
principais que Martim Francisco gravava no coração dos convertidos, isto é, que os cauins
eram inventados por Jeropari (o diabo) para semear a discórdia entre eles, e fazer com que
praticassem toda a espécie de males os que os freqüentassem, sendo impossível amar a Deus
quem gostasse de cauins, porque, dizia ele, “quando descubro que alguns dos meus
semelhantes se retiram das cauinagens, agouro que bem depressa serão cristãos, e vou
procurá-los; mas não tenho ânimo para fazer o mesmo aos que freqüentam tais orgias”. 142

Os holandeses, em seu curto período no domínio de Pernambuco e regiões vizinhas

(1630-54), também travaram relações profundas com os Tupinambá da costa brasileira, em

especial os Potiguara da Paraíba e Rio Grande do Norte. Assim como os outros europeus,

140
Evreux, 2002 (1615): 327.
141
Evreux, 2002 (1615): 253.
142
Evreux, 2002 (1615): 275.
352

os holandeses também lamentaram a mudança de comportamento apresentada pelos índios

conforme estes se embriagavam nas cauinagens:

Bastante tranquilamente vivem entre êles exceto quando se comprazem com as bebidas,
porque então passam os dias e as noites pulando e cantarolando. Porquanto se entregam
excessivamente à embriaguez tanto as mulheres como os homens: nem facilmente podem
ser dissuadidos dêsse vício, o qual é para êles o máximo, do qual nascem brigas e outros
maus costumes. 143

Muito embora fossem os holandeses – de regime etílico decididamente nórdico -

reconhecidos mundialmente como excepcionais bebedores, 144 não deixaram de criticar o

vício da embriaguez dos nativos, notadamente quando tentaram convertê-los à sua religião

reformada. Os índios “brasilianos” (os Tupinambá) foram reunidos em aldeias, comandadas

por “commandeurs” civis até 1645, quando o medo da revolta levou o Conselho dos XIX

(Herren XIX) - órgão máximo de governo da Companhia das Índias Ocidentais – a

reconhecer sua liberdade e nomear regentes índios para governá-las, entre os quais Antônio

Paraupaba e Domingos Fernandes Carapeba. 145

Segundo os holandeses, os índios pouco haviam aprendido da religião católica “a

não ser recitar padre-nossos e ouvir missas”, o que significava dizer que a catequese

jesuítica havia deixado poucas marcas entre eles. O Conselho Político do Recife

determinou, em 1636, que os meninos fossem afastados de seus pais e educados na língua e

na religião holandesa, porque os adultos estavam esquecendo a “verdade” e retornando “às

suas antigas superstições e idolatrias”. A língua portuguesa deveria ser proibida nas aldeias,

e quando fossem os índios “senhores da língua holandesa ser-lhe-ia ensinado o catecismo

143
Marcgrave, 1942 (1648): 269.
144
Beber, advertia Antônio Vieira, escrevendo da Holanda, “nesta terra não é pecado nem desonra”: “Carta ao
Marquês de Nisa” (Haia, 12/01/1648), in Vieira, 2003: 348.
145
Mello, 1978 (1947): 209-10.
353

da igreja reformada com as suas perguntas e respostas e, em seguida, pelos mestres,

iniciados nos fundamentos da verdadeira religião cristã”, além dos “costumes civis”. 146

O plano todo se revelou um grande fracasso, não apenas pela difícil condição militar

do domínio holandês, mas também por conta da dificuldade em separar os meninos de seus

pais, insistência que chegou a produzir levantamentos nas aldeias e massacres de

holandeses, como ocorreu no Ceará, em fevereiro de 1644. Sem esta separação,

reconheciam os flamengos (tal como fizeram os jesuítas antes deles) seria impossível

conseguir qualquer resultado com os índios, já que os adultos não abandonavam “seus

vícios inveterados, prostituição, alcoolismo e preguiça”.

Em 1645 era pedido ao Conselho dos XIX que fossem enviados ao Brasil “pessoas

honradas para servir de mestres-escolas, não sendo pessoas inclinadas a bebidas já que os

índios são muito chegados a este vício”. Deve-se notar que o próprio Supremo Conselho do

Recife, comumente, enviava “presentes de aguardente” aos índios. Em 1644, os holandeses

desistiam, oficialmente, de seu ensaio de catequização. 147 Como diz Gilberto Freyre, “o

Recife holandês (...) foi um burgo de beberrões. Pessoas da melhor posição social eram

encontradas bêbadas pelas ruas”, 148 fato que, certamente, não contribuía em nada para

extinguir o “alcoolismo” dos índios.

Quanto aos chamados tapuias, grandes aliados militares dos holandeses, jamais

aceitaram o discurso evangelizador dos pregadores reformados, 149 e também se mantiveram

firmes com seus costumes etílicos. Os Kariri, por exemplo, reuniam-se periodicamente para

consumir “acauî” e “aiipiî”, começando pela manhã e, entregando-se “à bebedeira,

146
“Instruções dadas a Servaes Carpentier por parte do Conselho Político, o qual vai em missão do mesmo
Conselho ao Conselho dos XIX a expor a situação do Brasil” (20/02/1636), apud Mello, 1978 (1947): 212.
147
Mello, 1978 (1947): 223.
148
Freyre, 2003 (1936): 280.
149
Mello, 1978 (1947): 207.
354

cantarolam e dansam quasi sem interrupção. Quando algum se sente repleto,

demasiadamente de bebida, provoca o vômito e bebe novamente. Desta maneira, quem

pode vomitar mais e beber de novo, é tido pelo melhor e mais poderoso dos beberrões”. 150

