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ANÁLISE

Nº 48/2018

Para uma política nacional de Direitos


Humanos e Empresas no Brasil:
Prevenção, Responsabilização e Reparação

Deborah Duprat, Edmundo Antônio Dias e


Marlon Alberto Weichert (Procuradoria Federal Dos Direitos
do Cidadão - PFDC), Melisanda Trentin e Raphaela Lopes

Dezembro de 2018

O tema vem adquirindo cada vez maior protagonismo nos debates


da sociedade civil e nos órgãos e organismos de proteção e defesa dos
direitos humanos em âmbito nacional e internacional. Se cabe ao
Estado o papel de observância dos direitos humanos, é necessário se
adaptar aos tempos atuais de globalização do capital, nos quais entes
mais poderosos que os estatais figuram no cenário, atuando também
como violadores de direitos humanos.

São diversos os direitos ameaçados ou violados: à vida, à integrida-


de física, à segurança, à moradia, ao trabalho digno, à saúde, à água, à
alimentação adequada, à cultura, à memória, à informação e ao real e
pleno desenvolvimento. Sendo que é constatada uma clara assimetria
jurídica, econômica e política estrutural entre empresas e populações
atingidas por sua atuação. Por isso mesmo, desenvolver políticas efe-
tivas e capazes de responder às demandas das vítimas de violações
perpetradas por grupos empresariais é o grande desafio deste campo.

Os Estados – inclusive o Brasil – devem adotar, no âmbito do-


méstico, políticas públicas de efetivo reforço da proteção aos direitos
humanos diante de atividades empresariais e, concomitantemen-
te, instituir um sistema internacional que reduza, afaste ou limite
o poder das empresas de impelirem os Estados para o caminho da
flexibilização ou relativização dos direitos humanos, sob o falso ar-
gumento da priorização do desenvolvimento econômico. O recente
decreto presidencial e uma série de novas portarias publicadas em
2018 apontam que o governo brasileiro caminha no sentido con-
trário dessa recomendação ao afirmar a voluntariedade da regulação
sobre as ações e condutas das empresas.
Sumário

1. Elementos para uma Política Brasileira de Direitos Humanos


e Empresas: o acúmulo do GT Corporações, Melisandra Trentin
e Raphaela Lopes 4

2. A proteção e reparação de direitos humanos em relação


a atividades empresariais, Deborah Duprat, Edmundo Antônio Dias
e Marlon Alberto Weichert (Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão - PFDC) 18

3. Anexo I:
Informe – Seminário “Para uma política nacional
de Direitos Humanos e Empresas no Brasil: Prevenção,
Responsabilização e Reparação”
Brasília, 28 e 29 de agosto de 2018, Relatoria: Livia Almendary 30
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

Apresentação panorama com contribuições específicas do


ponto de vista jurídico elaboradas pelo Grupo
Este volume reúne os textos que subsidiaram de Trabalho Empresas e Direitos Humanos
o seminário “Para uma política nacional de Di- da Procuradoria, instituído há já quase dois
reitos Humanos e Empresas no Brasil: Prevenção, anos. Por fim, decidimos publicar também,
Responsabilização e Reparação”, realizado em como Anexo 1, a relatoria do seminário, ela-
Brasília, nos dias 28 e 29 de agosto de 2018. borada por Livia Almendary, que apresenta a
Organizado pelo Grupo de Trabalho – Corpo- riqueza do debate e lista os encaminhamentos
rações (o GT-Corporações) com a participação propostos pelos participantes.
da Fundação Friedrich Ebert, Oxfam Brasil e o
apoio de Terra de Direitos, o seminário reuniu O seminário, assim como o esforço de diálo-
um conjunto de acadêmicos/as, ativistas de mo- go e engajamento de seus participantes com
vimentos e organizações sociais, afetados/as di- o processo democrático e dialógico de elabo-
retos/as pela operação das empresas em diversas ração de políticas públicas, viu-se surpreendi-
regiões do Brasil, assim como representantes de do pela publicação, algumas semanas depois,
diversas instâncias do Poder Executivo e do Mi- do Decreto Presidencial número 9571, de
nistério Público Federal, para discutir as opções 21 de novembro de 2018, que estabelece as
de políticas públicas que o Brasil teria para dar “Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Di-
conta desse problema crescente que são as viola- reitos Humanos”, que atravessou o caminho
ções de direitos humanos produzidas pela ação de construção e escuta contínua dos afetados
das empresas como resultado da sua atuação. e vítimas, sem o qual qualquer política nessa
matéria tende a se transformar em um ins-
Depois de alguns anos de sistematização so- trumento cuja letra morta rapidamente pode
bre o caráter do problema e de articular com cair no esquecimento. Isto é acentuado pelo
organizações sociais e de afetados, incidindo fato de o decreto apontar para a “implemen-
ao mesmo tempo sobre a agenda oficial para a tação voluntária” das diretrizes por parte das
adoção do tema, pela primeira vez o GT-Cor- Empresas, enquanto que o seminário indicou
porações promoveu um debate aberto sobre a necessidade de avançar para a obrigatorie-
quais as opções de políticas públicas. Propôs- dade e eficiência das normas legais do Brasil.
-se que elas se organizassem em torno de três Esperamos uma reabertura do debate e, nes-
dimensões centrais: prevenção, para que evi- se sentido, a Fundação Friedrich Ebert quer
temos as violações aprendendo das experiên- contribuir com a divulgação desse material.
cias ruins; responsabilização do Estado e das
empresas por tais abusos; e, finalmente, repa- Para finalizar, agradecemos a parceria de Gus-
ração dos danos infringidos às pessoas e po- tavo Ferroni (Oxfam Brasil), Marlon Wei-
pulações. Raphaela Lopes e Melisanda Tren- chert (PFDC), Melisanda Trentin e Raphaela
tin, da organização Justiça Global apresentam Lopes (Justiça Global), Sara Gorsdorf, Lucia-
no primeiro texto uma série de reflexões sobre na Pivato, Mariana Witkowski e Lizely Borges
critérios para essa política, assim como uma (Terra de Direitos), Julia Neiva (Business &
contextualização social da mobilização dos Human Rights Resource Centre), Caio Bor-
atores ao redor da problemática. No caso da ges (Conectas), Manoela Roland (HOMA) e
PFDC, a Nota Técnica, elaborada pelos Pro- outros membros do GT-Corporações que se
curadores Debora Duprat, Marlon Weichert engajaram com a organização do seminário.
e Edmundo Antonio Dias, complementa esse Boa leitura!

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

1. Elementos para uma Política nar a atual assimetria normativa, que beneficia
Brasileira de Direitos Humanos as empresas transnacionais em detrimento dos
e Empresas: o acúmulo do GT direitos humanos.
Corporações1
Melisanda Trentin e Raphaela Lopes O tema vem adquirindo cada vez maior pro-
tagonismo nos debates da sociedade civil e
“Los derechos de las empresas transnacionales nos órgãos e organismos de proteção e defesa
se tutelan por un ordenamiento jurídico global dos direitos humanos em âmbito nacional e
basado en reglas de comercio e inversiones cuyas internacional. Se cabe ao Estado o papel de
características son imperativas, coercitivas y observância dos direitos humanos, é necessá-
ejecutivas, mientras sus obligaciones se remi- rio se adaptar aos tempos atuais de globaliza-
ten a ordenamientos nacionales sometidos a la ção do capital financeiro, nos quais entes mais
lógica neoliberal, a un Derecho Internacional poderosos que os estatais figuram no cenário,
de los Derechos Humanos, manifiestamente atuando também como violadores de direitos
frágil y a una Responsabilidad Social Corpo- humanos. Sobretudo no chamado Sul Global,
rativa voluntaria, unilateral y sin exigibili- as corporações transnacionais e as instituições
dad jurídica” (ZUBIZARRETA, 2012: 42) financeiras detêm, por vezes, mais poder que
os próprios estados nacionais. Além disso,
Introdução muitas vezes, as atividades produtivas de em-
presas transcendem a jurisdição de um país,
Corporações e instituições financeiras transna- o que coloca desafios à regulação tradicional-
cionais são, hoje, os principais atores do pro- mente desempenhada pelos Estados. Por isso
cesso de globalização econômica que se inten- mesmo, desenvolver políticas efetivas e capa-
sificou no mundo a partir da década de 70. É zes de responder às demandas das vítimas de
certo que as empresas se submetem ao orde- violações perpetradas por grupos empresariais
namento jurídico dos países em que operam, é o grande desafio deste campo.
entretanto, esse tipo de responsabilização tem
se mostrado insuficiente no contexto de uma O presente texto pretende propor alguns ele-
economia global e que conta com mecanismos mentos para a construção de uma política
precários para a prevenção, responsabilização brasileira, que seja capaz de enfrentar os desa-
e reparação no caso de violações de direitos fios da atuação das empresas (transnacionais
humanos decorrentes da atuação de empresas e outras empresas), levando em consideração
(transnacionais ou não). Isso não se trata de seu potencial de violar direitos humanos. Tais
uma casualidade, mas da expressão da lógica do elementos serão propostos a partir da siste-
capitalismo financeiro atual, que tem as empre- matização dos acúmulos do GT Corporações,
sas como as principais beneficiárias deste siste- partindo do pressuposto da ausência de um
ma. Trata-se da arquitetura da impunidade, sistema de proteção legal, que estabeleça um
conceito cunhado por acadêmicos para desig- esquema preventivo e reparador à altura da
correlação assimétrica de forças que organiza
1. As elaborações constantes deste artigo são, em grande parte, a relação empresas vs. atingidas e atingidos.
fruto da pesquisa “Direitos Humanos e Empresas: o Estado da
Arte do Direito Brasileiro”, elaborada pelo HOMA. A referida
publicação teve papel fundamental no que concerne ao mapea- O GT Corporações
mento de instrumentos e mecanismos jurídicos e sua aplicação,
a partir da análise de diversos casos em todo território nacional.
A pesquisa, conduzida pelo HOMA contou com a participação O GT Corporações é um espaço heterogêneo,
do GT Corporações e das organizações que o compõe. em que há diversidade de posicionamentos,

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

acúmulos e pontos de partida. O que nos une sas sobre os direitos humanos. É um espaço
é a perspectiva crítica ao capital e à captura de intercâmbio de conhecimentos e práticas,
corporativa. assim como de concertação de estratégias de
incidência, com o objetivo de promover o
O GT Corporações2 é uma rede surgida em acesso à justiça dos afetados pela atuação de
2014, no contexto dos debates nacionais so- empresas no Brasil, particularmente quando
bre a crise política e institucional e a relação acarretam violações de direitos humanos.
entre poder público e empresas. O surgimen-
to do Grupo de Trabalho coincide também Antes ainda da criação do GT Corporações,
com a aprovação da resolução 26/9 no Conse- em 2012, durante a Cúpula dos Povos, evento
lho de Direitos Humanos das Nações Unidas, paralelo à Conferência Internacional Rio+20,
que reposicionou o tema do desenvolvimento no Rio de Janeiro, foi lançada a Campanha
de um instrumento vinculante sobre transna- pelo Desmantelamento do Poder Corporati-
cionais e direitos humanos3. O GT congre- vo e pelo Fim da Impunidade5, uma articula-
ga mais de 20 membros, entre organizações ção de mais de 200 organizações da sociedade
não-governamentais, movimentos, sindicatos civil de todo o mundo, e que reúne uma série
e universidades4, atuantes em questões rela- de organizações brasileiras – ou com atuação
cionadas ao impacto da atuação das empre- no Brasil – inseridas no debate sobre violações
de direitos humanos cometidas por empresas.
2. O relato sobre o histórico e atuação do GT Corporações
foi elaborado a partir da pesquisa “Planos Nacionais de Ação A partir dessa articulação, um conjunto de
sobre Empresas e Direitos Humanos na América Latina”. Con-
ferir em: ROLAND, Manoela C., FARIA JR., Luiz Carlos S., organizações da sociedade civil reforçou os
JÚLIO, Kaliandra Casatti, CASTRO, João Luis Lobo Mon- processos de incidência e de acompanhamen-
teiro de. Planos Nacionais de Ação sobre Empresas e Direitos
Humanos na América Latina: Análises sobre Colômbia, Méxi-
to às movimentações da ONU, tanto em re-
co e Chile. In. Cadernos de Pesquisa Homa, vol. 1, n. 4, 2018. lação às atividades do Grupo de Trabalho da
3. A Resolução 26/9 foi aprovada com os votos dos seguintes ONU sobre Direitos Humanos e Empresas
países: A favor: Argélia, Benin, Burkina Faso, China, Congo,
Costa do Marfim, Cuba, Etiópia, Índia, Indonésia, Cazaquis-
Transnacionais e Outros Negócios6, instituí-
tão, Quênia, Marrocos, Namíbia, Paquistão, Filipinas, Rússia, do para fomentar a implementação dos Prin-
África do Sul, Venezuela e Vietnã; Contra: Áustria, República cípios Orientadores da ONU, elaborados por
Checa, Estônia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Japão, Mon-
tenegro, Coréia do Sul, Romênia, Macedônia, Reino Unido e John Ruggie e aprovados em 2011, quanto
Estados Unidos; Abstenções: Argentina, Botswana, Brasil, Chi- em relação às demandas por um instrumento
le, Costa Rica, Gabão, Kuwait, Maldivas, México, Peru, Arábia
Saudita, Serra Leoa e Emirados Árabes Unidos.
internacional vinculante para regular a ativi-
4. Os integrantes do GT Corporações são: Amigos da Terra
dade das empresas em relação às violações de
Brasil; Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids - ABIA; Direitos Humanos.
Conectas Direitos Humanos; Confederação de Trabalhadores
da Agricultura Familiar - Contraf; Fórum da Amazônia Orien-
tal – FAOR; FASE; HOMA/UFJF; IBASE; INESC; Interna- Em 2014, na histórica votação da Resolução
tional Accountability Project -IAP; Instituto Equit; Instituto 26/9 no Conselho de Direitos Humanos da
Observatório Social - IOS; Instituto Políticas Alternativas para
o Cone Sul - PACs; Internacional de Serviços Públicos - ISP
Brasil; Justiça Global; Movimento de Atingidos por Barragens 5. Site da Campanha para o Desmantelamento do Poder das
- MAB; Movimento pela Soberania Popular na Mineração - Corporações e pelo Fim da Impunidade, disponível em: <ht-
MAM; Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco tps://www.stopcorporateimpunity.org/list-of-signatories/>.
Babaçu – MIQCB; Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e Acesso em: 01 jul. 2018.
Ecologia – SINFRAJUPE; Rede Brasileira pela Integração dos 6. Para informações do Grupo de Trabalho, acessar: <https://
Povos - REBRIP; Repórter Brasil; Terra de Direitos; Articula- www.ohchr.org/en/Issues/Business/Pages/WGHRandtransna-
ção Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale; e Vigên- tionalcorporationsandotherbusiness.aspx>. Acesso em: 01 jul.
cia, sob a liderança da FES. 2018.

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

ONU, o Brasil se absteve, justificando ausên- ONU ao Brasil, que esteve presente em
cia de posicionamento sobre a questão. Dessa visita a Mariana - MG, após o rompi-
forma, começou a se articular um grupo de mento da barragem de rejeitos de Fun-
organizações da sociedade civil no Brasil, que dão, Mariana– MG, a Altamira – PA,
posteriormente se consolidou como GT Cor- onde está localizada a hidrelétrica de
porações. De lá para cá, este grupo: Belo Monte, a Brasília, São Paulo e Rio
de Janeiro;
i. Incidiu sobre o governo brasileiro a res-
peito de seu posicionamento nas esferas ix. Debateu e aportou o Homa na constru-
internacionais, especialmente sobre a ção da pesquisa “Direitos Humanos e
implementação dos Princípios Orienta- Empresas: o Estado da Arte do Direito
dores e sobre a negociação de um tratado Brasileiro”, que consolidou um levanta-
vinculante; mento do quadro normativo e institu-
cional no Brasil em matéria de direitos
ii. Acompanhou as movimentações na humanos e empresas;
ONU dos respectivos grupos que tratam
do tema de direitos humanos e empresas x. Aportou na construção do Grupo de
em diferentes perspectivas; Trabalho sobre Empresas e Direitos Hu-
manos da Procuradoria Federal dos Di-
iii. Participou do Fórum da ONU sobre reitos do Cidadão – PFDC / Ministério
Empresas e Direitos Humanos, no qual Público Federal – MPF;
se discute a implementação dos Princí-
pios Orientadores; xi. Organizou, junto com a PFDC, a 1ª Au-
diência Pública sobre Empresas e Direitos
iv. Reuniu-se sistematicamente com repre-
Humanos em 2017, em Vitória, Espírito
sentantes da Secretaria de Direitos Hu-
Santo. O principal objetivo da audiên-
manos, do Ministério das Relações Exte-
cia pública foi efetivar uma instância de
riores e do Ministério da Fazenda;
diálogo e consulta para conhecer infor-
v. Tomou parte das negociações do tratado mações e experiências como subsídio da
vinculante na ONU, em Genebra; atuação do Estado no processo de elabo-
ração de uma política brasileira de direi-
vi. Realizou importantes debates e ofi- tos humanos e empresas. Participaram da
cinas de formação para difundir o tema audiência organizações da sociedade civil,
direitos humanos e empresas; movimentos sociais, comunidades atin-
gidas pela atividade empresarial, sindica-
vii. Dialogou com a Secretaria de Direitos Hu- tos, órgãos governamentais, Defensorias
manos e com a Fundação Getúlio Vargas/ Públicas, Ministério Público de diversos
SP sobre a elaboração de um Plano Na- estados, consultorias empresariais em sus-
cional de Ação sobre Empresas e Direitos tentabilidade e organizações acadêmicas.
Humanos no Brasil, sob a perspectiva de No entanto, não houve o comparecimen-
enfatizar suas limitações e insuficiências; to das empresas.

