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DE TODOS OS POVOS
‘De Vocatione Omnium Gentium’
CAPÍTULO I
A matéria deste livro trata do erro daqueles que sustentam que
pregar a graça significa negar o livre-arbítrio. .......................... 27
CAPÍTULO II
Em toda alma humana, naturalmente há alguma vontade: seja
sensitiva, animal ou espiritual. .................................................. 28
CAPÍTULO III
A vontade sensual. ...................................................................... 29
CAPÍTULO IV
A vontade animal, que nada alcança acima da glória temporal, a
não ser que o dom de Deus nela acrescente uma sabedoria
superior. ...................................................................................... 30
CAPÍTULO V
Todos os gentios receberam, nas coisas criadas, os preceitos da
Lei divina, de modo que sua idolatria é injustificável. ............. 32
CAPÍTULO VI
Quão fraca é a vontade não regida pela vontade imutável. A boa
vontade é obra de Deus. ............................................................. 33
CAPÍTULO VII
Triste condição a do homem, após a queda de Adão; todavia,
quando redimida pela Piedade divina, ainda que não se torne
substancialmente uma nova criatura, a sua substância é renova
da e reparada. ............................................................................. 35
CAPÍTULO VIII
Deus, por sua graça que cura, não tira do homem o livre-arbí-
trio. Mas se Ele não operar em nós, não seremos partícipes da
sua Santidade. ............................................................................. 37
CAPÍTULO IX
Quando as Escrituras falam dos bons ou dos iníquos, dos elei-
tos ou réprobos, mencionam as classes de homens de tal modo
que parece que ninguém é omitido. .......................................... 43
CAPÍTULO X
As Escrituras falam dos eleitos e dos réprobos como ‘um povo’ ;
como se falassem das mesmas pessoas. .................................... 52
CAPÍTULO XI
As Escrituras falam de homens de diferentes tempos como se
fossem da mesma geração. ......................................................... 55
CAPÍTULO XII
Quando o Apóstolo diz ‘... quer que todos os homens sejam
salvos’ , tal afirmação deve ser entendida em todo o seu
significado. ................................................................................. 56
CAPÍTULO XIII
Não podemos entender nesta vida um profundo mistério: por-
que a graça Salvífica de Deus passa por certos homens pelos
quais a Igreja suplica. ................................................................. 59
CAPÍTULO XIV
Na dispensação das obras de Deus, muitas vezes as causas das
coisas são ocultas, e apenas os efeitos são manifestos. ............ 61
CAPÍTULO XV
Não podemos atribuir a salvação dos eleitos e a reprovação dos
ímpios aos seus próprios méritos: “não nos é dado conhecer as
razões de tal diferença”. ............................................................. 64
CAPÍTULO XVI
O Juízo inescrutável de Deus na eleição das crianças. ............. 65
CAPÍTULO XVII
As conversões de ímpios em situações extremas são uma prova
de que a graça é imerecida e de que os juízos de Deus são
inescrutáveis. ............................................................................. 66
CAPÍTULO XVIII
A graça, sem a qual não são possíveis os bons méritos, é dom
imerecido, dado unicamente pela vontade de Deus. .............. 70
CAPÍTULO XIX
O que é a natureza sem a graça. ................................................ 72
CAPÍTULO XX
Nosso Senhor, em sua profunda Misericórdia, deseja salvar to-
das as nações e opera para sua salvação, mas ninguém aceita
sua Palavra. ................................................................................. 73
CAPÍTULO XXI
Não devemos procurar saber por que Deus elege alguns e não
outros, nem por que no passado deixou de lado todos os gentios
e escolheu apenas Israel. ........................................................... 76
CAPÍTULO XXII
Os que veem no mérito a razão pela qual Deus distingue eleitos
e não eleitos dizem que ninguém é salvo gratuitamente, mas
apenas por justiça. O caso dos bebês refuta essa posição. ..... 78
CAPÍTULO XXIII
Todo mérito humano, desde o início da fé até a perseverança
final, é dom divino. ................................................................... 81
CAPÍTULO XXIV
Deus é o Autor de todo bem no homem pela graça. ................. 87
CAPÍTULO XXV
O problema trazido pelo fato de um homem receber a graça e
outro não recebê-la, não podemos resolver. A resposta não está
no seu livre-arbítrio. .................................................................. 100
– LIVRO II –
CAPÍTULO I
Três pontos são certos neste assunto: Deus quer que todos os
homens sejam salvos; o conhecimento da Verdade e a salvação
vêm pela graça; os juízos de Deus são inescrutáveis. .............. 105
CAPÍTULO II
As Escrituras ensinam que Deus deseja que todos os homens
sejam salvos. .............................................................................. 106
CAPÍTULO III
Não podemos saber por que Deus decretou atrasar o chamado
de algumas nações. .................................................................... 109
CAPÍTULO IV
No passado, a bondade de Deus atraiu todos os homens à sua
adoração através das coisas criadas, mas a Israel atraiu de modo
especial, através da Lei e dos Profetas. ..................................... 111
CAPÍTULO V
Os gentios que agradaram a Deus foram destacados por um
espírito gratuito de fé. ............................................................... 114
CAPÍTULO VI
Mesmo nos nossos tempos a graça não é dada a todos os ho
mens na mesma medida. .......................................................... 115
CAPÍTULO VII
A desigualdade dos dons divinos não vem dos méritos das obras
anteriores, mas da liberalidade de Deus. ................................ 116
CAPÍTULO VIII
Todo o que recebe a graça não tem mérito de sua parte. ........ 118
CAPÍTULO IX
Não devemos investigar a causa dos diferentes tempos da graça
[Kairós]. ..................................................................................... 144
CAPÍTULO X
Ao longo dos séculos, a Misericórdia de Deus proveu o alimento
para o corpo e o auxílio para as almas dos homens. ................ 141
CAPÍTULO XI
Os homens recebem, lentamente e pouco a pouco, o que lhes
foi decretado pela liberalidade divina. .................................... 123
CAPÍTULO XII
A liberdade sob a graça. .......................................................... 126
CAPÍTULO XIII
A bondade divina não auxilia somente os santos, mas também
os ímpios, como fez antes do Dilúvio. ...................................... 127
CAPÍTULO XIV
Desde os tempos do Dilúvio até a vinda de Cristo, havia sinais
da graça e figuras dos milagres e Cristo, embora a graça que
agora inunda o mundo ainda não tivesse fluído tão
abundamente. ........................................................................... 129
CAPÍTULO XV
Os homens de agora não nascem com uma natureza superior ao
que era antes de Cristo; em verdade, no tempo do Advento do
Senhor, a iniquidade era maior, para manifestar melhor a
graça de Deus. ........................................................................... 132
CAPÍTULO XVI
Cristo morreu por todos. .......................................................... 137
CAPÍTULO XVII
As nações que ainda não viram a graça de Nosso Salvador serão
chamadas ao Evangelho no tempo designado. ....................... 140
CAPÍTULO XVIII
Nos séculos anteriores, o mistério do Chamado à fé estava
escondido dos gentios, mas não dos profetas. ........................ 141
CAPÍTULO XIX
Em todos os tempos Deus quer salvar todos os homens. ....... 144
CAPÍTULO XX
Objeção do caso de bebês contra o texto ‘quer que todos os
homens sejam salvos’. .............................................................. 145
CAPÍTULO XXI
Deus é justo quando rejeita bebês não batizados, tanto nesta
vida quanto na próxima, por causa do Pecado original. ......... 146
CAPÍTULO XXII
A Justiça Divina mensura, para cada um, o seu próprio
infortúnio. ................................................................................. 149
CAPÍTULO XXIII
Os filhos que morrem infantes recebem a graça geral concedida
aos pais. ..................................................................................... 150
CAPÍTULO XXIV
Não podemos encontrar uma justa razão para queixa quanto
aos diferentes destinos das crianças que, em todos os outros
aspectos, são iguais; antes, há aí uma forte prova da Justiça de
Deus e da graça de Cristo. ........................................................ 153
CAPÍTULO XXV
Com sua graça geral dada a todos, Deus sempre quer que todos
os homens sejam salvos; mas a sua graça especial não é conce-
dida a todos. .............................................................................. 154
CAPÍTULO XXVI
Em toda justificação a graça é o fator principal, enquanto a
vontade humana é secundária, unida à graça, cooperando
com Deus; a graça prepara a vontade do homem para esta
cooperação. ............................................................................... 155
CAPÍTULO XXVII
A graça é a causa do consentimento de nossa vontade, não so-
mente pela Doutrina e pelo esclarecimento, mas também
através do terror e do medo. ..................................................... 157
CAPÍTULO XXVIII
Os homens fiéis que, pela graça de Deus, creem em Cristo,
ainda permanecem livres para deixar de crer; e aqueles que
perseveram ainda podem se afastar de Deus. ......................... 159
CAPÍTULO XXIX
Deus está cumprindo sua Promessa de abençoar a todos os po-
vos todos os dias, para não deixar escusas aos réprobos, nem
dar aos eleitos razão para se gloriarem de sua justiça. ........... 163
CAPÍTULO XXX
Recapitulando o primeiro capítulo deste Livro Segundo. ...... 165
CAPÍTULO XXXI
Em todas as eras, a bondade geral de Deus deu graça a todos
homens, mas em medidas diversas. ........................................ 166
CAPÍTULO XXXII
Entre os fiéis, existem diferentes graus dos dons dados por
Deus, e isso não se deve ao mérito, mas ao Juízo justo e oculto
de Deus. ..................................................................................... 167
CAPÍTULO XXXIII
Nenhum dos eleitos está perdido, mas todos os que foram
escolhidos desde toda a eternidade alcançarão a salvação. ... 168
CAPÍTULO XXXIV
Embora o Desígnio de Deus sobre a salvação dos eleitos seja
imutável, não é inútil trabalhar para adquirir o mérito das boas
obras, e perseverar na oração. ................................................. 172
CAPÍTULO XXXV
Os eleitos recebem a graça não para deixá-los ociosos, ou para
liberá-los dos ataques do Inimigo, mas para capacitá-los a agir
bem e a vencer o Inimigo. ......................................................... 173
CAPÍTULO XXXVI
A eleição não dispensa a aplicação da oração; pelo contrário,
esta alcança a sua realização pela oração e pelas boas obras. . 175
CAPÍTULO XXXVII
De nenhum homem pode-se dizer, antes de sua morte, que
compartilhará da glória dos eleitos; por outro lado, não há razão
para desespero pela conversão de qualquer homem caído. .. 176
18
São Próspero de Aquitânia
Sobre a obra
DE VOCATIONE OMNIUM GENTIUM é o primeiro tra-
tado da literatura cristã antiga sobre o problema da salvação dos
infiéis. Um trabalho que despertou a ira de hereges e gerou con-
trovérsia dentro da Igreja, escrito contra os semipelagianos no ano
450, provavelmente já em Roma.
