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Jurgen Habermas

A INCLUSÃO DO OUTEO
estudos de teoria política

Tradução:
George Sperber
Paulo Astor Soethe [UFPR]

._[ÿ -1— Humanistica


1. Introdução à vida intelectual, J. B. Libanio
2. A norma linguística, Marcos Bagno [org.]
3. A inclusão do outro: estudos de teoria política, Jíirgen Habermas Edições Loyola
TíTULO ORIGINAL:

Die Einbeziehung des Anderen Studien zur politischen Theorie
© Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1996
Zweite Auflage 1997
Alle Rechte vorbehalten Sumário
ISBN: 3-518-58233-X

Prefácio 7
EDIçãO BRASILEIRA
Direção 1 Uma visão genealógica do teor cognitivo da moral 11
Fidel García Rodriguez, SJ

Edição de texto 2 Reconciliação por meio do uso público da razão .... 61


Marcos Marcionilo O design da condição primitiva 63
O fato do pluralismo e a idéia do consenso abrangente 73
Revisão Autonomia privada e pública 82
Albertina Pereira Leite Piva
Diagramação 3 “Racional” versus “verdadeiro”
Ronaldo Hideo Inoue — ou a moral das imagens de mundo ...
A moderna situação de partida
89
93
De Hobbes a Kant 95
A alternativa ao procedimentalismo kantiano 98
Uma “terceira” perspectiva para o racional 102
Edições Loyola O último estágio da justificação 105
Rua 1822 n° 347 - Ipiranga Filósofos e cidadãos 111
04216-000 São Paulo, SP O âmago do liberalismo 116
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%ÿ. (0**11) 6163-4275
4 O Estado nacional europeu
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— sobre o passado e o futuro da soberania e da nacionalidade 121
“Estado” e “Nação” 123
Editorial: loyola@loyola.com.br
A nova forma de integração social 128
Vendas: vendas@loyola.com.br A tensão entre nacionalismo e republicanismo 131
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra A unidade da cultura política na multiplicidade das subculturas 134
pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma Limites do Estado nacional: restrições da soberania interna 138
e/ou quaisquer meios (eletrónico ou mecânico, incluindo “Superação” do Estado nacional: supressão ou suprassunção? 142
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema
ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
5 Inserção — inclusão ou confinamento? 147
ISBN: 85-15-02438-1
Construções da soberania popular no direito constitucional 153
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002 Sentido e falta de sentido da autodeterminação nacional 159
Inclusão com sensibilidade para as diferenças 164
Democracia e soberania do Estado: o caso das intervenções humanitárias ... 167
Somente uma Europa das Pátrias? 172

6 A Europa necessita de uma Constituição? 177 Prefácio'


1 A idéia kantiana de paz perpétua
— à distância histórica de 200 anos 185
Os estudos que compõem o presente livro surgiram depois da
S A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito .. 229 publicação de Faktizitãt und Geltung, em 1992. Eles têm em comum o
A “política do reconhecimento” tayloriana 232 interesse pela questão das consequências que hoje resultam do conteú¬

Lutas por reconhecimento os fenômenos e os planos de sua análise
A impregnação ética do Estado de direito
238
243

do universalista dos princípios republicanos a saber, para as socie¬
dades pluralistas, nas quais os contrastes multiculturais se agudizam,
Coexistência equitativa versus preservação da espécie 248 para os estados nacionais, que se reúnem em unidades supranacionais,
Imigração, cidadania e identidade nacional 255
262 e para os cidadãos de uma sociedade mundial que foram reunidos
A política para a concessão de asilo na Alemanha unificada
numa involuntária comunidade de risco, sem ter sido consultados.
Na primeira parte, defendo o conteúdo racional de uma moral
9 Três modelos normativos de democracia 269
baseada no mesmo respeito por todos e na responsabilidade solidária
geral de cada um pelo outro. A desconfiança moderna diante de um
10 Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia .. 285 universalismo que, sem nenhuma cerimónia, a todos assimila e iguala
Qualidades formais do direito moderno 286 não entende o sentido dessa moral e, no ardor da batalha, faz desapa¬
Sobre a relação complementar entre direito positivo e moral autónoma 288 recer a estrutura relacional da alteridade e da diferença, que vem sen¬
Sobre a mediação entre soberania popular e direitos humanos 290
293 do validada por um universalismo bem entendido. Na Teoria da Ação
Sobre a relação entre autonomia privada e pública
O exemplo das políticas feministas de equiparação 295 Comunicativa, formulei esses princípios básicos de modo que eles cons¬
tituíssem uma perspectiva para condições de vida que rompesse a fal¬
299
sa alternativa entre “comunidade” e “sociedade”. A essa orientação da
Apêndice a Facticidade e validação
teoria da sociedade corresponde, na teoria da moral e do direito, um
O bom e o justo 300
A neutralização de conflitos de valor e a “acedência de diferenças” 308 universalismo dotado de uma marcada sensibilidade para as diferen¬
Forma e conteúdo: o cerne “dogmático” do procedimentalismo .... 326 ças. O mesmo respeito para todos e cada um não se estende àqueles
Problemas da construção teórica 338 que são congéneres, mas à pessoa do outro ou dos outros em sua al¬
Sobre a lógica dos discursos jurídicos 353 teridade. A responsabilização solidária pelo outro como um dos nossos
Sobre o teor político do paradigma procedimental 365 se refere ao “nós” flexível numa comunidade que resiste a tudo o que é
Comentários sociológicos: mal-entendidos e estímulos 373
substancial e que amplia constantemente suas fronteiras porosas. Essa
comunidade moral se constitui exclusivamente pela idéia negativa da
Fontes dos capítulos 385 abolição da discriminação e do sofrimento, assim como da inclusão
índice de nomes 387 —
dos marginalizados e de cada marginalizado em particular , em —
* Tradução: George Sperber.

