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09.

Arte Portuguesa - Renascimento e Maneirismo

Índice
1. Contexto histórico...................................................................................................................................... 3
2. Caraterísticas gerais..................................................................................................................................3
3. Arquitetura Renascentista......................................................................................................................... 3
3.1. Arquitetura religiosa............................................................................................................................. 3
3.1.1. Campanha de obras do Mosteiro de Santa Maria de Belém.....................................................4
3.1.2. Capela de Nossa Senhora da Conceição – Tomar....................................................................4
3.1.3. Igreja de Santo Antão – Évora...................................................................................................4
3.1.4. Igreja de Nossa Senhora da Graça – Évora..............................................................................5
3.1.5. Obras no Convento de Cristo em Tomar...................................................................................5
3.1.6. Igreja de São Roque - Lisboa.................................................................................................... 9
3.2. Arquitetura civil..................................................................................................................................... 9
3.2.1. Palácio da Bacalhoa, Azeitão.................................................................................................... 9
3.2.2. Palácio dos Duques de Aveiro, Azeitão.....................................................................................9
3.2.3. Paço Ducal de Vila Viçosa.......................................................................................................10
4. Urbanismo maneirista..............................................................................................................................10
5. Arquitetura Maneirista............................................................................................................................. 11
5.1. Caraterísticas gerais.......................................................................................................................... 11
5.2. Maneirismo em Portugal.....................................................................................................................11
5.3. Arquitetos........................................................................................................................................... 13
5.3.1. António Rodrigues....................................................................................................................13
5.4. Arquitetura religiosa........................................................................................................................... 16
5.4.1. São Vicente de Fora, Lisboa....................................................................................................16
5.4.2. Igreja do Seminário dos Jesuítas - Santarém..........................................................................18
5.4.3. Claustro de D. João III no Convento de Cristo em Tomar.......................................................19
5.4.4. Capela das Onze Mil Virgens, em Alcácer do Sal....................................................................19
5.4.5. Igreja de Santa Maria da Graça...............................................................................................20
5.5. Arquitetura Civil.................................................................................................................................. 21
5.5.1. Quinta das Torres - Azeitão.....................................................................................................21
5.5.2. Palácio dos Marqueses de Fronteira - Benfica........................................................................21
5.5.3. Outros palácios........................................................................................................................ 21
5.6. Arquitetura militar............................................................................................................................... 21
5.6.1. Forte de São Julião da Barra...................................................................................................21
6. Escultura.................................................................................................................................................. 22
6.1. Principais escultores.......................................................................................................................... 22
6.1.1. Nicolau de Chanterenne.......................................................................................................... 22
6.1.2. João de Ruão...........................................................................................................................22
6.1.3. Filipe Hodarte...........................................................................................................................22
7. Pintura..................................................................................................................................................... 23
7.1. Ciclo manuelino.................................................................................................................................. 23
Renascimento e Maneirismo - 1
7.1.1. Impacto da pintura flamenga....................................................................................................24
7.1.2. Principais obras........................................................................................................................25
7.1.3. Importações............................................................................................................................. 26
7.2. Oficina de Gerard David - Retábulo da Sé de Évora..........................................................................29
7.3. Jorge Afonso...................................................................................................................................... 31
7.3.1. Conjunto das tábuas monumentais da Charola do Convento de Cristo em Tomar.................32
7.3.2. Retábulo da Madre de Deus em Lisboa...................................................................................33
7.3.3. Retábulo da igreja do Convento de Jesus em Setúbal............................................................34
7.4. Francisco Henriques.......................................................................................................................... 35
7.4.1. Retábulo da Capela-mor da Sé de Viseu.................................................................................35
7.4.2. Retábulo da capela-mor da igreja do Convento de São Francisco em Évora..........................36
7.4.3. Pentecostes............................................................................................................................. 36
7.4.4. Tríptico dos Infantes – MNAA..................................................................................................36
7.5. Mestre da Lourinhã............................................................................................................................ 36
7.5.1. São João Baptista no Deserto (Museu da Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã).............37
7.5.2. São João em Patmos (Museu da Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã)...........................37
7.5.3. Tríptico dos Infantes.................................................................................................................38
7.6. Frei Carlos.......................................................................................................................................... 38
7.6.1. Ecce Homo.............................................................................................................................. 39
7.6.2. Anunciação.............................................................................................................................. 40
7.6.3. Ressurreição............................................................................................................................ 40
7.6.4. São Vicente..............................................................................................................................41
7.7. Vasco Fernandes............................................................................................................................... 41
7.7.1. Retábulo da Sé de Viseu......................................................................................................... 44
7.7.2. Retábulo da Sé de Lamego..................................................................................................... 45
7.7.3. Anunciação.............................................................................................................................. 46
7.7.4. Assunção da Virgem................................................................................................................46
7.7.5. Natividade................................................................................................................................ 46
7.7.6. Outros retábulos da Sé de Viseu.............................................................................................46
7.7.7. São Sebastião..........................................................................................................................48
7.7.8. A Última Ceia........................................................................................................................... 48
7.7.9. São Pedro Patriarca – Mosteiro de São João de Tarouca.......................................................49
7.8. Mestres do Sardoal – Vicente Gil e Manuel Vicente..........................................................................49
7.9. Ciclo renascentista............................................................................................................................. 49
7.9.1. Vasco Fernandes (2ª fase de atividade)..................................................................................50
7.9.2. Gaspar Vaz.............................................................................................................................. 52
7.9.3. Cristóvão de Figueiredo...........................................................................................................53
7.9.4. Mestre do Retábulo de Santa Auta..........................................................................................60
7.9.5. Garcia Fernandes.................................................................................................................... 69
7.9.6. Gregório Lopes – 1ª fase de atividade.....................................................................................77
7.9.7. O Inferno.................................................................................................................................. 81
7.10.Evolução do Retrato – do Renascimento ao Maneirismo..................................................................82

2- Renascimento e Maneirismo
7.10.1.Jovem cavaleiro (Príncipe D. João?).......................................................................................82
7.10.2.D. Sebastião.............................................................................................................................82
8. Escultura.................................................................................................................................................. 82
8.1. Escultura tumular............................................................................................................................... 82
8.1.1. Túmulo de D. João de Noronha...............................................................................................82
8.1.2. Túmulo de D. Afonso 4º. conde de Ourém - Ourém................................................................83
8.1.3. Túmulo de Baltazar de Faria ( ?- 1584)...................................................................................83
8.1.4. Túmulo de D. Luís da Silveira..................................................................................................83
9. Ourivesaria.............................................................................................................................................. 83
9.1. Relicário de D. Leonor........................................................................................................................83
10.Textos complementares.......................................................................................................................... 84
10.1.Arquitetura e Liturgia......................................................................................................................... 84
10.2.Comemorações e Renascimento: o Arco dos Vice-Reis de Goa......................................................88
10.3.Iconografia e dimensão criativa na pintura portuguesa do Renascimento........................................91
10.4.Frei Carlos e o Belo Portátil...............................................................................................................94
10.5.O Índio na Arte Portuguesa do Renascimento..................................................................................98
10.6.O Retábulo da Vida da Virgem da Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho.......107
10.7.O notável Retábulo Flamengo da Sé de Évora...............................................................................114
10.8.Retrato da Infanta D. Isabel – Van Eyck.........................................................................................116

1. Contexto histórico
 Só no reinado de D. João III (1521-57)
 Ligado o espírito da Reforma Católica
 Centro e Sul
 Até 1550-60 – data da implantação do Maneirismo

2. Caraterísticas gerais
 Essencialmente de âmbito religioso
 Contribuição manuelina:
 Igrejas-salão
 Preferência pelas construções horizontais
 Uso da abóbada assente sobre arcos abatidos
 Redes de nervuras
 Aplicação de estruturas renascentistas em obras manuelinas
 Decoração que conjuga elementos platerescos e renascentistas
 Cosmopolita – influências da Europa e das regiões do Império

3. Arquitetura Renascentista
3.1. Arquitetura religiosa

Renascimento e Maneirismo - 3
Diretrizes do Concílio de Trento:
 Aproximar os crentes da Eucaristia
 Tornar o espaço claro e racional
 Abrir o espaço da Igreja

3.1.1. Campanha de obras do Mosteiro de Santa Maria de Belém


Capela-mor
Esta capela foi mandada construir por D. Catarina, mulher de D. João III, em 1571.
Traçada pelo mestre Jerónimo de Ruão, que aqui introduz a arte maneirista, contrasta em
absoluto com o corpo manuelino da Igreja.
Jerónimo de Ruão, arquiteto militar, utiliza na Igreja da Luz, no transepto dos Jerónimos e,
possivelmente, na Capela do Espírito Santo da antiga Misericórdia de Lisboa - hoje capela-mor da
Igreja da Conceição Velha - uma composição cromática conseguida através do contraste de materiais e
motivos comuns ao decorativismo maneirista flamengo.
Nela estão sepultados os restos mortais de D. Manuel I e de sua segunda mulher D. Maria, seu
filho D. João III e da própria D. Catarina, sua mulher.
O seu estilo se antecipa ao severo pendor maneirista do Mosteiro do Escorial.
Com D. Catarina encerra-se o primeiro grande ciclo de mecenato régio ligado à fundação e
construção do Mosteiro dos Jerónimos.
Também no ano de 1550, e por iniciativa da mesma rainha, se faz a encomenda do famoso
Cadeiral do Coro Alto, com risco de Diogo de Torralva - arquiteto a quem se deve a plena afirmação das
formas do Alto Renascimento em Portugal - e execução de Diogo de Çarça. É indiscutível a presença
flamenga nas cartelas dos encostos inferiores. No entanto, revela-se a influência indireta de Miguel
Ângelo nos espaldares superiores e nos modelos das figuras inspiradas nos Escravos, que são uma
clara alegoria da natureza humana e da sua condição, tal como o neoplatonismo renascentista as
concebia.

3.1.2. Capela de Nossa Senhora da Conceição – Tomar


 1550
 Iniciada por João de Castilho
 Concluída por Diogo de Torralva
 Planta:
 Procura harmonizar a forma basilical das naves com a planta em cruz
grega da cabeceira

3.1.3. Igreja de Santo Antão – Évora


 Fundada em 1557 pelo cardeal D. Henrique e consagrada em 1563
 Manuel Pires
 Exemplar renascentista de transição para o Maneirismo
 3 Naves com abóbada da mesma altura – tipo salão
 Colunas toscanas de capitéis jónicos
 4 Tramos

4- Renascimento e Maneirismo
 3 Capelas na cabeceira

3.1.4. Igreja de Nossa Senhora da Graça – Évora


Da Ordem de Santo Agostinho, é um edifício renascença cuja fachada, de granito, revela a
influência de Palladio, posterior a 1558, como se vê pelo duplo frontão (um a ladear e outro a encimar a
janela central, também de tipo paladino). Como a inscrição do friso se refere à década de 1530, é de
supor que a frontaria atual fosse reconstruída depois de 1560, ficando da primeira fachada apenas as
janelas platerescas perspetivadas que ladeiam o portal. O pórtico de colunas toscanas e pilastras nos
ângulos corresponde à galilé das igrejas medievais. Quatro gigantes estão sentados sobre as pilastras
do primeiro andar, à frente de duas bolas com fogachos; dois anjos e uma ara central coroam o frontão
menor. Discos com rosetas na parede do primeiro andar, cartelas, escudos e troféus no tímpano maior
completam a decoração. As paredes do interior ostentam restos de panos de azulejos. Junto ao altar-
mor destacam-se um friso de rosetas e uma janela de mármore lavrado, com a data de 1537, atribuíveis
a Nicolau Chanterenne. O claustro, de estilo clássico, é formado por dois andares e tem no piso inferior
arcos de volta inteira sobre colunas de granito.1

3.1.5. Obras no Convento de Cristo em Tomar


 Feita contra a obra manuelina
 Refinamento renascentista que pretende esconder o manuelino
 Experiências sucessivas com o Renascimento italiano

 Claustro de Santa Bárbara - que liga ao coro manuelino:


 Tentativa de Claustro Clássico:
 Com dois pisos
 Piso inferior rebaixado
 O segundo piso e o telhado tapavam a janela
 Colunas e capitéis ainda sem as proporções e a decoração clássica2
 12 Colunas com capitéis renascentistas3
 Abóbada nervurada4
 Nervuras da abóbada assentam em mísulas renascentistas5
 Claustro dos hóspedes:
 Linguagem renascentista mais adquirida
 Obra de 1541-426
 2 Pisos·
 Um andar suplementar no lado norte7

1
Tesouros artísticos de Portugal (coordenação de J, A. Ferreira de Almeida), Selecções do Reader's Digest
2
Informação retirada de Luís Maria Pedrosa dos Santos Garcia, CONVENTO DE CRISTO, Instituto Português do Património
Cultural
3
Idem
4
Ibidem
5
Ibidem
6
Ibidem
7
Ibidem

Renascimento e Maneirismo - 5
 Piso térreo8:
 Colunas compósitas
 Piso superior9:
 Colunata clássica
 Arquitrave sobrepujada
 Varandim recuado
Claustro de Santa
Bárbara

Claustro dos Hóspedes

 Claustro Grande:
 Iniciado por João de Castilho
 Nunca acabado
 Losango – na decoração dos arcos – funciona como uma assinatura de João
de Castilho

 Claustro Grande de D. João III


 Iniciado por João de Castilho em 1533, ao gosto renascença10:
 4 Entradas no piso inferior
 Medalhões renascentistas
 A obra parou e foi retomada, 7 anos mais tarde, com Diogo de Torralva –
retorno ao Classicismo11
 Anos 60 do século XVI
 Encosta-se à Igreja Manuelina – rutura no gosto arquitetónico12
8
Ibidem
9
Ibidem
10
Ibidem
11
Ibidem
12
Ibidem

6- Renascimento e Maneirismo
 Concluído no reinado de Filipe II, com Pedro Fernandes Torres
 Fonte maneirista de cascata, a meio do piso térreo13

Fonte em cascata
do reinado de Filipe
II

 Despojado de decoração
 Elementos clássicos – do Classicismo do Concílio de Trento
 Modelos do Tratado de Cerrola
Ordem Dórica em baixo – ordem masculina
Ordem Jónica em cima – ordem feminina

Piso 1 - Esquema

 4 Lanços, cada um com 2 espaços preenchidos com porta e janela, ladeada por
colunas dóricas e arcos de volta inteira14
 Arcos assentes em largos pilares, chapados com colunas toscanas15
 Entablamento clássico16

Piso 2 – esquema:

 Várias camadas em transparência – toda a organização do Claustro é


visível em camadas sucessivas:
 1ª Camada – Ordem dórica

13
Ibidem
14
Ibidem
15
Ibidem
16
Ibidem

Renascimento e Maneirismo - 7
 2ª Camada – Ordem jónica
 3ª Camada - Galilé
 Sucessão de várias camadas – permite diferentes espaços de luz
 Torres cilíndricas nos cantos ---- onde se vê, do interior do Claustro, o
corrimão da escada

E Casa do capítulo incompleta, de encomenda joanina

 Classicismo da Igreja Reformada


 Linguagem clássica austera – despojada de decoração
 Coloca-se à frente do Coro Manuelino --- contraste entre o novo e bom –
Claustro de D. João III – e o velho e mau – Coro Manuelino
 Claustro de D. João III tapa o de João de Castilho

O Claustro de D. João III do Convento de Cristo em Tomar, iniciado em 1557, tem sido
apontado como obra chave no duplo sentido de fechar um período e abrir um novo. Diogo de Torralva,
o projetista, utiliza a "serliana" ou "motivo de Palladio" nos dois andares do edifício, e partes deste
poderão ter sido inspiradas nos desenhos de Francisco de Holanda (do pátio do Vila Imperial, em
Pesaro) e de Serlio. Filipe Terzi veio a terminar esta "verdadeira obra-prima a nível mundial". Além de
ser um exemplo da cultura tratadística, testemunha a qualidade profissional dos arquitetos portugueses
na transição entre o renascimento e o maneirismo.17

3.1.6. Igreja de São Roque - Lisboa


Testemunhos maiores deste estilo são a Igreja de São Roque (Lisboa), iniciada em 1555 por
Afonso Álvares, um dos poucos grandes edifícios lisboetas que sobreviveu ao terramoto de 1755
17
http://7mares.terravista.pt/8seculosdearte/maneirismo.htm

8- Renascimento e Maneirismo
3.2. Arquitetura civil
3.2.1. Palácio da Bacalhoa, Azeitão
 Exemplo da quinta de recreio – que alia o jardim, a frescura dos bosques
e a sombra dos plátanos à recolha de peças arqueológicas e à
introdução de microarquitectura de puro classicismo
 Propriedade do nobre escritor Brás Afonso de Albuquerque – presidente
do Senado da Câmara de Lisboa e filho do vice-rei da Índia D. Afonso de
Albuquerque
 Loggia de arcaria italianizante
 Lago da «casa de fresco»
 Pormenor de aparelho rusticado
 Casa concebida como palácio-fortaleza
 Estrutura quadrangular

3.2.2. Palácio dos Duques de Aveiro, Azeitão


D. João de Lencastre (filho de D. Jorge, filho bastardo de D. João II e Mestre da Ordem de
Santiago) recebeu o título de Duque de Aveiro a partir de 1547, por mercê de D. João III.
 A construção do Palácio dos Duques de Aveiro deve ter arrancado por volta de 1521
 Não é inteiramente correto apelidar o solar de primeira construção da Renascença em
Portugal, em parte por via da data tardia da sua finalização, já no século XVII
(CALADO, Maria, 1993, p. 73)
 Um dos mais magníficos exemplares de arquitetura classicizante no país, e o maior
palácio a sul do Tejo, dominando com a sua vasta mole a praça da vila.
 Planta em "U" típica das novas tipologias de habitações solarengas desenvolvidas ao
longo de todo o século XVI, sendo composto por:
 Um corpo central mais alto, flanqueado por duas alas que definem um largo
pátio ajardinado diante da fachada principal, defendido por muro baixo com
gradeamento
 Uma dupla escadaria de pedra, antigamente ornamentada com estátuas de
mármore hoje desaparecidas, dá acesso a um amplo terraço para onde abre
o portal principal de aparato, ocupando dois registos, emoldurado por um
entablamento dórico.
 O terraço desenvolve-se ao longo dos corpos laterais, cuja ala Este se
prolonga sobre os jardins.
 O rasgamento de vãos em todas as fachadas é essencialmente simétrico,
com portas e janelas de vão reto ou decoradas com frontões triangulares; a
singeleza destes elementos, juntamente com a utilização das ordens
rústicas para marcação de ritmos nos panos murários, confere à construção
um carácter clássico severo e imponente, em plena transição para o
Maneirismo, justificando-se assim as grandes proporções do conjunto. Esta
impressão é aligeirada na fachada lateral deitando para os jardins, que

Renascimento e Maneirismo - 9
possui uma larga varanda com colunata toscana, de onde se avistavam nos
tempos áureos da quinta as quatro ruas definindo os pomares, as vinhas, a
mata, o labirinto de buxo e os lagos e fontes que compunham a
propriedade.