19
Breve introdução ao Autor e sua obra
20
São Próspero de Aquitânia
21
Breve introdução ao Autor e sua obra
22
São Próspero de Aquitânia
* * *
Lex orandi, lex credendi
Essa importante frase/axioma foi citada e continua aparecendo em
documentos da Igreja5 e em diversas obras católicas devocionais e
teológicas de valor4, usada muitas vezes por autores consagrados,
mas, infelizmente, muitas vezes é equivocadamente atribuída a ou-
tros autores. Pois, de fato, o Pai da Igreja que nos deu este santo e
indefectível axioma foi São Próspero de Aquitânia.
A forma completa é “Legem credendi lex statuat supplicandi”,
ou seja, “A lei da fé é determinada pela lei da oração” (originalmen-
te, Próspero usou o termo equivalente lex supplicandi no lugar de
lex orandi). Pois a oração da Igreja, segundo ensina esse Doutor, é
uma fonte autorizada de Teologia, na medida em que a salvação
vem inteiramente por iniciativa de Deus e, já em sua liturgia, a
Igreja sempre rezou pela conversão de infiéis, judeus, hereges, cis-
máticos e de todos os que não buscam a verdadeira Fé.
23
Observações:
– LIVRO I–
SOBRE A GRAÇA, A PREDESTINAÇÃO
E O LIVRE-ARBÍTRIO.
CAPÍTULO I
A matéria deste livro trata do erro daqueles
que sustentam que pregar a graça
significa negar o livre-arbítrio.
1. Entre os defensores do livre-arbítrio e os que pregam a
graça de Deus, um grande e difícil problema tem sido debatido há
muito tempo. O ponto em questão é se Deus deseja que todos os
homens sejam salvos; e, como isso não pode ser negado, surge ine-
vitavelmente a pergunta: por que, então, a vontade do Todo-Po-
deroso não se realiza? Quando se diz que isso acontece por causa
da vontade dos homens, parece que está se descartando a graça;
e, se a graça é uma recompensa pelo mérito, claramente não é um
dom gratuito, mas algo devido aos homens. E, novamente, surge
a pergunta: por que esse dom, sem o qual ninguém pode alcançar
a salvação, não é conferido a todos, por Aquele que a todos quer
salvar? Em consequência, não haverá fim para as discussões em
nenhum dos campos sem a distinção entre o que pode ser conhe-
cido e aquilo que permanece oculto.
CAPÍTULO II
Em toda alma humana, naturalmente há alguma
vontade: seja sensitiva, animal ou espiritual.
3. Em toda alma humana, tanto quanto a podemos conhe-
cer, pelo intelecto ou pela experiência, há uma vontade que se ma-
nifesta de um modo ou de outro: ou deseja aquilo que lhe apetece,
ou se afasta do que lhe desagrada. Sobre esta vontade, seus movi-
mentos naturais, viciados pela enfermidade do Pecado Original,
são de dois gêneros, segundo o que, a vontade do homem é ou
sensitiva ou animal. Mas, quando a graça de Deus está presente,
um terceiro tipo é acrescentado por dom do Espírito. A vontade
então se torna espiritual e, graças a esse impulso mais elevado, rege
todos os seus afetos, de onde quer que possam surgir, segundo a lei
de uma razão justíssima.
28
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO III
A vontade sensual.
4. A vontade sensual1, a qual também podemos chamar de
carnal, não se eleva acima do impulso que nasce dos sentidos cor-
porais, como se dá no caso dos bebês; embora estes não tenham o
uso da razão, eles mostram que desejam algumas coisas e que não
querem outras. Quando veem, ouvem, cheiram, provam ou tocam,
amam aquilo que lhes deleita e odeiam o que os machuca. Agora,
o que mais é o amor, a não ser o querer? Ou o que mais é o ódio,
senão a aversão?
29
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO IV
A vontade animal – que nada alcança acima da
glória temporal, a não ser que um dom de Deus
nela acrescente uma sabedoria superior.
5. A partir desse apetite sensível –, que é a única encontra-
da nos adultos [mentalmente] insanos e que continuam desprovi-
dos do uso da razão –, o homem eleva-se ao nível da vontade ani-
mal2. Embora nesse estágio a vontade possa, antes de ser guiada
pelo Espírito de Deus, elevar-se acima dos seus impulsos sensuais,
mesmo assim, se não possuir a divina caridade, vai ocupar-se de
coisas terrenas e perecíveis. Quando dominados por esse tipo de
apetite, é verdade que os corações humanos já não sofrem a ver-
gonhosa escravidão dos deleites corporais, e governam melhor os
seus desejos de acordo com as leis da justiça e da probidade. Não
merecem, porém, recompensa maior do que a glória terrena; pois,
30
São Próspero de Aquitânia
3. Cf. Rom 1, 20 ss
31
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO V
Todos os gentios receberam, nas coisas criadas,
os preceitos da Lei divina, de modo
que sua idolatria é injustificável
4. Cf. Dt 32,8.
5. Ou ‘os gentios’. No Antigo Testamento, o Povo de Israel foi eleito
como o ‘Povo de Deus’. Os gentios, nesse contexto são ‘alter’; são os
outros povos, os povos não eleitos – por razões ocultas e inexcrutáveis:
um tema complexo sobre o qual o autor vai se debruçar como um dos
problemas centrais desta obra.
6. Cf. Lv 20,26.
7. Est 10,3f-3g. (10,9-10).
32
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO VI
Quão fraca é a vontade não regida pela vontade
imutável. A boa vontade é obra de Deus.
7. Até aquela gente que o Senhor, dentre todas as gentes,
havia separado para Ele, teria caído completamente na maldade,
não tivesse o desígnio da sua misericórdia tomado o cuidado de
sustentar os eleitos, que continuamente tropeçavam. As páginas
do Antigo Testamento estão repletas de histórias das deserções dos
israelitas, as quais demonstram com clareza que sempre foi devido
apenas à graça divina que nem todas aquelas pessoas se afastaram
do Senhor.
8. At 14,15-16.
33
A vocação de todos os povos – Livro I
34
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO VII
Triste condição a do homem, após a queda
de Adão; todavia, quando redimida pela
Piedade divina, ainda que não se torne
substancialmente uma nova criatura, a
sua substância é renovada e reparada.
10. Parece ser este o lugar, neste tratado, para colocar a per-
gunta: quando um homem tem a sua vontade convertida para uma
35
A vocação de todos os povos – Livro I
36
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO VIII
Deus, por sua graça que cura, não tira do homem
o livre-arbítrio. Mas se Ele não operar em nós,
não seremos partícipes da sua Santidade.
11. Em Adão, nossa natureza existia sem vício, mas, por sua
desobediência voluntária, sobrevieram-lhe muitos males, os quais
foram transmitidos à sua posteridade, na qual ainda se multipli-
caram, e cada vez mais. A vitória sobre esses males e a sua total
erradicação só é possível pela graça do Salvador, que restaura a sua
própria obra com o seu trabalho mesmo. Pois, como diz São João
Apóstolo, “para destruir as obras do demônio é que o Filho de Deus
se manifestou” (1Jo 3,8): é Ele que rompe as correntes do prisio-
neiro, veste a nudez do espoliado, cura as feridas dos enfermos;
mas, em tudo isso, o homem também participa. Mas o homem
não pode enfrentar esse inimigo de fato sem um protetor; ele tem
que lutar contra quem já o derrotou, e, portanto, não deve confiar
em suas próprias forças, as quais, mesmo quando estavam intactas,
não foram suficientes para sustentá-lo. Busque então a vitória por
Aquele que sozinho é invencível, e que trouxe vitória a todos. E
se o homem busca a vitória, não deve duvidar de ter recebido esse
37
A vocação de todos os povos – Livro I
12. Sem essa Bondade, nada é bom; sem essa Luz, nada é
lúcido; sem essa Sabedoria ninguém é são13; sem essa justiça, nada
é reto. “Eu Sou, Eu Sou o Senhor, e fora de Mim não há nenhum
Salvador”14, disse Deus por Isaías; e falou Jeremias: “Eu sei, Senhor,
que o caminho do homem não está no seu poder, que o homem que
caminha não pode dirigir os seus [próprios] passos”15.
38
São Próspero de Aquitânia
não pode sequer fomentar qualquer desejo, desde que não tenha
recebido de Deus o ardor desse desejo, sobre o qual Nosso Se-
nhor diz: “Eu vim trazer fogo à Terra; e que quero Eu, senão que
ele se acenda?” (Lc 12,49). Esse fogo é o Amor de Deus, que um
amante do mundo não pode conceber em seu coração escraviza-
do: esse está cheio de amor pelas coisas vãs, e mesmo se pudesse
escapar destas até certo ponto, e, elevando-se acima do tempo e
dos bens visíveis alcançar, através de seu próprio entendimento, os
bens eternos e invisíveis, mesmo que ele pudesse renunciar à ado-
ração de ídolos e desistir da adoração do céu e da terra e de todas
as criaturas deste mundo, mesmo assim ele não seria capaz de con-
ceber a fé e o amor de Cristo, porque ele ficaria conturbado, sem
entender tal humildade. Ele não superaria o escândalo com a visão
da Natividade e da Morte de Nosso Senhor. Pois a sabedoria do
mundo resiste à Sabedoria de Deus, bem como cega o orgulho dos
presunçosos. Agrada a Deus que, pela loucura de nossa pregação,
sejam salvos os que creem16. Portanto, aqueles que são arrogantes
em sua sabedoria mundana pensam que a Cruz de Cristo é coisa
para se rir, e não para adorar; e, quanto mais alto o homem se eleva
às realizações das ciências humanas, mais despreza a humildade e
a fraqueza de nossa pregação17.
