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A VOCAÇÃO

DE TODOS OS POVOS
‘De Vocatione Omnium Gentium’

TRATADO SOBRE A GRAÇA, A


PREDESTINAÇÃO E O LIVRE-ARBÍTRIO
A VOCAÇÃO
DE TODOS OS POVOS
‘De Vocatione Omnium Gentium’

TRATADO SOBRE A GRAÇA, A


PREDESTINAÇÃO E O LIVRE-ARBÍTRIO

São Próspero de Aquitânia


Pai da Igreja
“LEX ORANDI, LEX CREDENDI”
“A lei da fé é determinada pela lei da oração”
São Próspero de Aquitânia

Venham, fiéis, veneremos Próspero, este novo Pai


da Igreja, filho da Aquitânia, glória dos gauleses,
imitador dos Santos Apóstolos! /
De toda ameaça contra a ortodoxia da Fé
ele guarda os que lhe clamam, confiantes! /
Glória a Quem te deu esse conhecimento! /
Glória Àquele que te iluminou! /
Glória, Próspero, Àquele que nos salvou
por tuas orações!

Hino a São Próspero de Aquitânia


(ortodoxo)
Título original:
‘DE VOCATIONE OMNIUM GENTIUM’

Projeto geral da Fraternidade Laical São Próspero


[www.ofielcatolico.com.br]
• Tradução de Henrique Sebastião de The Call of all Nations [QUASTEN, Johanes;
PLUMPE, Joseph C. Ancient Christian Writers: The call of all nations by
St. Prosper of Aquitaine. London: The Newman Press, 1952]:
• Revisão técnica e cotejo com os originais latinos: Igor Andrade
• Revisão ortográfica e diagramatical: Silvana Sebastião
• Projeto gráfico, diagramação e capa: Estúdio São Próspero

Dados de catalogação da publicação


______________________________________________________

SÃO PRÓSPERO DE AQUITÂNIA, 390/403–463.


A vocação de todos os povos/São Próspero de Aquitânia
Rio de Janeiro: Centro Dom Bosco, 2020

Título Original: De vocatione omnium gentium.


Proibida a comercialização: edição exclusiva para uso dos estudantes do
Curso Livre em Teologia pela Fraernidade Laical São Próspero

1. Patrística - Catequese - Autores cristãos - Catolicismo - Doutrina cristã -


Teologia - Moral cristã
______________________________________________________
Índice para catálogo sistemático:
Pais da Igreja : Catequese : Cristianismo : Doutrina católica

FRATERNIDADE LAICAL S. PRÓSPERO


R. Luis Guenther, 228 – Tel.: (47) 9-9994-1835
89280-202 – São Bento do Sul - SC
www.ofielcatolico.com.br
ÍNDICE

Breve introdução ao autor e sua obra ........................................ 17

A VOCAÇÃO DE TODOS OS POVOS


– LIVRO I –

CAPÍTULO I
A matéria deste livro trata do erro daqueles que sustentam que
pregar a graça significa negar o livre-arbítrio. .......................... 27

CAPÍTULO II
Em toda alma humana, naturalmente há alguma vontade: seja
sensitiva, animal ou espiritual. .................................................. 28

CAPÍTULO III
A vontade sensual. ...................................................................... 29

CAPÍTULO IV
A vontade animal, que nada alcança acima da glória temporal, a
não ser que o dom de Deus nela acrescente uma sabedoria
superior. ...................................................................................... 30
CAPÍTULO V
Todos os gentios receberam, nas coisas criadas, os preceitos da
Lei divina, de modo que sua idolatria é injustificável. ............. 32

CAPÍTULO VI
Quão fraca é a vontade não regida pela vontade imutável. A boa
vontade é obra de Deus. ............................................................. 33

CAPÍTULO VII
Triste condição a do homem, após a queda de Adão; todavia,
quando redimida pela Piedade divina, ainda que não se torne
substancialmente uma nova criatura, a sua substância é renova
da e reparada. ............................................................................. 35

CAPÍTULO VIII
Deus, por sua graça que cura, não tira do homem o livre-arbí-
trio. Mas se Ele não operar em nós, não seremos partícipes da
sua Santidade. ............................................................................. 37

CAPÍTULO IX
Quando as Escrituras falam dos bons ou dos iníquos, dos elei-
tos ou réprobos, mencionam as classes de homens de tal modo
que parece que ninguém é omitido. .......................................... 43

CAPÍTULO X
As Escrituras falam dos eleitos e dos réprobos como ‘um povo’ ;
como se falassem das mesmas pessoas. .................................... 52

CAPÍTULO XI
As Escrituras falam de homens de diferentes tempos como se
fossem da mesma geração. ......................................................... 55
CAPÍTULO XII
Quando o Apóstolo diz ‘... quer que todos os homens sejam
salvos’ , tal afirmação deve ser entendida em todo o seu
significado. ................................................................................. 56
CAPÍTULO XIII
Não podemos entender nesta vida um profundo mistério: por-
que a graça Salvífica de Deus passa por certos homens pelos
quais a Igreja suplica. ................................................................. 59

CAPÍTULO XIV
Na dispensação das obras de Deus, muitas vezes as causas das
coisas são ocultas, e apenas os efeitos são manifestos. ............ 61

CAPÍTULO XV
Não podemos atribuir a salvação dos eleitos e a reprovação dos
ímpios aos seus próprios méritos: “não nos é dado conhecer as
razões de tal diferença”. ............................................................. 64

CAPÍTULO XVI
O Juízo inescrutável de Deus na eleição das crianças. ............. 65

CAPÍTULO XVII
As conversões de ímpios em situações extremas são uma prova
de que a graça é imerecida e de que os juízos de Deus são
inescrutáveis. ............................................................................. 66

CAPÍTULO XVIII
A graça, sem a qual não são possíveis os bons méritos, é dom
imerecido, dado unicamente pela vontade de Deus. .............. 70

CAPÍTULO XIX
O que é a natureza sem a graça. ................................................ 72

CAPÍTULO XX
Nosso Senhor, em sua profunda Misericórdia, deseja salvar to-
das as nações e opera para sua salvação, mas ninguém aceita
sua Palavra. ................................................................................. 73
CAPÍTULO XXI
Não devemos procurar saber por que Deus elege alguns e não
outros, nem por que no passado deixou de lado todos os gentios
e escolheu apenas Israel. ........................................................... 76

CAPÍTULO XXII
Os que veem no mérito a razão pela qual Deus distingue eleitos
e não eleitos dizem que ninguém é salvo gratuitamente, mas
apenas por justiça. O caso dos bebês refuta essa posição. ..... 78

CAPÍTULO XXIII
Todo mérito humano, desde o início da fé até a perseverança
final, é dom divino. ................................................................... 81

CAPÍTULO XXIV
Deus é o Autor de todo bem no homem pela graça. ................. 87

CAPÍTULO XXV
O problema trazido pelo fato de um homem receber a graça e
outro não recebê-la, não podemos resolver. A resposta não está
no seu livre-arbítrio. .................................................................. 100

– LIVRO II –

CAPÍTULO I
Três pontos são certos neste assunto: Deus quer que todos os
homens sejam salvos; o conhecimento da Verdade e a salvação
vêm pela graça; os juízos de Deus são inescrutáveis. .............. 105

CAPÍTULO II
As Escrituras ensinam que Deus deseja que todos os homens
sejam salvos. .............................................................................. 106
CAPÍTULO III
Não podemos saber por que Deus decretou atrasar o chamado
de algumas nações. .................................................................... 109

CAPÍTULO IV
No passado, a bondade de Deus atraiu todos os homens à sua
adoração através das coisas criadas, mas a Israel atraiu de modo
especial, através da Lei e dos Profetas. ..................................... 111

CAPÍTULO V
Os gentios que agradaram a Deus foram destacados por um
espírito gratuito de fé. ............................................................... 114

CAPÍTULO VI
Mesmo nos nossos tempos a graça não é dada a todos os ho
mens na mesma medida. .......................................................... 115

CAPÍTULO VII
A desigualdade dos dons divinos não vem dos méritos das obras
anteriores, mas da liberalidade de Deus. ................................ 116

CAPÍTULO VIII
Todo o que recebe a graça não tem mérito de sua parte. ........ 118

CAPÍTULO IX
Não devemos investigar a causa dos diferentes tempos da graça
[Kairós]. ..................................................................................... 144

CAPÍTULO X
Ao longo dos séculos, a Misericórdia de Deus proveu o alimento
para o corpo e o auxílio para as almas dos homens. ................ 141

CAPÍTULO XI
Os homens recebem, lentamente e pouco a pouco, o que lhes
foi decretado pela liberalidade divina. .................................... 123
CAPÍTULO XII
A liberdade sob a graça. .......................................................... 126

CAPÍTULO XIII
A bondade divina não auxilia somente os santos, mas também
os ímpios, como fez antes do Dilúvio. ...................................... 127

CAPÍTULO XIV
Desde os tempos do Dilúvio até a vinda de Cristo, havia sinais
da graça e figuras dos milagres e Cristo, embora a graça que
agora inunda o mundo ainda não tivesse fluído tão
abundamente. ........................................................................... 129

CAPÍTULO XV
Os homens de agora não nascem com uma natureza superior ao
que era antes de Cristo; em verdade, no tempo do Advento do
Senhor, a iniquidade era maior, para manifestar melhor a
graça de Deus. ........................................................................... 132

CAPÍTULO XVI
Cristo morreu por todos. .......................................................... 137

CAPÍTULO XVII
As nações que ainda não viram a graça de Nosso Salvador serão
chamadas ao Evangelho no tempo designado. ....................... 140

CAPÍTULO XVIII
Nos séculos anteriores, o mistério do Chamado à fé estava
escondido dos gentios, mas não dos profetas. ........................ 141

CAPÍTULO XIX
Em todos os tempos Deus quer salvar todos os homens. ....... 144
CAPÍTULO XX
Objeção do caso de bebês contra o texto ‘quer que todos os
homens sejam salvos’. .............................................................. 145

CAPÍTULO XXI
Deus é justo quando rejeita bebês não batizados, tanto nesta
vida quanto na próxima, por causa do Pecado original. ......... 146

CAPÍTULO XXII
A Justiça Divina mensura, para cada um, o seu próprio
infortúnio. ................................................................................. 149

CAPÍTULO XXIII
Os filhos que morrem infantes recebem a graça geral concedida
aos pais. ..................................................................................... 150

CAPÍTULO XXIV
Não podemos encontrar uma justa razão para queixa quanto
aos diferentes destinos das crianças que, em todos os outros
aspectos, são iguais; antes, há aí uma forte prova da Justiça de
Deus e da graça de Cristo. ........................................................ 153

CAPÍTULO XXV
Com sua graça geral dada a todos, Deus sempre quer que todos
os homens sejam salvos; mas a sua graça especial não é conce-
dida a todos. .............................................................................. 154

CAPÍTULO XXVI
Em toda justificação a graça é o fator principal, enquanto a
vontade humana é secundária, unida à graça, cooperando
com Deus; a graça prepara a vontade do homem para esta
cooperação. ............................................................................... 155
CAPÍTULO XXVII
A graça é a causa do consentimento de nossa vontade, não so-
mente pela Doutrina e pelo esclarecimento, mas também
através do terror e do medo. ..................................................... 157

CAPÍTULO XXVIII
Os homens fiéis que, pela graça de Deus, creem em Cristo,
ainda permanecem livres para deixar de crer; e aqueles que
perseveram ainda podem se afastar de Deus. ......................... 159

CAPÍTULO XXIX
Deus está cumprindo sua Promessa de abençoar a todos os po-
vos todos os dias, para não deixar escusas aos réprobos, nem
dar aos eleitos razão para se gloriarem de sua justiça. ........... 163

CAPÍTULO XXX
Recapitulando o primeiro capítulo deste Livro Segundo. ...... 165

CAPÍTULO XXXI
Em todas as eras, a bondade geral de Deus deu graça a todos
homens, mas em medidas diversas. ........................................ 166

CAPÍTULO XXXII
Entre os fiéis, existem diferentes graus dos dons dados por
Deus, e isso não se deve ao mérito, mas ao Juízo justo e oculto
de Deus. ..................................................................................... 167

CAPÍTULO XXXIII
Nenhum dos eleitos está perdido, mas todos os que foram
escolhidos desde toda a eternidade alcançarão a salvação. ... 168
CAPÍTULO XXXIV
Embora o Desígnio de Deus sobre a salvação dos eleitos seja
imutável, não é inútil trabalhar para adquirir o mérito das boas
obras, e perseverar na oração. ................................................. 172

CAPÍTULO XXXV
Os eleitos recebem a graça não para deixá-los ociosos, ou para
liberá-los dos ataques do Inimigo, mas para capacitá-los a agir
bem e a vencer o Inimigo. ......................................................... 173

CAPÍTULO XXXVI
A eleição não dispensa a aplicação da oração; pelo contrário,
esta alcança a sua realização pela oração e pelas boas obras. . 175

CAPÍTULO XXXVII
De nenhum homem pode-se dizer, antes de sua morte, que
compartilhará da glória dos eleitos; por outro lado, não há razão
para desespero pela conversão de qualquer homem caído. .. 176

BIBLIOGRAFIA ........................................................................ 179


BREVE INTRODUÇÃO
AO AUTOR E SUA OBRA 1

SÃO PRÓSPERO DE AQUITÂNIA, santo leigo, também cha-


mado Próspero Tiro, é um Pai da Igreja e Doutor da Igreja2 pouco
conhecido, e que até o presente momento não havia tido nenhum
de seus preciosos escritos publicado em português. Saiba de ante-
mão o leitor que tem em mãos, pois, uma obra inédita e de grande
valor teológico, como também histórico.
Próspero nasceu na província romana da Aquitânia (atual
Limoges), França, entre os anos os anos 390 e 403. Seus escritos
revelam sua assombrosa erudição e capacidade de síntese, e evi-
denciam que desde a juventude ele se aplicou a todos os ramos do
aprendizado, tanto os sagrados quanto os seculares. Algumas fon-
tes afirmam que tenha se casado (já que escreveu o poema Conjugis
ad uxorem: ‘De um marido à sua esposa’). Fato é que, em razão de
sua pureza de vida e dos seus modos exemplares, escritores do seu
tempo testemunham que se tratava de um homem santificado e
venerável. Por seus trabalhos na França contra os hereges semipe-
lagianos, tornou-se o mais forte colaborador de Santo Agostinho,

1. Com dados históricos extraídos da introdução de QUASTEN, Joha-


nes; PLUMPE, Joseph C. Ancient Christian Writers: The call of all
nations by St. Prosper of Aquitaine. London: The Newman Press, 1952.
2. São Próspero de Aquitânia possui o título de Doutor da Igreja entre
os Cônegos Regulares de Latrão.
Breve introdução ao Autor e sua obra

com quem se correspondia e a quem admirava com devoto ardor:


de fato, ele foi chamado “O Melhor Discípulo de Agostinho”3.
São Próspero debruçou-se, com grande propriedade, sobre
alguns dos temas mais difíceis da Teologia, como a predestinação
dos santos e o dom da perseverança. Assim como hoje, também no
seu tempo ocorriam intensas disputas internas na Igreja, ainda que
as pelejas daquela época fossem mais honestas que as dos nossos
dias, pois eram abertas e travadas entre lados assumidamente opos-
tos: em outras palavras, os inimigos estavam fora da Igreja.
Ocorre que, como seria inevitável, os inimigos de Agostinho
também se voltaram contra Próspero, publicando sobre os “erros”
que lhe atribuíam, e espalhavam tais escritos amplamente, entre
o povo. Diante disso, São Próspero, com admirável humildade e
mansidão genuinamente cristãs (virtudes não muito comuns aos
debatedores daquela época) respondeu a todas as acusações com
autoridade e assombrosa argumentação fundamentada em fatos e
na genuína Doutrina da Igreja, abstendo-se de asperezas e críticas
pessoais. Este foi o início da sua fama como grande apologeta.
São Próspero permaneceu leigo até o fim de sua vida, mas
conviveu com monges, os quais eram instruídos por ele; reco-
nhecido como homem de grande virtude e possuindo talentos
e conhecimentos extraordinários, lidou com questões delicadas
com um discernimento que terminou por torná-lo notável tam-
bém entre o alto clero. O Papa Leão I (São Leão Magno), ao ser
eleito, no ano 440, convidou-o para ir a Roma, e então fez dele o
seu secretário de confiança, empregando-o para tratar de alguns
dos assuntos mais importantes da Igreja daquele tempo.

3. GREEN, W. H. Alexander W. M. Publications in classical Philology.


California: University of California Press, 1944, p.328.

18
São Próspero de Aquitânia

Pelo trabalho incansável de São Próspero é que foi final-


mente esmagada, inapelável e definitivamente, a heresia pelagiana,
a qual ganhara muita força e um grande número de adeptos prin-
cipalmente entre os clérigos, trazendo um grande perigo para as
almas; não há nenhuma dúvida de que a derrocada desses hereges
se deu pelo zelo, sabedoria, persistência e humildade de Próspero
de Aquitânia, um leigo apaixonado por Cristo e seu Corpo Místi-
co, em cuja defesa não media esforços.
A leitura desta sua obra vai revelar que este Padre da Igre-
ja destruiu por completo, mais de mil anos antes do nascimento
de Calvino, também a heresia calvinista, e, juntamente com esta,
os argumentos de todos aqueles que afirmam e sustentam, ainda
hoje, que a salvação fora da Igreja é possível. Em nossos dias, mui-
tos o ensinam dentro da própria Igreja, e o fazem com veemência,
numa proposta de “ecumenismo” falsa e contrária à Sã Doutrina,
conforme transmitida desde os Apóstolos e pregada pelos santos
de todos os tempos. De fato, todas as heresias parecem ter uma
mesma raiz, com muitos pontos em comum, desde o pelagianis-
mo, passando pelo gnosticismo e chegando à moderna teologia
da libertação. A leitura de São Próspero de Aquitânia é essencial
para combater a todos os inimigos da Fé verdadeira, tanto externos
quanto internos, desde progressistas até falsos tradicionalistas.

Sobre a obra
DE VOCATIONE OMNIUM GENTIUM é o primeiro tra-
tado da literatura cristã antiga sobre o problema da salvação dos
infiéis. Um trabalho que despertou a ira de hereges e gerou con-
trovérsia dentro da Igreja, escrito contra os semipelagianos no ano
450, provavelmente já em Roma.

19
Breve introdução ao Autor e sua obra

O décimo sexto Concílio de Cartago, em 418, selou com


uma declaração solene a defesa bem-sucedida de Santo Agostinho
da doutrina católica sobre a graça, contra Pelágio e seus seguidores,
condenando os erros pelagianos que atribuíam as boas obras do
homem ao seu livre-arbítrio e não à assistência gratuita de Deus, e
que, mesmo quando permitiam a atividade da graça, a concebiam
apenas como ajuda exterior, de qualquer modo, proporcional aos
méritos anteriores do homem.
Mas surgiram dificuldades entre os próprios discípulos de
Agostinho, mesmo durante sua vida, sobre alguns pontos do seu
ensino. Há duas declarações de espanto entre os monges de Ha-
drumetum, norte da África: se o início de todas as boas obras vem
da graça e não do homem, e igualmente a perseverança final é dom
de Deus e não resultado dos esforços humanos, isto não anula ou
torna inútil o esforço do homem pela virtude?
Ao ser consultado sobre o assunto, Agostinho respondeu
por dois tratados. No De Gratia et libero arbitrio, estabeleceu o
fato de que o livre-arbítrio do homem permanece intacto, sendo
aperfeiçoado pela graça; no De correptione et gratia, ele explicou a
natureza, a ação e a distribuição da graça à luz do nosso estado his-
tórico: o gênero humano, depois do Pecado original, caiu em des-
graça; logo, é por misericórdia que Deus escolhe livremente seus
eleitos, predestinados. Tais explicações satisfizeram os monges de
Hadrumetun, mas geraram novas controvérsias nos centros mo-
násticos da Gália do Sul. Lá, a oposição dos Massilienses (monges
de Marselha) desenvolveu-se numa posição heterodoxa que sécu-
los depois se tornaria conhecida como o semipelagianismo.
A história dessa reação contra o ensinamento de Santo
Agostinho sobre a predestinação e sobre sua conexão com a dou-
trina da graça situa-se em dois períodos de controvérsia acalora-
da. A primeira dessas controvérsias, preparada e posta em marcha

20
São Próspero de Aquitânia

durante os últimos anos da vida do Bispo de Hipona, explodiu


violentamente quase que imediatamente após a sua morte, em 430.
Ocorreu em alguns mosteiros da Gália do Sul, em Marselha e Le-
rins. Aí entra a importância de São Próspero de Aquitânia: este
leigo se tornaria o principal defensor da doutrina de Agostinho so-
bre a graça contra a nova heresia. Sua Epistola ad Augustinum, pela
qual expôe ao mestre os novos erros dos monges e pede conselho
e direção, junto com o pedido de seu amigo Hilário, é que vai oca-
sionar a primeira e última intervenção direta do Bispo de Hipona,
já aos seus setenta e cinco de idade, na controvérsia semipelagiana:
os dois livros conhecidos como De praedestinatione sanctorum e De
dono perseverantiae.
Do lado semipelagiano, os principais adversários do agosti-
nismo foram João Cassiano, fundador e abade do mosteiro de São
Vitor de Marselha e autor das famosas Conferências, e São Vicente
de Lerins, que escreveu o Commonitorium com um tom fortemen-
te antiagostiniano, e provavelmente estava ligado à composição e
circulação do panfleto conhecido como Obiectiones Vincentianae4.
A primeira fase das controvérsias terminou logo após a morte de
Cassiano, em 435. Em outro escrito, intitulado Praeteritorum Se-
dis Apostolicae episcoporum auctoritates de gratia Dei, redigido antes
de 441-442, São Próspero vai defender mais uma vez os pontos
da doutrina católica envolvidos na controvérsia, mas não chega a
abordar ainda os problemas mais profundos e difíceis envolvendo
a questão toda.
Providencialmente, seguiu-se então um período de relativa
calma, que deu a Próspero a oportunidade para uma revisão tran-

4. Cf. Pro Augustino responsiones ad capitula obiectio­num Vincentia-


narum, por São Próspero de Aquitânia (Conf. MORESCHINI, C. &
NORELLI, E. Manual de literatura cristã antiga grega e latina. São Pau-
lo: Santuário, 2005).

21
Breve introdução ao Autor e sua obra

quila dos materiais que tinha certamente rascunhado sobre toda


a feroz disputa. Este De vocatione omnium gentium foi fruto des-
ses estudos e reflexões. Questiona-se se esta publicação foi, apesar
do seu tom notadamente mais moderado e conciliatório, a oca-
sião para reviver as antigas controvérsias ou não, mas o fato é que
uma nova explosão de antiagostinianismo logo se seguiu, quando
o monge Fausto de Riez, que depois se tornou abade em Lerins
e foi Bispo de Riez (em aprox. 462), publicou o seu De Gratia
Dei. Depois de repudiar o velho erro pelagiano e afirmar sua fé na
graça de Deus, esta obra vai desgraçadamente reafirmar as duas
teses semipelagianas: 1) no processo de salvação do homem, a ini-
ciativa pertenceria ao homem, caso contrário, o seu livre-arbítrio
seria destruído; 2) assim também, pela mesma razão, se daria com
relação à perseverança final.
Este documento encontrou pouca oposição na França (São
Próspero já não se encontrava mais lá, e talvez já estivesse morto,
então), mas foi confrontado por um outro adversário decidido no
norte da África, São Fulgêncio de Ruspe. O desfecho desta últi-
ma fase do semipelagianismo foi, depois de longas discussões e
demoras causadas pelas invasões bárbaras no sul da Europa, fi-
nalmente selado no Concílio de Orange, em 529, no qual São
Cesário de Áries foi a figura principal. As decisões deste Cocílio,
particularmente em seus capítulos 9 a 25, foram tomadas princi-
palmente do Liber Sententiarum ex Augustino Delibatarum, de São
Próspero de Aquitânia.
Vemos, assim, que o autor deste De Vocatione, “o Melhor
Discípulo de Agostinho”, mesmo depois da morte, foi quem deci-
diu a grande disputa e derrotou finalmente esses aguerridos e ter-
ríveis adversários da Igreja, os hereges pelagianos e semipelagianos,
colocando uma pedra definitiva sobre a questão. Mais do que isso,
vemos que um importante Concílio da Igreja tomou sua decisão

22
São Próspero de Aquitânia

dogmática baseada nas explicações de um leigo exemplar. Um leigo


que em tempos difíceis ensinava aos clérigos, e que chegou a ditar
ao Papa da Igreja – e um Papa santo, São Leão Magno – alguns
de seus documentos, como as famosas Cartas contra Eutiques.

* * *
Lex orandi, lex credendi
Essa importante frase/axioma foi citada e continua aparecendo em
documentos da Igreja5 e em diversas obras católicas devocionais e
teológicas de valor4, usada muitas vezes por autores consagrados,
mas, infelizmente, muitas vezes é equivocadamente atribuída a ou-
tros autores. Pois, de fato, o Pai da Igreja que nos deu este santo e
indefectível axioma foi São Próspero de Aquitânia.
A forma completa é “Legem credendi lex statuat supplicandi”,
ou seja, “A lei da fé é determinada pela lei da oração” (originalmen-
te, Próspero usou o termo equivalente lex supplicandi no lugar de
lex orandi). Pois a oração da Igreja, segundo ensina esse Doutor, é
uma fonte autorizada de Teologia, na medida em que a salvação
vem inteiramente por iniciativa de Deus e, já em sua liturgia, a
Igreja sempre rezou pela conversão de infiéis, judeus, hereges, cis-
máticos e de todos os que não buscam a verdadeira Fé.

Por Henrique Sebastião

5. Um documento oficial da Santa Sé do século V, o Indiculus, que era


uma compilação de todas as declarações autorizadas dos Papas sobre o
assunto da graça, já o continha. (Indiculus, cap.8; Denz., n.246 [Jour-
nal by the Slaves of the Imaculate Heart of Mary, St. Benedict Center,
N. H., disp. em: catholicism.org/lex-orandi-lex-credendi.html – acesso
26/7/2020]).

23
Observações:

* A tradução da Bíblia Sagrada utilizada nesta obra é a do Padre


Manoel de Matos Soares (da Vulgata), pela Pia Sociedade de São
Paulo em 1956, salvo em certos casos, específicos, em que a citação
do autor no texto original em latim difere demasiado desta versão.
Nos casos em que a citação é feita da Septuaginta, o assinalamos
em nota com a sigla LXX.

** Neste volume foram utilizados colchetes para as observações ou


anotações complementares feitas pelo tradutor ou pelo revisor dos
textos, e os parênteses curvos para as observações incluídas pelo
próprio autor à sua obra, presentes no texto latino.
A VOCAÇÃO
DE TODOS OS POVOS

– LIVRO I–
SOBRE A GRAÇA, A PREDESTINAÇÃO
E O LIVRE-ARBÍTRIO.
CAPÍTULO I
A matéria deste livro trata do erro daqueles
que sustentam que pregar a graça
significa negar o livre-arbítrio.
1. Entre os defensores do livre-arbítrio e os que pregam a
graça de Deus, um grande e difícil problema tem sido debatido há
muito tempo. O ponto em questão é se Deus deseja que todos os
homens sejam salvos; e, como isso não pode ser negado, surge ine-
vitavelmente a pergunta: por que, então, a vontade do Todo-Po-
deroso não se realiza? Quando se diz que isso acontece por causa
da vontade dos homens, parece que está se descartando a graça;
e, se a graça é uma recompensa pelo mérito, claramente não é um
dom gratuito, mas algo devido aos homens. E, novamente, surge
a pergunta: por que esse dom, sem o qual ninguém pode alcançar
a salvação, não é conferido a todos, por Aquele que a todos quer
salvar? Em consequência, não haverá fim para as discussões em
nenhum dos campos sem a distinção entre o que pode ser conhe-
cido e aquilo que permanece oculto.

2. Nesse conflito de opiniões, procurarei, com a ajuda de


Nosso Senhor, investigar em que medida e moderação devemos
manter nossos pontos de vista. Aplicarei, neste estudo, meus pou-
cos talentos, num assunto sobre o qual minhas próprias convicções
são, penso, moderadas. Assim, se nestes meus escritos sobre esses
assuntos eu puder evitar tudo o que é ofensivo ou errado, poderá
ser útil, não só a nós como também aos outros, ter encontrado um
limite o qual não devemos exceder.

Antes de tudo, é preciso estudar as operações da vontade


humana em seus diferentes graus. Algumas pessoas estabelecem
uma divisão insustentável entre a vontade dos homens e a graça
de Deus, defendendo que, ao se pregar a graça, nega-se o livre-
-arbítrio. Estes não percebem que poderia ser objetado, com igual
razão, que eles mesmos negam a graça quando consideram que
o livre-arbítrio não conduz a vontade humana, antes é conduzi-
do por ela. Pois se a vontade é suprimida quando não é fonte de
verdadeiras virtudes, também a graça é eliminada quando não é a
causa dos méritos. Comecemos agora, com o auxílio de Cristo, o
nosso tratado.

CAPÍTULO II
Em toda alma humana, naturalmente há alguma
vontade: seja sensitiva, animal ou espiritual.
3. Em toda alma humana, tanto quanto a podemos conhe-
cer, pelo intelecto ou pela experiência, há uma vontade que se ma-
nifesta de um modo ou de outro: ou deseja aquilo que lhe apetece,
ou se afasta do que lhe desagrada. Sobre esta vontade, seus movi-
mentos naturais, viciados pela enfermidade do Pecado Original,
são de dois gêneros, segundo o que, a vontade do homem é ou
sensitiva ou animal. Mas, quando a graça de Deus está presente,
um terceiro tipo é acrescentado por dom do Espírito. A vontade
então se torna espiritual e, graças a esse impulso mais elevado, rege
todos os seus afetos, de onde quer que possam surgir, segundo a lei
de uma razão justíssima.

28
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO III
A vontade sensual.
4. A vontade sensual1, a qual também podemos chamar de
carnal, não se eleva acima do impulso que nasce dos sentidos cor-
porais, como se dá no caso dos bebês; embora estes não tenham o
uso da razão, eles mostram que desejam algumas coisas e que não
querem outras. Quando veem, ouvem, cheiram, provam ou tocam,
amam aquilo que lhes deleita e odeiam o que os machuca. Agora,
o que mais é o amor, a não ser o querer? Ou o que mais é o ódio,
senão a aversão?

Eles [os bebês] também têm, portanto, uma vontade pró-


pria. São incapazes de prever ou deliberar, mas gostam de se ocu-
par com objetos que agradam os seus sentidos corporais, e assim
será até que a natureza racional os desperte para outro tipo de vida,
quando as funções do corpo estarão mais desenvolvidas e eles fo-
rem estimulados a usar seus próprios membros para realizar os ser-
viços necessários, e não mais por ordem de outrem, mas de acordo
com as suas próprias decisões.

1. Lat. Voluntas sensualis: a vontade ou apetite sensível que tende na-


turalmente aos objetos sensíveis, de modo semelhante ao dos animais
irracionais (por exemplo, o desejo por alimento). Não se refere a um
apetite inferior, desordenado ou pecaminoso, mas simplesmente aos
sentidos externos ou corpóreos. É distinto do apetite racional ou da von-
tade propriamente dita. A respeito de termos como este, a Escolástica
aperfeiçoará uma nomenclatura própria e mais organizada.

29
A vocação de todos os povos – Livro I

CAPÍTULO IV
A vontade animal – que nada alcança acima da
glória temporal, a não ser que um dom de Deus
nela acrescente uma sabedoria superior.
5. A partir desse apetite sensível –, que é a única encontra-
da nos adultos [mentalmente] insanos e que continuam desprovi-
dos do uso da razão –, o homem eleva-se ao nível da vontade ani-
mal2. Embora nesse estágio a vontade possa, antes de ser guiada
pelo Espírito de Deus, elevar-se acima dos seus impulsos sensuais,
mesmo assim, se não possuir a divina caridade, vai ocupar-se de
coisas terrenas e perecíveis. Quando dominados por esse tipo de
apetite, é verdade que os corações humanos já não sofrem a ver-
gonhosa escravidão dos deleites corporais, e governam melhor os
seus desejos de acordo com as leis da justiça e da probidade. Não
merecem, porém, recompensa maior do que a glória terrena; pois,

2. Voluntas animalis. São Próspero entende por ‘vontade animal’ a


vontade propriamente dita, ligada ao agir racional (que conta com algo
além do mero desejo sensitivo). O que é chamado pelo Santo de ‘ani-
malem’ exclui o que não é conduzido pela razão; a isto se opõe à ‘vonta-
de espiritual’ (cap. 6), fazendo eco ao que diz São Paulo Apóstolo, que
a graça do Espírito santifica o homem, destituindo o animal (cf. 1Cor
2,14: ‘...o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois
para ele são loucuras. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito
que se podem ponderar’). É ‘animal’ não porque visa apenas os objetos
sensíveis, como o apetite sensitivo, mas porque em todos os objetos não
alcança um nível espiritual, superior, permanecendo confinada às coisas
perecíveis. É ‘natural’, no sentido de não ser sobrenaturalizada ou es-
piritualizada; refere-se, então, à vontade puramente humana ou natural,
chamada pelo Santo, por isso, ‘animale’, não espiritual (trad. de 1Cor
da ed. Ave Maria).

30
São Próspero de Aquitânia

embora consigam viver a vida presente de maneira mais aperfei-


çoada, mesmo assim não são ainda capazes de colher a recompen-
sa da felicidade eterna. Apenas por aquelas das suas ações justas e
bons esforços, eles ainda não vivem para louvor e honra d’Aquele
que dá o poder de verdadeiramente promover uma sabedoria su-
perior, obtendo maior glória do que outros homens comuns.