3.2.3. Paço Ducal de Vila Viçosa


 A fachada distribui-se de modo italiano em três andares -- térreo, nobre e secundário
--, dividido por pilastras e entablamento e iluminada por 23 janelas decoradas pelos
elementos das ordens clássicas do estilo grego: dórica, jónica e coríntia.
 Os balcões do pavimento rasteiro -- todos gradeados -- têm cimalhas horizontais: os
do piso principal são triangulares, os do superior de volta perfeita, excetuando os três
do centro, que são de arco singelo, e as três janelas do terceiro sobrado, estão
decoradas por ornatos compósitos.
 No andar rasteiro rasgam-se quatro portadas perfeitamente regulares, emolduradas
e de volta redonda; nos extremos, ao Sul e Norte, respetivamente, as
correspondentes aos talhões das CASAS NOVAS, da CAPELA e do REGUENGO, e
no centro, paralelas, as duas portas da entrada principal.
 A portada real -- que tem comunicação gémea com a dependência anterior e alcança
o andar nobre, antecede a majestosa escadaria formada por 27 degraus de
mármores brancos e azuis, lançados em três patamares que, no piso terminal, de
placas axadrezadas, é fechada por balaustrada de gigantesco disco axial.
 No interior destaca-se o antigo PAÇO QUINHENTISTA de D. Jaime que se situa nos
baixos da ala transversal no edifício inicial. É a parte do PALÁCIO com maior
interesse arquitetónico, nomeadamente o seu pequeno claustro de 24 colunas de
mármore que suportam arcos de volta plena.

4. Urbanismo maneirista
Quanto ao urbanismo da capital, a arquitetura seiscentista de Lisboa tem características
especificamente nacionais. O absolutismo desenvolveu a burocracia e o aparelho de Estado, surgindo
edifícios de grande imponência como o Palácio Moura Corte Real, Figueira, Almada, Tancos, Óbidos,
Teles de Menezes, etc. Da época renascentista ficaram casas de loteamento estreito por se situarem
em espaço muralhado mas, na segunda metade do séc. XVI, começa a fixar-se uma organização
urbanística mais horizontal. Numa célebre planta de Lisboa de 1650, de João Nunes Tinoco, é já visível
a separação entre o delineamento retilíneo do Bairro Alto, implantado a poente da muralha de Lisboa,
em contraste com as ruas tortuosas a nascente que vão desembocar no Rossio e Terreiro do Paço.
Por altura das guerras da Restauração, a teoria e a prática urbanística dos arquitetos e
engenheiros militares nacionais foi bastante desenvolvida, e formaram-se técnicos em número
apreciável. A arquitetura militar quinhentista está, pois, na base de uma escola de urbanismo português
que mais tarde foi responsável pela reconstrução de Lisboa.18

18
http://7mares.terravista.pt/8seculosdearte/maneirismo.htm

10- Renascimento e Maneirismo


5. Arquitetura Maneirista
5.1. Caraterísticas gerais
Os arquitetos maneiristas, ao contrário dos seus antecessores imediatos, subordinaram as regras
clássicas a um maior romantismo e individualismo. Baldassare Peruzzi, amigo de Bramante, de Rafael
e Sangallo, iniciou uma fase nova e mais original na arquitetura italiana com o seu Palazzo Massimi,
considerado o princípio do maneirismo.
De fachada ligeiramente abaulada, ignorando todas as características do apogeu renascentista,
"é muito elegante, mas a maior parte dos pormenores são pequenos e afetados". Em 1520, Miguel
Ângelo tem concluída a Capela Sistina e regressa a Florença para trabalhar na capela dos Médicis e na
Biblioteca Laurenziana da mesma família. "O conjunto pode ser descrito como o mais puro Maneirismo".
Ainda não se nota a oposição às leis da natureza, como no barroco, apenas o uso arbitrário dos
elementos clássicos.
A obra dos sucessores continua a refletir a "urgência comum em libertar-se da sóbria
monumentalidade do renascimento romano, para atingir algo mais dinâmico, expressivo ou fantástico".
Um dos monumentos de referência é a Igreja de Gesù, começada no ano de 1568, em Roma, da
autoria de Vignola e Della Porta. Casa-mãe dos Jesuítas e da Contra-Reforma, vai determinar um
padrão copiado em muitas fachadas da Europa e, por influência jesuítica, do Novo Mundo.
Sendo um "produto direto da «crise do renascimento», o maneirismo dimanou da Itália e
desenvolveu-se, como situação estética, numa multiplicidade ambígua de direções e de soluções que
têm como denominador comum a declarada rebelião contra o legado classicista anteriormente
estabelecido". Portugal, bastante apegado aos modelos e soluções do gótico internacional, recebeu
tarde o Renascimento que se concretiza apenas num restrito conjunto de obras. A nova moda "ao
romano" só chega por volta do quarto decénio do séc. XVI, em paralelo com a edição de tratados de
arquitetura, a estadia em Roma de bolseiros portugueses - como Francisco de Holanda, introdutor no
reino de muitas das teses e soluções anticlássicas - ou a chegada de artistas estrangeiros ao país.

5.2. Maneirismo em Portugal


O maneirismo português coincide com um ambiente de Contra-Reforma, de militarização da
política e unicidade ideológica, fatores que modificaram a evolução estética e o modo de projetar. A
arquitetura nacional recebe um outro fôlego, não só por influência do novo gosto como, sobretudo, pela
persistência de um "estilo vernacular e original, profundamente acentuado pela cultura arquitetónica de
base tratadística e pela prática da arquitetura militar e onde se evidenciam valores de simplicidade,
austeridade, limpidez, clareza e funcionalidade" , a que o historiador americano Georges Kubler
chamou "estilo-chão".
À medida que a geometria se instala na arquitetura portuguesa, até por via da prática da
construção militar, "uma obra ímpar, a capela-mor dos Jerónimos, panteão da casa de Avis, impõe-se
como referente cultural da época sebástica". Iniciada em 1565, a capela conjuga a ambiguidade do
espaço interno com a grande sobriedade militar do exterior, um bom exemplo dos valores da ordem,
proporção, simplicidade, austeridade e clareza do "estilo-chão" nacional. Esta obra origina também um
novo tipo de capela-mor, o "túnel-santuário" (na expressão de Kubler), tendo uma réplica na capela-mor
da Misericórdia do Porto.

Renascimento e Maneirismo - 11
O "estilo-chão" e a influência flamenga
Ao invés da era renascentista, época dos protótipos e modelos únicos, os valores arquitetónicos
são assimilados e padronizados. Assim, à igreja de Santo Antão de Évora corresponde a matriz de
Veiros; Santa Maria do Castelo de Estremoz, "a mais erudita das igrejas-salão portuguesas", tem
"cópias" em Monsaraz e Santa Maria do Castelo de Olivença; etc., etc.
Por outro lado, alguns temas maneiristas provenientes de manuais flamengos começam
também a ser aplicados. Jerónimo de Ruão, arquiteto militar, utiliza na Igreja da Luz, no transepto dos
Jerónimos e, possivelmente, na Capela do Espírito Santo da antiga Misericórdia de Lisboa - hoje
capela-mor da Igreja da Conceição Velha - uma composição cromática conseguida através do contraste
de materiais e motivos comuns ao decorativismo maneirista flamengo. Esta mesma linguagem
encontra-se a norte do país, como no mosteiro da serra do Pilar e no de Grijó. No primeiro, repete-se a
forma circular na igreja e no claustro, com um efeito de planta semelhante ao "positivo" e "negativo" de
uma fotografia. No Mosteiro de São Salvador do Grijó, "uma das obras mais assumidamente
maneiristas do todo nacional", construído a partir de 1572 por Francisco Velázquez, a fachada denota
uma atitude assumidamente anticlássica de verticalidade, especialmente expressa pelo grande janelão
central.
A chegada a Portugal da Companhia de Jesus, com o seu dinamismo no campo da ação
pastoral e do ensino, origina uma grande vaga de construção de igrejas e colégios que se prolonga
durante o séc. XVII e constitui um importante capítulo da História da arquitetura nacional.
Os Jesuítas introduzem duas novidades. Primeiro, a centralização da ação apostólica na igreja.
Segundo, a vertente pedagógica, que conduz à criação de redes de colégios, edifícios "civis"
funcionando em regime de internato onde a igreja se integra, mas tipologicamente diferentes dos
conventos tradicionais.
A Igreja de São Roque, em Lisboa, datada de 1565, é a primeira das grandes construções da
Companhia, além de sede da Ordem em Portugal. O arquiteto régio Afonso Álvares foi encarregado da
traça de nave única com capelas laterais intercomunicantes. Um espaço totalmente unificado, qual
"praça" pública, com a funcionalidade necessária para uma liturgia profundamente vocacionada para a
pregação. As igrejas da Companhia de Jesus de Lisboa, Évora (Igreja do Espírito Santo, 1567) e Braga
(Colégio de Sant'Iago, 1567) formam uma trilogia inseparável pelas suas semelhanças arquitetónicas.
Constituem um modelo nacional de igreja de nave única que outros encomendadores também
utilizaram largamente no decurso dos séculos XVI e XVII, nos cinco continentes, "vindo a servir ainda
de remoto paradigma para a construção de igrejas pombalinas, já no terceiro quartel do século XVIII".
Com a edificação da Igreja do Espírito Santo de Évora inaugura-se em Portugal um novo tipo de
"espaço religioso de sentido novo, unificado e luminoso", como uma "caixa abobadada" a que Kubler
chamou "box church". O modelo será largamente utilizado em igrejas e sacristias nacionais durante os
séculos XVI e XVII mas também serviu de protótipo a igrejas espanholas como São Bartolomeu do
Escorial ou a sacristia da Catedral de Toledo, provando que o intercâmbio cultural entre os reinos
peninsulares se fazia nos dois sentidos.

A arquitetura da Restauração

12- Renascimento e Maneirismo


A partir da Restauração, a arquitetura retoma a uma síntese de todas as vertentes autóctones
dos períodos anteriores e sucessivas influências italiana, espanhola e flamenga, traduzindo-as num
"estilo ainda mais austero e vernacular, que prolongará anormalmente o estilo-chão nacional por mais
algumas décadas". A arquitetura é marcada pelo gosto da corte dos Braganças em Vila Viçosa (que já
anuncia a austeridade lusitana pós-Restauração), pela crise económica e pelos condicionalismos
militares. O mecenato brigantino patrocina o Convento dos Agostinhos e o Convento do Carmo de
Évora. Neste último, desprovido de capelas intercomunicantes (que começam a desaparecer das
igrejas nacionais), o transepto tende para a planta em cruz grega com cúpula octogonal no cruzeiro.
Aliás, a planta centralizada volta a revelar um novo vigor que haveria de conduzir à primeira grande
concretização do barroco nacional, a Igreja de Santa Engrácia. Exemplo deste fenómeno, ainda no
estilo maneirista, é a Igreja da Piedade em Santarém.
As ordens religiosas continuam também a construir bons exemplares da arquitetura de "estilo-
chão", como o Convento de Santa Clara-a-Nova de Coimbra (1649-1696), e os colégios de Santarém e
Portimão da Companhia de Jesus.

 A partir de 1550-60
 Séculos XVI, XVII e princípios do XVIII
 «Estilo chão»
 Fachadas herdadas da arquitetura militar
 Condicionalismos impostos pela conjuntura religiosa
 Espalha-se até à África, Brasil, Índia e Macau
 Exterior sóbrio
 Interior – extravagantemente decorado – azulejo, talha dourada, quadro a
óleo – igrejas
 Interior – extravagantemente decorado – azulejo, talha dourada, quadro a
óleo, baixelas, faianças, mobiliário – palácios
 Tetos em maceira pintados

5.3. Arquitetos
5.3.1. António Rodrigues
João Pedro Xavier, Porto – 2004-03-19
Site do Instituto Camões (consultado a 7-8-2015)

Arquitectura: teoria, pedagogia e prática


São parcos os dados biográficos sobre o Arquitecto António Rodrigues (c.1520-1590). Deve ter
iniciado o seu contacto com o mundo da construção no estaleiro de Tomar, sendo um dos moços da
estribeira que Dom João III utilizava para trazer informação sobre as obras 19 , e completado a sua
formação em Itália. Certo é que chegou a 1º Cavaleiro fidalgo da casa de el-rei e ascendeu a mestre
das obras reais, com Dom Sebastião, em 1565, sucedendo a Miguel de Arruda, e a mestre de obras
19
Cf. MOREIRA, Rafael – Arquitectura: Renascimento e Classicismo. In PEREIRA, Paulo – História da Arte Portuguesa.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, vol. II, p. 355

Renascimento e Maneirismo - 13
das fortificações, em 1575, após a morte de Afonso Álvares, tendo acumulado ambos os cargos durante
15 anos facto que constitui caso único no país.
Deve-se a Rafael Moreira a reposição desta personagem singular na ribalta da história da
arquitectura portuguesa, ao atribuir-lhe um projecto de um Tratado de Arquitectura (com uma versão
preliminar de 1576 e outra, visando o prelo, de 1579, ambas incompletas) 20 que serviria de suporte à
“Lição de Arquitectura Militar” de que foi responsável na Escola de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira,
bem como a autoria, documentalmente comprovada, da Igreja de Santa Maria da Graça de Setúbal
(actual Sé), e, por confronto estilístico, da Capela das Onze Mil Virgens, em Alcácer do Sal 21, construída
adossada à Igreja do Convento de Stº António para jazigo de Dom Pedro de Mascarenhas22.