7
1

9
Três modelos normativos
de democracia"

i ;
i :

1 Com certo exagero no que diz respeito à tipificação ideal,


Irei referir-me na sequência às compreensões “liberal” e “re¬
- —
publicana” de política expressões que hoje marcam frentes
opostas no debate desencadeado nos Estados Unidos pelos
assim chamados corfiunitaristas. Referindo-me a E Michel-
I man, descreverei em primeiro lugar os dois modelos dedemo¬
cracia (polêmicos, quando contrapostos) , sob o ponto de vista
dos conceitos de “cidadão do Estado” e “direito”, e segundo a
natureza do processo político de formação da vontade. Na
segunda parte, com base na crítica ao peso ético excessivo
que se impõe ao modelo republicano, desenvolverei então
uma terceira concepção, procedimentalista, que gostaria de
denominar “política deliberativa”.

O
A diferença decisiva reside na compreensão do papel
que cabe ao processo democrático. Na concepção “liberal”,
esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

269


que se volte ao interesse da sociedade: imagina-se o Estado como apa¬ mento da comunicação política em relação à sociedade económica
rato da administração pública, e a sociedade como sistema de circula¬ corresponde uma retroalimentação do poder administrativo a partir
ção de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, es¬ do poder comunicativo decorrente do processo de formação da von¬
truturada segundo leis de mercado. A política, sob essa perspectiva, e tade e opinião políticas.
no sentido de formação política da vontade dos cidadãos, tem a fun¬ Dos dois enfoques concorrentes resultam diversas consequências.
ção de congregar e impor interesses sociais em particular mediante (a) Em primeiro lugar diferenciam-se as concepções decidadão do
um aparato estatal já especializado no uso administrativo do poder Estado. Segundo a concepção liberal, determina-se o status dos cida¬
político para fins coletivos. dãos conforme a medida dos direitos individuais de que eles dispõem
Segundo a concepção “republicana”, a política não se confunde em face do Estado e dos demais cidadãos. Como portadores de direi¬
com essa função mediadora; mais do que isso, ela é constitutiva do tos subjetivos, os cidadãos poderão contar com a defesa do Estado
processo de coletivização social como um todo. Concebe-se a polí¬ desde que defendam os próprios interesses nos limites impostos pelas
tica como forma de reflexão sobre um contexto de vida ético. Ela cons¬
titui o medium em que os integrantes de comunidades solidárias sur¬

leis e isso se refere igualmente à defesa contra intervenções estatais
que excedam ressalva interventiva prevista em lei. Direitos subjetivos
gidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo
mútua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres de coações exter¬
preexistentes de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma nas. Direitos políticos têm a mesma estrutura: eles oferecem aos cida¬
voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e dãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses particu¬
iguais. Com isso, a arquitetônica liberal do Estado e da sociedade so¬ lares, de maneira que esses possam ser agregados a outros interesses
fre uma mudança importante. Ao lado da instância hierárquica regu¬ privados (por meio de votações, formação de corporações parlamen¬
ladora do poder soberano estatal e da instância reguladora descen¬ tares e composições de governos) e afinal transformados em uma von¬
tralizada do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dos tade política que exerça influência sobre a administração. Dessa ma¬
interesses próprios, surge também a solidariedade como terceira fonte neira, os cidadãos, como membros do Estado, podem controlar se o
de integração social. poder estatal está sendo exercido em favor do interesse dos cidadãos
Esse estabelecimento da vontade política horizontal, voltada ao na própria sociedade2.
entendimento mútuo ou ao consenso almejado por via comunicativa,
deve gozar até mesmo de primazia, se considerado do ponto de vista 2. Cf. F. I. Michelman, “Political Truth and the Rule of Law”, Tel Aviv Univ. Stu¬
tanto genético quanto normativo. Para a práxis de autodeterminação dies in Law, n. 8, 1988, p. 283: “The political society envisioned by bumper-sticker
por parte dos cidadãos no âmbito do Estado, aceita-se uma base social republicans is the society of private right bearers, an association whose first principle is
the protection of lives, liberties and estates, of its individual members. In that society,
autónoma que independa da administração pública e da mobilidade the state is justified by the protection it gives to those prepolitical interests; the purpose
socioeconômica privada, e que impeça a comunicação política de ser of the constitution is to ensure that the state apparatus, the government, provides such
tragada pelo Estado e assimilada pela estrutura de mercado. Na con¬ protection for the people at large rather than serves the special interests of the governors
cepção republicana, confere-se significado estratégico tanto à opinião or their patrons; the function of citizenship is to operate the constitution and thereby
motivate the governors to act according to that protective purpose; and the value to
pública de caráter político quanto à sociedade civil, como seu susten¬
táculo. Ambos devem conferir força integrativa e autonomia à práxis
you of your political franchise — your right to vote and speak, to have your views
heard and counted — is the handle it gives you on influencing the system so that it will
de entendimento mútuo entre os cidadãos do Estado1. Ao desacopla- adequately heed and protect your particular, pre-political rights and other interests”.
[“A sociedade política que os adesivos republicanos esboçam é a sociedade dos porta¬
dores de direitos privados, uma associação cujo primeiro princípio é a proteção das
1. Cf. H. Arendt, Uber die Revolution, Munchen, 1965 [ed. br.: Da revolução, São vidas, liberdades e propriedades de seus membros individuais. Nessa sociedade, o es¬
Paulo, Ática, 1995); idem, Macht und Gewalt, Munchen, 1970. tado é justificado pela proteção que dá aos interesses pré-políticos; o propósito da