Alguns, de fato, aplicaram suas mentes não apenas à práti-


ca das artes úteis e ao estudo das disciplinas liberais, mas também
à busca do Bem supremo. Estes viram e compreenderam o invi-
sível de Deus pela investigação, e vislumbraram com o intelecto
aquilo que foi criado. Mas, deixando de agradecer a Deus e de
reconhecê-lo como o Autor dessa faculdade, professaram-se sá-
bios a si próprios; isto é, eles se gloriam não em Deus, mas em si
mesmos, como se tivessem alcançado o conhecimento da Verdade
através dos esforços do seu próprio raciocínio. Tornaram-se vaido-
sos em seus pensamentos, e o que haviam ganhado à luz da graça
de Deus, perderam novamente na cegueira de seu orgulho. De-
caíram da luz celestial para as suas próprias trevas, isto é, do bem
imutável e eterno para a sua própria natureza instável e corruptí-
vel. Tais homens, portanto, retornam ao amor próprio3. Eles estão
tão satisfeitos consigo mesmos que, independentemente do que
julguem digno de louvor em suas próprias pessoas, não se referem
a Deus como doador desses dons; eles o reivindicam como sendo
fruto de seus próprios méritos e o atribuem aos seus estudos e à
sua própria vontade. Consequentemente, permanecem abaixo do
nível da vontade espiritual. Eles não possuem nada em si mesmos
para levá-los à vida eterna, mas em verdade começam a corromper
em seus corações aqueles dons naturais de Deus, e ao invés de
fazer bom uso nos costumes, passam a inumeráveis vícios.

3. Cf. Rom 1, 20 ss

31
A vocação de todos os povos – Livro I

CAPÍTULO V
Todos os gentios receberam, nas coisas criadas,
os preceitos da Lei divina, de modo
que sua idolatria é injustificável

6. Está escrito que, “quando o Altíssimo espalhava as gen-


tes, na dispersão dos filhos de Adão, instaurou limites aos gentios
segundo o número dos anjos de Deus. E fez a porção do povo do
Senhor” a partir de “Jacó; o montante de sua herança foi Israel”4.
Também está escrito que falou o Senhor ao povo de Israel: “Sereis
para mim santos, porque Eu, o Senhor, sou Santo, e vos separei
de todos os outros povos5 para serdes meus”6. Está ainda escrito no
Livro de Ester que Mardoqueu disse: “Sim, o Senhor salvou o seu
povo, o Senhor nos arrebatou de todos esses males, Deus realizou
prodígios e maravilhas como jamais houve entre as nações”. E por
isso “estabeleceu dois destinos: um em favor de seu povo, outro para
os gentios”7. Também Paulo e Barnabé disseram:

Nós também somos mortais, homens semelhantes a vós, mas


vos anunciamos a Boa Nova da conversão para o Deus Vivo,
deixando todas essas coisas vãs! Ele fez o céu, a terra, o mar, e

4. Cf. Dt 32,8.
5. Ou ‘os gentios’. No Antigo Testamento, o Povo de Israel foi eleito
como o ‘Povo de Deus’. Os gentios, nesse contexto são ‘alter’; são os
outros povos, os povos não eleitos – por razões ocultas e inexcrutáveis:
um tema complexo sobre o qual o autor vai se debruçar como um dos
problemas centrais desta obra.
6. Cf. Lv 20,26.
7. Est 10,3f-3g. (10,9-10).

32
São Próspero de Aquitânia

tudo o que neles existe. Ele permitiu, nas gerações passadas,


que todas as gentes seguissem seus próprios caminhos.8

Essas e muitas outras verdades semelhantes são ditas pelas


Escrituras, segundo as quais cremos e com devoção confessamos.
Contudo, nunca houve o homem, como um todo, sem o cuidado
da Divina Providência. E, embora a mesma Providência tenha es-
colhido guiar o povo eleito, por meio de ordenanças especiais, pela
via da correta conduta, Deus também não negou os dons de sua
benignidade a nenhum outro povo ou nação. A todos foram ensi-
nadas as lições dos Profetas e os preceitos da Lei, manifestamente
mediante as coisas criadas, pelos serviços que receberam destas, e
das lições que delas obtiveram. Portanto, eles não têm desculpas
por terem transformado em “deuses” os dons de Deus, nem por
terem transformado em objetos de adoração aquilo que foi criado
para o seu uso.

CAPÍTULO VI
Quão fraca é a vontade não regida pela vontade
imutável. A boa vontade é obra de Deus.
7. Até aquela gente que o Senhor, dentre todas as gentes,
havia separado para Ele, teria caído completamente na maldade,
não tivesse o desígnio da sua misericórdia tomado o cuidado de
sustentar os eleitos, que continuamente tropeçavam. As páginas
do Antigo Testamento estão repletas de histórias das deserções dos
israelitas, as quais demonstram com clareza que sempre foi devido
apenas à graça divina que nem todas aquelas pessoas se afastaram
do Senhor.

8. At 14,15-16.

33
A vocação de todos os povos – Livro I

8. Assim, a natureza humana [foi] viciada no primeiro ho-


mem pelo Pecado9; está sempre inclinada a se render aos apeti-
tes degenerados, mesmo que também esteja sempre cercada pelas
misericórdias que Deus concede, em seus preceitos e auxílios. Tal
natureza será, portanto, instável, incerta, inconstante, imprudente,
fraca para realizar e rápida para se arriscar cegamente por algum
desejo; ficará vaidosa quando for honrada, agitada com as neces-
sidades da vida; é inquieta e desconfiada; é mais desejosa das gló-
rias do mundo que das virtudes; mais solícita por reconhecimento
público do que por uma consciência tranquila; e, por todas essas
experiências, ficará mais infeliz ao apreciar o que recebeu, daquilo
que havia antes cobiçado, do que quando for privada de alguma
satisfação. De fato, nada nela possui vigor, apenas a tendência ao
perigo; por uma vontade inconstante [mutável], que não é gover-
nada pela vontade imutável, corre tanto mais rapidamente para o
pecado quanto mais aplica energia em alguma ação.

9. Enquanto o homem tiver prazer no que desagrada a


Deus, sua vontade será animal, pois mesmo quando sua ação é
moralmente boa, a sua vida permanece má se ele não vive para a
glória de Deus. Pois esta é a característica principal dos devotos,
que se gloriam no Senhor e não se amam a si mesmos sem Deus,
mas que amam neles a obra de Deus. Portanto, estes bem se amam
apenas se amam em suas pessoas a obra de Deus. Obviamente,
Deus também ama em nós o que Ele ele próprio opera em nós, e
odeia aquilo que em nós não foi feito por Ele. Se amamos a obra
de Deus em nós, amamos retamente, em nós, a boa vontade, que

9. A natureza humana foi viciada no primeiro homem pelo Pecado, não


ela [em si mesma], considerada filosoficamente, mas a natureza humana
original, a natureza humana com os dons preternaturais e supranaturais,
que procedeu das mãos de Deus, conforme era em Adão, porque ‘sem
vício fomos criados’ (Cf. AGOSTINHO, Retratações, L 1 c.15, n.6).

34
São Próspero de Aquitânia

certamente não seria louvável se não fosse obra de Deus. Mas o


que define o homem, além de sua má vontade, que não ama a boa
vontade que o supremo Jardineiro originalmente plantou nele? A
Verdade disse: “Toda planta que não foi plantada por meu Pai Ce-
leste será arrancada”10; deixando claro que somente não deve ser
desarraigado em nós aquilo que foi plantado pelo Pai.

A boa vontade é a primeira semente de todas as virtudes:


aquele que se abriga onde esta tem a sua origem, repousa na vonta-
de eterna e imutável e, assim, torna-se verdadeiramente espiritual.
Pois quem se une a Deus, constitui com Ele um só Espírito11. En-
tão, através dessa comunhão do Iluminante com o iluminado, do
Justificante e do justificado, do Rei e do súdito, toda ação é referida
a um fim; e essa mesma ação, assim referida a um fim, pertence a
ambos: Deus não pode ser tirado daquilo que Ele concedeu, nem
pode ser tirado do homem aquilo que recebeu de Deus.

CAPÍTULO VII
Triste condição a do homem, após a queda
de Adão; todavia, quando redimida pela
Piedade divina, ainda que não se torne
substancialmente uma nova criatura, a
sua substância é renovada e reparada.
10. Parece ser este o lugar, neste tratado, para colocar a per-
gunta: quando um homem tem a sua vontade convertida para uma

10. Cf. Mt 15,13.


11. Cf. 1Cor 6,17.

35
A vocação de todos os povos – Livro I

boa vontade, então é a vontade que estava nele corrigida, ou ele


recebe uma nova vontade, que não possuía antes, e que é contrária
à vontade antiga? Para clarear isso, esforcemo-nos em analisar o
assunto mais detalhadamente.

Todos nós fomos criados, no primeiro homem, sem ne-


nhum vício, e todos nós perdemos a integridade de nossa natureza
através do Pecado do mesmo primeiro homem. Daí seguiu-se a
mortalidade, daí as múltiplas corrupções do corpo e da alma, a
ignorância e as dificuldades, os apegos às coisas inúteis, os desejos
ilícitos, os erros sacrílegos, os medos vãos, os amores prejudiciais;
os prazeres profanos, os desígnios censuráveis e​​ uma multidão tão
grande de misérias quanto de crimes.

Com estes e outros males que atacam a natureza humana,


com a fé perdida e a esperança abandonada, o intelecto cego e
a vontade escravizada, ninguém encontra em si mesmo meios de
restauração. Embora alguns tenham tentado, guiados por sua razão
natural, resistir às mudanças, a vida de certa decência que levavam
aqui na Terra era estéril: sem adoração ao Deus verdadeiro, eles
não adquiriram verdadeira virtude e nem alcançaram a bem-aven-
turança eterna, mesmo que sob a aparência de virtude [que na ver-
dade] é pecado. Ninguém pode agradar a Deus sem Deus. E quem
não agrada a Deus, a quem agradará, senão a si mesmo e ao diabo?

Quando o homem foi espoliado [pelo diabo], não foi priva-


do da sua vontade, mas da sanidade da sua vontade. Pois o homem
não poderia ser expulso do seu estado de inocência a menos que ele
pecasse voluntariamente. Assim, sua natureza, que era boa, tornou-
-se qualitativamente má; e o movimento de sua alma, que não pode
existir sem algum amor, isto é, sem alguma vontade, não perdeu o
poder de desejar [apetite], mas mudou de afeto. O homem agora
abraça pelo desejo aquilo que deveria rejeitar pela razão. Quando,

36
São Próspero de Aquitânia

portanto, um homem retorna à devoção, aplica-se a ele o que foi


dito na Escritura; é “um sopro que passa e não volta”12, porque se
Deus não o convertesse, ele não voltaria; e quando ele se torna uma
nova figura e uma nova criatura, então nenhuma nova substância é
criada nele, mas a sua mesma, decaída, é restaurada. Nada mais lhe
é tirado, senão o vício, que ele não possuía por natureza.

CAPÍTULO VIII
Deus, por sua graça que cura, não tira do homem
o livre-arbítrio. Mas se Ele não operar em nós,
não seremos partícipes da sua Santidade.
11. Em Adão, nossa natureza existia sem vício, mas, por sua
desobediência voluntária, sobrevieram-lhe muitos males, os quais
foram transmitidos à sua posteridade, na qual ainda se multipli-
caram, e cada vez mais. A vitória sobre esses males e a sua total
erradicação só é possível pela graça do Salvador, que restaura a sua
própria obra com o seu trabalho mesmo. Pois, como diz São João
Apóstolo, “para destruir as obras do demônio é que o Filho de Deus
se manifestou” (1Jo 3,8): é Ele que rompe as correntes do prisio-
neiro, veste a nudez do espoliado, cura as feridas dos enfermos;
mas, em tudo isso, o homem também participa. Mas o homem
não pode enfrentar esse inimigo de fato sem um protetor; ele tem
que lutar contra quem já o derrotou, e, portanto, não deve confiar
em suas próprias forças, as quais, mesmo quando estavam intactas,
não foram suficientes para sustentá-lo. Busque então a vitória por
Aquele que sozinho é invencível, e que trouxe vitória a todos. E
se o homem busca a vitória, não deve duvidar de ter recebido esse

12. Sl. 77,39.

37
A vocação de todos os povos – Livro I

mesmo desejo de buscá-la d’Aquele a Quem está buscando. E não


deveria pensar que, por ser guiado pelo Espírito de Deus, não tem
mais o livre-arbítrio. Isso ele não perdeu, mesmo quando volunta-
riamente se rendeu ao diabo.

O diabo perverteu no homem o julgamento que acompa-


nha a vontade, mas não o retirou. E o que não foi levado por aque-
le que infligiu a ferida, menos ainda é destruído por Quem vem
curá-la: Ele [Cristo] cura a ferida, não remove a natureza. Mas o
que foi perdido na natureza não pode ser restaurado a não ser pelo
Autor dessa mesma natureza, aos olhos de Quem o que se perdeu
[também na natureza] não pereceu. Ele é Sabedoria eterna, Ver-
dade eterna, Bondade eterna, Justiça eterna; Ele é, em resumo, a
Luz eterna de todas as virtudes, e tudo o que é virtude, é Deus. A
menos que Ele opere em nós, não podemos ser participantes de
nenhuma virtude.

12. Sem essa Bondade, nada é bom; sem essa Luz, nada é
lúcido; sem essa Sabedoria ninguém é são13; sem essa justiça, nada
é reto. “Eu Sou, Eu Sou o Senhor, e fora de Mim não há nenhum
Salvador”14, disse Deus por Isaías; e falou Jeremias: “Eu sei, Senhor,
que o caminho do homem não está no seu poder, que o homem que
caminha não pode dirigir os seus [próprios] passos”15.

O homem mortal, nascido já corrompido segundo a carne


de Adão, não pode alcançar a dignidade espiritual do novo nasci-
mento, a não ser que seja movido pelo Espírito Santo. De fato, ele

13. Do latim original: “...sine hac sapientia nihil sanum”: a palavra


sanum (=são), aqui, pode também ter sentido de ‘salvo’. É esta, afinal,
a vocação de todos os povos: a salvação em Cristo. (N. do R.)
14. Cf. Is 43,11.
15. Cf. Jr 10,23.

38
São Próspero de Aquitânia

não pode sequer fomentar qualquer desejo, desde que não tenha
recebido de Deus o ardor desse desejo, sobre o qual Nosso Se-
nhor diz: “Eu vim trazer fogo à Terra; e que quero Eu, senão que
ele se acenda?” (Lc 12,49). Esse fogo é o Amor de Deus, que um
amante do mundo não pode conceber em seu coração escraviza-
do: esse está cheio de amor pelas coisas vãs, e mesmo se pudesse
escapar destas até certo ponto, e, elevando-se acima do tempo e
dos bens visíveis alcançar, através de seu próprio entendimento, os
bens eternos e invisíveis, mesmo que ele pudesse renunciar à ado-
ração de ídolos e desistir da adoração do céu e da terra e de todas
as criaturas deste mundo, mesmo assim ele não seria capaz de con-
ceber a fé e o amor de Cristo, porque ele ficaria conturbado, sem
entender tal humildade. Ele não superaria o escândalo com a visão
da Natividade e da Morte de Nosso Senhor. Pois a sabedoria do
mundo resiste à Sabedoria de Deus, bem como cega o orgulho dos
presunçosos. Agrada a Deus que, pela loucura de nossa pregação,
sejam salvos os que creem16. Portanto, aqueles que são arrogantes
em sua sabedoria mundana pensam que a Cruz de Cristo é coisa
para se rir, e não para adorar; e, quanto mais alto o homem se eleva
às realizações das ciências humanas, mais despreza a humildade e
a fraqueza de nossa pregação17.

13. Não é de se admirar que a filosofia dos pagãos se opo-


nha ao Evangelho da Cruz de Cristo, e que a erudição dos judeus
também lhe resista. Concluímos que nem os doutos, nem os incul-
tos de qualquer estirpe ou ordem, podem chegar a Deus, regidos
pela razão humana; mas todo homem que se converte a Deus é
primeiro instigado pela graça divina. Pois o homem não é luz para
si mesmo, nem pode queimar seu próprio coração com um raio de

16. Alusão a 1Cor 1,21.


17. Alusão a 2Cor 12,9.

39
A vocação de todos os povos – Livro I

sua própria luz. Se mesmo São João [Batista] –, do qual nenhum


homem nascido é maior –, não era a luz, porque ele não brilhava
com seu próprio brilho, mas recebera o poder de iluminar os ou-
tros pela verdadeira Luz, a qual ilumina todo homem que vem a
este mundo18; então que homem há que desistiria de suas opiniões
conflitantes, de seus tantos hábitos enraizados, tantos preconcei-
tos inveterados, baseando-se apenas em seu próprio julgamento
e auxiliado apenas pela palavra de algum doutor? Se assim fosse
possível, a graça consistiria apenas no cumprimento exterior da
doutrina, e toda a fé de um homem surgiria de sua própria vonta-
de. Se fosse esse o caso, então não haveria diferença entre a Graça
e a Lei; ora ninguém teria o espírito do perdão e da vida, se a letra
que mata permanecesse.

De fato, a lei ordena que umas coisas sejam feitas e outras


evitadas, mas não ajuda a fazer ou a evitar. Seu rigor é observado
não por livre escolha, mas por medo. Mas o Senhor, com o fim
não de destruir, mas de cumprir a Lei19, por sua graça fez com que
o Mandamento da Lei fosse consumado, e, por abundância de sua
clemência, suspendeu as justas penas, para não se vingar e punir,
mas para perdoar.

Por isso a mulher adúltera, a quem a Lei prescrevia que fos-


se apedrejada, foi libertada por Ele com verdade e Graça, quando
os executores da Lei, amedrontados com o estado de sua própria
consciência, deixaram a mulher, trêmula e culpada, ao julgamento
d’Aquele que veio buscar e salvar o que estava perdido. Também
por essa razão, Ele, curvando-se e inclinando-se ao nosso nível
humano e, concentrado na obra da nossa restauração, escreveu

18. Alusão a Jo 1,9.


19. Cf. Mt 5,17.

40
São Próspero de Aquitânia

com o dedo no chão20, a fim de esvaziar a Lei com seus decretos,


pela Graça, e para revelar-se a Si mesmo como Aquele que disse:
“Imprimirei a minha Lei no seu íntimo, ecrevê-la-ei nos seus co-
rações”21. Isso de fato Ele faz todos os dias, quando infunde sua
vontade nos corações daqueles a quem chama, e quando, com a
pena do Espírito Santo, reescreve a verdade misericordiosamente
nas páginas de suas almas, para a inveja do diabo.

14. Assim, sempre que a Palavra de Deus entra pelos ouvi-


dos do corpo físico através do ministério dos pregadores, a ação do
poder divino se funde com o som de uma voz humana, e Aquele
que inspira o ofício do pregador também é a força no coração do
ouvinte. Então, o alimento da Palavra se torna doce para a alma;
as antigas trevas são expulsas pela nova luz; a visão interior é liber-
tada do velho labirinto; a alma passa de uma vontade para outra e,
embora a vontade expelida perdure ainda por um tempo, a vontade
recém-nascida reivindica para si tudo o que há de melhor no ho-
mem, de modo que a lei do pecado e a Lei de Deus não habitem
da mesma maneira e juntas, no mesmo homem. Então, enquanto
a carne cobiça contra o espírito e o espírito resiste aos desejos da
carne, vai o tentador tentar emboscar o homem através de objetos
exteriores; mas a alma, agora munida do auxílio de Deus, preva-
lece. Pois, obviamente, há ocasiões de luta, e estas servem para o
maior proveito dos fiéis. Em sua fraqueza são postos à prova, mas
a santidade não cede ao orgulho.

Por isso, diz o Apóstolo:

Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me


encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne – um

20. Cf. Jo 8,6.


21. Jr 31,33.

41
A vocação de todos os povos – Livro I

anjo de Satanás para me espancar – a fim de que eu não me


enchesse de soberba. A esse respeito, três vezes pedi ao Se-
nhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: ‘Bas-
ta-te a minha Graça, pois é na fraqueza que a força manifesta
todo o seu poder22

15. Busquemos, pois, tornarmo-nos a imagem do Senhor;


deixemos o Bom Pastor encontrar suas ovelhas errantes, cansadas
por vagar por muito tempo longe da trilha; que Ele as leve sobre
seus ombros e as salve, não apenas chamando de volta, mas tam-
bém carregando-as. Procuremos nos tornar a imagem do Senhor;
lavemo-nos de toda mancha, de toda essa impureza acumulada
que nos fez impuros, e que brilhe o espelho do coração humano.
Pois está escrito: “Quem fará sair o puro do impuro?”23 Procuremos
nos tornar a imagem do Senhor; que na sua renovação e justifi-
cação, a graça da sua restauração possa aparecer, como São Paulo
Apóstolo testemunha ter acontecido a si mesmo, quando diz:

As igrejas da Judeia, que criam em Cristo, nem mesmo de vista


me conheciam, mas somente tinham ouvido dizer: ‘Aquele que
outrora nos perseguia, agora prega a fé que noutro tempo im-
pugnava’ – e por minha causa davam glória a Deus.24

Tal era a convicção do povo cristão da época, tal a crença


dos primeiros membros da Igreja, que tinham apenas um coração
e uma só alma: quando viram um homem convertido de seu erro à
aceitação da Verdade, deram glória a Deus e confessaram que a fé
do convertido vinha de um dom divino. O próprio Senhor, ao ins-
truir seus discípulos – os mestres de todas as gentes – disse-lhes:

22. 2Cor 12,7ss.


23. Jó 14,4.
24. Gl 1,22ss.

42
São Próspero de Aquitânia

“Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as
vossas hoas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus”25.

CAPÍTULO IX
Quando as Escrituras falam dos bons ou dos
iníquos, dos eleitos ou réprobos, mencionam
as classes de homens de tal modo que
parece que ninguém é omitido.
16. É do nosso interesse, portanto, sustentar que todas as
coisas boas, especialmente aquelas que conduzem à vida eterna,
são obtidas através do favor de Deus, e que são aumentadas pelo
favor de Deus e são preservadas [mantidas] pelo favor de Deus.
Com essa fé firmemente fixada e enraizada em nossos corações, eu
penso que nosso senso religioso não deve ser perturbado pelo pro-
blema da conversão total ou parcial dos homens em geral. Essa é
uma condição que devemos manter, de não permitirmos que o que
é oculto ao nosso conhecimento torne obscuro o que sabemos cla-
ramente; e que, insistindo em saber o que não podemos, percamos
de vista aquilo que somos capazes de conhecer; já que isso deveria
ser suficiente para vivermos com o conhecimento que adquirimos.

[Pois isso sabemos sem sombra de dúvida: todo início e


todo aumento do mérito é, para todo homem, dom conferido por
Deus. Além disso, é impossível que Aquele que deseja que todos
os homens sejam salvos, sem nenhuma razão, não os salve de ma-
neira plena (a todos). Mas não são claras ao nosso conhecimento

25. Mt 5,16.

43
A vocação de todos os povos – Livro I

tais causas, que não estariam ocultas se fosse necessário para nós
conhecê-las. Aqui, nossa fé deve ser testada nas coisas que não po-
dem ser vistas; e devemos sempre perseverar em nossa devoção pela
Justiça de Deus, mesmo quando não entendemos o seu sentido.]26

17. Que coisa assombrosa é que alguns homens não che-


guem aos Sacramentos da Vida27, quando outros, que pareciam ter
vindo até eles, depois caiam! Disso, se diz: “Eles saíram de entre
nós, mas não eram dos nossos, porque, se tivessem sido dos nossos,
permaneceriam conosco”28. Estes são os que confessam conhecer
a Deus, mas, em suas obras, negam-no. Pois, embora esteja escrito
que “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”29, con-
tudo, a alguns diz o Senhor:

Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Rei-


no dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu
Pai que está nos Céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor,
Senhor, não foi em teu nome que profetizamos, e em teu nome

26. Esta passagem entre colchetes está ausente em alguns manuscritos


e, em alguns outros, consta demarcada entre parênteses (QUASTEN;
PLUMPE, 1952, p.179).
27. Sacramenta Vitae: refere-se aos Sacramentos do Batismo, Confir-
mação e Eucaristia, recebidos juntos pelo catecúmeno na Páscoa. DU-
CHESNE entende que para Sto. Agostinho aqueles que se confessaram
cristãos, mas depois se afastaram da fé, apenas apresentaram uma “apa-
rência” que lhes permitiu se aproximarem desses Sacramentos que dão
vida (sem que o merecessem); mas eles nunca foram contados entre os
eleitos. Cf. St. Agostinho, De correctione et gratia 7. 16; 9. 20; 12. 36
(qui autem cadunt et pereunt, in praedestinatorum numero non fuerunt:
os que caíram e se perderam não estavam contados entre os eleitos).
28. 1Jo 2,19.
29. Rm 10,13.

44
São Próspero de Aquitânia

que expulsamos demônios, e em teu nome que fizemos muitos


milagres?’ Então Eu lhes declararei: nunca vos conheci. Apar-
tai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade.30

Essas pessoas não invocam verdadeiramente o Nome do


Senhor, porque não têm o Espírito de adoção de filhos, pelo qual
clamamos: Abba (Pai)31! Mas “ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Se-
nhor’, senão pelo Espírito Santo”32 e “todos aqueles que são condu-
zidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”33. Aqueles que vêm
a Deus – por obra de Deus mesmo – com o desejo de serem salvos,
são salvos sem falta, pois concebem o próprio desejo de salvação
por inspiração de Deus e, graças a uma iluminação d’Aquele que
chama, chegam ao conhecimento da Verdade. Estes são, de fato, os
filhos da Promessa, os que foram recompensados pela fé, a descen-
dência espiritual de Abraão, a geração eleita, um sacerdócio régio
pré-ordenado e predestinado para a vida eterna, de acordo com o
testemunho do Espírito Santo expresso pelo profeta Jeremias:

Estão a chegar os dias, diz o Senhor, em que farei nova aliança


com a Casa de Israel e com a Casa de Judá, diferente da aliança
que fiz com seus pais no dia em que os tomei pela mão, para os
tirar da terra do Egito, aliança que eles violaram. Por isso fiz
sentir sobre eles o meu poder, diz o Senhor. Eis a aliança que
farei com a Casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor;
Imprimirei a minha Lei no seu íntimo. Ecrevê-la-ei nos seus
corações; serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Ninguém
ensinará mais o seu próximo, nem o seu irmão, dizendo: ‘Co-
nhece o Senhor’ – porque todos me conhecerão, desde o menor

30. Mt 7,21ss.
31. Rm 8,15.
32. 1Cor 12,3.
33. Rm 8,14.

45
A vocação de todos os povos – Livro I

até ao maior, diz o Senhor, pois perdoarei a sua maldade e não


me lembrarei mais do seu pecado.34

E novamente:

Dar-lhes-ei um mesmo coração e um só caminho, para que me


temam sempre, para seu bem e para bem de seus filhos depois
deles. Farei com eles uma Aliança eterna e nâo deixarei de lhes
fazer bem; infundirei o meu temor no seu coração, para que não
se apartem de Mim. Minha alegria será fazer-lhes bem; estabe-
lecê-los-ei nesta terra solidamente, com todo o meu coração e
com toda a minha alma.35

Por meio de Isaías, o Senhor predissera ainda as mesmas


coisas sobre sua graça, com a qual Ele modela todos os homens
em uma nova criação. Ele diz:

Eis que vou realizar uma obra nova (e mais maravilhosa), e ela
vai já aparecer: não a conhecereis? Abrirei no deserto um ca-
minho, e farei brotar rios numa terra inacessível, Os animais
selvagens, os chacais e os avestruzes me glorificarão, porque fiz
brotar águas no deserto, rios numa terra inacessível, para dar de
beber ao meu povo, o meu escolhido. Eu formei este povo para
Mim, ele publicará o meu louvor.36

E de novo: “Jurei por Mim mesmo; da minha boca sai a ver-


dade; a minha palavra não será revogada: Todo o joelho se dobrará
diante de Mim, e toda a língua jurará pelo meu nome” 37.

34. Jr 31,31-34.
35. Jr 32,39-41.
36. Is 43,19-21.
37. Is 45,23s.

46
São Próspero de Aquitânia

18. Se, então, não é possível que essas coisas não ocorram,
porque a presciência de Deus não vacila e seu desígnio não é mu-
tável, nem ineficaz é a sua vontade, nem a sua Promessa é falsa,
então todos, sem exceção, sobre quem essas previsões foram feitas,
serão salvos. Ele estabelece suas leis em seus sentidos e as escreve
com seu dedo em seus corações, para que reconheçam a Deus
não através da sabedoria humana, mas através do ensino do Sumo
Mestre; pois “não é nada nem aquele que planta, nem o que rega,
mas Deus, que dá o crescimento” 38.

Todos estes, dos pequenos aos grandes, conhecem a Deus


porque ouviram, e aprenderam com o Pai como chegar a Cristo.
Todos eles, tirados do erro, são direcionados no Caminho da Vida.
É dado a todos, pela mudança do coração, saber a coisa certa e
desejá-la. Está enxertado em todos o temor que os faz guardar os
Mandamentos de Deus. Uma senda é aberta no deserto. A terra
seca é regada por riachos. Aqueles que antes não abriam suas bocas
para louvar a Deus, mas como animais mudos e irracionais haviam
assumido a ferocidade das bestas, agora, tendo bebido na fonte da
divina Palavra, rendem graças e louvam a Deus, e proclamam seu
poder e as maravilhas da sua misericórdia, testemunhando sobre
como Ele os elegeu e os adotou para serem seus filhos, e como os
tornou herdeiros do Novo Testamento. Ora, como diz o Apósto-
lo, se mesmo o testamento de um homem, “estando confirmado,
ninguém o anula, nem lhe acrescenta coisa alguma” 39, como, então,
poderia uma Promessa divina ser de alguma maneira anulada?

19. O que, então, o Senhor prometeu a Abraão, sem con-


dições e sem depender de leis, permanece absolutamente firme, e

38. 1Cor 3,7.


39. Gl 3,15.

47
A vocação de todos os povos – Livro I

vemos o seu cumprimento todos os dias. É verdade que alguns, aos


quais estas verdades foram pregadas, não creram, mas a increduli-
dade deles não anula a fidelidade de Deus, pois “Deus é verdadeiro
e todo homem é mentiroso”40. Obviamente, os homens que ouvi-
ram o Evangelho e se recusaram a acreditar são ainda mais indes-
culpáveis do
​​ que seriam se não tivessem ouvido uma pregação da
Verdade. Mas é certo que, na presciência de Deus, eles não eram
filhos de Abraão e não foram contados entre o número daqueles
de quem é dito: “...serão abençoadas em ti [ Jacó] e na tua geração
todas as tribos da Terra.” 41.

Ele prometeu a eles a fé, quando lhes disse: “Ninguém ensi-


nará mais o seu próximo, nem o seu irmão, dizendo: ‘Conhece o Se-
nhor’, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior”42.
Ele prometeu-lhes a reconciliação quando disse: “Perdoarei a sua
maldade e não me lembrarei mais do seu pecado”43. Ele prometeu-
-lhes [o dom da] obediência quando disse: “Dar-lhes-ei um mes-
mo coração e um só caminho, para que me temam sempre”44. Ele
prometeu-lhes o dom da perseverança quando disse:

“...infundirei o meu temor no seu coração, para que não se apar-


tem de Mim. Minha alegria será fazer-lhes bem; estabelecê-
-ios-ei nesta terra solidamente, com todo o meu coração e com
toda a minha alma.”45

40. Cf. Rm 3,4.


41. Gn 28,14.
42. Jr 31,34.
43. Ibidem.
44. Jr 32,39.
45. Jr 32,40s.

48
São Próspero de Aquitânia

Finalmente, a todos, sem exceção, Ele prometeu a fé, quan-


do disse: “Jurei por Mim mesmo; de minha boca sai a verdade;
minha Palavra não será revogada: todo o joelho se dobrará diante
de Mim e toda a língua jurará por meu nome”46.

20. Se, então, disséssemos que o que Deus jurou não acon-
tecerá, estaríamos atribuindo falsidade a Deus e chamaríamos de
mentira a verdade! Nossa fé nos leva a dizer que as Palavras de Deus
não falham, que o que Ele decretou deve acontecer. Como, então,
devemos nos convencer da veracidade absoluta de sua Promessa,
quando muitos milhares de homens ainda servem a demônios e
se ajoelham diante de ídolos? Somente lembrando-nos disso: es-
ses pronunciamentos de Deus são feitos segundo o conhecimento
imutável com o qual Ele vê todos os homens, já separados [em elei-
tos e réprobos]. Quer Ele fale apenas do bom ou apenas do iníquo,
Ele o faz de tal maneira que não omite ninguém.

Assim, quando o Apóstolo diz: “...passaram as coisas velhas;


eis que tudo se fez novo” 47, ele não parece dizer também que todos
os homens foram renovados? Ou quando ele diz: “...foi do agrado
do Pai que residisse n’Ele [Cristo] toda a plenitude e que por Ele
fossem reconciliadas consigo todas as coisas, pacificando pelo San-
gue da sua Cruz tanto as coisas da Terra como as do Céu” 48, ele não
fala como se quisesse que entendêssemos que ninguém é excluído
dessa reconciliação?

Ou quando ele diz: “Nestes dias, que são os últimos, falou-


-nos [Deus] por meio de seu Filho, a Quem constituiu herdeiro de

46. Is 45,23s.
47. 2Cor 5,17.
48. Cl 1,19s.

49
A vocação de todos os povos – Livro I

tudo, por Quem criou o mundo” 49, essa declaração, como está, não
poderia significar qualquer outra coisa senão que todos os homens
foram transferidos pelo Pai para a herança de Cristo, conforme a
profecia de Davi, que disse: “Pede-me, e eu te darei as nações em
herança, e em teu domínio os confins da Terra” 50. E em outro lugar
diz o Senhor: “Quando Eu for elevado da terra, atrairei todos os
homens a Mim”51, não parece que Ele prometeu a conversão de
cada um? Ou quando uma profecia sobre a Igreja diz: “Todo o vale
seja alteado, toda a montanha e toda a colina sejam rebaixadas, to-
dos os cumes arrasados, todos os terrenos escabrosos aplanados”52,
alguém não poderia pensar que todo homem é nivelado, que todo
e qualquer homem será sujeitado [convertido] a Cristo? E o que
dizer deste texto: “Eu virei para reunir todas as gentes e línguas;
todos virão e verão minha glória” 53; ou este: “Derramarei o meu
Espírito sobre toda a carne”54; e este: “O Senhor sustém todos os
que caem, levanta a todos os prostrados” 55; não soa como se nin-
guém fosse excluído do favor de Deus?