viii. Pautou a visita do Grupo de Trabalho Esse longo processo de articulação e incidên-
sobre Empresas e Direitos Humanos da cia por parte do GT Corporações, nas esfe-

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ras nacional e internacional, proporcionou a tado, sobre a existência de uma assimetria ju-
consolidação de um diálogo importante para rídica estrutural e de uma correlação de forças
a construção de uma política brasileira de políticas e econômicas desigual entre empresas
direitos humanos e empresas com os atores e populações atingidas por sua atuação. Deste
públicos, de maneira democrática e participa- modo, para garantia dos direitos previstos na
tiva, tendo como base o marco normativo de Constituição Federal de 1988, sobretudo os
direitos humanos, além dos Princípios Orien- direitos humanos econômicos, sociais, cultu-
tadores, em complementaridade à negociação rais e ambientais, DHESCAs, faz-se necessário
de um tratado internacional sobre o tema, avançar em políticas públicas.
que fortaleceria o marco nacional e forneceria
sustentação internacional para a implementa- Algumas iniciativas já foram pensadas e algu-
ção de políticas de proteção de direitos e de mas colocadas em prática para preencher essa
efetiva responsabilização de empresas. lacuna:

Direitos Humanos e Empresas: 1.Terceiro Programa Nacional de Direitos


o embate entre duas perspectivas Humanos (PNDH 3)
O primeiro passo nesse sentido foi a ela-
Atualmente, no debate sobre a regulação de boração do Terceiro Programa Nacional de
empresas transnacionais no tocante a direitos Direitos Humanos (PNDH 3)8. Publicado
humanos, contrapõem-se duas perspectivas: em 2010, o Programa resultou de um pro-
uma que vê a necessidade de regular interna- cesso de ampla consulta popular e seu acú-
cionalmente de maneira vinculante as empre- mulo não pode ser ignorado na concepção
sas transnacionais e de criar mecanismos de de qualquer política sobre direitos humanos,
responsabilização destes atores por violações a inclusive em sua interseção com a atuação
direitos humanos; e outra que se alinha com a das empresas.
vertente da responsabilidade social corporati-
va, baseada em pactos de adesão voluntária, ge- Conforme as informações constantes do site
radoras de marketing positivo para as empresas oficial do governo federal, o PNDH 3 “apre-
e comparável às finalidades filantrópicas. Im- senta as bases de uma política de Estado para
portante ressaltar que as tentativas para regular os direitos humanos e é marcado pela indi-
internacionalmente as atividades de empresas visibilidade e interdependência de seus dis-
no âmbito dos direitos humanos começaram positivos, estruturando-se em torno de eixos
na década de 1970; por outro lado, o cresci- orientadores, diretrizes, objetivos estratégicos
mento da Responsabilidade Social Corporativa e ações programáticas”.
se dá em um momento de intenso questiona-
mento do poder das empresas transnacionais e 8. O Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos insti-
da globalização neoliberal7. tuído pelo Decreto nº 7.037 de 21 de dezembro de 2009, e
atualizado pelo Decreto nº 7.177 de 12 de maio de 2010, é
produto de uma construção democrática e participativa, incor-
Já há um consenso entre diversos atores da so- porando resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos
ciedade civil, bem como alguns órgãos do Es- Humanos, além de propostas aprovadas em mais de 50 con-
ferências temáticas, promovidas desde 2003, em áreas como
segurança alimentar, educação, saúde, habitação, igualdade
7. Instituto PACS. Responsabilidade Social para quê e para racial, direitos da mulher, crianças e adolescentes, pessoas com
quem? Análise crítica dos projetos de responsabilidade social cor- deficiência, idosos, meio ambiente etc. Disponível em: <http://
porativa da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico www.pndh3.sdh.gov.br/portal/sistema/sobre-o-pndh3>. Aces-
– TKCSA, em Santa Cruz, Rio de Janeiro, Brasil, 2015. so em: 21 ago. 2018.

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

Em seu Eixo 2 - Desenvolvimento e Direitos O Pacto Global10 foi uma iniciativa voluntária
Humanos9, o PNDH 3 traz temas impor- lançada em 2000, pela ONU, para estimular
tantes no debate sobre violações de direitos empresas a adotarem políticas de responsabi-
provocados por empresas: efetivação de um lidade social corporativa e sustentabilidade.
modelo de desenvolvimento sustentável, Essas políticas estão resumidas em dez prin-
com inclusão social e econômica, ambiental- cípios11.
mente equilibrado e tecnologicamente res-
ponsável, cultural e regionalmente diverso, As Diretrizes da OCDE para Empresas Mul-
participativo e não discriminatório; valoriza- tinacionais, a seu turno, são recomendações
ção da pessoa humana como sujeito central dirigidas por governos a empresas, que ope-
do processo de desenvolvimento; promover e ram em um ou mais países, que aderiram a es-
proteger os direitos ambientais como Direi- sas normas. As Diretrizes são um código mul-
tos Humanos, incluindo as gerações futuras tilateralmente aceito e abrangente de conduta
como sujeitos de direitos. Apesar de pouco empresarial responsável, que os governos se
preciso e ainda distante de corresponder à comprometeram a promover.
necessidade de responsabilização de empre-
sas, ao incorporar o tema do desenvolvimen- Uma importante diferença entre o Pacto Glo-
to e direitos humanos como um de seus sete bal e as Diretrizes da OCDE é que há a me-
eixos, o PNDH 3 já posiciona os impactos diação do Estado nesta última; isto é, a adesão
decorrentes da atuação empresarial como às Diretrizes resulta de um compromisso assu-
uma questão de direitos humanos, podendo mido pelo próprio Estado perante a OCDE,
gerar consequências, uma vez que os direitos ao passo que o Pacto Global da ONU é uma
humanos devem receber ampla proteção dos iniciativa à qual as empresas podem optar por
tribunais, da legislação e da sociedade. Tam- aderir, sem a intermediação dos Estados. Por
bém se percebem algumas diretrizes já apon- conta disso, há, nos Estados partes, o Ponto
tadas para se avançar no tema da regulação de Contato Nacional (PCN)12, uma instân-
das empresas. cia que recebe denúncias de descumprimen-
to das Diretrizes por parte das empresas. No
2. Pacto Global da Organização das Brasil, o PCN foi estabelecido após a adesão à
Nações Unidas (ONU) e Diretrizes
para Empresas Transnacionais da 10. Disponível em: <http://pactoglobal.org.br/>. Acesso em:
23 ago. 2018.
Organização para Cooperação e 11. Os dez princípios são: 1) As empresas devem apoiar e res-
Desenvolvimento Econômico (OCDE) peitar a proteção de direitos humanos reconhecidos internacio-
Expressões do paradigma da voluntariedade, nalmente; 2) Assegurar-se de sua não participação em violações
destes direitos; 3) As empresas devem apoiar a liberdade de as-
que se mencionou acima, o Pacto Global da sociação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação
ONU e as Diretrizes para Empresas Transna- coletiva; 4) A eliminação de todas as formas de trabalho forçado
ou compulsório; 5) A abolição efetiva do trabalho infantil; 6)
cionais da OCDE são iniciativas oriundas de Eliminar a discriminação no emprego; 7) As empresas devem
organismos internacionais, que visam encora- apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais; 8)
jar as empresas a assumirem alguns compro- Desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade
ambiental; 9) Incentivar o desenvolvimento e difusão de tecno-
missos relacionados ao respeito aos direitos logias ambientalmente amigáveis; 10) As empresas devem com-
humanos em suas operações. bater a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão
e propina.
12. Disponível em: <http://www.fazenda.gov.br/assuntos/atua-
9. Disponível em: <http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal/siste- cao-internacional/ponto-de-contato-nacional#regulamenta-
ma/navegacao-eixo/eixo/2#>. Acesso em: 21 ago. 2018. cao>. Acesso em: 23 ago. 2018.

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

Declaração de Investimentos da OCDE, em e consistem, portanto, em um guia para su-


1997, e encontra-se vinculado ao Ministério perar tais desafios, apresentando exigências
da Fazenda, sendo que seu trabalho é supervi- muito específicas às empresas. Vinte e um
sionado e realizado por um grupo de trabalho países implementaram seus Planos Nacionais
interministerial. de Ação até o momento, de acordo com o
Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas
O Pacto Global da ONU e as Diretrizes da e Direitos Humanos14.Em pesquisa recente
OCDE para Empresas Multinacionais são sobre o tema, o Homa menciona que “os Es-
mecanismos importantes, se considerados tados, até o presente momento, têm desen-
como parte de uma trajetória em direção ao volvido planos vagos, sem medidas concretas,
preenchimento de uma lacuna histórica no sem propostas de reformas legislativas especí-
tocante à regulação das empresas transna- ficas, sem parâmetros objetivos mensuráveis
cionais em direitos humanos. No entanto, a para a atividade corporativa e sem critérios
auto-regulação do capital não pode ser um detalhados de avaliação de resultados”15.
fim em si mesma; precisa resultar em formas
efetivas de controle e responsabilização so- Em que pese serem um importante instru-
bre a atuação violadora das empresas e não mento para avançar em direção ao preen-
no aprimoramento de mecanismos com en- chimento de uma lacuna relativa à regulação
foque voluntário. O Pacto e as Diretrizes, das empresas, os Planos Nacionais de Ação
que são fundados em marcos e paradigmas são ainda insuficientes para dar uma resposta
do desenvolvimento econômico, não podem efetiva às violações de direitos humanos. Por
contribuir para despolitizar a resistência nos mais que tenham a capacidade de provocar
territórios. mudanças no Estado e mesmo na conduta das
empresas, os Planos Nacionais de Ação não
3. Os Planos Nacionais de Ação poderão romper com a estrutura capitalista
Outro debate, sobre o qual se debruçou a so- global de atuação dessas mesmas empresas,
ciedade civil brasileira, diz respeito ao desen- violadoras de direitos. Os Planos Nacionais
volvimento e adoção dos chamados Planos são uma expressão do paradigma da volunta-
Nacionais de Ação, como parte da estratégia riedade, o que certamente não contribui para
de implementação dos Princípios Orientado- superar o desequilíbrio existente entre as po-
res sobre Empresas e Direitos Humanos, es- pulações atingidas e as empresas.
pecialmente após 2014, com o lançamento de
um documento guia pelo Grupo de Trabalho Na América Latina, já estão em andamento
para orientar os Estados no desenvolvimento processos de elaboração de Planos Nacio-
desta estratégia13. nais e já se sabe que no Brasil também há
movimentações no âmbito do governo para
Os planos partem de um mapeamento dos elaboração de um Plano Nacional, sem par-
desafios relacionados ao respeito aos direitos
humanos por parte de atividades empresariais 14. Conferir lista de países: <https://www.ohchr.org/en/issues/
business/pages/nationalactionplans.aspx>. Acesso em: 22 ago.
2018.
13. GRUPO DE TRABALHO DA ONU SOBRE EMPRE- 15. ROLAND, Manoela (coord.); FARIA JR., Luiz Carlos et
SAS E DIREITOS HUMANOS. Guidance on National Ac- al. Planos Nacionais de Ação sobre Direitos Humanos e Em-
tion Plans on Business and Human Rights. Dez, 2014. Dispo- presas: contribuições para a realidade brasileira (Parte I: Pers-
nível em: <https://www.ohchr.org/documents/issues/business/ pectivas Gerais sobre os Planos Nacionais de Ação sobre Em-
unwg_%20napguidance.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2018. presas e Direitos Humanos), p. 8.

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

ticipação da sociedade civil16, inclusive com buscar meios de implementação dos Princí-
a recente criação do Comitê Empresas e Di- pios Orientadores da ONU referentes às em-
reitos Humanos, que será aprofundado mais presas; propor parâmetros comuns aplicáveis
adiante. Entendemos que esse tipo de inicia- à atuação das empresas privadas, empresas de
tiva desconsidera o acúmulo dos debates até economia mista ou empresas estatais, no que
agora, o diálogo construído entre o estado e a concerne ao respeito aos direitos humanos;
sociedade civil e a sinalização por uma políti- analisar as questões apontadas pela sociedade
ca que possa promover responsabilização efe- civil, pelos centros de pesquisa, pelos órgãos
tiva e romper com a lógica da autorregulação de controle, pelo Ministério Público, pela
de empresas e com participação social. Defensoria Pública e pela Ouvidoria Nacio-
nal de Direitos Humanos, e propor encami-
4. Portarias 28817 e 28918 de 10 de nhamentos; solicitar informações, bem como
agosto de 2018 monitorar ações de empresas pertinentes aos
A Portaria 288 de 10 de agosto de 2018, direitos humanos; estimular que as empresas
que dispõe sobre os procedimentos para a privadas comuniquem e reportem suas ações
assinatura de Termo de Compromisso com estratégicas para o pleno respeito dos direi-
sociedades empresárias no âmbito do Pro- tos humanos e indiquem os impactos de suas
grama de Proteção aos Defensores de Di- atuações; realizar diagnósticos e elaborar es-
reitos Humanos do Ministério dos Direitos tudos sobre a temática; além de fazer propos-
Humanos – PPDDH, autoriza o Programa a tas de atos normativos ou de ações específicas
contatar diretamente e estabelecer tratativas sobre o tema; e articular ações intersetoriais,
com as sociedades empresárias mencionadas interinstitucionais e interfederativas para o
como possíveis ofensoras de direitos huma- fortalecimento do respeito aos direitos huma-
nos. Conforme o texto da portaria, o Termo nos pelas empresas.
de Compromisso, bem como outras formas
de contato direto entre PPDDH e empresas, Uma análise ainda inicial dessas portarias,
teria por objetivo recomendar a cessação de tendo em vista sua recente edição, já nos
atividades danosas aos direitos humanos e aos aponta que o governo brasileiro caminha no
defensores e defensoras. sentido de também reafirmar a voluntarie-
dade da regulação sobre as ações e condutas
A Portaria 289 de 10 de agosto de 2018, por das empresas. Entendemos que a edição das
sua vez, institui, no âmbito do Ministério dos duas portarias, após cinco anos de diálogo e
Direitos Humanos, o Comitê Empresas e Di- construção coletiva entre sociedade civil e Es-
reitos Humanos – CEDH. Conforme o texto tado para avançar em uma política efetiva de
da portaria, tal Comitê seria responsável por direitos humanos no que concerne à atuação
de empresas, desconsidera todo o caminho
16. Conferir Portaria nº. 24/17, do Ministério de Direitos Hu- percorrido até aqui.
manos.
17. Disponível em: <http://portal.imprensanacional.gov.br/ Elementos para uma Política
materia/-/asset_publisher/Kujr w0TZC2Mb/content/
id/36659173/do1-2018-08-14-portaria-n-288-de-10-de-agos-
Nacional de Direitos Humanos e
to-de-2018-36659122>. Acesso em: 22 ago. 2018. Empresas
18. Disponível em: <http://portal.imprensanacional.gov.br/
materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/
id/36659508/do1-2018-08-14-portaria-n-289-de-10-de-agos-
Atualmente, estamos desafiados a contribuir,
to-de-2018-36659404>. Acesso em: 22 ago. 2018. a partir de nossa experiência no acompanha-

10
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

mento de diversos casos de violações de direitos tante movimento de ressignificação de lutas


humanos nas diferentes regiões do Brasil, para sociais, que integra o processo histórico de
a construção de uma política brasileira efetiva construção subjetiva da cultura dos direitos
sobre direitos humanos e empresas, que pos- e pode ser definida como “mecanismo pelo
sa conjugar elementos de prevenção, respon- qual sociedades desiguais, do ponto de vista
sabilização e reparação adequados à estrutura econômico e social, destinam a maior carga
dos grupos empresariais, capaz de satisfazer as dos danos ambientais do desenvolvimento às
demandas e necessidades das vítimas. Dessa populações de baixa renda, aos grupos raciais
forma, apresentamos alguns elementos estraté- discriminados, aos povos étnicos tradicionais,
gicos para a proposição de medidas e mecanis- aos bairros operários, às populações margina-
mos efetivos de responsabilização de empresas lizadas e vulneráveis”20.
por violações aos direitos humanos.
Os danos socioambientais, que recaem sobre
1. Consideração das assimetrias de esses grupos, não se referem apenas à degrada-
gênero, raça e classe (Justiça Ambiental) ção e à contaminação dos seus ambientes de
Em que pese os avanços nas políticas sociais convivência, mas também a outras diferentes
alcançados nos últimos anos, devemos reco- formas de violações de direitos. Entre elas, a
nhecer que o Brasil ainda está distante de su- negação da participação nos processos decisó-
perar o racismo e a opressão de gênero estru- rios, a expulsão sumária, a exploração do tra-
tural. Quando se trata de violações de direitos balho, a desconsideração de suas necessidades
humanos decorrentes da atuação empresarial, históricas, as ameaças e os assassinatos. En-
pode-se dizer, sem dúvida, que os impactos são tendemos que, para produzir efetiva alteração
maiores para determinadas parcelas da popu- no quadro de injustiça social e ambiental, é
lação: negros, mulheres, crianças, adolescentes necessário alterar o modo de distribuição –
e jovens, povos indígenas, pequenos produto- desigual – de poder sobre os recursos ambien-
res rurais, quilombolas, ribeirinhos, pescadores tais, impedindo a transferência dos custos
artesanais, extrativistas, moradores de favelas, ambientais do desenvolvimento para os mais
trabalhadores sem terra e sem teto. vulneráveis.