270 A INCLUSÃO DO OUTRO TRêS MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 271

1
,
De acordo com a concepção republicana, o status dos cidadãos tencial do Estado não reside primeiramente na defesa dos mesmos
não é determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo inclusivo de
eles podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de cida¬ formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais
:
dania, direitos de participação e comunicação política são, em pri¬ chegam ao acordo mútuo quanto a quais devem ser os objetivos e
meira linha, direitos positivos. Eles não garantem liberdade em rela¬ normas que correspondam ao interesse comum. Com isso, exige-se
ção à coação externa, mas sim a participação em uma práxis comum, do cidadão republicano mais que a orientação segundo seus respecti-
por meio de cujo exercício os cidadãos só então se tornam o que tencio¬ vos interesses próprios.
nam ser —sujeitos politicamente responsáveis de uma comunidade
de pessoas livres e iguais3. Em tal medida, o processo político serve
(b) Na polêmica contra o conceito clássico da pessoa do direito
como portadora de direitos subjetivos revela-se a controvérsia em tor¬
apenas ao controle da ação estatal por meio de cidadãos que, ao exerce¬ no do conceito de direito em si mesmo. Segundo a concepção liberal, o
rem seus direitos e as liberdades que antecedem a própria política, sentido de uma ordem jurídica consiste em que ela possa constatar
tratam de adquirir uma autonomia já preexistente. O processo polí¬ em cada caso individual quais são os direitos cabíveis a que indiví¬
tico tampouco desempenha uma função mediadora entre Estado e duos; em uma concepção republicana esses direitos subjetivos se de¬
sociedade, já que o poder estatal democrático não é em hipótese algu¬ vem a uma ordem jurídica objetiva, que possibilite e garanta a integri¬
ma uma força originária. A força origina-se, isso sim, do poder gerado dade de um convívio equitativo, autónomo e fundamentado sobre o
comunicativamente em meio à práxis de autodeterminação dos cida¬ respeito mútuo. Em um dos casos a ordem jurídica constrói-se a par¬
dãos do Estado e legitima-se pelo fato de defender essa mesma práxis tir de direitos subjetivos, no outro caso concede-se um primado ao
através da institucionalização da liberdade pública4. A justificação exis- teor jurídico objetivo desses mesmos direitos.
Esses conceitos dicotômicos certamente não atingem o teor in-
constituição é assegurar que o aparato estatal, o governo, proveja proteção para o povo, tersubjetivo dos direitos, que exigem a consideração recíproca de di¬
sem servir a interesses privados dos governantes ou de seus patrões; a função da cida¬ reitos e deveres, em proporções simétricas de reconhecimento. Na ver¬
dania é praticar a constituição e, portanto, motivar os governantes a agirem segundo
dade, o projeto republicano vai ao encontro de um conceito de direito

esse objetivo de proteção; e o valor do direito político de cada um direito a voto e

expressão, direito de ter a própria opinião ouvida e levada em conta é o suporte que
ele dá ao indivíduo, para que ele influencie o sistema a dar atenção e proteção aos
que atribui pesos iguais de um lado à integridade do indivíduo e suas
liberdades subjetivas, e de outro lado à integridade da comunidade
interesses pré-políticos particulares e a outros interesses”].
em que os indivíduos podem se reconhecer uns aos outros como seus
3. Sobre a liberdade positiva versus a negativa, cf. Ch . Taylor, “Was ist menschliches
Handeln?” In: Negative Freiheit?, Frankfurt am Main, 1988, pp. 9ss. membros e enquanto indivíduos. Esse projeto vincula a legitimidade
4. Cf. F. I. Michelman, 1988, p. 284: “In civic constitutional vision, political society das leis ao procedimento democrático de sua génese, e preserva assim
is primarly the society not of right-bearers but of citizens, an association whose first uma coesão interna entre a práxis de autodeterminação do povo e do
principle is the creation and provision of a public realm within which a people, together,
argue and reason about the right terms of social coexistence, terms that they will set
domínio impessoal das leis: “For republicans rights ultimatly are
together and which they understand as their common good. .. Hence the state is justified nothing but determinations of the prevailing political will, while for
by its purpose of establishing and ordering the public sphere within which persons can liberals some rights are always grounded in a ‘higher law’ of trans¬
achieve freedom in the sense of self-government by the exercise of reason in public political reason or revelation... In a republican view, a community’s
dialogue”. [“Na visão cívica constitucional, a sociedade política é primariamente a so¬
ciedade não dos portadores de direitos, mas dos cidadãos, uma associação cujo princí¬ objective, the common good substancially consists in the success of its
pio primeiro é a criação e provisão de um âmbito público dentro do qual uma popula¬ political endeaver to define, establish, effectuate and sustain the set of
ção, em conjunto, discuta e raciocine sobre os termos do direito à coexistência social, rights (less tendentiously laws) best suited to the conditions and mo¬
termos que serão definidos em conjunto e entendidos como bem comum. . . A partir res of that community, whereas in a contrasting liberal view the higher
disso o estado é justificado por seu propósito de estabelecer e ordenar a esfera pública
dentro da qual as pessoas podem alcançar a liberdade no sentido de autogoverno pelo law rights provide the transcendental structures and the curbs on power
exercício da razão no diálogo público”]. required so that pluralistic pursuit of diverse and conflicting interests