39
A vocação de todos os povos – Livro I
40
São Próspero de Aquitânia
41
A vocação de todos os povos – Livro I
42
São Próspero de Aquitânia
“Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as
vossas hoas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus”25.
CAPÍTULO IX
Quando as Escrituras falam dos bons ou dos
iníquos, dos eleitos ou réprobos, mencionam
as classes de homens de tal modo que
parece que ninguém é omitido.
16. É do nosso interesse, portanto, sustentar que todas as
coisas boas, especialmente aquelas que conduzem à vida eterna,
são obtidas através do favor de Deus, e que são aumentadas pelo
favor de Deus e são preservadas [mantidas] pelo favor de Deus.
Com essa fé firmemente fixada e enraizada em nossos corações, eu
penso que nosso senso religioso não deve ser perturbado pelo pro-
blema da conversão total ou parcial dos homens em geral. Essa é
uma condição que devemos manter, de não permitirmos que o que
é oculto ao nosso conhecimento torne obscuro o que sabemos cla-
ramente; e que, insistindo em saber o que não podemos, percamos
de vista aquilo que somos capazes de conhecer; já que isso deveria
ser suficiente para vivermos com o conhecimento que adquirimos.
25. Mt 5,16.
43
A vocação de todos os povos – Livro I
tais causas, que não estariam ocultas se fosse necessário para nós
conhecê-las. Aqui, nossa fé deve ser testada nas coisas que não po-
dem ser vistas; e devemos sempre perseverar em nossa devoção pela
Justiça de Deus, mesmo quando não entendemos o seu sentido.]26
44
São Próspero de Aquitânia
30. Mt 7,21ss.
31. Rm 8,15.
32. 1Cor 12,3.
33. Rm 8,14.
45
A vocação de todos os povos – Livro I
E novamente:
Eis que vou realizar uma obra nova (e mais maravilhosa), e ela
vai já aparecer: não a conhecereis? Abrirei no deserto um ca-
minho, e farei brotar rios numa terra inacessível, Os animais
selvagens, os chacais e os avestruzes me glorificarão, porque fiz
brotar águas no deserto, rios numa terra inacessível, para dar de
beber ao meu povo, o meu escolhido. Eu formei este povo para
Mim, ele publicará o meu louvor.36
34. Jr 31,31-34.
35. Jr 32,39-41.
36. Is 43,19-21.
37. Is 45,23s.
46
São Próspero de Aquitânia
18. Se, então, não é possível que essas coisas não ocorram,
porque a presciência de Deus não vacila e seu desígnio não é mu-
tável, nem ineficaz é a sua vontade, nem a sua Promessa é falsa,
então todos, sem exceção, sobre quem essas previsões foram feitas,
serão salvos. Ele estabelece suas leis em seus sentidos e as escreve
com seu dedo em seus corações, para que reconheçam a Deus
não através da sabedoria humana, mas através do ensino do Sumo
Mestre; pois “não é nada nem aquele que planta, nem o que rega,
mas Deus, que dá o crescimento” 38.
47
A vocação de todos os povos – Livro I
48
São Próspero de Aquitânia
20. Se, então, disséssemos que o que Deus jurou não acon-
tecerá, estaríamos atribuindo falsidade a Deus e chamaríamos de
mentira a verdade! Nossa fé nos leva a dizer que as Palavras de Deus
não falham, que o que Ele decretou deve acontecer. Como, então,
devemos nos convencer da veracidade absoluta de sua Promessa,
quando muitos milhares de homens ainda servem a demônios e
se ajoelham diante de ídolos? Somente lembrando-nos disso: es-
ses pronunciamentos de Deus são feitos segundo o conhecimento
imutável com o qual Ele vê todos os homens, já separados [em elei-
tos e réprobos]. Quer Ele fale apenas do bom ou apenas do iníquo,
Ele o faz de tal maneira que não omite ninguém.
46. Is 45,23s.
47. 2Cor 5,17.
48. Cl 1,19s.
49
A vocação de todos os povos – Livro I
tudo, por Quem criou o mundo” 49, essa declaração, como está, não
poderia significar qualquer outra coisa senão que todos os homens
foram transferidos pelo Pai para a herança de Cristo, conforme a
profecia de Davi, que disse: “Pede-me, e eu te darei as nações em
herança, e em teu domínio os confins da Terra” 50. E em outro lugar
diz o Senhor: “Quando Eu for elevado da terra, atrairei todos os
homens a Mim”51, não parece que Ele prometeu a conversão de
cada um? Ou quando uma profecia sobre a Igreja diz: “Todo o vale
seja alteado, toda a montanha e toda a colina sejam rebaixadas, to-
dos os cumes arrasados, todos os terrenos escabrosos aplanados”52,
alguém não poderia pensar que todo homem é nivelado, que todo
e qualquer homem será sujeitado [convertido] a Cristo? E o que
dizer deste texto: “Eu virei para reunir todas as gentes e línguas;
todos virão e verão minha glória” 53; ou este: “Derramarei o meu
Espírito sobre toda a carne”54; e este: “O Senhor sustém todos os
que caem, levanta a todos os prostrados” 55; não soa como se nin-
guém fosse excluído do favor de Deus?
49. Hb 1,2.
50. Sl 2,8.
51. Jo 12,32.
52. Is 40,4.
53. Is 66,18.
54. Jl 2,28.
55. Sl 145(44),14.
50
São Próspero de Aquitânia
51
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO X
As Escrituras falam às vezes dos eleitos e
dos réprobos como ‘um povo’; como se
falassem das mesmas pessoas.
23. De acordo com a mesma regra, as Sagradas Escrituras
fazem uma Promessa por meio de Isaías:
60. Is 42,16.
61. Is 42,17: ‘Voltarão para trás, serão cobertos de confusão’, etc.
52
São Próspero de Aquitânia
62. Is 43,6s.
63 Is 43,8
64. Rm. 11,1s.
53
A vocação de todos os povos – Livro I
Portanto, nem todo o Israel foi rejeitado, e nem todo foi es-
colhido. Em vez disso, uma cegueira voluntária desviou uma par-
te, enquanto a luz da graça manteve outra parte como sua. E, no
entanto, eles são mencionados [em diversas partes das Escrituras]
como se nenhuma divisão tivesse sido feita entre todo o povo, entre
os que perecem e os que são salvos. Pois quando lemos: “...segundo
ao Evangelho, eles agora são inimigos (de Deus) por causa de vós;
mas, segundo a eleição divina, eles são muito queridos por causa de
seus pais”66, parece que ele chamou de “queridos” aqueles mesmos
a quem chamou de “inimigos”. Mas o próprio Apóstolo dissipou
essa obscuridade, acrescentando que “uma parte de Israel caiu na
cegueira” 67. Temos que entender que, aí, um só gênero é dividido
em duas espécies, e logo expressões como “todos os homens”, “toda
a plenitude” e “todo o Israel” nem sempre precisam designar uma
totalidade, mas, às vezes, apenas uma parte.
65. Rm 11,2-6.
66 Rm 11,28.
67. Rm 11,25.
54
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XI
As Escrituras falam de homens de diferentes
tempos como se fossem da mesma geração.
25. Entre essas várias maneiras de falar que podem ser
encontradas nas Escrituras, ainda há outra para a qual devemos
voltar a nossa atenção: [às vezes] o que se refere a homens de
diferentes tempos é apresentado como se fosse aplicado a apenas
uma geração, a homens nascidos em uma mesma época.
55
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO XII
Quando o Apóstolo diz ‘Deus quer que todos
os homens sejam salvos’, tal afirmação deve
ser entendida em todo o seu significado.
26. Quando os devotos de discussões caluniosas leem ou
ouvem a passagem [de 1Tm 2,3s.] que diz: “Em verdade, isto é
bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual quer que
todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da Ver-
dade”, objetam que nossos argumentos a contradizem; mas, em
verdade, não pretendemos tirar nada do contexto em que ensina
o Apóstolo. Aceitamos esta breve frase na totalidade do que a
precede e do que a ela se segue. Deixemos, pois, de lado todos os
outros testemunhos dos Escritos inspirados: esta única passagem
servirá para refutar as objeções caluniosas e defender aquilo que
com impiedade renegam.
56
São Próspero de Aquitânia
57
A vocação de todos os povos – Livro I
58
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XIII
Não podemos entender nesta vida um profundo
mistério: porque a graça salvífica de Deus passa
por certos homens pelos quais a Igreja suplica.
30. De fato, vemos que a graça salvífica passa por alguns
homens, e que as orações da Igreja em seu favor não são ouvidas.
Isso deve ser atribuído aos julgamentos ocultos da Justiça divi-
na. Devemos reconhecer que não somos capazes de entender esse
profundo mistério nesta vida. Com efeito, “imperfeitamente co-
nhecemos e imperfeitamente profetizamos. (...) Nós agora vemos
como por um espelho, obscuramente”71. Ora não somos nem mais
sábios nem mais bem informados do que o beatíssimo Apóstolo.
Quando ele entra no segredo desses grandes mistérios para ex-
plicar o poder da graça, encontra-se dominado por coisas que são
inenarráveis. Ele diz:
Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério, para que não
vos vanglorieis da vossa sabedoria; uma parte de Israel caiu
na cegueira até que tenha entrado a plenitude dos gentios. E
assim todo o Israel se salvará, como está escrito: ‘Virá de Sião
o Libertador, e afastará de Jacó a impiedade. Terão de Mim
esta Aliança, quando Eu tirar os seus pecados’. É verdade que,
quanto ao Evangelho, eles agora são inimigos (de Deus) por
causa de vós; mas, quanto à eleição divina, eles são muito que-
ridos por causa de seus pais. Com efeito, os dons e a vocação
[o chamado] de Deus são sem arrependimento. Assim como
também vós outrora desobedecestes a Deus e agora alcanças-
tes misericórdia pela desobediência deles, assim também eles
agora não obedecem, a fim de que, pela misericórdia que vos
59
A vocação de todos os povos – Livro I
72. Rm 11,25-32.
73. Rm 11,33-36.
60
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XIV
Na dispensação das obras de Deus, muitas
vezes as causas das coisas são ocultas, e
apenas os efeitos são manifestos.