A relativa lassidão no combate ao beber indígena, por parte dos holandeses, e a

desorganização provocada pela ocupação neerlandesa nos aldeamentos jesuíticos,

contribuíram para que a luta contra os regimes etílicos nativos sofresse uma grave (do

ponto de vista dos jesuítas) interrupção. Para piorar, muitos índios que apoiaram e lutaram

junto aos flamengos, entre os quais Antônio Paraupaba, refugiaram-se na Serra do Ibiapaba,

no Ceará, conhecida como a “Genebra de todos os sertões do Brasil”, por conta da

influência dos índios refugiados de Pernambuco, “nascidos e criados entre os Holandeses,

sem outro exemplo nem conhecimento da verdadeira religião”. Antônio Vieira dizia que

Ibiapaba era uma verdadeira “República de Baco (...) por serem as borracheiras continuas

de noite e de dia”. 151

De todo modo, a expulsão dos holandeses contribuiu para estabilizar o domínio luso

sobre os Tupinambá, ou sobre aquilo que restava deles. Estes Potiguara “neerlandizados”

(com o perdão do neologismo desajeitado), que se refugiaram em Ibiapaba, representaram

apenas o final de uma longa história dos portugueses com suas cauinagens. A guerra de

jesuítas, e outros missionários, contra cauinagens e outras formas nativas de beber seria

transferida para outros espaços e outras nações indígenas, nos sertões e na ocupação da

Amazônia.

Ao expandir os limites de sua colônia pelos sertões do Brasil, os portugueses

encontraram outros povos, outras bebidas e outros modos de se embriagar. Já possuíam,

150
Marcgrave, 1942 (1648): 273-4.
151
Antônio Vieira, “Relação da Missão da Serra de Ibiapaba” (1660), in Ribeiro e Moreira Neto, 1992: 276.
355

contudo, o know how necessário para lidar com estas situações, acumulado em décadas de

aldeamentos e pregações de jesuítas e outros missionários. Ao entrar no século XVII, os

próprios jesuítas já não consideravam necessário lutar com tanto empenho contra os

“vinhos”, provavelmente porque o arcabouço místico que envolvia as cauinagens estava em

franco processo de enfraquecimento (ou, seria mais prudente dizer, “esmaecimento”),

juntamente com a proeminência social de seus maiores representantes, os feiticeiros

“caraíbas”.

Nas Advertências de 1609, o jesuíta anônimo mostra que os anos de catequese

haviam suavizado as táticas de conquista espiritual dos nativos brasileiros, fazendo com

que se aceitasse tudo aquilo que não representasse uma ameaça exagerada ao bom governo

das aldeias, e que não fizesse com que os índios as abandonassem ou se revoltassem contra

os padres. Permitia-se, inclusive, que os índios pudessem mudar suas aldeias de lugar,

“porque assim se conservão mais”. Este documento é revelador quanto à mudança no

paradigma missionário dos inacianos, e representa um extraordinário exemplo da vitória

jesuítica em implementar a visão católica mediterrânica sobre a embriaguez, pelo menos

dentro das aldeias: “como os indios para morrerem basta tomarem melancolia ec. parece

que não he bem tirar-lhes os nossos seus costumes que se não encontrão com a lei de Deus,

como chorar, cantar e beberem com moderação. E se alguns se desmandarem, dar-lhes a

sua penitência. E não quebrar-lhes os nastos de vinho (...)”. 152

A alteração dos regimes etílicos nativos era tão patente que a própria produção dos

cauins parece ter sido, paulatinamente, abandonada entre aqueles grupos que estavam em

contato com os europeus há mais tempo. Antônio Vieira, em 1654, demonstrava surpresa

ao perceber que, em determinada aldeia no Maranhão, depois do anoitecer, “em todas as

152
Anônimo, Algumas advertências para a província do Brasil (1609?), apud Pompa, 2003: 75.
356

(casas) se falava alto e que estava toda a aldeia acordada”. Os padres estranharam o fato,

bastante inusitado, imaginando que isto se devia à presença do vinho. O trecho a seguir é, a

meu ver, importantíssimo, porque mostra que, naquela aldeia, embora os “senhores da fala”

ainda se aproveitassem da embriaguez para fazerem os seus discursos, já não se produzia o

cauim, dependendo aqueles índios, se quisessem se embriagar, do comércio com os cristãos

(os itálicos são meus):

Estranharam o modo de inquietação, e muito mais àquelas horas, porque, como os índios
são naturalmente de pouca conversação, o grande silêncio que há nas ditas aldeias,
principalmente de noite, em que parece que não há nelas cousa vivente, julgaram os padres
pela experiência que devia de ser vinho, o qual se não vende entre os índios, e em o havendo
em alguma casa se expõe a todos os que querem ir beber, e ordinariamente querem todos, e
ele é o que faz falar os mudos, e não há história dos passados, nem obrigação ou queixa dos
presentes, que então não venha a prática, em que gastam as noites inteiras.153

Pelo visto, tinham pouca fé os padres em sua pregação, já que os índios estavam

acordados rezando e ensinando as orações e declarações do catecismo, “todos deitados em

suas redes”. Vieira aproveita para elogiar o novo paradigma jesuítico de conversão:

Não crera isto destes homens quem de antes os conhecera, e vira quão inclinados são a
gastar as noites em seus brincos e passatempos, mas tanto pode a graça sobre a natureza.
Nem nós lhe tiramos ou proibimos o seu cantar e bailar, nem ainda beber e alegrar-se,
contanto que seja com a moderação devida, por lhe não fazermos a lei de Cristo pesada e
triste, quando ela é jugo suave e leve. 154

Durante a longa catequese dos tapuias do sertão do Nordeste, processo complexo e

entremeado por guerras e conflitos com os colonos, os missionários repetiram os passos de

sua luta contra a embriaguez cerimonial e o beber supérfluo. Como demonstrou, de forma

brilhante, Cristina Pompa, em Religião como Tradução, a missionação junto aos povos do

153
Antônio Vieira, “Carta ao padre provincial do Brasil” (1654), in Vieira, 2003: 172.
154
Antônio Vieira, “Carta ao padre provincial do Brasil” (1654), in Vieira, 2003: 172-3.
357

sertão se apropriou de vários elementos e experiências da catequese realizada com os

Tupinambá, 155 inclusive quanto à necessidade de criação de uma “religião tapuia” com a

qual os missionários pudessem duelar, e isto é verdadeiro também no que diz respeito à

postura dos religiosos quanto aos regimes etílicos dos povos tapuias.