21. O povo de Deus possui uma plenitude que lhe é própria.


É verdade que grande parte da humanidade recusa ou negligencia a
graça de seu Salvador. No entanto, entre os eleitos, aqueles que fo-
ram separados do mundo, temos uma plenitude específica. Assim,
o mundo inteiro é mencionado como se em sua totalidade tivesse

49. Hb 1,2.
50. Sl 2,8.
51. Jo 12,32.
52. Is 40,4.
53. Is 66,18.
54. Jl 2,28.
55. Sl 145(44),14.

50
São Próspero de Aquitânia

sido libertado, e toda a humanidade como se todos os homens fos-


sem os eleitos. Assim também, nos textos relativos aos réprobos,
o autor sagrado fala de tal maneira que, aquilo que diz sobre uma
parte dos homens, parece dizer sobre a totalidade. Um exemplo
disso é a palavra de São João, o Batista: “O que vem do Alto é
superior a todos. (...) Ele testifica o que viu e ouviu, mas ninguém
recebe o seu testemunho”56. Ou esse ditado do Apóstolo: “Com
efeito, todos buscam os seus próprios interesses, e não os que são
de Jesus Cristo”57. Ou estes versículos do Salmo davídico: “Olha
do Céu o Senhor para os filhos dos homens, para ver se há quem
entenda e busque a Deus. Todos se extraviaram, perverteram-se;
não há quem faça o bem, não há nem sequer um”58.

22. Desses e de outros textos, que são abundantes e podem


ser encontrados em grande número por qualquer pessoa que os
procure, é demonstrado sem dúvida que a Terra inteira é algumas
vezes mencionada para se referir a uma parte dela; assim como o
mundo inteiro para uma parte do mundo, e todos os homens para
uma parte. Nesses textos, entretanto, as próprias Escrituras geral-
mente indicam imediatamente a restrição necessária, chamando a
atenção do leitor – do todo que foi dito para a parte que deve ser en-
tendida por ele. Tomemos, por exemplo, esta palavra do Apóstolo:

Nós pregamos a Cristo Crucificado, que é escândalo para os ju-


deus e estultícia para os gentios, mas, para os que são chamados
(à fé) quer dentre os judeus, quer dos gregos, é Cristo Virtude
de Deus e Sabedoria de Deus.59

56. Jo 3,31 e 32.


57. Fl 2,21.
58. Sl 14(13),2s.
59.1Cor 1,23s.

51
A vocação de todos os povos – Livro I

Será o Cristo realmente “Virtude” para aqueles mesmos a


quem se diz que Ele é “escândalo” e “estultícia”? Ou poderíamos
dizer que para estes Ele é, ao mesmo tempo, Virtude e estultícia?
Nenhum desses [dos não eleitos] será justificado pela fé, enquanto
a sua incredulidade os endurecer. Assim, de dentro de um grupo,
no qual incluem-se os crentes e os incréus, Ele chama alguns, os
que são chamados “eleitos”.

Dessa maneira, Ele aponta que aqueles que permanecem


alheios à fé estão excluídos do chamado [vocação] aos povos, ape-
sar de terem ouvido o Evangelho.

CAPÍTULO X
As Escrituras falam às vezes dos eleitos e
dos réprobos como ‘um povo’; como se
falassem das mesmas pessoas.
23. De acordo com a mesma regra, as Sagradas Escrituras
fazem uma Promessa por meio de Isaías:

Guiarei os cegos por um caminho que eles não conhecem, fá-


-los-ei andar por veredas que ignoram; mudarei diante deles as
trevas em luz, e os caminhos pedregosos em vias planas. Tudo
isto realizarei, não vos faltarei em nada.60

Mas o que se segue: “Voltarão para trás(...)”61, deve ser apli-


cado a uma parte dessa raça, e não àqueles a quem se diz, “não vos
faltarei em nada”. Novamente, o Senhor diz a Israel:

60. Is 42,16.
61. Is 42,17: ‘Voltarão para trás, serão cobertos de confusão’, etc.

52
São Próspero de Aquitânia

Não temas, porque Eu Sou contigo; trarei do Oriente a tua


posteridade e te congregarei do Ocidente. Eu direi ao aquilão:
‘Dá-mos cá’; e ao meio-dia: ‘Não os retenhas’; conduze-me os
meus filhos de países remotos, e as minhas filhas das extremi-
dades da Terra, porque todos aqueles que trazem o meu nome,
Eu os criei, os formei e os fiz para a minha glória.62

Mas aquilo que diz em seguida: “Faze comparecer o povo


cego, apesar de ter olhos; o povo surdo, apesar de ter ouvidos” 63, de
forma alguma se aplica àqueles homens os quais Deus diz que
preparou para a sua glória. De fato, de todos esses ditos sobre uma
raça de homens, um primeiro conjunto se aplica a algumas pessoas,
e um segundo a outras.

24. Também no Apóstolo encontramos narrado, sob o


nome de “todo o povo”, o que diz respeito a apenas uma parte dele;
essa parte distinta é contada como totalidade. Por exemplo, discur-
sando sobre a cegueira dos judeus e, ao mesmo tempo, mostrando
que alguns deles foram salvos pela graça, ele diz:

Digo, pois: porventura Deus rejeitou (todo) o seu povo? Lon-


ge disso. Porque eu também sou israelita, da descendência de
Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou (todo) o seu
povo, que conheceu na sua presciência64.

Pois esse povo “conhecido” representa aqueles que foram


justificados em Cristo. Aquilo que parece ser afirmado sobre todo
o Israel aplica-se somente àqueles a quem a graça escolheu por

62. Is 43,6s.
63 Is 43,8
64. Rm. 11,1s.

53
A vocação de todos os povos – Livro I

si própria, como narra a sequência do discurso do Apóstolo. Ele


continua dizendo:

Não sabeis o que a Escritura refere de Elias, de que modo ele


faz a Deus esta acusação contra Israel: ‘Senhor, mataram os
teus Profetas, derribaram os teus altares: eu fiquei só e querem
a minha vida?’. Mas que lhe disse Deus em resposta: ‘Eu reser-
vei para Mim sete mil homens, que não dobraram os joelhos
diante de Baal’. Do mesmo modo, ainda agora existem aqueles
que foram reservados segundo a escolha da graça. Ora, se isto
foi por graça, não foi pelas obras; de outro modo, a graça já não
seria graça.65

Portanto, nem todo o Israel foi rejeitado, e nem todo foi es-
colhido. Em vez disso, uma cegueira voluntária desviou uma par-
te, enquanto a luz da graça manteve outra parte como sua. E, no
entanto, eles são mencionados [em diversas partes das Escrituras]
como se nenhuma divisão tivesse sido feita entre todo o povo, entre
os que perecem e os que são salvos. Pois quando lemos: “...segundo
ao Evangelho, eles agora são inimigos (de Deus) por causa de vós;
mas, segundo a eleição divina, eles são muito queridos por causa de
seus pais”66, parece que ele chamou de “queridos” aqueles mesmos
a quem chamou de “inimigos”. Mas o próprio Apóstolo dissipou
essa obscuridade, acrescentando que “uma parte de Israel caiu na
cegueira” 67. Temos que entender que, aí, um só gênero é dividido
em duas espécies, e logo expressões como “todos os homens”, “toda
a plenitude” e “todo o Israel” nem sempre precisam designar uma
totalidade, mas, às vezes, apenas uma parte.

65. Rm 11,2-6.
66 Rm 11,28.
67. Rm 11,25.

54
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XI
As Escrituras falam de homens de diferentes
tempos como se fossem da mesma geração.
25. Entre essas várias maneiras de falar que podem ser
encontradas nas Escrituras, ainda há outra para a qual devemos
voltar a nossa atenção: [às vezes] o que se refere a homens de
diferentes tempos é apresentado como se fosse aplicado a apenas
uma geração, a homens nascidos em uma mesma época.

Assim, São Pedro Apóstolo, escrevendo para o povo de seu


tempo e também a outros (do futuro), diz:

Vós, porém, sois uma geração escolhida, um sacerdócio real,


uma gente santa, um povo adquirido por Deus, para que publi-
queis as perfeições d’Aquele que das trevas vos chamou à Luz
admirável. Vós, que outrora não éreis seu povo, agora sois povo
de Deus: vós, que não tínheis alcançado misericórdia, agora al-
cançastes misericórdia.68

No momento dessa pregação, todos os homens ainda vivos,


por quem Deus havia sofrido no passado, andavam à sua própria
maneira? Aqueles entregues, antes, aos seus próprios desejos, eram
as mesmas pessoas nesse momento chamadas das trevas para sua
maravilhosa Luz? Eles já não haviam morrido por ignorância? Ou,
eles já estavam no mundo? E houve retorno do erro à Verdade para
aqueles que haviam morrido no passado? No entanto, ao falar, o
uso é tal que, quando a graça conquistou os descendentes dos ím-
pios, parece dizer que aqueles que são escolhidos agora são os mes-
mos que antes foram abandonados. O que é dito aqui, no entanto,

68. 1Pd 2,9.

55
A vocação de todos os povos – Livro I

não se aplica aos mesmos homens, mas aos homens da mesma


raça. O chamado que aparece na aproximação do fim do mundo
não tem efeito retroativo nas eras passadas. Portanto, aqueles sobre
quem essas coisas são ditas sucessivamente são, de certo modo, os
mesmos homens e, no entanto, não são os mesmos. Enquanto, em
um caso, considerações específicas não são distinguidas das gerais,
em outro elas o são.

CAPÍTULO XII
Quando o Apóstolo diz ‘Deus quer que todos
os homens sejam salvos’, tal afirmação deve
ser entendida em todo o seu significado.
26. Quando os devotos de discussões caluniosas leem ou
ouvem a passagem [de 1Tm 2,3s.] que diz: “Em verdade, isto é
bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual quer que
todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da Ver-
dade”, objetam que nossos argumentos a contradizem; mas, em
verdade, não pretendemos tirar nada do contexto em que ensina
o Apóstolo. Aceitamos esta breve frase na totalidade do que a
precede e do que a ela se segue. Deixemos, pois, de lado todos os
outros testemunhos dos Escritos inspirados: esta única passagem
servirá para refutar as objeções caluniosas e defender aquilo que
com impiedade renegam.

27. Agora, pois, [vejamos] Paulo Apóstolo, o Mestre dos


Gentios, escrevendo para Timóteo, quando diz:

Recomendo-te, pois, antes de tudo, que se façam súplicas, ora-


ções, petições e ações de graças por todos os homens, pelos

56
São Próspero de Aquitânia

reis e por todos os que estão constituídos em autoridade, para


que levemos uma vida sossegada e tranquila, em toda a pie-
dade e dignidade. Em verdade, isto é bom e agradável diante
de Deus nosso Salvador, o qual quer que todos os homens se
salvem e cheguem ao conhecimento da Verdade. Com efeito,
há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens,
que é Jesus Cristo homem, o qual se deu a Si mesmo para
redenção de todos.69

Logo, a esta regra da doutrina do Apóstolo, à qual a Igreja


Universal está profundamente ligada, investigaremos com os nos-
sos intelectos, quanto ao que a mesma Igreja pensa a respeito – e
não há dúvida de que é possível fazê-lo, em princípio, se a obe-
diência concorda com a investigação.

28. O Apóstolo ordena, ou antes o Senhor ordena pelo


Apóstolo, “que se façam súplicas, orações, petições, ações de graças
por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituí-
dos em autoridade”. Todos os sacerdotes e todos os fiéis têm con-
córdia nesta norma de súplica em suas devoções. Não há parte do
mundo em que o povo cristão não celebre deste modo as orações70.

69. 1Tm 2,1-6.


70. Embora na liturgia do novo Rito Romano (de Paulo VI) tal prática não
seja evidente (a não ser na Liturgia do Tríduo Pascal), nas liturgias mais
antigas, como a Bizantina (de São Basílio e a de São João Crisóstomo)
há três momentos específicos de súplicas incessantes: a Irinica (antes das
Leituras), a Ectení (após as Leituras) e as súplicas após a Comunhão, ao
final da Divina Liturgia. Tais práticas de súplicas foram sempre comuns
a todos os ritos tradicionais católicos ao longo da história, seguindo o
preceito Apostólico (N. do R.).

57
A vocação de todos os povos – Livro I

A Igreja, então, suplica diante de Deus, em todos os lugares,


não apenas pelos santos já regenerados em Cristo, mas também
por todos os infiéis e inimigos da Cruz de Cristo, por todos os
adoradores de ídolos, por todos os que perseguem Nosso Senhor
em seus membros; pelos judeus, cuja cegueira não lhes permite ver
o fulgor da luz do Evangelho, pelos hereges e cismáticos, que são
alheios à unidade de fé e caridade.

29. Mas qual é a súplica da Igreja por todos esses, se não


para que deixem seus erros e se convertam a Deus, que aceitem
a fé e a caridade, que sejam libertados das trevas da ignorância e
cheguem ao conhecimento da Verdade? Eles não podem fazer isso
sozinhos, pois estão lutando sob o peso de hábitos viciosos e são
enredados pelos laços de Satanás. Eles estão impotentes diante dos
seus próprios enganos, aos quais tão teimosamente se apegam que
passam a amar as falsidades, quando deveriam amar a Verdade.

Mas o Senhor, que é Misericordioso e Justo, quer que lhe


sejam oferecidas súplicas por todos os homens.

Quando vemos inúmeras almas tiradas de tão profunda mi-


séria, não devemos duvidar de que Deus está atendendo aos nossos
pedidos em oração. Enquanto agradecemos a Ele por aqueles que
são salvos, devemos rezar para que a mesma graça divina possa li-
bertar do poder das trevas aqueles que ainda estão sem luz, e con-
duzi-los ao Reino de Deus antes de partirem desta vida.

58
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XIII
Não podemos entender nesta vida um profundo
mistério: porque a graça salvífica de Deus passa
por certos homens pelos quais a Igreja suplica.
30. De fato, vemos que a graça salvífica passa por alguns
homens, e que as orações da Igreja em seu favor não são ouvidas.
Isso deve ser atribuído aos julgamentos ocultos da Justiça divi-
na. Devemos reconhecer que não somos capazes de entender esse
profundo mistério nesta vida. Com efeito, “imperfeitamente co-
nhecemos e imperfeitamente profetizamos. (...) Nós agora vemos
como por um espelho, obscuramente”71. Ora não somos nem mais
sábios nem mais bem informados do que o beatíssimo Apóstolo.
Quando ele entra no segredo desses grandes mistérios para ex-
plicar o poder da graça, encontra-se dominado por coisas que são
inenarráveis. Ele diz:

Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério, para que não
vos vanglorieis da vossa sabedoria; uma parte de Israel caiu
na cegueira até que tenha entrado a plenitude dos gentios. E
assim todo o Israel se salvará, como está escrito: ‘Virá de Sião
o Libertador, e afastará de Jacó a impiedade. Terão de Mim
esta Aliança, quando Eu tirar os seus pecados’. É verdade que,
quanto ao Evangelho, eles agora são inimigos (de Deus) por
causa de vós; mas, quanto à eleição divina, eles são muito que-
ridos por causa de seus pais. Com efeito, os dons e a vocação
[o chamado] de Deus são sem arrependimento. Assim como
também vós outrora desobedecestes a Deus e agora alcanças-
tes misericórdia pela desobediência deles, assim também eles
agora não obedecem, a fim de que, pela misericórdia que vos

71. 1Cor 13,9.12.

59
A vocação de todos os povos – Livro I

foi feita, alcancem também eles misericórdia. Efetivamente,


Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar para
com todos de misericórdia. 72

Arrebatado, por assim dizer, havia o Apóstolo derramado


[sobre o papel] tais declarações misteriosas sobre as obras divinas,
as quais estão além de todos limites da inteligência humana; en-
tão, como que atordoado, interrompeu a sequência lógica do seu
próprio discurso e, surpreso com as coisas que ele mesmo havia
proferido, exclamou:

Ó, profundidade das riquezas da Sabedoria e da Ciência de


Deus! Quão incompreensíveis são os seus juízos e inexcrutá-
veis os seus caminhos! Pois quem conheceu o pensamento do
Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem lhe deu
alguma coisa, primeiro, para que tenha o que receber em tro-
ca? Porque d’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas; a Ele
glória por todos os séculos! Amém.73

Obviamente, o que ele ensinou nesse ponto levantou mui-


tas questões. Por exemplo, alguém poderia perguntar por que a
graça de Deus funciona de maneira diferente para muitos povos
e em diferentes eras. Por que foram deixadas todas as nações em
épocas anteriores a seguir seus próprios caminhos, enquanto Is-
rael sozinha foi escolhida para ser instruída pelas próprias palavras
de Deus, e foi excepcionalmente eleita para conhecer a Verdade,
sendo que, no final, a sua infidelidade seria a ocasião para a salva-
ção dos gentios? A misericórdia de Deus não poderia, porque este
povo perseverou em sua fé ancestral, doar-se também às outras na-
ções? Por que aqueles, cuja queda significa salvação para as gentes,

72. Rm 11,25-32.
73. Rm 11,33-36.

60
São Próspero de Aquitânia

não poderiam ser libertados de sua cegueira antes que a plenitude


dos gentios entrasse? Eles não poderiam receber a Luz de uma
vez, junto com toda a humanidade? Após a conversão de todos os
povos, eles ainda serão salvos? Ou: como todo o Israel pode ser li-
bertado de sua cegueira e salvo, quando incontáveis pessoas dentre
esse povo morreram na incredulidade, sem nunca obter a chance
prometida de salvação? Ou ainda: como se pode dizer também dos
gentios, que não foram chamados no início, que a plenitude deles
agora chega, quando tantos milhares de homens, de todos os tem-
pos e situações, em todas as nações que vivem sob o sol, morreram
sem a justificação em Cristo?

Especulações sobre as razões desses misteriosos decretos


divinos, o nosso pio e douto Mestre preferiu deixar em suspenso,
nas altíssimas riquezas da Sabedoria de Deus, e não procurou im-
prudentemente, em discussões temerárias, aquilo que está retido
ao nosso conhecimento humano, a saber, o segredo da Verdade
justíssima e da Bondade misericordiosíssima. Ele não omitiu nada
do que não poderíamos ignorar, mas não tocou naquilo que não
nos é dado conhecer.

CAPÍTULO XIV
Na dispensação das obras de Deus, muitas
vezes as causas das coisas são ocultas, e
apenas os efeitos são manifestos.
31. Na dispensação das obras divinas, muitas vezes as cau-
sas das coisas permanecem ocultas a nós; apenas os efeitos é que
podemos ver. Vemos que algo é gerido, mas não como é gerado.
O evento em si é claro, sua razão é mantida oculta. Assim, sobre

61
A vocação de todos os povos – Livro I

uma mesma coisa, ninguém pode presumir-se capaz de examinar


o que nela é inescrutável, como ninguém pode refutar falsamente
o que nela é evidente. Não sei, por exemplo, porque esse homem
foi criado grego e aquele bárbaro, porque um nasceu na riqueza e
outro na miséria; porque a força e a beleza de um corpo imponente
exaltam um certo [homem], enquanto a magreza e os membros
fracos deformam outro. Por que alguém nasce de origem católica e
nutrida no berço da fé, enquanto outra pessoa é filha de hereges e
bebe, junto com o leite de sua mãe, o veneno do erro?

Mil outras diferenças nas condições dos corpos e nas quali-


dades das mentes, nas circunstâncias do tempo e nos costumes dos
povos, eu não posso explicar. Por esse motivo, porém, não deixarei
de reconhecer que Deus é o Criador e o Governante de todas essas
coisas. Ele verdadeiramente criou os corpos e as almas de cada
homem, além da diversidade resultante das atividades que cada
homem escolhe. Ele próprio produz uma grande e múltipla diver-
sidade no início da existência de cada um.

As turbas, com suas muitas distrações, nos perturbariam e


nos desviariam: eles presumidamente explicaram o desconhecido e
atribuíram essas desigualdades originais à regência dos astros. Mas
sabemos com certeza absoluta que Deus, nosso Criador, forma
cada indivíduo a partir dos elementos originais, como Ele deseja, e
que, embora os corpos sejam de uma natureza e as almas de outra,
Ele os tempera de acordo com as medidas que lhe agradam. Essas
obras de Deus não teriam sido retiradas da nossa inteligência, se
tivéssemos a real necessidade de conhecê-las. Seria-nos revelado
porque cada evento em particular ocorre, se não fosse suficiente
saber, simplesmente, que tal evento ocorre.

O Senhor perguntou a Moisés: “Quem fez a boca do


homem? Quem formou o mudo e o surdo, o que vê e o que é

62
São Próspero de Aquitânia

cego? Não Sou Eu [que faço todas estas coisas]?”74. E por meio de
Isaías: “‘Para que não desse à luz, abriria Eu o seio materno?’ , diz
o Senhor: ‘Eu, que dou a fecundidade, o fecharia?’” 75. O Livro do
Eclesiástico diz: “Os bens e os males, a vida e a morte, a pobreza
e as riquezas, tudo isto vem de Dens”76. E Jó diz: “As casas dos
ladrões estão na abundância, seguros estão os que atrevidamente
provocam a Deus e que não têm outro deus senão a sua mão”77;
enquanto que foi Deus mesmo que entregou tudo em suas mãos.
O mesmo Livro, tratando sobre o crescimento e o declínio de
todas as coisas humanas, e atribuindo todas essas mudanças aos
desígnios divinos, diz novamente:

A sabedoria e a fortaleza estão em Deus; Ele possui o conselho


e a inteligência. Se Ele destruir, ninguém há que edifique, se
aprisionar um homem, ninguém há que o solte. Se retiver as
águas, tudo ressecará, e, se as soltar, submergirão a Terra. Nele
residem a fortaleza e a sabedoria; Ele conhece o enganador e
o que é enganado. Ele conduz os conselheiros a um fim insen-
sato, e conduz os juízes à estupidez. Ele desata o cinturão dos
reis, e cinge os seus rins com uma corda. Deixa ir os sacerdotes
sem glória, e abate os poderosos. Troca as palavras dos homens
mais hábeis, e tira o conselho aos velhos. Faz cair o desprezo
sobre os príncipes, e afrouxa a cintura dos fortes. Tira das trevas
as coisas mais ocultas, e traz à luz a própria sombra da morte.
Multiplica as nações e as destrói, e, depois de destruídas, as
restitui ao seu primeiro estado. Ele muda o coração dos prínci-
pes do povo da Terra, transvia-os em desertos sem caminhos;

74. Ex 4,11.
75. Is 66,9.
76. Eclo 11,14.
77 Jó 12,6.

63
A vocação de todos os povos – Livro I

andam às apalpadelas nas trevas, longe da luz; fá-los andar er-


rantes como ébrios.78

E, novamente, diz-se que a vontade de Deus não pode ser


frustrada, porque, “quando Ele decide uma coisa, ninguém pode
frustrar os seus desígnios; a sua vontade realiza o que quer”79.

CAPÍTULO XV
Não podemos atribuir a salvação dos eleitos e a
reprovação dos ímpios aos seus próprios
méritos: não nos é dado conhecer
as razões de tal diferença”.
32. Uma parte dos homens alcança a salvação. Outra parte
perece. Se atribuíssemos tal fato aos méritos individuais e dissés-
semos que a graça deixa de lado os ímpios e escolhe os bons, sería-
mos confrontados com o caso de incontáveis povos os quais, por
tantas eras, não conheceram [com o coração] nenhum anúncio da
doutrina celeste. E não devemos também dizer que a posteridade
desses homens era melhor que eles próprios, pois está escrito deles
mesmos: “O povo que andava nas e trevas viu uma grande Luz;
aos que habitavam na região da sombra da morte uma Luz apare-
ceu”80. E é a estes que Pedro Apóstolo diz:

78. Jó 12,13-25.
79. Jó 23,13.
80. Is 9,2.

64
São Próspero de Aquitânia

Vós, porém, sois uma geração escolhida, um sacerdócio real,


uma gente santa, um povo adquirido por Deus, para que publi-
queis as perfeições d’Aquele que das trevas vos chamou à Luz
admirável. Vós, que outrora não éreis seu povo, agora sois povo
de Deus: vós, que não tínheis alcançado misericórdia, agora
alcançastes misericórdia.81

Portanto, o que os pais não mereciam, os filhos receberam,


mas não como paga por seus méritos. Pois, de fato, pais e filhos es-
tavam impregnados de impiedade; a cegueira da ignorância mer-
gulhou a todos nos mesmos erros.

Mas que ciência pode compreender e quem pode inves-


tigar com tanta sabedoria porque Deus não teve misericórdia de
uns, mas foi misericordioso com outros? A razão desse desígnio
nos escapa; a diferença em si é que vemos. Nós não entendemos
o juízo [de Deus], mas vemos a [sua] obra. Quão caluniada é a
justiça oculta de Deus, quando devemos dar graças à misericórdia
manifesta! Louvemos e reverenciemos a ação de Deus, embora
não saibamos aquilo que Ele mantém velado.

CAPÍTULO XVI
O juízo inescrutável de Deus
na eleição das crianças.
33. Consideremos também o caso de toda a multidão das
crianças. Em nenhuma delas pode-se encontrar transgressão ou
méritos, nem nas do passado nem nas futuro, apenas o Pecado
em que todo o gênero humano nasce para a condenação. Falamos

81. Pd 2,9.

65
A vocação de todos os povos – Livro I

agora das crianças antes do uso da razão e antes que possam fa-
zer uso do livre-arbítrio da vontade. Algumas são regeneradas à
eterna Bem-aventurança; outras não renascem e vão para a misé-
ria sem fim. Se considerarmos o Pecado original, sim, elas o têm,
mas todos são igualmente culpados. Se considerarmos a inocência
moral, concordaremos que nenhuma dessas crianças possui vício.
Nosso senso humano de justiça não vê motivo para eleição, mas
a inefável graça de Deus encontra razões para tal que são inex-
primíveis. Seu desígnio está escondido, mas seu dom é manifesto.
É a piedade82 que inspira ao trabalho. Seu poder oculta de nós
suas razões; mas, tanto o que vemos quanto o que não vemos é
igualmente indubitável. Sendo Ele o Autor de tudo quanto vemos
acontecer, não podemos negar nosso louvor à sua Justiça, ainda
que isso ultrapasse o nosso entendimento.

CAPÍTULO XVII
As conversões de ímpios em situações extremas
configuram uma prova de que a graça é
imerecida, bem como de que os Juízos de
Deus são inescrutáveis.
34. Agora dirijamos nossa atenção aos casos de pecadores
que, após uma longa vida de vergonha e de crimes, recebem nova
vida no sacramento do batismo de Cristo, pouco antes de parti-
rem deste mundo. Sem boas obras que os favoreçam, eles são ad-
mitidos na Comunhão do Reino dos Céus. Como entender esse

82. A piedade, ou seja, a fé que devemos a Ele, no sentido de esperança


segundo aquilo que a Igreja ensina e o que Deus mesmo nos revelou. É
isto que significam os termos ‘piedade’ e ‘devoção’ nesta obra (N. do R.).

66
São Próspero de Aquitânia

juízo divino? Só podemos confessar, sem hesitar, que os dons de


Deus são imerecidos. Não há crimes tão odiosos que possam im-
pedir o dom da graça, assim como não pode haver boas obras tão
excelentes que possam reivindicar como recompensa justa aquilo
que Deus dá gratuitamente.

Suponha-se que a justificação – obra da graça – fosse devi-


da a méritos anteriores; suponhamos que fosse como o pagamento
devido a um trabalhador, e não o presente de um Doador; sendo
assim, nossa redenção no Sangue de Cristo não seria degradada?
Crer numa justa reivindicação pelas obras humanas não seria recu-
sar a misericórdia de Deus?

35. E, desse modo, como seria possível demonstrar que ne-


nhuma obra humana é capaz de remover o Pecado original? Nós
nunca poderíamos afirmar tal coisa, a menos que aceitemos que os
incrédulos e os pecadores [sem nenhum merecimento] são, através
da Pia batismal, admitidos ao Reino de Deus; a menos que aqueles
que se gloriam de sua justiça83 reconheçam como realmente não
podem fazer nada que os torne dignos da adoção como filhos de
Deus, se não receberem o sacramento da regeneração. Pois nesse
sentido todos estão na mesma condição que os maiores pecadores:
regenerados no batismo, são iguais em santidade; sem o batismo,
todos pereceriam igualmente.

É fato, portanto, que a graça busca seus filhos adotivos mes-


mo entre os piores pecadores em seus últimos momentos, e que
muitos que pareciam menos maus não recebem esse dom. Mas
quem poderia dizer que esses fatos escapam ao Governo de Deus
ou que Ele os decreta sem uma justiça profunda? E obviamente

83. Aqui se refere diretamente aos hereges pelagianos, combatidos in-


cansavelmente e com grande eficácia pelo autor (N. do T.).

67
A vocação de todos os povos – Livro I

aqui não há injustiça apenas porque isso está envolto em mistério,


mas há justiça porque decorre de um Decreto de Deus.

De fato, para tudo o que depende exclusivamente da livre


decisão de Deus, não podemos saber em definitivo qual será o seu
julgamento antes que Ele decida.

36. Mas, sendo que já ocorreram os fatos, ninguém é livre


para reclamar do resultado do divino Decreto, o qual é totalmente
correto, pois Ele não age de outra maneira que não a mais per-
feita correção. Ele mesmo ilustrou a variedade de seu chamado
[vocação] múltiplo, o qual pertence à mesma graça, pelo célebre
exemplo de uma parábola do Evangelho84. Desse modo Ele falou
do pai de família que contrata trabalhadores para sua vinha, em
diferentes horas do dia, sob contrato de um denário por dia. Está
claro que o homem enviado à vinha na décima primeira hora de
trabalho daquele dia, junto com aqueles que já haviam trabalhado
o dia inteiro, representa a classe de pessoas de quem tratamos ago-
ra. A misericórdia e a generosidade de Deus são mostradas a eles
no fim do dia, isto é, no fim de suas vidas, a fim de revelar a exce-
lência da sua graça. Pois Ele não está como que a pagar o preço de
um trabalho prestado, mas derrama sobre aqueles a quem elegeu,
sem depender dos méritos próprios [de cada um], as riquezas da
sua bondade.

Assim, também aqueles que trabalharam o dia inteiro, com


o suor de seus rostos, e que não receberam mais do que os re-
tardatários, devem entender que receberam igualmente um dom
gratuito [que excede seus esrforços e capacidades], e não a mera
paga pelo seu labor.

84. Do cap. 20 do Evangelho Segundo São Mateus.

68
São Próspero de Aquitânia

37. Acaso deveríamos também murmurar contra o “Chefe


da Vinha” que dá aos que são chamados por último e aos traba-
lhadores de tempo integral o mesmo salário, e porque nenhuma
remuneração a mais é dada pelo muito trabalho do que por um
trabalho quase inexistente? Se assim for, nos caberá ouvir aquilo
que a um desses homens foi dito:

Amigo, eu não te faço injustiça. Não acertaste tu comigo um


dinheiro? Toma o que é teu e vai-te. Eu quero dar também a
este último tanto quanto dei a ti. Ou não me é lícito fazer dos
meus bens o que eu quero? Porventura vês com maus olhos
que eu seja bom?85

Claramente, para aquele caluniador, os caminhos divinos


pareciam injustos. Que lição lhe foi ensinada? Ou que razão lhe
foi dada? Não lhe foi dito nada sobre a justiça daquela decisão;
ele não recebeu nenhuma revelação daquele desígnio secreto. Mas
para que ele se abstivesse de discutir o Juízo divino, foi confron-
tado com a bondade da misericórdia de Deus e com o poder da
sua vontade. A esse mesmo homem, a Palavra de Deus segundo o
Apóstolo poderia ter sido iguamente dirigida: “Ó homem, quem
és tu, para replicares a Deus? Porventura o vaso feito de barro diz
a quem o fez : ‘Por que me fizeste assim?’”86.

85. Mt 20,13ss.
86. Rm 9,20.

69
A vocação de todos os povos – Livro I

CAPÍTULO XVIII
A graça, sem a qual não são possíveis os
bons méritos, é dom imerecido, dado
unicamente pela vontade de Deus.
38. A vontade de Deus é, portanto, a única razão pela qual
a graça é concedida a qualquer homem, qualquer que seja sua na-
ção ou raça, seu estado ou idade. Nessa vontade está escondida a
razão da sua eleição. O mérito começa com a graça, a qual, por si
só, qualquer homem recebeu imerecidamente. Se o mérito pos-
suísse bondade sem a graça, não teria sido dito: “Em verdade, em
verdade te digo que quem não renascer da água e do Espírito San-
to, não pode entrar no Reino de Deus”87; e ainda: “Se não comer-
des da Carne do Filho do homem, e não beberdes do seu Sangue,
não tereis a vida em vós.”88. Mas sim: quem não for justo e bom
não pode alcançar a felicidade eterna. Não haveria necessidade
de nascer de novo “da água e do Espírito”, se fosse suficiente o
conhecimento que se adquire pelos estudos. Nossa fé, pela qual
cremos que no batismo todos os pecados são perdoados, seria va-
zia se fosse ensinado que a graça não é concedida aos maus e aos
ímpios, mas somente aos bons e retos.

39. A origem da vida verdadeira e da verdadeira justiça


está no sacramento da regeneração. Quando o homem renasce, as
virtudes começam a se tornar verdadeiras nele; então, aqueles que
dificilmente poderiam obter mesmo que uma recompensa terrena,
um fútil louvor humano, começam pela fé a avançar em direção à
Glória eterna. Antes de um homem ser justificado, seja um judeu

87. Jo 3,5.
88. Jo 6,54.

70
São Próspero de Aquitânia

orgulhoso de seu conhecimento da Lei ou um grego inflado pe-


los estudos da sabedoria natural, ele é um escravo do Pecado; se
persistisse em sua incredulidade, a ira de Deus – incorrida desde o
pecado de Adão – permaneceria sobre ele.