31. Na dispensação das obras divinas, muitas vezes as cau-
sas das coisas permanecem ocultas a nós; apenas os efeitos é que
podemos ver. Vemos que algo é gerido, mas não como é gerado.
O evento em si é claro, sua razão é mantida oculta. Assim, sobre
61
A vocação de todos os povos – Livro I
62
São Próspero de Aquitânia
cego? Não Sou Eu [que faço todas estas coisas]?”74. E por meio de
Isaías: “‘Para que não desse à luz, abriria Eu o seio materno?’ , diz
o Senhor: ‘Eu, que dou a fecundidade, o fecharia?’” 75. O Livro do
Eclesiástico diz: “Os bens e os males, a vida e a morte, a pobreza
e as riquezas, tudo isto vem de Dens”76. E Jó diz: “As casas dos
ladrões estão na abundância, seguros estão os que atrevidamente
provocam a Deus e que não têm outro deus senão a sua mão”77;
enquanto que foi Deus mesmo que entregou tudo em suas mãos.
O mesmo Livro, tratando sobre o crescimento e o declínio de
todas as coisas humanas, e atribuindo todas essas mudanças aos
desígnios divinos, diz novamente:
74. Ex 4,11.
75. Is 66,9.
76. Eclo 11,14.
77 Jó 12,6.
63
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO XV
Não podemos atribuir a salvação dos eleitos e a
reprovação dos ímpios aos seus próprios
méritos: não nos é dado conhecer
as razões de tal diferença”.
32. Uma parte dos homens alcança a salvação. Outra parte
perece. Se atribuíssemos tal fato aos méritos individuais e dissés-
semos que a graça deixa de lado os ímpios e escolhe os bons, sería-
mos confrontados com o caso de incontáveis povos os quais, por
tantas eras, não conheceram [com o coração] nenhum anúncio da
doutrina celeste. E não devemos também dizer que a posteridade
desses homens era melhor que eles próprios, pois está escrito deles
mesmos: “O povo que andava nas e trevas viu uma grande Luz;
aos que habitavam na região da sombra da morte uma Luz apare-
ceu”80. E é a estes que Pedro Apóstolo diz:
78. Jó 12,13-25.
79. Jó 23,13.
80. Is 9,2.
64
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XVI
O juízo inescrutável de Deus
na eleição das crianças.
33. Consideremos também o caso de toda a multidão das
crianças. Em nenhuma delas pode-se encontrar transgressão ou
méritos, nem nas do passado nem nas futuro, apenas o Pecado
em que todo o gênero humano nasce para a condenação. Falamos
81. Pd 2,9.
65
A vocação de todos os povos – Livro I
agora das crianças antes do uso da razão e antes que possam fa-
zer uso do livre-arbítrio da vontade. Algumas são regeneradas à
eterna Bem-aventurança; outras não renascem e vão para a misé-
ria sem fim. Se considerarmos o Pecado original, sim, elas o têm,
mas todos são igualmente culpados. Se considerarmos a inocência
moral, concordaremos que nenhuma dessas crianças possui vício.
Nosso senso humano de justiça não vê motivo para eleição, mas
a inefável graça de Deus encontra razões para tal que são inex-
primíveis. Seu desígnio está escondido, mas seu dom é manifesto.
É a piedade82 que inspira ao trabalho. Seu poder oculta de nós
suas razões; mas, tanto o que vemos quanto o que não vemos é
igualmente indubitável. Sendo Ele o Autor de tudo quanto vemos
acontecer, não podemos negar nosso louvor à sua Justiça, ainda
que isso ultrapasse o nosso entendimento.
CAPÍTULO XVII
As conversões de ímpios em situações extremas
configuram uma prova de que a graça é
imerecida, bem como de que os Juízos de
Deus são inescrutáveis.
34. Agora dirijamos nossa atenção aos casos de pecadores
que, após uma longa vida de vergonha e de crimes, recebem nova
vida no sacramento do batismo de Cristo, pouco antes de parti-
rem deste mundo. Sem boas obras que os favoreçam, eles são ad-
mitidos na Comunhão do Reino dos Céus. Como entender esse
66
São Próspero de Aquitânia
67
A vocação de todos os povos – Livro I
68
São Próspero de Aquitânia
85. Mt 20,13ss.
86. Rm 9,20.
69
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO XVIII
A graça, sem a qual não são possíveis os
bons méritos, é dom imerecido, dado
unicamente pela vontade de Deus.
38. A vontade de Deus é, portanto, a única razão pela qual
a graça é concedida a qualquer homem, qualquer que seja sua na-
ção ou raça, seu estado ou idade. Nessa vontade está escondida a
razão da sua eleição. O mérito começa com a graça, a qual, por si
só, qualquer homem recebeu imerecidamente. Se o mérito pos-
suísse bondade sem a graça, não teria sido dito: “Em verdade, em
verdade te digo que quem não renascer da água e do Espírito San-
to, não pode entrar no Reino de Deus”87; e ainda: “Se não comer-
des da Carne do Filho do homem, e não beberdes do seu Sangue,
não tereis a vida em vós.”88. Mas sim: quem não for justo e bom
não pode alcançar a felicidade eterna. Não haveria necessidade
de nascer de novo “da água e do Espírito”, se fosse suficiente o
conhecimento que se adquire pelos estudos. Nossa fé, pela qual
cremos que no batismo todos os pecados são perdoados, seria va-
zia se fosse ensinado que a graça não é concedida aos maus e aos
ímpios, mas somente aos bons e retos.
87. Jo 3,5.
88. Jo 6,54.
70
São Próspero de Aquitânia
89. Ef 2,1ss.
90 Cl 1,2s.
71
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO XIX
O que é a natureza sem a graça
40. Para explicar em poucas palavras o que é a natureza
humana sem a graça, deixemos que São Judas Apóstolo nos diga o
que produz a ignorância dos incultos e o aprendizado dos sábios:
“Estes, porém”, diz ele, “blasfemam de todas as coisas que ignoram,
e perdem-se como animais sem razão, em todas aquelas coisas que
conhecem naturalmente”92. Deixemos também que São Lucas
Evangelista nos diga, nas palavras de Zacarias, que negra noite
envolvia a gênero humano antes de a luz da graça brilhar sobre ela,
antes de o povo de Deus ser libertado das trevas da ignorância:
91. 2,3-7.
92. Jd 10.
93. Lc 1,76-79.
72
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XX
Nosso Senhor, em sua profunda Misericórdia,
deseja salvar todas as nações e opera para sua
salvação, mas ninguém aceita sua Palavra.
41. Nessa sua profunda Misericórdia, o Senhor quer não
apenas redimir um só povo, mas salvar a todas as nações, como
diz o Evangelista: “Jesus devia morrer pelas gentes, e não somente
pelas gentes mas também para unir em um só Corpo os filhos
de Deus dispersos”94. Eis o significado da grande proclamação de
Nosso Senhor, a qual, como trombeta, ressoa por sua bondade em
todo o mundo, a convidar e convocar a todos os homens. Pois diz
Ele mesmo:
94. Jo 11,51s.
95. Mt 11,25-30.
73
A vocação de todos os povos – Livro I
96. Jo 3,31ss.
97. Jo 1,10.
98. Jo 1,5.
99. Aqui temos uma referência do V século à catolicidade (universali-
dade) da Igreja (ἐκκλησία [Ekklesía] = congregação) (N. do R.).
100. Ou ‘comunica a boa nova’: aparentemente este trecho faz referên-
cia a ‘Evangelho’, que significa ‘notícia’: a ‘boa nova’ anunciada pelos
cristãos e que muitos ouvem, mas à qual nem todos aderem, porque
não o receberam (apenas ouviram), como diz o Senhor: ‘Porque a vós é
concedido conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não lhes
é concedido. Porque ao que tem lhe será dado, e terá em abundância, mas
ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo em pará-
bolas, porque vendo não veem, e ouvindo não ouvem nem entendem. E
74
São Próspero de Aquitânia
75
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO XXI
Não devemos procurar saber por que Deus
elege alguns e não outros, nem por que no
passado deixou de lado todos os gentios
e escolheu apenas Israel.
43. Pode-se perguntar o porquê de o Salvador de todos os
homens não ter concedido o entendimento que permite conhecer o
Deus verdadeiro e permanecer assim, no verdadeiro Filho de Deus.
Embora acreditemos que a ajuda da graça nunca tenha sido total-
mente negada a ninguém (trataremos disso mais detalhadamente
a seguir), ainda assim a resposta para a pergunta permanece velada,
do mesmo modo como está oculta de nós a razão pela qual Deus
anteriormente deixou de lado todos os gentios e tomou apenas um
povo para Si, a fim de elevá-lo ao conhecimento da Verdade. Se
não devemos reclamar deste Juízo de Deus, muito menos podemos
murmurar contra o seu modo de governar a eleição dos gentios.
Não devemos querer examinar aquilo que a Deus aprouve ocultar,
mas não podemos desconsiderar o que Ele manifestou; caso con-
trário, podemos ser ilicitamente curiosos sobre o primeiro caso e
merecer a culpa por não recebermos o segundo com gratidão.
44. Não ignoramos nós que algumas pessoas são tão de-
sarrazoadas em sua presunção – e tão arrogantes em seu orgulho
– que ousam profanar, com o seu pretenso aprendizado, aquilo que
76
São Próspero de Aquitânia
103. Rm 11,32.
104. A palavra ‘fim’ (do mundo), usada aqui, parece ter sentido de ‘fina-
lidade’, ‘causa final’, mais do que de término (N. do R.).
77
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO XXII
Os que veem no mérito a razão pela qual Deus
distingue os eleitos dos não eleitos dizem que
ninguém é salvo gratuitamente, mas apenas por
justiça. O caso dos bebês refuta essa posição.
45. Aqueles homens que se envergonham de reconhecer a
própria ignorância em qualquer assunto e que, quando confronta-
dos com uma pergunta obscura, lançam mão de suas armadilhas de
engano, veem no mérito humano a razão pela qual Deus discerne
quem Ele elege dos muitos a quem Ele não elegeu – porque “mui-
tos são os chamados e poucos os escolhidos”105. Por conseguinte,
ensinam estes que ninguém é salvo gratuitamente, mas apenas por
[justa] retribuição, porque todos os homens são capazes, por vias
naturais, de serem partícipes Verdade, se assim o desejarem, e a
graça é dada livremente a todos os que pedem por ela.