Método da trisecção do quadrado para


proporcionar um pórtico
Fol. de Proposições Matemáticas,
BPMP (Ms. 95)

De facto, estas atribuições certificam:


1. Uma sólida formação teórica, de matriz classicizante, sorvida nos tratados, sobretudo em
Vitrúvio, Serlio e Pietro Cataneo e, com toda a probabilidade, por contacto directo com a pátria
do renascimento (sabe-se que Dom João III estimulava a aprendizagem em Itália para além
de ser de difícil aceitação que o autor da Capela das Onze Mil Virgens não conhecesse, em
primeira mão, as fontes);
2. Uma vertente pedagógica talhada à medida de um modelo de ensino onde, de acordo com
Vitrúvio, se não concebia a formação de um arquitecto sem uma forte preparação científica ao
20
Ver MOREIRA, Rafael – Um tratado português de arquitectura do séc. XVI (1576-1579) . Lisboa: FCSH-UNL, 1982. Tese
de Mestrado em História da Arte.
A versão preliminar é um códice da Biblioteca Nacional de Lisboa (BN, Cód. 3675) e a seguinte encontra-se na Biblioteca
Pública Municipal do Porto com o título “Proposições Matemáticas” (BPMP, Ms. 95).
21
Pela documentação da Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique sabe-se que possuiu cinco “moios” de trigo em terras
de Alcácer.
22
Além destas obras é certo que a Igreja de São Pedro de Palmela, Igreja de Nossa Senhora da Consolação de Alcácer,
profundamente adulterada, bem como a antiga Igreja da Anunciada de Setúbal, desaparecida com o terramoto, são de sua
autoria, assim como a Sala do Capítulo e Sacristia (de que só resta um portal e duas janelas) do Convento de Jesus de
Setúbal.

14- Renascimento e Maneirismo


nível da Matemática, com particular ênfase na Geometria, mas onde também se ensinava a
Astronomia e a Música, para além, das disciplinas da Trivium; saliente-se, ademais, que é
esta mesma Escola do Paço da Ribeira, fundada por Pedro Nunes, que tinha a seu cargo as
“Lições de Matemática e Cosmografia” e na qual também colaborou o humanista João
Baptista Lavanha, que será extinta e transferida para Madrid por Filipe II, dando origem à
“Academia de Matemáticas y Arquitectura” dirigida por Juan de Herrera;
3. A capacidade de traduzir em obra feita esse saber e com ele produzir realizações de
indiscutível qualidade arquitectónica cujo expoente máximo será, precisamente, a Capela das
Onze Mil Virgens construída em mármore rosa de Estremoz, embora a Sé de Setúbal feita de
brecha da Arrábida, mais condicionada pelo programa e tipologia, não deixe de ser uma
realização conseguida.

Com efeito, tanto a Capela de Alcácer (c. 1565) como a Igreja de Setúbal (c. 1570) evidenciam
uma geometria rigorosa expressa no sistema de proporções e na pureza das formas estereométricas
empregues, bem como na clareza da respectiva articulação espacial, encontrando estes factores eco
na segurança de um desenho forte e limpo, de perfil clássico, que se assume, aliás, como veículo
fundamental da sua poética.
Esta arquitectura, onde o material e a cuidada administração da luz assumem particular
relevância ‒ dir-se-ia quase minimal, ao tempo ‒ encontrará eco no famoso estilo desornamentado
espanhol de raiz herreriana, abrindo portas ao denominado estilo chão, que conheceu grande fortuna
entre nós, e que se caracteriza por aliar à singeleza de recursos uma sólida estruturação espacial
escudada na pureza da geometria.
Na obra de António Rodrigues, particularmente, a omnipresença da geometria, sempre associada
ao número, é uma condição essencial para a caracterização da sua arquitectura. É insuspeitável
também, por outro lado, o sentido cósmico desta estreita ligação, e de como, em acordo com o
neoplatonismo, cada obra se constrói como um perfeito microcosmos para ser a representação do
macrocosmos matematicamente ordenado.
Em qualquer das suas obras se detecta a existência de variadíssimas formas e construções que
povoam o seus “Livros” de Geometria, “Trigonometria” e de Perspectiva, que reencontramos
disseminadas pelos tratados que inspiraram o seu, e que, à falta dos livros sequentes, desconhecidos
ou nunca completados, se materializaram na conformação dos espaços arquitectónicos que produziu.

Geometria e Arquitectura
Apesar de António Rodrigues considerar que para aquele que houver de fazer profissão de
arquitecto é necessário que seya muzico para que hemtẽda as porposois das vozes, porque por estas
porposoys ẽtemdera as proposois que am de ter seus edefisios 23 , parece-me que as relações
proporcionais que utiliza não são explicáveis somente à luz da teoria musical. Têm um sentido
matemático próprio, que se pode relacionar circunstancialmente com os intervalos musicais, mas
decorre essencialmente da lógica intrínseca de cada edifício.

23
BN, Cod. 3675, fol. 10 v

Renascimento e Maneirismo - 15
Agora, o que é fundamental, como o próprio adverte, tal como Vitrúvio, é que he nesessario ser
esperto na Giometria24 . Porque essa sim será a maneira de lançar pontes entre o real e o
transcendente.
E que couza he giometria? questiona-se António Rodrigues…para logo esclarecer: Gyometria
não he outra couza que feguras, as quais nam se podem fazer sem linhas, e amgulos, e pomto... Pola
dita Geometria se vera como não se pode fazer nada sem hela, nem ha Arte matematica não se
hemtemdera bem sem ser esperto na Giometria haquele que dela se deleitar.
Termina com uma recomendação que consideramos que vale sempre a pena seguir:
Quem for coriozo desta harte estude Hoclides, e nele achará bem couza em que se
desemfade25 .

5.4. Arquitetura religiosa


Entretanto, continuam a espalhar-se entre nós as igrejas-salão - uma tipologia oriunda do gótico
mendicante nacional e desenvolvida desde a época manuelina. Ao longo do séc. XVI assiste-se à
estandardização deste modelo, que alimenta verdadeiras cadeias de obras originais e réplicas.
Segundo Horta Correia, representam "uma atitude, senão deliberadamente anticlássica, pelo menos
reveladora de propositado alheamento face às correntes eruditas italianizantes em voga". Mais uma vez
se nota aqui o decisivo contributo da arquitetura militar a nível da simplicidade estrutural e funcional. "E
nelas se encontra a primeira grande vaga de uma arquitetura 'chã' que preludia e antecipa em mais de
uma década o espírito e a prática do estilo desornamentado espanhol". Neste mesmo estilo são
edificadas, na década de 50 do séc. XVI, três novas dioceses: Leiria (de Afonso Álvares), Portalegre
(possivelmente do mesmo arquiteto) e Miranda do Douro (talvez de Miguel de Arruda).
A Igreja da Luz de Tavira é apontada como a possivelmente mais antiga igreja-salão posterior ao
ciclo manuelino, no início de uma outra série que corresponde às igrejas da época sebástica, pioneiras
do "estilo-chão". Na porta principal, a colocação de um nicho sobre o frontão triangular deixa já
transparecer uma atitude anticlássica.

5.4.1. São Vicente de Fora, Lisboa


Em 1527, D. João III encetou uma profunda reforma no interior da ordem dos Crúzios, que
estabelecia uma reformulação das regras de vida monástica, estendendo-se à arquitetura dos
complexos conventuais.
No entanto, só no início do reinado de Filipe I foi iniciada a reforma do edifício da igreja e do
mosteiro, numa ação em que o monarca "refazia o gesto fundacional de Afonso Henriques, sobretudo
como gesto primeiro de um novo dinasta e de um novo mecenas", reforçada pela escolha do templo
para panteão real (SOROMENHO, 1994, p. 208).
Construção emblemática dos primeiros anos da União Ibérica, erigida num dos morros orientais
da cidade oriental sobranceiros ao Tejo, o novo edifício do Mosteiro de São Vicente de Fora (casa
agostiniana contemporânea da conquista de Lisboa aos mouros) é a mais importante peça da
arquitetura portuguesa de fins do século XVI.
24
Idem
25
Ibidem fol. 25 v. Este texto constitui parte da introdução ao “Capitolo em que se declara que couza he Giometria”

16- Renascimento e Maneirismo


Construída entre 1582 e 1629, em morosas obras dirigidas por Filipe Terzi, Baltazar Álvares e
Pedro Nunes Tinoco, segundo modelo inicial que se atribui ao arquiteto de Filipe II, Juan de Herrera,
que em 1582 se deslocou de Madrid para vistoriar as novas empresas régias, trata-se de obra maior do
património nacional.
A autoria da traça do novo mosteiro continua envolta em alguma polémica, embora nos últimos
anos seja consensual que as grandes figuras de destaque da reforma vicentina sejam os arquitetos
Juan de Herrera e Filipe Terzi.
Se a Herrera, autor do Escorial, são atribuídos os planos do complexo mandados fazer por
Filipe I, coincidindo a data dos esboços com os anos de permanência do arquiteto em Lisboa (1580-
1583), de Terzi destaca-se o seu contributo nas "traças operativas", ou seja, o seu papel na condução
do estaleiro de obras e a influência decisiva do seu trabalho na estrutura final (idem, ibidem, p. 210).
Outra figura de destaque na obra de São Vicente de Fora é, sem dúvida, o arquiteto português
Baltazar Álvares, que dirigiu as obras entre 1597 e 1624, e a quem se aponta a composição da fachada
(idem, ibidem; SOROMENHO, 1995, p. 379-380).

Fachada
A fachada, da autoria de Baltazar Álvares, desenvolve em moldes pioneiros o figurino do
chamado Estilo Chão, adaptando a monumentalidade do último Maneirismo romano à tradição
portuguesa: alçado cingido em andares com ritmos alternados na definição das aberturas, varandim
superior e coroamento de altas torres laterais.
A fachada apresenta uma composição muito original, de linhas sóbrias e depuradas mas repleta
de monumentalidade, como convinha a uma igreja designada panteão-real, na qual se destaca a
disposição das duas torres. Estas não são simplesmente justapostas como dois blocos adossados ao
frontispício, mas antes plenamente integradas na estrutura, numa tipologia que recria, à luz da
tratadística renascentista, a arquitetura medieval portuguesa, alcançando "um equilíbrio perfeito entre a
tensão horizontal de um alçado de cinco tramos e a verticalidade sugerida pelos volumes torreados"
(idem, ibidem).26
Adaptando a tradição do Maneirismo romano às tradições arquitetónicas portuguesas, o seu
modelo constituiu-se como uma das géneses do estilo chão, marcando em definitivo a arquitetura
maneirista, em Portugal e em todo o mundo português, durante o século XVII.
Este modelo, absolutamente original na nossa arquitetura, vai constituir força de lei nas
fachadas erguidas no século XVII pelo Mundo Português, da Índia a Macau e ao Brasil.
Interior
Já o interior basilical, que segue tanto a Catedral de Valladolid, de Herrera, como o Gesù de
Roma, de Vignola e Giacomo della Porta, revela a influência do gosto herreriano, com cobertura de
berço segmentado por teia de caixotões de módulo variado, transepto inscrito, capelas laterais
intercomunicantes, retro-coro e ampla capela-mor, de tipo escurialense. O ritmo das pilastras
emparelhadas, ladeando as capelas, as mísulas triglifadas do entablamento e o sistema de iluminação

26
Catarina Oliveira, DIDA/IGESPAR/28 de Novembro de 2007

Renascimento e Maneirismo - 17
por fenestras termais, mostram a monumentalidade do espaço, na procura de uma nova espacialidade
contrarreformista.
De planta longitudinal, o templo vicentino possui nave única, com transepto, capela-mor
bastante profunda e retro-coro. Nas paredes laterais da nave "destaca-se a sequência rítmica de
pilastras emparelhadas" (idem, ibidem), entre as quais foram rasgadas, em 1608 pequenas capelas,
comunicantes entre si. O espaço, cuja iluminação é feita através de janelas termais que se distribuem
pelo topo da cabeceira e do transepto, é coberto por abóbada de berço de caixotões, estando estes
decorados com diferentes relevos. O cruzeiro da igreja era originalmente rematado por uma cúpula, que
ficou totalmente destruída durante o terramoto de 1755.
A operacionalidade artística de São Vicente de Fora estende-se à qualidade das capelas, que
têm boa obra de talha (de Manuel da Costa e Manuel de Jesus Abreu, 1734, a das Almas) ou, no caso
da Capela das Onze Mil Virgens, um forro de mármores de cor da autoria do arquiteto Carlos Mardel
(1740). Destaque para a Sacristia, obra do arquiteto Luís Nunes Tinoco (portada barroca de 1691) e
para a Portaria conventual, forrada de mármores, com teto em perspetiva ilusionística da autoria do
pintor florentino Vincenzo Baccherelli (1710) e azulejos azuis e brancos do 'Ciclo dos Grandes Mestres'
com um panorama de Lisboa.

5.4.2. Igreja do Seminário dos Jesuítas - Santarém


A antiga Igreja do Colégio da Companhia de Jesus em Santarém, atual Igreja do Seminário
Patriarcal, impõe-se na Praça de Sá da Bandeira, no espaço dos primitivos paços reais escalabitanos,
doados por D. João IV à Companhia de Jesus.
As obras do monumento iniciaram-se em 1647 e terminaram em 1679, isto apesar da
decoração interior se ter prolongado pela primeira metade do século XVIII. O risco do projeto é
atribuído, por documentação coeva, ao arquiteto Mateus do Couto (Tio), revelando a sua poderosa
fachada, no centro do edifício colegial, uma linguagem austera do maneirismo tardio, própria do
denominado "estilo chão".
De acordo com as palavras do historiador de arte Vítor Serrão, a frontaria apresenta um
"...dispositivo de alternâncias rítmicas, jogo transversal dos calabres de "tipo manuelino" e sentido
grandiloquente das proporções".

Fachada
A fachada divide-se em cinco corpos através de largas pilastras e apresenta três andares
rematados por elevado frontão, ladeado por aletas e altos pináculos. Vencidos os degraus de uma
ampla escadaria, deparamo-nos defronte dos três portais retangulares que marcam o piso térreo, sendo
os dois laterais rematados por frontões triangulares interrompidos. O portal axial apresenta colunas
adossadas que se prolongam em pináculos alteados por bases, sendo encimado por baixo-relevo
cristológico envolvido por estrutura de colunas adossadas, sustentando frontão triangular interrompido.
Os dois andares superiores são rasgados por janelões e nichos contendo esculturas de santos
jesuíticos. No centro do frontão da empena, uma imponente imagem da Virgem está abrigada num
nicho ladeado por colunas adossadas. Decoração relevada avulsa em cartelas espalha-se nos
paramentos da fachada, notando-se em duas delas, ao nível do piso inferior, a data de 1676, ano em
que terminaram os trabalhos da frontaria jesuítica.

18- Renascimento e Maneirismo


Contrastando vivamente com a severidade das linhas maneiristas da fachada, o interior do
templo é marcado pela exuberante linguagem da arte barroca. Nave única, espaço rutilante e
enobrecido pela sumptuosa decoração dos tetos pintados, das talhas douradas, dos embutidos de
mármore e das imagens santificadas. A abóbada da nave apresenta uma extensa pintura em "trompe
l'oeil" com representações de N. Sra. da Conceição, narrações do Antigo Testamento ou ainda
alegorias dos quatro continentes. O ilusório jogo da pintura prolonga-se nas estruturas arquitetónicas
simuladas e na decoração subjacente, acentuando o ilusório efeito de maior dimensão espacial do teto.
O empreendimento desta notável obra de pintura barroca foi executada durante o 1.º quartel do século
XVIII.
Os restos mortais do fundador deste monumento escalabitano, o armeiro-mor D. Duarte da
Costa, foram trasladados para a capela-mor em 1698. As obras barrocas do retábulo-mor, de pedra de
jaspe, foram realizadas em 1713 pelo arquiteto italiano Carlos Batista Garvo. Frescos barrocos cobrem
o teto da ousia, obra do pintor Luís Gonçalves Sena e que se encontra em acentuado estado de
degradação.
O espaço interior revela ainda algumas áreas de grande beleza, como sejam o surpreendente
retábulo de talha dourada da Capela de N. Sra. da Glória, ou da Boa Morte, decorado por um baixo-
relevo do Apocalipse, obra executada em 1705 pelos entalhadores de Lisboa, António Martins Calheiros
e António Luís. O trono retabular possui uma escultura da Virgem com o Menino, atribuída ao francês
Claude Laprade.

5.4.3. Claustro de D. João III no Convento de Cristo em Tomar


O Claustro de D. João III do Convento de Cristo em Tomar, iniciado em 1557, tem sido apontado
como obra chave no duplo sentido de fechar um período e abrir um novo. Diogo de Torralva, o
projetista, utiliza a "serliana" ou "motivo de Palladio" nos dois andares do edifício, e partes deste
poderão ter sido inspiradas nos desenhos de Francisco de Holanda (do pátio do Vila Imperial, em
Pesaro) e de Serlio. Filipe Terzi veio a terminar esta "verdadeira obra-prima a nível mundial". Além de
ser um exemplo da cultura tratadística, testemunha a qualidade profissional dos arquitetos portugueses
na transição entre o renascimento e o maneirismo. Daqui em diante, surge uma nova tipologia de
claustros, como o do Colégio da Sapiência ou Colégio Novo, em Coimbra - já com decoração
tipicamente maneirista e piso superior fechado - ou o do Convento da Graça, em Lisboa.
Na segunda metade do séc. XVI, o "motivo de Palladio" - que terá mais a ver com a leitura dos
tratados de Serlio do que com uma influência do próprio arquiteto Andrea Palladio - é abundantemente
aplicado em átrios e galilés de igrejas urbanas e rurais, prova de assimilação e padronização de formas
eruditas na arquitetura quinhentista portuguesa.