272 A INCLUSãO DO OUTRO TRêS MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 273


may proceed as satisfactorily as possible”5. [“Para os republicanos os reza do processo político. Segundo a concepção liberal, a política é es¬
direitos nada são, em última instância, senão determinações da vonta¬ sencialmente uma luta por posições que permitam dispor do poder
de política prevalecente; para os liberais, por sua vez, alguns direitos administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião polí¬
estão sempre embasados em um ‘direito supremo’ da razão ou revela¬ tica, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, é deter¬
ção transpolíticas. . . Em uma visão republicana, um objetivo da comu¬ minado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategica¬
nidade, o bem comum, consiste substancialmente no sucesso de seu mente e pela manutenção ou conquista de posições de poder. O êxito
esforço político por definir, estabelecer, tornar efetivo e manter vigente nesse processo é medido segundo a concordância dos cidadãos em
o conjunto de direitos (ou leis, para ser menos tendencioso) mais ade¬ relação a pessoas e programas, o que se quantifica segundo números
quados às condições e costumes dessa comunidade; por outro lado, em de votos. Ao votar, os eleitores expressam suas preferências. As deci¬
uma visão liberal contrastante, a lei jurídica maior proporciona as es¬ sões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos
truturas transcendentais e as limitações de poder necessárias para que de participantes do mercado voltados à conquista de êxito. São os elei¬
o esforço pluralista por cumprir interesses diversos e conflitivos possa tores que licenciam o acesso a posições de poder pelas quais os parti¬
continuar ocorrendo de forma tão satisfatória quanto possível”.] dos políticos lutam, em uma mesma atitude que se orienta pela busca
O direito ao voto, interpretado como liberdade positiva, torna-se de sucesso. Um mesmo modelo de ação estratégica corresponde igual¬
paradigma dos direitos em geral, não apenas pelo fato de ser constitu¬ mente ao input dos votos e ao output do poder.
tivo para a autodeterminação política, mas porque nele fica claro como Segundo a concepção republicana, a formação de opinião e von¬
a inclusão em uma comunidade de cidadãos dotados de direitos iguais tade política em meio à opinião pública e no parlamento não obedece
está associada ao direito individual a contribuir individualmente e de às estruturas de processos de mercado, mas às renitentes estruturas de
forma autónoma e a assumir posicionamentos próprios: “The claim is, uma comunicação pública orientada ao entendimento mútuo. Para a
that we all take an interest in each other’s enfranchisement because (I) política no sentido de uma práxis de autodeterminação por parte de
our choice lies betwenn hanging together and hanging separately; (II) cidadãos do Estado, o paradigma não é o mercado, mas sim a inter-
hanging together depends on reciprocal assurance to all of having one’s locução. Segundo essa visão, há uma diferença estrutural entre o po¬
vital interests heeded by the others; and (III) in the deeply pluralized der comunicativo, que advém da comunicação política na forma de
conditions of contemporary American society, such assurances are opiniões majoritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder admi¬
attainable. . . .only by maintaining at least the semblance of a politics in nistrativo de que dispõe o aparato estatal. Também os partidos que
which everyone is conceded a voice”6. Essa estrutura que se pode iden¬ lutam pelo acesso a posições de poder no Estado têm de se adequar ao
tificar com base na interpretação dos direitos à comunicação e à parti¬ estilo e à renitência dos discursos políticos: “Deliberation. .. refers to a
cipação política distribui-se entre todos os direitos ao longo do proces¬ certain attitude toward social cooperation, namely, that of openness
so legislativo que os constitui. Também a atribuição de poder no âmbi¬ to persuasion by reasons referring to the claims of others as well as
to do direito privado para que se persigam fins privados e livremente one’s own. The deliberative medium is a good faith exchange of views
escolhidos obriga concomitantemente a que se respeitem os limites da — including participant’s reports of their own understanding of their
ação estratégica acordados segundo o interesse de todos. —
respective vital interests ... in which a vote, if any vote is taken, repre¬
(c) As diferentes conceituações do papel do cidadão e do direito sents a pooling of judgements”7. Portanto, o embate de opiniões ocor¬
são expressão de um dissenso de raízes mais profundas sobre a natu¬
rido na arena política tem força legitimadora não apenas no sentido
de uma autorização para que se ocupem posições de poder; mais que
isso, o discurso político ocorrido continuamente também apresenta
5. F. I. Michelman, “Conceptions of Democracy in American Constitutional
Argument: Voting Rights”, Florida Law Review, n. 41, 1989, pp. 446s.
6. F. I. Michelman, ibidem, p. 484. 7. F. I. Michelman, Pornography, 1989, p. 293.