105. Mt 20,16.
106. Boa vontade: a vontade ordenada, reta. Supõe a vontade de se fa-
zer o bem, mas é paradoxalmente uma expressão mais ampla. Tomando
como exemplo um glutão, este pode ter a vontade para fazer o bem (já
que o prazer do gosto é um bem), mas não possui uma vontade boa/boa
vontade (N. do R.).
107. Causada, por suposto, pelo Pecado original (N. do R.).
78
São Próspero de Aquitânia
108. Aqui somos postos diante de um dos temas mais difíceis da Teolo-
gia e que na época de São Próspero, como ainda hoje, não fora definido
infalivelmente. As crianças que recebem a graça (pelo batismo) nada
fazem para merecê-la, e as que não a recebem, nada para desmerecê-la,
pois ninguém a merece. De algum modo por nós desconhecido Deus
pode salvar as crianças não batizadas (nascidas no Pecado, mas incul-
páveis quanto à vontade)? A Igreja admite que sim (vide ‘A esprerança
da salvação para as crianças que morrem sem batismo’, pela Comissão
Teológica Internacional/Congregação para a Doutrina da fé, aut. por
Bento XVI em 2007). Poderia Deus, ao contrário, condená-las, por mo-
tivos justos que só Ele conhece? Sim, também. Pode ainda colocá-las
pela eternidade em uma situação ‘intermediária’ entre o sofrimento do
Inferno e a felicidade perfeita do Céu (o Limbo)? Sim, e esta foi a po-
sição mais aceita por um longo tempo. Nada disso, porém, é dogmá-
tico, sendo apenas uma coisa certa e certíssima: todos os que morrem
sem o batismo, se puderem ser salvos, o serão pelos Méritos de Cristo,
integrando o Corpo de Cristo por algum meio que só Deus conhece.
Em resumo, a posição de São Próspero parece ser esta: Deus salva ou
condena, por meios conhecidos e desconhecidos. Os conhecidos são os
sacramentos e a santidade; sobre os desconhecidos, não podemos fazer
mais do que conjecturar, e não nos é lícito pretender julgar os Juízos
inescrutáveis de Deus. Sabemos que Deus quer que todos os homens se
salvem e cheguem ao conhecimento da Verdade, mas devemos suplicar
incessantemente e trabalhar pela conversão do mundo (N. do T./R.).
109. Jó 12,10.
110. Jó 14,5,
79
A vocação de todos os povos – Livro I
80
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXIII
Todo mérito humano, desde o início da fé
até a perseverança final, é dom divino.
47. A rica variedade e a grandeza da graça divina demons-
tram que as teorias desses homens são falsas, mesmo quando falam
da vontade dos adultos: a evidência da Palavra Divina refuta a sua
opinião. Se quiséssemos citar todos esses textos, esta nossa disserta-
ção nunca terminaria. No entanto, mencionaremos alguns que vêm
à mente. Nosso propósito é mostrar, na medida do necessário, que o
mérito de um homem, desde o início da fé até a perseverança final,
é dom e obra de Deus.
113. Ef 1,15-18.
81
A vocação de todos os povos – Livro I
graça e paz vos sejam dadas. Damos sempre graças a Deus por
todos vós, fazendo continuamente memória de vós nas nossas
orações, lembrando-nos, diante de Deus, nosso Pai, da obra da
vossa fé, do trabalho da vossa caridade e da constância da vossa
esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo.115
E mais adiante:
114. Cl 1,3-11.
115. 1Ts 1,2s.
82
São Próspero de Aquitânia
Por isso, também damos sem cessar graças a Deus, porque, ten-
do vós recebido a Palavra de Deus, que ouvistes de nós, a abra-
çastes, não como palavra dos homens, mas, segundo é, na ver-
dade, como Palavra de Deus, que opera em vós, que crestes.116
Nós devemos, irmãos, dar sempre graças a Deus por vós, como
é justo, porque a vossa fé vai em grande aumento e abunda em
cada um de vós a caridade mútua. Também nós mesmos nos
gloriamos de vós nas igrejas de Deus, pela vossa paciência e
fé, no meio de todas as perseguições e tribulações que sofreis.
Elas são prova do justo juízo de Deus, para que sejais tidos por
dignos do Reino de Deus, pelo qual padeceis.117
83
A vocação de todos os povos – Livro I
84
São Próspero de Aquitânia
Digo, pois, pela graça que me foi dada, a todos os que estão
entre vós, que ninguém tenha de si uma estima maior do que a
que deve ter, mas sentimentos modestos, segundo a medida da
fé, distribuída por Deus a cada um124.
122. At 16,13s.
123. Mt 16,16s.
124. Rm 12,3s.
85
A vocação de todos os povos – Livro I
125. Rm 5,5s.
126. Rm 5,13.
127. Ef 2,4-10.
86
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXIV
Deus é o Autor de todo bem no homem pela graça.
52. Esse é o testemunho das Escrituras, e nós poderíamos
reunir muitos outros textos que demonstram abundantemente que
a fé que justifica um pecador não pode ser obtida se não for por
dom de Deus, e que não é uma recompensa por méritos anteriores.
128. Sl 37(36),23s.
87
A vocação de todos os povos – Livro I
129. Sl 43,3.
130. Sl. 59(58),10.
131. Pv 2,6.
132. Pv 8,14.
133. Pv 20,24.
134. Pv 21,2.
135. Pv 8,35 (LXX).
88
São Próspero de Aquitânia
136. Pv 19,21.
137. Ecl 5,17s.
138. Ecl 8,17;9,1.
139. Sb 7,15s.
89
A vocação de todos os povos – Livro I
140. Sb 8,21.
141. 1Cor 7,7.
142. Mt 19,10.
143. Eclo 1,22s.
144. Eclo 25,14-15.
145. Is 33,6 (LXX).
90
São Próspero de Aquitânia
91
A vocação de todos os povos – Livro I
150. Br 2,31.
151. 1Cor 12,3-11.
92
São Próspero de Aquitânia
152. Ef 4,4-8.
153. 2Cor 3,4ss.
154. 2Cor 9,8-11.
93
A vocação de todos os povos – Livro I
dons divinos, e que todos precisam suplicar para que Ele as conceda
a todos os que ainda não as receberam:
Por essa causa dobro os joelhos diante do Pai, do qual toda pa-
ternidade nos Céus e na Terra toma o nome, para que, segundo
a riqueza da sua Glória, faça crescer em vós o homem interior,
pelo seu Espírito, e que Cristo habite pela fé os vossos corações,
para que, arraigados e fundados na caridade, possais compreen-
der, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura
e a profundidade (do amor de Cristo para com os homens), e
conhecer também aquele amor de Cristo que excede toda a ciên-
cia, de maneira que fiqueis cheios de toda a plenitude de Deus.
Aquele que é poderoso para fazer todas as coisas mais abundan-
temente do que pedimos ou entendemos, segundo a virtude que
opera em nós, a Esse glória na Igreja e em Jesus Cristo, por todas
as gerações e por todos os séculos. Assim seja.155
155. Ef 3,14-20.
156. Tg 1,16ss.
157. Zc 9,16.
94
São Próspero de Aquitânia
158. Mt 13,10.
159. Jo 3,27.
160. Jo 6,44s.
161. Jo 6,65.
95
A vocação de todos os povos – Livro I
Não tenhais medo dos adversários. Isto para eles é sinal de per-
dição, como, para vós, é de salvação. Tal é a vontade de Deus
(que vos dá coragem). Porque a vós é dada a graça em relação a
Cristo, não só de crer n’Ele, mas também de sofrer por Ele.163
162. Fl 1,6.
163. Fl 1,28s.
164. Fl 2,13.
96
São Próspero de Aquitânia
Mais uma vez, escrevendo aos romanos, ele fala sobre a ca-
ridade de Cristo, pela qual torna invencíveis aqueles a quem ama,
ou seja, os que perseveram até o fim (pois, o que mais é perseverar,
senão não ser vencido pela tentação?):
97
A vocação de todos os povos – Livro I
98
São Próspero de Aquitânia
Todo o que o Pai me dá, virá a Mim; e aquele que vem a Mim,
não o lançarei fora. Porque desci do Céu não para fazer a mi-
nha vontade, mas a vontade d’Aquele que me enviou. Ora a
99
A vocação de todos os povos – Livro I
CAPÍTULO XXV
O problema de um homem receber a graça e
outro não, não podemos resolver. A resposta
não está no livre-arbítrio.
61. Existem muitas outras passagens nas Escrituras ca-
nônicas177 que foram aqui omitidas, intencionalmente, para que
este tratado não se tornasse prolixo. Os textos que citamos não
são poucos, e nem são ambíguos ou desprovidos de importância.
Estes afirmam claramente que tudo o que tem a ver com o mérito
humano para a vida eterna não pode ser iniciado, nem aumentado
e nem tornado perfeito sem a graça de Deus. Pelo contrário, todo
aquele que se orgulha por [usar bem o] livre-arbítrio deve se pros-
trar diante da famosa e irrespondível questão do Apóstolo: “Pois,
quem é que te distingue (entre os outros)? Que tens tu, que não
tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te glorias, como se o não
tiveras recebido?”178.
176. Jo 6,37-40.
177. A canonicidade das Sagradas Escrituras, (ainda havia debates
quanto ao Cânon bíblico à época em que este livro foi escrito), é dada
pela autoridade da Igreja, como disse Santo Agostinho: ‘Eu não creria
no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja Católica’
(apud CIC§119). São Próspero de Aquitânia tem muito claro que valer-
-se da autoridade das Escrituras canônicas é o mesmo que valer-se da
autoridade da Igreja, usando-a contra os hereges, tal qual seu grande
amigo e correspondente Agostinho de Hipona (N. do T./R.).
178. 1Cor 4,7.
100
São Próspero de Aquitânia
179. Lc 19,10.
101
A vocação de todos os povos – Livro I
102
A VOCAÇÃO
DE TODOS OS POVOS
– LIVRO II –
1. Cf. Sl 24,10.
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO II
As Escrituras ensinam que Deus deseja
que todos os homens sejam salvos.