Sob essa perspectiva, entendemos que o de- Mas para além da exclusão histórica a que es-
bate sobre direitos humanos e empresas deve ses sujeitos foram submetidos, são elas e eles
ser orientado sob o ponto de vista das popu- também fundamentais para a transformação
lações mais diretamente atingidas. A noção da realidade desigual em que vivemos. Henri
de Justiça Ambiental19 é, assim, um impor- Acselrad expressa com muita propriedade a
importância desses sujeitos: “pois o que esses
19. Ao contrário, a injustiça ambiental é o processo pelo qual movimentos tentam mostrar é que, enquanto
a implementação de políticas ambientais, ou a omissão de tais os males ambientais puderem ser transferidos
políticas ante a ação seletiva das forças de mercado, cria im-
pactos socialmente desproporcionais, intencionais ou não in-
para os mais pobres, a pressão geral sobre o
tencionais, concentrando os riscos ambientais sobre os mais ambiente não cessará. [Os movimentos] Fa-
pobres e os benefícios para os mais ricos. Estes efeitos desiguais zem assim a ligação entre o discurso genérico
ocorrem através de múltiplos processos privados de decisão, de
programas governamentais e de ações regulatórias de agências sobre o futuro e as condições históricas con-
públicas. Processos não-democráticos de elaboração e aplicação
de políticas sob a forma de normas discriminatórias, priorida- 20. Declaração de Princípios da Rede Brasileira de Justiça
des não discutidas e viéses tecnocráticos, via de regra, produzem Ambiental. Disponível em: <https://redejusticaambiental.wor-
consequências desproporcionais sobre distintos grupos sociais. dpress.com/>. Acesso em: 23 ago. 2018.

11
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

cretas pelas quais, no presente, se está defi- sos judiciais e não judiciais de discussão sobre
nindo o futuro. Aí se dá a junção estratégica reparação de violações de direitos humanos.
entre justiça social e proteção ambiental: pela Aliás, esse reconhecimento é parte integrante
afirmação de que, para barrar a pressão des- do próprio processo de reparação, na medida
trutiva sobre o ambiente de todos, é preciso em que violações de direitos humanos nor-
começar protegendo os mais fracos” 21. malmente compreendem um processo mais
amplo de ataque à própria humanidade da-
Deste modo, considerar as particularidades quele ou daquela que sofreu a violação.
desses sujeitos no momento de elaboração das
políticas públicas, bem como na enunciação Na prática, a aplicação desse princípio signi-
das normas jurídicas e na tarefa judicante, ga- fica, dentre outros desdobramentos, a parti-
rantirá real equidade, bem como contribuirá cipação efetiva dos atingidos e atingidas nos
para a real transformação de nossas relações processos de reparação, bem como a adoção
sociais. efetiva de uma linguagem de direitos huma-
nos na elaboração de normas reguladoras.
2. Princípio da Centralidade do
Sofrimento da Vítima 3. Garantia do Acesso à Justiça
Outro preceito, que deve nortear a criação e o combate à ausência de
de qualquer política de direitos humanos e responsabilização das empresas
empresas concebida no Brasil, é o princípio A demanda por um sistema eficiente de aces-
da Centralidade do Sofrimento da Vítima. so à justiça ganha destaque quando o tema é
Concebido a partir de posicionamentos do direitos humanos e empresas, tendo em vista
eminente jurista Antônio Augusto Cançado a necessidade de que a justiça seja acessada de
Trindade, em suas decisões na Corte Intera- forma mais ampliada e igualitária, que vença
mericana de Direitos Humanos, trata-se de as barreiras impostas pelas desigualdades fi-
importante pressuposto que impõe que o in- nanceira, social e representativa. A garantia
divíduo ou a coletividade, que sofreu com o do acesso à justiça não se limita a aspectos
dano decorrente da violação de direitos hu- procedimentais, faz-se necessária uma pro-
manos, deve figurar como ponto central da funda transformação estrutural que ultrapas-
discussão jurídica a respeito da reparação des- se o âmbito judicial e estabeleça, de fato, for-
se dano. Assim, de acordo com tal enunciado, mas de equilibrar a assimetria imposta pelo
a pessoa ou o grupo atingido deve participar capital, que se direcione por uma cultura de
da elaboração dos mecanismos, judiciais ou efetivação de direitos humanos e não por
não, de compensação e prevenção, de modo a uma cultura numérica liberal, que ignora a
evitar que a violação ocorra novamente. dignidade humana em nome de lucros cada
vez maiores dos atores econômicos. A lógica
A enunciação do Princípio da Centralidade que faz operar o sistema de justiça deve es-
do Sentimento da Vítima parte da compreen- tar de acordo com o princípio fundamental
são do atingido e atingida como sujeito de e central do sofrimento da vítima, conside-
direito, e não como mero objeto de proces- rando as assimetrias de classe, gênero e raça,
pois a dificuldade de arcar com as custas dos
21. ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais: o processos durante todo o desdobramento é
caso do movimento por justiça ambiental. Dossiê de Teorias
Socioambientais. Estudos Avançados. vol. 24, n. 68, São Paulo,
apenas o obstáculo mais evidente de acesso
2010. à justiça.

12
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

É imprescindível e urgente combater a re- pedagógico do que se oriundo de uma conde-


lação perversa entre empresas e judiciário. nação legal, haja vista que nos TACs, normal-
Atualmente, mais de 40% dos processos que mente há uma clausula de não assunção de
tramitam no Judiciário brasileiro relacionam- responsabilidade por aquele evento.
-se a grandes empresas e ao setor financeiro.
Além disso, deve-se considerar o racismo e o Outra dificuldade no acesso à justiça, quando
machismo como traços caracterizadores do se trata de empresas violando direitos huma-
judiciário brasileiro, que se traduzem tanto nos, diz respeito ao véu corporativo e à di-
em termos de representatividade, quanto na ficuldade de responsabilizar23 empresas pelas
perspectiva adotada nos julgamentos, que in- violações na sua cadeia produtiva, ou ainda
visibilizam as vítimas no sistema de justiça. pela dificuldade de delimitação de responsa-
bilidade no caso de sociedades empresárias.
É indispensável uma perspectiva segundo a
qual o estado deve reconhecer o desequilíbrio Com efeito, a globalização e sua busca por
que se estabelece, inclusive processualmente, maior eficiência produtiva proporcionou o
entre as empresas por um lado e atingidas e fenômeno da concentração de capitais e de
atingidos por outro. Não há capacidade de sociedades de personalidade jurídica autô-
resposta e menos ainda de reequilíbrio dessa noma, conformando uma nova técnica de
equação presente nas normativas nacionais, organização jurídica, os grupos empresariais.
em que pese o acesso à justiça ser direito reco- O grupo empresarial pode ser definido como
nhecido constitucionalmente. um conjunto de sociedades comerciais, que
conservam formalmente sua autonomia jurí-
Nesse sentido, portanto, alternativas negocia- dica, mas que ficam subordinadas a uma di-
das, como a celebração de Termos de Ajus- reção econômica unitária, que pode inclusive
tamento de Conduta (TAC)22, cuja utiliza- ser exercida por outra sociedade. Dessa forma,
ção tem se tornado cada vez mais ampla em o grupo pauta-se pela ausência de uma per-
conflitos entre empresas e comunidades atin- sonalidade jurídica única, porém o controle
gidas, deve ser vista com muita cautela, na econômico está concentrado, o que acaba por
medida em que, em muitos casos, graves vio- produzir uma dualidade entre o direito e o
lações de direitos humanos são transformadas fato. Essa ausência de regulação, satisfatória
em meras negociações entre dois sujeitos que para os grupos empresariais, reflete-se na di-
ocupam posições muito desiguais, ou ainda, ficuldade de atribuição de responsabilidade
entre empresa e outra entidade estatal, repre- pela violação de direitos24.
sentando os atingidos, sem que haja muita
possibilidade de participação dos mesmos. 23. A responsabilização no Brasil pode ser administrativa, civil,
Em consequência, a reparação obtida é quase ou penal, e funcionam de modo independente entre si. Para
sempre insuficiente na perspectiva das vítimas mais informações, conferir: VIEIRA, Flávia do Amaral; RIBEI-
RO, Cristina Figueiredo Terezo. Marco Jurídico Geral – Brasil.
e o efeito para as empresas costuma ser menos IN: MAUÉS, Antonio Moreira; VIZARRETA, Cristina Blan-
co; REIS, Helena Esser dos; MARTÍNEZ, Julían Tole (org.).
22. A possibilidade de celebração de TAC foi adicionada no or- Políticas de Regulação das Empresas Transnacionais por Vio-
denamento jurídico brasileiro por meio do Estatuto da Criança lações aos Direitos Humanos na América Latina: diagnósticos
e do Adolescente, em 1990 e, logo em seguida, o Código de nacionais, 2018, p. 47-143.
Defesa do Consumidor ampliou sua aplicabilidade aos demais 24. NEGRI, Sergio; VERDE, Romulo; FERREIRA, Lívia. Ar-
conflitos de natureza difusa, alterando a Lei da Ação Civil Pú- ranjos Empresariais Plurissocietários e a Violação de Direitos
blica. A celebração de TACs é estimulada pelo novo Código de Humanos: análise do instrumental jurídico utilizado em casos
Processo Civil, em seu art. 3º, §3º. envolvendo o Porto do Açu. HOMA, 2015.

13
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

Relacionado à questão do véu corporativo, há âmbitos, são importantes o fortalecimento e


também a questão das obrigações extraterrito- o não-retrocesso da proteção e garantias ofer-
riais, cuja enunciação pressupõe uma subversão tadas pela legislação atual.
do tradicional princípio da territorialidade e o
pressuposto de que a jurisdição de um Estado Inicialmente, é preciso recordar os Tratados e
se restringe apenas ao seu território, não alcan- Convenções Internacionais dos quais o Brasil
çando entes que estejam submetidos a outras é signatário e que impõem, principalmente
jurisdições. Na verdade, no caso da aplicação aqueles oriundos do Sistema Interamericano,
de obrigações extraterritoriais, há a sobreposi- a obrigatoriedade do controle de convencio-
ção de mais de uma jurisdição competente; ou nalidade26; isto é: a verificação da compatibi-
seja: as normas jurídicas de mais de um Estado lidade de determinada norma ou ato do Esta-
vinculam a atuação daquele ente, oferecendo do com os Tratados e Convenções dos quais
à vítima de violação de direitos humanos uma o Brasil é signatário. Apenas para exemplifi-
proteção mais ampla. A existência de obriga- car, há a Convenção Americana de Direitos
ções extraterritoriais faz especial sentido no caso Humanos, o Pacto Internacional de Direitos
da violação de direitos humanos provocada por Civis e Políticos e seu protocolo facultativo,
subsidiária de empresa matriz situada em ou- o Pacto Internacional sobre Direitos Econô-
tro país, estando, pois, à disposição da vítima micos, Sociais e Culturais, a Convenção de
duas jurisdições para alcançar a justiça. No Direitos das Crianças, dentre outras.
Brasil, existem alguns precedentes na aplicação
de obrigações extraterritoriais, principalmente Além disso, destaque especial merece a Con-
no campo trabalhista, no entanto, esta questão venção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais,
precisa ser melhor considerada e aprofundada da Organização Internacional do Trabalho
no âmbito de uma política pública, que tenha (OIT), que prescreve a obrigatoriedade da
o acesso à justiça como uma das preocupações consulta livre, prévia e informada, sempre
fundamentais, sobretudo no caso de empresas que se tratar de qualquer intervenção que
transnacionais brasileiras que exercem ativida- impacte no território de populações tradi-
des em outros países. cionais. A Convenção 169 da OIT está em
vigor no país desde 2004 e tem sido um ins-
4. Fortalecimento dos instrumentos trumento importante para resguardar a inte-
normativos já existentes gridade territorial de populações indígenas e
“Não nos falta lei, mas sim uma cultura de quilombolas Brasil afora. Em que pese res-
direitos humanos que a todos alcança, de for- paldar a própria elaboração de protocolos de
ma indistinta”25. A constatação da Procurado- consulta, por parte de comunidades indíge-
ra Federal de Direitos do Cidadão, Deborah nas e outras populações, a Convenção 169 ca-
Duprat é bastante feliz no tocante à realidade rece ainda de ser mais amplamente aplicada e
normativa brasileira: não é que não tenhamos respeitada pelos órgãos de Estado, sobretudo
lei; é que elas não são aplicadas a contento. no caso de empreendimentos para os quais as
Deste modo, mais do que aspirar a mudanças populações consultadas dizem não, além de
legislativas, que seriam bem-vindas em alguns ser fundamental sua extensão para os povos
tradicionais como um todo.
25. DUPRAT, Deborah. Apresentação ao Relatório Recomen-
dações do Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direi- 26. Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros Vs. Brasil. Exce-
tos Humanos no Brasil: status da implementação pelo governo ções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24
e empresas. Conectas, 2018, p. 9. de Novembro de 2010, Serie C, No 219, par. 176.

14
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

Além da normativa internacional, pode-se citar da Unidade de Defensores de Direitos Huma-


também a legislação relativa ao licenciamento nos da Comissão Interamericana de Direitos
ambiental, que pretende a conciliação entre o Humanos, aprofundam-se o debate e os me-
respeito ao meio-ambiente e a instalação de canismos de proteção a defensoras e defensores
empreendimentos, mas que tem sido muito de direitos humanos em nível internacional.
enfraquecida devido, dentre outras razões, ao No Brasil, a política de proteção a defensoras
sucateamento dos órgãos ambientais, fazendo e defensores de direitos humanos começou a
com que o licenciamento ambiental seja hoje ser delineada em 2003 e, em 2005, consoli-
enxergado como mera burocracia que precisa dou-se o Programa de Proteção a Defensores
ser ultrapassada. Assim, as constantes tentati- de Direitos Humanos – PPDDH. O Decreto
vas de flexibilizar o marco do licenciamento nº. 8.724/2007 foi sucedido pelo Decreto nº.
ambiental não são casuais. No entanto, preci- 8.724/2016, que retirou a sociedade civil da
samos continuar defendendo essa legislação e coordenação do PPDDH, já no alinhamento à
seguir pressionando o Estado para investir na tendência de supressão de espaços de participa-
estruturação dos órgãos de controle ambiental, ção e deliberação da sociedade civil na formu-
como o IBAMA, por exemplo. lação e controle das políticas públicas.

Outras normas nacionais que podem ser cita- De acordo com informações disponíveis no
das são: a previsão constitucional de responsa- site do Ministério dos Direitos Humanos,
bilização penal da pessoa jurídica em casos de atualmente, 342 defensores e defensoras de
crimes ambientais; as normas protetivas nas direitos humanos estão incluídos no Progra-
relações de consumo; o diploma legal sobre a ma de Proteção aos Defensores de Direitos
improbidade administrativa; a prescrição so- Humanos (PPDDH) em todo Brasil. Dentre
bre a função social da propriedade; a proteção as diversas áreas de militância, as causas indí-
constitucional dos territórios indígenas; a ex- genas e direito à terra correspondem a maior
propriação de terras em que ocorra a explora- parte dos casos27.
ção de trabalho escravo; a cassação do registro
do ICMS em caso de trabalho análogo à es- Vivemos hoje no Brasil um cenário em que
cravidão; o regime constitucional de direitos defensores e defensoras de direitos humanos
fundamentais; a vedação à prática das portas continuam a ter seus direitos severamente ne-
giratórias; as hipóteses de desconsideração da gados, incluindo o direito a lutar por direitos,
personalidade jurídica, dentre outras. ao mesmo tempo em que a política nacional
de proteção a esses sujeitos vem sendo des-
Todos esses marcos jurídicos, assim como ou- montada a passos largos. De acordo com os
tros que protejam as comunidades e indiví- dados do Comitê Brasileiro de Defensoras e
duos, precisam ser defendidos das tentativas de Defensores, só em 2017 foram assassinadas
retrocesso e reafirmados na política pública de 66 pessoas em todo o território nacional,
direitos humanos e empresas que queremos. por estarem na linha de frente da resistên-
cia nas mais diversas áreas de atuação. Vale
5. Defensoras e Defensores de Direitos ressaltar que os marcos institucionais de pro-
Humanos teção nunca estiveram de acordo com o que
A partir de 1998, com a Declaração das Na-
ções Unidas para Defensores de Direitos Hu- 27. Disponível em: <http://www.mdh.gov.br/navegue-por-te-
mas/programas-de-protecao/ppddh-1/sobre-o-ppddh>. Acesso
manos da ONU e de 2001, com a implantação em: 22 ago. 2018.