O Apóstolo fala sobre isso quando diz:

E a vós (deu a vida espiritual), quando estáveis mortos pelos


vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo
o costume deste mundo, segundo o príncipe que exerce seu
poder sobre o ar, o espírito que agora opera nos filhos da deso-
bediência, entre os quais também todos nós vivíamos outrora,
segundo os desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne
e dos apetites, e éramos por natureza filhos da ira, como todos
os outros.89

E novamente: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no


Senhor”; e uma vez mais: “...dando graças a Deus Pai, que nos fez
dignos de participar da herança dos santos na Luz, o Qual nos
livrou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do Filho
do seu Amor”90; e ainda:

Também nós, outrora, éramos insensatos, rebeldes, desgarra-


dos, escravos de paixões e prazeres, vivendo na malícia e na
inveja, dignos de ódio e odiando os outros. Mas, quando se
manifestou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu Amor
pelos homens, não pelas obras de justiça que tivéssemos feito,
mas por sua Misericórdia, salvou-nos mediante o Batismo de
regeneração e de renovação do Espírito Santo, que Ele difun-
diu sobre nós abundantemente por Jesus Cristo, nosso Salva-
dor, a fim de que, justificados pela sua graça, sejamos herdeiros

89. Ef 2,1ss.
90 Cl 1,2s.

71
A vocação de todos os povos – Livro I

da Vida eterna, segundo a esperança (que temos de a possuir


um dia).91

CAPÍTULO XIX
O que é a natureza sem a graça
40. Para explicar em poucas palavras o que é a natureza
humana sem a graça, deixemos que São Judas Apóstolo nos diga o
que produz a ignorância dos incultos e o aprendizado dos sábios:
“Estes, porém”, diz ele, “blasfemam de todas as coisas que ignoram,
e perdem-se como animais sem razão, em todas aquelas coisas que
conhecem naturalmente”92. Deixemos também que São Lucas
Evangelista nos diga, nas palavras de Zacarias, que negra noite
envolvia a gênero humano antes de a luz da graça brilhar sobre ela,
antes de o povo de Deus ser libertado das trevas da ignorância:

E tu, menino, serás chamado o Profeta do Altíssimo, porque


irás adiante da Face do Senhor, a preparar os seus caminhos;
para dar ao seu povo o conhecimento da salvação, pela remissão
dos seus pecados, graças à terna misericórdia do nosso Deus,
que nos trará do Alto a visita do Sol nascente, para alumiar
os que jazem nas trevas e na sombra da morte; para dirigir os
nossos pés no caminho da paz.93

91. 2,3-7.
92. Jd 10.
93. Lc 1,76-79.

72
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XX
Nosso Senhor, em sua profunda Misericórdia,
deseja salvar todas as nações e opera para sua
salvação, mas ninguém aceita sua Palavra.
41. Nessa sua profunda Misericórdia, o Senhor quer não
apenas redimir um só povo, mas salvar a todas as nações, como
diz o Evangelista: “Jesus devia morrer pelas gentes, e não somente
pelas gentes mas também para unir em um só Corpo os filhos
de Deus dispersos”94. Eis o significado da grande proclamação de
Nosso Senhor, a qual, como trombeta, ressoa por sua bondade em
todo o mundo, a convidar e convocar a todos os homens. Pois diz
Ele mesmo:

graças te dou, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escon-


deste estas coisas aos sábios e aos prudentes, e as revelaste aos
pequeninos. Assim é, ó Pai, porque assim foi do teu agrado.
Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém
conhece o Filho senão o Pai; nem alguém conhece o Pai se-
não o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar. Vinde a
Mim todos os que estais fatigados e sobrecarregados, e Eu vos
aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de Mim, que
sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para as
vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu peso leve.95

João, o Batista, também proclama com espírito profético,


no Evangelho segundo São João:

94. Jo 11,51s.
95. Mt 11,25-30.

73
A vocação de todos os povos – Livro I

Aquele que vem do Alto é superior a todos. O que vem da


Terra, é da Terra, e terrestre é a sua linguagem. Aquele que
vem do Céu é superior a todos. Ele testifica o que viu e ouviu,
mas ninguém recebe o seu testemunho. Aquele que recebe o
seu testemunho, certifica que Deus é verdadeiro.96

42. Refletindo, portanto, a cegueira que o gênero humano


contraiu em sua longa noite de ignorância e orgulho, o Criador do
mundo veio ao mundo “e o mundo não o reconheceu”97. – “A Luz
resplandeceu nas trevas, e as trevas não a receberam”98. – Aquele
que é superior a todos “testifica o que viu e ouviu, mas ninguém
recebe o seu testemunho”. Mas não foi em vão que o Deus Filho
de Deus desceu a este mundo, entregou-se por todos e morreu,
não apenas por uma nação, mas para congregar em um só Povo
todos os filhos de Deus que andavam dispersos. E Ele diz ao Uni-
verso99: “Vinde a Mim todos os que estais fatigados e sobrecarre-
gados”. Mantendo para Si o arbítrio da eleição, o qual é incognos-
cível para nós, Ele comunica a boa notícia de Si mesmo e do Pai a
quem Ele a queira revelar100.

96. Jo 3,31ss.
97. Jo 1,10.
98. Jo 1,5.
99. Aqui temos uma referência do V século à catolicidade (universali-
dade) da Igreja (ἐκκλησία [Ekklesía] = congregação) (N. do R.).
100. Ou ‘comunica a boa nova’: aparentemente este trecho faz referên-
cia a ‘Evangelho’, que significa ‘notícia’: a ‘boa nova’ anunciada pelos
cristãos e que muitos ouvem, mas à qual nem todos aderem, porque
não o receberam (apenas ouviram), como diz o Senhor: ‘Porque a vós é
concedido conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não lhes
é concedido. Porque ao que tem lhe será dado, e terá em abundância, mas
ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo em pará-
bolas, porque vendo não veem, e ouvindo não ouvem nem entendem. E

74
São Próspero de Aquitânia

Por essas razões, todos os filhos da Luz, filhos da Promes-


sa, filhos de Abraão, filhos de Deus, um povo eleito, um sacerdó-
cio real, os verdadeiros Israelitas, pré-conhecidos e pré-ordenados
para o Reino de Deus, chamados não apenas dentre os judeus, mas
também dentre os gentios, aceitam a Palavra d’Aquele que desceu
do Céu e, ao fazê-lo, expressam a veracidade de Deus; isto é, eles
mostram claramente, por sua própria salvação, que Deus é verda-
deiro; a saber, que Ele está verdadeiramente cumprindo a Promessa
feita a Abraão, o pai de todas as nações: quando lhe foi prometido
por Deus que ele seria o herdeiro do mundo, “ele não hesitou [por
desconfiança] nem lhe faltou fé perante a Promessa de Deus, mas
firmou-se na fé, dando glória a Deus, plenamente convencido de
que Deus é poderoso para cumprir tudo o que prometeu”101.

Mas quem é tão alheio à fé de Abraão? Quem se perdeu


tanto de sua descendência do “Pai de todas as nações”, que possa
dizer que a Promessa de Deus não é cumprida, ou que seja cum-
prida por outro que não Aquele mesmo que a fez? Tal homem
seria um mentiroso. Mas Deus é verdadeiro, e todos os que acei-
tam a sua Palavra tornam-se testemunhas vivas a proclamar que
a Luz de Deus, brilhando neles, fez com que vissem, fez com que
obedececem, fez que entendessem. Assim é que atesta São João
Evangelista, dizendo:

Sabemos que somos de Deus, e que todo o mundo está sob o


maligno. Mas sabemos que veio o Filho de Deus e que nos deu
entendimento para que conheçamos o Verdadeiro (Deus). Ora

cumpre-se neles a profecia de Isaías (6,9-10): Ouvireis com os ouvidos,


e não entendereis; olhareis com os vossos olhos, e não vereis. Porque o
coração deste povo tornou-se insensível, os seus ouvidos tornaram-se
duros, e fecharam os olhos...’ (Mt 13,10-15) (N. do T.).
101. Rm 4,20s.

75
A vocação de todos os povos – Livro I

nós estamos no Verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo. Este é


o Verdadeiro Deus e a Vida eterna.102

CAPÍTULO XXI
Não devemos procurar saber por que Deus
elege alguns e não outros, nem por que no
passado deixou de lado todos os gentios
e escolheu apenas Israel.
43. Pode-se perguntar o porquê de o Salvador de todos os
homens não ter concedido o entendimento que permite conhecer o
Deus verdadeiro e permanecer assim, no verdadeiro Filho de Deus.
Embora acreditemos que a ajuda da graça nunca tenha sido total-
mente negada a ninguém (trataremos disso mais detalhadamente
a seguir), ainda assim a resposta para a pergunta permanece velada,
do mesmo modo como está oculta de nós a razão pela qual Deus
anteriormente deixou de lado todos os gentios e tomou apenas um
povo para Si, a fim de elevá-lo ao conhecimento da Verdade. Se
não devemos reclamar deste Juízo de Deus, muito menos podemos
murmurar contra o seu modo de governar a eleição dos gentios.
Não devemos querer examinar aquilo que a Deus aprouve ocultar,
mas não podemos desconsiderar o que Ele manifestou; caso con-
trário, podemos ser ilicitamente curiosos sobre o primeiro caso e
merecer a culpa por não recebermos o segundo com gratidão.

44. Não ignoramos nós que algumas pessoas são tão de-
sarrazoadas em sua presunção – e tão arrogantes em seu orgulho
– que ousam profanar, com o seu pretenso aprendizado, aquilo que

102. 1Jo 51,9.

76
São Próspero de Aquitânia

diz o grande Apóstolo das Gentes: aquilo que não é ensinamento


de homens e nem foi dado por homens, mas por Deus, e que o
próprio Apóstolo confessou estar acima de todas as limitações do
seu conhecimento. Eles não veriam nada de misterioso ou secre-
to nas coisas sobre as quais o mesmo Apóstolo se absteve de dar
qualquer explicação, apenas deixando claro o que é que não deve-
mos procurar.

Como eu já disse, não é dado a nenhum estudo ou gênio


humano explorar, com incredulidade, o Decreto e o Projeto segun-
do os quais Deus, que é imutavelmente Bom, imutavelmente Justo,
sempre Conhecedor e Onipotente, “a todos encerrou na desobe-
diência, a fim de usar para com todos de misericórdia”103. Todavia
Deus levou séculos, enquanto educava Israel, para iluminar os in-
contáveis povos
​​ infiéis; e agora Ele permite que o mesmo Israel
fique cego até que a universalidade dos gentios entre no rebanho
[de Cristo]. Deus permite que milhares de pessoas nasçam e mor-
ram para se perderem, quando somente aqueles que conhecem o
fim do mundo alcançarão a salvação104.

A partir da explicação que todas as Escrituras dão desse


mistério, aprendemos o que aconteceu no passado, o que está ocor-
rendo no momento e o que resta por acontecer. Mas o porquê de o
bom desígnio de Deus ter decretado tudo isso, é retido do conheci-
mento e da compreensão humana.

103. Rm 11,32.
104. A palavra ‘fim’ (do mundo), usada aqui, parece ter sentido de ‘fina-
lidade’, ‘causa final’, mais do que de término (N. do R.).

77
A vocação de todos os povos – Livro I

CAPÍTULO XXII
Os que veem no mérito a razão pela qual Deus
distingue os eleitos dos não eleitos dizem que
ninguém é salvo gratuitamente, mas apenas por
justiça. O caso dos bebês refuta essa posição.
45. Aqueles homens que se envergonham de reconhecer a
própria ignorância em qualquer assunto e que, quando confronta-
dos com uma pergunta obscura, lançam mão de suas armadilhas de
engano, veem no mérito humano a razão pela qual Deus discerne
quem Ele elege dos muitos a quem Ele não elegeu – porque “mui-
tos são os chamados e poucos os escolhidos”105. Por conseguinte,
ensinam estes que ninguém é salvo gratuitamente, mas apenas por
[justa] retribuição, porque todos os homens são capazes, por vias
naturais, de serem partícipes Verdade, se assim o desejarem, e a
graça é dada livremente a todos os que pedem por ela.

Esta afirmação – para não falar agora do que realmente se


deve entender por graça – pode ser capaz de mostrar algum tipo de
pretensão no caso de adultos que usam o livre-arbítrio. Mas para o
caso dos bebês, que não têm o mérito da boa vontade106 e que, as-
sim como todos os outros mortais, são feridos pela vulnerabilidade
original107, eles não podem oferecer nenhuma explicação. Por que

105. Mt 20,16.
106. Boa vontade: a vontade ordenada, reta. Supõe a vontade de se fa-
zer o bem, mas é paradoxalmente uma expressão mais ampla. Tomando
como exemplo um glutão, este pode ter a vontade para fazer o bem (já
que o prazer do gosto é um bem), mas não possui uma vontade boa/boa
vontade (N. do R.).
107. Causada, por suposto, pelo Pecado original (N. do R.).

78
São Próspero de Aquitânia

alguns deles são regenerados no Batismo e salvos, enquanto outros


perecem sem renascer?108

Como isso pode acontecer, apesar de a Providência e da


Onipotência de Deus, que “tem em sua mão a alma de todo o
vivente e o sopro da vida de toda a carne humana”109 e como tam-
bém foi dito: “Os dias do homem são breves; em teu poder está o
número dos seus meses”110.

108. Aqui somos postos diante de um dos temas mais difíceis da Teolo-
gia e que na época de São Próspero, como ainda hoje, não fora definido
infalivelmente. As crianças que recebem a graça (pelo batismo) nada
fazem para merecê-la, e as que não a recebem, nada para desmerecê-la,
pois ninguém a merece. De algum modo por nós desconhecido Deus
pode salvar as crianças não batizadas (nascidas no Pecado, mas incul-
páveis quanto à vontade)? A Igreja admite que sim (vide ‘A esprerança
da salvação para as crianças que morrem sem batismo’, pela Comissão
Teológica Internacional/Congregação para a Doutrina da fé, aut. por
Bento XVI em 2007). Poderia Deus, ao contrário, condená-las, por mo-
tivos justos que só Ele conhece? Sim, também. Pode ainda colocá-las
pela eternidade em uma situação ‘intermediária’ entre o sofrimento do
Inferno e a felicidade perfeita do Céu (o Limbo)? Sim, e esta foi a po-
sição mais aceita por um longo tempo. Nada disso, porém, é dogmá-
tico, sendo apenas uma coisa certa e certíssima: todos os que morrem
sem o batismo, se puderem ser salvos, o serão pelos Méritos de Cristo,
integrando o Corpo de Cristo por algum meio que só Deus conhece.
Em resumo, a posição de São Próspero parece ser esta: Deus salva ou
condena, por meios conhecidos e desconhecidos. Os conhecidos são os
sacramentos e a santidade; sobre os desconhecidos, não podemos fazer
mais do que conjecturar, e não nos é lícito pretender julgar os Juízos
inescrutáveis de Deus. Sabemos que Deus quer que todos os homens se
salvem e cheguem ao conhecimento da Verdade, mas devemos suplicar
incessantemente e trabalhar pela conversão do mundo (N. do T./R.).
109. Jó 12,10.
110. Jó 14,5,

79
A vocação de todos os povos – Livro I

46. Contudo, não creio que esses “patronos da vondade” ou-


sem abusar tão imprudentemente da simplicidade dos homens a
ponto de afirmar que tudo isso acontece por acaso, ou que os não
renascido não estejam perdidos – pois assim eles mostrariam cla-
ramente que compartilham dos pontos de vista dos pagãos sobre
o destino, ou da narrativa pelagiana que renega que o Pecado de
Adão seja transmitido à sua posteridade. Mas nem os pelagianos
poderiam dizer que é devido ao destino que crianças não recebam
o batismo. E quando se aventuraram a afirmar que os bebês estão
livres do Pecado, foram merecidamente condenados. Mas quando
a questão é levantada sobre a discriminação111 de todos os homens,
não se pode excluir as crianças do gênero humano.

Visto que Aquele que é a Verdade disse a todos os homens


de todas as idades, indiscriminadamente: “O Filho do homem veio
buscar e salvar o que estava perdido”112, eles tentam em vão sondar
a profundidade da graça que é insondável, e com a sua [enganosa]
noção de “livre-arbítrio” querem encontrar nos méritos humanos
a razão da eleição de todos os que foram salvos. Embora tenham
avançado em muitas declarações – tolas e falsas – sobre a vontade e
o julgamento dos adultos, eles falham em explicar a eleição entre os
bebês; não podem se gloriar de ter dado uma resposta satisfatória
a uma pergunta que diz respeito a todos os homens, pois eles não
conseguem resolver o problema em todos os casos.

111. ‘Discriminação’, aqui, significa ‘separação’: refere-se à eleição


que Deus faz de uns e não de outros (N. do R.).
112. Lc 19,10; Mt 18,11.

80
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XXIII
Todo mérito humano, desde o início da fé
até a perseverança final, é dom divino.
47. A rica variedade e a grandeza da graça divina demons-
tram que as teorias desses homens são falsas, mesmo quando falam
da vontade dos adultos: a evidência da Palavra Divina refuta a sua
opinião. Se quiséssemos citar todos esses textos, esta nossa disserta-
ção nunca terminaria. No entanto, mencionaremos alguns que vêm
à mente. Nosso propósito é mostrar, na medida do necessário, que o
mérito de um homem, desde o início da fé até a perseverança final,
é dom e obra de Deus.

48. Começando pela fé, que é a mãe da boa vontade e das


ações justas, São Paulo Apóstolo explica a razão de dar graças a
Deus pela fé dos romanos, nas seguintes palavras: “Primeiramente
dou graças ao meu Deus, por Jesus Cristo, em nome de todos vós,
porque a vossa fé é celebrada em todo o mundo”. Ao escrever tam-
bém aos efésios, ele diz:

“Por isso, eu também, tendo ouvido qual a fé que tendes no


Senhor Jesus e o amor para com todos os santos, não cesso de
dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas ora-
ções, para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai de
Glória, vos dê um espírito de sabedoria e de revelação, para o
conheeerdes, iluminando os olhos do vosso coração, para que
conheçais qual a esperança a que ele vos chamou, quais as ri-
quezas da glória da sua herança reservada aos santos.”113

113. Ef 1,15-18.

81
A vocação de todos os povos – Livro I

De igual modo, agradecendo a Deus pela fé dos colossenses,


diz ele:

Damos graças a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,


rezando sempre por vós, conhecedores da vossa fé em Jesus
Cristo e da caridade que tendes para com todos os santos, le-
vados pela esperança que vos está reservada nos Céus, da qual
tivestes conhecimento pela Palavra da Verdade do Evangelho,
o qual chegou até vós, como a todo o mundo, e frutifica e cres-
ce incessantemente, desde o dia em que ouvistes e conhecestes
a graça de Deus na verdade, conforme aprendestes de Epafras,
nosso muito amado companheiro no serviço, o qual é por vós
fiel ministro de Cristo, o qual também nos informou da cari-
dade que o Espírito vos inspira. Por esse motivo, nós também,
desde o dia em que ouvimos isso, não cessamos de orar por
vós e de pedir que sejais cheios de conhecimento da sua von-
tade, em toda a sabedoria e inteligência espiritual, a fim de
que andeis de um modo digno do Senbor, agradando-lhe em
tudo, frutificando em toda a boa obra e crescendo na ciência
de Deus, confortados em tudo pelo seu poder glorioso, para
suportar tudo com paciência, longanimidade e alegria...114

No mesmo sentido, aos tessalonicenses, com seu ardente es-


pírito de fé e amor, ele diz:

graça e paz vos sejam dadas. Damos sempre graças a Deus por
todos vós, fazendo continuamente memória de vós nas nossas
orações, lembrando-nos, diante de Deus, nosso Pai, da obra da
vossa fé, do trabalho da vossa caridade e da constância da vossa
esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo.115

E mais adiante:

114. Cl 1,3-11.
115. 1Ts 1,2s.

82
São Próspero de Aquitânia

Por isso, também damos sem cessar graças a Deus, porque, ten-
do vós recebido a Palavra de Deus, que ouvistes de nós, a abra-
çastes, não como palavra dos homens, mas, segundo é, na ver-
dade, como Palavra de Deus, que opera em vós, que crestes.116

Poderia haver uma prova mais completa ou mais evidente


de que a fé dos crentes é um dom de Deus do que tais agradeci-
mentos, dados a Deus precisamente porque os que ouviram a sua
Palavra pela pregação do homem não creram nela como vinda da
boca de um homem, mas creram em Deus falando através dos ho-
mens e produzindo em seus corações essa mesma fé?

Em sua Segunda Epístola aos mesmos tessalonicenses, o


Apóstolo fala sobre a fé daqueles que estão avançando em Cristo,
com as seguintes palavras:

Nós devemos, irmãos, dar sempre graças a Deus por vós, como
é justo, porque a vossa fé vai em grande aumento e abunda em
cada um de vós a caridade mútua. Também nós mesmos nos
gloriamos de vós nas igrejas de Deus, pela vossa paciência e
fé, no meio de todas as perseguições e tribulações que sofreis.
Elas são prova do justo juízo de Deus, para que sejais tidos por
dignos do Reino de Deus, pelo qual padeceis.117

São Pedro Apóstolo também prega que a fé vem de Deus,


ao escrever:

...sabendo que fostes resgastados da vossa vã maneira de viver


recebida de vossos pais, não a preço de coisas corruptíveis, de
prata ou de ouro, mas pelo precioso Sangue de Cristo, o Cor-
deiro sem defeito e sem mancha, designado antes da criação
do mundo e manifestado nos últimos tempos por amor de vós.

116. 1Ts 2,13.


117. 2Ts 1,3-5.

83
A vocação de todos os povos – Livro I

Por Ele tendes fé em Deus, o Qual o ressuscitou dos mortos


e o glorificou, de maneira que a vossa fé e a vossa esperança
estejam em Deus.118

E o mesmo Apóstolo novamente, em sua Segunda Epístola,


fala de receber a fé com estas palavras: “Simão Pedro, servo e Após-
tolo de Jesus Cristo, aos que receberam uma fé tão preciosa como a
vossa, pela justiça de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”119.

49. São João Apóstolo manifesta claramente a Fonte do es-


pírito de fé, quando diz: “Todo o espírito que confessa que Jesus
Cristo veio em carne, é de Deus; todo o espírito que não confessa
Jesus, não é de Deus, mas é um anticristo”120.

Ele também diz que apenas os homens que têm o espírito


da verdade aceitam o Evangelho. “Nós”, diz ele, “somos de Deus.
Quem conhece a Deus, ouve-nos; quem não é de Deus, não nos
ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do
erro”. Novamente, nos Atos dos Apóstolos, ouvimos São Pedro
Apóstolo proclamando o mesmo, que a fé vem do Senhor Jesus
Cristo. Ele diz: “Mediante a fé em seu nome é que o seu mesmo
nome deu firmeza a este que vós vedes e conheis; e a fé que vem
d’Ele foi que deu a este uma cura perfeita à vista de todos vós”121.

Na mesma narração, lemos sobre a fé de Lídia, a quem o


Senhor destacou entre as mulheres que ouviram o Evangelho, para
abrir o seu coração:

118. 1Pd 1,18-21.


119 2Pd 1,1.
120. 1Jo 4,3.
121. At 3,16.

84
São Próspero de Aquitânia

No dia de sábado, saímos fora das portas, junto de uma ri-


beira, onde julgávamos haver um lugar de oração. Sentan-
do-nos, falávamos as mulheres que tinham concorrido.Uma
mulher, chamada Lidia, da cidade de Tiatira, que negociava
em púrpura, temente a Deus, ouvia-nos. O Senhor abriu-
-lhe o coração, para atender àquelas coisas que Paulo dizia.122

50. A fé não vem da sabedoria humana, mas da Inspiração


divina; porque o Senhor disse aos seus discípulos: “‘E vós, quem
dizeis que Eu Sou ?’ Respondendo Simão Pedro, disse: ‘Tu és
o Cristo, o Filho de Deus Vivo’. Respondendo Jesus, disse-lhe:
‘Bem-aventurado és, Simão Bar-Jona, porque não foi a carne e o
sangue que te revelaram, mas meu Pai que está nos Céus’”123.

São Paulo Apóstolo prega que essa mesma fé é dada em


uma medida determinada pelo arbítrio do Doador:

Digo, pois, pela graça que me foi dada, a todos os que estão
entre vós, que ninguém tenha de si uma estima maior do que a
que deve ter, mas sentimentos modestos, segundo a medida da
fé, distribuída por Deus a cada um124.

Ele também escreve que é Deus Quem dá unidade na ver-


dadeira fé e o consenso em louvar a Deus, com esta recomendação:

O Deus da paciência e da consolação vos conceda ter uns para


com os outros os mesmos sentimentos segundo Jesus Cristo,

122. At 16,13s.
123. Mt 16,16s.
124. Rm 12,3s.

85
A vocação de todos os povos – Livro I

para que, unânimes, a uma boca, glorifiqueis a Deus e Pai de


Nosso Senhor Jesus Cristo.125

E antes: “O Deus, pois, da esperança vos encha de toda a


alegria e de paz na fé, para que abundeis na esperança pela virtude
do Espírito Santo”126. Aí temos o fiel testemunho de que não ape-
nas a fé, mas também a alegria, a paz e abundância de esperança
são coisas que não podem ser obtidas a não ser pelo poder do
Espírito Santo.

51. Mais uma vez, escrevendo aos efésios, o Apóstolo men-


ciona as riquezas da graça que tornam o mal em bem; afirmando
que a fé não é uma conquista nossa, mas um dom de Deus, ele diz:

Mas Deus, que é rico em misericórdia, pela extrema caridade


com que nos amou [mesmo] estando nós mortos pelos peca-
dos, convivificou-nos em Cristo, (por cuja graça fostes salvos).
Com Ele, ressuscitou-nos (para uma vida nova) e nos fez as-
sentar nos Céus com Jesus Cristo, a fim de mostrar aos séculos
futuros as abundantes riquezas da sua graça, por meio da sua
bondade para conosco em Jesus Cristo. Porque pela graça fos-
tes salvos, mediante a fé, e isto não (vem) de vós, porque é um
dom de Deus; não (vem) das (vossas) obras (praticadas sem a
sua graça), para que ninguém se glorie. Realmente somos obra
sua, criados em Jesus Cristo para as boas obras, que Deus pre-
parou para caminharmos nelas.127

Logo, a nova criatura, que nasce pela graça, é obra de Deus:


por meio de um nascimento celestial , foi estabelecida em Cris-
to, não se entrega a uma vida ociosa nem se entrega à preguiça,

125. Rm 5,5s.
126. Rm 5,13.
127. Ef 2,4-10.

86
São Próspero de Aquitânia

mas antes avança de virtude em virtude ao longo do tempo, no


caminho das boas obras. Este é o significado de ser “sua obra”,
de ser mudado da criação antiga para a nova, de ser reformado
da semelhança do homem terreno para a semelhança do homem
celestial. Isso pode ser feito visivelmente, por meio da cooperação
com a graça, ou de maneira oculta, pelo ministério do Espírito.
Em qualquer dos casos, tanto o início quanto o crescimento e a
conclusão são obras d’Aquele cuja criação, cuja edificação e cuja
obra nós somos.

CAPÍTULO XXIV
Deus é o Autor de todo bem no homem pela graça.
52. Esse é o testemunho das Escrituras, e nós poderíamos
reunir muitos outros textos que demonstram abundantemente que
a fé que justifica um pecador não pode ser obtida se não for por
dom de Deus, e que não é uma recompensa por méritos anteriores.

Em vez disso, é fato que a fé pode ser uma fonte de mérito e,


embora não seja pedida por si mesma, as orações que inspira obtêm
todos os outros favores. Para prová-lo, é preciso citar alguns textos
dentre muitos que mostrarão a recompensa da graça na variedade
de seus dons. Para começar, é Deus Quem faz com que um homem
escolha o caminho de Deus, ou se levante de uma queda, como
lemos no Salmo em que Davi canta: “Os passos do homem são fir-
mados pelo Senhor, e é-lhe grato o seu caminho. Ainda que caia,
não ficará prostrado, porque o Senhor o toma pela mão”128.

128. Sl 37(36),23s.

87
A vocação de todos os povos – Livro I

Ele também diz que Deus guia os homens em direção a Si:


“Envia a tua luz e a tua fidelidade: elas me guiem, conduzam-me
ao teu santo Monte e aos teus Tabernáculos”129. E também diz que
a força do homem repousa no Senhor, e que a vontade de Deus
toma a iniciativa da libertação do homem: “Força minha, para ti me
volto, porque Vós, ó Deus, sois a minha Fortaleza”130. Nos Provér-
bios, lemos também sobre sabedoria e entendimento: “Com efeito,
o Senhor é que dá a sabedoria, e de sua boca procedem a prudên-
cia e a ciência”131.

No mesmo Livro, novamente são afirmadas as dispensações


da sabedoria de Deus, sem as quais nenhuma ação é reta: “Meu é
o conselho e a equidade, minha é a inteligência, minha a fortaleza.
Por Mim reinam os reis, e por Mim decretam os legisladores o que
é justo”132. Igualmente em outros lugares está escrito que ninguém
pode andar retamente a não ser pelo Senhor:

“Os passos do homem são dirigidos pelo Senhor: mas que


homem pode compreender o seu próprio destino?”133

“Todo o caminho do homem lhe parece, a ele próprio, direi-


to; o Senhor porém pesa os corações.”134

“Meus caminhos são preparados pelo Senhor.”135

129. Sl 43,3.
130. Sl. 59(58),10.
131. Pv 2,6.
132. Pv 8,14.
133. Pv 20,24.
134. Pv 21,2.
135. Pv 8,35 (LXX).

88
São Próspero de Aquitânia

“No coração do homem (agitam-se) muitos pensamentos;


porém, o desígnio do Senhor é o que [sempre] se realiza.”136

No Livro do Eclesiastes, acha-se escrito que tanto para ter-


mos o que precisamos quanto para fazer bom uso de tudo, depen-
demos de Deus:

Pareceu-me, pois, bem que o homem coma e beba, e colha com


alegria o fruto do seu trabalho com que se afadiga debaixo do
Sol durante o número dos dias da vida, que Deus lhe dá; esta é a
sua parte. Quando um homem recebe de Deus riquezas e bens,
e a possibilidade de comer deles, desfrutar a sua parte e viver
alegre no seu trabalho, isto é dom de Deus.137

Novamente, no mesmo Livro, lemos que os corações e as


obras dos justos estão nas mãos de Deus e que eles têm sucesso em
suas buscas na medida em que Ele concede sucesso:

(...)...o homem não pode descobrir as obras que se fazem de-


baixo do sol. Por mais que o homem se afadigue a procurar,
não encontra; até o sábio, se pretender conhecer, não conseguirá
descobrir. Resolvi todas estas coisas no meu coração, para dili-
gentemente as entender: os justos e sábios, com as suas obras,
estão na mão de Deus...138

No Livro da Sabedoria é dito sobre a mesma obra da graça:


“Ele é o guia da sabedoria e o Diretor dos sábios. Estamos na mão
d’Ele, nós e as nossas palavras, e toda a sabedoria e a disciplina” 139.

136. Pv 19,21.
137. Ecl 5,17s.
138. Ecl 8,17;9,1.
139. Sb 7,15s.

89
A vocação de todos os povos – Livro I

O mesmo livro refere-se à continência como um favor que


vem de Deus: “[Eu] sabia que não podia obter a continência, se
Deus não me a desse – e era já prudência o saber de Quem vi-
nha este dom...”140. E os ensinamentos de Paulo Apóstolo estão de
acordo com essa opinião quando ele escreve, na Primeira Epístola
aos Coríntios: “Porque eu queria que todos fossem como eu; po-
rém, cada um tem de Deus o seu próprio dom: um de um modo, e
outro de outro”141. Nosso Senhor também insinuou o mesmo sobre
o dom da continência, conforme relatado no Evangelho segundo
São Mateus. Quando Seus discípulos disseram: “Se tal é a condi-
ção do homem a respeito de sua mulher, não convém casar”, Jesus
respondeu: “Nem todos compreendem esta palavra, mas somente
aqueles a quem foi concedido”142.

53. Do temor de Deus e da sabedoria, lemos em Eclesiás-


tico: “O temor do Senhor é a coroa da sabedoria; um e outra são
dons de Deus”143; e também lemos no mesmo livro: “O temor de
Deus eleva-se sobre tudo. Bem-aventurado o homem que recebeu
o dom do temor de Deus”144. Isaías fala igualmente das riquezas
espirituais das quais o Senhor é o Autor, pelas seguintes palavras:
“Os tesouros da nossa salvação trazem sabedoria, piedade e o temor
do Senhor: aqui estão os tesouros da justiça”145. Da mesma forma,
sobre a profundidade das riquezas da sabedoria e ciência de Deus,
cuja bondade nenhum mérito do homem pode superar, ele diz:

140. Sb 8,21.
141. 1Cor 7,7.
142. Mt 19,10.
143. Eclo 1,22s.
144. Eclo 25,14-15.
145. Is 33,6 (LXX).

90
São Próspero de Aquitânia

Quem mediu as águas com a concavidade da sua mão, e os céus


com o seu palmo? Quem mediu com o alqueire toda a mas-
sa da Terra e pesou as montanhas na báscula, e os outeiros na
balança? E quem dirigiu o Espírito do Senhor? Quem foi o
seu conselheiro, e lhe mostrou (o que devia fazer)? Com quem
tomou Ele conselho, quem o instruiu e lhe ensinou a vereda da
justiça, quem lhe ensinou a sabedoria e lhe mostrou o caminho
da inteligência? (...) Ou quem lhe deu alguma coisa, primeiro,
para que tenha o que receber em troca?146

Em outro lugar, no Livro de Jó, temos no mesmo sentido as


palavras do Senhor: “Quem me deu a Mim alguma coisa antes,
para que eu tenha de retribuir-lhe? Tudo o que há debaixo do céu
é meu.”147. Mais adiante, no Livro de Jeremias, lemos no mesmo
sentido as palavras divinas: “Eu sei, Senhor, que o caminho do
homem não está no seu poder, que o homem que anda não pode
dirigir os seus passos”148. E novamente o Senhor proclama através
do mesmo Profeta que Deus opera a conversão do coração:

...volverei para eles os meus olhos propícios, e reconduzi-los-ei


a este país; edificá-los-ei e não mais os destruirei, plantá-los-ei
e não mais os arrancarei. Dar-lhes-ei um coração (dócil), para
que me conheçam, para que saibam que Eu Sou o Senhor;
serão para mim o meu povo, e Eu serei para eles o seu Deus,
porque se converterão a Mim de todo o seu coração149.