2. Não devemos profanar com a nossa dialética humana os
textos citados nas Escrituras divinas para explicar o que é a graça;
isso seria arrastar tantas declarações claras e concordantes para a
incerteza de uma interpretação enganosa. Do mesmo modo, ne-
nhuma argumentação em contrário deve contaminar aquilo que
encontramos no mesmo corpo das Escrituras sobre a salvação de
todos os homens. Pelo contrário, quanto mais difícil for o seu en-
tendimento, mais louvável será a fé daquele que crê.
106
São Próspero de Aquitânia
3. Mt 27,18ss.
4. Mc 16,15s.
5. Isto engloba o estado social, físico, etc. (N. do R.)
6 Mt 28,20.
107
A vocação de todos os povos – Livro II
7. Mt 10,17-22.
8. Tt 2,11.
9. 1Jo 2,1s.
108
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO III
Não podemos saber por que Deus decretou
atrasar o chamado de algumas nações.
4. Encontramos o sinal de um grande e inefável mistério
no fato de que os mesmos pregadores a quem Nosso Senhor dis-
se: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”,
tenha já mandado: “Não vades (agora) para entre os gentios, nem
entreis nas cidades dos samaritanos; ide antes às ovelhas perdidas
da casa de Israel”10. Pois embora o chamado do Evangelho fosse
dirigido a todos os homens, e o Senhor quisesse que todos fossem
salvos e chegassem ao conhecimento da verdade, todavia Ele ainda
não se havia entregado a Si mesmo como poderosa Expiação, para
que essa ordem viesse. Ele havia decidido de outro modo em seu
julgamento justo e oculto. Portanto, não temos motivos justos para
murmurar, uma vez que aquilo que Deus quis não deveria aconte-
cer de outro modo além daquele que Ele quis.
10. Mt 10,5s.
11. Conf. At 16,6.
12. At 16,7.
109
A vocação de todos os povos – Livro II
13. É digno de nota que este Santo Doutor não condena a investigação
filosófico-teológica, mas condena a presunção do querer ‘saber tudo’
(N. do R.).
110
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO IV
No passado, a bondade de Deus atraiu todos
os homens à sua adoração através das coisas
criadas, mas a Israel atraiu de modo especial,
através da Lei e dos Profetas.
6. Nem mesmo nas eras passadas o mundo teve essa mesma
graça, a qual depois da Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo
espalhou-se por toda parte, e das quais as Escrituras testemunham.
“Teu trovão ribombou no turbilhão, teus relâmpagos iluminaram o
mundo”14.
14. Sl 77(76).
15. Cf. At 14,16.
111
A vocação de todos os povos – Livro II
16. At 17,28.
17. Sl 119(118),155.
18. Sl 119(118),64.
112
São Próspero de Aquitânia
com que alguém pense que a regra da Misericórdia divina foi nega-
da a todos os outros homens. Comparados com o povo eleito, po-
dem parecer náufragos, mas, na verdade, nunca lhes foram negadas
as misericórdias manifestas e ocultas de Deus. Em verdade, lemos
nos Atos dos Apóstolos que Paulo e Barnabé disseram aos licanos:
19. At 15,ss.
113
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO V
Os gentios que agradaram a Deus foram
destacados21 por um espírito gratuito de fé.
9. Dentro do povo de Israel [que foi guiado por esses en-
sinamentos das coisas criadas e pela Lei e os Profetas], ninguém
poderia ser justificado, exceto pela graça, pelo espírito de fé. Quem,
então, duvidaria que todos os homens, em todos os tempos e os
de qualquer nação, que pudessem agradar a Deus, tivessem sido
escolhidos pelo sopro da graça de Deus?
114
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO VI
Mesmo nos nossos tempos, a graça não é dada
a todos os homens na mesma medida.
10. Mesmo em nossos dias, quando rios de dons inefáveis
inundam o mundo inteiro, a graça não é concedida a todos os ho-
mens na mesma medida e com igual intensidade. Embora os mi-
nistros da palavra e da graça de Deus pregem a mesma verdade a
todos, e a todos dirijam às mesmas exortações, ainda assim é Deus
Quem cultiva e edifica; é o seu poder que age de maneira invisível
e que dá crescimento aqueles que Ele constrói e cultiva. O Após-
tolo o atesta nas seguintes palavras:
115
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO VII
A desigualdade dos dons divinos não vem dos
méritos das obras anteriores, mas da
liberalidade de Deus.
11. O mesmo doutor explica de onde derivam as aptidões,
funções e belezas de cada membro do Corpo, com estas palavras:
116
São Próspero de Aquitânia
fé, pelo mesmo Espírito; a outro, o dom das curas, pelo mesmo
Espírito; a outro, o dom de operar milagres; a outro, o da profe-
cia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade
de línguas; a outro, a interpretação das línguas. Mas todas estas
coisas as opera um só e o mesmo Espírito, repartindo a cada
um como quer.25
117
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO VIII
Ninguém que recebe a graça tem mérito próprio.
12. Aquilo que é dado imerecidamente [a graça] não se pre-
tende pelo mérito”; antes de qualquer trabalho que possa ter feito,
ele recebe de Deus a dignidade por meio da qual o seu trabalho
merecerá uma recompensa. Esse fato também pode ser entendido
a partir do ensinamento da Verdade do Evangelho, onde está con-
tada a parábola28 sobre um homem que, “estando para empreender
uma viagem, chamou seus servos e lhes entregou seus bens. Deu
a um cinco talentos, a outro dois, a outro um; a cada um, segundo
a sua capacidade”29, isto é, de acordo com a capacidade própria e
natural de cada um, e não de acordo com os seus méritos. Pois uma
coisa é poder trabalhar e outra é trabalhar; uma coisa é poder ter
caridade e outra coisa é tê-la; uma coisa é ser capaz da continência,
da justiça, da sabedoria e outra é ser verdadeiramente continente,
justo e sábio. Assim, nem todo homem que pode ser restaurado é
realmente restaurado, e nem todo homem que pode ser curado é
realmente curado, tornando-se são; pois somente a possibilidade
de restauração ou de cura é dada com a natureza, mas é a graça que
realmente restaura e cura.
118
São Próspero de Aquitânia
30. Referência a São Tiago Apóstolo, que diz: ‘A fé sem as obras é mor-
ta em si mesma’ (Tg 2,17) (N. do R.).
31. No mesmo Evangelho seg. São Mateus, cap.25, a partir do vs.31.
32. 1Cor 3,7.
119
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO IX
Não devemos investigar a causa dos diferentes
tempos da graça [Kairós].
14. Creio eu que conseguimos – com a ajuda do Senhor
– tratar de todas as questões expostas até aqui de maneira satisfa-
tória. Vamos então, após essa digressão, retomar o nosso assunto, a
saber, a consideração das diferenças que encontramos no dom da
graça divina.
120
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO X
Ao longo dos séculos, a Misericórdia de Deus
proveu o alimento para o corpo e o auxílio
para as almas dos homens.
15. Vamos, então, com paciência e com paz na alma, per-
manecer ignorantes de segredo tão remoto ao nosso conhecimento
humano. Contudo, assim como não devemos, porque não pode-
mos, penetrar no que está fechado para nós, também não devemos
deixar de entrar naquilo que nos está aberto. Pois muitas evidên-
cias das Escrituras divinas e a experiência ininterrupta de todas as
épocas manifestam que a justa Misericórdia de Deus e sua Justiça
misericordiosa nunca cessaram de conceder o alimento para os
corpos dos homens, assim como o ensinamento e o auxílio para
suas almas. Em todo o tempo, Ele faz nascer o sol sobre maus e
121
A vocação de todos os povos – Livro II
122
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XI
Os homens recebem, lentamente e pouco
a pouco, o que lhes foi decretado
pela liberalidade divina.
16. Mas essa preparação nem sempre segue o mesmo pro-
cesso ou mantém o mesmo ritmo. Como os efeitos e os dons da
graça aparecem de muitas maneiras e em inúmeras variações, den-
tro dos vários tipos de dons existem ainda diferentes graus e medi-
das distintas. Os brotos de ervas e árvores que a terra produz não
são todas de uma espécie ou de um só gênero, mas uma e todas elas
são geradas de acordo com a forma de seu gênero e as qualidades
de sua espécie; elas não estão plenas de suas particularidades logo
que aparecem, mas desenvolvem-se gradual e ordenadamente até
atingirem o seu próprio tamanho individual até a perfeição do seu
hábito, alcançando seu tamanho pela sucessão e incremento que
lhe são próprios. Do mesmo modo, as sementes dos carismas di-
vinos e as plantas das virtudes não brotam no campo de todos os
corações humanos naquela perfeição que adquirirão mais tarde;
não é fácil de se encontrar maturidade ou perfeição desde o início.
123
A vocação de todos os povos – Livro II
38. Jr 1,5.
39. “Eu creio, Senhor, mas auxilia a minha incredulidade” (Mc 9,24): a
fala do pai do endemoninhado na passagem do Evangelho segundo S.
Marcos que se tornou uma piedosa jaculatória que é pronuciada pelos
cristãos devotos desde tempos imemoriais (N. do E.).
124
São Próspero de Aquitânia
125
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XII
A liberdade sob a graça.
20. Que esta breve análise sirva como prova segura de que
Deus nunca abandona nenhum dos fiéis que não se afastem d’Ele
primeiro, e que Deus nunca planeja a queda de alguém42. Em vez
disso, muitos que têm juízo racional são capazes de se afastar d’Ele
para que sejam recompensados por não o terem feito, o que não
seria possível sem o auxílio do Espírito de Deus, e seu mérito não
seria possível se Ele não o quisesse. Essa vontade por si só é capaz
de pecar, mas por si só não pode realizar boas obras.
42. Aqui, como em todo o corpo da presente obra, São Próspero reduz
a pó a heresia calvinista, mais de um milênio antes do seu surgimento.
126
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XIII
A bondade divina não auxilia somente os
santos, mas também os ímpios, como
fez antes do Dilúvio.
21. O Espírito de Deus regeu seu primeiro povo que, pelo
conhecimento do mesmo Espírito, se absteve das relações íntimas
com os réprobos e longe dos seus caminhos amaldiçoados. Assim,
preservou-se à parte dos seus pecados e livre de se misturar com
esses homens carnais; homens cujas más ações a paciência de Deus
suportou enquanto os homens bons pudessem agradá-lo, não os
imitando. Mas quando os bons também foram corrompidos, pas-
sando a imitar os ímpios, e quando o gênero humano como um
todo, desertando voluntariamente da obediência a Deus caiu na
mesma impiedade, então uma sentença divina destruiu tudo, pois
todos haviam caído na mesma impiedade, exceto somente a casa
de Noé.
Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante?
Porventura, se tuas obras forem boas, não receberás (por isso o
127
A vocação de todos os povos – Livro II
43. Gn 4,6s.
44. Ao contrário do que prega a herética doutrina Sola Fide (N. do R.).
128
São Próspero de Aquitânia
sassina de Caim. Mas quis Deus, com sua grande paciência, que o
furor momentâneo de um homem mau se tornasse a glória eterna
de um outro, justo.
CAPÍTULO XIV
Desde os tempos do Dilúvio até a vinda de
Cristo, havia sinais da graça e figuras dos
milagres de Cristo, embora a graça que
agora inunda o mundo ainda não
tivesse fluído tão abundantemente.
24. Na preservação de Noé com seus filhos e suas esposas,
que deveriam ser como que o berçário de todas as nações, a Sagra-
da Escritura nos mostra a imensidão de maravilhas da graça divi-
na. A arca, de espantosa capacidade, que abrigava tantos animais
quantos seriam necessários para a restauração de sua espécie, é a
figura da Igreja que deve reunir em si todos os homens. No lenho
e na água [sobre a qual navegou a arca] vemos a redenção pela
129
A vocação de todos os povos – Livro II
130
São Próspero de Aquitânia
131
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XV
Os homens de agora não nascem com uma
natureza superior ao que era antes de Cristo;
em verdade, no tempo do Advento do Senhor,
a iniquidade era maior, para manifestar
melhor a graça de Deus.
27. A revelação de Deus sempre foi comunicada a todos
os homens em alguma medida, a qual, mesmo quando dada de
modos mais moderados e ocultos, ainda era considerada suficiente
pelo Senhor para ser um remédio para alguns, e um testemunho
para todos. Assim, Ele deixou claro, acima de dúvida, que “onde
abundou o pecado, superabundou a graça”49, mais ainda nesse tem-
po em que todo o gênero humano vageava cegado pela mesma
impiedade. Ou, para citar o absurdo que é falado por muitos, os
homens nascidos nos nossos dias são mais dispostos que os de an-
48. Ef 2,12.
49. Rm 5,20.
132
São Próspero de Aquitânia
133
A vocação de todos os povos – Livro II
51. At 14,24-28.
52. 1Jo 5,20.
53. Cl 1,12.
134
São Próspero de Aquitânia
54. Tt 3,3-8.
55. Mt 9,13.
56. Is 9,2.
135
A vocação de todos os povos – Livro II
Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por meio
de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Qual temos acesso pela fé a
esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança
da glória de Deus. E não somente, mas também nos gloriamos
nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência, a
paciência (produz) a virtude provada, a virtude provada a es-
perança, e a esperança não traz engano, porque a caridade de
Deus está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo,
que nos foi dado.57
E retoma:
57. Rm 5,1-5.
136
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XVI
Cristo morreu por todos.
31. Portanto, não há razão para duvidar de que Jesus Cristo,
nosso Senhor, morreu pelos ímpios e pelos pecadores. Se houvesse
alguém que não pertencesse a estes, então Cristo não teria morri-
do por todos. Mas ele morreu por todos os homens, sem exceção.
Portanto, não há ninguém, dentre todos os homens, que não tenha
sido, antes da Reconciliação que Cristo efetuou em seu Sangue,
pecador ou incrédulo. Diz o Apóstolo:
58. Rm 8,35.
137
A vocação de todos os povos – Livro II
seremos salvos da Ira por Ele mesmo. Se, sendo nós inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela Morte de seu Filho, muito
mais estando já reconciliados, seremos salvos por sua Vida.59
59. Rm 5,6-11.
60. 2Cor 5,14s.
61. 1Tm 1,15s.
138
São Próspero de Aquitânia
62. At 2,9s.
139
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XVII
As nações que ainda não viram a graça
de Nosso Salvador serão chamadas
ao Evangelho no tempo designado.
33. Pode ser verdade que, assim como sabemos que antiga-
mente alguns povos não eram admitidos à Comunhão dos filhos
de Deus, também hoje há, nas partes mais remotas do mundo,
algumas nações que ainda não viram o Luz da graça do Salvador.
Mas não temos dúvida de que, no Juízo oculto de Deus, para eles
também foi designado um tempo para o seu Chamado, quando
ouvirão e aceitarão o Evangelho que agora permanece desconheci-
do para eles. Mesmo agora, eles recebem a medida de ajuda geral
que o Céu sempre concede a todos os homens.
63. Cl 1,26s.
140
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XVIII
Nos séculos anteriores, o mistério do
Chamado à fé estava escondido dos
gentios, mas não dos Profetas.
34. Esse mistério permaneceu selado também para os Pro-
fetas? Eles, os porta-vozes do Espírito Santo, desconheciam aquilo
que estavam pregando? Não creio que tenhamos que entender o
texto dessa maneira, mas apenas no sentido de que para os gen-
tios esse mistério permaneceu oculto, um mistério que o Senhor
revelou quando lhe agradou e a quem quis. Pois a respeito da vo-
cação dos povos, que não pertenciam ao povo de Deus e de quem,
no princípio, Deus não teve misericórdia, enquanto que agora Ele
lhes revela a sua Misericórdia, lemos no Deuteronômio:
64. Dt 32,19ss.
65. Sl 85,9.
66. Sl 71,17.
141
A vocação de todos os povos – Livro II
67. Sl 72,17.
68. Is 2,2.
69. Is 25,6.
70. Is 52,10.
71. Cf. Is 14,1s.
72 Is 55,5.
142
São Próspero de Aquitânia
73. Os 1,10s.
74. Os 2,23s.
75. At 11,15ss.
143
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XIX
Em todos os tempos Deus quer
salvar todos os homens.
37. Essas e outras evidências das Escrituras provam, sem
dúvida, que a grande riqueza, poder e beneficência da graça, que
nestes últimos tempos chamam todos os gentios ao Reino de
Cristo, estava oculta, nos séculos passados, no Desígnio secreto
de Deus. Nenhum conhecimento pode compreender, nenhum en-
tendimento pode penetrar a razão pela qual essa abundância de
graça, que agora chegou ao conhecimento de todas as nações, não
foi revelada antes. Contudo cremos, com total confiança na bon-
76. At 15,14-18.
77. Lc 2,26.
78. Lc 2,29-32.
144
São Próspero de Aquitânia
dade de Deus, que Ele deseja que todos os homens sejam salvos e
cheguem ao conhecimento da Verdade79: devemos saber que essa
é a sua vontade imutável desde a eternidade, mas se manifesta em
diferentes medidas, e que Ele, em sua Sabedoria, escolheu aumen-
tar agora seus dons gerais com favores especiais. Assim, aqueles
que não compartilharam de sua graça declararem-se culpados de
malícia, e aqueles que eram resplandecentes com a sua Luz, não
podem se gloriar em seus próprios méritos, mas gloriem-se apenas
no Senhor.
CAPÍTULO XX
Objeção do caso de bebês contra o texto
‘quer que todos os homens sejam salvos’.
38. Essa maneira sutil, porém correta, de entender nosso
problema, é confrontada com uma grande dificuldade no caso dos
bebês. Os bebês não têm o uso da razão pela qual eles poderiam
entender as misericórdias de seu Criador e serem capacitados a
se aproximar do conhecimento da Verdade. Não parece correto
culpá-los por negligenciarem a ajuda da graça, quando estão em
um estado de ignorância natural que os faz incapazes – e não pode
haver dúvida sobre isso – para adquirir algum conhecimento ou
compreender qualquer ensino. E se, então, Deus deseja que todos
os homens sejam salvos, qual é a razão para que tantos bebês per-
maneçam privados da salvação eterna? Por que tantos milhares de
seres humanos de tenra idade não são admitidos à vida eterna?80
145
A vocação de todos os povos – Livro II
Pareceria que Deus, que não criou ninguém por ódio, criou
essas crianças apenas para jogá-las nos laços de uma culpa im-
perdoável que contraíram sem culpa própria, pela única razão de
terem elas, não por sua vontade, entrado neste mundo, na carne do
pecado. O que poderia ser mais insondável, mais surpreendente do
que isso?
Pois não seria correto acreditar que essas crianças que não
receberam o sacramento da regeneração pertencem de alguma ma-
neira à Comunhão dos bem-aventurados. E o que o torna ainda
mais estupendo e estranho é o seguinte: aqui não temos culpa cau-
sada por ações, nem livre-arbítrio capaz de oferecer resistência;
existe o infortúnio que é o mesmo para todos; existe um desampa-
ro igual; um caso é precisamente o mesmo para todos. No entan-
to, apesar dessa paridade completa do caso, o Julgamento não é o
mesmo para todos; a alguns Deus repudia como réprobos, a outros
adota como eleitos.
CAPÍTULO XXI
Deus será justo se rejeitar bebês não
batizados, tanto nesta vida quanto na
próxima, pelo Pecado original.
39. Mas se formos humildes de coração, não seremos per-
turbados pela profundidade insondável dessa discriminação81 de
Deus. Devemos apenas acreditar com firmíssima fé que todos os
146
São Próspero de Aquitânia
Juízos de Deus são justos, e não queiramos saber aquilo que Ele
determinou que permanecesse em segredo. Onde não pudermos
investigar o que é julgado, devemos nos contentar em saber Quem é
que julga.
147
A vocação de todos os povos – Livro II
148
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXII
A Justiça Divina mensura, para cada
um, o seu próprio infortúnio.
41. Mas o peso desse jugo mais pesado não recaiu sobre os
filhos de Adão sem que a Justiça de Deus se aplicasse segundo suas
próprias dimensões. Segundo estas, Deus submeteu os seres defei-
tuosos às leis de suas próprias deficiências, Mas, ao mesmo tempo,
não lhes negou o poder de mitigar as suas misérias. Ele não per-
mitiu que, apenas porque todos os homens, por causa de sua con-
dição pecaminosa comum, sejam sujeitos a todos os males, todo e
qualquer mal deva acontecer a todo homem. O Senhor quis que a
necessidade geral se afirmasse em diferentes graus, mantendo para
Si as razões tanto da indulgência quanto da severidade. E a única
obrigação comum de todos era reconhecer no Perdão divino um
ato de misericórdia e no castigo de Deus um ato de justiça.