15
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

recomenda a sociedade civil. Ao menos dois porar a variável ecológica em seus negócios,
pontos importantes não foram alcançados pela através de mecanismos de mercado que fa-
política: a proteção às coletividades e a manu- voreceram a apropriação do capital sobre a
tenção do defensor ou defensora em seu terri- natureza por instrumentos financeiros, no
tório de atuação. Dito de outra forma, o Brasil momento em que crescia o debate interna-
foi precursor na formulação e adoção de uma cional sobre o desenvolvimento sustentável.
política de proteção a defensores e defensoras A década de 1980, por sua vez, marcada por
de direitos humanos, porém, essa mesma po- crescentes impactos na natureza e nas po-
lítica nunca conseguiu responder satisfatoria- pulações mais pobres, que passaram a sofrer
mente ao que se propunha na ocasião de sua diretamente os danos das externalidades am-
formulação. Entendemos que a proteção deve bientais e de direitos humanos geradas pelo
compreender, necessariamente, a garantia da capitalismo industrial, consolidou a associa-
integridade física e a presença no território. Só ção entre o debate ambiental e os interesses
assim se mantém viva a mobilização em torno de mercado. Estabeleceu-se, assim, a agenda
das pautas de direitos. Já no caso de coletivida- ecológica nos bancos, a partir da criação de
des, em muitos casos, observa-se a necessidade requisitos formais de sustentabilidade como
de proteger uma comunidade inteira, ainda condição para apoio aos projetos de financia-
mais em casos de comunidades isoladas. mento29. Ainda em 1992, na Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e De-
As práticas criminalizadoras e outras formas senvolvimento (Rio 92), foi estabelecida a re-
de ataques a defensoras e defensores de di- gulação das instituições financeiras através de
reitos humanos também partem das empre- sua responsabilidade solidária no destino dos
sas, visando despolitizar as lutas sociais que financiamentos. Tudo isso, porém, só favore-
denunciam as violações de direitos humanos, ceu a retórica do desenvolvimento sustentá-
especialmente dos direitos econômicos, so- vel, fazendo emergir um mercado da natureza
ciais, culturais e ambientais (DHESCAS)28, que só faz aprofundar os conflitos, agravar
que são efeitos do modelo de desenvolvimen- a pobreza e as desigualdades nos territórios
to fundado no crescimento econômico. onde se instalam as empresas; isto é, o capital
financeiro foi estruturado juridicamente de
Assim, para uma política efetiva de direitos forma a ganhar maior segurança para sua re-
humanos e empresas, é necessário pensar produção, sem garantir direitos.
também na proteção daquelas e daqueles que
se encontram na linha de frente na denúncia Não restam dúvidas sobre a responsabilidade
de violações de direitos humanos. É preciso dos entes financeiros pelas violações ambien-
pensar uma política que proteja esses sujeitos, tais causadas por entes viabilizados por eles. Ao
assim como suas coletividades, considerando final de 2013, quase 75% do crédito de longo
o poder econômico que as empresas detêm. prazo para empresas e 20% de todos os inves-
timentos realizados no Brasil eram concedidos
6. Controle Social sobre as Instituições pelo Banco. Na atual estratégia de desenvolvi-
de Financiamento Público
A partir de 1976, o BNDES passou a incor- 29. BRITO, Jadir Anunciação. A Responsabilidade do BN-
DES pelas Violações de Direitos Humanos. In: PINTO, José
R. L. (org). Ambientalização dos Bancos e Financeirização da
28. JUSTIÇA GLOBAL. Guia de Proteção para Defensoras e Natureza. Rede Brasil Atual, Brasília, 1ª edição, 2006, p. 75-
Defensores de Direitos Humanos, Justiça Global, 2017 93.

16
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

mento do Estado brasileiro, o BNDES ocupa, Há limitações evidentes na referida políti-


sem dúvida, um papel de protagonismo30. ca socioambiental marcada por orientações
indicativas e ausência de mecanismos trans-
Empresas estatais, como o BNDES, possuem parentes e efetivos de avaliação, controle e
um grau superior de responsabilidade quanto acompanhamento de impactos esperados
ao cumprimento das normas de direitos hu- dos projetos, bem como do cumprimento de
manos e devem tomar medidas concretas para eventuais condicionantes previstas nos licen-
evitar que agentes privados cometam abusos, ciamentos. Ao mesmo tempo, o BNDES não
como a usurpação ilegal de terras indígenas, a prevê sanções contratuais no caso de even-
poluição de rios e lagos, o deslocamento força- tuais danos e passivos socioambientais gera-
do de comunidades sem a devida compensação dos pelos projetos. O Banco trabalha menos
(ferindo seu direito à moradia, por exemplo), na perspectiva de condicionalidades e mais na
entre outras violações. O grau superior de res- de incentivos às chamadas “boas práticas so-
ponsabilidade do BNDES pela proteção dos cioambientais”. Desse modo, ao financeirizar
direitos humanos não tem qualquer vinculação relações que deveriam se pautar pela obser-
com a sua capacidade de desembolsos, muito vância de direitos, o BNDES ajuda a fragili-
embora seja evidente que uma maior dispo- zar ainda mais os padrões que consolidam as
nibilidade de recursos para obras, empresas e políticas ambientais brasileiras33.
atividades potencialmente violadoras dos di-
reitos humanos resulte em um maior número Deste modo, para alcançar uma política pú-
de abusos e que as soluções para enfrentar o blica em direitos humanos e empresas, na
problema se tornem mais complexas. O dever qual os direitos humanos sejam uma priori-
do BNDES de garantir que nenhum de seus dade, é preciso ter em conta também o papel
empréstimos resultará em abusos é, portanto, dos órgãos públicos de financiamento. É pre-
uma obrigação jurídica, podendo ser requerida ciso pensar em instrumentos de transparência
e cobrada a qualquer tempo, independente- e controle social sobre as transações do BN-
mente da conjuntura econômica31. DES, de modo a contar com um Banco de
Desenvolvimento que efetivamente respeite
Com relação à responsabilização jurídica pelas os direitos humanos.
violações de direitos, vale lembrar que o BN-
DES, não se limita ao papel de financiador de
projetos, o banco integra o corpo de acionis-
tas de várias empresas e conglomerados que
promovem o empreendimento beneficiado.
Assim, nesses casos, não há que se falar em res-
ponsabilidade indireta ou solidária, mas, sim,
uma responsabilidade direta e subsidiária32.

30. BORGES, Caio. Desenvolvimento para as pessoas? O Fi-


nanciamento do BNDES e os Direitos Humanos. Conectas
Direitos Humanos, São Paulo, ago. 2014.
31. Ibidem
32. PINTO, José R. L. (org.). Ambientalização dos Bancos e
Financeirização da Natureza. Rede Brasil Atual, Brasília, 1ª edi-
ção, 2006. 33. Ibidem

17
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

2. A proteção e reparação de ou comunidades pobres, bem como povos


direitos humanos em relação indígenas e demais povos e comunidades tra-
a atividades empresariais34 dicionais – como os povos das florestas e ri-
Deborah Duprat, Edmundo Antônio Dias beirinhos, pequenos agricultores, pescadores,
e Marlon Alberto Weichert vazanteiros, geraizeiros, veredeiros, entre tan-
tos outros – são mais intensamente atingidos
Contextualização por empreendimentos empresariais que tão co-
mumente constituem a negação mesma de sua
O desenvolvimento nacional, nos termos do cosmovisão. São diversos os direitos ameaçados
artigo 3º, inciso II, da Constituição de 1988, ou violados: à vida, à integridade física, à segu-
constitui objetivo fundamental do país. Para rança, à moradia, ao trabalho digno, à saúde, à
a consecução desse objetivo, não há nenhuma água, à alimentação adequada, à cultura, à me-
dúvida sobre a importância de investimentos mória, à informação e ao real e pleno desenvol-
de longo prazo, capazes de gerar e distribuir vimento. A desproporcional e grave afetação
riqueza, o que, não obstante, deve concorrer de direitos dessas populações, associada ao fato
para o atingimento dos demais objetivos elen- de o desenvolvimento ter se consolidado com
cados no mesmo artigo, inclusive o de erradi- o agravamento do quadro de desigualdade so-
car a pobreza e a marginalização e reduzir as cial, tem evidenciado a tensão entre atividades
desigualdades sociais e regionais (CF, artigo empresariais e direitos humanos.
3º, I e III). Essa conjugação de desenvolvi-
mento com repercussões sociais coaduna-se Para lidar com a complexidade desse suposto
com a estipulação, também constitucional, antagonismo entre empreendimentos empresa-
de que a livre iniciativa, a cidadania, a digni- riais e direitos humanos, a sociedade civil na-
dade humana e os valores sociais do trabalho cional e internacional tem crescentemente de-
integram os pilares do Estado Democrático mandado o aperfeiçoamento dos instrumentos
de Direito brasileiro (CF, artigo 1º, I, II e IV). e marcos jurídicos para a proteção e promoção
dos direitos humanos por parte das empresas.
Não obstante, a história brasileira e mundial re-
vela que as atividades empresariais, embora se- É fato que as normas e políticas de proteção e
jam indispensáveis para o crescimento econômi- promoção aos direitos humanos foram cons-
co, muito amiúde geram inúmeros e igualmente truídas originalmente para fazer face ao papel
grandiosos impactos negativos (por vezes irrever- do Estado, reputado o único potencial viola-
síveis) de caráter socioambiental e não raro viola- dor desses direitos. Não obstante, hodierna-
ções aos direitos humanos. Ou seja, ao invés da mente atores não-estatais são também consi-
livre iniciativa e do desenvolvimento impulsio- derados como agentes potenciais de violação
narem a afirmação do Estado de bem-estar so- aos direitos humanos, quando caracterizados
cial, terminam por antagonizar essa perspectiva. que exercem um poder de fato (como se fos-
sem funções de governo) ou se apresentem
Nesse processo, as populações em situação de na relação com particulares numa situação de
maior vulnerabilidade são as mais intensamen- superioridade de poder social.
te atingidas. Daí que moradores de periferias
Dentre esses atores não-estatais, assume rele-
34. Nota Técnica Nº 7/2018, Ministério Público Fede- vo o papel das empresas e, sobretudo, das cor-
ral, Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão, PGR-
00478343/2018 porações transnacionais, as quais muitas vezes

18
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

possuem poder econômico e político superior pios Orientadores sobre Empresas e Direitos
ao das próprias instituições estatais2. Humanos5.

Nos termos da Constituição brasileira, as ati- Diversas entidades da sociedade civil brasi-
vidades empresariais devem se reger de acor- leira acompanham e interagem com o tema
do com os princípios gerais da atividade eco- da proteção de direitos humanos em face de
nômica inscritos nos artigos 170, dentre os atividades empresariais e demandaram da
quais se destacam: a valorização do trabalho Procuradoria Federal dos Direitos do Cida-
humano, a livre iniciativa, a função social da dão – PFDC a constituição de um grupo de
propriedade, a defesa do meio ambiente e a trabalho interno para monitorar a atividade
redução das desigualdades regionais e sociais. do Estado na matéria6. Levando em conside-
Esses princípios devem nortear a produção de ração a necessidade de avaliar a demanda para
normas infraconstitucionais e a jurisprudên- o Brasil instituir um Plano de Ação Nacional,
cia nacionais, conformando normativamente bem como a posição do país no processo de
a relação entre as empresas e a sociedade acer- discussão do tratado internacional referido e,
ca do respeito aos direitos humanos. após reflexões do grupo de trabalho interno e
interlocuções com órgãos do governo e a pró-
No plano internacional, o Conselho de Direi- pria sociedade civil, a PFDC emite a presente
tos Humanos das Nações Unidas lidera duas Nota Técnica para externar a sua visão sobre
iniciativas paralelas de reforço dos marcos esses processos. O tema demanda a tomada
normativos sobre direitos humanos e empre- de decisões por parte do Estado e da socieda-
sas. A primeira deu origem à criação do Gru- de brasileiros, à vista dos dois processos inter-
po de Trabalho Empresas e Direitos Huma- nacionais referidos e do histórico de violações
nos (Working Group on Business and Human de direitos humanos por empresas no Brasil,
Rights 3), cujo mandato se refere à dissemina- do qual se podem destacar, dentre muitos, os
ção e implementação dos Princípios Orien- casos: do rompimento da barragem de Fun-
tadores sobre Empresas e Direitos Humanos, dão, operada pela empresa Samarco, em Ma-
elaborados pelo Professor John Ruggie, por riana/MG; da construção da usina hidrelétri-
solicitação do Secretário-Geral das Nações ca de Belo Monte, no rio Xingu, estado do
Unidas, e aprovados pelo Conselho de Direi- Pará; de diversos danos provocados em distin-
tos Humanos, em 2011. A segunda diz res- tos locais do país e do planeta pelas atividades
peito à proposição e discussão de um tratado mineradoras da Vale S/A; de funcionamento
internacional sobre o tema, atualmente em da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do
fase de discussão do primeiro rascunho4. Atlântico – TKCSA, no Rio de Janeiro, sem
licença ambiental; de expansão das frontei-
No contexto das atividades estimuladas pelo ras do agronegócio no cerrado com expulsão
Grupo de Trabalho Direitos Humanos e Em- dos povos tradicionais de sua terra e grave
presas da ONU, um dos temas centrais é a prejuízo ao fornecimento de água às popula-
recomendação aos Estados para que adotem ções urbanas e rurais; dos danos ambientais e
um Plano de Ação Nacional, definido como questões fundiárias relacionados à ampliação
uma estratégia política evolutiva desenvolvi- do Porto de Suape, em Pernambuco; de va-
da por um Estado para a proteção contra os zamento de rejeitos da Hydro Alunorte, em
impactos adversos em direitos humanos por Barcarena, no Pará.
empresas, em conformidade com os Princí-

19
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

As atividades empresariais e os ao tema da proteção dos direitos humanos em


direitos humanos face das atividades empresariais: a necessidade
de construção de um arcabouço jurídico claro
A tensão entre atividades empresariais e di- sobre as obrigações das empresas, associada a
reitos humanos não é uma questão nova. É um sistema de reparações efetivo e de contro-
praticamente um truísmo afirmar que as vio- le eficiente. Sem um mecanismo abrangente
lações de direitos humanos praticadas pelos que equilibre a correlação de forças e impac-
Estados estão, em regra, associadas com in- te os processos decisórios das corporações, a
teresses econômicos ou financeiros. Seja em defesa dos direitos humanos sempre estará
conflitos internacionais ou internos, como em risco diante das demandas econômicas
em regimes autoritários ou de relativa demo- e financeiras das empresas. A proteção dos
cracia, as violações ocorrem em contextos de direitos humanos não pode ser interpreta-
proteger, facilitar ou privilegiar interesses de da como uma faculdade ou mera responsa-
grupos sociais e suas respectivas pretensões bilidade social voluntária. Ela deve estar no
econômicas. Também como padrão usual, a cerne de todo e qualquer processo decisório
investida contra direitos humanos se faz com do negócio. No atual estágio civilizatório, é
o argumento da necessidade de acelerar o de- intolerável que a atividade econômica possa
senvolvimento econômico, ainda que muitas sacrificar a dignidade humana em prol de re-
vezes essa justificativa se associe a outras de sultados financeiros. Ou seja, o respeito aos
caráter político ou social, tais como necessi- direitos humanos deve ser premissa em qual-
dade de repressão a grupos subversivos, cri- quer processo decisório.
minosos etc.
A necessidade de os Estados atraírem investi-
É preciso reconhecer, também, que as empre- mentos das empresas mediante a redução de
sas desenvolvem suas atividades econômicas custos de operação e de implantação de em-
com o objetivo de remunerar os sócios e acio- preendimentos provoca o fenômeno da deno-
nistas, ou seja, ter lucro. Esse é um elemen- minada “corrida ao fundo do poço”. Ou seja,
to essencial do sistema político-econômico os Estados competem entre si como os locais
albergado na Constituição brasileira (assim “mais baratos” para o negócio, o que impõe
como nas constituições de todos os países ca- sacrifícios tanto no plano tributário (guerra
pitalistas) sob o princípio da livre iniciativa. fiscal) – e, consequentemente, na capacida-
Esse propósito, disso não há nenhuma dúvi- de do Estado de promover direitos sociais e
da, é lícito e estimulado pelo Estado. econômicos – como no plano das obrigações
de fazer ou não-fazer das empresas, notada-
Entretanto, o objetivo de lucro impõe às ad- mente nos campos ambiental, de proibição
ministrações das empresas uma enorme pres- de uso de mão de obra em situações análogas
são para minimizar custos e despesas e, em à escravidão, de observância de normas sani-
consequência, maximizar ganhos. Evidente tárias, de facilitação na ocupação da terra e o
que essa lógica comprime os investimentos ou consequente uso indiscriminado do despejo,
gastos em garantia e proteção dos direitos hu- de deslocamento forçado de populações. Ou
manos, especialmente quando o marco nor- seja, compromete-se o respeito aos direitos
mativo ou a fiscalização das regras existentes humanos em geral, como modo de privilegiar
são fracos. Nesse particular, já sobressai um o investimento empresarial.
aspecto, que soa central à PFDC, em relação

20
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

É injustificável que uma mesma corporação reza da atividade vis a vis o impacto socioam-
possa adotar patamares distintos de proteção biental (v.g., negócios de mineração, óleo e
e respeito aos direitos humanos em razão da gás, agricultura, pecuária, papel e celulose e
localização de seu empreendimento. A multi- hidrelétrica afetam o meio ambiente, a mora-
plicidade cultural e os diferentes estágios de dia e as atividades econômicas tradicionais do
desenvolvimento social das sociedades não entorno etc.) e (c) natureza da atividade vis
podem servir de pretexto para a assimetria a vis a destinação e disponibilização de seus
dos padrões de dignidade, principalmente no produtos e serviços (v.g., indústrias bélicas, de
que diz respeito aos direitos humanos defini- serviços de segurança e farmacêutica; serviços
dos no direito internacional. A desqualifica- privados de saúde e educação; os bens pro-
ção e discriminação de determinadas popula- duzidos ou serviços prestados pelas empresas
ções no tocante à intensidade de respeito aos coincidem com, ou tangenciam, os bens ju-
seus direitos fundamentais remete às práticas rídicos protegidos pelo conceito de direitos
da escravidão e do colonialismo. humanos).