5.4.4. Capela das Onze Mil Virgens, em Alcácer do Sal


Um exemplo que associa a erudição ao rigor geométrico é a construção, em mármore rosa de
Estremoz, da Capela das Onze Mil Virgens, em Alcácer do Sal, para servir de jazigo a D. Pedro
Mascarenhas - com toda a probabilidade, da autoria de António Rodrigues.
Capela das Onze Mil Virgens, edificada entre 1555 e 1565 por acção mecenática de D. Pedro de
Mascarenhas, filho dos fundadores do convento, e sua mulher D. Helena de Mascarenhas. O projecto
desta capela sepulcral de grandes dimensões é atribuído ao engenheiro António Rodrigues (MOREIRA,

Renascimento e Maneirismo - 19
Rafael,1986,p.149), sendo considerada uma obra de "erudita base italianizante" (SERRÃO,
Vítor,2002,p.191).
Uma obra magnífica de mármore branco, dentro do Convento de Santo António, onde a cúpula é
coberta por um jaspe translúcido que deixa penetrar os raios do sol, fazendo-os desdobrar em jogos de
cor na geometria das formas esculpidas.

A Capela das Onze Mil Virgens reflecte na sua organização planimétrica a estrutura do mítico
Templo de Salomão. A nave, um duplo quadrado, antecede o espaço do sepulcro, um quadrado
simples, tal como no arquétipo. À nave adossa-se, lateralmente, a sacristia; no terminus do eixo
longitudinal do templo situa-se a capela-mor, onde se guardam as relíquias das Virgens trazidas por
Dom Pedro aquando da sua passagem por Colónia como Embaixador de Portugal junto do Imperador
Carlos V. Ambas os espaços são de proporção sexquiquarta (hua proposição de hum quadrado e hu
quarto)27, assim como a secção transversal da nave. A modulação geral do templo faz uso de uma
geometria ad quadratum que se evidencia no espaço dominante, o mausoléu, uma caixa espacial
cúbica coroada por uma cúpula semiesférica assente sobre pendentes (triângulos esféricos que, por
sua vez, circunscrevem óculos circulares) onde o jogo entre o quadrado e o círculo espelha, com
intencionalidade, a relação entre a terra, que recebe as sepulturas, e o céu, para o qual se elevam as
almas.
E que céu esse! Uma cúpula absolutamente notável pela sua expressão formal, precisão da
estereotomia e pelo material. Divide-se em 24 semi-meridianos e 7 paralelos, números de evidente
tradução cósmica, visando simbolizar através da geometria, expressamente afirmada, a ordem
matemática do universo. Mas é o facto do material ser translúcido e permitir a filtragem da luz solar que
lhe acrescenta encanto. Graças a esta singularidade torna-se mais do que uma metáfora da cúpula
celeste porque nela se projecta o Sol, efectivamente. Um saboroso toque aristotélico no seio duma
concepção neoplatónica do cosmos.28

5.4.5. Igreja de Santa Maria da Graça


Santa Maria da Graça de Setúbal, tal como a São Pedro de Palmela, filia-se, tipologicamente,
nas igrejas de três naves, um programa com tradição e que, pela sua comprovada adequação à prática
de culto, resistirá ao tipo de igreja imposto pelo Concílio de Trento de que Il Gesù de Roma, de Vignola,
se constituirá como principal modelo embora se conheçam, mesmo no nosso país, exemplares
precedentes.
Impõe-se este templo de Setúbal pelas suas generosas dimensões para uma igreja que não foi
desde logo Sé. Impressiona, também, o desenho vigoroso da sua fachada principal com a presença
dominante das torres, que avançam relativamente ao pano central, sem se salientar em altura.
Flanqueiam uma galilé, com o tema recorrente da serliana (também patente na Capela das Onze Mil
Virgens), onde se rasga o pórtico de entrada, de rigoroso traçado clássico, com réplicas, a menor
escala, nas fachadas laterais. Essa antecâmara eleva-se a meia altura configurando uma varanda

27
Proposição 2 das “Proposições Matemáticas” (BPMP, Ms. 95).
28
João Pedro Xavier, Porto – 2004-03-19, Site do Instituto Camões (consultado a 7-8-2015)

20- Renascimento e Maneirismo


sobre a qual se abre um enorme janelão rectangular que inunda de luz o espaço de culto e dirige o Sol
Poente para o Altar.
A geometria do templo é também ad quadratum, mas não é evidente a sua detecção. Em planta
o rectângulo que corresponde ao conjunto das 3 naves tem a particularidade de ao ser subdividido em 5
partes, quer no comprimento, quer na largura, dar origem a um rectângulo homotético do primeiro cujo
comprimento determina o ritmo longitudinal dos tramos da colunata que, naturalmente, são 5. Por sua
vez o afastamento das duas fiadas de colunas, que definem a largura da nave central, é estabelecido
de modo a que cada tramo corresponda a um rectângulo 7:5, convergente com o rectângulo . A
geometria ad quadratum revela-se quando se considera o quadrado de diagonal igual ao comprimento
da nave e se verifica que a circunferência que circunscreve nos dá a sua largura exterior, a diagonal do
quadrado com o dobro da área determina a profundidade da capela-mor e o que duplica a área deste
último define o limite da fachada principal cortando os cunhais das torres.

A fachada é um rectângulo , ao baixo, afirmando a horizontalidade da composição. O rigoroso


recorte do par de janelas rectangulares nas torres, alinhadas com as que se abrem de cada lado do
arco da serliana e que teriam seguimento nas fachadas laterais, reforça essa horizontalidade que se
repercute, ademais, na proporção da secção transversal do templo contribuindo para a unificação do
espaço e a consequente diluição das naves. A fachada é subdividida de modo a que o pano central
corresponde a um duplo quadrado, resultando as torres laterais que o enquadram da sobreposição de
um rectângulo 6:5 e de um quadrado. O coroamento das torres embora não seja original está inscrito,
sensivelmente, num triângulo equiláter.

5.5. Arquitetura Civil


5.5.1. Quinta das Torres - Azeitão
A nível da arquitetura civil, destaca-se a Quinta das Torres, em Azeitão, da segunda metade do
século XVI. Na mesma região, mas no século seguinte, o Palácio dos Duques de Aveiro.

5.5.2. Palácio dos Marqueses de Fronteira - Benfica


Já da época da Restauração, salienta-se o Palácio dos Marqueses da Fronteira, em Benfica. Em
todos estes casos está presente a moda quinhentista de integração paisagística com uma natureza
racionalizada.

5.5.3. Outros palácios


Aparecem também casas com planta em U, de origem francesa, como o Palácio Távora-Galveias
no Campo Pequeno, a Quinta do Calhariz na Serra da Arrábida, a Casa de Vale de Flores em Braga e a
Casa de Pascoaes em Amarante. O ciclo filipino é a época da "corte na aldeia", exilada no repúdio pela
dinastia espanhola, que consolidou a tipologia do solar da fidalguia rural portuguesa.

5.6. Arquitetura militar


5.6.1. Forte de São Julião da Barra

Renascimento e Maneirismo - 21
A arquitetura militar tem no Forte de São Julião da Barra, na entrada do Tejo, o que Rafael
Moreira chamou "uma das obras-primas da arquitetura portuguesa, à altura das melhores criações do
século XVI".
Por altura das guerras da Restauração, a teoria e a prática urbanística dos arquitetos e
engenheiros militares nacionais foi bastante desenvolvida, e formaram-se técnicos em número
apreciável. A arquitetura militar quinhentista está, pois, na base de uma escola de urbanismo português
que mais tarde foi responsável pela reconstrução de Lisboa.29

6. Escultura
6.1. Principais escultores
6.1.1. Nicolau de Chanterenne
 Entre 1517 e 1551 – em Portugal
 Natural da Normandia
 Trabalhou em Itália e na corte de Francisco I
 Estilo fortemente italianizado e clássico
 Naturalismo
 Modelação anatómica das figuras
 Movimento
 Obras em Portugal:
 Estátuas jacentes dos túmulos dos reis de Portugal sepultados no Mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra
 Portal norte do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra
 Baixos-relevos do claustro de Santa Cruz de Coimbra
 Esculturas do portal principal dos Jerónimos
 Retábulo em jaspe para a capela do Convento da Pena
 Janelas da Igreja da Graça em Évora
 Túmulo de D. Álvaro da Costa

6.1.2. João de Ruão


 Entre 1528 e 1580
 Retábulos e baixos-relevos decorativos, sobretudo
 Figuras um pouco hieráticas, de movimentos comedidos
 Principais obras:
 Retábulo do altar de Nossa Senhora da Misericórdia, Varziela
 Deposição de Cristo no Túmulo
 Fonte-templete do claustro da Manga, Coimbra

6.1.3. Filipe Hodarte


 Chega a Portugal cerca de 1529. Sai de Portugal cerca de 1536

29
http://7mares.terravista.pt/8seculosdearte/maneirismo.htm

22- Renascimento e Maneirismo


 Grupos em pedra, talha e barro
 Correção anatómica
 Capacidade dramática – expressividade dos rostos e das roupagens
 Principais obras:
 Apóstolos – Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra

7. Pintura
Na viragem do século XV para o XVI inaugura-se um período áureo que se manifesta:
 Na quantidade e na qualidade da produção nacional
 Volumosa pintura de importação – que terá um impacto significativo sobre a
produção nacional

7.1. Ciclo manuelino


Habitualmente designado por “boa época” da pintura antiga portuguesa
Interesse crescente de uma clientela cada vez mais vasta – terá recebido um impulso crescente
desde meados de Quatrocentos
Diretamente articulado:
 Ao bem-estar económico
 À política de fausto da corte
Emergência de um “novo gosto” ----- indissociável da formação de uma nova mentalidade e de
alterações na esfera do pensamento religioso
Desejo de renovação estética --- parece estar na origem de numerosas encomendas de
grandes conjuntos retabulares historiados ---- encomendados para serem colocados em construções
novas ou construções que estão a sofrer profundas reformas – ex.: retábulos das sés de Viseu,
Lamego, Funchal, da igreja do Convento de São Francisco em Évora, da Charola do Convento de
Cristo em Tomar, do Convento da Madre de Deus em Lisboa, do Convento de Jesus, em Setúbal, etc.
 Gosto pelo real
 Gosto pelo concreto
 Apuramento do olhar, gosto pelo sensível, imediatidade com o real ---- base de um novo
discurso, gerador de tensões com o sistema simbólico de representações medievais e entrando
em rutura com o idealismo gótico
 Centralidade do homem – geradas pelos novos dinamismos culturais – reclama novas
estratégicas de representação e as novidades iconográficas, de acordo com a espiritualidade
da Devotio Moderna, acentuam a rutura com o período anterior
 Realismo ---- quer no retábulo destinado a um espaço público quer da imagem destinada à
devoção pessoal – permite ao fiel integrar-se no ambiente que envolve a situação e/ou a
personagem representada – ilusão do real
 Encomendador – representado explicitamente ou implicitamente, através de referências
iconográficas mais ou menos subtis (símbolos heráldicos integrados na decoração da margens,
como ornamento nas estruturas de talha de enquadravam a pintura, etc.
Ciclo manuelino:

Renascimento e Maneirismo - 23
 Propostas inovadoras do discurso formal
 Valores intrínsecos que se pressentem nas novas propostas
 “Um primeiro renascimento de inspiração nórdica”30
 Resistência à influência italiana (só se implanta cá no reinado de D. João III)
 Mecenato – dois pólos fundamentais:
 Corte – tendo como figura principal D. Manuel e a rainha D. Leonor, viúva de D.
João II
Mecenato de D. Manuel transforma-se num meio de propaganda política –
aspeto percetível na complexa simbologia que invade a imagem, na exuberância
formal, no extenso sentido decorativo das figuras e dos cenários
Importância do retrato, na maioria das vezes associado à figura de santos ou
personagens bíblicas
D. Manuel terá mandado fazer representar, no retábulo do Convento da Serra, a
rainha D. Maria (2ª mulher) e todos os seus filhos e filhas31
Tríptico da Misericórdia do Funchal, atribuído a Jan Provost – retrato e
iconografia de exaltação régia e nacionalista
Adoração dos Magos – Museu Grão Vasco – moeda na mão do Menino Jesus
Retábulo de Santa Auta – caravelas ornadas com escudos nacionais
 Igreja
 Contrato assinado por D. Pêro Gonçalves – protonotário apostólico e
arcediago da Sé de Lamego – recomenda que as suas armas sejam bem
pintadas, exige ao pintor Bastião Afonso o naturalismo que permita
identificar o seu retrato que “tirada per natural com sua calva”

7.1.1. Impacto da pintura flamenga


 Pinturas encomendadas diretamente às oficinas flamengas ou compradas no mercado
livre ---- dispersas no espaço público e, por isso, influenciam os pintores portugueses
que as veem
 Intercâmbio efetivo entre a Europa do norte e a Europa meridional - mobilidade dos
pintores: formação de pintores portugueses em oficinas flamengas, vinda de pintores
flamengos a Portugal – prática corrente na 1ª metade do séc. XVI
 Consequência das relações económicas e dinásticas entre Portugal e a Flandres

 Generalização da pintura a óleo


 Generalização do processo de construção material utilizado pelas oficinas flamengas:
 Importação de madeiras flamengas – os bordos da Flandres – para encaixe e
estrutura do retábulo (prática que já vinha do séc. XV)

30
RODRIGUES, Dalila “A pintura do período manuelino”, in PEREIRA (dir. de) (2007) História da Arte Portuguesa, 5º vol: Do
“Modo” Gótico ao Manuelino (séculos XV-XVI). Do Renascimento ao Maneirismo (séculos XVI-XVII), Lisboa, Círculo de
Leitores, pp. 27-105
31
Segundo Vítor Serrão

24- Renascimento e Maneirismo


 Sobre o suporte de madeira – camada preparatória de gesso e cola,
espalhada de forma homogénea
 Camada à base de branco de chumbo com a finalidade de criar uma
opacidade refletora de luz, essencial ao método de pintar por velaturas
 Desenho de composição – grande diversidade segundo as oficinas e cada pintor – tinha
como finalidade permitir ao pintor programar de uma forma mais ou menos
inconsequente (com maior ou menor grau de hesitação) e facilitar a execução pictural
da composição, que normalmente apresenta alterações ou retificações de forma em
menor escala do que ao nível do desenho subjacente
 Utilização de modelos e moldes oficinais, que circulavam de umas pinturas para outras,
aplicados pela técnica de estresido, seja na marcação de tecidos padronizados, seja na
definição das formas anatómicas ou outras
 Sobreposição de diversas camadas e finas velaturas – tendo o óleo como ligante
 Conjugação da pintura a óleo com a pintura a têmpera
 Pintura marcada pelo “Verismo” – atitude mimética do pintor em relação ao mundo real
o que o leva, por vezes, a cometer erros de perspetiva
 Tipologia do retábulo – díptico, tríptico ou políptico – segue a tipologia nórdica
 Os mais exuberantes compunham-se de 3 ou 4 fiadas de painéis, agrupados por ciclos
iconográficos de coerente temática, podendo integrar conjunto escultórios mais ou
menos complexos e ou simples imagens de vulto
 As preocupações com a narratividade determinam o lugar de cada painel no conjunto
retabular, montado em estruturas de marcenaria, cuja forma se adequava ao espaço
arquitetónico, acentuando ou disfarçando a sua estrutura
 Estruturas em talha que uniam os painéis e configuravam o retábulo, rematando-o com
exuberância
 Documentados diversos entalhadores nórdicos que fizeram para os pintores estas
estruturas – Arnao de Carvalho, João de Utrecht, Olivier de Gand, Jean d’Ypres, Angelo
Ravanel, entre outros

 Surto da pintura retabular e as potencialidades da pintura a óleo ---- remetem a pintura


mural para o estatuto de arcaísmo gotizante, definida por desenho linear,
tradicionalismo dos esquemas figurativos e o carater liso das cores

 Dimensões maiores do que as da pintura flamenga

7.1.2. Principais obras


 Retábulo da Sé de Viseu (1501-1506) – flamengo «Oração no Horto» - noturno;
trabalho com a luz, típica da pintura flamenga / a Itália, na mesma altura,
trabalha, com a forma e o gesto
 Retábulo da Sé de Lamego
 As ilhargas do retábulo marcavam as arestas do polígono da forma da capela
 «Última ceia» - Évora – luz dourada que banha a ceia