Neste campo, aliás, os missionários tiveram bastante com o que se ocupar. Entre os

Kariri, por exemplo, as sessões de embriaguez constituíam parte importante no culto

daquilo que os jesuítas viam como “deuses”. Em uma ânua datada de 1679, o irmão Felipe

Coelho informava que os índios “cultuavam e veneravam duas falsas divindades, ou

Numes, cujos nomes eram Vuankidzan (sic) e Potidzan, que festejavam, um dia

estabelecido durante o ano, com várias ofertas e dádivas, danças, bebedeiras e ritos

profanos, e enfim, guardavam pequenos objetos como se tratasse de relíquias para o culto

divino. 156

No culto destas “divindades” era comum que os índios realizassem uma cerimônia

(que o jesuíta Jacques Cockle chama de “danças sagradas” ou “jogos”) em que a

embriaguez ocupava um lugar central: “para cuidar destas coisas há alguns homens e

mulheres que chamam Pais e Mães do jogo ou de Varakidzan. Se eles conduzirem bem as

cerimônias, os mais velhos predizem muita coisa boa. Terminam os jogos bem cheios e

bêbados, por isso as mais jovens mulheres trabalham alguns dias fazendo vinho”. 157

Entre os tapuias Moriti (também do grupo Kariri), havia uma cerimônia que se

realizava quando as Plêiades surgiam no céu, e que consistia em “meterem-se no rio para

colherem muitos frutos, fazer uma festa, do tipo supersticioso com bebida, para terem

muitos filhos, lavar os filhos recém-nascidos na água em que tinham cozido a caça, para

155
Cf. Fernandes (2004), acerca do livro de Pompa.
156
Annuae Litterae provinciae brasiliensis ab anno 1670 usque ad 1679, apud Pompa, 2003: 364-5.
157
Carta do P. Jacques Cockle ao P. Geral Oliva (20/11/1673), apud Pompa, 2003: 366.
358

que eles fossem bons caçadores; enterrar os corpos dos mortos dentro de grandes potes

(...)”. 158

A ação dos jesuítas contra a embriaguez cerimonial inspirou os Catecismos em

língua Kariri, escritos pelo jesuíta Luis Vicente Mamiani (1698), e pelo capuchinho

Bernard de Nantes (1709), nos quais a luta contra as bebidas nativas ocupa um lugar dos

mais importantes. No catecismo de Mamiani são apresentados as principais atitudes e

costumes que eram consideradas pelos missionários como pecados, entre eles “esfregar

uma creança com porco do mato e lavala com Aloá para que, quando for grande, seja bom

caçador & bom bebedor” e “fazer vinho, derramado no chão e varrer o andro da casa para

correr com as bexigas”. 159 No catecismo de Bernard de Nantes são feitas perguntas a

respeito da firmeza com a qual se respeitava o primeiro mandamento: “fostes cantar o

Soponhiu? (he cantar dissoluto, & barbaro, quando banquetão). Toldastes vos de vinho

nelle?”. 160

A experiência anterior com os índios do litoral fazia ver aos missionários, e à

administração colonial, que a estratégia de reunir os tapuias em aldeias era a melhor forma

de trazê-los para o âmbito da “civilização”, como o demonstra a determinação do

governador-geral Matias da Cunha, na qual ordena que os “Indios Cariris” que fossem

achados fora de sua aldeia fossem levados de volta à Missão, já que, ao se ausentarem dela,

evitavam

(...) por este modo a educação da doutrina Christã que lhes ensina, e os bons costumes com
que pretende livrar de seus antigos ritos, e tel-os domesticados e promptos para o serviço de
Deus e de Sua magestade, que é o principal fim a que se dirige a dita Missão, e todas as

158
Annuae Litterae exBrasilia Anno 1693, apud Pompa, 2003: 373.
159
Luis Vicente Mamiani, Catecismo da doutrina christã na língua brasílica da Naçam Kiriri (1698), apud
Pompa, 2003: 398.
160
Bernard de Nantes, Catecismo da língua kiriri (1709), apud Pompa, 2003: 398.
359

mais que Sua Magestade tão particularmente encarrega a este Governo, e porque convem
que os ditos índios se reduzam á dita Aldeia, e se conservem nella sem que pessôa alguma
os possa divertir (...). 161

Para os missionários, e especialmente para os jesuítas mais experientes nas coisas

do sertão, não restava dúvida de que esta era a forma adequada de tratar das “abusões” dos

índios. Em 1667, o padre João de Barros escrevia da aldeia de S. Francisco Xavier de

Jacobina, na Bahia, defendendo esta estratégia (contra aqueles que defendiam que a atuação

jesuítica deveria se limitar aos colégios), e elogiando a atuação do padre flamengo Jacob

Roland junto aos “Tapuyas”. Afirmando que os padres no sertão viam tudo com seus

próprios olhos, “m.to difernte de que no Coll.º se pratica”, defendia a prática de agir com

suavidade com os índios “que cordialmente nos amão, e desejão em tudo faser a vontade,

deixando por amor de nos cousas que parecem (?), como são o beber vinhos azedos cõ q. se

embebedam, não cumdescender cõ algũa molher mã q. os incita (...)”. 162

E desta forma, com avanços e recuos de acordo com cada situação em particular, a

guerra contra as bebidas nativas ia sendo vencida, “por amor de nos” ou com a ajuda

crucial da Coroa ou da administração colonial. Não apenas os jesuítas, mas outras ordens

religiosas, como franciscanos e oratorianos, percebiam nestas bebidas, e no tipo de

embriaguez que se praticava entre os índios no Brasil, um risco para a transformação

daqueles povos em verdadeiros súditos de Deus e da Coroa, e tratavam de extinguir tais

práticas, pelo menos quando estas ocorriam em um nível exagerado.