274 A INCLUSÃO DO OUTRO TRêS MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 275

JÉL
força vinculativa diante desse tipo de exercício de dominação política. de uma cultura partilhados por seus integrantes. A compensação de
O poder administrativo só pode ser aplicado com base em políticas e interesses realiza-se sob a forma do estabelecimento de um acordo
no limite das leis que nascem do processo democrático. entre partidos que se apoiam sobre potencialidades de poder e de san¬
ções. Negociações desse tipo certamente pressupõem uma disposição
O à cooperação, ou seja, a vontade de obter resultados mediante a ob¬
servância de regras do jogo que sejam aceitáveis para todos os parti¬
Por ora, é o que basta dizer sobre a comparação entre os dois dos, mesmo que por razões diversas. Contudo, o estabelecimento do
modelos de democracia que hoje dominam a discussão entre os assim acordo não ocorre sob as formas de um discurso racional, neutrali-
chamados comunitaristas e os “liberais”, sobretudo nos Estados Uni¬ zador do poder e capaz de excluir toda ação estratégica. Na verdade, a
dos. O modelo republicano tem vantagens e desvantagens. Vejo como justiça e honestidade dos acordos se medem pelos pressupostos e pro¬
vantagem o fato de ele se firmar no sentido radicalmente democrático cedimentos que precisam, eles mesmos, de uma justificação racional e
de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos em acordo até mesmo normativa sob o ponto de vista da justiça. Diversamente
mútuo por via comunicativa e não remeter os fins coletivos tão-so- do que se dá com questões éticas, as questões de justiça não estão rela¬
mente a um “deal” [uma negociação] entre interesses particulares opos¬ cionadas desde a origem a uma coletividade em particular. O direito
tos. Como desvantagem, entendo o fato de ele ser bastante idealista e firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, precisa ao menos
tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos estar em consonância com princípios morais que reivindiquem vali¬
voltados ao bem comum. Pois a política não se constitui apenas e — dação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta.

nem sequer em primeira linha de questões relativas ao acordo mú¬
tuo de caráter ético. O erro reside em uma condução estritamente ética
í O conceito de uma política deliberativa só ganha referência em¬
pírica quando fazemos jus à diversidade das formas comunicativas na
!
dos discursos políticos. qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um auto-enten¬
Por certo, entre os elementos que formam a política são muito dimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio
importantes os discursos de auto-entendimento mútuo em que os entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da che-
envolvidos procuram obter clareza quanto à maneira como eles mes¬ cagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional
mos se entendem enquanto integrantes de uma determinada nação, e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamenta¬
membros de certa municipalidade ou Estado, habitantes de uma re¬ ção moral. Assim, os dois tipos de político que Michelman contrapõe
gião etc., ou ainda quanto às tradições a que dão continuidade, à ma¬ em um exercício de tipificação ideal podem impregnar-se um do ou¬
neira como se tratam entre si e como tratam minorias ou grupos mar¬ tro e complementar-se. A política dialógica e a instrumental, quando
ginalizados, quanto ao tipo de sociedade em que querem viver. Mas as respectivas formas de comunicação estão suficientemente institucio¬
sob as condições do pluralismo cultural e social também é frequente nalizadas, podem entrecruzar-se no medium das deliberações. Tudo
haver, por detrás de objetivos politicamente relevantes, interesses e depende, portanto, das condições de comunicação e procedimento que
orientações de valor que de forma alguma são constitutivos para a conferem força legitimadora à formação institucionalizada da opinião
identidade da coletividade em geral, ou seja, para o todo de uma for¬ e da vontade. O terceiro modelo de democracia que me permito suge¬
ma de vida partilhada intersubjetivamente. Esses interesses e orienta¬ rir baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo
ções de valor que permanecem em conflito no interior de uma mesma político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente
coletividade sem qualquer perspectiva de consenso precisam ser com¬ por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.

pensados; para isso não bastam os discursos éticos mesmo que os
resultados dessa compensação (alcançada com recursos não-discur-
Quando se faz do conceito procedimental da política delibera¬
tiva o cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia,
sivos) sofram a restrição de não poder ferir os valores fundamentais resultam daí diferenças tanto em relação à concepção republicana do