Por esse motivo, a PFDC defende o reforço Os Estados, internamente ou entre si, deve-
do sistema normativo, nacional e internacio- riam adotar padrões normativos e mecanis-
nal, sobretudo para que as corporações trans- mos de controle mais fortes diante de tais
nacionais sejam obrigadas a adotar o mesmo atividades, justamente pelo maior risco que
padrão de proteção aos direitos humanos em trazem aos direitos humanos. Não obstante,
todos os países e comunidades em que atuam, o que muitas vezes se nota é, de maneira ine-
direta ou indiretamente. Com isso, se privi- quívoca, o contrário: a flexibilização de obri-
legiará o princípio da máxima proteção (pro gações para atrair esses investimentos, espe-
homine) e da igualdade. Vale dizer, em todas cialmente porque são iniciativas empresariais
as etapas da operação e em todos os países em que alocam vultosos recursos e incrementam
que atuem, deveriam as corporações seguir o as pautas de exportação, o que favorece o dis-
modelo mais elevado de respeito aos direitos curso desenvolvimentista à custa da precau-
humanos, notadamente aqueles consagrados ção e proteção social e ambiental. Ademais,
no direito internacional e permeáveis a distin- não é raro esses investimentos estarem asso-
tos graus de intensidade de implementação7. ciados a interesses de alguns grupos influen-
tes politicamente, o que é determinante no
Outro aspecto relativo aos impactos das ati- desinteresse estatal de impor a prevenção de
vidades empresariais em face dos direitos hu- riscos socioambientais como condição para a
manos é que eles variam em razão dos setores aprovação da implementação do empreendi-
ou ramos da atividade econômica. De fato, mento ou seu constante monitoramento.
algumas áreas ou atividades têm risco mais
elevado de produzirem violações aos direi- Associando-se a tais circunstâncias, a consta-
tos humanos em razão de natural tensão que tação de que a globalização promoveu uma
provocam, tais como nos seguintes casos: (a) expressiva oligopolização no plano interna-
tamanho do empreendimento vis a vis o im- cional do mercado em que atuam as grandes
pacto socioambiental (v.g., a implantação de corporações transnacionais, é possível per-
grandes indústrias, fazendas ou aglomerados ceber a limitada capacidade que os Estados
notoriamente provocam remoção de pessoas possuem, isoladamente, de enfrentar essas
e modificações no meio ambiente), (b) natu- pressões. Esse cenário recomenda, pois, que

21
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

normas internacionais sejam adotadas para uma vida próspera e de plena realização pessoal,
nivelar minimamente os padrões de respeito e e que o progresso econômico, social e tecnológi-
proteção aos direitos humanos, bem como de co ocorra em harmonia com a natureza (Ob-
capacidade de responsabilização das empresas jetivo 10). De fato, há um reconhecimento
por impactos negativos e violações. do passivo de violação aos direitos humanos
por decorrência do modelo de investimentos
Ou seja, os Estados – inclusive o Brasil – de- adotados pelos países mais desenvolvidos nas
vem adotar, no âmbito doméstico, políticas regiões do sul do planeta e uma convocação
públicas de efetivo reforço da proteção aos para a mudança desse paradigma. A Agenda
direitos humanos diante de atividades em- 2030 se coaduna com a Constituição brasi-
presariais e, concomitantemente, instituir leira e ambos assumem que crescimento eco-
um sistema internacional que reduza, afaste nômico sem promoção dos direitos humanos
ou limite o poder das empresas de impelirem não é desenvolvimento.
os Estados para o caminho da flexibilização
ou relativização dos direitos humanos, sob o Desenvolvimento normativo –
falso argumento da priorização do desenvol- os Princípios Orientadores das
vimento econômico. Nações Unidas e os Planos de
Ação Nacional
Com efeito, o desenvolvimento econômico
desassociado da promoção dos direitos hu- Na última década, o tema de empresas e di-
manos e da redução da desigualdade social reitos humanos ganhou projeção na comuni-
revelou-se uma falácia, pois apropria-se de re- dade internacional. Após algumas iniciativas
cursos naturais e sociais coletivos em favor de anteriores, em 2011, o Conselho de Direitos
pequenos grupos8. Em realidade, o próprio Humanos das Nações Unidas aprovou o rol
desenvolvimento deve ser entendido também de Princípios Orientadores sobre Empresas e
como um direito humano, a ser apropriado Direitos Humanos, elaborado pelo Professor
coletivamente. O conceito de desenvolvi- John Ruggie, por solicitação do Secretário-
mento evidencia a dimensão humana, como -Geral da ONU. Eles podem ser entendidos
destaca a Declaração da ONU sobre o Direi- como um primeiro passo no caminho de afir-
to ao Desenvolvimento (1986), em seu artigo mação de uma normativa cogente.
2º: A pessoa humana é o sujeito central do de-
senvolvimento e deveria ser participante ativo e Entretanto, os Princípios Orientadores não
beneficiário do direito ao desenvolvimento. Sig- possuem força cogente por si só e integram o
nifica compreender que só há desenvolvimen- denominado soft law do direito internacional,
to de fato, quando houver melhora na vida ou seja, “direito brando”, em livre tradução.
de todas as pessoas e coletividades direta ou Assim, os princípios não criam deveres aos
indiretamente afetadas pelo processo. Estados, embora incidam como eixo interpre-
tativo e referencial na aplicação de outras nor-
Aliás, os Estados recentemente se compro- mas imperativas atinentes a direitos humanos
meteram, com a subscrição da Agenda 2030, e empresas.
das Nações Unidas, relativa aos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável, a combater as Nesse sentido, órgãos de tratado da ONU
desigualdades dentro e entre os países e assegurar os adotam como parâmetro na aplicação das
que todos os seres humanos possam desfrutar de convenções sobre direitos humanos. Cite-se,

22
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

a título de exemplo, a Observação Geral 16 sultiva 23/2017 (Meio Ambiente e Direitos


do Comitê sobre Direitos da Criança, vincu- Humanos)13.
lado à Convenção sobre Direitos da Criança9
e a Observação Geral 24, do Comitê de Di- Os Princípios Orientadores estão estrutura-
reitos Econômicos, Sociais e Culturais10, que dos em três pilares: proteger, respeitar e re-
explicitam critérios de aplicação desses trata- parar. O documento enfatiza que a função de
dos na perspectiva do respeito pelas empresas proteger é dos Estados, assim como a missão
aos Direitos Humanos. de garantir mecanismos judiciais e extraju-
diciais de reparação. Outrossim, as empresas
No caso do continente americano, os Princí- devem agir para respeitar os direitos huma-
pios Orientadores dialogam com a Carta da nos. Os princípios foram formulados consi-
Organização dos Estados Americanos, a qual derando que todas as empresas, independen-
prevê, no art. 36, que “[a]s empresas transna- temente de sua dimensão, setor, localização,
cionais e o investimento privado estrangeiro proprietários e estrutura, realizam atividades
estão sujeitos à legislação e à jurisdição dos que podem gerar impactos nos direitos hu-
tribunais nacionais competentes dos países re- manos. Não há, portanto, ênfase nas corpora-
ceptores, bem como aos tratados e convênios ções transnacionais. Os principais pontos dos
internacionais dos quais estes sejam parte, e Princípios Orientadores são:
devem ajustar-se à política de desenvolvimen-
to dos países receptores”, e, no art. 45, alínea • Os Estados têm o dever primário de pre-
“e”, que “[o]s Estados membros, convencidos venir, investigar, punir e reparar os abusos
de que o Homem somente pode alcançar a aos direitos humanos cometidos em seus
plena realização de suas aspirações dentro territórios por empresas e devem estabe-
de uma ordem social justa, acompanhada de lecer que todas as empresas domiciliadas
desenvolvimento econômico e de verdadeira em seu território respeitem os direitos hu-
paz, convêm em envidar os seus maiores es- manos.
forços na aplicação dos seguintes princípios
e mecanismos: (…) O funcionamento dos • Os Estados devem fazer as empresas res-
sistemas de administração pública, bancário peitarem os direitos humanos, assegurar
e de crédito, de empresa, e de distribuição e que a atividade econômica não restrinja,
vendas, de forma que, em harmonia com o mas sim propicie o respeito aos direitos
setor privado, atendam às necessidades e inte- humanos, assessorar as empresas sobre
resses da comunidade”. como respeitar os direitos humanos e es-
timular ou exigir que as empresas infor-
A Corte Interamericana de Direitos Huma- mem sobre como lidam com o impacto
nos, nessa linha, reconhece-os como parte do de suas atividades sobre os direitos huma-
conjunto de normas de proteção dos direitos nos.
humanos, com as quais, aliás, tem construído
sua jurisprudência em relação às responsabi- • Os Estados têm responsabilidade mais
lidades das empresas relativas aos direitos hu- elevada no que diz respeito às empresas
manos. Cite-se, nesse sentido, o caso Pueblos estatais ou apoiadas pelo governo, inclu-
Kaliña y Lonoko vs. Suriname11; a Opinião sive com créditos públicos, seguros ou in-
Consultiva 22/2016 (Titularidade de Direi- vestimentos.
tos das Pessoas Jurídicas)12, e a Opinião Con-

23
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• O Estado deve observar se as empresas • As empresas devem estar preparadas para


que contrata promovem o respeito aos di- comunicar as medidas adotadas para en-
reitos humanos. frentar os impactos de suas atividades, so-
bretudo quando os afetados demonstrem
• Os Estados devem ter normas adequadas preocupações.
para garantir o cumprimento de obriga-
ções de direitos humanos nos acordos que • As empresas, cujas operações ou contex-
firmam com outros Estados ou com em- tos operacionais impliquem graves riscos
presas, inclusive por meio de tratados e de impacto, devem informar oficialmente
contratos de investimento. as medidas que tomam a esse respeito.

• As empresas devem se abster de infringir • As empresas devem reparar ou contribuir


os direitos humanos de terceiros e enfren- para reparação dos impactos adversos que
tar os impactos negativos nos quais te- provocaram ou contribuíram para que
nham algum envolvimento. fossem provocados.

• A responsabilidade das empresas no to- • As empresas devem respeitar os direitos


cante aos direitos humanos internacional- humanos internacionalmente reconheci-
mente reconhecidos. dos onde quer que operem.

• As empresas devem evitar que suas pró- • Os Estados devem adotar mecanismos
prias atividades gerem impactos negativos judiciais de reparação apropriados e efi-
sobre os direitos humanos, enfrentar as cazes, assim como modos de denúncia
consequências quando essas ocorrerem, extrajudiciais, como parte de um sistema
prevenir ou mitigar os impactos negativos estatal integral de reparação das violações
diretamente relacionados com operações, de direitos humanos relacionadas com
produtos ou serviços de suas relações co- empresas. Também deve facilitar o acesso
merciais. a mecanismos não-estatais de denúncia.

• As empresas devem contar com políticas • As empresas, bem como corporações in-
e procedimentos adequados em razão dustriais e associações de múltiplas partes,
do seu tamanho e circunstâncias, em es- devem estabelecer ou participar de meca-
pecial: compromisso de assumir sua res- nismos de denúncia eficazes.
ponsabilidade; auditoria (due diligence)
para identificar, prevenir, mitigar e pres- • Os mecanismos não-judiciais estatais ou
tar contas de como abordam seu impacto não-estatais são eficazes quando: legíti-
sobre os direitos humanos; e processos de mos, acessíveis, previsíveis, equitativos,
reparação. transparentes, compatíveis com os direi-
tos e fonte de aprendizagem. Esses meca-
• As empresas devem integrar as conclusões nismos devem se basear na participação e
de suas avaliações de riscos e impactos no no diálogo.
marco de suas funções e processos inter-
nos, e acompanhar a eficácia de sua pró- A edição e o conteúdo dos princípios orienta-
pria resposta. dores, embora positivos em uma perspectiva

24
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

evolutiva, têm sido objeto de diversas críticas ção de políticas voluntárias pelas empresas,
por parte da sociedade civil e da academia, sem reforçar o conceito de que toda violação
sobretudo por terem ficado muito aquém do de direitos humanos deve ser reparada inte-
que se reputa possível e indispensável para gralmente, mediante restituição, compensa-
efetivar a proteção dos direitos humanos em ção, reinserção e garantias de não-repetição,
face de atividades empresariais14. Com efeito, (d) desenvolve o tema com privilégio à visão
e até mesmo por terem sido editados em um e linguagem das empresas, em detrimento da-
instrumento não vinculante, percebe-se que quela das vítimas e dos atingidos, e (e) carece
não se menciona uma proibição de violação de previsões claras da obrigação das empresas
aos direitos humanos, mas sim a adoção de desenvolverem seus empreendimentos, inclu-
uma semântica eufemística de “evitar” viola- sive extrativistas, apenas após consulta prévia,
ções e desenvolver “políticas” para a prevenção livre e informada às populações atingidas.
e a reparação. Nota-se, também, a ausência
de obrigações diretas às empresas de adoção Na sequência da aprovação dos Princípios
de medidas preventivas eficazes, construídas Orientadores, o Conselho de Direitos Hu-
com a participação da população atingida manos da ONU instituiu um Grupo de Tra-
pelo empreendimento. O documento parece balho para difundir a sua implementação. A
admitir uma certa tolerância com a violação principal ferramenta para tanto seria a imple-
de direitos humanos por empresas. Ademais, mentação de Planos de Ação Nacional pelos
segue-se atribuindo aos Estados funções ex- Estados. Até o momento, 21 países editaram
clusivas de proteção, sendo necessário, em planos, dentre eles: Chile, Colômbia, Alema-
determinados casos, avançar para o reconhe- nha, Espanha, Reino Unido, Holanda, Dina-
cimento da corresponsabilidade empresarial marca, Finlândia e Estados Unidos16.
por uma proteção deficiente, especialmente
no caso de corporações transnacionais. No Brasil, o Ministério de Direitos Huma-
nos realiza estudos de base para a elaboração
Reafirmando que interpreta os Princípios do plano e instituiu o Comitê Empresas e
Orientadores como uma bem-vinda etapa na Direitos Humanos, com a finalidade de bus-
construção de normas mais efetivas, a PFDC car meios de implementação dos princípios
também reconhece a insuficiência desse arca- orientadores; propor parâmetros comuns
bouço para lidar com o tema da violação de aplicáveis à atuação das empresas privadas,
direitos humanos por empresas, especialmen- empresas de economia mista ou empresas es-
te porque (a) passa ao largo da necessidade tatais, no que se refere ao respeito aos direitos
de enfrentar o fenômeno da “corrida para o humanos; analisar as questões apontadas pela
fundo do poço”, ou seja, apontar a responsa- sociedade civil, pelos centros de pesquisa, pe-
bilidade direta das empresas pela indução de los órgãos de controle, pelo Ministério Públi-
governos a reduzirem custos sociais e exigên- co, pela Defensoria Pública e pela Ouvidoria
cias protetivas ao meio ambiente e aos demais Nacional de Direitos Humanos, e propor en-
direitos humanos como condição para a alo- caminhamentos; solicitar informações, bem
cação de investimento, (b) não aborda a ne- como monitorar ações de empresas no perti-
cessidade de os Estados adotarem a jurisdição nente aos direitos humanos; estimular que as
universal ou quase- universal15 para apreciar empresas privadas comuniquem e reportem
casos de violações aos direitos humanos por suas ações estratégicas para o pleno respeito
corporações transnacionais, (c) enfatiza a ado- dos direitos humanos e indiquem os impactos

25
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

de suas atuações; realizar diagnósticos e ela- O eventual Plano deve adotar como pon-
borar estudos sobre a temática; fazer propos- to de partida o “estado da arte” da proteção
tas de atos normativos ou de ações específicas de direitos humanos em face de atividades
sobre o tema; articular ações intersetoriais, in- empresariais no Brasil, tal como se encontra
terinstitucionais e interfederativas para o for- prevista em marcos normativos ou reconheci-
talecimento do respeito dos direitos humanos da em precedentes jurisprudenciais, notada-
pelas empresas; e apresentar relatórios de suas mente porque, em diversas hipóteses, o Brasil
atividades e avanços17. está em patamar superior de proteção àquele
recomendado nos Princípios Orientadores.
A PFDC valora positivamente a proposta e Afinal, não será juridicamente válido, à luz
o esforço do Conselho de Direitos Humanos do princípio da proibição do retrocesso, que
das Nações Unidas de instituição de planos um Plano de Ação Nacional pugne por uma
de ação nacionais, bem como do Ministério situação de proteção, respeito e reparação que
dos Direitos Humanos de criar um Comitê esteja aquém daquela existente no sistema ju-
Empresas e Direitos Humanos. rídico brasileiro.