A administração colonial participava deste esforço, sempre que solicitada, inclusive

chamando a atenção dos padres, quando estes não cumpriam com a tarefa a contento, talvez

por “suavizarem” demais o trato com os nativos, e sendo excessivamente condescendentes


161
“Ordem para os Capitães dos districtos donde forem achados Indios Cariris pertencentes á Aldeia do
Capitão Fernando os obriguem e entreguem ao Missionario della” (19/11/1687). DH, XXXII: 270-1.
162
Carta do P. João de Barros ao Pe. Comissário Antão Gonçalves (11/09/1667), apud Pompa, 2003: 320.
360

com as “gentilidades”. Em um Regimento datado de 1734, o capitão-general e governador

de São Paulo, o Conde de Sarzedas, ordenava aos superiores das aldeias da Capitania que

estes deveriam: “(...) por serviço de D.s evitar-lhe as bebediçes á q. são costumados pello

seu pouco governo atalhando a que nas Aldeyas não fabriquem bebidas de q. nascem as

suas pendencias e muitas vezes o perderem o resp.to, e a seus off.es e todos os superiores,

fazendosce depois persizos haver castigos q. se devem evitar tirando as occasiões”. 163

A própria Coroa poderia ser acionada a evitar “as occasiões”, na medida em que

isso se fizesse necessário. Logo após a sua instalação, em 1642, o Conselho Ultramarino já

era instado a impedir que os índios tivessem a oportunidade de se envolver em problemas

em virtude das bebidas. Neste importante documento, 164 datado de 1643, e constante das

caixas de Pernambuco do Arquivo Histórico Ultramarino, o Conselho ordena (a pedido do

missionário oratoriano João Duarte do Sacramento) que os soldados do sertão não

vendessem vinho e aguardente aos índios, pelos problemas que isso ocasionava ao serviço

de Deus e da Coroa. Por ser documento inédito, transcrevo-o na íntegra:

So bre o que pede João D uarte do Sa cramento a c erca de


se pro h ib ir que o s so ldado s do sertão leva m os índios
pa ra o s seus q uart é is , e q ue po r aq uella s A ldeias s e não d ev e
a v ender v inho ou agua rdent e pell o s c e rt õ es e A ld e ias , d o n d e a -
sist em os índio s pello grande pr eju ízo qu e is so r esu lta.

P o r d e cr e to d e 1 6 d e M a r ço d e s te p r es en t e a n n o o r d en o V o ss a A lt e z a se v ej a e
consu lte n este con celho h er a p etição do Padr e João do Du ar te do Sacr amen to
Prepo s itto da Congreg ação do Oratório, e po r feito apostollico das missõ es em q ue
r epr esen ta qu e o d ita Congr egação te m n aqu elle estado que elle e seos co mp anheiro s

163
“Registo de hũ Regim.to p.a todas as Aldeyas desta Capp.nia p.a os Índios dellas” (10/05/1734). Documentos
Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, XXII: 74-5.
164
AHU, Documentos de Pernambuco, Códice 19, fls. 19-20.
361