Renascimento e Maneirismo - 25
 «Retábulo de São Francisco» - Évora – técnica do Sfumato – acaba com o
dogmatismo da forma e alarga a liberdade de interpretação de quem vê
 1515 – Jorge Afonso - «Aparição de Cristo à Virgem» - mãos da Virgem

7.1.3. Importações
Acentuada preferência pela importação de obras dos Países Baixos, especialmente das
cidades flamengas
 1428-1429 – Desloca-se a Portugal uma embaixada para negociar o casamento da Infanta
D. Isabel com Filipe, o Bom, duque da Borgonha. Na comitiva viaja Van Eyck com o
encargo de pintar o retrato da infanta
Deste casamento resultou o estreitar das relações entre Portugal e a Flandres –
intensificam-se as relações comerciais e culturais; a circulação de artistas e de obras de
arte entre as duas cortes
Portugal – representa o simples papel de importador, tal como a Espanha, de recetor de
obras flamengas e campo de trabalho para pintores flamengos e ou portugueses que se
formaram na Flandres
 Integrando o séquito de D. Isabel – 1 pintor português na cidade de Bruges
 1504 – Oficina de Quentin Metsys – conta com um discípulo português “Eduwart
Portugalois” que vem a ser mestre em 1508 (data do seu registo na Confraria de S. Lucas
de Antuérpia)
 Oficina de Goswyn van der Weyden, neto de Rogier – presença de “Simon Portugalois”
Atendendo à influência flamenga na pintura
portuguesa, o número de pintores portugueses na
Flandres terá sido muito superior
 Pintores flamengos em Portugal – provavelmente também em número superior ao que está
registado
Victor Visete – já ativo em 1452
Jan Casijs – convidado em 1491 para ficar ao serviço de D. João II
Francisco Henriques e Frei Carlos

É da pintura flamenga que os pintores portugueses retirarão o essencial do seu discurso pictórico –
aparente simplicidade narrativa, oferecendo-se ao olhar do observador com a simplicidade com que se
dá a ver o mundo sensível
Entrosamento com a técnica flamenga e as suas potencialidades plásticas

 Obras encomendadas
Envio de grande número de obras para Portugal - pela Infanta D. Isabel, ofertas familiares e
diplomáticas, nomeadamente as que o imperador Maximiliano I terá enviado à rainha D.
Leonor, viúva de D. João II

Hans Memling – Virgem com o Menino

26- Renascimento e Maneirismo


 Convento de Jesus em Setúbal (talvez tenha pertencido ao Convento de Brancanes, em
Setúbal – segundo Reis-Santos)
 C. 1485
A Virgem apresenta-se sob um arco e o Menino repousa sobre um tapete oriental disposto num
parapeito, criando um efeito plástico de “janela” e de ligação entre o domínio sagrado da representação
e o espaço profano do observador.
Única obra em Portugal do mestre de Bruges, pode tratar-se do painel de um díptico em que, à
direita, figuraria a imagem do doador em atitude de veneração, segundo uma tipologia muito em voga
na pintura flamenga dos finais do século XV e que o próprio Memling adotou numa das suas obras mais
célebres, o díptico de Maarten van Nieuwenhoven (Sint-Jan Hospitaalmuseum, Bruges), onde a
representação da Virgem com o Menino é bastante semelhante à deste painel.

Quentin Metsys -Tríptico da Paixão de Cristo


 1514 - 1517
 191 x 92 cm
 Mosteiro de Santa Clara, Coimbra
 1514 - 1517
 MNMC 2518; 2519; 11267
Por encomenda de D. Manuel I, Quentin Metsys executou em Antuérpia, entre 1514 e 1517, o
tríptico de que se conservam os volantes. Estando o tríptico fechado, o observador deparava com a
Anunciação – primeiro momento da vida terrena de Cristo – em grisalha, em tons de branco, cinza e
rosa. Das cenas que encerram este ciclo falava o interior: ao centro, o Calvário; aos lados, a
humilhação infligida pelos romanos (Flagelação) e pelos judeus (Ecce Homo). Os temas e as
dimensões das figuras, a posição da cabeça e das mãos da Virgem, conservada em fragmento,
parecem autorizar a restituição conjetural do Calvário.
Já em 1931 o historiador da Arte, J. de Figueiredo, vira no pequeno quadro oval, figurando uma
Virgem Dolorosa, um fragmento do painel central. Com efeito, trata-se de uma falsa oval, pois a
extremidade direita é uma tira pertencente à zona inferior da orla do manto da Virgem, como facilmente
se depreende do bordado fingido a ouro.
Os repintes, grosseiros na cor e na pincelada, por de mais aparentes no punho esquerdo,
mostram que a obra a que refere o ex-voto da prioresa, escrito nas costas da peça, mais não foi do que
aproveitamento de uma parte do tríptico que um desastre – inundação ou incêndio – arruinara. Aliás, as
arquiteturas representadas nos volantes mostram que estes foram cortados nos quatro lados.
No volante esquerdo, as deformações fisionómicas dos rostos dos carrascos, comuns na obra de
Metsys, desta fase, recordam as caricaturas de Leonardo da Vinci, com quem contactou. No volante
direito, o primeiro plano, onde estão os fariseus, e o segundo, onde se encontra Jesus, aproximam-se
num efeito de intensidade expressiva, reforçada pela catedral de Antuérpia que, à esquerda, enquadra
esta cena.
Ao contemplar esta obra entendemos bem a preferência dos portugueses de Quinhentos pela
pintura flamenga, emotiva, como referia Francisco de Holanda, mas igualmente bela.

Jan Gossaert (Mabuse)

Renascimento e Maneirismo - 27
Mabuse, de seu verdadeiro nome Jan Gossaert (1478 - 1 de Outubro de 1532), foi um importante
pintor flamengo, vulgarmente identificado como o maior precursor do barroco na Flandres. É igualmente
considerado um dos maiores seguidores de Rogier van der Weyden.
Nasceu em Maubeuge, na atual França, e iniciou a sua formação artística na cidade de Bruges,
completando-a com diversas visitas a outros importantes centros artísticos flamencos.
Posteriormente, trabalhou em variadas cortes europeias e, desta forma, ia conhecendo, em
primeira mão, os estudos e as descobertas mais recentes, sobretudo relativos às áreas pelas quais
mantinha mais interesse, como Anatomia, perspetiva e Antiguidade Clássica.
Vulgarmente combinava estes elementos, próprios do Renascimento italiano, com a vivacidade,
alegorismo e precisão técnica da pintura flamenca, como se pode observar em obras como Dánae,
Antiga Pinacoteca, Munique, São Lucas pintando a Virgem, Galeria Nacional de Praga, Praga, A
Virgem com Menino, Museu do Prado, Madrid, ou Cristo coroado de espinhos, Fundação Medeiros e
Almeida, Lisboa.
Concebeu também numerosas versões de cenas bíblicas, como Adão e Eva, e muitos retratos de
proeminentes personalidades da época.

– Tríptico com a Sagrada Família e Anjos, no painel central, e Santa Bárbara e Santa
Catarina, nos volantes

Albrecht Dürer (Nuremberga, 1471-1528) – São Jerónimo


 Monogramado e datado (1521) no canto inferior esquerdo
 Óleo sobre madeira
 Aquisição, 1880
 Inv. 828 Pint
É uma obra-prima do mais genial pintor alemão do Renascimento, criada durante a sua viagem
aos Países Baixos nos anos de 1520-21. No conciso diário dessa viagem, Dürer descreve as relações
de grande cortesia e amizade que manteve com os dirigentes da feitoria portuguesa em Antuérpia,
muito especialmente com Rui Fernandes de Almada, secretário da feitoria, e assinala, em 16 de Março
de 1521, que acabara de oferecer este quadro ao diplomata português. A obra manteve-se sempre na
família dos Almada até à sua aquisição pela Academia de Belas Artes de Lisboa, em 1880, quando se
situava na capela da Quinta da Má Partilha (Azeitão).
O S. Jerónimo de Dürer constitui uma solução inovadora na iconografia específica e nas formas
de representação pictórica do santo patrono dos humanistas cristãos. A usual representação do Doutor
da Igreja no seu gabinete de estudo, rodeado de atributos de erudição ou de elementos lendários da
sua hagiografia vulgar, é aqui reconvertida em poderosa, concentrada e sintética imagem de um velho
sábio que melancolicamente medita sobre a morte e a contingência da condição humana, cujo olhar
nos interpela e envolve nesse exercício de sabedoria. O uso do tinteiro ou a leitura do livro foram
suspensos, o gesto da mão esquerda indica veementemente o crânio como espelho e destino de todas
as vanidades mundanas, o crucifixo, num plano recuado, focaliza a mensagem redentora num destino
espiritual e transcendente. No realismo da figura do santo (sabe-se que Dürer usou como modelo um
velho de 93 anos), como nos escassos objetos que a rodeiam, todas as sedutoras aparências da forma,
da cor e da luz foram magistralmente traduzidas, mas essa capacidade analítica, fenomenológica, serve

28- Renascimento e Maneirismo


algo mais que não se apreende na imediata visualização do espaço pictórico e da sua magnífica
figurabilidade. Com efeito, o S. Jerónimo de Dürer é um extraordinário exemplo da capacidade da
pintura renascentista para sugerir também um espaço de interioridade e de meditação, para dar a ver
um “espaço mental”.
Na Galeria Albertina (Viena) e na Galeria Dahlem (Berlim) subsistem quatro desenhos
preparatórios para esta obra.32

7.2. Oficina de Gerard David - Retábulo da Sé de Évora


Em 1495, uma bula do Papa Alexandre VI autorizava o bispo de Évora e o cabido a retirar
provisoriamente da capela-mor alguns altares e a proceder a obras na catedral que, em algumas
partes, ameaçava ruína. Sabemos, por biógrafos do bispo, e alguns escudos de armas ainda existentes
no edifício, que essas grandes obras patrocinadas pelo bispo D. Afonso de Portugal (bispo da cidade
entre 1485 e 1522) abrangeram não só a capela-mor, mas toda a nave sul do corpo da catedral e ainda
o batistério inserido na torre norte da fachada, além de vário mobiliário, como grades, púlpitos e,
certamente também, o grande retábulo flamengo que coroaria esta profunda intervenção na catedral
ducentista.
A data posterior a 1495 para a execução do retábulo é ainda reforçada pelo facto do viajante
alemão Jerónimo Münster, que visitou a Sé em Novembro de 1494 e gabou a arquitetura do edifício e
dos claustros, não se referir a qualquer retábulo, o que talvez tivesse feito se um grande conjunto de
boa qualidade e recente já estivesse colocado na capela-mor, como fez frequentemente nos seus
relatos de catedrais espanholas.
D. Afonso foi um personagem importante no Portugal de D. João II e D. Manuel. Filho natural do
Marquês de Valença, julgou-se sempre com direito à herança da Casa de Bragança, o que terá motivo
a pressão do rei para que entrasse na vida religiosa, já depois de ele próprio ter três filhos naturais, de
onde sairão os Condes de Vimioso. Esta condição de grande senhor, primo direto da casa real,
possibilitou-lhe fortuna e vontade para grandes obras, como a edificação do seu palácio junto à Sé de
Évora e da famosa casa de campo da Sempre Noiva, o colecionismo de antiguidades e a manutenção
de uma corte de poetas e dramaturgos, e as grandes obras da Sé, em que avulta este retábulo, um dos
maiores conjuntos de pintura flamenga conhecidos. Sabe-se que aspirou à púrpura cardinalícia e as
suas empreitadas artísticas parecem integrar-se na diplomacia necessária para este desejo, frustrado
aliás quer pelo rei, quer pelo Cardeal de Alpedrinha.
Ao escolher uma empreitada flamenga D. Afonso acercava-se do gosto português e peninsular
da época. As relações comerciais intensas com a Flandres possibilitavam contactos rápidos, frequentes
e um conhecimento da realidade artística das principais cidades flamengas, sendo então generalizado
entre nós o gosto pela pintura da Flandres. D. Manuel teve como seu pintor preferido o flamengo
Francisco Henriques, que trabalhou bastante para Évora (S. Francisco, 1508), a Sé de Coimbra, em
1498-1502, teve o seu retábulo esculpido por dois flamengos, nos retábulos das Sés de Viseu (1501-
1506) e Funchal (c.1512) dominam pintores flamengos. Em 1500 o bispo de Viseu escrevia ao seu
cabido sobre o retábulo a fazer, com a elucidativa expressão: “da Flandres se há-de trazer melhor e
mais barato”.

32
Texto do MNAA

Renascimento e Maneirismo - 29
Não foi apenas no gosto flamengo que a encomenda de Évora se enquadrava na moda de
renovações nas principais Sés, mas também na tipologia retabular, com conjuntos narrativos
construídos em altura, com três ou mais andares sobrepostos. Esta tipologia, comum na Península
Ibérica, estava de acordo com a arquitetura das capelas-mores nacionais e articulava-se, no caso das
igrejas espanholas (e não sabemos se das portuguesas também) com a presença do coro catedralício
no início da nave central.
A iconografia do conjunto de Évora tem também paralelos, na reunião de cenas da Paixão de
Cristo, com um número superior de painéis da Vida da Virgem com outros retábulos coevos, como
Viseu, ou Freixo-de-Espada-à-Cinta, mas apresenta a particularidade da Paixão ocupar apenas os
painéis de predela. Que saibamos apenas outro exemplo contemporâneo se encontra em toda a
Península – a catedral de Nossa Senhora de Assunção de Trujillo, em Espanha, para onde Fernando
Gallego pintou um retábulo cerca de 1490. A comparação dos dois conjuntos, Évora e Trujillo é
particularmente interessante, pois parece haver uma profunda coincidência nos temas e na posição
narrativa dos vários painéis. Acrescente-se que Trujillo era comumente visitada por Portugueses (como
o próprio rei D. Manuel, que com o seu séquito passa pela cidade na visita a Espanha de 1498), quer
porque se situasse na rota normal para Toledo, onde a corte espanhola permanecia frequentemente,
quer por ser a cidade mais próxima ao Mosteiro de Guadalupe, então um dos centros peregrinacionais
mais importantes de Espanha e de particular devoção portuguesa.
Desde 1890, quando o historiador alemão Carl Justi observou as pinturas de Évora, que o
conjunto retabular tem sido maioritariamente colocado na órbita de Gerard David (c.1455-1523), pintor
que se instalou em Bruges a partir de 1484. Muito nas pinturas de Évora lembra David – a suavidade do
colorido, as elegantes figuras femininas, certos rostos muito próximos a desenhos seus, a minúcia da
paisagem, etc., e talvez deva mesmo considerar-se, ainda hoje, David como a influência mais marcante
nos mestres que colaboraram no retábulo de Évora. Na data em que os painéis podem ter sido
pintados, depois da morte de Hugo Van der Goes (c. 1440-1482) e de Memling (act. 1465-1494), o
atelier de David era o mais influente de Bruges e, mesmo pondo em causa a autoria direta da sua
oficina, a crítica é praticamente unânime em situar o conjunto de Évora na proximidade estilística da
obra de David. É significativo que as últimas propostas autorais para o conjunto, respetivamente de
Didier Martens (1995) e de Mathias Weninger (1999), tenham avançado os nomes dos Mestre da
Madonna André e do Mestre do Retábulo de Santa Ana de Washington, dois nomes convencionais que
definem ignorados artistas relacionados com a oficina, ou pelo menos com os modelos, de Gerard
David.
A fase de estudo que se segue incidirá em boa parte na análise dos materiais recolhidos e na
sua comparação com as informações disponíveis sobre obras flamengas, mas é desde já possível ver
que se detetam, no retábulo de Évora, não só modelos de David, mas também de Goes, de Bouts, de
Weyden e de uma série de obras de iluminura ganto-brugense. Também é possível ver que são
utilizados vários processos de assemblagem, diversos métodos de desenho e um uso quase
generalizado de métodos de transposição de desenho, como a duplicação de modelos através de
cartões perfurados, conhecido como “poncif” ou estrazido. Esta realidade não é inusual e quer o recurso
a “citações” de obras e mestres célebres, quer os métodos mecânicos de transposição de desenho,
caracterizam bem a pintura de Bruges do final do século XV. A situação da cidade mudara muito, em
relação ao seu período áureo de meados do século XV. As guerras com o Imperador, o cerco da cidade