Todavia, entende que, no caso do Brasil, pre- Em acréscimo, é preciso ressaltar que os pla-
viamente à mobilização de esforços para a ela- nos de ação nacionais são, em regra, editados
boração de um Plano de Ação Nacional, deve- como um conjunto de normas não-vinculan-
-se ponderar se a medida é adequada diante do tes, o que acarreta limitado impacto na rea-
quadro histórico. É preciso ter presente o risco lidade. Com efeito, uma política pública de
de que os défices de representatividade demo- direitos humanos em face de empresas depen-
crática das instituições brasileiras acarretem a de, em diversos aspectos, de lei em sentido
falta de legitimidade do Plano, sobretudo se estrito ou tratados e convenções internacio-
houver desequilíbrio de forças entre os múlti- nais, sobretudo porque o seu cerne perpassa
plos atores que devem tomar parte num pro- necessariamente a definição de obrigações
cesso dessa natureza. Além disso, a definição para agentes privados e regras sobre o exercí-
de políticas de direitos humanos deve adotar cio da jurisdição, temas adstritos ao princípio
como ponto de partida as demandas das víti- da legalidade.
mas e potenciais atingidos e, portanto, estas
devem ter garantias de que o processo lhes A PFDC anota que, em diversos campos, o
oportunizará posição compatível com essa pre- Brasil, através de leis ou jurisprudência, de-
missa. Ou seja, a construção deve ser coletiva, finiu normas importantes e vinculantes para
em um processo de ampla interlocução com a atividade empresarial em face dos direitos
a sociedade civil. Pode-se exemplificar com o humanos. No plano ambiental, cabe destacar
que foi adotado para a elaboração do Terceiro o artigo 225 da Constituição Federal, o qual
Plano Nacional de Direitos Humanos. incorporou ao direito constitucional a exigên-
cia de estudos de impacto ambiental prévios
Ainda, é preciso ter em conta que o Plano à instalação de obra ou atividade potencial-
tem sido recomendado como uma medida de mente causadora de significativa degradação
concretização dos Princípios Orientadores e, do meio ambiente e a previsão de reparação
portanto, devem ser consideradas e superadas integral de danos por parte daquele que pra-
as críticas acima referidas ao conteúdo e à lin- tica condutas lesivas ao ambiente natural ou
guagem adotada em referidos princípios. explora recursos minerais. Com semelhante

26
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

significação, a ratificação pelo Brasil da Con- Ademais, não se pode negligenciar que, dian-
venção nº 169, da Organização Internacional te do atual momento nacional e internacional
do Trabalho (OIT), que dispõe, entre outros de enfraquecimento de institutos e institui-
direitos fundamentais, sobre a consulta pré- ções de direitos humanos, a reabertura de dis-
via, livre e informada a povos e comunidades cussão sobre patamares já consolidados traz
tradicionais, cuja aplicação tem sido reconhe- riscos concretos de retrocesso.
cida em diversos precedentes judiciais18. Tam-
bém merecem destaque as normas de respon- Assim, a PFDC considera que, embora a
sabilização criminal da pessoa jurídica nos aprovação de um Plano de Ação Nacional
casos de crimes ambientais, as protetivas do possa – se atendidas as indispensáveis condi-
cidadão nas relações de consumo, as relativas ções acima apontadas – constituir uma inicia-
à responsabilização por atos de improbida- tiva relevante, o “estado da arte” da matéria
de administrativa e de corrupção, as normas no Brasil, as contingências políticas nacio-
trabalhistas e a especialização da Justiça do nais e internacionais e o potencial limitado
Trabalho, a qual funciona como garantia da dos princípios de Ruggie requerem cautela na
jurisdição célere e sensível às peculiaridades condução do processo.
da relação do trabalho. Ainda, o artigo 170,
da Constituição Federal, que vincula a ordem No caso do Brasil, pode ser mais recomen-
econômica aos princípios da função social da dável – se e quando houver condições demo-
propriedade, da defesa do meio ambiente, da cráticas favoráveis – investir na formulação de
redução das desigualdades sociais e regionais uma política pública abrangente em direitos
e a busca do pleno emprego e o artigo 243, humanos e empresas, inclusive para estender
que determina a expropriação de terras nas os precedentes normativos positivos consoli-
quais ocorra a exploração de trabalho escravo. dados na legislação e na jurisprudência para
todos os casos de violações aos direitos hu-
Some-se a isso a edição da Lei 12.846 de manos (v.g., responsabilidade criminal das
2013, prevendo sanções a empresas por atos pessoas jurídicas, não restrita às hipóteses
praticados contra o patrimônio público na- atuais; obrigatoriedade de consulta prévia a
cional ou estrangeiro, contra princípios da todas as populações potencialmente afetadas
administração pública ou contra os compro- por empreendimentos; ampliação dos deveres
missos internacionais assumidos pelo Brasil, de reparação; jurisdição universal ou quase-
cuja leitura também deve ser feita a partir da -universal; responsabilidade por atividades de
proteção aos direitos humanos. toda a cadeia produtiva; previsão de parâme-
tros claros de equidade de gênero, comuns a
O “estado da arte”, portanto, não é incipiente empresas estatais e privadas, inclusive no se-
e, em vários temas, ultrapassa os patamares tor da mineração, em que se observam graves
que poderiam ser oferecidos por postulados exemplos de desigualdade; fortalecimento do
de um Plano de Ação Nacional não vinculan- enfoque de gênero nos estudos de impacto
te. É evidente que o cenário de violações aos ambiental de empreendimentos empresa-
direitos humanos por empreendimentos em- riais). Essa política pública seria construída
presariais ainda é obsceno no país, mas, certa- em discussão com os múltiplos atores interes-
mente, não será a exortação a procedimentos sados – e, sobretudo, com as pessoas afetadas
voluntários que terá a capacidade de alterar e atingidas por atividades empresariais – e
substancialmente esse quadro. compreenderia avanços legislativos que esta-

27
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

beleçam um conjunto normativo vinculante ou natural que alegadamente cometeu os


e compatível com a promoção do desenvol- atos ou omissões é domiciliada.
vimento sustentável, nos termos da Agenda
2030 das Nações Unidas, assim como com os • Considera-se que a empresa é domiciliada
marcos apontados pelos diferentes órgãos de no local: de sua sede estatutária, da admi-
tratado da ONU e pela Corte Interamericana nistração central, de onde possua substan-
de Direitos Humanos. cial interesse de negócios, ou onde tenha
subsidiária, agência, órgãos instrumen-
Tratado Internacional tais, filiais, escritórios de representação ou
assemelhados.
Como referido acima, o Conselho de Direi-
tos Humanos da ONU estabeleceu um grupo • Os prazos prescricionais não serão apli-
de trabalho para impulsionar os trabalhos de cáveis quando as violações constituam
elaboração de um eventual tratado interna- crimes de acordo com o direito interna-
cional sobre empresas e direitos humanos19. cional. Para outras violações, a prescrição
No mês de julho p.p., o Estado do Equador não pode ser indevidamente restritiva e
– coordenador do referido grupo de trabalho deve permitir um adequado período de
– divulgou o primeiro rascunho da Conven- tempo para a investigação e a persecução,
ção internacional. Nos termos do documento em especial quando os fatos ocorreram no
divulgado20, a Convenção tem como finali- estrangeiro.
dades (a) fortalecer o respeito, a promoção,
a proteção e o cumprimento dos direitos hu- • As questões substanciais sobre o direito
manos no contexto de atividades empresariais aplicável podem ser decididas com base
de caráter transnacional, assim compreendi- no direito do Estado que exerce a juris-
das quaisquer atividades de natureza lucrativa dição ou pela lei de outro Estado parte,
que tenham lugar ou envolvam ações, pessoas no qual a pessoa envolvida com ativida-
ou impactos em duas ou mais jurisdições na- des empresariais de caráter transnacional
cionais, (b) garantir efetivo acesso à justiça e à é domiciliada.
medidas de reparação das vítimas de violações
aos direitos humanos no contexto de ativida- • Com a finalidade de avaliar o possível im-
des empresariais, (c) prevenir a ocorrência pacto nos direitos humanos, os Estados
de tais violações e (d) avançar a cooperação partes devem garantir na legislação interna
internacional com vistas a cumprir as obri- que todas as pessoas com atividades em-
gações dos Estados de acordo com o direito presariais de caráter transnacional no seu
internacional dos direitos humanos. território, sob sua jurisdição ou controle,
serão obrigadas a realizar auditorias (due
Destacam-se, dentre diversos aspectos da pro- diligences). A não observância do dever de
posta, os seguintes itens21: realizar auditorias deve acarretar uma apro-
priada responsabilização e indenização. Os
• A jurisdição para atos ou omissões, que Estados devem garantir que fiscalizarão o
resulte em violações aos direitos humanos cumprimento dessas obrigações.
protegidos pela Convenção, será do Esta-
do no qual os atos ou omissões ocorram, • Os Estados partes devem garantir na lei
ou do Estado no qual a pessoa jurídica doméstica que as pessoas jurídicas e natu-

28
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

rais podem ser responsabilizadas criminal, Em paralelo, a própria PFDC seguirá em in-
civil ou administrativamente. A responsa- terlocução com a sociedade civil e as represen-
bilidade das pessoas jurídicas deve ser in- tações dos atingidos e afetados por violações
dependente daquela das pessoas físicas. A de direitos humanos no país, encaminhando
responsabilidade criminal deve ser aplicá- e articulando o seguimento de denúncias,
vel a mandantes, comparsas e cúmplices. promovendo diálogos com o Estado e os de-
mais atores interessados em favor de uma po-
• Todo acordo futuro de investimento ou lítica nacional para o tema, consistente com
comércio que os Estados partes negociem, as premissas apontadas nesta Nota. Em espe-
seja entre si ou com terceiros, não deve cial, na agenda do mandato da PFDC, será
conter qualquer provisão que conflite com enfatizado o monitoramento da evolução das
a implementação da Convenção e deve ga- discussões sobre a instituição no Brasil de um
rantir o respeito aos direitos humanos. Plano de Ação Nacional, os trabalhos de ela-
boração da Convenção Internacional sobre
Como evidenciado nos itens precedentes Direitos Humanos e Atividades de Corpora-
desta Nota, a PFDC entende que, apesar da ções Transnacionais - com fortalecimento da
eventual adoção de um Plano de Ação Nacio- perspectiva de equidade de gênero e da pro-
nal, o tratamento adequado do tema direitos teção aos direitos das populações em situação
humanos e empresas depende da definição de de vulnerabilidade - , bem como o apoio ao
normas internacionais cogentes, que possam mandato do Grupo de Trabalho das Nações
evitar ou minimizar os deletérios efeitos da Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos.
“corrida para o fundo do poço”, da adoção de
múltiplos padrões de respeito aos direitos hu- Brasília, 27 de agosto de 2018
manos pelas empresas e das fragilidades dos
sistemas de reparação e promoção da justiça.
Sem um mínimo de uniformidade no trata-
mento que os Estados dão ao tema, a afirma-
ção dos direitos humanos em face de ativida-
des empresariais, em plano universal, seguirá
sendo uma vaga promessa, refém dos argu-
mentos de priorização do desenvolvimento
nacional a qualquer custo.

Nesse sentido, a PFDC celebra a oferta do


primeiro rascunho de um tratado interna-
cional pelo Equador e sugere que o Minis-
tério das Relações Exteriores do Brasil e o
Ministério dos Direitos Humanos liderem
um processo de discussão e consulta públi-
ca com a sociedade civil e os diversos atores
brasileiros interessados, para fins de definir
democraticamente as sugestões de aprimo-
ramento do texto que serão defendidas pelo
Estado brasileiro.

29
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

3. Anexo I: para que as atividades empresariais estejam


Informe – Seminário “Para uma em consonância com os direitos humanos.
política nacional de Direitos Os debates sobre o tema estão crescendo e
Humanos e Empresas no Brasil: ganhando novas proporções em órgãos do
Prevenção, Responsabilização e Estado, organizações e movimentos sociais e,
Reparação” também, no cenário internacional.
Brasília, 28 e 29 de agosto de 2018,
Relatoria: Livia Almendary GT Corporações – É nesse cenário que o
GT Corporações organiza o seminário, como
Introdução uma forma de se aproximar dos movimentos
sociais e consolidar o que produziu até aqui.
Nos dias 28 e 29 de julho de 2018, em Brasí-
lia, realizou-se o seminário Para uma política O GT Corporações é uma rede que surge em
nacional de Direitos Humanos e Empresas 2014, no contexto dos debates nacionais so-
no Brasil: Prevenção, Responsabilização e bre a crise política e institucional e a relação
Reparação, com a participação de referentes entre poder público e empresas. Congrega
de movimentos sociais, instituições de pes- mais de 20 membros, entre organizações não-
quisa, órgãos públicos, sociedade civil orga- -governamentais, movimentos, sindicatos e
nizada, além de atingidos e atingidas (não só universidades, atuantes em questões relacio-
do Brasil, como também da Colômbia, Peru nadas ao impacto da atuação das empresas
e Moçambique) por violações de direitos pra- sobre os direitos humanos35. É um espaço
ticadas por empresas. de intercâmbio de conhecimentos e práticas,
assim como de construção de estratégias de
A iniciativa do Grupo de Trabalho (GT) incidência, com o objetivo de promover o
Corporações – em parceria com a Oxfam, a acesso à justiça dos afetados pela atuação de
Fundação Friedrich Ebert (FES) e apoio da empresas no Brasil, particularmente quando
organização Terra de Direitos – teve como acarretam violações de direitos humanos.
objetivos principais: I) aprofundar a discus-
são sobre os obstáculos que dificultam o aces- Para subsidiar os debates durante o evento em
so à justiça por comunidades, cujos direitos Brasília, o GT elaborou um documento-base
são violados por empresas, e sobre as lacunas enviado previamente a todos os participantes,
existentes no ordenamento jurídico brasilei-
ro e internacional à respeito do tema; e II) 35. Os integrantes do GT Corporações são: Amigos da Terra
elaborar subsídios para a construção de uma Brasil; Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids - ABIA;
Conectas Direitos Humanos; Confederação de Trabalhadores
política pública de direitos humanos e em- da Agricultura Familiar - Contraf; Fórum da Amazônia Orien-
presas que contribua para a superação desse tal – FAOR; FASE; HOMA/UFJF; IBASE; INESC; Interna-
cenário de assimetria normativa e institucio- tional Accountability Project -IAP; Instituto Equit; Instituto
Observatório Social - IOS; Instituto Políticas Alternativas para
nal entre empresas transnacionais e comuni- o Cone Sul - PACs; Internacional de Serviços Públicos - ISP
dades atingidas. Brasil; Justiça Global; Movimento de Atingidos por Barragens
- MAB; Movimento pela Soberania Popular na Mineração -
MAM; Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco
Diante dos graves impactos provocados pela Babaçu – MIQCB; Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e
atuação de grandes corporações em diversos Ecologia – SINFRAJUPE; Rede Brasileira pela Integração dos
Povos - REBRIP; Repórter Brasil; Terra de Direitos; Articula-
territórios, a sociedade brasileira tem se mo- ção Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale; e Vigên-
vimentado na busca de propostas e caminhos cia, sob a liderança da FES.

30
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

com diagnósticos e o acúmulo do grupo so- tiplos atores interessados – e sobretudo com
bre o desequilíbrio normativo e institucional as pessoas afetadas e atingidas por atividades
que beneficia as empresas, além de recomen- empresariais – e compreenderia avanços le-
dações preliminares para uma política pública gislativos que estabeleçam um conjunto nor-
para o tema. mativo vinculante e compatível com a pro-
moção do desenvolvimento sustentável”. (A
Esse documento, por sua vez, tomou como proteção e reparação de direitos humanos em
base a pesquisa “Direitos Humanos e Empre- relação a atividades empresariais. Nota téc-
sas: O Estado da Arte do Direito Brasileiro”, nica Nº 7/2018, Ministério Público Federal,
elaborada pelo Centro de Direitos Humanos e PFDC, p.16)
Empresas da Faculdade de Direito da Universi-
dade Federal de Juiz de Fora (HOMA/UFJF), A nota representa a possibilidade de fortale-
a partir da análise de diversos casos no Brasil. cimento do debate em instâncias-chave do
poder público. O GT e a PFDC convergem
Fortalecimento do diálogo com o poder pú- sobre a necessidade de incidência em parla-
blico e parceria com a PFDC – O seminário mentares e atores políticos brasileiros – pro-
também é desdobramento de debates inicia- cesso que deverá ser fortalecido no próximo
dos em 2017 e que contaram com a impor- ano, se houver condições políticas para tal –
tante parceria da Procuradoria Federal dos e, também, sobre a necessidade de participar
Direitos do Cidadão (PFDC). No dia 27 de ativamente em instâncias internacionais, nas
agosto, um dia antes do seminário, a PFDC quais se dão os debates e resoluções na área de
publicou uma nota técnica sobre proteção e direitos humanos e justiça internacional.
reparação de direitos humanos no âmbito de
atividades empresariais. Contexto nacional e internacional
do debate sobre DHs e empresas
A nota, alinhada ao documento base apresen-
tado pelo GT, reafirma a desproporcional e No âmbito nacional, a discussão sobre di-
grave afetação de populações em situação de reitos humanos e empresas vem ganhando
vulnerabilidade por atividades empresariais e protagonismo em debates da sociedade civil
defende o reforço do sistema normativo na- e instâncias ligadas aos direitos humanos, so-
cional e internacional, bem como a constru- bretudo a partir de 2014.
ção de uma política pública de direitos hu-
manos e empresas que seja abrangente e que Pouco antes disso, em 2012, durante a Cú-
estabeleça um conjunto normativo vinculan- pula dos Povos – evento paralelo à Conferên-
te, de forma a promover o desenvolvimento cia Internacional Rio+20, no Rio de Janeiro
sustentável nos termos da agenda 2030 das –, foi lançada a Campanha pelo Desmante-
Nações Unidas: lamento do Poder Corporativo e pelo Fim
da Impunidade, com a participação de 200
“No caso do Brasil, pode ser mais recomen- organizações da sociedade civil inseridas no
dável – se e quando houver condições demo- debate sobre violações de direitos cometidas
cráticas favoráveis – investir na formulação de por empresas em todo o mundo, entre elas,
uma política pública abrangente em direitos várias brasileiras. Essas organizações passaram
humanos e empresas. (...) Essa política públi- a reforçar processos de incidência na ONU e
ca seria construída em discussão com os múl- outras instâncias internacionais.