276 A INCLUSãO DO OUTRO TRêS MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 277

A m
Estado como uma comunidade ética, quanto em relação à concep¬ nómico capitalista. Segundo a concepção republicana a formação po¬
ção liberal do Estado como defensor de uma sociedade económica. lítica da opinião e vontade dos cidadãos forma o medium sobre o
Ao comparar os três modelos, tomo como ponto de partida a dimen¬ qual a sociedade se constitui como um todo firmado politicamente.
são da política que nos ocupou até o momento: a formação demo¬ A sociedade centra-se no Estado; pois na práxis de autodetermina¬
crática da opinião e da vontade que resulta em eleições gerais e de¬ ção política dos cidadãos a coletividade torna-se consciente de si
cisões parlamentares. mesma como um todo e age efetivamente sobre si mesma através da
Segundo a concepção liberal, esse processo apenas tem resulta¬ vontade coletiva dos cidadãos. Democracia é sinónimo de auto-orga¬
dos sob a forma de arranjos de interesses. As regras de formação de nização política da sociedade. Resulta daí uma compreensão de política

acordos desse tipo às quais cabe assegurar a justiça e honestidade polemicamente direcionada contra o Estado. Dos escritos políticos de
dos resultados através de direitos iguais e universais ao voto e da com¬ Hannah Arendt é possível depreender a rota de colisão pela qual se di¬
posição representativa das corporações parlamentares, suas leis or¬ reciona a argumentação republicana: apontada contra o privatismo

gânicas etc. são fundamentadas a partir de princípios constitucio¬ burguês de uma população despolitizada e contra a busca de legiti¬
nais liberais. Segundo a concepção republicana, por outro lado, a for¬ mação por parte de partidos estatizados, a opinião pública de cunho
mação democrática da vontade cumpre-se sob a forma de um auto- político deve revitalizar-se a ponto de um conjunto de cidadãos rege¬
entendimento ético; nesse caso, a deliberação pode se apoiar quanto nerados, nas diversas formas de uma auto-administração descentra¬
ao conteúdo em um consenso a que os cidadãos chegam por via cul¬ lizada, ser capaz de se (re)apossar do poder estatal burocraticamente
tural e que se renova na rememoração ritualizada de um ato republi¬ autónomo.
cano de fundação. A teoria do discurso acolhe elementos de ambos Segundo a concepção liberal, não há como eliminar essa sepa¬
os lados e os integra no conceito de um procedimento ideal para o ração entre o aparato estatal e a sociedade, mas apenas superar a dis¬
aconselhamento e tomada de decisões. Esse procedimento democrático tância entre ambos pela via do processo democrático. As débeis co¬
cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendi- notações normativas de uma equilibração regrada do poder e dos
mento e discursos sobre a justiça, além de fundamentar a suposição de interesses certamente carecem de uma complementação estatal e ju¬
que sob tais condições se almejam resultados ora racionais, ora justos rídica. A formação democrática da vontade de cidadãos interessados
e honestos. Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos univer¬ em si mesmos, entendida de forma minimalista, constitui não mais
sais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comuni¬ que um elemento no interior de uma constituição que tem por tarefa
dade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que disciplinar o poder estatal por meio de precauções normativas (como
extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta direitos fundamentais, divisão em poderes e vinculação da adminis¬
ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comu¬ tração à lei) e ainda impulsioná-lo à devida consideração dos diver¬
nicação linguística8. sos interesses e orientações de valores na sociedade. Essa compreen¬
Com essas descrições estruturais do processo democrático fica são de política centrada no Estado pode prescindir da assunção irrea¬
traçado o itinerário para se chegar a uma conceituação normativa de lista de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir. Ela
Estado e de sociedade. O pressuposto para isso é haver simplesmente não se orienta pelo input de uma formação política e racional da von¬
uma administração pública do tipo que se desenvolveu no início da tade, mas sim pelo output de um balanço positivo ao se avaliar as
Era Moderna em conjunto com o sistema estatal europeu e que se conquistas da atividade estatal. A rota de colisão dessa argumentação
desenvolveu sob um entrecruzamento funcional com o sistema eco¬ tem seu alvo no potencial perturbador de um poder estatal que im¬
peça a circulação social autónoma das pessoas em particular. O cen¬
8. Cf. J. Habermas, “Volkssouverànitãt ais Verfahren”. In: J. Habermas, 1990, pp. tro do modelo liberal não é a autodeterminação democrática de ci¬
600-631. dadãos deliberantes, mas sim a normatização jurídico-estatal de uma
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m
sociedade económica cuja tarefa é garantir um bem comum enten¬ Essas comunicações sem sujeito, internas e externas às corporações
dido de forma apolítica, pela satisfação das expectativas de felicidade políticas e programadas para tomar decisões, formam arenas nas quais
de cidadãos produtivamente ativos. pode ocorrer a formação mais ou menos racional da opinião e da von¬
A teoria do discurso, que obriga ao processo democrático com tade acerca de temas relevantes para o todo social e sobre matérias
conotações mais fortemente normativas do que o modelo liberal, mas carentes de regulamentação. A formação de opinião que se dá de ma¬
menos fortemente normativas do que o modelo republicano, assume neira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e
por sua vez elementos de ambas as partes e os combina de uma ma¬ em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comuni¬
neira nova. Em consonância com o republicanismo, ele reserva uma cativa é transformado em poder administrativamente aplicável. Como
posição central para o processo político de formação da opinião e da no modelo liberal, respeita-se o limite entre Estado e sociedade; aqui,
vontade, sem no entanto entender a constituição jurídico-estatal como porém, a sociedade civil, como fundamento social das opiniões públi¬
algo secundário; mais que isso, a teoria do discurso concebe os direi¬ cas autónomas, distingue-se tanto dos sistemas económicos de ação
tos fundamentais e princípios do Estado de direito como uma respos¬ quanto da administração pública. Dessa compreensão democrática,
ta consequente à pergunta sobre como institucionalizar as exigentes resulta por via normativa a exigência de um deslocamento dos pesos
condições de comunicação do procedimento democrático. A teoria que se aplicam a cada um dos elementos na relação entre os três recur¬
do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa de¬ sos a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem sua carência
pendente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, de integração e direcionamento, a saber: o dinheiro, o poder adminis¬
mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam res¬ trativo e a solidariedade. As implicações normativas são evidentes: o
peito. Ela não opera por muito tempo com o conceito de um todo I
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poder socialmente integrativo da solidariedade, que não se pode mais
social centrado no Estado e que se imagina em linhas gerais como um tirar apenas das fontes da ação comunicativa, precisa desdobrar-se so¬
sujeito acionai orientado por seu objetivo. Tampouco situa o todo em i bre opiniões públicas autónomas e amplamente espraiadas, e sobre
um sistema de normas constitucionais que inconscientemente regram procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a for¬
o equilíbrio do poder e de interesses diversos de acordo com o mode¬ mação democrática da opinião e da vontade; além disso, ele precisa
lo de funcionamento do mercado. Ela se despede de todas as figuras também ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos dois outros pode¬
de pensamento que sugiram atribuir a práxis de autodeterminação res, ou seja, ao dinheiro e ao poder administrativo.
dos cidadãos a um sujeito social totalizante, ou que sugiram referir o
domínio anónimo das leis a sujeitos individuais concorrentes entre si.
Na primeira possibilidade o conjunto de cidadãos é abordado como
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um agente coletivo que reflete o todo e age em seu favor; na segunda, Essa concepção tem consequências para a compreensão de legi¬
os agentes individuais funcionam como variáveis dependentes em timação e soberania popular. Segundo a concepção liberal, a forma¬
meio a processos de poder que se cumprem cegamente, já que para ção democrática da vontade tem exclusivamente a função de legitimar
além de atos eletivos individuais não poderia haver quaisquer deci¬ o exercício do poder político. Resultados de eleições equivalem a uma
sões coletivas cumpridas de forma consciente (a não ser em um senti¬ licença para a tomada do poder governamental, ao passo que o gover¬
do meramente metafórico). no tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o
Em face disso, a teoria do discurso conta com a intersubjetivida- parlamento. Segundo a concepção republicana, a formação democrá¬
de mais avançada presente em processos de entendimento mútuo que tica da vontade tem a função essencialmente mais forte de constituir a
se cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de aconselha¬ sociedade enquanto uma coletividade política e de manter viva a cada
mentos em corporações parlamentares, bem como, por outro lado, na eleição a lembrança desse ato fundador. O governo não é apenas in¬
rede de comunicação formada pela opinião pública de cunho político. vestido de poder para o exercício de um mandato sem maiores víncu-