Baruch proclama também que o conhecimento de Deus


vem de Deus mesmo: “...saberão que Eu Sou o Senhor seu Deus.

146. Is 40,12-14. Rm 11,35.


147. Jó 41,2.
148. Jr 10,23
149. Jr 24,6s.

91
A vocação de todos os povos – Livro I

Dar-lhes-ei um (novo) coração, com que entenderão, e ouvidos


com que ouvirão”150.

54. Na Primeira Carta aos Coríntios, São Paulo Apóstolo


ensina que toda boa palavra e toda ação santa são inspiradas pelo
Espírito Santo, sem as quais não podemos fazer o que é certo. Diz:

Portanto faço-vos saber que ninguém que fala pelo Espírito de


Deus diz: ‘Maldito seja Jesus’. E ninguém pode dizer: ‘Jesus é
o Senhor’, senão pelo Espírito Santo. Há, com certeza, diver-
sidade de graças, mas um mesmo é o Espírito; e os ministérios
são diversos, mas um mesmo é o Senhor; e as operações são
diversas, mas o mesmo Deus é que opera tudo em todos. A cada
um é dada a manifestação do Espírito para utilidade comum.
Assim, a um é dada pelo Espírito a linguagem da sabedoria;
a outro, a linguagem da ciência, segundo o mesmo Espírito; a
outro, a fé, pelo mesmo Espírito; a outro, o dom das curas, pelo
mesmo Espírito; a outro, o dom de operar milagres; a outro, a
profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a varie-
dade de línguas; a outro, a interpretação das línguas. Mas todas
estas coisas as opera um só e o mesmo Espírito, repartindo a
cada um como quer.151

55. O mesmo Apóstolo, escrevendo aos efésios, afirma que


cada um possui tanta graça quanto o Senhor lhe dá:

Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chama-


dos a uma só esperança pela vossa vocação. Há um só Senhor,
uma só fé, um só batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que
está acima de todos, que opera em todos e está em todos. Mas a
cada um de nós foi repartida a graça segundo a medida do dom

150. Br 2,31.
151. 1Cor 12,3-11.

92
São Próspero de Aquitânia

de Cristo. Pelo que (a Escritura) diz: ‘Tendo subido ao alto,


levou cativos e distribuiu dons entre os homens’ (Sl 68,19).152

O mesmo [Apóstolo] em sua segunda Epístola aos Corín-


tios, diz que não podemos sequer conceber um pensamento espiri-
tual, se não for com a graça de Deus:

E temos essa confiança em Deus, por Cristo. Não que sejamos


capazes, por nós, de pensar alguma coisa (sobrenaturalmente
boa), como vinda de nós mesmos, mas a nossa capacidade vem
de Deus, o qual também nos fez idôneos ministros da nova
Aliança, não pela letra (da Lei), mas pelo Espírito, porque a
letra mata, mas o Espírito vivifica.153

E novamente, na mesma Epístola, ele ensina que a graça de


Deus dá eficácia e suficiência às boas obras. Ele estabelece:

Deus é poderoso para fazer abundar em vós todos os bens para


que, tendo sempre em todas as coisas tudo o que é suficiente,
abundeis em toda a obra boa, como está escrito: ‘Espalhou, deu
aos pobres; a sua justiça dura para sempre (S. 112,9). Aquele
(Deus), que subministra semente ao semeador, dará também
pão para comer, multiplicará a vossa semente e aumentará sem-
pre mais os frutos da vossa justiça, para que, enriquecidos com
todas as coisas, tenhais abundantemente com que fazer toda a
sorte de liberalidades, que, por meio de nós, provoquem ações
de graças a Deus.154

56. Quando escreveu aos efésios, o Apóstolo ensinou-lhes


que todas as coisas boas pelas quais o homem agrada a Deus são

152. Ef 4,4-8.
153. 2Cor 3,4ss.
154. 2Cor 9,8-11.

93
A vocação de todos os povos – Livro I

dons divinos, e que todos precisam suplicar para que Ele as conceda
a todos os que ainda não as receberam:

Por essa causa dobro os joelhos diante do Pai, do qual toda pa-
ternidade nos Céus e na Terra toma o nome, para que, segundo
a riqueza da sua Glória, faça crescer em vós o homem interior,
pelo seu Espírito, e que Cristo habite pela fé os vossos corações,
para que, arraigados e fundados na caridade, possais compreen-
der, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura
e a profundidade (do amor de Cristo para com os homens), e
conhecer também aquele amor de Cristo que excede toda a ciên-
cia, de maneira que fiqueis cheios de toda a plenitude de Deus.
Aquele que é poderoso para fazer todas as coisas mais abundan-
temente do que pedimos ou entendemos, segundo a virtude que
opera em nós, a Esse glória na Igreja e em Jesus Cristo, por todas
as gerações e por todos os séculos. Assim seja.155

57. O Autor de todo bem é Deus, cujos dons, nem incertos


nem mutáveis, fluem de sua vontade eterna. São Tiago Apóstolo o
declara, nos seguintes termos:

Não queirais, pois, enganar-vos, irmãos meus muito amados.


Toda a dádiva excelente, todo o dom perfeito vem do Alto e
desce do Pai das luzes, no qual não há mudança, nem sombra de
vicissitude. Por sua vontade nos gerou pela palavra da verdade, a
fim de que sejamos como que as primícias das suas criaturas.156

O Profeta Zacarias concorda com ele ao dizer: “O Senhor


seu Deus os salvará naquele dia, como rebanho do seu povo; à ma-
neira de pedras santas, brilharão sobre a sua terra” 157. O Evangelho

155. Ef 3,14-20.
156. Tg 1,16ss.
157. Zc 9,16.

94
São Próspero de Aquitânia

segundo São Mateus diz que a ciência e o intelecto são dons de


Deus, os quais Ele concede a quem quiser:

Chegando-se a Ele os discípulos, disseram-lhe: ‘Por que razão


lhes falas por meio de parábolas?’. Ele respondeu-lhes: ‘Porque
a vós é concedido conhecer os mistérios do Reino dos Céus,
mas a eles não lhes é concedido’158.

São João Evangelista também proclama que ninguém pos-


sui nenhum bem que não tenha recebido do Alto: “O homem não
pode receber coisa alguma, se lhe não for dada do Céu”159. Nesse
mesmo Evangelho, a Verdade, pessoalmente, ensina que ninguém
vem ao Filho senão aquele que é atraído pelo Pai, pois é Deus
Quem concede a qualquer homem que se aproxime d’Ele, seja pela
inteligência, seja pela obediência. Diz:

Ninguém pode vir a Mim, se o Pai que me enviou não o atrair;


e Eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos Profetas:
‘E serão todos ensinados por Deus’ (Is 54,13). Portanto, todo
aquele que ouve e aprende do Pai, vem a Mim.160

E mais: “...Eu vos disse que ninguém pode vir a Mim, se


não lhe for concedido por meu Pai”161.

58. A Autoridade das Sagradas Escrituras confirma o dom


e o auxílio divinos como coisas necessárias ao homem para que
progrida na fé e nas boas obras, e também para que persevere nelas
até o fim. Desse modo, São Paulo Apóstolo, escrevendo aos filipen-

158. Mt 13,10.
159. Jo 3,27.
160. Jo 6,44s.
161. Jo 6,65.

95
A vocação de todos os povos – Livro I

ses, diz: “...tenho confiança de que Aquele que começou em vós a


boa obra a completará até ao dia (da vinda) de Jesus Cristo”162. Al-
guém pretendia “explicar” de modo diferente esse texto, usando-o
para “provar”, com ele, o seu próprio ensino perverso; ele queria que
a parte do texto que diz “começou em vós a boa obra” fosse enten-
dida como “começou de vós”. Assim ele atribuiu o início e a con-
clusão da boa obra não a Deus, mas ao homem, cuja vontade seria
a responsável por tal início e conclusão. Mas, na mesma Epístola, o
grande pregador da graça destrói esse orgulho insano, dizendo:

Não tenhais medo dos adversários. Isto para eles é sinal de per-
dição, como, para vós, é de salvação. Tal é a vontade de Deus
(que vos dá coragem). Porque a vós é dada a graça em relação a
Cristo, não só de crer n’Ele, mas também de sofrer por Ele.163

E novamente ele diz: “Porque Deus é Quem opera em vós o


querer e o executar, segundo o seu beneplácito”164.

59. Do mesmo modo, em sua Primeira Epístola aos Tessa-


lonicenses, ele ensina que o início, o progresso e a perfeição de toda
virtude vêm de Deus, dizendo:

Que o mesmo Deus, Pai nosso, e Nosso Senhor Jesus Cris-


to, encaminhem os nossos passos para vós. O Senhor vos faça
crescer e abundar na caridade, uns para com os outros e para
com todos, assim como é a nossa para convosco. Que os vossos
corações, livres de culpa, sejam confirmados na santidade diante

162. Fl 1,6.
163. Fl 1,28s.
164. Fl 2,13.

96
São Próspero de Aquitânia

de nosso Deus e Pai, por ocasião da vinda de Nosso Senhor


Jesus Cristo, com todos os seus santos.165

Quando escreve aos coríntios, também declara que o pro-


gresso e a perseverança em todas as virtudes são dons de Deus:

Dou graças, incessantemente, ao meu Deus por vós, pela graça


de Deus que vos foi dada em Jesus Cristo, e porque n’Ele fostes
cumulados de todas as riquezas, de todas as (riquezas) da pala-
vra e da ciência, na medida em que a pregação de Cristo tomou
força entre vós, de maneira que nada falte em graça alguma a
vós, que esperais a manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo,
o Qual também vos confirmará até ao fim para que sejais irre-
preensíveis no dia da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. 166

Mais uma vez, escrevendo aos romanos, ele fala sobre a ca-
ridade de Cristo, pela qual torna invencíveis aqueles a quem ama,
ou seja, os que perseveram até o fim (pois, o que mais é perseverar,
senão não ser vencido pela tentação?):

Quem nos separará, pois, do Amor de Cristo? A tribulação?


A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A
espada? Segundo está escrito: Por Vós somos entregues à morte
todos os dias, somos reputados como ovelhas para o matadouro
(Sl 44,23).Mas de todas estas coisas saímos mais que vencedo-
res por Aquele que nos amou.167

Do mesmo modo aos coríntios ele falou sobre a vitória con-


quistada por Cristo: “O aguilhão da morte é o pecado, e a força do
pecado é a Lei. Porém, [demos] graças a Deus, que nos deu a vitória

165. 1Ts 3,11ss.


166. 1Cor 1,4-8.
167. Rm 8,35-38.

97
A vocação de todos os povos – Livro I

por Nosso Senhor Jesus Cristo”168. Igualmente aos tessalonicenses


falou da perseverança como um dom de Deus:

O Deus de paz, em Pessoa, vos santifique em tudo, a fim de que


todo o vosso ser, o espírito, a alma e corpo, conservem-se sem
culpa para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é aquele
que vos chamou, o Qual fará isso.169

Novamente aos tessalonicenses, para explicar que todo nos-


so bem, seja em ações ou em palavras, assim como a perseverança,
são dons de Deus, ele diz:

E o mesmo Senhor Nosso, Jesus Cristo, e Deus nosso Pai, o


Qual nos amou e nos deu uma consolação eterna e a boa es-
perança pela graça, console vossos corações e os confirme em
toda a boa obra e palavra. (...) Quanto ao mais, irmãos, orai por
nós para que a Palavra do Senhor se propague e seja glorificada,
como é entre vós, e para que sejamos livres dos homens impor-
tunos e maus, porque a fé não é de todos. Mas Deus é fiel: ele
vos confirmará e guardará do maligno.170

60. E também ouvimos o que São Pedro Apóstolo ensina


sobre nossa força e perseverança. Ele diz:

O Deus de toda a graça, que vos chamou em Jesus Cristo à sua


eterna Glória, depois que tiverdes sofrido um pouco, vos aper-
feiçoará, fortificará, consolidará, vos tornará inabaláveis. A ele,
o império pelos séculos dos séculos. Amém.171

168. 1Cor 15,56.


169. 1Ts 5,23s.
170. 2Ts 2,16s. 3,1ss.
171. 1Pd 5,10s.

98
São Próspero de Aquitânia

Já São João Apóstolo, explicando que a vitória dos santos é


obra de Deus, que vive neles, diz: “Vós, filhinhos, sois de Deus, e
alcançastes vitória sobre o mundo, porque o (Deus) que está em vós
é mais poderoso que o que está no mundo”172. E diz ainda: “Todo o
que nasceu de Deus vence o mundo; a vitória que venceu o mundo
é a nossa fé”173. No Evangelho segundo São Lucas, ressalta-se que
é Deus quem dá a perseverança na fé, nestes termos:

[ Jesus disse a Pedro:] ‘Simão, Simão, eis que Satanás te busca


com instância para vos joeirar como trigo; mas Eu roguei por ti,
para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, con-
forta os teus irmãos. (...) Orai para não cairdes em tentação174

Também no Evangelho de João vemos a Verdade dizendo de


suas ovelhas, as quais ninguém poderá nunca arrebatar de sua mão:

Porque não sois das minhas ovelhas; as minhas ovelhas ou-


vem a minha voz ; eu as conheço e elas me seguem. Eu lhes
dou a vida eterna; elas jamais hão de perecer, e ninguém as
arrebatará da minha mão.175

De modo semelhante e no mesmo Evangelho, ouvimos da


boca do próprio Senhor, quando fala daqueles que o Pai dá ao Fi-
lho, que de todos que vêm ao Filho ninguém se perde:

Todo o que o Pai me dá, virá a Mim; e aquele que vem a Mim,
não o lançarei fora. Porque desci do Céu não para fazer a mi-
nha vontade, mas a vontade d’Aquele que me enviou. Ora a

172. 1Jo 4,4.


173. 1Jo 5,4.
174. Jo 22,31.40.
175. Jo 10,26ss.

99
A vocação de todos os povos – Livro I

vontade d’Aquele que me enviou é que eu não perca nada do


que me deu, mas que o ressuscite no último dia.176

CAPÍTULO XXV
O problema de um homem receber a graça e
outro não, não podemos resolver. A resposta
não está no livre-arbítrio.
61. Existem muitas outras passagens nas Escrituras ca-
nônicas177 que foram aqui omitidas, intencionalmente, para que
este tratado não se tornasse prolixo. Os textos que citamos não
são poucos, e nem são ambíguos ou desprovidos de importância.
Estes afirmam claramente que tudo o que tem a ver com o mérito
humano para a vida eterna não pode ser iniciado, nem aumentado
e nem tornado perfeito sem a graça de Deus. Pelo contrário, todo
aquele que se orgulha por [usar bem o] livre-arbítrio deve se pros-
trar diante da famosa e irrespondível questão do Apóstolo: “Pois,
quem é que te distingue (entre os outros)? Que tens tu, que não
tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te glorias, como se o não
tiveras recebido?”178.

176. Jo 6,37-40.
177. A canonicidade das Sagradas Escrituras, (ainda havia debates
quanto ao Cânon bíblico à época em que este livro foi escrito), é dada
pela autoridade da Igreja, como disse Santo Agostinho: ‘Eu não creria
no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja Católica’
(apud CIC§119). São Próspero de Aquitânia tem muito claro que valer-
-se da autoridade das Escrituras canônicas é o mesmo que valer-se da
autoridade da Igreja, usando-a contra os hereges, tal qual seu grande
amigo e correspondente Agostinho de Hipona (N. do T./R.).
178. 1Cor 4,7.

100
São Próspero de Aquitânia

Logo, esse impenetrável problema, o qual confessamos –


juntamente com o Apóstolo – que não pode ser compreendido,
não é resolvido recorrendo-se aos atos do livre-arbítrio. Pois, em-
bora esteja em poder do homem rejeitar o que é bom, ainda assim,
a menos que lhe seja dado, ele também é incapaz de escolher por si
mesmo esse bem. O poder de rejeitar o bem foi contraído em nossa
natureza com o Pecado original; a natureza, então, encontra-se ne-
cessitada da graça.

62. Mas a natureza de todos os homens ante a reconciliação


é ré, em todos miserável e em ninguém justificada; apenas uma
parte dos perdidos é separada dos réprobos por Aquele que “veio
buscar e salvar o que estava perdido”179. Mas por que isso é assim,
o nosso senso humano não pode, de maneira alguma, descobrir.
Podeis apontar sempre com muita facilidade a iniquidade dos in-
crédulos, e condenar a sua resistência à graça de Deus: mas isso
acaso provará que aqueles a quem a graça foi dada a mereceram?
Ou será que essa mesma graça, que se submeteu a quem ela mesma
quis, permaneceu impotente para converter também aqueles que
permaneceram inconversíveis?

Aqueles que foram vencidos pela graça tinham a mesma na-


tureza da daqueles que foram abandonados na dureza de seu cora-
ção. Para o primeiro grupo, a graça estupenda concedeu aquilo que
quis; para o segundo, apenas a verdadeira Justiça lhes foi devida.
Na verdade, os julgamentos de Deus são ainda mais inescrutáveis​​
quando sua graça escolhe os eleitos do que quando sua Justiça pune
os réprobos.

63. Mas não podemos deixar a impressão de que a Doutrina


da nossa fé –, segundo a qual cremos devotamente que Deus deseja

179. Lc 19,10.

101
A vocação de todos os povos – Livro I

que todos os homens sejam salvos através do reconhecimento da


Verdade –, seja enfraquecida pelo que explicamos e provamos sobre
os efeitos da graça. Por esse motivo, devemos tentar mostrar, com
a ajuda de Cristo, que essa Doutrina permanece inatacável. Mas,
como é necessária uma grande quantidade de pesquisa para con-
cluir essa que é uma tarefa formidável, empreendamos a discussão
que ainda está por vir no início do nosso segundo livro.

102
A VOCAÇÃO
DE TODOS OS POVOS

– LIVRO II –

SOBRE A GRAÇA, A PREDESTINAÇÃO


E O LIVRE-ARBÍTRIO.
CAPÍTULO I
Três pontos são certos neste assunto:
Deus quer que todos os homens sejam salvos; o
conhecimento da verdade e a salvação vêm pela
graça; os juízos de Deus são inescrutáveis.
1. Se desistirmos completamente de todas as polêmicas que
surgem no calor das disputas imoderadas, ficará claro que devemos
manter três pontos sobre o problema que começamos a analisar
neste nosso livro segundo. Primeiro, devemos confessar que Deus
deseja que os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento
da Verdade. Em segundo lugar, não resta dúvida de que todos os
que realmente chegam ao conhecimento da Verdade e à salvação o
fazem não em virtude de seus próprios méritos, mas pelo alcance
da obra da graça divina.

Em terceiro lugar, devemos admitir que a inteligência hu-


mana é incapaz de compreender as profundezas dos juízos de
Deus, e não devemos perguntar o porquê de Aquele que deseja
que todos os homens sejam salvos, de fato, não os salve a todos.
Pois, se não procurarmos o que não podemos saber, não teremos
dificuldade em conciliar o primeiro ponto com o segundo, mas se-
remos capazes de pregar e acreditar neles com a segurança de uma
fé imperturbável. Deus, em Quem de fato não há injustiça, e cujos
caminhos “são misericórdia e verdade”1, é o Bom Criador de to-
dos os homens e seu justo Governante. Ele não condena ninguém
sem débitos, nem liberta por dever. Quando castiga os culpados,
castiga nossos deméritos e, quando nos justifica, concede-nos seus

1. Cf. Sl 24,10.
A vocação de todos os povos – Livro II

próprios dons. Assim, a boca é a parada desses que falam coisas


más. Deus é justificado nas suas palavras, e vence quando é por
eles julgado2. Nem os condenados podem alegar contra o Juízo,
nem os justificados podem ter arrogância – sejam uns dizendo não
merecer a pena, sejam outros pretendendo merecer a graça.

CAPÍTULO II
As Escrituras ensinam que Deus deseja
que todos os homens sejam salvos.
2. Não devemos profanar com a nossa dialética humana os
textos citados nas Escrituras divinas para explicar o que é a graça;
isso seria arrastar tantas declarações claras e concordantes para a
incerteza de uma interpretação enganosa. Do mesmo modo, ne-
nhuma argumentação em contrário deve contaminar aquilo que
encontramos no mesmo corpo das Escrituras sobre a salvação de
todos os homens. Pelo contrário, quanto mais difícil for o seu en-
tendimento, mais louvável será a fé daquele que crê.

Excelente é este consentimento, já que deriva da Autori-


dade como prova suficiente de Verdade, mesmo que o porquê das
coisas permaneça oculto.

3. Vamos, então, examinar diligentemente a ordem que


Nosso Senhor dá aos pregadores do Evangelho, segundo São Ma-
teus. Ele diz:

Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois, ensinai


todas as gentes, batizando-as em Nome do Pai e do Filho e do

2. Cf. Sl 62,12; 50,6.

106
São Próspero de Aquitânia

Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos


mandei. Eu estarei convosco todos os dias, até a consumação
dos séculos.3

Segundo São Marcos, Ele disse então aos mesmos Apósto-


los: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura.
O que crer e for batizado, será salvo; aquele que, porém, nâo crer,
será condenado”4. E esse mandamento distingue entre povos ou
homens? Não, Ele não acolhe ninguém por seus méritos, nem des-
taca alguém pelo nascimento, como também não faz diferencia-
ção por condições distintas5. O Evangelho da Cruz de Cristo foi
estendido a todos os homens, sem exceção. E para que ninguém
considere o ministério dos pregadores como um empreendimento
meramente humano, Ele disse: “Eu estarei convosco todos os dias,
até ao fim do mundo”6.

Quando fores como uma ovelha no meio de lobos, não te-


nhas medo por causa da tua fraqueza; tende confiança no Poder
d’Ele, pois Ele não te abandonará nessa grande missão, até o fim
do mundo. Não que tu não tenhas nada a sofrer; mas, o que é mui-
to maior, receberás a força para que não sejas vencido por nenhum
dos tiranos ou dos selvagens cruéis. Pois tu pregarás com o Poder
d’Ele; e através d’Ele acontecerá que, no meio dos teus oponen-
tes e perseguidores, surgirão filhos de Abraão, levantados das pró-
prias pedras. [Dirá o Senhor:] “Permanecestes na minha Doutrina,
cumprirei minha promessa”.

3. Mt 27,18ss.
4. Mc 16,15s.
5. Isto engloba o estado social, físico, etc. (N. do R.)
6 Mt 28,20.

107
A vocação de todos os povos – Livro II

Acautelai-vos dos homens, porque vos farão comparecer nos


seus tribunais, e vos açoitarão nas sinagogas. Sereis levados por
minha causa à presença dos governadores e dos reis, como tes-
temunho diante deles e diante dos gentios. Quando vos entre-
garem, não cuideis de como ou do que haveis de falar, porque
naquela hora vos será inspirado o que haveis de dizer. Porque
não sereis vós que falareis, mas o Espírito de vosso Pai é que
falará em vós. Irmão entregará à morte o seu irmão, e o pai
(entregará) o filho; filhos se levantarão contra os pais, e lhes
darão a morte. Vós, por causa do meu Nome, sereis odiados
por todos; aquele, porém, que perseverar até ao fim, será salvo.7

“Manifestou-se, com efeito, a graça de Deus, fonte de sal-


vação para todos os homens”8; e também os ministros dessa sua
graça foram odiados por todos. Há aqueles que odeiam, por um
lado, e por outro aqueles que são oprimidos pelo ódio dos seus per-
seguidores; mas note-se que nenhum desses grupos é excluído no
termo “todos os homens”, mesmo que a porção dos rebeldes tenha
sofrido a perda de sua salvação, enquanto os obedientes formam a
plenitude do número dos fiéis dignificados.

Já São Apóstolo João diz:

...se alguém pecar, temos um Advogado junto do Pai, Jesus


Cristo, o Justo. Ele é a Vítima de propiciação pelos nossos pe-
cados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo
o mundo.9

7. Mt 10,17-22.
8. Tt 2,11.
9. 1Jo 2,1s.

108
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO III
Não podemos saber por que Deus decretou
atrasar o chamado de algumas nações.
4. Encontramos o sinal de um grande e inefável mistério
no fato de que os mesmos pregadores a quem Nosso Senhor dis-
se: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”,
tenha já mandado: “Não vades (agora) para entre os gentios, nem
entreis nas cidades dos samaritanos; ide antes às ovelhas perdidas
da casa de Israel”10. Pois embora o chamado do Evangelho fosse
dirigido a todos os homens, e o Senhor quisesse que todos fossem
salvos e chegassem ao conhecimento da verdade, todavia Ele ainda
não se havia entregado a Si mesmo como poderosa Expiação, para
que essa ordem viesse. Ele havia decidido de outro modo em seu
julgamento justo e oculto. Portanto, não temos motivos justos para
murmurar, uma vez que aquilo que Deus quis não deveria aconte-
cer de outro modo além daquele que Ele quis.

Mais tarde, quando o Senhor Jesus já estava assentado na


Glória de Deus Pai, e quando os pregadores da Palavra de Deus
cumpriam a sua missão, os Apóstolos pretendiam pregar o Evan-
gelho na Ásia, mas foram proibidos pelo Espírito Santo11. E quan-
do eles tentaram escolher a Bitínia, foram proibidos pelo “Espírito
de Jesus”12; não porque a graça foi recusada a esses povos, mas,
tanto quanto podemos ver, foi apenas adiada. De fato, mais tarde a
fé cristã cresceu fortemente entre eles também.

10. Mt 10,5s.
11. Conf. At 16,6.
12. At 16,7.

109
A vocação de todos os povos – Livro II

Não está clara a razão pela qual Deus atrasou o chamado


desses povos. Mesmo assim, esse exemplo é uma lição objetiva.
Aprendemos que, dentre as coisas que Deus normalmente prome-
te, projeta ou ordena, Ele faz algumas exceções em alguns casos, e,
em sua Sabedoria, ordena tudo de maneira misteriosa. Creio que o
seu propósito seja o de tornar mais notória a misteriosa claridade
de alguns dos seus desígnios, em contraste com algumas coisas que
permanecem veladas, em obscuridade. Ele não quer que a nos-
sa investigação se torne preguiçosa por descobrirmos as verdades
sem muito esforço, como quando estamos cercados da segurança
dos objetos familiares, até que algo incomum surja para nos fazer
despertar13.

5. De todo modo, sabemos que esses atrasos incompreensí-


veis da iluminação acontecem, e isso significa que enquanto mui-
tos morrem na infidelidade – não apenas entre as nações distantes
dos infiéis, mas também nas cidades dos fiéis, em numerosas casas
e famílias, pois, eventualmente, quem se tornará cristão é adverso
à fé cristã, pois muitos amarão o que agora odeiam, e pregarão
aquilo que agora se recusam a aceitar.

Diante desses fatos, quem dirá aos queixosos e aos curiosos


por que o Sol da Justiça ainda não nasceu para alguns povos? Ou
por que a Verdade que um dia brilhará sobre eles ainda retém seus
raios aos seus corações envoltos em trevas? Por que futuros conver-
sos podem continuar nos seus erros por tanto tempo? Por que os
idosos recusam, durante uma longa vida, a Luz que vão enxergar só
no final? Por que alguns pais ainda não têm fé quando seus filhos

13. É digno de nota que este Santo Doutor não condena a investigação
filosófico-teológica, mas condena a presunção do querer ‘saber tudo’
(N. do R.).

110
São Próspero de Aquitânia

já creem em Cristo? Novamente, por que há a disparidade dos pais


devotos que têm filhos maus?

Mas é por ordem de Deus que as orações são oferecidas a


todos os homens, todos os dias são feitas súplicas Àquele que dá
tanto o início na fé quanto o progresso nela; portanto, devemos
saber e entender que quando Ele ouve essas orações, Ele então
concede sua graça, por sua misericórdia, gratuitamente, como um
dom. Mas quando Ele não o faz, sabemos que o seu julgamento
permanece verdadeiro.

CAPÍTULO IV
No passado, a bondade de Deus atraiu todos
os homens à sua adoração através das coisas
criadas, mas a Israel atraiu de modo especial,
através da Lei e dos Profetas.
6. Nem mesmo nas eras passadas o mundo teve essa mesma
graça, a qual depois da Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo
espalhou-se por toda parte, e das quais as Escrituras testemunham.
“Teu trovão ribombou no turbilhão, teus relâmpagos iluminaram o
mundo”14.

É verdade que a Misericórdia de Deus, com um cuidado es-


pecial, elegeu o povo de Israel como seu, enquanto as outras nações
foram deixadas a seguir seus próprios caminhos15, isto é, a viver de

14. Sl 77(76).
15. Cf. At 14,16.

111
A vocação de todos os povos – Livro II

acordo com as escolhas de sua própria vontade. Todavia, a bondade


eterna de seu Criador não se afastou deles e, com alguns sinais de
sua parte, não deixou de adverti-los quanto ao dever de conhecê-lo
e temê-lo. De fato, os céus e a terra, o mar e toda criatura que o
homem pode ver ou conhecer, é para o serviço do homem. É prin-
cipalmente para esse fim: que a natureza racional, ao contemplar
tantas coisas belas, desfrutando de tantos bens, recebendo tantos
favores, aprendam que é preciso adorar e amar o Autor de todos
eles: o Espírito de Deus, em Quem “vivemos, nos movemos e exis-
timos”16, preenchendo o mundo inteiro. Pois embora a salvação
esteja longe dos pecadores17, nada carece de sua Presença e Poder
salvadores.

7. Assim, como diz o Profeta, “a Terra está cheia, Senhor,


da tua Misericórdia”18: Ele nunca abandonou nenhuma idade ou
geração. Ele sempre mostra a sua Providência, pela qual governa
e sustenta todo o Universo, quando governa e alimenta todas as
criaturas vivas. Na eternidade de seu Desígnio imutável, Ele esta-
beleceu o que dispensaria em cada era específica, e por quais dons
e mistérios.

Ele revelaria o ritmo inescrutável e insondável de sua gra-


ça multiforme. A própria riqueza de sua graça, que nestes tempos
fluiu para os gentios, não deve fazer-nos esquecer que a mesma
graça, quando se dava segundo a Lei, sombreava somente Israel,
e as riquezas atuais não nos dispensam de acreditar na escassez
passada. Do mesmo modo, o cuidado particular de Deus pelo qual
Ele guiou os filhos dos Patriarcas no caminho certo, não deve fazer

16. At 17,28.
17. Sl 119(118),155.
18. Sl 119(118),64.

112
São Próspero de Aquitânia

com que alguém pense que a regra da Misericórdia divina foi nega-
da a todos os outros homens. Comparados com o povo eleito, po-
dem parecer náufragos, mas, na verdade, nunca lhes foram negadas
as misericórdias manifestas e ocultas de Deus. Em verdade, lemos
nos Atos dos Apóstolos que Paulo e Barnabé disseram aos licanos:

Ó homens, que ides fazer? Nós também somos homens, de na-


tureza igual à vossa, que vos pregamos que vos convertais destas
coisas vãs ao Deus Vivo, que fez o Céu, a Terra, o mar e tudo o
que há neles. Nos séculos passados, permitiu Ele que todas as
naçóes seguissem os seus caminhos. Todavia não se deixou a Si
mesmo sem testemunho, fazendo benefícios, dando chuvas do
céu e estaçóes favoráveis para os frutos, dando em abundância
o mantimento e a alegria aos vossos corações.19

8. Agora, sobre o que mais é esse testemunho – sempre a


serviço do Senhor e nunca silencioso quanto à sua bondade e ao
seu Poder – se não sobre a beleza indizível de todo o mundo e a
rica e ordenada dispensação das inúmeras misericórdias de Deus?
Estes bens ofereceram aos corações dos homens tábuas da Lei
Eterna, por assim dizer, onde se podia ler, nas páginas das coisas
criadas e nos volumes dos tempos que se desenrolavam, a Doutrina
universal e comum nas quais Deus lhes estava instruindo. Os céus
e todas as coisas nos céus, o mar e a terra e tudo o que neles se con-
tém, estão na perfeita harmonia de sua beleza e ordem, e tudo pro-
clama a Glória de Deus; numa pregação incessante testemunham
a Majestade de seu Criador. Apesar de tudo isso, o maior número
de homens que foram deixados a andar nos caminhos de suas pró-
prias vontades não entendeu nem seguiu esta lei. O odor vivificante
que a vida exala tornou-se para eles um odor mortal, exalado pela
morte, de modo que também aprendemos desses testemunhos do

19. At 15,ss.

113
A vocação de todos os povos – Livro II

mundo visível que “a letra mata, mas o Espírito vivifica”20. Assim,


o que a promulgação da Lei e a pregação dos Profetas fizeram por
Israel, o testemunho de toda a Criação – com todas as maravilhas
da bondade de Deus – operou em todos os momentos para todas
as nações.

CAPÍTULO V
Os gentios que agradaram a Deus foram
destacados21 por um espírito gratuito de fé.
9. Dentro do povo de Israel [que foi guiado por esses en-
sinamentos das coisas criadas e pela Lei e os Profetas], ninguém
poderia ser justificado, exceto pela graça, pelo espírito de fé. Quem,
então, duvidaria que todos os homens, em todos os tempos e os
de qualquer nação, que pudessem agradar a Deus, tivessem sido
escolhidos pelo sopro da graça de Deus?

Essa graça, é verdade, foi mais moderadamente concedida


e menos aparente entre os gentios; mas não foi negada a nenhuma
nação, sendo uma mesma virtude em quantidade diversa; imutável
em seu desígnio, embora multiforme em seus efeitos.

20. 2Cor 3,6.


21. A palavra usada no texto latino original, ‘discreti’, é exatamente a
mesma usada para designar os ‘eleitos/escolhidos’ (salvos).