30- Renascimento e Maneirismo


e, sobretudo, o crescimento de Antuérpia, criaram na última década do século uma decadência da
cidade, sobretudo motivada pela preferência das comunidades estrangeiras pela florescente Antuérpia.
O sistema de oficinas de pintura também se alterou. A enorme maioria passa a ser uninominal e,
excetuando as que funcionavam como escolas, todas eram muito pequenas. Uma obra com a
dimensão do retábulo de Évora necessitava de um esforço de união de mestres e oficiais o que
explicará certa diferença de processos e a grande variedade de modelos que se deteta neste
conjunto.33

Um 1º Renascimento de inspiração nórdica


 Relações políticas e económicas com o norte da Europa
 Importações do norte da Europa
 Pintores portugueses no norte da Europa
 1504 – oficina de Quentin Metsys tem um “Eduart” Portugalois a trabalhar
 Oficina de Weyden – “Simon Portugalois”
 Pintores flamengos em Portugal
 Casamento da Infanta D. Isabel (filha de D. João I) com Filipe, o Bom, duque da Borganho

7.3. Jorge Afonso


Jorge Afonso foi um pintor português da época renascentista.
Era arauto de el-rei e morava nas imediações da Igreja de S. Domingos, em Lisboa, conforme
ele próprio declara no depoimento que fez no processo de Garcia Fernandes, seu sobrinho por
afinidade, por ser casado com a filha de uma sua irmã. Ora, sendo a mulher de Garcia Fernandes filha
do pintor Francisco Henriques, segue-se que Jorge Afonso era cunhado deste último.
A 9 de Agosto de 1508 D. Manuel nomeou-o seu pintor, com o encargo de examinador de todas
as obras de pintura, submetidas a seu exame e avaliação. Tinha, com este ofício, dez mil reais por ano,
pagos na Casa da Mina. D. João III confirmou-lhe a nomeação a 09.12.1529.
Pela sua oficina, junto ao Mosteiro de S. Domingos, em Lisboa, passaram, como seus
discípulos ou oficiais, alguns dos mais ilustres pintores da geração seguinte, como o seu sobrinho
Garcia Fernandes, seu genro Gregório Lopes, Cristóvão de Figueiredo, o viseense Gaspar Vaz e
possivelmente ainda, com mais ou menos demora, o famoso Vasco Fernandes, que, com o referido
Gaspar Vaz, serviu de testemunha numa escritura entre Jorge Afonso e o Mosteiro de S. Domingos, em
1515. Deve ter sido, desse modo, grande a sua influência sobre os artistas do tempo.
Em 30 de Novembro de 1519 foi celebrado um contrato entre Afonso Monteiro e Afonso
Gonçalves, carpinteiro de maçanaria, para fazer os poiais e grade para o retábulo da Conceição, que
Jorge Afonso havia de pintar. No respetivo contracto se declara que estava presente Jorge Afonso,
irmão de Afonso Gonçalves. "Seria este Jorge Afonso o próprio pintor?" Esta hipótese parece confirmar-
se, vista a semelhança ou identidade da assinatura dos dois. Em 21 de Julho de 1521 atestava Jorge
Afonso ter recebido a dita obra, segundo a forma do contrato, mas não se sabe se o chegou a pintar ou
não o dito retábulo e, em caso afirmativo, ignora-se o seu paradeiro.

33
Joaquim Oliveira Caetano, Museu de Évora, O RETÁBULO FLAMENGO DE ÉVORA: UMA PERSPECTIVA, in
www.museudevora.imc-ip.pt

Renascimento e Maneirismo - 31
Em 1518 celebrou Bartolomeu Fernandes um contrato para a pintura do coro de Santo António.
Jorge Afonso passou por debaixo desse contrato um atestado, em que certificava estar concluída a
obra.
A Jorge Afonso é atribuída a execução dos grandes painéis de pintura sobre madeira da
Charola do Convento de Cristo, em Tomar - Cristo e o centurião, Ressurreição de Lázaro, Entrada
triunfal de Cristo em Jerusalém e Ascensão, bem como o retábulo da igreja do Convento da Madre de
Deus, em Lisboa hoje no Museu Nacional de Arte Antiga).34. Faleceu em 1540.
Oficina régia de Lisboa – do mestre Jorge Afonso
 1508 – Nomeado pintor régio por D. Manuel (estatuto confirmado por D. João III em
1529)
 Aparentado com grandes pintores de Lisboa: cunhado de Francisco Henriques, sogro
de Gregório Lopes, tio das mulheres de Cristóvão de Figueiredo e de Garcia
Fernandes; parente de João de Ruão
Deu um contributo decisivo, senão na elaboração, pelo menos no impulso, aos caminhos
progressivamente autonomizados (face aos impositivos referentes flamengos) da pintura portuguesa do
Renascimento
Ligado às grandes empreitadas oficiais – na sua qualidade de pintor régio
Desempenha as funções de “examinador, vedor e avaliador” de todas as obras de pintura de
encomenda régia
Direção de algumas empreitadas concretas:
 Conjunto de pinturas destinadas à Charola do Convento de Cristo em Tomar: conjunto
de tábuas que se destinaram a preencher os arcos cegos da Charola do Convento de
Cristo. O tema central desta encomenda compreende cenas da vida e paixão de
Cristo. As tábuas que ainda hoje subsistem são: A Ascensão de Cristo; A Entrada em
Jerusalém; Cristo e o Centurião; Ressurreição de Lázaro; Ressurreição de Cristo;
Batismo de Cristo (incompleta); Pentecostes (conserva-se apenas um fragmento).
 Retábulo da igreja do Convento da Madre de Deus
 Retábulo da igreja do Convento de Jesus em Setúbal
Formador de Cristóvão de Figueiredo e de Gregório Lopes

7.3.1. Conjunto das tábuas monumentais da Charola do Convento de Cristo em Tomar


Cristo e o centurião
Ressurreição de Lázaro (?)
Entrada de Cristo em Jerusalém
Ressurreição
Ascensão
Fragmentos em que se insere o Batismo

Insere-se na campanha de obras de remodelação, encomendada por D. Manuel


Datável de 1510-1515
34
O Melhor Oficial de Pintura que Naquele Tempo Havia, por Joaquim Caetano, Editado em "O Tempo de Vasco da Gama",
direcção de Diogo Ramada Curto

32- Renascimento e Maneirismo


 Essenciais componentes flamengos
 Disparidade de soluções formais, tanto nos esquemas compositivos, como em figurações
pontuais ------ eventual participação de outros pintores mas sobretudo o pintor que
experimenta diversas vias
 Revelam uma certa imaturidade nas dificuldades de espacialização, na articulação das
escalas e num desigual tratamento da forma – à visão analítica de certas figuras, adereços
e pormenores sobrepõem-se um certo esquematismo e rigidez, caso de algumas figuras
da Ascensão, e opacidade matéria das nuvens
 Algumas descontinuidades entre os painéis ao nível do tratamento da luz – o seu valor
modelador é minimizado em algumas situações
 As texturas dos tecidos, o reflexo dos metais e a ambiência lumínica dos fundos é por
vezes acentuada com grande requinte e sentido dramático
 Caráter vigoroso das composições, cuja monumentalidade, acentuada pela elevação da
linha do horizonte e pelo alongamento estrutural das figuras m primeiro plano – facto que
se deve em parte às dimensões das pinturas (c. de 4 X 2,5 m) – e à sua integração no
espaço arquitetónico, não tem paralelo imediato na pintura portuguesa

7.3.2. Retábulo da Madre de Deus em Lisboa


Revelam um pintor progressivamente mais maduro – mais coerente e mais seguro seja no
manuseamento da luz e na distribuição da cor, seja na utilização de um reportório formal mais unitário
 Encomenda de D. Leonor
 Data: 1515
 Desconhece-se a constituição original do retábulo
 Sete painéis geralmente aceites como integrando o retábulo:
 Anunciação
 Adoração dos Magos
 Adoração dos Pastores
 Ascensão
 Aparição de Cristo à Virgem
Esta pintura representa a cena bíblica do aparecimento de Cristo a Nossa Senhora
após a Ressureição. A composição divide-se em duas partes distintas: o interior e o
exterior. No primeiro, com pavimento de mosaico, pilastras de mármore encimadas
por capitéis e parede rasgada por janelas de vitrais, Cristo de pé envolto num manto
vermelho orlado a ouro, surge à Virgem que, ajoelhada e de mãos postas, veste
manto azul e toucado branco. No espaço exterior, tendo como pano-de-fundo uma
paisagem pontuada por torreões e uma cidade amuralhada, estão representados
alguns Apóstolos, Adão e Eva. A data de 1515 surge inscrita numa cartela segura por
um anjo em "grisaille" na base da coluna intermédia que separa as duas cenas.
 Pentecostes
 Assunção
Fernando António Batista Pereira propõe integrar o painel de São Francisco entregando os
estatutos da Ordem a Santa Clara

Renascimento e Maneirismo - 33
 Serena monumentalidade das figuras
 Visão analítica da matéria
 Requinte das arquiteturas e dos adereços
 Rara força do desenho
 Vivacidade e variedade da cor – faz de Jorge Afonso um grande colorista
 Subtil jogo de luz e sombra nas formas representadas
 Realismo mais apurado
 Visão menos sintética das formas
 Poderosa caraterização dos rostos
 Fundos azulados – caraterísticos da pintura flamenga
 Domínio seguro da perspetiva aérea
 Arquiteturas – revelam uma sensibilidade plenamente renascentista de feição italianizante,
eclética, integrando os valores clássicos

7.3.3. Retábulo da igreja do Convento de Jesus em Setúbal


 1520-30
 Museu de Setúbal
 Insere-se no círculo das encomendas áulicas
 Mostra experiências sucessivamente acumuladas, traduzidas agora num poderoso sistema
formal
 «Obra de certa das mais cuidadas e excelentes do pintor, seguríssima na composição, na
espacialidade, na distribuição cromática» - Teixeira, José Carlos da Cruz «A Pintura Portuguesa
do Renascimento. Ensaio de caraterização», p. 423
 Organização em 3 registos de acordo com a narratividade dos temas:
 Registo inferior – a laia de predela - série de frades franciscanos
 Registo intermédio – série da infância de Jesus
 Registo superior – cenas da Paixão de Cristo
 “Aparição do Anjo às Santas Clara, Inês e Coleta” – segue com rigor a versão de Quentin
Metsys – permite identificar na arquitetura de fundo o símbolo da rainha D. Leonor – o
camaroeiro
 Elegante decorativismo dos trajes e das armas
 Requinte das joias
 Recurso ao drap d´honneur
 Poderoso e coerente sistema formal
 Verdade ocular e realismo táctil --- minucioso descritivo dos trajes e das joias – chapéu do rei
mago, chegado para o 1º plano
 Três reis magos --- inserem-se no plano de forma escalonada
 Elegância cortesã das personagens representadas – quer os magos, quer as personagens junto
ao murete
A pintura de Jorge Afonso é, ao mesmo tempo, a expressão mais cabal da pintura cortesã do
“ciclo manuelino” e a configuração concreta da primeira demarcação ou do progressivo sentido de

34- Renascimento e Maneirismo


autonomia que os pintores portugueses, face à hegemonia de um gosto conformado à pintura nórdica,
impuseram a partir das duas primeiras décadas do século XVI35

7.4. Francisco Henriques


Francisco Henriques ou Francisco Anriques (Flandres, ? - Portugal, 1518) foi um pintor ativo em
Portugal no início do século XVI. As obras que lhe são atribuídas mostram um perfeito domínio do
ofício, seguindo um estilo gótico tardio de grande elegância.
Pouco se sabe sobre sua vida, mas é certo que chegou a Portugal por volta do ano de 1500,
vindo de Bruges, na Flandres, onde pode ter sido aluno de Gerard David. Parece que seu primeiro
trabalho em Portugal foi o retábulo da Sé de Viseu, liderando uma oficina da qual participava Vasco
Fernandes, então um jovem aprendiz.
Depois trabalhou na decoração de várias igrejas, especialmente no retábulo-mor e nos painéis
das capelas laterais da Igreja de São Francisco de Évora, o mais notável e mais belo agrupamento de
pintura manuelina, hoje quase na sua totalidade à guarda do Museu Nacional de Arte Antiga, em
Lisboa, e na Casa dos Patudos, em Alpiarça, executado por Francisco Henriques de 1507 a 1511.
José de Figueiredo atribuiu-lhe, sem base documental, o "Retábulo da Vida de São Tiago", do
Convento de Palmela, por o datar da época do apogeu do artista.
Em 1518, Francisco Henriques foi designado para fazer um importante conjunto de pinturas para
o Tribunal da Relação, obra a que meteu ombros ajudado por vários oficiais flamengos e também por
pintores portugueses de categoria, como o seu futuro genro Garcia Fernandes e porventura André
Gonçalves, Cristóvão de Figueiredo e Gregório Lopes. Chefiar um tal grupo de artistas é testemunho
flagrante de valor e prestígio. Este conjunto que não chegou a concluir-se perdeu-se, infelizmente,
talvez no Terramoto de 1755; Garcês Teixeira supõe que dele provenha a impressionante tábua
quinhentista «O Inferno», no Museu Nacional de Arte Antiga. No mesmo ano de 1518, porém, Francisco
Henriques findava os seus dias vítima da peste que então assolou Lisboa e ceifou também os seus sete
oficiais flamengos e alguns escravos ao seu serviço. O mestre pintor permanecera em Lisboa, com os
perigos da epidemia, por determinação de D. Manuel I, que tinha a peito ver a obra concluída sem
demora.
 Pintor flamengo ou, pelo menos, de formação flamenga
 Atividade documentada entre 1503 e 1518
 Considerado, em 1540, o «milhor oficial de pintura que naquele tempo avia»
 Fixou-se em Lisboa e estabeleceu relações profissionais e familiares (cunhado de
Jorge Afonso) com os pintores mais notáveis da capital

7.4.1. Retábulo da Capela-mor da Sé de Viseu


 Iniciada após setembro de 1500, encontrando-se concluída em maio de 1506
 Feita entre 1503 e 1508
 Conjunto de painéis, que relatam episódios da vida da Virgem Maria e de Jesus Cristo
 Obra encomendada pelo Bispo de Viseu, D. Fernando Gonçalves de Miranda

35
PEREIRA, Paulo (2007) História da Arte Portuguesa – Renascimentos (século XVI), p. 47

Renascimento e Maneirismo - 35
 Feita por uma equipa liderada por Francisco Henriques, entre 1501 e 1506 à qual se juntou
Vasco Fernandes, conhecido como Grão Vasco, tendo esta sido a sua primeira obra
 Temas representados relatam episódios da vida da Virgem e de Cristo:
 Na primeira fiada relata-se a Anunciação, a Visitação, a Natividade, a Circuncisão,
a Adoração dos Reis Magos, a Apresentação no Templo e a Fuga para o Egipto
 Segunda fiada os últimos dias da vida de Cristo, a que se chama a Paixão: a
Última Ceia, a Oração no Horto, a Prisão de Cristo, a Descida da Cruz, a
Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes.
7.4.2. Retábulo da capela-mor da igreja do Convento de São Francisco em Évora
 Obra coletiva
 15 Painéis (MNAA e Casa-Museu dos Patudos, Alpiarça)
 4 Registos formados, cada um, por 4 painéis (eventualmente com o Calvário – desaparecido –
ao centro do último registo), integrados em exuberante talha dourada, executada por Olivier
de Gand
 Registo inferior: temas eucarísticos – Apanha do Maná, Abraão e Melquisedeque,
a Missa de São Gregório e a Última Ceia --- mostra uma profundidade espacial e
um realismo descritivo muito superior aos outros painéis
 Penúltimo registo – a infância de Jesus
Azulamento intenso do céu e luminosidade cromática dos tecidos – destacar a
pintura do encaixe em talha
 Último registo – temas da Paixão – opção, em termos compositivos, pelo
escalonamento das figuras no plano, à maneira da tapeçaria procurando através
da expressiva gestualidade das figuras – Santa Maria Madalena – reclamar a visão
do espectador
Alguns erros de perspetiva e a síntese formal, em vez da visão analítica e do
verismo sensível, têm como objetivo também reclamar a visão do espectador
Desarticulação de escala entre as figuras do 1º plano e as dos planos de fundo,
erros de perspetiva ----- contrariam qualquer relação mimética com o mundo
As figuras gigantescas (Madalena e Cristo na “Aparição de Cristo a Maria
Madalena”) – grande força expressiva; parecem recortar-se num fundo que não as
integra; descontinuidade com o fundo áspero e monocromático
 Amarelos usados por Francisco Henriques são uma verdadeira marca distintiva
7.4.3. Pentecostes
7.4.4. Tríptico dos Infantes – MNAA