tr aba lh ão co m z e llo inc an sáv e l n a c on cerv a ção d as a lma s do gen tio ma is b á rbaro e
ma is r e mo to d aqu ellas cap itan ias dond e tendo tr azido gr and e numer o a f e e a
o b d i en c i a d e V o s sa A lt e z a ac aba r ã o mu i t as mi l c o m o s S a cra me n to s d a I g r ej a a s
qu ae s toda s p er ec er ião no p agan ismo s e lhr nã o a s is tir ão o s d itos mis s ion ár ios d e
sua ord e m, co mo d e sd e o tempo r eff er ido o que h á v in te dou s anno s o for ão
con tunuando, co m excesso trab alho, po r and arem, n esta non cão v in te e seis
r e llig ioso s r epar tidos por aqu e lles imen so s certõ es dond e h ab itão ao pr esen te, p ar a
c on tenu ar em d o me s -
mo mo do o pr esen te para con tinuarem d o me smo mo do p e llo tempó ad ian te, elles
d itos r e llig io sos sr emo s qu e asis tem, ao s Tapuyas pagõ es e o s capu chinos fr an ceses,
e m q u e m c o m c o v er s a, a s me s ma s r a zõ es d o e mp r ego n e s t e ex er s iss io t en d o as
A ld e ia s en tr e e l le s d is t a t es ma i s d e s en to e s i n co en t a l e g o a s a o ce r t ão d e
Pern ambu co co m o s Tapu ias Su cur as e Jandois os ma is f erro zes d e todo aqu e lles
g en tio co m o que tem fr anqueado todos a quelles cer tõ es e d escuber tos no táveis
camp os dond e h aja g rand e qu an tidade de gados co mo qu e ( ersser) a f azend a r eal no s
d ízimos e o s mo rado res n a oppu le ncia tendo todos aquelles cer tõ es co mo n icação
co m o Rio d e São Fr ancisco e Parah iba dond e tem o u tra resid encia co m o s Tapuias
Ca rer is, e n a c ap itan ia do S e ara te m s e te A ld e ia s d e Índ io s aos c a mp os e os d e
T apu yas , sem n u me ro, e p ar a co ms erv a ção e s e f az er co lh er fruc to d e tão d ela ta da
Seara he precizo acod ir, ao que se propõ em, como reme d e io segu in te.
Q ue nenhu ma p essoa d e qu alqu er calidad e qu e sej a tir e n e m o cup e índ io s, n e m
Tapu yas d e hu m (bor rado) (bor rado) sem licen ça do s Padr es missionár ios o s quaes
n ão poderão d ar n enhu s Tapu ia s se n ão por tempo o s ignor ados co m for ma a
n ecessid ade do s mo rador es, sendo obr ig ado s o s taes moradores (bo rr ado) d ito s as
A ld e ia s dond e p er ten cessem. Co mqu an to estiv er e m em su a co mp anh ia lh e in sinar em
a por açõ es lhe p agar ão seu trab alho e qu e elles d itos Padr es por r asões qu e tem,
p ara isso n ão qu eram ad min istr acão tempor al do s taes g en yios qu e só (borr ado) aos
g o v ern ad o r es e c ap i tã e s ma y o r e s co m d e c l ar aç ão que os ca p i tã es mo r es
p ar ticu lar me n te o do S e ara qu er ão o ma ndar e m f az er g en te , a s A ld e ia s para o
serv iço d e Vo ssa A lteza que atu a l ord e m em a no cur ão os Padr es mission ár io s qu e
logo a derão e ex ecução p ar ticu larme n te e qu e n enhua p e ssoa ma nd e nem lev e v inho,
ou agu ardente, as A ldeia s p ar a contr a ta r co mo o s Ind io s pellas gr and es off enças d e
D eos, e ru ín as qu e cauzão p ar a tamb ém p o r este caminho se ev itar em as d e sordens
qu e so se d er a co m tan to escandalo n a cap itan ia do Seara tendo os ma is ord inár ios, e
o s ma is traz er e m o s so ld ados por for sa p ar a os seu s qua r té is co mp r e tex to d e o
ma n d ar o cap itão mo r p ara f iar em o f io d e algodão para as red es d e r ação do s
sold ado s em tal f o r ma qu e pro curando os mi ssion ár ios proh ib ir tama nho ex er cício
lh es puser ão as esp ing ardas no s p e ito s pondo sse a per igo d e serem ma r tir is
362

(borr ado) de catho licos, po r tugueses o que se r efer e e ou o vos en sino co m


a d mir aç ão e p a r a se a ta lh ar tan t as a d o lor oso s estu rpos esux ateis (borrado) e p er igo,
e v iden te do mis s ion ár io co m no táv e l per igo n a f ee, co m c uja p r imeir a a tu a ção s e
a ch ar ão (borr ado) for ma is a s p lan ta s terr a s do qu e e lles mis er áv e is g en tios , p edem a
Vo ssa A lteza sej a serv ido ma nd ar qu e f io que houv er de f iar p ar a as r ed es no me o o
c ap i t ão mo r o n u me r o d o s a o r a t e s( S I C ) p a r a qu e os Padres mission ár io s os ma nd em
a p a r t i r p e llo s Í n d io s em s u a s me s ma s c a z a s d e q u e s e lh e d a r á a lg u ma c o u s a e m
p agame n to d e seu tr ab alho e qu e se proh ib i levarem a vender vinho ou ahard en tes as
A ld e ia s d o s Í n d io s, a tend en d o ao ma i s q u e r ef f er e, e m s u a p e t i ç ão c o m e sp er a d a
p iedad e e gra nde z a d e Vo ss a A ltez a
A o Conselho p ar ece que no toca a qu eixa qu e f azem estes rellig io zos d a forma
co m qu e proced em o s sold ados do pr esíd io do Sear a levando o s Índ ios por for s sa das
A ld e ia s para lh e f az ere m o a lgod ão p ar a as su as r ede s se d eve e s crev er a o
gov ernado r d e Pern ambu co qu e elle ma nd e, ao
c a p i tão d o S e ara d e q u e e s te s so lda d o s, n ão t ir e m ma i s p o r se ev i t ar em e s c a n d a lo, e
mã o pro ced imen to qu e mu ito tem, e quando quiser e m algum f iado p ara as su as red es,
s e e mtr egue ao s r ellig io zos p ara elle s o ma nda re m o brar o que fo r ne c es ar io ta is
tando se lh e sempre por este tr ab alho o qu e me recer e for estillo, e no s ma is pontos
q u e co mth em, e s t a p e t ic ão d ev e V o s s a A l t ez a se r ser v ido ma n d ar q u e e n f o r me c o m o
seu p ar ecer o gov ernador d e Pernamb u co e sobr e tudo ou tro s sy que aleg a nesta
p e tiç ão
Lixbo a 20 de Ma rço de 643. O Cond e//Malh e iro //T elles Dour ado //Cardo so//

Entre os vários aspectos interessantes deste documento, um se destaca: a presença

da aguardente –de cana, certamente, por não poderem os soldados adquirir a aguardente do

reino, e muito menos vendê-la aos índios – no comércio com o trato com os índios do

sertão. Muito embora não se pretenda fazer nesta tese um estudo da aguardente de cana e de

seu papel no contato interétnico no Brasil colonial – tema que merece, e que permite, uma

outra tese – é importante apontar aqui que sua expansão entre as sociedades indígenas

somente se tornou possível quando suas bebidas tradicionais foram atacadas e extintas pela

ação missionária e administrativa.


363

O “vácuo etílico” provocado pela extinção, ou desvalorização simbólica, das

bebidas nativas abriu espaço para a introdução de uma bebida muitíssimo mais potente, e

para a criação de um espaço de ebriedade que superava em muito os limites da antiga

embriaguez cerimonial, e que lançava os índios no mundo do etilismo moderno, com o qual

os europeus e os africanos também estavam se havendo, e que marcaria, para sempre, a

visão que a sociedade ocidental nutria acerca dos povos indígenas. Nesta mudança, e apesar

de todos os discursos acerca da moderação e da temperança, os missionários tiveram um

papel decisivo. No momento em que se fazia necessário atrair os índios para o espaço

cultural europeu, ou euro-brasílico, os padres não pestanejavam em se utilizar do grande

atrator dos povos indígenas a partir do século XVII: a cachaça.