114
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO VI
Mesmo nos nossos tempos, a graça não é dada
a todos os homens na mesma medida.
10. Mesmo em nossos dias, quando rios de dons inefáveis
inundam o mundo inteiro, a graça não é concedida a todos os ho-
mens na mesma medida e com igual intensidade. Embora os mi-
nistros da palavra e da graça de Deus pregem a mesma verdade a
todos, e a todos dirijam às mesmas exortações, ainda assim é Deus
Quem cultiva e edifica; é o seu poder que age de maneira invisível
e que dá crescimento aqueles que Ele constrói e cultiva. O Após-
tolo o atesta nas seguintes palavras:

Quando um diz: ‘Eu sou de Paulo’, e outro: ‘Eu sou de Apolo’.


Não (se vê nisto que) sois homens (carnais)? Que é, pois, Apo-
lo? E que é Paulo? Ministros d’Aquele em Quem vós crestes,
e segundo o que o Senhor deu a cada um. Eu plantei, Apolo
regou, mas Deus é que deu o crescimento. De modo que não
é nada nem o que planta, nem o que rega, mas Deus, que dá
o crescimento. Uma mesma coisa é o que planta e o que rega;
cada um receberá a sua recompensa segundo o seu trabalho.
Efetivamente, somos cooperadores de Deus. Vós sois cultura
de Deus, sois edifício de Deus.22

Nesse trabalho e nesse edifício, todo homem é um ajudante,


um trabalhador e um ministro, na medida do dom que o Senhor
dá a cada um. E os que são cuidados pelo trabalho dos minis-
tros progridem na mesma medida em que o Autor de todo cres-
cimento os eleva; pois no campo do Senhor nem todas as plantas
são desenvolvidas uniformemente, aí não existe apenas um tipo

22. 1Cor 3,4-9.

115
A vocação de todos os povos – Livro II

de planta. Ainda, embora a estrutura de todo templo componha a


beleza que ele tem, ainda assim o lugar e a função das pedras que
nele entram não são iguais para todas23; assim como em um corpo,
não têm todos os membros a mesma função, como diz também o
Apóstolo: “Deus, porém, pôs os membros no corpo, cada um deles
como quis. Se todos os membros fossem um só membro, onde
(estaria) o corpo?”24.

CAPÍTULO VII
A desigualdade dos dons divinos não vem dos
méritos das obras anteriores, mas da
liberalidade de Deus.
11. O mesmo doutor explica de onde derivam as aptidões,
funções e belezas de cada membro do Corpo, com estas palavras:

Portanto faço-vos saber que ninguém que fala pelo Espírito de


Deus diz: ‘Maldito seja Jesus’. E ninguém pode dizer: ‘Jesus é
o Senhor’, senão pelo Espírito Santo. Há, com certeza, diver-
sidade de graças, mas um mesmo é o Espírito; e os ministérios
são diversos, mas um mesmo é o Senhor; e as operações são
diversas, mas o mesmo Deus opera tudo em todos. A cada um é
dada a manifestação do Espírito para utilidade comum. Assim,
a um é dada pelo Espírito a linguagem da sabedoria; a outro,
a linguagem da ciência, segundo o mesmo Espírito; a outro, a

23. Há as pedras que compõem a fachada externa e as que revestem o


interior, há as que formam as colunas e ornamentos; há as pedras que
servem de piso e a pedra do Altar. Cada uma possui sua dignidade pró-
pria (N. do T.).
24. 1Cor 12,18s.

116
São Próspero de Aquitânia

fé, pelo mesmo Espírito; a outro, o dom das curas, pelo mesmo
Espírito; a outro, o dom de operar milagres; a outro, o da profe-
cia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade
de línguas; a outro, a interpretação das línguas. Mas todas estas
coisas as opera um só e o mesmo Espírito, repartindo a cada
um como quer.25

Considerando essa pregação clara e evidente do Doutor das


Gentes, quem poderia encontrar razão ou pretexto para duvidar de
que recebemos a semente de todas as virtudes somente de Deus?
Quem, senão algum tolo contumaz, se queixaria das diferenças na
distribuição dos dons divinos, ou imaginaria que isso se deva a
méritos desigualmente distribuídos, quando a liberalidade divi-
na não der a mesma graça a todos? Pois se a distribuição desses
favores fosse regulada pelos méritos das obras antecedentes dos
homens, os Apóstolos não terminariam sua lista de dons divinos
com a conclusão: “todas estas coisas as opera um só e o mesmo Es-
pírito, repartindo a cada um como quer”26. Se nesta passagem ele
quisesse dizer que é o mérito o fator determinante, ele teria dito:
“repartindo a cada um de acordo com aquilo que merece”, assim
como prometeu aos que plantam e regam a recompensa do seu
trabalho, dizendo: “...cada um receberá a sua recompensa segundo
o seu trabalho”27.

25. 1Cor 12,3-11.


26. 1 Cor 12,11.
27. 1Cor 3,8.

117
A vocação de todos os povos – Livro II

CAPÍTULO VIII
Ninguém que recebe a graça tem mérito próprio.
12. Aquilo que é dado imerecidamente [a graça] não se pre-
tende pelo mérito”; antes de qualquer trabalho que possa ter feito,
ele recebe de Deus a dignidade por meio da qual o seu trabalho
merecerá uma recompensa. Esse fato também pode ser entendido
a partir do ensinamento da Verdade do Evangelho, onde está con-
tada a parábola28 sobre um homem que, “estando para empreender
uma viagem, chamou seus servos e lhes entregou seus bens. Deu
a um cinco talentos, a outro dois, a outro um; a cada um, segundo
a sua capacidade”29, isto é, de acordo com a capacidade própria e
natural de cada um, e não de acordo com os seus méritos. Pois uma
coisa é poder trabalhar e outra é trabalhar; uma coisa é poder ter
caridade e outra coisa é tê-la; uma coisa é ser capaz da continência,
da justiça, da sabedoria e outra é ser verdadeiramente continente,
justo e sábio. Assim, nem todo homem que pode ser restaurado é
realmente restaurado, e nem todo homem que pode ser curado é
realmente curado, tornando-se são; pois somente a possibilidade
de restauração ou de cura é dada com a natureza, mas é a graça que
realmente restaura e cura.

13. Finalmente, quando o distribuidor dos bens confiou um


número desigual de talentos entre seus servos, de acordo com suas
habilidades e conforme ele as conhecia, ele não estava dando a eles
a recompensa devida por seus méritos, e sim o material com o qual
eles pudessem trabalhar. Depois, aos dois servos alertas e empreen-
dedores, ele não apenas elogiou, mas também ordenou que entras-

28. No latim usa-se a palavra ‘comparação’ para designar uma parábola.


29. Mt 25,14s.

118
São Próspero de Aquitânia

sem na alegria eterna de seu senhor. Mas ele puniu a preguiça e a


negligência do terceiro servo, e não apenas o desonrou com censura
e com o opróbrio, mas também o privou da parte que recebera. Pois
este era digno de perder sua inútil fé, a qual não praticou na carida-
de [isto é, nas obras]30.

No sermão que se segue31 e que expõe muito claramente


o procedimento do Juízo futuro, lemos que quando o Filho do
homem se assentar no Trono de sua Majestade para o grande Jul-
gamento, tendo todas as nações reunidas diante d’Ele, colocará
então alguns à sua direita, e à sua esquerda outros. Aqueles à sua
direita, Ele louvará por suas obras de caridade, enquanto para os
que estiverem à sua esquerda, Ele não fará outra censura senão a
negligência da misericórdia e da benevolência. Estes também ha-
veriam recebido a fé, mas não a praticaram na forma da caridade;
estes não serão condenados por não terem preservado, mas por não
terem aumentado o dom que receberam.

Pois, embora todas as coisas boas sejam dons de Deus, algu-


mas são concedidas para que, dessas pessoas às quais não foi solici-
tado, os homens possam obter aquilo que ainda não receberam. A
semente que é lançada na terra não é semeada para ali permanecer
só, mas para que possa dar frutos e se multiplicar. Seu crescimento,
no entanto, vem justamente d’Aquele que “dá o crescimento”32.
Mas a terra da vida racional, já fecundada e umedecida pela chuva
da graça, faz aquilo que se espera: faz crescer e frutificar.

30. Referência a São Tiago Apóstolo, que diz: ‘A fé sem as obras é mor-
ta em si mesma’ (Tg 2,17) (N. do R.).
31. No mesmo Evangelho seg. São Mateus, cap.25, a partir do vs.31.
32. 1Cor 3,7.

119
A vocação de todos os povos – Livro II

CAPÍTULO IX
Não devemos investigar a causa dos diferentes
tempos da graça [Kairós].
14. Creio eu que conseguimos – com a ajuda do Senhor
– tratar de todas as questões expostas até aqui de maneira satisfa-
tória. Vamos então, após essa digressão, retomar o nosso assunto, a
saber, a consideração das diferenças que encontramos no dom da
graça divina.

A profundidade das riquezas da Sabedoria divina e do co-


nhecimento de Deus, cujos juízos são inescrutáveis e cujos cami-
nhos são insondáveis aos homens, sempre modelou a sua miseri-
córdia e a sua justiça – segundo as quais e de acordo com as mais
ocultas razões do seu eterno desígnio, não lhe aprouve dar medidas
iguais de graça, em todos os momentos e a todas as gerações, ou
para todos os homens. De fato, Ele escolheu ajudar de uma manei-
ra certos homens, que convidou para o seu conhecimento através
do testemunho dos Céus e da Terra; e de outro modo, escolheu
ajudar aqueles de quem cuidou especialmente, não apenas pelo
serviço das coisas criadas, mas também da doutrina da Lei, dos
oráculos dos Profetas, da linguagem dos milagres e da cooperação
dos anjos.

Mas Ele demonstrou a sua Misericórdia por todos os ho-


mens de modo muitíssimo mais extraordinário quando o Filho de
Deus se fez o “Filho do homem”, para que pudesse ser encontrado
por aqueles que não o procuravam e ser visto por aqueles que não
o invocavam. Desde então, a glória conferida à raça de Israel não
brilha apenas sobre um povo, mas para todas as gentes que estão
sob o céu, oriundas da semente de Abraão e herdeiros não de uma

120
São Próspero de Aquitânia

sucessão de filhos segundo a carne, mas de filhos da Promessa. Ha-


via uma grande parcimônia em conceder a graça, em eras passadas,
às outras nações; esta doava-se mormente ao povo judeu: todavia
fora prometido que, quando viesse a plenitude dos gentios, haveria
uma inundação das mesmas águas de graça também para os seus
corações secos.

Quem dirá as razões e as causas dessas diferenças dentro de


uma mesma graça, quando as Sagradas Escrituras se calam sobre
elas? Se São Paulo Apóstolo silencia sobre conhecer ou discutir
esse problema, dando lugar a um espanto absoluto, quem seria tão
presunçoso a ponto de acreditar que poderia tentar explicá-lo, em
vez de admir em silêncio tal mistério?

CAPÍTULO X
Ao longo dos séculos, a Misericórdia de Deus
proveu o alimento para o corpo e o auxílio
para as almas dos homens.
15. Vamos, então, com paciência e com paz na alma, per-
manecer ignorantes de segredo tão remoto ao nosso conhecimento
humano. Contudo, assim como não devemos, porque não pode-
mos, penetrar no que está fechado para nós, também não devemos
deixar de entrar naquilo que nos está aberto. Pois muitas evidên-
cias das Escrituras divinas e a experiência ininterrupta de todas as
épocas manifestam que a justa Misericórdia de Deus e sua Justiça
misericordiosa nunca cessaram de conceder o alimento para os
corpos dos homens, assim como o ensinamento e o auxílio para
suas almas. Em todo o tempo, Ele faz nascer o sol sobre maus e

121
A vocação de todos os povos – Livro II

bons, e manda a chuva sobre justos e injustos33. Em todo o tempo


Ele deu o ar vivificante, regulou as alternâncias do dia e da noite,
garantiu a fertilidade aos campos, o crescimento das sementes e a
fecundidade para a propagação do gênero humano.

Se, às vezes, Ele retirava alguma dessas coisas, era com a


intenção de castigar, em correção paternal, a relutância e a preguiça
dos homens que as usavam mal, pretendendo que, na adversidade,
buscassem sua Misericórdia, quando na prosperidade não temiam
a sua Justiça.

Finalmente, se voltarmos ao começo do mundo, descobri-


remos que todos os santos que precederam o Dilúvio eram regidos
pelo Espírito de Deus, e que eram por causa de sua divina orienta-
ção chamados “filhos de Deus”; porque, como diz o Apóstolo, “to-
dos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”34.

Quando esses homens negaram a observância de seus pais


e contrairam matrimônios proibidos com os réprobos, e quando
foram julgados dignos de extermínio por causa de suas alianças
iníquas, então o Senhor disse: “O meu Espírito não permanecerá
para sempre no homem, porque é carne”35. Por isso, é claro que esse
povo, cuja história encontramos narrada em ordem cronológica,
foi espiritual a princípio, quando sua vontade era presidida pelo
Espírito Santo, que os governou, mas de maneira a não lhes tirar a
possibilidade de declinar da vida: enquanto esse povo deixou esse
poder sem uso, não abandonou a Deus e nem foi por Ele abando-
nado. Eles eram então como o homem de quem é dito que “pôde

33. Conf. Mt 5,45


34. Rm 8,14.
35 Gn 6,3.

122
São Próspero de Aquitânia

transgredir a lei de Deus, e não a transgrediu, pôde fazer o mal, e


não o fez”36. Enquanto essas pessoas permanecerem unidas a Deus,
elas o fizeram com uma vontade que Deus inspirou e guiou, con-
forme lemos: “a vontade do homem é preparada pelo Senhor”37.

CAPÍTULO XI
Os homens recebem, lentamente e pouco
a pouco, o que lhes foi decretado
pela liberalidade divina.
16. Mas essa preparação nem sempre segue o mesmo pro-
cesso ou mantém o mesmo ritmo. Como os efeitos e os dons da
graça aparecem de muitas maneiras e em inúmeras variações, den-
tro dos vários tipos de dons existem ainda diferentes graus e medi-
das distintas. Os brotos de ervas e árvores que a terra produz não
são todas de uma espécie ou de um só gênero, mas uma e todas elas
são geradas de acordo com a forma de seu gênero e as qualidades
de sua espécie; elas não estão plenas de suas particularidades logo
que aparecem, mas desenvolvem-se gradual e ordenadamente até
atingirem o seu próprio tamanho individual até a perfeição do seu
hábito, alcançando seu tamanho pela sucessão e incremento que
lhe são próprios. Do mesmo modo, as sementes dos carismas di-
vinos e as plantas das virtudes não brotam no campo de todos os
corações humanos naquela perfeição que adquirirão mais tarde;
não é fácil de se encontrar maturidade ou perfeição desde o início.

36. Eclo 31,10.


37. Pv 8,35LXX.

123
A vocação de todos os povos – Livro II

17. É verdade que a ação do Deus de Poder e de Miseri-


córdia frequentemente produz efeitos maravilhosos e, sem esperar
o tempo necessário para um progresso gradual, às vezes planta de
imediato, em algumas almas, tudo o que Ele deseja lhes conferir.
Nos lombos de Abraão, Levi foi santificado, e com ele toda a casa
de Arão e a ordem sacerdotal foram abençoadas.

Em Isaac, que foi concebido de acordo com a Promessa e


nascido contra a esperança de seus pais idosos e estéreis, a Vocação
de todos os povos e a plenitude de Cristo é prefigurada. Jacó, sem
qualquer mérito para falar por ele mesmo, era amado e escolhido
desde antes de nascer. Jeremias disse: “Antes que eu te formasse no
ventre de tua mãe, te conheci; antes que tu saísses do seu seio, con-
sagrei-te”38. São João [Batista], ainda no ventre de sua mãe Isabel,
foi cheio do Espírito Santo e saltou; e para que não houvesse nin-
guém maior que ele entre os filhos das mulheres, ele despertou para
a vida da graça antes daquela da natureza [isto é, antes de nascer].

18. Embora não faltem outros textos que de modo seme-


lhante poderiam se aplicar aqui, passamos apenas estes a fim de
abreviar nosso trabalho. Porém, encontramos muitos casos – são
frequentes e numerosos – de homens a quem a recompensa ce-
lestial cresce à medida que seus dons vão sendo concedidos, aos
poucos: as razões para que se concedam novos dons vão surgindo
daqueles que já foram dados. Alguns homens aceitam a fé, mas
ainda não deixam de desconfiar, pois, por exemplo, Ele sabia quem
foi que lhe disse: “Credo Domine, adiuva incredulitatem meam”39.

38. Jr 1,5.
39. “Eu creio, Senhor, mas auxilia a minha incredulidade” (Mc 9,24): a
fala do pai do endemoninhado na passagem do Evangelho segundo S.
Marcos que se tornou uma piedosa jaculatória que é pronuciada pelos
cristãos devotos desde tempos imemoriais (N. do E.).

124
São Próspero de Aquitânia

Os outros homens que igualmente suplicaram: “Aumenta-nos a


fé”40, sentiam que a desconfiança não estava totalmente ausente
de seus corações. Alguns não compreendem aquilo que creem,
e muitos deles permanecem por um longo tempo confinados à
sua simplicidade. Porém, muitos logo recebem luz para entender,
ainda que nem todos tenham uma capacidade de compreensão
igualmente firme e vigorosa. E muitos outros, que aparentemente
têm fé e entendimento, trabalham carecendo da caridade, e por
isso são incapazes de se apegar ao que a fé iluminada os faz ver;
pois o homem não pode perseverar por muito tempo naquilo que
não ama de todo o coração.

19. Nem sempre a caridade é dada de tal modo que quem a


receba absorva imediatamente tudo o que pertence à sua perfeição.
Pois a caridade é um amor que pode ser vencido por outro amor, e
muitas vezes o Amor a Deus é sufocado pelo amor ao mundo41; a
menos que a alma do homem, acesa pelo Espírito Santo, alcance tal
estado de fervor, que nenhum frio possa extingui-lo, nem qualquer
tepidez diminuir o seu ardor.

De fato, alguns, tendo o inenarrável Dom de Deus [a cari-


dade], o maior de todos os dons, têm a vida repleta de virtudes. To-
dos os outros dons são concedidos para possibilitar que o anseio da
alma fiel se esforce efetivamente por uma caridade perfeita. Como
isso não apenas vem de Deus, mas isso é o próprio Deus, vão se tor-

40. Refere-se aos Apóstolos, conf. Lc 17,5.


41. Aqui se faz uma claríssima referência à ‘Cidade de Deus’ de Santo
Agostinho, o qual diz (no Livro XIV, cap. XXVIII): ‘Dois amores cria-
ram duas cidades: o amor a si mesmo até o desprezo a Deus, a terrena; e
o amor a Deus até o desprezo de si, a celestial. [...] Por isto, os sábios da-
quela [...] podendo conhecer a Deus, não O honraram nem Lhe deram gra-
ças como Deus, mas se desvaneceram em seus pensamentos’ (N. do R.).

125
A vocação de todos os povos – Livro II

nar firmes, perseverantes e inconquistáveis todos estes, inundados


pela divina complacência. Mas homens que não conhecem a doçu-
ra dessas águas, e que ainda bebem das torrentes deste mundo – ou
os homens que, mesmo depois de tocar com seus lábios e provar da
fonte da Vida, ainda têm prazer em se embebedar com o cálice de
ouro da Babilônia – estes são completamente enganados por seus
próprios arbítrios errôneos e caem por sua própria vontade. Se eles
persistem nessa preguiça espiritual, jogam fora tudo o que recebe-
ram. Pois sem a caridade é fácil perder todos os outros dons, e estes
mesmos são inúteis sem a caridade.

CAPÍTULO XII
A liberdade sob a graça.
20. Que esta breve análise sirva como prova segura de que
Deus nunca abandona nenhum dos fiéis que não se afastem d’Ele
primeiro, e que Deus nunca planeja a queda de alguém42. Em vez
disso, muitos que têm juízo racional são capazes de se afastar d’Ele
para que sejam recompensados ​​por não o terem feito, o que não
seria possível sem o auxílio do Espírito de Deus, e seu mérito não
seria possível se Ele não o quisesse. Essa vontade por si só é capaz
de pecar, mas por si só não pode realizar boas obras.

Também o vício, que pela má vontade incidiu sobre a na-


tureza [humana], não é superado pela virtude natural, mas pela
[virtude] da graça.

42. Aqui, como em todo o corpo da presente obra, São Próspero reduz
a pó a heresia calvinista, mais de um milênio antes do seu surgimento.

126
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XIII
A bondade divina não auxilia somente os
santos, mas também os ímpios, como
fez antes do Dilúvio.
21. O Espírito de Deus regeu seu primeiro povo que, pelo
conhecimento do mesmo Espírito, se absteve das relações íntimas
com os réprobos e longe dos seus caminhos amaldiçoados. Assim,
preservou-se à parte dos seus pecados e livre de se misturar com
esses homens carnais; homens cujas más ações a paciência de Deus
suportou enquanto os homens bons pudessem agradá-lo, não os
imitando. Mas quando os bons também foram corrompidos, pas-
sando a imitar os ímpios, e quando o gênero humano como um
todo, desertando voluntariamente da obediência a Deus caiu na
mesma impiedade, então uma sentença divina destruiu tudo, pois
todos haviam caído na mesma impiedade, exceto somente a casa
de Noé.

22. Mas a bondade de Deus não fora ocultada nem mes-


mo aos homens que não perseveravam na caridade e que, desde o
início de sua história, estavam intoxicados pelo veneno de uma in-
veja diabólica. Quando o príncipe da raça perversa, ciumento dos
méritos de seu irmão santo, planejava o fratricídio em seu coração,
o Senhor se dignou a acalmá-lo com conselhos paternais. Disse
então a Caim:

Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante?
Porventura, se tuas obras forem boas, não receberás (por isso o

127
A vocação de todos os povos – Livro II

galardão)? Se obrares mal, estará logo o pecado à tua porta, mas


sob ti está o teu desejo, e tu o deverás dominar.43

“Deixa” – é como se dissesse Ele – “a tua tristeza, nascida da


má vontade e do ciúme, e apaga as chamas do teu ódio cruel. Abel
não te fez mal; agradando-me, ele não te machucou. Eu desprezei
as tuas ofertas por meu próprio julgamento, não por vontade dele.
Pois fizeste uma boa obra com negligência. A tua oblação seria reta
se reto fosse o teu discernimento. Sabendo a Quem estavas ofe-
recendo, tu deverias saber o que dedicar. Não fizeste uma divisão
digna entre Mim e ti mesmo, porque reservaste para ti as melhores
coisas. Esse foi o teu erro e o teu pecado. Acalma-te e não te agites
contra teu irmão inocente. Deixa que tua culpa volte sobre ti. Não
deverias permitir que o pecado reinasse em ti, mas preferes con-
tinuar fazendo como queres. Pelo arrependimento, não cairás em
um pecado maior, e serás ainda purificado do pecado cometido, se
te arrependeres de ter me ofendido”.

23. Quando, portanto, ouvimos Deus falando desse modo a


Caim, podemos ter alguma dúvida do que Ele desejava? E foi isso
necessário para a sua conversão? Funcionou para trazê-lo de volta
ao bom senso, contra o furor da impiedade? Mas a obstinada malí-
cia de Caim tornou-se ainda mais indesculpável por causa do que
deveria ter sido o seu remédio. A loucura o levaria; contudo, por
causa da ciência infalível de Deus, não podemos concluir que sua
vontade criminosa tenha sido incitada por qualquer necessidade
de pecar44.

Verdadeiramente, Deus poderia ter salvado a Abel, man-


tendo-o ileso, conservando-o intocado da intenção e da ação as-

43. Gn 4,6s.
44. Ao contrário do que prega a herética doutrina Sola Fide (N. do R.).

128
São Próspero de Aquitânia

sassina de Caim. Mas quis Deus, com sua grande paciência, que o
furor momentâneo de um homem mau se tornasse a glória eterna
de um outro, justo.

Quanto à posteridade dos assassinos, quem não verá facil-


mente que a bondade de Deus não foi ocultada também destes,
mesmo que eles vivessem da mesma maneira perversa que os seus
antepassados? Mas devemos considerar o que uma paciência tão
perseverante (de Deus), uma tão rica abundância de bens tempo-
rais a tantos descendentes, devido à sua grande fecundidade, po-
deria ter significado para eles. Embora essas misericórdias divinas
não trouxessem remédio ou emenda a esses pecadores obstinados,
elas mostram, no entanto, que o seu afastamento não foi o efeito
de uma ordenança divina, mas da sua própria vontade.

CAPÍTULO XIV
Desde os tempos do Dilúvio até a vinda de
Cristo, havia sinais da graça e figuras dos
milagres de Cristo, embora a graça que
agora inunda o mundo ainda não
tivesse fluído tão abundantemente.
24. Na preservação de Noé com seus filhos e suas esposas,
que deveriam ser como que o berçário de todas as nações, a Sagra-
da Escritura nos mostra a imensidão de maravilhas da graça divi-
na. A arca, de espantosa capacidade, que abrigava tantos animais
quantos seriam necessários para a restauração de sua espécie, é a
figura da Igreja que deve reunir em si todos os homens. No lenho
e na água [sobre a qual navegou a arca] vemos a redenção pela

129
A vocação de todos os povos – Livro II

Cruz de Cristo e a absolvição pela Pia da Regeneração. Aqueles


que foram salvos da destruição universal simbolizam a plenitude
de bençãos a todos os povos.

Entre eles, o dom da fecundidade é renovado, e a liberdade


de comer o que bem entendem é ampliada, excluídas apenas as
coisas estranguladas e o sangue; e, tendo como símbolo um arco-í-
ris de muitas cores, isto é, o símbolo da graça multiforme de Deus,
a solene Promessa de salvação é dada.

Todos esses mistérios e sinais sagrados eram parte do en-


sinamento [divino], não apenas para os poucos membros de uma
única família, mas também, através deles, para toda a sua posteri-
dade. A lição que Deus ensinou aos pais também foi destinada à
instrução de seus filhos.

25. Novamente, quando o aumento da raça humana seguiu


seu curso ascendente e os homens se orgulharam de seus pró-
prios números, e quando sua insolência chegou a tal ponto que
eles sonhavam em empurrar para o Céu a estrutura maciça de um
edifício de proporções fantásticas, quão maravilhoso foi então o
rigor da justiça de Deus para impedir a sua insolência! A lingua-
gem única e comum que todas essas pessoas falavam e entendiam
Ele lançou em confusão, e a dividiu em setenta e duas línguas, de
modo a romper com seus discursos, confundindo a unidade dos
trabalhadores. Assim, frustrou aquela empresa insana. Ao mesmo
tempo, Deus pretendia, com a oportuna dispersão de uma união
que havia crescido mal, fornecer a população para o mundo ainda
desabitado. Mas nessa obra da Providência de Deus, também ve-
mos prefiguradas as maravilhas da graça cristã, que deveria reunir
toda a humanidade dispersa naquele edifício [a Igreja] onde todo

130
São Próspero de Aquitânia

joelho se dobre e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Se-


nhor, na Glória de Deus Pai45.

26. Essa difusão da graça, que deveria ser revelada na pleni-


tude do tempo designado, aparece com sinais ainda mais claros na
Promessa de Deus a Abraão, quando lhe prediz que sua dupla pos-
teridade, ou seja, os filhos da carne e os filhos da Promessa, cresce-
ria tão numerosa quanto a areia da praia e as estrelas do céu. Então
este ancião, que por causa da esterilidade de sua esposa, por anos,
já havia desistido da esperança de um filho, acreditou com uma fé
que merece louvor; e através de um único filho, este se tornaria o
pai do mundo. Foi então previsto (e de fato visto) entre a sua pos-
teridade Aquele que disse: “Abraão viu o meu dia e ficou cheio de
júbilo”46. Na época, Abraão foi justificado por essa fé; ele ainda não
havia recebido a ordem de Deus sobre a circuncisão; e, embora ele
estivesse em uma “circuncisão natural”, sua fé era reconhecida pela
justiça. Essa mesma fé recebeu o sinal da circuncisão na parte do
corpo por meio da qual as sementes de procriação deveriam avan-
çar para aquela carne da qual, sem as sementes da carne, o Filho de
Deus, Verbo de Deus, fez-se carne e nasceu da Filha de Abraão, a
Virgem Maria.

Por seu Nascimento entre os homens, Ele fez todos os ho-


mens seus irmãos, os que renasceriam em Cristo pelo Espírito e
teriam a fé mesma de Abraão. Mas até o dia em que veio a Se-
mente da qual foi dita: “Em Tua semente todas as nações da Terra
serão abençoadas” 47; essa fé permaneceu confinada a um povo e
uma raça; ali, com os verdadeiros israelitas, a esperança de nossa

45. Cf. Fl 2,10s.


46. Cf. Jo 8,56.
47. Gn 12,3.

131
A vocação de todos os povos – Livro II

redenção foi mantida viva. Pois, embora houvesse alguns homens


de outras raças que, enquanto a Lei estava ainda em vigor, a Verda-
de se dignou a esclarecer, estes eram tão poucos que mal podemos
saber se havia algum. Mas, apesar do fato de que a graça, que agora
inunda o mundo inteiro, não fluía então com igual abundância,
isso não desculpa os outros povos os quais estavam “nesse tempo
sem Cristo, separados da sociedade de Israel, estranhos às alianças,
sem esperança da Promessa e sem Deus neste mundo”48, e que
morreram nas trevas de sua ignorância.

CAPÍTULO XV
Os homens de agora não nascem com uma
natureza superior ao que era antes de Cristo;
em verdade, no tempo do Advento do Senhor,
a iniquidade era maior, para manifestar
melhor a graça de Deus.
27. A revelação de Deus sempre foi comunicada a todos
os homens em alguma medida, a qual, mesmo quando dada de
modos mais moderados e ocultos, ainda era considerada suficiente
pelo Senhor para ser um remédio para alguns, e um testemunho
para todos. Assim, Ele deixou claro, acima de dúvida, que “onde
abundou o pecado, superabundou a graça”49, mais ainda nesse tem-
po em que todo o gênero humano vageava cegado pela mesma
impiedade. Ou, para citar o absurdo que é falado por muitos, os
homens nascidos nos nossos dias são mais dispostos que os de an-

48. Ef 2,12.
49. Rm 5,20.

132
São Próspero de Aquitânia

tigamente? Teriam estas últimas eras produzido almas mais aptas


a receber os dons divinos?

Teríamos que atribuir tudo à bondade do Criador; Ele, nos


povos aos quais chamou à vida eterna, teria formado corações que
não lhe resistiriam. Mas não é assim. Não há nada novo na propa-
gação dos homens segundo a carne: a geração mais jovem não nas-
ce superior àquela de seus antepassados. Pelo contrário, a observa-
ção mostra que, quanto aos homens que viveram depois da vinda
do Redentor do mundo, quanto mais recente a geração, maior foi
sua iniquidade.

28. Prova disso é o furor de impiedade dos judeus. A prova


de que o Evangelho de Cristo estava pronto para aquela geração é
a disposição de coração não apenas do povo, mas também dos es-
cribas, príncipes e sacerdotes. Mas nada foi suficiente para aqueles
que, em oposição ao ensino da Lei, aos oráculos dos Profetas e às
provas que lhes foram dadas do Poder divino, exalaram sua fúria
contra “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”50 em
sedição, insultos, cusparadas, bofetadas, golpes, apedrejamentos,
flagelações e, finalmente, a morte cruel da Cruz. E em sua insani-
dade empedernida, eles perseguiriam também as testemunhas da
Ressurreição. Todavaia, quando flagelados pelos sumos sacerdo-
tes, os Apóstolos demonstraram como isso havia sido predito no
Salmo de Davi, como está escrito:

Senhor, és o Deus que fizeste o Céu, a Terra, o mar e tudo o


que há neles (Sl 146,6); [O Deus] que, mediante o Espírito
Santo, pela boca de nosso pai Davi, teu servo, disseste: ‘Por que
se agitaram as gentes, e os povos fizeram vãos projetos? Con-
certaram-se os reis da Terra, e os príncipes se coligaram contra

50. Conf. Jo 1,29.

133
A vocação de todos os povos – Livro II

o Senhor e contra o seu Cristo (Sl 2,1-2). Porque verdadeira-


mente se coligaram nesta cidade contra o teu Santo Servidor,
Jesus, a Quem ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com os gen-
tios e com os povos de Israel, para executarem o que a tua mão
e a tua sabedoria determinaram que se fizesse.51

29. Consequentemente, a razão pela qual Deus reteve des-


de os tempos antigos a manifestação da graça, que em seu desíg-
nio eterno Ele havia preparado para a salvação de todas as nações,
não é que elas não estivessem adequadas. Ele preferiu escolher
os tempos que produziriam essas pessoas que desejariam, em sua
malícia selvagem e deliberada, não porque tivessem boas inten-
ções, mas porque queriam fazer o mal, persistindo em seguir tais
determinações divinas.

Assim, a graça e o Poder de Deus pareceriam mais mara-


vilhosos quando Ele transformasse essas almas endurecidas, essas
mentes sombrias, esses corações hostis em Seu próprio povo, fiel,
submisso e santo; que não foi levado à luz da Sabedoria de Deus
pela sabedoria deste mundo, mas pelo dom d’Aquele de Quem
São João Apóstolo testemunha nestas palavras: “Sabemos que veio
o Filho de Deus e que nos deu entendimento para que conheçamos
o Verdadeiro (Deus), e estejamos em seu verdadeiro Filho”52. Com
esse testemunho concorda São Paulo Apóstolo, dizendo:

...demos graças a Deus Pai, que nos fez dignos de participar


da herança dos santos na Luz, o Qual nos livrou do poder das
trevas e nos transferiu para o Reino do Filho do seu Amor.53

51. At 14,24-28.
52. 1Jo 5,20.
53. Cl 1,12.

134
São Próspero de Aquitânia

E ele novamente vai dizer:

Também nós outrora éramos insensatos, rebeldes, desgarrados,


escravos de paixões e prazeres, vivendo na malícia e na inveja,
dignos de ódio e odiando os outros. Mas, quando se manifestou
a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu Amor pelos ho-
mens, não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por
sua Misericórdia, salvou-nos mediante o Batismo de regenera-
ção e de renovação do Espírito Santo, que Ele difundiu sobre
nós abundantemente por Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de
que, justificados pela sua graça, sejamos herdeiros da vida eter-
na, segundo a esperança (que temos de a possuir um dia).54

30. Ele poderia ter explicado de maneira mais completa,


mais clara e mais verdadeira, que tipo de mérito Cristo encontrou
nos homens, que tipo de caráter Ele submeteu a Si, que tipo de
coração Ele converteu a Si quando veio curar não os saudáveis,
mas os doentes, e chamar não os justos, mas pecadores55? Aquele
“povo que andava nas e trevas viu uma grande Luz; aos que habi-
tavam na região da sombra da morte uma Luz apareceu”56.