31
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

O debate na sociedade civil brasileira acen- comendações acumuladas até aqui pelo GT, e
tua-se em 2014, quando o Brasil – sob a estreitar laços com movimentos sociais na di-
justificativa de não ter posicionamento so- reção de construir uma política pública para
bre a questão – absteve-se durante a votação o tema, com ampla participação de vários se-
da Resolução 26/9 no Conselho de Direitos tores da sociedade.
Humanos das Nações Unidas (ONU), que
reposicionou o tema a partir da proposta de Diante da necessidade política de medidas
desenvolver um instrumento vinculante so- vinculantes e efetivas contra violações por
bre transnacionais e direitos humanos. O epi- empresas e frente aos dispositivos interna-
sódio fomentou a articulação de um grupo da cionais voluntaristas impostos pela Europa,
sociedade civil brasileira, que posteriormente EUA, agências multilaterais (que alimentam
se consolidou no GT Corporações. a arquitetura da impunidade36), por que não
desenvolver uma política própria que regule o
Desde então, o GT realizou uma série de cumprimento dos direitos humanos por em-
ações, como se aproximar do poder púbico presas no Brasil?
para estabelecer diálogos e incidências, pro-
duzir pesquisas sobre o tema, articular visita No âmbito internacional, os debates atuais
do GT de Direitos Humanos e Empresas da concentram-se em duas frentes: a imple-
ONU ao Brasil (em Mariana, pós rompimen- mentação dos princípios orientadores sobre
to da Barragem do Fundão, e na região da empresas e direitos humanos da ONU, por
construção de Belo Monte, no Xingu). Uma meio de planos nacionais de ação (PNAs), e
das organizações integrantes do GT Corpo- o “draft zero”, ou “rascunho zero” do instru-
rações, a Conectas Direitos Humanos, vem mento vinculante para regular, no âmbito da
monitorando os desdobramentos da mencio- legislação internacional de direitos humanos,
nada visita da ONU ao Brasil, depois da qual as atividades das Corporações Transnacionais
foram feitas recomendações para o Estado e outras Empresas (o tratado proposto pela
brasileiro, empresas e sociedade civil relacio- Resolução 26/9 no Conselho de Direitos Hu-
nadas à proteção de direitos. manos das ONU). Essas duas frentes interna-
cionais, contudo, têm propostas e visões dife-
Em 2017, o GT organizou, em parceria com a rentes sobre a questão dos direitos humanos.
PFDC, a 1a Audiência Pública sobre Empresas
e Direitos Humanos, em Vitória, no Espírito Debatidos no âmbito da ONU e aprovados em
Santo. Participaram da audiência, organiza- 2011, os princípios orientadores apresentam
ções da sociedade civil, movimentos sociais, 31 diretrizes sobre direitos humanos e empre-
comunidades atingidas pela atividade em- sas e foram ratificados por mais de 190 países.
presarial, sindicatos, órgãos governamentais, Em 2012, o grupo de trabalho da ONU sobre
Defensorias Públicas, Ministério Público de o tema (grupo de trabalho intergovernamen-
diversos estados, consultorias empresariais em tal de composição aberta sobre corporações
sustentabilidade e organizações acadêmicas. transnacionais e outras empresas em matéria
Não houve o comparecimento das empresas. de direitos humanos) publicou seu primeiro

O presente seminário, realizado em Brasília,


vem na esteira dessas ações, com o objetivo 36. Conceito cunhado por acadêmicos para designar a atual
assimetria normativa, que beneficia as empresas transnacionais
de consolidar pesquisas, dados, premissas, re- em detrimento dos direitos humanos.

32
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

relatório anual, aconselhando os Estados a de- Empresas.


senvolverem planos nacionais de ação (PNAs)
como parte do processo de implementação dos O tratado já passou por três rodadas de arti-
princípios. Em 2014, lança um documento- culação e redação e a versão “draft zero” ou
-guia para orientar os Estados no desenvolvi- “rascunho zero”, apresentado pelo Equador,
mento desta estratégia – que não é vinculante e passará por sua quarta sessão em outubro de
se mantém na esfera da recomendação. 2018, quando coletará novas contribuições
da sociedade civil de outros Estados.
A implementação desses planos tem gerado
vários debates e discussões. O HOMA rea- Este documento – mais avançado e potencial-
lizou um estudo sobre a implementação dos mente mais eficaz que os princípios orienta-
PNAs em países europeus e latino-america- dores – tem como premissas, entre outras: a
nos e identificou um padrão que difere fron- primazia dos direitos humanos frente a qual-
talmente dos princípios e recomendações dis- quer outro interesse; o recorte interseccional
cutidos ao longo do presente seminário. Nos na identificação das populações mais vulne-
PNAs analisados pelo HOMA, a empresa ráveis a violações de direitos por empresas; o
é o ator principal e conduz os processos de direito ao acesso à justiça e ao cumprimento
negociação sobre as violações que ela mesma de direitos humanos; monitoramento da ati-
cometeu, e os princípios orientadores são vo- vidade empresarial. Também está sendo de-
luntários. Além disso, a relação entre empresa batida a criação de uma Corte Internacional
e Estado (quem é o responsável?) nos PNAs para julgamento de empresas transnacionais,
não fica clara. ponto que deve ser retomado em outubro.
O Tratado traria novos recursos/dispositivos
Na Colômbia, primeiro país na América La- para além dos nacionais.
tina a implementar um plano nacional de
ação, em 2015, a organização Tierra Digna Propostas para uma política
fez uma análise similar sobre o cenário nacio- pública de DHs e empresas
nal: o PNA colombiano foi elaborado sem a
participação das comunidades atingidas, ig- Durante as mesas, plenárias e grupos de tra-
nora diagnósticos prévios e o desequilíbrio balho temáticos realizados no seminário, fo-
da correlação de forças entre empresas, não ram levantadas propostas e estratégias para a
reconhece a responsabilidade das empresas na construção de uma política pública de direi-
criação de conflitos territoriais, entre outras tos humanos e empresas, bem como definidos
questões. alguns encaminhamentos práticos – como a
criação de comissões temáticas de trabalho e
Draft Zero – Por outro lado, no âmbito do próximos passos.
processo iniciado pela Resolução 26/9 do
Conselho de Direitos Humanos das Nações Questões em debate
Unidas (UNHRC), em junho de 2014, há
uma forte articulação da sociedade civil in- Algumas questões relacionadas ao debate so-
ternacional para a criação de um tratado vin- bre empresas e direitos humanos foram iden-
culante para regular, no âmbito da legislação tificadas como pontos a serem amadurecidos
internacional de direitos humanos, as ativida- posteriormente, nos desdobramentos do se-
des das corporações transnacionais e outras minário e na construção da política, a saber:

33
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• Proteção e regulação nacional e/ou in- concentrar energias na desconstrução do


ternacional: que aspectos priorizar nessas discurso sobre a eficácia das empresas no
duas frentes de incidência e atuação (por desenvolvimento socioeconômico do país,
exemplo: construção de um plano nacio- desmistificando seu papel como ator social
nal de ação, participação no “rascunho a partir de análises críticas e difundidas so-
zero” de um tratado internacional vin- cialmente. Por exemplo, o caso de Alcânta-
culante? Uma política pública nacional ra: o IDH do município diminuiu desde
para empresas e direitos humanos pode- a instalação da base aérea. Outro caso é Al-
ria ser autossuficiente sem uma regulação tamira, com a construção de Belo Monte
internacional rigorosa e vinculante? Uma e outros grandes empreendimentos regio-
política nacional de empresas e direitos nais. Desafio: mais do que lutar por respon-
humanos poderia enfraquecer os instru- sabilizar empresas, lutar por um projeto de
mentos normativos que já existem? desenvolvimento que leve em consideração
e priorize os direitos humanos.
• Instância de responsabilização: em que
medida e com que força responsabilizar Essas tensões, contudo, não impediram que os
o Estado e/ou a empresa? Como evitar grupos de trabalho e as plenárias do segundo
transferências de responsabilidade? A res- dia (29/09) tirassem e sistematizassem propos-
ponsabilidade deve ser independente en- tas e estratégias na direção de construir uma po-
tre um e outro? lítica pública de direitos humanos e empresas.

• Judicialização x medidas alternativas: no Tanto as mesas do seminário do primeiro dia


caso dos TACs (termos de ajuste de con- (28/09), quanto os grupos de trabalho e ple-
duta), por exemplo: eles fortalecem ou nárias do segundo (29/09) foram organizados
enfraquecem a luta de comunidades atin- a partir de eixos que, embora interligados, fi-
gidas por violações de direitos por parte guram separadamente para facilitar a discus-
de empresas? Em alguns casos, são enten- são. As propostas apresentadas, neste capítulo
didos como substitutos de uma reparação do relatório, estão organizadas em consonân-
integral, em outros, como único caminho cia com a lógica do próprio seminário:
para alguma reparação imediata às comu-
nidades. Equação complexa entre incidir • Princípios gerais
e forçar o judiciário ou apostar em outras • Prevenção
soluções que não a responsabilização jurí- • Responsabilização
dica (mais rápidas, por exemplo). • Reparação
• Extraterritorialidade: a atuação de empresas
• Mudança no foco de atuação da luta contra brasileiras em outros países
violações de direitos por empresas: diante • Estratégias nacionais e internacionais
das constatações de falência do sistema de • Encaminhamentos práticos
justiça, captura do Estado e resiliência ca-
pitalista (capacidade do capital de englobar Princípios gerais para uma política
qualquer processo de resistência e revertê-lo de DHs e empresas
em seu favor), apostar em uma mudança
de abordagem na forma atuação. A aposta A definição de princípios gerais para uma po-
seria, em vez de incidir sobre o judiciário, lítica pública de direitos humanos e empresas

34
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

parte de duas premissas básicas: I) nenhuma • Abordagem sistêmica: a política não deve
norma/aparato legislativo expressa algo dado: ser compartimentada, considerando de for-
as teses jurídicas são adotadas em função de ma sistêmica aspectos simbólicos e materiais
interesses predominantes e, de forma geral, as (cultura, meio ambiente, forma de vida).
teses jurídicas que defendem os interesses dos
atingidos são desqualificadas; II) o processo le- • Direito de veto a empreendimentos pelas
gislativo, portanto, é vivo e está em permanen- comunidades atingidas: a consulta prévia
te disputa: a luta se dá em fazer valer as teses deve evoluir para a ideia de consentimen-
jurídicas que fortaleçam os direitos humanos. to prévio.

Nesse sentido, foram levantados alguns prin- • Reconhecimento dos protocolos de con-
cípios gerais para a construção de uma políti- sulta/consentimento autogestionados.
ca pública para empresas e direitos humanos:
• Proteção de defensores e defensoras de
• Primazia dos direitos humanos e dos inte- direitos humanos: a política deve garan-
resses das pessoas que sofrem as violações: tir segurança efetiva dos que denunciam e
em primeiro plano devem estar as pessoas e atuam contra as violações de direitos.
não o lucro das empresas. As empresas não
podem ser consideradas parte igual na for- • Direito à memória: a reparação deve
mulação das políticas: elas são a parte que manter viva a memória da violação.
deve cumprir as normas dessa política.
• Incorporação compulsória dos custos de
• Considerar a interseccionalidade na direitos humanos pelas empresas: por
identificação dos atingidos e atingidas: exemplo, toda isenção fiscal deve incor-
a política deve localizar e defender quem porar contrapartida de direitos humanos.
são os atingidos: populações mais vulne-
ráveis em função da intersecção de classe, • Observação e cumprimento do nível
gênero e cor (mulheres, negros, ribeiri- mais alto de proteção aos direitos huma-
nhos, quilombolas, povos indígenas: di- nos: as transnacionais devem ser obriga-
reito a políticas específicas). das a seguir o nível mais alto de proteção
dos direitos humanos nos diferentes terri-
• Política vinculante: a regulação deve le- tórios de atuação.
var em conta a prevenção, responsabili-
zação e reparação em um sistema no qual Prevenção
as violações e os não cumprimentos acar-
retem em punição, interdição de atuação • Fortalecer e reformar as certificações: as
e garantia de não repetição. Não deve ser certificações devem estar no mesmo nível
voluntária/optativa às empresas em ne- ou acima da lei [nunca abaixo das exigên-
nhum aspecto. cias legais]; participação da comunidade
no processo de certificação; participação
• Reparação deve ser integral: deve ser usa- sindical; observância do histórico das em-
do o que está consolidado na ONU (res- presas na violação de direitos trabalhistas
tituição, compensação e garantia de não e urbanos para obter certificação; trans-
repetição) de forma vinculante. parência dos processos de certificação.

35
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• Identificar os efeitos sinérgicos e realizar deve estar disponível para a população,


diagnósticos: questão da amplitude do com lista pública de todos os projetos
impacto, a cadeia afetada: quais os efeitos com pedido de licenciamento.
sinérgicos (em cadeia) acumulados entre
diferentes empreendimentos >> elaborar • Criação de mecanismos de transparência
mapa da cadeia de impactos com as co- das cadeias produtivas: norma que obri-
munidades. gue a empresa a se manifestar. Exemplo:
nos EUA, empresas são obrigadas a expor
• Licenciamentos: reformular processos de o que estão fazendo em termos de impac-
licenciamento socioambiental com base to de sua cadeia. Reino Unido: exige que
em melhorias na participação da comu- empresas grandes publiquem posiciona-
nidade, independência dos licenciadores, mentos sobre trabalho escravo. França:
controle social, direitos humanos, entre olhar nacional sobre a cadeia produtiva
outros. com origem em outros países. Monitora-
mento e prevenção: acesso à informação
• Definir áreas e territórios prioritários sobre as cadeias, elos de responsabilidade
para ações preventivas a partir do perfil mais visíveis.
dos atingidos/as: conhecer o perfil dos
• Fortalecer outros projetos/alternativos:
atingidos (como por exemplo, perfil do
fomentar outras possibilidades em setores
trabalhador, região de origem, situação
que mais impactem: por exemplo, inves-
socioeconômica). A partir dessa identifi-
timento em outros tipos de energia.
cação, é possível definir áreas prioritárias
de atuação e orientações de como gover- • Formação e educação em direitos huma-
nos e empresas podem agir >> a pesqui- nos: garantir que populações vulnerabili-
sa contribui para definir áreas-chave de zadas e atores sociais, que atuam na área,
atuação preventiva. se formem e se apropriem de ferramentas
a partir de materiais de fácil acesso e de
• Utilizar novas tecnologias para moni- trabalho de base.
torar e identificar problemas: monito-
ramento e identificação dos problemas, • Direito efetivo à consulta prévia, livre e
avaliação de risco dos empreendimentos informada e criação de espaços reais de
e cadeias produtivas, desvendar a cadeia participação, bem como garantir o avan-
produtiva >> processos facilitados pela ço dos protocolos de consulta: que isso
digitalização, pesquisas online, uso de se reflita no direito de veto a empreen-
ferramentas já disponíveis, como o Ca- dimentos (consentimento prévio) e na
dastro Rural. garantia de continuidade de participação
das comunidades pós consulta.
• Diagnósticos prévios: acesso à informação;
mapeamento de índices das localidades e • Comprometimento do lucro de acionis-
comunidades antes do empreendimento. tas: as penalizações devem recair tam-
bém sobre os acionistas, como forma de
• Cadastros públicos de obras em processo prevenção. Criar inibições de viés eco-
de licenciamento/autorização: a pesquisa nômico.

36
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• Presença de diretores e chefes das empre- socioambientais. Política genérica, ain-


sas nos territórios afetados: cobrar dire- da assim, pode ser aproveitada: primeiro
tores e chefes das empresas para que visi- marco, norma que dá pé para uma atua-
tem os territórios e escutem as demandas ção que não é dever, mas que pode cami-
das comunidades. nhar para obrigação jurídica.

• Levar em conta especificidades territo- • Estatuto das estatais: Adin – Lei


riais: por exemplo, no caso da Amazônia. 13303/16: empresas públicas devem ser
responsabilizadas por violações.
Alguns pontos de debate relacionados à pre-
venção: • Todos os elos da cadeia produtiva devem
ser responsabilizados: se há relação de de-
• Como reconhecer e trabalhar a questão pendência/ subordinação, deve haver res-
dos lugares sagrados? ponsabilização para o topo da cadeia >>
transparência e identificação de empresas
• Necessário combater a captura corporati- nos grupos/consórcios - delimitar e ligar
va para que a prevenção tenha efeito. as violações às pessoas jurídicas.
• Priorizar a criação de novos mecanismos • Ampliar o conceito de responsabilidade
ou fortalecer os já existentes? Ou ambos? solidária: que isso se aplique também a di-
reitos humanos: os atingidos podem cobrar
• Problema da regulamentação da consul-
de qualquer uma das partes da cadeia pro-
ta prévia: como ficam os protocolos auto-
dutiva e, depois, o grupo resolve entre si.
gestionados, nesses casos?
• Perspectiva coletiva na responsabilização
• Problematizar a questão fundiária no
e reparação: não se trata de indivíduos e,
debate sobre prevenção: levar em conta
sim, comunidades.
a vulnerabilidade das populações campo-
nesas e rurais, mais suscetíveis às viola-
• Caracterizar zonas e áreas especiais de
ções de seus direitos.
interesse social – ZEIS/AEIS: fomentar
Responsabilização que empresas e Estado criem infraestru-
tura nessas áreas.
• Compreensão ampla de responsabi-
• Revisão das regras de nexo de causalida-
lização: em todas as etapas - planejamento
de-doenças.
financeiro, implementação, operação.
• Revisão das regras de lavra/mineração:
• Instituições financeiras devem ser cor-
responsabilizadas: PL 241/2015 – cláu- só autorizar uma lavra quando a outra
sula de direitos humanos nos contratos do estiver esgotada; proibir a participação de
BNDES. empresas lavradoras em fundos públicos
de investimento.
• Bancos e responsabilidade socioambien-
tal: resolução 4227: diretrizes que devem • Autonomia relativa dos órgãos e respon-
ser observadas pelos bancos em políticas sabilização: responsabilizações específicas

37
PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

dos diversos órgãos do Estado, com suas des devem decidir que tipo de reparação
respectivas competências. querem e, só então, devem ser decididos
os recursos a serem usados >> os disposi-
• Vetar crédito rural para empresas que tivos devem estar a favor das decisões das
mantenham trabalho escravo. comunidades e não o contrário. As comu-
nidades devem poder definir seus proce-
• Cláusulas sociais vinculantes em contratos dimentos de reparação.
públicos: instrução normativa para criação
de sanções, como retenção de pagamento a • Assessorias técnicas: ferramenta impor-
construtoras que acarretarem em violações. tante para apoiar as comunidades durante
o processo de reparação. Exemplo do caso
• Dupla imputação: responsabilização de da Associação Estadual em Defesa Am-
pessoa física e jurídica. Apesar de o supre- biental e Social (AEDAS) na bacia do Rio
mo dizer que não há obrigatoriedade, o Doce, que tomou as rédeas do processo de
ordenamento jurídico abre possibilidades reparação depois das primeiras reuniões
nesse sentido. com a Samarco.
• Penalização de porta giratória: por exem-
• Reparação deve ser integral e com direito
plo, a legislação espanhola estabelece qua-
à memória: como ir além das reivindica-
rentena (10 anos) para ofertas de empre-
ções, além da moradia, território e traba-
gos a executivos e agentes públicos e há
lho?
um comitê de transparência. Implemen-
tação de multas e penalidades para rein- • Gratuidade do processo de acesso à justiça.
serção do agente no setor público.
• Diferenciação empresa x Estado: no
Reparação processo de reparação, definir qual é a
responsabilidade do Estado e qual é a da
• A construção da reparação deve ser co-
empresa.
letiva e territorializada, sem intervenção
da empresa e com participação garanti- • Garantia de não repetição: deve ser vin-
da: ferramentas de reparação devem ser culante e estar em qualquer processo de
construídas e praticadas de forma cole- reparação.
tiva e territorializada, sem a intervenção
da empresa, com garantia de participação • Romper assimetrias de poder: não reco-
concreta da sociedade civil e atingidos e nhecimento das empresas como ator polí-
atingidas. Só a participação concreta da tico nos processos de negociação (caso do
comunidade pode garantir que a repara- Rio Doce).
ção contemple todas as dimensões do im-
pacto – material, patrimonial, simbólica. • Inversão do ônus da prova: cabe às em-
Processo de reparação como forma de for- presas provarem quem causou o dano –
talecer a organização da comunidade. já que têm acesso a técnicas de análises,
procedimentos jurídicos, laboratório de
• “Nada sobre nós, sem nós”: as comunida- universidades etc.