Em 23 de novembro de 1653, às margens do Rio Tocantins, o padre Antônio Vieira

observava a chegada de “um principal e um seu filho e alguns outros índios do sertão”,

índios que estavam em vista de serem guerreados e escravizados, “para que se veja com que

neste país se resolvem semelhantes empresas”. Naquele dia, o maior dos defensores dos

índios contra a escravidão e o trabalho extenuante, e aquela que se tornaria uma das

maiores responsáveis por atrair os índios à escravidão e ao trabalho extenuante, se

encontrariam às margens daquele rio:

Passaram estes índios novos por uma capitania deste Estado, cujo capitão-mor os
acompanhou com uma carta em que aconselhava ao governador que àquelas quatro aldeias
rebeldes se lhes fosse logo dar guerra, porque, além do serviço que nisso fazia a S.M., seria
de grande utilidade do povo, que por esta via teria escravos, com que se servir (...). No
mesmo dia em que chegaram os índios novos, os mandou o capitão-mor que nos viessem
ver. Nós os festejamos e brindamos; e, posto que estranharam a aguardente, que é o vinho
da cana, que cá se usa, eles nos prometeram com muita graça que se iriam se acostumando,
e nós o cremos. 165

165
Antônio Vieira, “Carta ao padre provincial do Brasil” (1654), in Vieira, 2003: 151.
364

A partir de encontros deste tipo, raramente tão bem documentados, os índios

brasileiros seriam lançados ao mundo moderno, não como os homens civilizados das vãs

esperanças de Yves d’Evreux, que sabiam “beijar a mão” e “tirar o chapéu”, mas como os

índios “fracos e pusilânimes” de Charles-Marie de La Condamine. Inebriados pela

aguardente, os índios tornar-se-iam os ícones de uma diferença insuperável, muito maior do

que aquela que opunha o vinho europeu, e suas formas moderadas de consumo, e aquelas

bebidas, feitas com a saliva de moças gentis, que molhavam as carnes dos inimigos, e que

transportavam os homens ao encontro das vitórias e dos espíritos dos seus avós.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hoaipe chegava com muita cachaça e distribuía a bebida


para todos os pirahã. Primeiro, dava somente para as
mulheres até todas ficarem de porre; depois, bebia e ficava
de porre também. Aos homens não dava nada. Quando
Hoaipe estava muito bêbado, queria brigar com os pirahã;
eles ficavam com medo e corriam para o mato. 1

“Hoaipe” foi o nome dado pelos índios Pirahã 2 a Marco Antonio Gonçalves,

antropólogo que preparava uma etnografia sobre eles. Gonçalves ficou surpreso ao ver-se,

no sonho de Ahoapatsi, como um bêbado violento, que colocava em risco a vida dos índios.

Afinal, quando da chegada do antropólogo (que não bebia) à aldeia, era o próprio Ahoapatsi

quem estava bêbado (de cachaça) e violento. Confrontado com esta inversão dos fatos,

Ahoapatsi respondeu: “Hoaipe nunca bebeu, mas no dia em que beber, vai querer ficar com

nossas mulheres e matar os homens pirahã”. 3

Através dos sonhos, muitas vezes utilizados de forma claramente instrumental, os

Pirahã discutem seu quotidiano, suas práticas sociais, e seus medos e esperanças quanto aos

vários aspectos de suas vidas. Ao realizar uma evidente inversão em relação ao uso da

bebida, e ao comportamento enquanto bêbado, Ahoapatsi fazia, na verdade, um discurso

acerca do contato entre os Pirahã e o mundo dos brancos, no qual estes apareciam como

uma fonte de violência e de destruição para os índios, violência e destruição corporificados

1
Sonho de Ahoapatsi, índio Pirahã, apud Gonçalves, 2001: 271.
2
Povo da família lingüística Mura, do estado do Amazonas.
3
Gonçalves, 2001: 272.
366

em uma bebida, a cachaça, e em uma forma de utilizá-la, a embriaguez violenta e

destrutiva.

Conquanto seja esta uma inversão interessante, e bastante reveladora do papel dos

brancos e de seus produtos no contato com as sociedades indígenas atuais, ao historiador é

flagrante a existência de uma outra inversão, talvez ainda mais reveladora: a figura do

“bêbado violento” e ameaçador, durante séculos lançada aos índios pelos colonizadores

europeus e pela sociedade nacional, agora é utilizada pelos próprios índios para caracterizar

os perigos de sua relação com uma sociedade branca que os envolve de maneira cada vez

mais totalizante.

Durante o percurso desta tese, procuramos estudar os primeiros momentos deste

processo de inversões simbólicas e reais. Desde o princípio, insistimos na idéia de que não

se pode considerar os índios como vítimas passivas de um impacto que lhes era imposto a

partir de fora, de um “sistema mundial” que a tudo levava de roldão, sem maiores

resistências. Ao contrário do que ocorreu em outros contextos coloniais, como na América

do Norte e na Austrália (onde os nativos não conheciam as bebidas e onde se pode falar,

dentro de muitos limites, de um “presente envenenado” do álcool), os povos nativos no

Brasil possuíam todo um mundo de experiências e práticas etílicas, as quais determinaram,

em última instância, o papel que as bebidas alcoólicas ocuparam durante o contato

interétnico, inclusive após a invenção da cachaça, como nos ensina Ahoapatsi.