85. Jó 12,9.
86. Jó 14,5.
149
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XXIII
Os filhos que morrem na infância recebem
a graça geral concedida aos pais.
150
São Próspero de Aquitânia
151
A vocação de todos os povos – Livro II
crianças que foram batizadas, sem alcançar seus pais. Assim, mui-
tas vezes acontecia que as crianças eram cuidadas por estranhos
quando seus parentes incrédulos falhavam; e através de estranhos
elas passaram a receber a Regeneração, quando seus próximos não
a teria providenciado para elas.
152
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXIV
Não podemos encontrar uma justa razão para
queixa quanto aos diferentes destinos das
crianças que, em todos os outros aspectos,
são iguais; antes, há aí uma forte prova da
Justiça de Deus e da graça de Cristo.
153
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XXV
Com sua graça geral dada a todos, Deus sempre
quer que todos os homens sejam salvos; mas a
sua graça especial não é concedida a todos.
46. Se, então, olhamos para esses últimos séculos ou para o
primeiro, ou para o período do meio, vemos que a razão e o senso
religioso nos fazem acreditar que Deus deseja e sempre quis que
todos os homens fossem salvos. Provamos isso de nenhuma outra
fonte senão dos próprios dons que a Providência de Deus geral-
mente concede a todos os homens, sem qualquer distinção. Esses
dons são considerados tão geralmente no passado e no presente,
que os homens encontram em seu testemunho auxílio suficiente
154
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXVI
Em toda a justificação, a graça é o fator principal,
enquanto a vontade humana é secundária, unida à
graça e cooperando com Deus; a graça prepara a
vontade do homem para esta cooperação.
155
A vocação de todos os povos – Livro II
156
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXVII
A graça é a causa do consentimento de nossa
vontade, não somente pela Doutrina e pelo
esclarecimento, mas também através
do terror e do medo.
157
A vocação de todos os povos – Livro II
93. Jo 6,44.
94. Mt 16,17.
158
São Próspero de Aquitânia
Os homens que recusam a fé, não são por Ele atraídos, nem
vão a Ele. E quando eles retêm assim o seu livre consentimento,
então não se aproximam do Senhor, porque preferem se afastar
d’Ele. Ora é o Amor divino que conduz ao Senhor todos aqueles
que vão até Ele: foi Ele Quem os amou primeiro; eles apenas re-
tornaram esse seu Amor. Ele os procurou primeiro e eles, por sua
vez, o procuraram; e quando Deus inspirou sua vontade humana
com a sua divina vontade, eles o quiseram.
CAPÍTULO XXVIII
Os homens fiéis que, pela graça de Deus, creem
em Cristo, ainda permanecem livres para deixar
de crer; e aqueles que perseveram ainda
podem se afastar de Deus.
95. Mt 26,41.
159
A vocação de todos os povos – Livro II
Simão, Simão, eis que Satanás te busca com instância para vos
joeirar como trigo; mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não
desfaleça; e tu, uma vez convertido, conforta os teus irmãos.
(...)Orai para não cairdes em tentação.96
96. Lc 22,31.40.
160
São Próspero de Aquitânia
e então São Pedro também, naquela ocasião, não teria sido venci-
do por nenhum medo.
52. Mas essa tal firmeza pertencia apenas àquele que, so-
zinho, poderia dizer realmente e em verdade: “Eu tenho poder de
dar a minha vida, e tenho poder de a reassumir”97. Em todos os
outros homens, visto que “a carne tem desejos contrários ao espíri-
to, e o espírito desejos contrários à carne”98, e sendo que “o espírito
na verdade está pronto, mas a carne é fraca”99, a força imóvel da
alma não pode ser encontrada, porque a felicidade perfeita e im-
perturbável da paz não a temos nesta vida, mas a teremos apenas
na próxima. Todavia, na incerteza das agonias presentes, quando
toda a vida é uma tentação, e quando as próprias vitórias não estão
protegidas do perigo do orgulho, também o risco da inconstância
é sempre presente. É verdade que a proteção de Deus dá a força da
perseverança final a seus incontáveis Santos, mas Ele não liberta
nenhum deles da resistência que os seus esforços encontram em
sua própria natureza. Em todas as suas lutas e esforços, a disputa
entre o querer e o rejeitar100 permanece.
97. Jo 10,18.
98 Gl 5,17.
99. Mt 26,41.
100. Aqui trata do problema da ‘vontade cindida’ (ou ‘dividida’) que
Santo Agostinho expõe nas suas Confissões, e da qual fala São Paulo
Apóstolo: ‘Não faço, pois, o bem que quero, mas o mal que não quero,
este faço’ (Rm 7,19) (N. do R.).
161
A vocação de todos os povos – Livro II
101. Jo 21,18ss.
102. Mt 6,13.
103. Cor 1,31. Jr 9,24.
162
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXIX
Deus está cumprindo sua Promessa de abençoar a
todos os povos todos os dias, para não deixar
escusas aos réprobos, nem dar aos eleitos
razão para se gloriarem de sua justiça.
163
A vocação de todos os povos – Livro II
164
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXX
Recapitulando o capítulo I deste Livro Segundo.
165
A vocação de todos os povos – Livro II
dúvidas de que aqui estamos diante dessas coisas que Deus, em sua
Justiça e Misericórdia, não quer que saibamos neste mundo fugaz.
E devemos estar convencidos de que essas coisas foram ocultadas
para o nosso bem. Assim, vendo que somos salvos pela esperança,
e que Deus preparou para nós o que olhos não viram, nem ouvi-
dos ouviram, nem entraram no coração do homem; e assim como
acreditamos firmemente que algum dia veremos o que ainda não
vemos, também esperamos pacientemente para entender o que
ainda não entendemos.
CAPÍTULO XXXI
Em todas as eras, a bondade geral de Deus deu
graça a todos homens, mas em medidas diversas.
166
São Próspero de Aquitânia
tos de sua graça são múltiplos e a medida de seus dons varia. Para
todos os efeitos, por vias ocultas ou manifestas, Ele é, como diz
o Apóstolo, “o Salvador de todos os homens, principalmente dos
fiéis”115 Esta declaração é sutil em sua verdade e vigorosa em sua
força. Se considerarmos, com tranquilidade, observamos que [essa
afirmação] dirime totalmente a presente controvérsia. Pois, dizen-
do quem é o Salvador “de todos os homens”, o Apóstolo afirmou
que a bondade de Deus é geral e cuida de todos os homens. Mas
ele adiciona: “especialmente dos fiéis”, e assim demonstra que há
uma parte do gênero humano a quem Deus, graças à fé que Ele
mesmo inspirou, leva adiante com ajuda especial para a salvação
suprema e eterna.
CAPÍTULO XXXII
Entre os fiéis, existem diferentes graus dos dons
dados por Deus, e isso não se deve ao mérito,
mas ao Juízo justo e oculto de Deus.
167
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XXXIII
Nenhum dos eleitos está perdido, mas todos os
que foram escolhidos desde toda a eternidade
alcançarão a salvação.
168
São Próspero de Aquitânia
Pois nosso Mestre, que é Justo e Bom, não pode querer nada
injusto nem vacilar em seu Discernimento. Não devemos, portan-
to, imaginar que, apesar das imensuráveis Misericórdia e Justiça do
Deus Todo-Poderoso, um homem que não é réprobo haverá de se
perder.
169
A vocação de todos os povos – Livro II
116. Ef 1,3-6.
170
São Próspero de Aquitânia
171
A vocação de todos os povos – Livro II
CAPÍTULO XXXIV
Embora o Desígnio de Deus sobre a salvação
dos eleitos seja imutável, não é inútil trabalhar
para adquirir o mérito das boas
obras, e perseverar na oração.
172
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXXV
Os eleitos recebem a graça não para deixá-los
ociosos, ou para liberá-los dos ataques do
Inimigo, mas para capacitá-los a agir
bem e a vencer o Inimigo.
62. Por essa razão, Jesus Cristo veio a este mundo, para
destruir as obras do diabo118. E Ele efetua essa destruição de tal
maneira que os homens são por Ele mesmo auxiliados para que
tenham uma participação ativa; isso também é uma dádiva do Sal-
vador. É por isso que o bem-aventurado Apóstolo diz:
173
A vocação de todos os povos – Livro II
Porque pela graça fostes salvos, mediante a fé, e isto não (vem)
de vós, porque é um dom de Deus; não (vem) das (vossas)
obras, para que ninguém se glorie. Realmente somos obra sua,
criados em Jesus Cristo para (praticar) boas obras, que Deus
preparou para caminharmos nelas.120
120. Ef 2,8ss.
121. Mt 25,29.
122. Lit.: ‘...se não estiver com o coração separado do mundo’ (N. do T.).
174
São Próspero de Aquitânia
CAPÍTULO XXXVI
A eleição não dispensa a aplicação da oração;
pelo contrário, esta alcança a sua realização
pela oração e pelas boas obras.
175
A vocação de todos os povos – Livro II
três dias, e não cuidarás noutra coisa que em fazer oração com
ela. No decurso da primeira noite, queimando o fígado do pei-
xe, terás posto em fuga o demônio. Na segunda noite serás ad-
mitido na sociedade dos santos patriarcas. terceira noite con-
seguirás a bênção, para que de vós nasçam filhos robustos.124
CAPÍTULO XXXVII
De nenhum homem pode-se dizer, antes de sua
morte, que compartilhará da glória dos eleitos;
por outro lado, não há razão para desespero
pela conversão de qualquer homem caído.
124. Tb 6,16-21.
176
São Próspero de Aquitânia
que crê estar de pé, veja, não caia!”125; se for vencido por alguma
tentação, não se deixe consumir pela tristeza, nem pelo desespero
na misericórdia d’Aquele que “sustém todos os que caem e levanta
a todos os prostrados”126. Enquanto vivermos em nossos corpos,
não devemos deixar de corrigir ninguém, nem nos desesperarmos
pela conversão de alguém.
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Bibliografia:
SOARES, Matos. Bíblia Sagrada, trad. da Vulgata.
São Paulo: Pia Sociedade de São Paulo, 1956.