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I TRêS MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 281
los, por meio de uma eleição entre grupos de liderança concorrentes; sível que, em sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar.
ao contrário, ele está comprometido também programaticamente com O poder constituinte funda-se na práxis autodeterminativa de seus
a execução de determinadas políticas. Sendo mais uma comissão do cidadãos, não de seus representantes. A isso o liberalismo contrapõe a
que um órgão estatal, ele é parte de uma comunidade política que se concepção mais realista de que no Estado de direito democrático o
administra a si própria, e não o topo de um poder estatal separado. poder estatal que nasce do povo só é exercido “em eleições e votações
Com a teoria do discurso, novamente entra em cena outra noção: pro¬ e por meio de organismos legislativos específicos, organismos do poder
cedimento e pressupostos comunicacionais da formação democrᬠexecutivo e da jurisdição” (é o que se lê, por exemplo, no art. 20, § 2o
tica da opinião e da vontade funcionam como importantes escoadouros da Constituição da República Federal da Alemanha).
da racionalização discursiva das decisões de um governo e adminis¬ Essas duas concepções certamente oferecem uma alternativa en¬
tração vinculados ao direito e à lei. Racionalização significa mais que tre aquelas premissas muito questionáveis de um projeto de Estado e
mera legitimação, mas menos que a própria ação de constituir o poder. de sociedade que toma como ponto de partida o todo e suas partes —
O poder administrativamente disponível modifica seu estado de mero muito embora o todo seja formado ou por um conjunto soberano de
agregado desde que seja retroalimentado por uma formação demo¬ cidadãos ou por uma constituição. Ao conceito de discurso na demo¬
crática da opinião e da vontade que não apenas exerça posteriormente cracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade des¬
o controle do exercício do poder político, mas que também o programe, centralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinião
de uma maneira ou de outra. A despeito disso, o poder político só pública um cenário propício à constatação, identificação e tratamen¬
pode “agir”. Ele é um sistema parcial especializado em decisões cole¬ to de problemas pertinentes à sociedade como um todo. Quando se
tivamente vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas da sacrifica a formação de conceito ligada à filosofia do sujeito, a sobe¬
opinião pública compõem uma rede amplamente disseminada de rania não precisa se concentrar no povo de forma concretista, nem
sensores que reagem à pressão das situações problemáticas no todo exilar-se na anonimidade de competências atribuídas pelo direito
social e que simulam opiniões influentes. A opinião pública transfor¬ constitucional. O si-mesmo da comunidade jurídica que se organiza
mada em poder comunicativo segundo procedimentos democráticos desaparece em formas de comunicação isentas de sujeitos, as quais
não pode “dominar”, mas apenas direcionar o uso do poder adminis¬ regulam o fluxo da formação discursiva da opinião e da vontade de
trativo para determinados canais. modo que seus resultados falíveis guardem para si a suposição de ra¬
O conceito de soberania popular deve-se à apropriação republi¬ cionalidade. Com isso, a intuição vinculada à idéia de soberania po¬
cana e à revalorização da noção de soberania surgida no início da Era pular não é desmentida, mas interpretada de maneira intersubjeti-
Moderna e inicialmente associada aos déspotas que governavam de vista. Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anóni¬
modo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicação ma, só se abriga no processo democrático e na implementação jurí¬
legítima da força, é concebido como um concentrado de poder, capaz dica de seus pressupostos comunicacionais, bastante exigentes por
de prevalecer sobre todas os demais poderes do mundo. Rousseau sinal, caso tenha por finalidade conferir validação a si mesma enquanto
transpôs essa figura de pensamento (proposta inicialmente por Bodin) poder gerado por via comunicativa. Sendo mais exato, essa validação
à vontade do povo unificado, mesclada à idéia clássica do autodomí¬ provém das interações entre a formação da vontade institucionaliza¬
nio de indivíduos livres e iguais e suprassumida no conceito moderno da de maneira jurídico-estatal e as opiniões públicas culturalmente
de autonomia. Apesar dessa sublimação normativa, o conceito de so¬ mobilizadas, que de sua parte encontram uma base nas associações
berania permaneceu ligado à noção de uma corporificação sua no povo de uma sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia.
(presente inclusive de forma física, no início). Segundo a concepção De fato, a autocompreensão normativa da política deliberativa
republicana, o povo (ao menos potencialmente presente) é portador exige para a comunidade jurídica um modo de coletivização social; esse
de uma soberania que por princípio não se pode delegar: não é admis¬ mesmo modo de coletivização social, porém, não se estende ao todo