Nos primeiros capítulos, mostramos a variedade técnica e ecológica dos processos

indígenas de elaboração das bebidas fermentadas, e suas muitas práticas sociais de

consumo. Ao contrário do que diziam os primeiros colonizadores, e ao contrário de uma

percepção contemporânea vulgar, os “primitivos” e “preguiçosos” indígenas eram

extremamente proficientes no uso das matérias-primas de seu mundo natural, aproveitando-


367

as, como material para suas bebidas, das formas mais variadas. Apesar da importância,

técnica e simbólica, do “nauseante” método da insalivação, esta era apenas uma das

técnicas de fermentação disponíveis aos índios, técnicas que iam desde a fermentação

simples de seivas e sucos até o complexo processo de sacarificação provocado por fungos,

base dos caxiris e paiaurus amazônicos.

Também abordamos a imensa complexidade social das bebidas fermentadas, e o

papel crucial das festas e cerimônias etílicas nas sociedades indígenas, concentrando o foco

na sociedade Tupinambá e suas cauinagens canibais, principal topos da reflexão européia

acerca do beber indígena. O lugar central ocupado pelas bebidas no sistema de relações de

gênero, e seu papel como exo-bebidas, como instrumentos de interação com a exterioridade

social, mostraram que os cauins e as cauinagens representavam muito mais do que um meio

de obtenção de estados alterados de consciência, mas agiam como esferas simbólicas vitais,

e como espaços de exercício da memória e da temporalidade, instâncias estreitamente

relacionadas à participação em cerimônias que dependiam totalmente, para a sua

efetivação, da produção (feminina) e do consumo (basicamente masculino) das bebidas

fermentadas.

Passando para o lado europeu, observamos que os regimes etílicos dos

colonizadores tinham uma história tão complexa quanto a dos índios, e eram tão carregados

de contradições, em relação ao que era visto como o “modo correto de beber”, quanto os

regimes etílicos nativos. Jesuítas, e outros missionários, combatiam as cauinagens com base

em pressupostos e fórmulas imagéticas que foram construídas pelas sociedades européias

durante milênios: ao tratar o beber indígena como um conjunto de atos bárbaros, homens

como José de Anchieta ou Yves d’Evreux utilizavam de luta das civilizações

mediterrânicas contra os “bárbaros do norte”, e suas forma enteogênicas de embriaguez,


368

além de repetir as perorações que as elites da antiguidade clássica, e dos primórdios do

mundo moderno, lançavam às formas populares, e “descontroladas”, de usufruto dos

prazeres etílicos, tratando a luta contra as cauinagens como verdadeiro “processo

civilizador”, como se tivessem lido Norbert Elias com o olhar do feitor e com a palmatória

nas mãos.

Vimos também que as estruturas sociais e econômicas dos povos indígenas no

Brasil possuíam autonomia suficiente para impedir que a colonização portuguesa, tal como

fizera na África, introduzisse sua bebida nacional, o vinho de uvas, como uma “mercadoria

civilizadora” ao estilo do que foi feito por gregos e romanos junto aos povos celtas. Os

índios recusaram o vinho, não “porque não o sabiam bem” como disse Caminha, mas

porque os portugueses jamais conseguiram garantir um fornecimento suficiente para que o

vinho assumisse o lugar dos cauins enquanto veículo eficiente para as suas festas, e

enquanto um bem que pudesse circular pelas extensas redes de trocas simbólicas das

sociedades indígenas, ao contrário do que ocorreu nas hierarquizadas sociedades africanas,

em que o vinho, embora raro e caro, podia ser absorvido como um artigo de luxo e

reservado às elites.

Por fim, aprendemos que a luta contra os “vinhos” dos índios, foi, provavelmente, a

tarefa mais difícil com a qual se depararam os missionários no Brasil. Além de terem os

próprios colonos, muitas vezes, como adversários, já que vários entre eles bebiam e

gostavam dos cauins e de participar das “demoníacas” cauinagens, os missionários foram

forçados a reconhecer que as cauinagens eram o próprio palco onde se efetivavam, e se

reproduziam, os “maus costumes” que eram a verdadeira religião de índios que, sem

templos ou sacerdotes, pareciam não ter religião alguma. A relativa, e até surpreendente,

vitória contra as cauinagens, representou o grande sucesso da catequese no Brasil, até


369

mesmo por ter conseguido o apoio das mulheres, principais responsáveis pela produção dos

cauins e pela própria existência das cauinagens. Com esta vitória - talvez uma vitória de

Pirro para alguns, como Yves d’Evreux, que queriam os índios agindo como gentilhommes

- os missionários estabeleceram um “vazio etílico” que seria ocupado por uma bebida muito

mais potente, e muito mais destrutiva para os planos de transformar, ou trazer de volta, os

índios à condição do genus angelicum das profecias milenaristas.

Resta-nos, agora, abordar os desdobramentos possíveis desta pesquisa. Um destes

desdobramentos é óbvio: é necessário estudar o impacto da cachaça nas sociedades

indígenas durante o período colonial. Este estudo – que ainda não foi feito, permanecendo a

historiografia, nas raras vezes em que toca no assunto, nas platitudes da “arma da

colonização” - não pode ser feito, porém, dentro do ponto de vista que coloca os índios

como vítimas passivas, até porque eles não o foram. Quando os Suruí, por exemplo,

recusavam a cachaça durante os anos sessenta, 4 repetiam, dois milênios depois, a recusa

dos suevos ao vinho oferecido por César, repetindo também (guardadas as diferenças) a

recusa ao controle e à destruição prometidas por aquele “presente envenenado” e pela

civilização que o acompanhava.