Berraram os gentios, os povos ficaram irados, os reis enfu-


recidos, os que estavam no poder falaram em oposição, as supers-
tições e erros de todo o mundo relutaram. Mas, dentre esses que
resistiram, dos que ficaram furiosos e dos que o perseguiram, o
Cristo escolheu aumentar seu povo; e com as correntes, torturas
e mortes dos seus Santos, a fé se fortaleceu, a Verdade venceu,
e as riquezas da colheita do Senhor espalharam-se por todo o
mundo. O Céu concedeu tanta firmeza na fé, tão grande con-

54. Tt 3,3-8.
55. Mt 9,13.
56. Is 9,2.

135
A vocação de todos os povos – Livro II

fiança na Esperança, tanta força na tolerância, que o fogo aceso


pelo Espírito Santo não podia de forma alguma ser extinto pelos
seus perseguidores. Antes, aqueles que estavam sendo torturados
eram incendiados por essa caridade com veemência ainda maior, e
frequentemente seus próprios perseguidores eram pegos também
pelas mesmas chamas que estavam combatendo.

São Paulo Apóstolo ardia com aquela chama quando, cheio


de confiança e fervor, ele disse:

Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por meio
de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Qual temos acesso pela fé a
esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança
da glória de Deus. E não somente, mas também nos gloriamos
nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência, a
paciência (produz) a virtude provada, a virtude provada a es-
perança, e a esperança não traz engano, porque a caridade de
Deus está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo,
que nos foi dado.57

E retoma:

Quem nos separará, pois, do Amor de Cristo? A tribulação? A


angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espa-
da? Segundo está escrito: Por Ti somos entregues à morte todos
os dias, somos reputados como ovelhas para o matadouro. Mas
de todas estas coisas saímos mais que vencedores por Aquele
que nos amou. Porque eu estou certo que nem a morte, nem a
vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes,

57. Rm 5,1-5.

136
São Próspero de Aquitânia

nem as futuras, nem as virtudes, nem a altura, nem a profundi-


dade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do Amor
que Deus nos manifesta em Jesus Cristo Nosso Senhor.58

Com essa caridade difundida em seus corações pelo Espírito


Santo, o mundo dos fiéis venceu o mundo dos ímpios. Essa carida-
de envergonha a crueldade de Nero, a fúria de Domiciano e a fúria
frenética de numerosos imperadores depois deles, na gloriosa mor-
te de inúmeros mártires. Aí Cristo concedeu aos seus seguidores,
por meio da perseguição dos governantes, suas coroas eternas.

CAPÍTULO XVI
Cristo morreu por todos.
31. Portanto, não há razão para duvidar de que Jesus Cristo,
nosso Senhor, morreu pelos ímpios e pelos pecadores. Se houvesse
alguém que não pertencesse a estes, então Cristo não teria morri-
do por todos. Mas ele morreu por todos os homens, sem exceção.
Portanto, não há ninguém, dentre todos os homens, que não tenha
sido, antes da Reconciliação que Cristo efetuou em seu Sangue,
pecador ou incrédulo. Diz o Apóstolo:

Por qual motivo, pois, quando nós ainda estávamos enfermos


(pelo pecado) morreu Cristo, no tempo determinado, pelos ím-
pios? Ora é difícil haver quem morra por um justo, ainda que
alguém se resolva talvez a morrer por um homem de bem. Mas
Deus manifesta a sua caridade para connosco, porque, quan-
do ainda éramos pecadores, então morreu Cristo por nós. Pois
muito mais agora, que estamos justificados pelo seu Sangue,

58. Rm 8,35.

137
A vocação de todos os povos – Livro II

seremos salvos da Ira por Ele mesmo. Se, sendo nós inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela Morte de seu Filho, muito
mais estando já reconciliados, seremos salvos por sua Vida.59

E nos dirá o mesmo Apóstolo, em sua Segunda Epístola


aos Coríntios:

Sim, o Amor de Cristo nos constrange, considerando nós que,


se um morreu por todos, todos pois morreram; e que (Cristo)
morreu por todos, a fim de que aqueles que vivem não vivam
mais para si, mas para Aquele que morreu e ressuscitou por
eles.60

E vejamos o que ele tem a dizer sobre si mesmo:

Palavra segura e digna de toda aceitação é esta: Jesus Cris-


to veio a este mundo salvar os pecadores, dos quais sou o
primeiro. Mas alcancei misericórdia, para que em mim,
sendo o primeiro, mostrasse Jesus Cristo toda a sia longa-
nimidade, para exemplo dos que hão de crer n’Ele para a
Vida eterna.61

32. Portanto, toda a humanidade, circuncidada ou não, en-


contrava-se encerrada no pecado, em grilhões, por causa da mesma
culpa. Ninguém dentre os ímpios, que diferiam apenas pelo seu
grau de descrença, poderia ser salvo sem a Redenção de Cristo.
Essa Redenção se espalhou por todo o mundo, sem distinção.

59. Rm 5,6-11.
60. 2Cor 5,14s.
61. 1Tm 1,15s.

138
São Próspero de Aquitânia

De fato, no quinquagésimo dia após a Páscoa no qual o


verdadeiro Cordeiro se oferecera como Vítima de Deus, quando
os Apóstolos e aqueles que compartilhavam com eles do mesma
ânimo foram cheios do Espírito Santo e falaram as línguas de
todas as nações, várias pessoas de diferentes raças, agitadas pelo
milagre, reuniram-se, e com elas o mundo inteiro deveria ouvir, a
partir dali, o Evangelho de Cristo.

Então foram reunidos, como diz a Escritura, “partos, me-


dos, elamitas, os que habitam a Mesopotâmia, a Judeia, a Capa-
dócia, Ponto e a Ásia, a Frígia e a Panfilia, o Egito e várias par-
les da Líbia, vizinhas de Cirene e, vindos de Roma, tanto judeus
como prosélitos, cretenses e árabes”62; todos ouviram as maravilhas
de Deus pregadas em suas próprias línguas. O testemunho deles
espalhou-se por toda a parte, também às nações mais distantes.
Cremos que a Divina Providência quis a expansão do Império
Romano como uma preparação para seu Desígnio sobre as nações,
as quais seriam chamadas para a unidade do Corpo de Cristo: Ele
as reuniu primeiro sob a autoridade de um império terrestre.

Mas a graça do Cristianismo não se contenta com os limi-


tes do que pertence à Roma. A graça agora submeteu ao Cetro da
Cruz de Cristo muitos povos que Roma não podia sujeitar com
seu braço forte; embora Roma, por sua primazia do sacerdócio
apostólico, tenha se tornado maior como cidadela da Religião do
que como sede do poder.

62. At 2,9s.

139
A vocação de todos os povos – Livro II

CAPÍTULO XVII
As nações que ainda não viram a graça
de Nosso Salvador serão chamadas
ao Evangelho no tempo designado.
33. Pode ser verdade que, assim como sabemos que antiga-
mente alguns povos não eram admitidos à Comunhão dos filhos
de Deus, também hoje há, nas partes mais remotas do mundo,
algumas nações que ainda não viram o Luz da graça do Salvador.
Mas não temos dúvida de que, no Juízo oculto de Deus, para eles
também foi designado um tempo para o seu Chamado, quando
ouvirão e aceitarão o Evangelho que agora permanece desconheci-
do para eles. Mesmo agora, eles recebem a medida de ajuda geral
que o Céu sempre concede a todos os homens.

A natureza humana, é verdade, foi ferida com uma chaga


tão grave que a especulação natural não pode levar uma pessoa
ao pleno conhecimento de Deus se a verdadeira Luz não dissipar
todas as trevas do seu coração. Em seus Desígnios inescrutáveis, o
Deus Bom e Justo não lançou essa Luz tão abundantemente em
eras passadas quanto em nossos dias. Por isso, o abençoado Após-
tolo São Paulo diz por escrito aos Colossenses:

...o mistério escondido aos séculos e às gerações (passadas), e


que agora foi descoberto aos seus Santos, aos quais Deus quis
fazer conhecer as riquezas da Glória deste mistério entre os
gentios: Cristo, em vós, esperança da vossa glória.63

63. Cl 1,26s.

140
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XVIII
Nos séculos anteriores, o mistério do
Chamado à fé estava escondido dos
gentios, mas não dos Profetas.
34. Esse mistério permaneceu selado também para os Pro-
fetas? Eles, os porta-vozes do Espírito Santo, desconheciam aquilo
que estavam pregando? Não creio que tenhamos que entender o
texto dessa maneira, mas apenas no sentido de que para os gen-
tios esse mistério permaneceu oculto, um mistério que o Senhor
revelou quando lhe agradou e a quem quis. Pois a respeito da vo-
cação dos povos, que não pertenciam ao povo de Deus e de quem,
no princípio, Deus não teve misericórdia, enquanto que agora Ele
lhes revela a sua Misericórdia, lemos no Deuteronômio:

O Senhor viu (isto), e acendeu-se em ira, porque o provoca-


ram seus filhos e filhas. E disse: ‘esconderei deles a minha face,
e verei qual será o seu fim, porque é uma geração perversa, uns
filhos infiéis. Eles provocaram-me com o que não é Deus, e
irritaram-me com os seus ídolos vãos; eu os provocarei com um
que não é povo, e os irritarei com uma nação insensata’.64

E Davi prediz que todas as nações adorarão a Deus, nestas


palavras: “Todas as nações que fizeste virão e te adorarão, Senhor,
e glorificarão o teu Nome”65. E o mesmo, novamente: “Todos os
reis o adorarão, todas as nações o servirão”66. E de novo: “Serão

64. Dt 32,19ss.
65. Sl 85,9.
66. Sl 71,17.

141
A vocação de todos os povos – Livro II

benditas n’Ele todas as tribos da Terra, todas as nações o procla-


marão Bem-Aventurado”67.

35. Isaías faz um anúncio similar, dizendo: “Acontecerá, nos


últimos dias, que a montanha da Casa do Senhor terá os seus fun-
damentos no cume das montanhas, e se elevará sobre os outeiros,
e concorrerão a ela todas as gentes”68, e uma vez mais: “O Senhor
dos Exércitos fará neste monte, para todos os povos um banque-
te de manjares substanciosos, de vinhos bons, de viandas gordas e
tenras, de vinhos escolhidos e depurados”69. E completa dizendo:
“O Senhor faz ver o seu santo braço aos olhos de todas as nações, e
todos os confins da Terra verão a salvação do nosso Deus”70. E no-
vamente, dirá que estrangeiros chegarão a Israel, através do Poder
de Deus, e aí encontrarão refúgio71. Mais: “Chamarás um povo que
não conhecias, e as gentes que te não conheciam correrão a ti por
amor do Senhor teu Deus, do Santo de Israel, que te glorificou”72.

Oseias profetizou também as mesmas coisas e disse:

E acontecerá que no lugar onde se lhes disse: Vós não sois já


meu povo – se lhes dirá: Vós sois filhos do Deus vivo. Então os
filhos de Judá e os filhos de Israel se juntarão, constituirão so-

67. Sl 72,17.
68. Is 2,2.
69. Is 25,6.
70. Is 52,10.
71. Cf. Is 14,1s.
72 Is 55,5.

142
São Próspero de Aquitânia

bre si um só chefe, [e transbordarão para fora do seu território].


(Os 1, 10-11).73

E novamente: “Compadecer-me-ei daquelas (nações) não-


-preferidas. Direi ao que se chamava Não-meu-povo: Tu és o meu
povo. E ele me dirá: ‘Tu és o meu Deus’”74.

36. Na época dos Apóstolos, os crentes em Cristo que eram


circuncisados expressavam a opinião de que os gentios, a quem
chamavam de incircuncisos, não podiam compartilhar dos efeitos
justificativos da graça. O Bem-aventurado Apóstolo Pedro expli-
cou que, diante de Deus, não há discriminação entre os povos, des-
de que estejam reunidos na unidade da fé. Ele diz:

Tendo eu começado a falar, desceu o Espírito sobre eles, como


(tinha descido) sobre nós no início. Lembrei-me então da pala-
vra do Senhor, que Ele havia proferido: ‘João batizou em água,
mas vós sereis batizados no Espírito Santo. Se Deus, pois,
lhes deu a mesma graça que a nós, por terem crido no Senhor
Jesus Cristo, quem era eu, para que pudesse me opor a Deus?75

São Tiago Apóstolo falou também sobre o mesmo Chama-


do aos gentios:

Simeão contou como Deus, desde o princípio, cuidou em tirar


do meio dos gentios um povo que fosse seu. Com isto con-
cordaram as palavras dos Profetas, como está escrito: ‘Depois
disto voltarei e reedificarei o Tabernáculo de David que caiu,
repararei as suas ruínas e o levantarei, a fim de que busquem a

73. Os 1,10s.
74. Os 2,23s.
75. At 11,15ss.

143
A vocação de todos os povos – Livro II

Deus todos os outros homens e todas as gentes, sobre as quais


tem sido invocado o meu Nome, diz o Senhor, que faz estas
coisas, determinadas desde a eternidade’ (Am 9,11-12).76

Simeão também, aquele a quem havia dito o Espírito Santo:


“que não veria a morte sem ver primeiro o Cristo do Senhor”,77
proclamou a salvação de todos os gentios como sendo revelada em
Cristo, como segue:

Agora, Senhor, podes deixar partir o teu servo em paz, segundo


a tua Palavra; porque os meus olhos viram a tua salvação, a qual
preparaste em favor de todos os povos; Luz para iluminar as
nações, e glória de Israel, teu povo.78

CAPÍTULO XIX
Em todos os tempos Deus quer
salvar todos os homens.
37. Essas e outras evidências das Escrituras provam, sem
dúvida, que a grande riqueza, poder e beneficência da graça, que
nestes últimos tempos chamam todos os gentios ao Reino de
Cristo, estava oculta, nos séculos passados, no Desígnio secreto
de Deus. Nenhum conhecimento pode compreender, nenhum en-
tendimento pode penetrar a razão pela qual essa abundância de
graça, que agora chegou ao conhecimento de todas as nações, não
foi revelada antes. Contudo cremos, com total confiança na bon-

76. At 15,14-18.
77. Lc 2,26.
78. Lc 2,29-32.

144
São Próspero de Aquitânia

dade de Deus, que Ele deseja que todos os homens sejam salvos e
cheguem ao conhecimento da Verdade79: devemos saber que essa
é a sua vontade imutável desde a eternidade, mas se manifesta em
diferentes medidas, e que Ele, em sua Sabedoria, escolheu aumen-
tar agora seus dons gerais com favores especiais. Assim, aqueles
que não compartilharam de sua graça declararem-se culpados de
malícia, e aqueles que eram resplandecentes com a sua Luz, não
podem se gloriar em seus próprios méritos, mas gloriem-se apenas
no Senhor.

CAPÍTULO XX
Objeção do caso de bebês contra o texto
‘quer que todos os homens sejam salvos’.
38. Essa maneira sutil, porém correta, de entender nosso
problema, é confrontada com uma grande dificuldade no caso dos
bebês. Os bebês não têm o uso da razão pela qual eles poderiam
entender as misericórdias de seu Criador e serem capacitados a
se aproximar do conhecimento da Verdade. Não parece correto
culpá-los por negligenciarem a ajuda da graça, quando estão em
um estado de ignorância natural que os faz incapazes – e não pode
haver dúvida sobre isso – para adquirir algum conhecimento ou
compreender qualquer ensino. E se, então, Deus deseja que todos
os homens sejam salvos, qual é a razão para que tantos bebês per-
maneçam privados da salvação eterna? Por que tantos milhares de
seres humanos de tenra idade não são admitidos à vida eterna?80

79. Cf. 1Tm 2,4.


80. Vide nota 108 do Livro I, à pág. 87.

145
A vocação de todos os povos – Livro II

Pareceria que Deus, que não criou ninguém por ódio, criou
essas crianças apenas para jogá-las nos laços de uma culpa im-
perdoável que contraíram sem culpa própria, pela única razão de
terem elas, não por sua vontade, entrado neste mundo, na carne do
pecado. O que poderia ser mais insondável, mais surpreendente do
que isso?

Pois não seria correto acreditar que essas crianças que não
receberam o sacramento da regeneração pertencem de alguma ma-
neira à Comunhão dos bem-aventurados. E o que o torna ainda
mais estupendo e estranho é o seguinte: aqui não temos culpa cau-
sada por ações, nem livre-arbítrio capaz de oferecer resistência;
existe o infortúnio que é o mesmo para todos; existe um desampa-
ro igual; um caso é precisamente o mesmo para todos. No entan-
to, apesar dessa paridade completa do caso, o Julgamento não é o
mesmo para todos; a alguns Deus repudia como réprobos, a outros
adota como eleitos.

CAPÍTULO XXI
Deus será justo se rejeitar bebês não
batizados, tanto nesta vida quanto na
próxima, pelo Pecado original.
39. Mas se formos humildes de coração, não seremos per-
turbados pela profundidade insondável dessa discriminação81 de
Deus. Devemos apenas acreditar com firmíssima fé que todos os

81. No sentido literal e estrito da palavra, isto é, com o mesmo sentido


de ‘eleição’ e ‘escolha’: trata-se da separação entre os perseverantes e
os réprobos, que Cristo fará no último dia (N. do R.).

146
São Próspero de Aquitânia

Juízos de Deus são justos, e não queiramos saber aquilo que Ele
determinou que permanecesse em segredo. Onde não pudermos
investigar o que é julgado, devemos nos contentar em saber Quem é
que julga.

Contudo, o nosso problema não é tão obscuro que não pos-


samos, com ele, aprender algo. Com o olhar pacífico e um coração
tranquilo, devemos considerar aquilo que somos capazes de enten-
der. Reflitamos sobre isso. Entre os pagãos, entre os judeus, entre
os hereges e também entre os cristãos católicos, quão grande é o
número de crianças que, manifestamente, segundo suas próprias
vontades, não fizeram o bem nem o mal! Mas nos dizem que neles
pesa a Sentença que toda a raça humana recebeu pelo pecado de
Adão, nosso primeiro pai. E o rigor dessa Sentença, que não é re-
laxada nem mesmo para crianças, prova apenas o quão grave esse
pecado foi. Não se admite também que alguém nasça inocente, a
menos que renasça [pelo Sacramento do Batismo]82.

40. E não há razão para reclamar se a morte chega muito


cedo para eles, porque uma vez que a mortalidade invadiu a nossa
natureza através do pecado, todos os dias de nossa vida foram per-
didos. Haveria motivo de reclamação se tivesse havido uma época
em que o homem não podia morrer; aí então se poderia dizer que
ele tinha uma imortalidade limitada. Mas em nenhum momento

82. Hoje a fé nos ensina que Maria Santíssima é um caso de eleição


única e especialíssima da vontade de Deus, não apenas nascendo sem
nenhum pecado (como São João Batista, que foi santificado no ventre
de Santa Isabel), mas sim sendo concebida sem qualquer mancha do pe-
cado e permanecendo assim perpetuamente. Na época de São Próspero,
esse assunto não chegara ainda a ser cogitado (N. do R.).

147
A vocação de todos os povos – Livro II

a nossa [natureza] corrompida participou da incorrupção, porque


nem sempre a culpa foi um escurecimento devido ao ocaso83.

O começo da vida é o começo da morte. Assim que avan-


çamos em idade, começamos a declinar. Quando um espaço de
tempo é adicionado ao nosso tempo [aos dias da nossa existência
neste mundo], isso não é um acréscimo que resulta em um estado
de pereene estabilidade, mas é uma mera forma de transição para
a morte. Portanto, sendo mortal desde o início, seja qual for o dia
em que nasça, o homem não perece de modo contrário à lei da
mortalidade. Nunca estará tão completamente de posse da vida
que esteja fora do alcance da morte.

E, embora a mortalidade de todos os homens tenha surgido


de uma só fonte, a nossa natureza corruptível é fragmentada, não
por uma, mas por muitos tipos de fraqueza: doença, debilidade e
acidentes ameaçam não apenas os anos, meses ou dias de nossa
existência humana, mas também a cada hora e a cada momento.
Não existe nenhum tipo de morte, não há maneira de deixar este
mundo que não se dê, de algum modo, na humanidade mortal.
Pois esta “grande preocupação foi imposta a todos os homens; pe-
sado jugo está sobre os filhos de Adão, desde o dia em que eles
saem do ventre de suas mães, até ao da sua sepultura (em que eles
entram) no seio da mãe comum de todos84.

83. Isto é, nossa natureza corrompida jamais participou da incorrupção,


e a prova disso é que os pecados não são cometidos por alguma ceguei-
ra momentânea e involuntária, mas é nossa vontade mesma que nos
cega e nos leva a pecar. Obviamente, São Próspero está a referir-se ao
período pós-adâmico e não considera aqui a Imaculada Conceição da
Santíssima Virgem (N. do R.).
84. Eclo 40,1.

148
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XXII
A Justiça Divina mensura, para cada
um, o seu próprio infortúnio.

41. Mas o peso desse jugo mais pesado não recaiu sobre os
filhos de Adão sem que a Justiça de Deus se aplicasse segundo suas
próprias dimensões. Segundo estas, Deus submeteu os seres defei-
tuosos às leis de suas próprias deficiências, Mas, ao mesmo tempo,
não lhes negou o poder de mitigar as suas misérias. Ele não per-
mitiu que, apenas porque todos os homens, por causa de sua con-
dição pecaminosa comum, sejam sujeitos a todos os males, todo e
qualquer mal deva acontecer a todo homem. O Senhor quis que a
necessidade geral se afirmasse em diferentes graus, mantendo para
Si as razões tanto da indulgência quanto da severidade. E a única
obrigação comum de todos era reconhecer no Perdão divino um
ato de misericórdia e no castigo de Deus um ato de justiça.

42. Sabemos, então, que a justa e onipotente Providência de


Deus governa todas as coisas incessantemente; que ninguém entra
neste mundo ou parte dele, a não ser aqueles cujo nascimento ou
morte o Senhor de todas as coisas, em sua Ciência e Sabedo-
ria insondáveis, decretou; assim, como está escrito no livro de Jó:
“Quem ignora que a mão de Deus fez todas as coisas, que Ele tem
em sua sua mão a alma de todo o vivente, e o sopro da vida de toda
a carne humana”85; e novamente: “Os dias do homem são breves,
em teu poder está o número dos seus meses”86; quem ousaria ques-
tionar as razões de suas Obras e Conselhos? Pois inescrutável e

85. Jó 12,9.
86. Jó 14,5.

149
A vocação de todos os povos – Livro II

grande é a razão secreta pela qual homens diversos, cuja condição


humana é a mesma, são tratados de maneiras tão diferentes.

Desde a infância até a velhice, um homem sofre os efeitos de


uma grande enfermidade e, apesar das dores constantes, nenhum
momento é cortado dessa vida que lhe foi designada; enquanto
isso, outro homem desfruta de todo o vigor das suas capacidades e
desfruta de uma saúde vigorosa até a velhice. A um, a morte vem na
infância, a outro, na adolescência. Um não pode ir além da juventu-
de, outro não pode nem atingir a idade da fala. Em nossa fragilida-
de – de mortais que somos – acharíamos toda essa delimitação da
vida, tão desigual em tantos aspectos, menos amarga se houvesse
apenas a perda da vida atual, e se crianças que partem deste mundo
sem o Banho da Regeneração não caíssem na infindável miséria.

CAPÍTULO XXIII
Os filhos que morrem na infância recebem
a graça geral concedida aos pais.

43. A causa que regula a distribuição dos dons da graça é


mais inescrutável para nós do que a causa das misérias que a nossa
natureza merecia. Mas essa dificuldade em entender o mistério
nos leva a admirar o nosso Criador.

Se nós perguntarmos como se pode dizer que Deus deseja


que todos os homens sejam salvos, se Ele não concede todo o tem-
po necessário para que todos sejam capazes de receber a graça em
uma livre aceitação da fé, penso que podemos crer, sem irreverên-
cia e sem impropriedade, que aqueles homens que vivem apenas

150
São Próspero de Aquitânia

alguns dias compartilhem da mesma graça que sempre foi dada a


todas as nações87.

Pois, de fato, se os pais fizessem bom uso dessa graça88, os


filhos também obteriam dela, por meio deles, o auxílio salvador. De
fato, todas as crianças dependem do nascimento e, durante todo o
período da infância até a idade da razão, das decisões tomadas por
outros homens, e a orientação dada a elas deve vir exclusivamente
de outras pessoas. Desse modo, os bebês compartilham a mesma

87. No Livro I, São Próspero demonstrou que todos os povos da Anti-


guidade receberam a graça divina, graça suficiente para que Deus fosse
adorado mesmo sem a Revelação, a Lei ou os Profetas: a Criação toda
dá testemunho do Criador. Nosso autor chega a dizer que é possível que
alguns homens de povos não-abraâmicos tenham alcançado a salvação
(mediante os Méritos de Cristo), pois de algum modo conheceram a
Deus pela criação. Poder-se-ia pensar que o Santo se refere à graça ge-
nérica neste sentido, porém é mais profunda a realidade aqui assinalada:
como toda coisa criada, o homem tem em sua natureza um sinal que
aponta para o Criador – no caso do homem, esse sinal é mais profundo;
trata-se de uma atração ao Criador, uma inquietação que pede pelo re-
pouso em Deus, como diz Santo Agostinho (Confissões, Livro I). Esse
sinal, essa inquietude de coração, é a graça genérica da qual fala São
Próspero, conforme podemos notar em diversas partes desta e em outras
obras suas. Aqui ele diz que as crianças que morrem sem o batismo rece-
bem esta mesma graça, que a Teologia chama graça suficiente. O concei-
to teológico da graça suficiente configura-se em um ponto-chave contra
o semipelagianismo. É dada para que o homem inicie o seu caminho de
conversão a Deus, mas não para alcançar a plenitude da santidade. Age
na alma para realizar a conversão inicial, semelhante à do filho pródigo
(Lc 15), que é uma espécie de tomada de consciência. A partir dessa gra-
ça suficiente, que o faz despertar, o homem passa a suplicar a Deus pela
graça eficaz, a qual é capaz, esta sim, de capacitar a vencer o pecado nas
batalhas diárias que todo devoto terá que enfrentar. (N. do R./T.).
88. Isto é, essa predisposição natural da criatura ao Criador (N. do R.).

151
A vocação de todos os povos – Livro II

herança daquelas pessoas cujas disposições certas ou erradas deci-


dem a sua condição. Alguns deles têm fé através da Profissão de
fé de outras pessoas; do mesmo modo, alguns deixam de ter fé por
causa da incredulidade ou da negligência culposa de outros.

Embora os próprios filhos não tivessem inicialmente ne-


nhum desejo pela vida, seja a vida presente ou a vida que há de
vir, contudo, assim como o seu nascimento se tornou uma preocu-
pação própria dos pais, também a eventual privação do Renasci-
mento vai se tornar sua preocupação. E, assim como no caso dos
adultos, é óbvio que alguns, além da graça geral que move todos os
corações humanos de modo oculto, recebem um chamado especial
com mais efeitos excelentes da graça, com dons mais generosos e
com um poder mais forte; assim também no caso dos incontáveis​​
bebês, a mesma eleição se revela.

A eleição não é retida, mesmo a das crianças que não renas-


cem , quando estava presente em seus pais; mas alcançou algumas
89

crianças que foram batizadas, sem alcançar seus pais. Assim, mui-
tas vezes acontecia que as crianças eram cuidadas por estranhos
quando seus parentes incrédulos falhavam; e através de estranhos
elas passaram a receber a Regeneração, quando seus próximos não
a teria providenciado para elas.

89. ‘Renascimento’, assim como como ‘regeneração’, usados como si-


nônimo do sacramento do batismo (N. do T.).

152
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XXIV
Não podemos encontrar uma justa razão para
queixa quanto aos diferentes destinos das
crianças que, em todos os outros aspectos,
são iguais; antes, há aí uma forte prova da
Justiça de Deus e da graça de Cristo.

44. Nessa obra da graça, quais seriam os vãos e arrogantes


que poderiam reclamar da Justiça divina, porque a Providência não
trata todas as crianças da mesma maneira e porque o seu Poder não
descarta, nem a sua Misericórdia previne de todos os perigos que
podem impedir a regeneração de quem, desse modo, está obrigado
a morrer nesta miséria? Isso de fato valeria para todas as crianças,
se tivesse que ser feito por todos os meios. Mas não é difícil ver que
descuido surgiria no coração dos fiéis, se no assunto do Batismo
das crianças a negligência de uma pessoa ou a possibilidade de
sua morte não causassem medo; pois nessa hipótese nunca poderia
acontecer que as crianças continuassem privadas do Batismo.

45. Mas essa suposição, de que a felicidade das crianças


nunca pode ser frustrada, acrescentaria grande força à opinião er-
rônea que se atreve a dizer que os homens recebem graça de acordo
com seus méritos. Pois então pareceria que a inocência dos bebês
poderia reivindicar, com plena justiça, que nenhum de seus mem-
bros deveria deixar de receber essa adoção, porque nenhuma culpa
os mantém acorrentados. Então não haveria nada contra a fé na
declaração feita por alguém sobre o Batismo de crianças: “A graça
tem algo a adotar, mas a água do batismo [das crianças] não tem

153
A vocação de todos os povos – Livro II

nada para purificar”90. Mas todos os seguidores da Verdade veem


a execrável negação do Evangelho que está sendo pregada aqui. É
óbvio que todos os que morrem sem Batismo estão perdidos; e esse
fato prova por si só que todos os homens que alcançam a salvação
a devem não ao seu próprio mérito, mas à graça. Certamente, estes
infantes não foram manchados com pecado [pessoal] grave; mas
assim é o Juízo de Deus: oculto, mas justo; manifesta tanto o dom
que a graça concede ao homem quanto o castigo que a nature-
za pecaminosa merece. Assim, nenhum orgulho humano pode se
gabar de que a graça não é um dom, nem a nossa diligência pode
nunca relaxar, como se não houvesse perigo a temer.

CAPÍTULO XXV
Com sua graça geral dada a todos, Deus sempre
quer que todos os homens sejam salvos; mas a
sua graça especial não é concedida a todos.
46. Se, então, olhamos para esses últimos séculos ou para o
primeiro, ou para o período do meio, vemos que a razão e o senso
religioso nos fazem acreditar que Deus deseja e sempre quis que
todos os homens fossem salvos. Provamos isso de nenhuma outra
fonte senão dos próprios dons que a Providência de Deus geral-
mente concede a todos os homens, sem qualquer distinção. Esses
dons são considerados tão geralmente no passado e no presente,
que os homens encontram em seu testemunho auxílio suficiente

90. Esta citação é um dogma dos Pelagianos, segundo os quais as crian-


ças não precisariam do batismo e nem serem limpas do Pecado original,
mas sim somente participar da Redenção e da adoção ao Reino dos
Céus (Cf. HURTER, H. Sanctorum Patrum Opuscula Selecta III. Libra-
ria Academica Wagneriana, 1868. p. 145, nota 1).

154
São Próspero de Aquitânia

para buscar o Deus verdadeiro. E além desses dons que proclamam


o seu Criador através dos tempos, Deus espalhou uma recompensa
especial da graça. E embora essa graça seja concedida mais abun-
dantemente hoje em dia do que antes, o Senhor reservou para Si
o conhecimento das razões dessas suas dispensações, e as manteve
ocultas no segredo de sua vontade onipotente. Se estas dádivas
chegassem a todos os homens de maneira uniforme, não haveria
nada de oculto nelas. E, assim como não pode haver dúvida sobre
a bondade geral para com todos os homens, também não há nada
de surpreendente em sua Misericórdia especial.

Consequentemente, o primeiro [dom geral de Deus] pare-


ceria uma graça, enquanto que o último não; mas a Deus aprouve
conceder esta última graça a muitos, e não privar alguém da pri-
meira. Ele queria deixar claro, a ambos, que não recusou a todos os
homens aquilo que deu a alguns, mas que em alguns desses mesmos
homens a graça prevaleceu, e em outros permaneceu a natureza.

CAPÍTULO XXVI
Em toda a justificação, a graça é o fator principal,
enquanto a vontade humana é secundária, unida à
graça e cooperando com Deus; a graça prepara a
vontade do homem para esta cooperação.

47. Cremos e sabemos por experiência própria que essa gra-


ça abundante age no homem com uma poderosa influência; mas,
em nossa opinião, essa influência não é dominante, na medida em
que tudo o que transparece na salvação dos homens é alcançado
somente pela vontade de Deus; pois, já no caso das crianças, é o

155
A vocação de todos os povos – Livro II

consentimento da vontade alheia o meio para que elas sejam ali-


viadas de suas aflições.

A graça especial de Deus é certamente o fator mais proe-


minente em toda a justificação. Admoesta com exortações, move
por exemplos, inspira o medo dos perigos, desperta com milagres,
dá entendimento, inspira conselhos, ilumina o próprio coração – e
o inspira com as aspirações da fé.

Mas a vontade do homem também está associada à graça,


como um fator secundário. Pois é despertada pelos auxílios acima
mencionados para que possa cooperar com a obra de Deus que está
sendo realizada no homem, e para que comece a praticar e obter
mérito daquilo pelo qual a semente divina inspira o desejo efetivo.
Assim, o seu eventual fracasso se deverá à sua própria inconstân-
cia; mas o seu sucesso é sempre devido ao auxílio da graça.