282 A INCLUSÃO DO OUTRO TRêS MODFXOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 283

JL
da sociedade em que se aloja o sistema político constituído de maneira
jurídico-estatal. Também em sua autocompreensão, a política delibe¬
rativa continua sendo elemento constitutivo de uma sociedade com¬
plexa que no todo se exime de assumir um ponto de vista normativo
como o da teoria do direito. Nesse sentido, a leitura da democracia
10
feita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distan¬
ciada, própria às ciências sociais, e para a qual o sistema político não é
nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo Sobre a coesão interna
que determina sua marca estrutural, mas sim um sistema de ação ao
lado de outros. Como a política consiste em uma espécie de lastro
entre Estado de direito
reserva na solução de problemas que ameacem a integração, ela certa¬ e democracia
mente tem de poder se comunicar pelo medium do direito com todos
os demais campos de ação legitimamente ordenados, seja qual for a
maneira como eles se estruturem ou direcionem. Se o sistema polí¬ \
tico, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema como —

o desempenho fiscal do sistema económico, por exemplo , isso não
se dá em um sentido meramente trivial; ao contrário, a política deli¬
berativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos con¬ Embora no meio acadêmico seja frequente mencionar
vencionais da formação institucionalizada da opinião e da vontade, direito e política de um só fôlego, ao mesmo tempo acos¬
ou informalmente, nas redes da opinião pública, mantém uma rela¬ tumamo-nos a abordar o direito, o Estado de direito e a de¬
ção interna com os contextos de um universo de vida cooperativo e mocracia como objetos pertencentes a disciplinas diversas:
racionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho polí¬ ia jurisprudência trata do direito, a ciência política trata da
tico que passam pelo filtro deliberativo dependem de recursos do uni¬ democracia; uma delas trata do Estado de direito sob pon¬

verso vital da cultura política libertadora, de uma socialização po¬ tos de vista normativos, e a outra, sob pontos de vista em¬
píricos. A divisão científica do trabalho não cessa de valer
lítica esclarecida e sobretudo das iniciativas de associações formado¬

ras de opinião , recursos que se formam de maneira espontânea ou nem mesmo quando os juristas se ocupam ora do direito e
do Estado de direito, ora da formação da vontade no Estado
que, em todo caso, só podem ser atingidos com grande dificuldade,
caso o caminho escolhido para se tentar alcançá-los seja o do direcio- constitucional democrático; nem quando os cientistas so¬
namento político. ciais se ocupam, como sociólogos do direito, do direito e do
Estado de direito, e, como cientistas políticos, do processo
democrático. Estado de direito e democracia apresentam-
se para nós como objetos totalmente diversos. Há boas ra¬
zões para isso. Como todo domínio político é exercido sob
a forma do direito, também aí existem ordens jurídicas em,
que o poder político ainda não foi domesticado sob a for¬
ma do Estado de direito. E da mesma forma há Estados de

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

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