Regina Celestino mostrou em seu trabalho, Metamorfoses Indígenas, que os índios

aldeados do Rio de Janeiro agiram ativamente no sentido de lutar contra os efeitos que a

introdução da aguardente trouxe para a suas comunidades: em princípios do oitocentos,

alguns índios da aldeia de Mangaratiba apresentaram requerimento solicitando a expulsão

dos brancos de suas aldeias e o fim “das tabernas que há em a dita aldeia, pelas

consideráveis desordens que se seguem por causa das espirituosas bebidas, pelas quais se

4
“(...) os Suruí por diversas vezes relatarm o seu horror pelo fato de terem visto os regionais se embriagarem.
Todos estão convictos de que podem morrer se tomarem qualquer quantidade de cachaça. Por isso, sentem-se
bastante ofendidos quando alguém lhes oferece bebidas”: Matta e Laraia, 1978: 108.
370

deixam relaxar muitos dos miseráveis daquele distrito”. 5 É um tipo de documento que

mostra as potencialidades do estudo da introdução, mas também da recusa à bebida que se

apresentava como substituta dos “vinhos”.

Esta pesquisa revela, ademais, a premente necessidade de se estudar a própria

cachaça, bebida que permeia, há séculos, a vida das camadas populares da sociedade

nacional, que representou um dos principais produtos comercializados durante o período

colonial, que serviu como estopim de vários conflitos em torno de sua tributação e

privilégios de comércio, e que jamais foi estuda de forma profunda, permanecendo o

pequeno livro de Câmara Cascudo, Prelúdio da Cachaça, como uma peça solitária.

Recentemente, Luís Felipe de Alencastro, em seu O Trato dos Viventes, mostrou o lugar

central ocupado pela “aguardente da terra” nas relações entre o Brasil e a África, mas não

existem estudos de conjunto sobre o significado da bebida no próprio Brasil. Este é um

estudo imprescindível para que possamos entender o impacto da cachaça nas sociedades

indígenas e seu papel no contato interétnico.

Estudar como se formou o “vazio etílico”, como fiz neste trabalho, representa um

passo inicial, mas o tema não se esgota aí. Ao contrário do pensava Câmara Cascudo (e a

maioria das pessoas), que associa a origem da cachaça aos negros escravizados nos

engenhos de açúcar, imagino que os índios do passado tenham muito mais a dizer a este

respeito. Primeiros trabalhadores da cana, é difícil imaginar que os índios, que

fermentavam tudo que podia ser fermentado, não tivessem sido eles próprios os criadores

dos “vinhos de mel”, que frei Vicente do Salvador queria ver substituir aos vinhos de

Portugal e da Madeira. Ambrósio Fernandes Brandão aponta fortemente para esta

possibilidade, ao dizer que os índios, em suas “borracheiras”, que eram “seu costume mais

5
Apud Almeida, 2003: 165.
371

ordinário”, aparelhavam “muitos vinhos que fazem do sumo de canas de açúcar, que vão

buscar pelos engenhos (...)”. 6 Se isto é verdadeiro, os nativos brasileiros tiveram

participação fundamental em uma das mais importantes modificações ocorridas no mundo

moderno: a “revolução dos destilados”, que alterou toda a percepção do homem acerca da

experiência etílica.

Por fim, mas não menos importante, não se pode esquecer que as cauinagens não

desapareceram com os jesuítas, e outros missionários dos primeiros séculos da colonização.

A cada vez que os europeus se internavam mais pelo território que se tornaria o Brasil, iam

encontrando novos povos indígenas, e novas bebidas e festas. Não obstante, a cada vez que

os poderes coloniais, ou os da sociedade nacional, aumentavam a capacidade de intervir,

destruir e controlar os povos nativos, alterava-se também sua visão acerca das

“borracheiras” nativas. Aquilo que, nos primeiros tempos, era encarado com horror e

preocupação por parte dos europeus, é visto, com o passar do tempo, como um item dos

“gabinetes de curiosidades” que os europeus iam formando com os restos e troféus que iam

retirando dos povos nativos que caíam sob seu domínio. Os viajantes estrangeiros do século

XIX olhavam para estas festas com uma percepção completamente distinta daquela dos

primeiros colonizadores, e esta percepção é, ela própria, merecedora de uma outra tese.

É com um rápido olhar sobre esta diferença que encerro este trabalho. Nesta

ilustração, do livro de Johann von Spix e Carl von Martius, Viagem pelo Brasil (1817-20),

toda a mudança na maneira pela qual os europeus viam os povos nativos, e suas formas de

relacionamento com o mundo através da experiência etílica, ficam gritantemente

explicitadas. Longe de temerem o caráter “demoníaco” daquela festa, observada entre os

índios “Coroados”, os europeus estão relaxados, em uma posição de superioridade e

6
Brandão, 1997 (1618): 233.
372

controle, e que denota um misto de curiosidade e desprezo pelo aspecto pouco convidativo

da bebida insalivada de milho e pela etiqueta etílica dos índios. 7 O canto da festa, que para

Jean de Léry (ouvindo os Tupinambá do século XVI) era “tão harmonioso que o medo

passou e tive o desejo de tudo ver de perto”, 8 para os orgulhosos alemães era apenas “uma

cantiga monótona”, “destinada a esconjurar e afastar o mau espírito”. 9

Em única imagem, toda uma história de poder e de conquista. Em um único olhar,

de um europeu de braços cruzados, e preguiçosamente encostado a uma árvore, toda uma

metáfora do domínio sobre o mundo indígena. Não se ouviriam mais os cantos sobre os

antepassados, sobre cabeças quebradas, sobre o sabor da carne do inimigo: com o fim das

cauinagens, todo um mundo de sonho e de conquista havia desaparecido para sempre.

7
Festa de embriaguez dos Coroados, in Spix e Martius, 1976 (1828/1829) : 185.
8
Léry, 1960 (1578): 191.
9
Spix e Martius, 1976 (1828/1829) : 200.
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