Esse auxílio é dado de inúmeras maneiras, sendo que al-


gumas destas estão ocultas, enquanto que outras são facilmente
discerníveis. Se muitos recusam esse auxílio, é somente por causa
da sua própria malícia. Se muitos o aceitam, isso se deve tanto à
graça divina quanto à sua vontade humana. Podemos examinar o
início da fé nos fiéis, ou o seu progresso, ou a sua perseverança final
na mesma fé; em nenhum lugar descobriremos qualquer tipo de
virtude que não tenha origem, de fato, no dom da graça e no con-
sentimento das nossas vontades. Pois a graça, em toda a variedade
de curas e de adjutórios que fornece, primeiro opera para preparar
a vontade do destinatário da sua chamada – a boa vontade para
aceitar e manter-se nos seus dons. A virtude é inexistente entre os
homens que não desejam ser virtuosos, e não se pode dizer que os
homens poderiam ter fé, esperança ou caridade, se recusarem com
o seu livre consentimento a essas virtudes.

156
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XXVII
A graça é a causa do consentimento de nossa
vontade, não somente pela Doutrina e pelo
esclarecimento, mas também através
do terror e do medo.

48. Os homens dão seu livre consentimento à graça, não


apenas quando induzidos a fazê-lo pela exortação dos pregadores
e pela inspiração da Doutrina, mas também quando o fazem pelo
medo, como está escrito: “O princípio da sabedoria é o temor do
Senhor”91. Esse medo, resultado de experiências assustadoras de
qualquer tipo, tende apenas a fazer um homem disposto, que co-
meçou por temer – e não apenas disposto, mas também sábio. É
por isso que as Escrituras dizem novamente: “Bem-aventurado o
homem que recebeu o dom do temor de Deus”92. Pois o que po-
derá proporcionar mais felicidade do que esse medo que produz e
promove a sabedoria? E com a devoção que brota da sabedoria, a
vontade também é preenchida; assim, graças ao mesmo medo que
a levou inicialmente à ação, e depois produziu graça, a vontade co-

91. Pr 9,10 – A tendência geral dos teólogos atuais é atribuir ao vocábulo


traduzido nesta passagem por ‘temor’ (‫ – ִיַראְת‬transl.: yir’ah) o sentido
de ‘reverência’ e ‘respeito’ ao Poder divino e/ou à suprema Autoridade
de Deus, mais do que o de ‘medo’ ou ‘terror’. Todavia, não necessaria-
mente uma coisa exclui outra, já que é da Doutrina da Igreja que a atri-
ção, isto é, o arrependimento originado do medo (do castigo do Inferno e
das outras penas devidas ao pecado) indiretamente salva almas, malgra-
do não constitua a contrição perfeita, se culminar, sob a ação da graça,
na absolvição sacramental (Catecismo Romano. Cap. V, Da Penitência,
n.37, p.317; Catecismo da Igreja Católica de 1992, n.1453).
92. Eclo 25,15.

157
A vocação de todos os povos – Livro II

meça a progredir. Quando esse medo é alcançado por um homem,


mesmo pelo choque de um grande susto, isso não significa que ele
apague sua razão ou que se prive do entendimento. Antes, com
isso dissipam-se as trevas que oprimiam a alma, de modo que sua
vontade, antes depravada e escravizada, agora é correta e livre.

Consequentemente, assim como a alma não adquire virtu-


de, a menos que tenha recebido um raio da verdadeira Luz, tam-
bém a graça não concede favor ao homem a quem ela chama, a
menos que este homem tenha aberto os olhos da sua vontade.

Conforme já apresentado acima, em muitos homens a graça


produz grande fervor desde os primeiros movimentos e, em segui-
da, é rapidamente enriquecida com consideráveis aumentos. Mas
em muitos outros também, que avançam lenta e hesitantemente,
dificilmente cresce forte o suficiente para alcançar a firmeza neces-
sária à perseverança.

49. Nosso Senhor, de fato, diz: “Ninguém pode vir a Mim


se o Pai, que me enviou, o não atrair”93; e o Cristo assim o diz para
nos ensinar que a fé, sem a qual ninguém pode chegar a Ele, é um
dom do Pai, como foi mostrado no que Ele também disse a São
Pedro Apóstolo: “Bem-aventurado és, Simão Bar-Jona, porque
não foi a carne e o sangue que te revelaram [que Eu Sou o Cristo],
mas meu Pai que está nos Céus”94. É o Pai que, no coração dos ho-
mens que Ele quer atrair a Si, produz tanto a fé quanto a vontade
eficaz. Pois esses homens não poderiam ter sido assim atraídos se
não tivessem a fé e a boa vontade.

93. Jo 6,44.
94. Mt 16,17.

158
São Próspero de Aquitânia

Os homens que recusam a fé, não são por Ele atraídos, nem
vão a Ele. E quando eles retêm assim o seu livre consentimento,
então não se aproximam do Senhor, porque preferem se afastar
d’Ele. Ora é o Amor divino que conduz ao Senhor todos aqueles
que vão até Ele: foi Ele Quem os amou primeiro; eles apenas re-
tornaram esse seu Amor. Ele os procurou primeiro e eles, por sua
vez, o procuraram; e quando Deus inspirou sua vontade humana
com a sua divina vontade, eles o quiseram.

CAPÍTULO XXVIII
Os homens fiéis que, pela graça de Deus, creem
em Cristo, ainda permanecem livres para deixar
de crer; e aqueles que perseveram ainda
podem se afastar de Deus.

50. Aquele mesmo que inspira nos homens a obediência,


não tira deles – nem mesmo daqueles que perseveram – a incons-
tância pela qual ainda podem recusar a obediência. Caso contrário,
nenhum dos fiéis jamais teria desistido da fé, nem a concupiscên-
cia venceria alguém e nem a tristeza deprimiria; a raiva não vence-
ria nenhum homem e a caridade de ninguém esfriaria; a paciência
de ninguém cederia e ninguém negligenciaria a graça que lhe é
oferecida. Porém, como essas coisas sempre podem acontecer, e
os homens, com muita facilidade e prontidão, cedem e consentem
em tais tentações, as palavras que falou nosso Senhor aos Seus
Apóstolos, “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação”95, deve
sempre ressoar nos ouvidos dos fiéis. Se Ele tivesse admoestado

95. Mt 26,41.

159
A vocação de todos os povos – Livro II

seus discípulos a observarem apenas, e não a rezarem também,


então poderia parecer que Ele desejasse apenas cultivar o seu li-
vre-arbítrio. Mas, acrescentando o “e orai”, Ele mostrou suficien-
temente bem que seria graças a um presente do Céu, juntamente
com a vigilância deles, que permaneceriam firmes na tempestade
da tentação.

51. No mesmo sentido, Ele disse:

Simão, Simão, eis que Satanás te busca com instância para vos
joeirar como trigo; mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não
desfaleça; e tu, uma vez convertido, conforta os teus irmãos.
(...)Orai para não cairdes em tentação.96

Quando a fé de um Apóstolo tão grande pudesse ceder, a


menos que o próprio Cristo pedisse diretamente por ele, isso é
um sinal claro de que ele também estava sujeito à instabilidade;
que até ele poderia vacilar em tentações; e ele não estava tão con-
firmado com a força da perseverança, que não estivesse sujeito a
nenhuma fraqueza. Pois de fato, mesmo depois de tudo isso, sua
apreensão o abalou a tal ponto que, na casa de Caifás, assustado
com as perguntas de uma criada, sua constância cedeu, e tanto que
chegou ao extremo de renegar a Cristo por três vezes – depois de
ter prometido que morreria por Ele. Naquele momento, pois, o
Senhor olhou para o coração conturbado desse Apóstolo, não com
olhos humanos, mas com olhos divinos, com um olhar penetrante,
provocando lágrimas abundantes de arrependimento.

Ora o Senhor poderia também ter dado ao chefe dos seus


discípulos tanta firmeza de alma quanto Ele próprio a possuía, e
modo que nada o dissuadiu da determinação de sofrer sua Paixão;

96. Lc 22,31.40.

160
São Próspero de Aquitânia

e então São Pedro também, naquela ocasião, não teria sido venci-
do por nenhum medo.

52. Mas essa tal firmeza pertencia apenas àquele que, so-
zinho, poderia dizer realmente e em verdade: “Eu tenho poder de
dar a minha vida, e tenho poder de a reassumir”97. Em todos os
outros homens, visto que “a carne tem desejos contrários ao espíri-
to, e o espírito desejos contrários à carne”98, e sendo que “o espírito
na verdade está pronto, mas a carne é fraca”99, a força imóvel da
alma não pode ser encontrada, porque a felicidade perfeita e im-
perturbável da paz não a temos nesta vida, mas a teremos apenas
na próxima. Todavia, na incerteza das agonias presentes, quando
toda a vida é uma tentação, e quando as próprias vitórias não estão
protegidas do perigo do orgulho, também o risco da inconstância
é sempre presente. É verdade que a proteção de Deus dá a força da
perseverança final a seus incontáveis Santos, mas Ele não liberta
nenhum deles da resistência que os seus esforços encontram em
sua própria natureza. Em todas as suas lutas e esforços, a disputa
entre o querer e o rejeitar100 permanece.

O próprio Apóstolo São Pedro, o mais abençoado, passou


por esse conflito no exato momento em que estava prestes a co-
roar todas as suas vitórias. Foi isso que nosso Senhor lhe predisse,
quando falou:

97. Jo 10,18.
98 Gl 5,17.
99. Mt 26,41.
100. Aqui trata do problema da ‘vontade cindida’ (ou ‘dividida’) que
Santo Agostinho expõe nas suas Confissões, e da qual fala São Paulo
Apóstolo: ‘Não faço, pois, o bem que quero, mas o mal que não quero,
este faço’ (Rm 7,19) (N. do R.).

161
A vocação de todos os povos – Livro II

Em verdade, em verdade te digo: quando tu eras moço, cin-


gias-te e ias onde desejavas; mas, quando fores velho, estende-
rás as tuas mãos, e outro te cingirá e te levará para onde tu não
queres. Disse isto indicando com que gênero de morte havia
Pedro de dar glória a Deus.101

Quem, então, duvidaria? Quem deixaria de ver que essa


rocha mais forte, que compartilhava da força e do nome da pri-
meira Rocha, sempre nutriu o desejo de receber a força de morrer
por Cristo? Mesmo assim, ele não deveria escapar do impacto do
terror. Esse homem que estava mais ansioso para sofrer o martírio
ouviu a promessa de que seria realmente vitorioso em seus sofri-
mentos, mas não sem a prova do medo.

53. Com razão, portanto, não apenas os iniciantes, mas


também santos avançados, suplicam ao Senhor da mesma ma-
neira e dizem: “Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do
mal!”102 Pois para todos aqueles que perseveram na fé e na cari-
dade, é Ele Quem concede a força para não serem vencidos pela
tentação, “para que, como está escrito: o que se gloria, glorie-se no
Senhor”103. E embora seja Ele Quem lhes dá a vitória, Ele lhes
atribui ainda o mérito por ela. Embora seja somente com o auxílio
de Deus que eles permaneçam firmes na tentação, mesmo que por
sua natureza estejam expostos às quedas, Ele os reconhece quando
eles permanem firmes.

Consequentemente, assim como aqueles que são crentes


recebem ajuda para perseverar em sua fé, também aqueles que ain-
da são incrédulos recebem ajuda para chegar à fé. E assim como é

101. Jo 21,18ss.
102. Mt 6,13.
103. Cor 1,31. Jr 9,24.

162
São Próspero de Aquitânia

possível que o primeiro abandone a fé, também os incrédulos são


capazes de não chegar a ela. Está claro, então, que de inúmeras
maneiras Deus “quer que todos os homens se salvem e cheguem
ao conhecimeuto da verdade”104. Quando eles vêm, o auxílio de
Deus é o seu guia; quando não, a culpa do fracasso está na sua
pertinaz relutância.

CAPÍTULO XXIX
Deus está cumprindo sua Promessa de abençoar a
todos os povos todos os dias, para não deixar
escusas aos réprobos, nem dar aos eleitos
razão para se gloriarem de sua justiça.

54. Muitos são amantes das suas próprias trevas e não


aceitam o esplendor da Verdade. E muitos dentre os que viram
a Luz retornam à escuridão. No entanto, a Palavra de Deus per-
manece para sempre105, e nada será tirado de sua Promessa. Todos
os dias, a plenitude pré-conhecida e prometida dos gentios entra
no aprisco, e na semente de Abraão toda nação, toda tribo, toda
língua é abençoada.

Pois o que o Pai deu ao Filho, o Filho não perde106, e nin-


guém pode arrebatar da sua mão aquilo que Ele recebeu107. “O

104. 1Tm 2,4.


105. Cf. 1Pd 1,25.
106. Cf. Jo 6,39.
107. Cf. Jo 10,29.

163
A vocação de todos os povos – Livro II

fundamento de Deus permanece firme”108, e a construção do Tem-


plo que permanecerá para sempre não treme, porque a Verdade e
a Misericórdia de Deus estão acima de todos os homens. Deus
efetua nos homens que cumprem sua Promessa aquilo que Ele
não recusa a ninguém – e o que Ele não deve a ninguém. Ele
mesmo “opera tudo em todos”109, e tudo aquilo em que Ele tra-
balha não pode deixar de ser justo e bom. Pois todos os caminhos
do Senhor são Misericórdia e Verdade110. Deus conheceu, antes
de todas as épocas, quantas pessoas, de todo o mundo – embora
tenham desfrutado de seus dons gerais ou tenham sido auxilia-
das por seus auxílios especiais – ainda se afastam do Caminho da
Verdade e da Vida e seguem o caminho largo do erro e da morte.
Da mesma forma, o Senhor já viu em sua Presciência quantos
homens tementes a Ele – sempre graças ao auxílio de sua graça
– se colocariam obedientes ao seu serviço, e assim entrariam na
bem-aventurança eterna.

Assim, ninguém cai do número dos eleitos prometidos, ex-


ceto aqueles que deixam de progredir ou deixam de lucrar com
o seu auxílio. Ele exalta em glória todos os eleitos que escolheu
dentre todos os homens. Certamente, como provamos abundan-
temente, a múltipla e inefável bondade de Deus sempre proveu e
ainda hoje provê a todos os homens, de tal maneira que nenhum
dos réprobos pode encontrar desculpa como se tivesse sido recu-
sado à Luz da Verdade, e igualmente ninguém pode justamente
se orgulhar da sua própria justiça. Um grupo perece por causa da
sua própria malícia, enquanto a graça de Deus leva outro grupo à
Glória eterna.

108. 2Tm 2,19.


109. 1Cor 12,6.
110. Sl 25(24),10.

164
São Próspero de Aquitânia

CAPÍTULO XXX
Recapitulando o capítulo I deste Livro Segundo.

55. Desejamos recomendar aqui, novamente, o mesmo que


sugerimos no início deste Livro Segundo, a saber, que quando tra-
tarmos da profundidade e da altura da graça divina, basearemos
o nosso raciocínio nessas três proposições que são perfeitamente
sólidas e verdadeiras. Uma destas declara que a bondade de Deus,
desde toda a eternidade e por sua livre escolha, quer que “todos os
homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da Verdade”111.

A partir daí, a segunda proposição afirma que todo homem


que realmente é salvo e chega ao conhecimento da Verdade de-
ve-o ao auxílio e à condução de Deus, que opera pela caridade112,
assim como também lhe deve sua perseverança na fé.

A terceira proposição reconhece, com modéstia e cautela,


que não podemos compreender o motivo de todos os decretos di-
vinos e nem as razões de muitas das obras de Deus permanecerem
ocultas ao nosso entendimento humano.

Vemos que Deus age de maneira diferente ou singular em


momentos diferentes, ao lidar com diferentes nações ou famílias,
com bebês ou nascituros, ou mesmo com gêmeos113. Não temos

111. 1Tm 2,3.


112. ‘A fé opera pela caridade’, cf. (Gl 5,6).
113. Cada item desta enumeração já foi tratado anteriormente: tempos
diferentes cf. os períodos da história da salvação; nações diferentes, isto
é, especialmente Israel e os gentios; famílias diferentes, os bebês; os
nascituros não foram mencionados explicitamente neste De Vocatione,

165
A vocação de todos os povos – Livro II

dúvidas de que aqui estamos diante dessas coisas que Deus, em sua
Justiça e Misericórdia, não quer que saibamos neste mundo fugaz.
E devemos estar convencidos de que essas coisas foram ocultadas
para o nosso bem. Assim, vendo que somos salvos pela esperança,
e que Deus preparou para nós o que olhos não viram, nem ouvi-
dos ouviram, nem entraram no coração do homem; e assim como
acreditamos firmemente que algum dia veremos o que ainda não
vemos, também esperamos pacientemente para entender o que
ainda não entendemos.

Portanto, se todo desgosto e toda presunção são deixados


de lado, e se toda a insolência diminuir, então, depois de tudo o
que dissemos – e dissemos corretamente – acho que não haverá
mais motivo para brigas adicionais, e não haverá mais necessidade
de nos ocuparmos com discussões intermináveis.

CAPÍTULO XXXI
Em todas as eras, a bondade geral de Deus deu
graça a todos homens, mas em medidas diversas.

56. Esforçamo-nos em provar, o melhor que pudemos e


com o auxílio de Nosso Senhor, que não apenas em nossos dias,
mas também em todos os tempos passados, Deus deu sua graça a
todos os homens, com paridade de providência114; contudo, os efei-

mas Santo Agostinho, o grande mestre de São Próspero, os menciona


no caso de Esaú e Jacó e Epist. 286 [Ad Paulin.]. Sobre o caso dos gê-
meos, vide a alusão à prova clássica da gratuidade da graça derivada de
Esaú e Jacó, idem, cap. 11, n.88.
114. No sentido de que Deus a todos provê (N. do R.).

166
São Próspero de Aquitânia

tos de sua graça são múltiplos e a medida de seus dons varia. Para
todos os efeitos, por vias ocultas ou manifestas, Ele é, como diz
o Apóstolo, “o Salvador de todos os homens, principalmente dos
fiéis”115 Esta declaração é sutil em sua verdade e vigorosa em sua
força. Se considerarmos, com tranquilidade, observamos que [essa
afirmação] dirime totalmente a presente controvérsia. Pois, dizen-
do quem é o Salvador “de todos os homens”, o Apóstolo afirmou
que a bondade de Deus é geral e cuida de todos os homens. Mas
ele adiciona: “especialmente dos fiéis”, e assim demonstra que há
uma parte do gênero humano a quem Deus, graças à fé que Ele
mesmo inspirou, leva adiante com ajuda especial para a salvação
suprema e eterna.

Ao fazer isso, Deus, que é supremamente Justo e que é Mi-


sericordioso acima de qualquer iniquidade, dispensa-nos de dis-
cutir quanto ao seu Julgamento (o que seria arrogância de nossa
parte), mas, antes, louvá-lo com reverência e temor.

CAPÍTULO XXXII
Entre os fiéis, existem diferentes graus dos dons
dados por Deus, e isso não se deve ao mérito,
mas ao Juízo justo e oculto de Deus.

57. De fato, entre os próprios fiéis, como já demonstramos


antes, esses dons não são os mesmos e não são iguais para todos.
Antes que o mérito humano possa ter alguma influência, as mise-
ricórdias divinas têm medidas desiguais.

115. 1Tm 4,10.

167
A vocação de todos os povos – Livro II

Se não ousamos nos queixar de certas decisões dos nossos


pais humanos, quando demonstram mais indulgência e amor por
algum de seus filhos –, mesmo antes de terem considerado o seu
comportamento ou recebido deles quaisquer serviços filiais –; se
permitimos aos mestres humanos que também disponham com
liberdade dos seus servidores, e se não podemos com justiça cen-
surar alguém que, de um agregado familiar em que todos tenham
a mesma posição social, escolhe aqueles a quem deseja conceder
maiores privilégios e proporcionar uma educação mais pródiga...
deveremos então encontrar falhas na Justiça mais benevolente do
Pai supremo e verdadeiro Mestre, porque, de sua grande Morada,
Ele dispõe todas as coisas de maneiras inúmeras e diversas?

Embora ninguém possua bem algum que não tenha sido


dado por Deus, nem todos são resplandecentes ou têm as mesmas
virtudes, ou são dotados dos mesmos carismas. E podemos não ver
a razão desses diferentes graus em seus diferentes méritos; é antes
a graça a primeira causa de todo mérito e que produz tudo o que
é louvável em cada um.

CAPÍTULO XXXIII
Nenhum dos eleitos está perdido, mas todos os
que foram escolhidos desde toda a eternidade
alcançarão a salvação.

58. Portanto, assim como é ímpio abrigar em nossos cora-


ções qualquer queixa sobre as diversas ações do Espírito Santo na
Igreja, também, não devemos de modo algum murmurar sobre a
Providência de Deus, a qual governa o destino dos infiéis.

168
São Próspero de Aquitânia

Pois nosso Mestre, que é Justo e Bom, não pode querer nada
injusto nem vacilar em seu Discernimento. Não devemos, portan-
to, imaginar que, apesar das imensuráveis Misericórdia e Justiça do
Deus Todo-Poderoso, um homem que não é réprobo haverá de se
perder.

Nenhuma parte do mundo fica sem o Evangelho de Cristo.


E, embora o Chamado geral de Deus não cesse, o Chamado espe-
cial agora também alcançou a todos os homens. De todas as nações
e condições, milhares de idosos, milhares de jovens e milhares de
crianças recebem diariamente a graça de Adoção. Até os exércitos
que desgastam o mundo ajudam na obra da graça cristã: quantos,
de fato, que na quietude dos tempos de paz demoraram a receber
o Sacramento do Batismo, foram compelidos pelo medo de um
perigo próximo a apressar-se às águas da regeneração; e quantas
almas lentas e mornas foram subitamente forçadas, pela ameaça e
pelo terror, a cumprir um dever para o qual as exortações pacíficas
haviam falhado?

Alguns filhos da Igreja, feitos prisioneiros pelo inimigo,


transformaram estes seus senhores em servos do Evangelho e, en-
sinando-lhes a fé, tornaram-se superiores a esses mesmos senho-
res da guerra. Mais uma vez, alguns pagãos estrangeiros, enquanto
serviam nos exércitos romanos, foram capazes de aprender a fé
em nossa Religião, quando em suas terras não o podiam conhecer;
eles voltaram para suas casas instruídos na Religião cristã.

59. Assim vemos que nada pode impedir a graça de Deus


de realizar a sua vontade. Ele transforma discórdia em unidade, e
transforma enfermidades em remédios. Assim, onde a Igreja te-
mia o perigo, lá mesmo encontra a sua expansão.

169
A vocação de todos os povos – Livro II

Consequentemente, para qualquer curso dos eventos hu-


manos a que direcionemos a nossa atenção, descobriremos que
nenhum século ou evento, nenhuma geração, esteja em ascensão
ou em queda, é independente dos Juízos eternos e inescrutáveis de
Deus. Todos os conflitos de interesses opostos e todas as causas de
eventos confusos que não somos capazes de escrutinar e explicar,
são simultaneamente conhecidos e claros para o Conhecimento
eterno de Deus. Nada pode perturbá-lo, nem mesmo nas qualida-
des de ações que ainda estão por vir. Para Deus, não existe impulso
repentino, nem vontade nova, nem desígnio temporário. Seu Pen-
samento não se altera com as alternâncias das coisas mutáveis, mas
Ele compreende com seu olhar eterno e imóvel todos os tempos e
todas as coisas relativas ao tempo. Ele já prestou tudo a todos, pois
já realizou o que ainda está por vir.

60. Daí o conhecido texto do bem-aventurado Apóstolo


Paulo aos efésios:

Bendito o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos


abençoou do alto dos Céus, com toda a bênção espiritual em
Cristo, escolhendo-nos n’Ele, antes da criação do mundo, para
sermos santos e imaculados a seus olhos, o Qual (também) nos
predestinou, no seu Amor, para sermos seus filhos adotivos por
Jesus Cristo, por sua livre vontade, para louvor da sua graça
esplendorosa.116

...et cetera, e assim o resto do texto, onde o santo Apósto-


lo expressa a mesma ideia. Ele ensina que o dom e os efeitos da
graça sempre existiram no Desígnio eterno de Deus, e que Deus
mesmo escolheu todos os seus filhos de adoção não apenas quan-

116. Ef 1,3-6.

170
São Próspero de Aquitânia

do os chamou durante a vida, mas antes ainda que o mundo fosse


estabelecido.

Nenhum, dentre todos os homens, que não seja eleito em


Cristo, participará de qualquer maneira da Eleição divina. Pois to-
dos aqueles que, a qualquer momento, serão chamados e entrarão
no Reino de Deus, foram marcados na Adoção, a qual precedeu
todos os tempos. E assim como nenhum dos infiéis será contado
entre os eleitos, nenhum dos tementes a Deus será excluído da
Bem-aventurança.

Pois, de fato, a presciência de Deus, a qual é sem dúvida


infalível, não pode perder nenhum dos membros que compõem
a plenitude do Corpo de Cristo. E o número de eleitos que fo-
ram pré-conhecidos antes de todos os tempos, e profetizados em
Cristo, não pode de maneira alguma diminuir; como o Apóstolo
escreve a Timóteo:

...participa comigo dos trabalhos do Evangelho, segundo a vir-


tude de Deus, que nos salvou e chamou com uma santa voca-
ção, não pelas nossas obras, mas seguundo o seu Beneplácito
e a graça que nos foi dada em Jesus Cristo, anles de todos os
séculos, e que agora foi manifestada pela aparição de nosso
Salvador Jesus Cristo.117

117. 2Tm 1,8ss.

171
A vocação de todos os povos – Livro II

CAPÍTULO XXXIV
Embora o Desígnio de Deus sobre a salvação
dos eleitos seja imutável, não é inútil trabalhar
para adquirir o mérito das boas
obras, e perseverar na oração.

61. A essa luz ofuscante da Verdade invencível, algumas


pessoas costumam objetar imprudentemente, deste modo: “Se a
eleição da graça do Cristianismo já está afixada no desígnio imu-
tável de Deus, e se nada pode acontecer de outra maneira que não
seja determinado pela vontade do Todo-Poderoso, então é supér-
fluo trabalhar e adquirir o mérito das boas obras, é inútil continuar
com orações pelas quais esperamos ser ouvidos por Ele”.

Mas se eles pensam que a sua objeção é engenhosa, não


conseguem entender que o conhecimento de Deus –, o qual abar-
ca o passado, o presente e o futuro –, não é limitado pelo tempo,
e que os eventos futuros são tão presentes a Ele quanto os atuais
ou os passados. Visto que isso é absolutamente verdadeiro, esse
eterno e verdadeiro Poder, que a tudo vê e de uma só vez, tanto
o que foi criado como o que ainda está por vir, o que nasceu e o
que nascerá, o que foi feito e o que ainda será feito, não precisa
de tempo para olhar e discernir. Tudo o que acontece em todo o
Universo, através das eras designadas, e tudo o que é desenrolado
em uma infinidade de eventos diversos, Ele compreende agora, em
sua totalidade, na exata ordem em que até o fim do mundo tudo
ocorrerá, e tudo de acordo com o seu Juízo supremo e perfeito.

Ora esse conhecimento eterno e sempre sereno não nos


impõe nenhuma necessidade de pecar, e nenhuma iniquidade

172
São Próspero de Aquitânia

pode brotar da Fonte de toda a justiça. Pois, se o Deus Bom fez


boas todas as coisas, o mal não tem natureza própria; é por li-
vre-arbítrio que surgiu a transgressão voluntária; entretanto, era
bom que a vontade do homem fosse criada e dada gratuitamente.
Nossa natureza inconstante, cuja integridade dependia da essência
imutável, afastou-se do Bem supremo ao deleitar-se naquilo que
era seu. É a essa ruína que a graça de Deus traz o remédio.

CAPÍTULO XXXV
Os eleitos recebem a graça não para deixá-los
ociosos, ou para liberá-los dos ataques do
Inimigo, mas para capacitá-los a agir
bem e a vencer o Inimigo.

62. Por essa razão, Jesus Cristo veio a este mundo, para
destruir as obras do diabo118. E Ele efetua essa destruição de tal
maneira que os homens são por Ele mesmo auxiliados para que
tenham uma participação ativa; isso também é uma dádiva do Sal-
vador. É por isso que o bem-aventurado Apóstolo diz:

Não somente (nesta esperança), mas também nos gloriamos


nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência,
a paciência a virtude provada, a virtude provada a esperança, e
a esperança não traz engano, porque a caridade de Deus está
derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos
foi dado.119

118. Cf. 1Jo 3,8.


119. Rm 5,3ss.

173
A vocação de todos os povos – Livro II

Da mesma maneira, ele diz aos efésios:

Porque pela graça fostes salvos, mediante a fé, e isto não (vem)
de vós, porque é um dom de Deus; não (vem) das (vossas)
obras, para que ninguém se glorie. Realmente somos obra sua,
criados em Jesus Cristo para (praticar) boas obras, que Deus
preparou para caminharmos nelas.120

63. Deus, então, concede aos seus eleitos, escolhidos sem


nenhum mérito próprio de sua parte, os meios para obter mérito. E
em vão se diria que os eleitos não têm motivos para trabalhar; ora
eles foram escolhidos para o bom trabalho. Pois os dons de Deus,
que são as virtudes, não podem permanecer ociosos, como a Ver-
dade diz: “Porque ao que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância;
mas ao que não tem, tirar-se-lhe-á até o que julga ter”121.

Consequentemente, Deus não dá a continência para per-


mitir que um homem não lute contra aos seus desejos desorde-
nados. Ele não dá a sabedoria e o entendimento para dispensar
um homem de meditar nas Leis do Senhor, dia e noite. Em que
o dom da caridade poderia afetar um homem, se este nunca fosse
animado pelo desejo de ajudar os outros? Qual poderia ser o fruto
da paciência, se não houver força quando se sofre? Ou como um
homem dará prova de que a vida que vive é realmente dedicada a
Cristo, se ele não sofrer perseguição? Ou como a paz que um ho-
mem desfruta de Deus e com Deus dará o tipo certo de silêncio, se
não estiver em oposição ao mundo?122 Acaso poderá um homem

120. Ef 2,8ss.
121. Mt 25,29.
122. Lit.: ‘...se não estiver com o coração separado do mundo’ (N. do T.).

174
São Próspero de Aquitânia

ter a amizade de Deus sem a inimizade do diabo? A graça de Deus


não poupa a ninguém da tentação.

O soldado cristão está equipado com armas celestiais, tanto


ofensivas quanto defensivas123, e não as receberia se não precisasse
lutar contra nenhum inimigo; porque traz maior glória e felicida-
de o erguer-se vitorioso de uma dura batalha do que o permanecer
intocado por causa da indolência.

CAPÍTULO XXXVI
A eleição não dispensa a aplicação da oração;
pelo contrário, esta alcança a sua realização
pela oração e pelas boas obras.

64. Que o desígnio da divina eleição não dispensa a aten-


ção à oração, provarei com a evidência de um texto, omitindo to-
dos os outros por uma questão de brevidade. No Livro de Tobias,
São Rafael Arcanjo diz a Tobias, o filho:

Então o anjo Rafael lhe disse: ‘Ouve-me, que eu te mostrarei


quais são aqueles sobre quem o demônio tem poder. São os que
se casam com tais disposições que lançam a Deus fora do seu
coração e do seu espírito, e se entregam à sua paixão, como o
cavalo macho, que não têm entendimento: é sobre estes que o
demônio tem poder. Porém tu, quando a tiveres recebido, ten-
do entrado na câmara, viverás com ela em continência durante

123. Lit.: ‘...está instruído tanto à direita quanto à esquerda’. O santo


autor está a se referir à espada que ataca (segurada pela mão direita) e
ao escudo que defende (pela mão esquerda) (N. do R.).

175
A vocação de todos os povos – Livro II

três dias, e não cuidarás noutra coisa que em fazer oração com
ela. No decurso da primeira noite, queimando o fígado do pei-
xe, terás posto em fuga o demônio. Na segunda noite serás ad-
mitido na sociedade dos santos patriarcas. terceira noite con-
seguirás a bênção, para que de vós nasçam filhos robustos.124

Portanto, embora seja impossível que um decreto de Deus


não se cumpra, Ele não desobriga da prática da oração, nem o
desígnio da eleição faz diminuir o esforço do livre-arbítrio do ho-
mem. Deus predeterminou tudo de tal maneira que deseja que o
mérito do homem cresça através das boas obras, através da perse-
verança na oração, através da prática das virtudes. Ele quer coroar
as boas obras dos homens, não apenas de acordo com seu próprio
plano, mas também de acordo com os méritos. E claramente é por
essa razão que Ele esconde a pré-ordenação de sua eleição como
um mistério inacessível ao conhecimento humano.

CAPÍTULO XXXVII
De nenhum homem pode-se dizer, antes de sua
morte, que compartilhará da glória dos eleitos;
por outro lado, não há razão para desespero
pela conversão de qualquer homem caído.

65. De homem nenhum pode ser dado o veredicto antes de


sua morte, se ele participará ou não da glória dos eleitos; antes, um
medo salutar deve fazê-lo perseverar em humildade. “Aquele, pois,

124. Tb 6,16-21.

176
São Próspero de Aquitânia

que crê estar de pé, veja, não caia!”125; se for vencido por alguma
tentação, não se deixe consumir pela tristeza, nem pelo desespero
na misericórdia d’Aquele que “sustém todos os que caem e levanta
a todos os prostrados”126. Enquanto vivermos em nossos corpos,
não devemos deixar de corrigir ninguém, nem nos desesperarmos
pela conversão de alguém.

Que, então, a Santa Igreja se mantenha em oração, que ela


dê graças por aqueles que receberam a fé, que ela suplique pelo
seu progresso e pela sua perseverança. Que ela peça também pelos
infiéis, para que possam crer. E, quando suas orações por alguns
deles não forem ouvidas, que não desista de rezar. Pois Deus, que
quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conheci-
mento da Verdade, a ninguém pode repelir sem uma justa razão.

125. 1Cor 10,12.


126. Sl 145(144),14.

177
Bibliografia:
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São Paulo: Pia Sociedade de São Paulo, 1956.

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MORESCHINI, C. & NORELLI, E. Manual de literatura cris-


tã antiga grega e latina. São Paulo: Santuário, 2005
ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM CASSLON PRO 13 E
TERMINOU DE SER IMPRESSO SOBRE PÓLEN SOFT 70G
AOS 14 DE AGOSTO DO ANO DO SENHOR 2020,
VIGÍLIA DA ASSUNÇÃO DA SANTÍSSIMA VIRGEM

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