 Parece ter evoluído no sentido da sobriedade formal ou para uma essencial


síntese expressiva
 A luz meridional tem um papel fundamental nas suas obras

7.5. Mestre da Lourinhã

36- Renascimento e Maneirismo


Mestre da Lourinhã era um pintor do século XVI, da escola luso-flamenga. Esta escola faz a
transição do gótico final para o Renascimento e é influenciada pelas técnicas e estética dos primitivos
flamengos do século XV.
Denominação dada ao autor desconhecido de uma série de pinturas do século XVI.
Calcula-se que este mestre tenha estado profissionalmente ativo entre 1500 e 1540 e pela
análise das suas obras chegaram certos historiadores, como Reynaldo dos Santos e Luís Reis-Santos,
a colocar a hipótese de ser de origem flamenga, como foi o caso de bastantes outros artistas desta
época.
Luís Reis-Santos foi de facto o primeiro historiador a dedicar-se ao estudo das pinturas deste
mestre (e o que propôs o nome que o identifica), a partir de duas chamadas São João Baptista no
Deserto e São João Evangelista em Patmos (c. 1515) que se encontram na Santa Casa da Misericórdia
da Lourinhã.
Estas duas pinturas tinham sido oferecidas pela segunda mulher do rei D. Manuel, a rainha D.
Maria, a um mosteiro de monges jerónimos existente na ilha Berlenga, e quando este se extinguiu
foram levadas para o Mosteiro de Vale Benfeito (em Peniche) e, posteriormente, para a dita
Misericórdia.
Algumas das demais obras atribuídas ao Mestre da Lourinhã encontram-se no Museu Nacional
de Arte Antiga (oito pinturas sobre madeira - entre as quais Cristo envia S. João e S. Tiago em Missão
Apostólica e S. Tiago e Hermógenes -, que pertenceram presumivelmente ao Mosteiro de Palmela, o
"Tríptico" dos Infantes (impropriamente chamado tríptico pois sabe-se que estas 3 pinturas fariam parte
de um políptico com muitas mais pinturas cujo estado e paradeiro se desconhece) e o Pentecostes, na
Sé do Funchal (um retábulo datado de cerca de 1510/1515, encomendado por D. Manuel), na igreja do
santuário do Cabo Espichel, na igreja Matriz de Arruda dos Vinhos, na de Cascais, na Fundação
Medeiros e Almeida (A Virgem e o Menino) e no Museu de Beja.
O conjunto das pinturas que lhe são atribuídas destacam-se pelo marcado estilo próprio do autor,
que não se limitaria a copiar nem faria parte de uma oficina, e pelo avanço técnico e estilístico em
relação à época perante o que se fazia em Portugal. Entre várias hipóteses colocou-se a de este
personagem ser o pintor/iluminador Álvaro Pires ativo no século XVI (não confundir com o pintor Álvaro
Pires de Évora, ativo no século XV), uma vez que também executava magistralmente obras
encomendadas pelo rei e seus familiares e se encontram semelhanças no que se refere à execução
pictórica. Foi também avançada (pelo professor Rafael Moreira) a possibilidade de se tratar do pintor
João de Espinosa, pintor régio do rei Dom Manuel. Esta hipótese tem por base um documento referente
a pagamentos feitos em Almeirim a este pintor (foi, pois, feita a associação desse documento com a
execução do já referido "Tríptico dos infantes"). Tanto a hipótese Álvaro Pires como a hipótese João de
Espinosa devem ser vistas como hipóteses ainda sem comprovação definitiva, e como tal meras
hipóteses de trabalho. No atual estado dos conhecimentos, a hipótese da existência de um mestre da
Lourinhã ainda não é mais do que uma hipótese, sintomático deste facto é que o corpus inicialmente a
ele atribuído está cada vez mais reduzido (praticamente só as pinturas de Palmela, as duas da
Lourinhã, o "tríptico" dos infantes e o políptico da sé do Funchal (carente de tratamento de conservação
que permitam efetivamente dar a ver as pinturas e permitir um efetivo estudo das mesmas); a sua
ascendência flamenga também não é certa, Luís Reis-Santos, por exemplo, não afirma que o mestre
seja flamengo, mas sim influenciado por modelos flamengos, nomeadamente no tratamento das

Renascimento e Maneirismo - 37
paisagens. O mesmo historiador de arte sugeria, assim, possíveis influências do pintor Patinir ou sua
oficina.

7.5.1. São João Baptista no Deserto (Museu da Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã)
 Originalmente na capela-mor do Mosteiro Jerónimo das Berlengas (fundado em 1513)
 Transitou para o Convento dos Frades Jerónimos em Vale Benfeito (estava aqui desde
1565)
 Transferido para a Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã
 Encomendado por D. Manuel e D. Maria, fundadores do Mosteiro Jerónimo das Berlengas
 Executada entre 1512 e 1517

7.5.2. São João em Patmos (Museu da Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã)


 Originalmente na capela-mor do Mosteiro Jerónimo das Berlengas (fundado em 1513)
 Transitou para o Convento dos Frades Jerónimos em Vale Benfeito (estava aqui desde
1565)
 Transferido para a Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã
 Encomendado por D. Manuel e D. Maria, fundadores do Mosteiro Jerónimo das Berlengas
 Executada entre 1512 e 1517
 As figuras de São João e da Águia dominam o 1º plano – sendo aproximadas da visão do
observador pelas dimensões, pela luz diferenciada, pelo intenso cromatismo
 Cromatismo tende a perder-se na profundidade espacial do fundo paisagístico
 Construção da composição ----- justaposição de planos, distribuindo de forma diferenciada a
luz e a cor
1º Plano – visão definida e minuciosa da forma, acentuada pelo cromatismo vivo e pela
anotação dos pormenores sensíveis, modelados por uma luz quente
Últimos planos – os contornos das formas tendem a diluir-se no azulamento progressivo da
luz e da cor

 Os mais extraordinários fundos da pintura do ciclo manuelino


 Sábio domínio da perspetiva aérea
 Gama inigualável de azuis

7.5.3. Tríptico dos Infantes


 D. Luís, Duque de Beja (2º filho de D. Manuel I) e um santo dominicano
 D. João (futuro D. João III) com São João Batista

Retábulo da capela-mor da igreja do Convento de Santiago de Espada em Palmela


 Encomendado pelo mestre da Ordem, D. Jorge, filho bastardo de D. João II
 Originariamente constituído por 12 painéis – restam 8
 Cristo Envia S. João e São Tiago em Missão Apostólica (Museu Nacional de Arte
Antiga, Lisboa)
 Santiago e Hermógenes (Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa)

38- Renascimento e Maneirismo


7.6. Frei Carlos
 Pintor flamengo
 Professou no Convento de Santa Maria do Espinheiro, próximo de Évora
Frei Carlos ou Frei Carlos de Lisboa ( ? — 1540) é nome pelo qual ficou conhecido no mundo da
arte um frade de origem flamenga, sendo filho ou neto de flamengos, mas nascido em Lisboa, e que,
depois de professar em 1517 como freire da Ordem de São Jerónimo, no Convento do Espinheiro, junto
a Évora, se notabilizou como pintor de retábulos e de outras obras de carácter devocional .
Este monge-pintor, conhecido enigmaticamente apenas por Frei Carlos, foi uma das mais
importantes figuras da pintura retabular peninsular das primeiras décadas do século XVI. Alguns dos
grandes painéis que a sua oficina pintou para igrejas conventuais estão entre as obras mais apreciadas
das coleções do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa.
Relativamente ao seu trabalho, sabe-se que trabalhou também para outros conventos
hieronimitas em Portugal, nomeadamente o de Belém e o de Santa Marinha da Costa, perto de
Guimarães. Dada a falta de unidade técnica e estilística detetadas em pinturas saídas do Espinheiro,
admite-se que, face a uma produção volumosa, Frei Carlos fosse o mestre de uma oficina que
trabalharia em moldes semelhantes às de outras que funcionavam “à sombra dos mosteiros”.
A par de Francisco Henriques e do Mestre da Lourinhã, Frei Carlos é considerado um dos mais
importantes pintores flamengos da pintura quinhentista em Portugal.

Principais obras:
 Ecce Homo ou Senhor da Cana Verde, Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.36
 Santos Martinho, Vicente e Sebastião – Museu Regional de Alberto Sampaio, Guimarães
 Anunciação
 1523
 Aparição de Cristo à Virgem
 1529
 A Virgem, o Menino e dois Anjos – proveniente do Convento do Espinheiro (Museu de
Évora)
 Natividade - proveniente do Convento do Espinheiro (Museu de Évora)

 Mantém-se fiel à estética flamenga


 Esquemas compositivos de acentuado geometrismo
 Espaço cénico – ainda essencialmente narrativo – integra, com acentuada teatralidade, as
serenas e monumentais figuras que dominam o 1º plano
 Distribui a luz de acordo com preocupações de verosimilhança representativa
 Na utilização da luz não prescinde do seu valor simbólico ---- permite-lhe assinalar
hierarquias e estabelecer correspondências
 Ambíguo na definição da fonte iluminísticas e, consequentemente, na projeção das
sombras, acentua com a luz o pietismo das suas figuras

36
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Renascimento e Maneirismo - 39
 O verismo sensível, ao modo flamengo, revela-se principalmente na visão analítica dos
pormenores, revelando na modelação dos detalhes um trabalho de miniaturista, à maneira
de Memling – A Virgem, o Menino e os dois Anjos
 Requintadíssima modelação dos rostos, dos tecidos e dos acessórios
 Utiliza delicadas velaturas que se traduzem numa superfície unida, sem marcação de
pinceladas, límpida e transparente

7.6.1. Ecce Homo


Neste retábulo de pequenas dimensões, intitulado “Ecce Homo” ou “Senhor da Cana Verde”, hoje
propriedade do MNAA, está representado Cristo depois de ter sido flagelado pelos romanos sob as
ordens de Pilatos e pronto para a sua apresentação ao povo judeu.
Pelas Suas faces rolam lágrimas e o sangue corre das feridas abertas. Para que a humilhação
seja mais dolorosa, os soldados colocaram-lhe na cabeça uma coroa de espinhos, nas mãos atadas
uma cana em vez do cetro e uma simples manta em vez da túnica real.

7.6.2. Anunciação
 Pintado na mais pura técnica flamenga
 Tenuíssimas velaturas, transparências delicadas dos tons, formoso achado de justas
colorações
 Geometria das arquiteturas articuladas num jogo de espaços/caixas que se vão
desenvolvendo umas dentro das outras

7.6.3. Ressurreição
 Oficina de Frei Carlos
 Óleo sobre madeira de carvalho
 Séc. XVI, c. 1530
 Dim.: 112 cm x 119 cm
A tábua da Ressurreição de Cristo, executada sobre madeira de carvalho, com as dimensões de
112 x 119 cm, data do segundo quartel do século XVI, quase de certeza de cerca de 1530, e procede
de algum dos extintos conventos de Évora, onde constituiria o retábulo de um altar de capela.
A produção deve-se a um bom mestre da chamada Oficina do Espinheiro, que desenha e
compõe com eficiência e se mostra um seguidor fiel dos modelos luso-neerlandeses do círculo de Frei
Carlos. Trata-se, por isso, de uma peça de grande importância, conquanto anónima, pois se perfila, em
termos estilísticos e compositivos, na sequência de uma outra pintura da Ressurreição de Cristo, da
autoria de Frei Carlos (MNAA), o famoso monge-pintor que dirigiu a oficina sediada naquele mosteiro
ieronimita eborense.
Esta valiosa pintura renascentista tem especificidades autorais que merecem ser destacadas.
Ainda que não mostre, como é natural, a mesma finura e transparência de pincéis das obras de Frei
Carlos, ela revela, mesmo assim, uma ciência de pincéis apurada, numa espécie de desenvolvimento
maduro dos repertórios daquele mestre. O desenho é de um modo geral seguro, o sentimento da cor é
vibrante, com destaque para os vermelhos e os amarelos, a paisagem desenvolve o mesmo tipo
brugense das pinturas de Frei Carlos, os relevos roqueiros, a vegetação, as figurinhas de segundos

40- Renascimento e Maneirismo


planos e a cidade no fundo revelam a plenitude do gosto neerlandês então adotado nas oficinas
portuguesas da época de D. Manuel e de D. João III, e tudo mostra uma execução plástica muito
qualificada.
A peça trai, também, a influência estilística dos grandes retábulos do mosteiro de São Francisco
de Évora, da autoria de um outro flamengo ativo em Évora, Francisco Henriques (c. 1508-11), tal como
bem fez notar o historiador de arte José Alberto Seabra, referindo especialmente os fundos do Noli me
Tangere. Por este aspeto, ela constitui como que uma síntese – elaborada por um artista ainda
desconhecido da Oficina do Espinheiro – do estilo dos dois grandes mestres nórdicos ativos na capital
alentejana (Francisco Henriques e Frei Carlos).
O valor artístico desta peça é muito amplo: além de vir documentar a atividade ainda obscura de
um artista formado nesse círculo luso-flamengo, tão importante na encomenda religiosa da época
manuelina joanina, mostra linhas de evolução e enriquecimento da própria Oficina do Espinheiro nos
seus repertórios tradicionais, tanto no tipo das indumentárias, na riqueza da armaria, nas poses
agitadas e no ritmo de movimentação das figuras, oposto à quietude e atmosfera de silêncio geralmente
dominantes na obra de Frei Carlos. De certo modo, e ao mesmo tempo que subsistem fidelidades a
repertórios de oficina, aparecem já sintomas de novos caminhos e influências que superam o gosto
luso-brugense do mundo de Frei Carlos e se abrem a seduções de outros referenciais renascentistas,
como os modelos de Antuérpia, que na quarta década do século XVI (data provável desta tábua) se
insinuavam fortemente na nova geração de pintores nacionais.
A pintura, localizada nos anos 40 do século passado numa Quinta dos arredores de Évora pelo
historiador de arte Túlio Espanca, e que mereceu em 1943 uma referência explícita do Dr. João Couto,
diretor do MNAA, era até há pouco de paradeiro desconhecido, pois dela só existia uma longínqua
memória pelo breve registo daqueles autores. Foi beneficiada e exposta do recente certame Primitivos
Portugueses 1450-1550. O Século de Nuno Gonçalves, no Museu Nacional de Arte Antiga, com o nº50
e reproduzida a p. 172.37

7.6.4. São Vicente


Em 1958, uma cidadã norte-americana legou ao The Metropolitan Museum of Art (MET) duas
pinturas sobre madeira. Uma, representando São Vicente, chamou a atenção de um conservador do
MET, que resolveu enviar a fotografia da obra a um amigo português, esperando que este confirmasse
a sua atribuição. Luís Reis Santos, o amigo, professor da Universidade de Coimbra, não hesitou: a
autoria da obra deveria ser dada a Frei Carlos.
Representado como um jovem esbelto, este São Vicente, que enverga o hábito próprio dos
diáconos ricamente adereçado, tem na mão esquerda a palma do martírio e o livro fechado,
magnificamente encadernado com cantos e fechos em metal e, na direita, a grande nau miniaturizada.
No canto inferior esquerdo do painel, algo mais insólito: um caracol fora da casca, símbolo de
renascimento, não invulgar na iconografia da Ressurreição de Cristo ou em imagens funerárias,
provável alusão, neste caso, ao mártir que, com o sacrifício da própria vida, alcança a vida eterna na
corte celeste.

37
Vitor Serrão, Historiador de Arte (IHA-FLUL), in
http://www.antiguidadessaoroque.com/uploads/3/1/0/2/3102174/saoroque2011_parte02.pdf

Renascimento e Maneirismo - 41
Constituído por duas tábuas dispostas na vertical, o suporte desta pintura é de madeira de
carvalho e o seu exame dendrocronológico (estudo dos anéis de crescimento das árvores) aponta o
ano de 1503 como data-limite mais recuada em que o painel pode ter sido utilizado, sendo mais
provável que essa utilização não tenha podido ocorrer antes de 1509. Este dado material significa que a
execução da obra cabe temporalmente no intervalo de atividade da oficina do Espinheiro, ou seja, entre
1517, ano de profissão religiosa do pintor, e 1540, data em que este teria já falecido.