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• Monitoramento independente das em- Extraterritorialidade - propostas


presas: garantia de que as empresas po- para regular a atuação de
dem ser monitoradas de forma indepen- empresas brasileiras no exterior
dente do Estado.
• Jurisdição: aspecto central: os atingidos
• Transversalidade e interseccionalidade devem ter o direito de buscar acesso à jus-
das questões de classe, gênero e raça: de- tiça no Brasil. E que os critérios expos-
vem ser consideradas em todo e qualquer tos na política pública sejam aplicados às
processo de reparação, em combate ao empresas brasileiras, mesmo quando elas
racismo ambiental. Por exemplo: entre os forem minoritárias nos consórcios que
povos atendidos pela Fundação Renova, atuam em outros países.
as mulheres recebem menos cartões.
• Reconhecer de forma ampla os direitos
• Mecanismos de transparência e controle de povos e comunidades tradicionais e
social do processo de reparação: garantia
aplicar, no mínimo, os mesmos crité-
de reforço desses mecanismos (para não
rios que no Brasil: esse reconhecimento
terminar em casos como o Renova).
deve levar em conta – no mínimo - para
operações em outros países, os impactos
• Impedir financiamento público a empre-
sas que não finalizaram os processos de materiais/imateriais/rituais/tradições de
reparação em curso. acordo com as definições brasileiras.

• Centralidade do sofrimento da vítima: • Acesso à informação: os contratos de-


peça chave para advogados também ga- vem ser públicos (quem são os donos das
nharem corpo nos casos. empresas, língua, localidade etc.), assim
como os estudos de impacto ambiental,
• Mulheres e reparação: devem ser as bene- social, econômico (os estudos devem ser
ficiárias da reparação (por exemplo, escri- publicados, bem como os autores identi-
tura de nova moradia em nome delas), em ficados).
particular, as mulheres rurais.
• Controle social dos royalties e benefícios
• Reassentamentos: os de menor renda repassados à comunidade: publicizar a
devem ser contemplados pelos financia- economia dos empreendimentos (volume
mentos; criação de moradias de domínio da produção, taxa de produção e isenções,
público. O Programa Minha casa, Minha quanto pagam de impostos, quanto ob-
Vida não foi concebido para reassenta- têm de lucro etc.).
mentos, mas nos casos em que essa for a
solução, deve haver uma política específi- • Licenciamentos e estudos: devem ser rea-
ca voltada para os atingidos/as. lizados segundo os padrões mais altos de
proteção dos direitos dos países envolvi-
• Acesso à informação e formação sobre dos (e no mínimo, os próprios brasilei-
direitos: fundamental para o direito à re- ros); empresas que realizam os estudos e
paração. outorgam licenças devem ser indepen-
dentes de consórcios e não envolvidos no
empreendimento.

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• Exigência de consulta livre, prévia e in- articular comunidades atingidas, traba-


formada com direito de veto, além de lhadores e sindicatos de outros países e,
reconhecimento de protocolos: o Brasil também, visibilizar denúncias.
deve exigir e garantir que esse processo se
realize localmente (o Brasil é signatário da • Questão da segurança privada em em-
Convenção 169 e dos Povos Indígenas e preendimentos: proibição de contratos
isso deve se fazer valer em outros territó- das empresas com polícia local para fazer
rios onde atuem as empresas brasileiras), segurança privada.
além de garantir o reconhecimento dos
protocolos comunitários locais. Estratégias nos âmbitos
nacional e internacional
• Responsabilidade solidária: a matriz ou a
acionista também responde pela subsidia- Nacional
ria - reconhecer a cumplicidade e respon-
sabilidade das empresas brasileiras. • Diálogos com e incidência sobre o poder
público e parlamentares: tarefa central
• Política Nacional de Defensores e De- apontada pelo GT e também pelos deba-
fensoras se aplique também em outros tes no seminário, nas seguintes frentes:
países.
Mapear a agenda parlamentar sobre o
• Canais de denúncias no Brasil: denún- tema e outros afins para incidir.
cias inclusive de danos potenciais; criar
ponto focal no MPF para receber essas Fortalecer a parceria com o Ministério
denúncias internacionais e ouvidoria no Público Federal/PFDC.
BNDES. Monitoramento e avaliação das
situações pós-denuncia/acordo/sentença. Aproximar-se do fórum BNDES: criação
de conselhos da sociedade civil no Banco.
• Governança do ponto focal: mudar da
OCDE, do Ministério das Finanças, com Aproximação de órgãos como Funai,
participação da sociedade civil e que seja Ibama, Defensoria, Incra, Fundação Pal-
rotativo entre ministérios. mares.

• Exigir as indenizações no Brasil: para que Fortalecer o debate com a Câmara/Co-


sejam repassadas e monitoradas pelas po- missão de Direitos Humanos da Câmara
pulações afetadas. >> parceria com CNDH para construir
a política nacional de empresas e direitos
• Punições econômicas a empresas que vio- humanos.
larem direitos e causarem danos fora do
país. Estreitar relações com o Ministério de
Relações Exteriores.
• Assessoria técnica do país de origem para
atingidos em outros países. Levar o debate sobre direitos humanos
para as Assembleias Legislativas estaduais.
• Criação de uma rede internacional: para

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

Relação com outras políticas e progra- empresas. Casos paradigmáticos podem


mas de governo: a política nacional de pautar outras noções. Avaliar a eficácia da
empresas e DHs precisa pensar em sua atuação das empresas no desenvolvimen-
relação com outras políticas e programas. to socioeconômico do país e do território
onde atuam, como por exemplo a base de
• Fortalecimento de órgãos públicos: pres- Alcântara (MA), onde o IDH diminuiu
sionar para que os órgãos, já existentes, depois do empreendimento. O mesmo no
funcionem. caso de Altamira, com Belo Monte e ou-
tros. Outros casos: Volkswagen e a dita-
• Fortalecer as teses e narrativas de direitos dura, a Eletronorte e os Waimiri Atroari.
humanos (batalha narrativa): No âmbito da saúde, a questão do SUS e
patentes pipeline (de fórmulas que já es-
Esclarecer a confusão (proposital) entre tavam em domínio público: não trazem
crescimento econômico e desenvolvi- inovações, apenas restringem e monopoli-
mento: como e para quem? Desconstruir zam) >>> Campanha de impacto: definir
a falácia de que as empresas trazem, ne- cinco casos exemplares para demonstrar
cessariamente, desenvolvimento. gravidade do tema, transformar esses ca-
sos e narrativas em campanha (filmes? ví-
Uma forma de fortalecer as narrativas é deos?) de comunicação e impacto.
a partir da Agenda 2030 da ONU, pois
aponta para esse caminho. • Desvelar o véu corporativo e combater a
blindagem das empresas: facilitar a iden-
Visibilizar o efeito sinérgico: acumula- tificação dos atores contra os quais se luta
ção de empreendimentos em uma mesma [desvelar as parcerias, joint-ventures, rela-
zona e todos os impactos em rede/efeito ções entre empresas públicas e privadas e
dominó que pode causar. sua natureza dúbia]. Qual o sujeito viola-
dor? Criar mecanismos de transparência
Aprofundar a discussão sobre financia- para isso >> incidir no Congresso.
mento público das empresas: qual o pa-
pel do Estado? • Fortalecer projetos alternativos: como
investimentos em outros tipos de energia,
Visibilizar relatos de violações de atin- por exemplo.
gidos e atingidas como forma de gerar
empatia, sensibilização e alteridade. • Incidência na mídia/meios de comunica-
ção: aposta em “golpes de comunicação”:
• Desmistificar a atuação das empresas para pressionar publicamente governos,
a partir de casos paradigmáticos: por opinião pública. Por exemplo: repercus-
exemplo, caso da Vale Moçambique. Foi são internacional sobre o trabalho escravo:
enviado um ofício ao governo brasileiro articulação com a mídia mundial [caso da
perguntando o que a Vale considerava JBS >> consumidor europeu e americano
sobre sua subsidiária em Moçambique, têm preocupação maior].
em relação à OIT 169. Resposta: válido
apenas para o Brasil. Explicitar esses (des) • Mecanismos de transparência: políticas
casos e posicionamentos, desmistificar as para isso e incidir no Congresso.

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• Vincular violações de direitos a partir de balho na base (não documentos técnicos)


outros aparatos normativos: por exem- >> e juntar e editar o que já existe. Por
plo, infração à ordem econômica por van- exemplo: Conectas traduziu os princípios
tagem desleal na concorrência, a partir orientadores e realiza monitoramento de
da redução drástica dos custos violando recomendações >> material que pode ser
direitos humanos (trabalho escravo, por usado e disseminado para gerar conheci-
exemplo). mento. Vídeos para web produzidos pela
Justiça Global. Terra de Direitos tem um
• Sensibilização de procuradores e outros documentário sobre os protocolos de con-
atores públicos: procuradores totalmente sulta autogestionados no Tapajós: https://
incapazes de entender os conflitos do terri- terradedireitos.org.br/acervo/videos/pro-
tório, quando estão implicados em proces- tocolos-de-consulta-no-tapajos-experien-
sos de reparação, por exemplo. Falta de al- cias-ribeirinhas-e-quilombolas/22839
teridade >> precisam ser confrontados com
relatos e visitar os territórios em questão. Folders, impressos com explicação de
temas e tópicos, instâncias de denúncia,
• Levantamento e acompanhamento de da- de assistência etc.
dos oficiais sobre áreas que correm risco
de violação por interesses privados ou já Programas de rádio >> rádios comuni-
foram/estão afetadas: empresas atuam em tárias: instrumentos fortes nas bases.
função de e indenizam baseadas em dados:
caso da bacia do Rio Doce/rompimento da Oficinas e formações.
barragem no Espírito Santo: quantas em-
barcações de pescadores? Dados pesqueiros? Estratégias de comunicação audiovisual
Não há dados. Última medição de água: 7 e digital.
anos atrás. Cadeia importante envolvida e
importância de monitoramento e reconhe- Facilitação gráfica para encontros e se-
cimento de populações tradicionais. Força minários.
dos dados: dados geram pressão.
Facilitar acesso da base a documentos
• Facilitar acesso às organizações de defesa e debates do GT a partir de todos esses
de direitos e autoridades: canais de co- tipos de materiais.
municação por todos os meios.
• Área de governança: fazer conexão com a
• Plataforma virtual/observatório para reu- lei de compliance.
nir e sistematizar informações: visibilida-
de de material, notas, relatórios, seminá- • Segurança nos empreendimentos: suspen-
rios, processos etc. são de segurança em casos de denúncia de
violação >> havia um grupo de trabalho no
• Trabalho de base e processos de forma- MPF sobre o tema, que deveria ser resgatado.
ção e informação de populações atingi-
das: • Instituições financeiras: deveriam ser ca-
racterizadas como transnacionais.
Produção de material de apoio para tra-

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

• Como concretizar essa política: seria um estrangeiras que lidam com empresas bra-
instrumento normativo? Criação de um sileiras >> disponibilizar e compartilhar
Comitê especial com tribunal e poder pacote legislativo para os outros países sa-
de jurisdição? Autarquia federal? Há su- berem a que leis as empresas estrangeiras
gestão para que seja um comitê com tri- estão submetidas.
bunal, com eleição por processo público,
com uma superintendência e secretaria- • Banco Mundial e IFC: aproximação e
-executiva + conselho da sociedade civil. diálogo/debate.

Internacional • Campanha de impacto e de mídia inter-


nacional: como pensar uma campanha
• Engajamento de parlamentares para a fu- participativa de opinião pública: incidir
tura assinatura do marco internacional sobre a mídia internacional, no caso da
vinculante (draft zero): o processo é de extraterritorialidade. Pressão dos meios
longo prazo, então, é preciso desde já en- sobre Estados e empresas.
gajar os parlamentares >> incidência no
Congresso já para o desafio do Brasil se Encaminhamento
tornar signatário quando o Tratado sair.
• Construção e aprovação de um docu-
• Presença de sindicatos e populações in- mento político do seminário: elaborar
dígenas nas negociações sobre o tratado esse documento a partir da ata do semi-
internacional vinculante. nário e submeter à aprovação das entida-
des participantes >> para amadurecer um
• Contribuir com a redação do draft zero: documento do seminário, sistematizar e
GT Corporações pode enviar comentá- validar entre todos.
rios e conteúdos sistematizados a partir
do presente seminário; além disso, a Via • Calendário com próximos passos: GT
Campesina sugere incorporar aspectos da construir um calendário de próximos pas-
Declaração dos Direitos dos Camponeses sos e passar ao grupo do seminário.
>> será lançada em breve e há, nos textos,
muitas recomendações que podem ser in- • Portarias do Ministério de Direitos Hu-
corporadas ao debate, em complementa- manos sobre proteção de defensores/as e
ridade com o tratado. os princípios orientadores da ONU [mais
informação no Anexo II, pg. 8]: tirar po-
• Compartilhamento de informação com sicionamento sobre essas portarias e sobre
outros países: o retrocesso na proteção aos defensores.

Observatório dos povos: nomear em- • Contribuição Draft Zero: o GT deve fa-
presas e dados de vários países para cons- cilitar para que conteúdos/recomendações
truir um panorama das violações. que saíram durante o seminário cheguem
aos participantes e às bases >> GT Cor-
Compartilhar informações sobre polí- porações pode fazer um texto sobre a im-
ticas e direitos no Brasil com organizações portância do Brasil participar do Tratado

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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO BRASIL

e isso entrar para a pauta da CNDH de


setembro (a carta seria levada pelo Con-
selho Nacional da Via Campesina, comis-
são de assuntos internacionais) e, assim, a
carta será encaminhada à ONU.

• Comissões de trabalho: articular as co-


missões sugeridas durante o seminário:

Comissão Extraterritorialidade: in-


fluenciar no posicionamento do estado
brasileiro, contribuição no zero draft, po-
sicionamento sobre portarias do MDH
referente ao PNA e princípios orienta-
dores. Junto com PFDC, Justiça Global,
Atingidos pela Vale.

Comissão para ampliação do debate


nos estados brasileiros: levar o debate
para as comissões de direitos humanos
nos estados, via assembleias legislativas.

Comissão para sistematização e forma-


ção: sistematizar o que foi tirado no se-
minário, e o que pode ser mobilizado de
outros conteúdos (por exemplo, tradução
dos princípios orientadores feita pela Co-
nectas) para pensar o material de forma-
ção/trabalho de base.

Aproximação e articulação com a Co-


missão Nacional de Direitos Humanos:

• Realização de evento de formação em


São José dos Campos, em dezembro.

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Autores Responsável

Melisanda Trentin é advogada, mestre em Políticas Pú- Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil


blicas e Formação Humana pela UERJ e coordenadora da
área de DHESCA da Justiça Global. Av. Paulista, 2001 - 13° andar, conj. 1313
01311-931 I São Paulo I SP I Brasil
Raphaela Lopes é advogada, mestre em Direito pela UFRJ www.fes.org.br
e pesquisadora da área de DHESCA da Justiça Global.

Deborah Duprat é Procuradora Federal dos Direitos do Ci-


dadão, Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão, Minis-
tério Público Federal.

Marlon Alberto Weichert é Procurador Federal dos Direitos


do Cidadão Adjunto, Procuradoria Federal Dos Direitos do
Cidadão, Ministério Público Federal.

Edmundo Antônio Dias é Procurador da República, Coor-


denador do Grupo de Trabalho Direitos Humanos e Empre-
sas, Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão, Ministé-
rio Público Federal.

Friedrich-Ebert-Stiftung (FES)
A Fundação Friedrich Ebert é uma instituição alemã sem fins lucrativos, fundada em 1925. Leva o
nome de Friedrich Ebert, primeiro presidente democraticamente eleito da Alemanha, e está com-
prometida com o ideário da Democracia Social. No Brasil a FES atua desde 1976. Os objetivos de
sua atuação são a consolidação e o aprofundamento da democracia, o fomento de uma economia
ambientalmente e socialmente sustentável, o fortalecimento de políticas orientadas na inclusão e
justiça social e o apoio de políticas de paz e segurança democrática.

As opiniões expressas nesta publicação


não necessariamente refletem as da
Friedrich-Ebert-Stiftung.

O uso comercial de material publicado


pela Friedrich-Ebert-Stiftung não é per-
mitido sem a autorização por escrito.

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