7.7. Vasco Fernandes


Num documento do arquivo do Cabido da Sé de Viseu (Livro de Recebimento dos Foros do ano
de 1501-2), consta que Pero Anes, alfaiate, trazia do Cabido, além de uma vinha e de uma casa de que
pagava 50 rs e 2 capões uma outra casa de que pagava 180 rs e 2 capões, ao Cabido, e 20 soldos, ao
mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Vasco Fernandes, pintor, pagou, nesse ano os 180 rs e 2 capões,
tendo pago mais 2 capões em nome do seu sogro. Esta é a mais antiga referência relativa a Vasco
Fernandes, da qual se pode concluir que em 1501 morava em Viseu, numa casa próxima da Sé e
defronte do Eirado, e que era casado, provavelmente com Ana Correia, filha de Pero Anes, e irmã de
Bastião Correia. Pelo mesmo documento sabemos que no ano 1504-5 Vasco Fernandes habitava a
mesma casa e se encontrava em Viseu e que a 7 de Julho de 1507, em virtude da provável ausência da
cidade, o pagamento das casas do pintor é efetuado por João da Villa.
Decorria entretanto a feitura do grande retábulo da capela-mor da Sé de Viseu (1501-6), cuja
intenção de encomenda havia sido expressa pelo bispo D. Fernando Gonçalves de Miranda, em carta
enviada de Óbidos para o Cabido, em 22 de Setembro de 1500. A questão de saber se Vasco
Fernandes dirigiu esta empreitada assume grande importância, já que a documentação anterior a 1506
não esclarece diretamente a feitura de qualquer obra. Auxiliado por alguns pintores de formação
flamenga, Vasco Fernandes manteve-se, por certo, ocupado no labor deste retábulo até cerca de 1506,
data em que o bispo de Lamego, D. João Camelo de Madureira, lhe encomenda uma obra de vulto para
a sua Sé, encomenda similar à de Viseu, então já concluída.
A 7 de Maio de 1506, o pintor morador em Viseu firmou, no Paço Episcopal de Lamego, a
importante escritura de contrato para o retábulo da capela-mor da Sé desta cidade. Este trabalho de
vulto, que rendeu a quantia de 450 mil reais, cem alqueires de trigo e três pipas de vinho, estava
concluído em 1511.

Vasco Fernandes em Lamego


Entre 1506 e 1511, Vasco Fernandes viveu, pois, em Lamego, habitando uma casa arrendada
pelo bispo especialmente para este trabalho, como havia sido previamente estipulado no primeiro
contrato. Com base na vasta e pormenorizada documentação reunida e publicada por Vergílio Correia,
colaboraram neste retábulo os entalhadores flamengos Arnao de Carvalho e João de Utrecht, que
cumpriram a empreitada de talha e marcenaria, e o pintor Fernão de Anes de Tomar, parceiro de Vasco
Fernandes, na policromia e douramento da desaparecida composição escultórica Virgem de Jessé.
Além de outros mestres, como o carpinteiro André Pires ou o entalhador borgonhês Angelo Ravanel,
com participação menos importante, desconhecem-se outros parceiros para a feitura do retábulo.
Este é o período mais bem documentado do pintor, constituindo esta vasta documentação um
inestimável contributo para o conhecimento seguro das circunstâncias em que, nos primeiros anos do

42- Renascimento e Maneirismo


século XVI, decorria a feitura dos magníficos conjuntos retabulares de pintura, integrada em complexas
estruturas em talha dourada, que se instituíram como moda vigente em Portugal.
Durante o período em que cumpria a encomenda de Lamego, Vasco Fernandes deslocou-se
esporadicamente a Viseu. Em 1508, o bem-estar económico, talvez em consequência de parte do
pagamento relativo ao retábulo lamecense, teria permitido a venda, em Viseu, do domínio útil da casa
do Cabido, que habitava pelo menos em 1501-2, mudando-se para a rua da Regueira, onde residiria até
à data da sua morte. Também, com certeza pelos mesmos motivos, trazia, em 1512-13, a propriedade
designada por «Casaes do Campo»

Vasco Fernandes em Lisboa


Vasco Fernandes mantinha contacto, como seria natural, com outros conceituados mestres e
oficinas. Após o cumprimento da importante, e certamente prestigiante, encomenda de Lamego, temos
conhecimento da presença do pintor em Lisboa: em 1513, viajou acompanhado de Ana Correia, sua
mulher, a fim de efetuar o pagamento de uma multa aplicada por sentença da Relação de Lisboa; em
1515, testemunhou, juntamente com o pintor Gaspar Vaz, uma escritura de Jorge Afonso. A sua relação
com o pintor régio e com o pintor Gaspar Vaz, que viria mais tarde a integrar a sua oficina, encontra-se
pois documentada, o que permite avaliar a importância das relações artísticas que mantinha.
O período menos conhecido da atividade de Vasco Fernandes é o que decorre entre 1515 e
1534. Ainda nesse ano, a 25 de Julho, desloca-se a Lamego a fim de receber as últimas dívidas
relativas ao retábulo, decorridos que eram quatro anos sobre a sua conclusão. Mas só novamente em
1534 temos conhecimento da sua presença em Viseu, pelo pagamento de foros ao Cabido por [...] hua
v.a ao peseguido que foi da posesão de Orgees.
Sabemos, porém, que não esteve inativo. O tríptico assinado Cristo Deposto da Cruz, S.
Francisco e Santo António, pintado certamente para o Mosteiro de S. Francisco de Orgens, nas
imediações de Viseu, entre outras obras e conjuntos que se lhe podem atribuir, constitui um testemunho
importante da sua atividade, neste período. De intenso labor teriam sido igualmente os anos entre 1530
e a data provável da sua morte, em 1542 ou no início de 1543. Trabalhando em Coimbra, onde recebe,
em 1535, parte do pagamento pela execução de quatro retábulos para o Mosteiro de Santa Cruz, e em
Viseu, nos grandes retábulos da Sé, é nesta última fase que se revela um dos mais importantes
pintores do Renascimento português.
Desta presença em Coimbra e da referida empreitada, resta somente o retábulo Pentecostes, da
Capela da Portaria, descrito, em 1541, por D. Francisco de Mendanha, que o considera pintado «por
mão de outro Apeles». Mas a cidade de Viseu constituiu também um meio artístico aliciante, sobretudo
para a prática desta modalidade. Outros pintores, nomeadamente Gaspar Vaz e António Vaz,
encontram-se ativos na cidade, pelo menos a partir, respetivamente, de 1522 e 1535.
A oficina beneficiou da presença do grande prelado humanista, D. Miguel da Silva, bispo de
Viseu de 1526 a 1547, cujo empenho em renovar cultural e artisticamente a sede do seu bispado veio a
traduzir-se numa atividade notável e profundamente inovadora. Os cinco conjuntos retabulares da Sé,
as encomendas para a Capela de Santa Marta do Paço Episcopal de Fontelo, o políptico da Igreja
Matriz de Freixo de Espada à Cinta, entre outras obras oficinais, constituem valiosos testemunhos da
vitalidade e originalidade que caracteriza este centro de produção pictórica, nos últimos anos de labor
do seu mais conceituado mestre.

Renascimento e Maneirismo - 43
Vasco Fernandes foi casado duas vezes. Em 1524-25 era ainda casado com Ana Correia,
documentada como sua mulher no ano de 1513; em 1541-42, era já casado com Joana Rodrigues,
pois, no Livro da Irmandade do Santo Sacramento, relativo a este ano, refere-se um donativo efetuado
conjuntamente com Joana Rodrigues, sua mulher. Dos dois casamentos teve duas filhas,
respetivamente, Beatriz Correia, que pagou, em nome do pai, o foro relativo a 13 de Setembro de 1541,
e Leonor Fernandes, que vivia com a mãe, em 1555-56. Além desta filha, teve Joana Rodrigues um
filho, de nome Miguel Vaz. Algumas afinidades onomásticas entre os pintores que integravam a oficina
de Vasco Fernandes levaram alguns investigadores a aventar hipóteses de estreitos laços de
parentesco entre si. O cónego Henriques Mouta sugere que tenham constituído uma verdadeira dinastia
"por estarem ligados por laços de sangue como pelos de afinidade e também pelos de antroponímia,
toponímia e sociologia". Segundo este investigador, Vasco Fernandes seria pai dos pintores Gaspar
Vaz, o mais conhecido pintor-discípulo, e de Manuel Vaz, de que não se conhece qualquer base de
identificação estilística.
Deixando discípulos e continuadores, o pintor teria falecido no fim de 1542, pois, em 1543, no
Livro de Pagamentos de foros ao Cabido, encontra-se já a referência a [...] Joana Rodrigues molher que
foi do dito Vasco Fernandes e que lhe sobreviveu até cerca de 1568.38
Relativamente ao seu percurso estético, pode dizer-se que Grão Vasco teve influências
marcadamente nórdicas – como se pode ver no retábulo da Sé de Viseu, onde trabalhou com pintores
de origem flamenga – e influências italianizantes detetáveis nos grandes painéis da sala de S. Pedro e
da sala do Calvário.
No seu percurso artístico, foi determinante a figura de D. Miguel da Silva, humanista e homem da
Renascença, que de Roma, onde frequentava a corte papal e os mais elevados círculos culturais,
trouxe para o bispado de Viseu (1525/1540) o mais atual e o mais refinado da cultura italiana de então.
O protagonismo e força da pintura de Grão Vasco no universo da pintura portuguesa
concretizam-se no uso de cores mais escuras que os seus contemporâneos, no uso sensível da luz
para representar o espaço em profundidade, na extraordinária plasticidade dos tecidos, na
caracterização poderosa dos rostos, no realismo e na descrição dos cenários e adereços, recorrendo a
objetos simples do quotidiano.

7.7.1. Retábulo da Sé de Viseu


Francisco Henriques + Grão Vasco
1501-1506
Catorze painéis que sobreviveram à desmontagem de um núcleo de dezoito.
Apesar da polémica que a sua autoria suscitou, tudo leva a crer que um grupo encabeçado pelo
pintor flamengo Francisco Henriques, ao qual se juntou o jovem Vasco Fernandes, o Grão Vasco, tenha
criado estes painéis para a capela-mor da sé catedral, entre 1501 e 1506.
1ª Sequência:
Anunciação ---- Visitação ---- Natividade ---- Adoração dos Magos ---- Circuncisão ----
Apresentação no templo ---- Fuga para o Egipto
Anunciação
38
Dalila Rodrigues (publ. em Grão Vasco e a Pintura Europeia do Renascimento, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1992)

44- Renascimento e Maneirismo


 Ambiente quotidiano
Cesto de costura com tesoura e dedal
2ª Sequência
Última Ceia ---- Oração no horto ---- Prisão de Jesus ---- Descida da Cruz ---- Ressurreição ----
Ascensão ---- Pentecostes
 Busca de verosimilhança na forma, no espaço
 Conquista do espaço infinito, são os aspetos fundamentais que aqui se colocam.
 O realismo dos seres e das coisas, integrados num espaço real do observador, demonstram
a duplicação sensorial do mundo e a “verdade”.
 No painel Adoração dos Reis Magos, substituiu-se a figura do mago africano, Baltazar, pela
de um índio do Brasil. A proximidade cronológica desta primeira representação na arte
ocidental, com o descobrimento das terras de Vera Cruz, confere a esta pintura um valor
histórico extraordinário.
 Entre outros exemplos possíveis, da alusão ao momento histórico de então, refira-se a
representação do escudo português na Apresentação de Jesus no Templo.
O antigo retábulo da capela-mor da Sé de Viseu, é uma obra fundamental para entender como a
pintura e os pintores provenientes dos Países Baixos exerceram uma influência decisiva sobre o gosto
do público e sobre a obra dos nossos pintores entre finais do século XV e meados do XVI. Deste
retábulo, estão expostos catorze painéis que sobreviveram à desmontagem de um núcleo de dezoito.
Apesar da polémica que a sua autoria suscitou, tudo leva a crer que um grupo encabeçado pelo
pintor flamengo Francisco Henriques, ao qual se juntou o jovem Vasco Fernandes, o Grão Vasco, tenha
criado estes painéis para a capela-mor da sé catedral, entre 1501 e 1506.
Os entalhadores provenientes do Norte de Europa, Arnão de Carvalho e João de Utrecht,
encarregaram-se da exuberante estrutura em talha dourada que unia os painéis, em três filas. Quando
se desmembrou e se ampliou a capela-mor, no século XVI, aquela estrutura desapareceu.
Foi o bispo D. Fernando Gonçalves de Miranda (1483 – 1505) que encomendou o entalhamento,
conhecendo o êxito que a pintura importada das oficinas flamengas tinha então no círculo cosmopolita
da Corte.
Nas distintas cenas narrativas alusivas à Vida da Virgem, à Infância de Jesus e à Paixão de
Cristo, que aqui se expõem, reconhecem-se a matriz nórdica no processo de representação, os
modelos, as figuras e cenários diretamente inspirados na produção, de pintura e gráfica dos “primitivos
flamengos”. A busca de verosimilhança na forma, no espaço e sobretudo a conquista do espaço infinito,
são os aspetos fundamentais que aqui se colocam. Estes aspetos, provenientes da dimensão
representativa da pintura, da essencial função didática das imagens, não deixam, no entanto, de ser
assumidos como elementos artísticos principais. O realismo dos seres e das coisas, integrados num
espaço real do observador, demonstram a duplicação sensorial do mundo e a “verdade”.
No painel Adoração dos Reis Magos, substituiu-se a figura do mago africano, Baltazar, pela de
um índio do Brasil. A proximidade cronológica desta primeira representação na arte ocidental, com o
descobrimento das terras de Vera Cruz, confere a esta pintura um valor histórico extraordinário. Entre
outros exemplos possíveis, da alusão ao momento histórico de então, refira-se a representação do
escudo português na Apresentação de Jesus no Templo.

Renascimento e Maneirismo - 45
7.7.2. Retábulo da Sé de Lamego
Depois de terminar a obra na Catedral, Vasco Fernandes, acompanhado por dois entalhadores
nórdicos, foi a Lamego, ao serviço do bispo, para projetar uma estrutura semelhante à da catedral de
Viseu. Desta conservam-se no Museu de Lamego, cinco painéis dos vinte do conjunto original. Ainda
que sejam obras fundamentais para identificar a apropriação e a interpretação das influências
flamengas, a Assunção da Virgem, cuja origem é desconhecida, assume esta dimensão ilustrativa. A
proximidade com os dois retábulos referidos, identifica-se na forma angulosa do vestuário que
conquista volumes anatómicos e na visão analítica da matéria, que se concretiza, por exemplo, no
modo como transcreve o cabelo frisado dos anjos que acompanham a Virgem.
Porém, os acessórios das figuras principais ou as formas miniaturais do fundo superior, revelam
uma dimensão interpretativa e criativa absolutamente singular. O escurecimento do campo figurativo,
aspeto muito significativo do seu processo, se comparado com a visão aberta das cores dos flamengos
e com a dos portugueses seus contemporâneos, provém do papel determinante que a luz assume, em
toda a sua obra, na representação do espaço em profundidade.

7.7.3. Anunciação
 1506-11, óleo sobre madeira
 173 x 92 cm
 Museu de Lamego
 Lamego, Portugal

7.7.4. Assunção da Virgem


 c. 1511-1515, óleo sobre madeira
 131,5 x 103,5 cm
 Museu Nacional de Arte Antiga
 Lisboa, Portugal

7.7.5. Natividade
 1501-6, óleo sobre madeira
 131 x 81 cm
 Museu de Grão Vasco
 Viseu, Portugal

7.7.6. Outros retábulos da Sé de Viseu


Além do emblemático S. Pedro, D. Miguel da Silva encomendou mais quatro retábulos de
dimensão idêntica para as diversas capelas da Catedral. O tema do Batismo de Cristo foi destinado à
capela lateral esquerda, dedicada a S. João Baptista, em correspondência com S. Pedro. Nas capelas
em frente ao transepto localizavam-se o Pentecostes, a Norte, e o Calvário, a Sul. O S. Sebastião
destinou-se a uma capela do claustro que o mesmo bispo mandou edificar.

A intervenção de Gaspar Vaz nestes projetos, especialmente no Pentecostes, no Batismo de


Cristo e no conjunto das predelas dos cinco retábulos, justifica alguns desníveis de qualidade.

46- Renascimento e Maneirismo


1. Batismo de Cristo
No Batismo de Cristo, a composição foi estruturada em função das duas figuras monumentais,
em primeiro plano - espaço envolvente, apesar de servir de estrutura narrativa, foi rigorosamente
concebido em função dessas presenças impositivas.
Os dois volumes rochosos, as manchas de vegetação, o fundo arquitetónico e a presença dos
dois núcleos formais secundários – os anjos com o vestido de Cristo e o S. João Baptista pregando no
deserto – foram programados com um sentido rítmico de equilíbrio, entre a metade direita e a metade
esquerda do espaço da representação, definindo duas diagonais que confluem na figura de Cristo,
colocado no eixo central.
A forte caracterização dos rostos que reforça a valência espiritual do ato, a plasticidade dos
tecidos, modelados através da luz projetada no campo figurativo pelo lado esquerdo e os efeitos
atmosféricos da paisagem, para diluir os contornos dos volumes arquitetónicos do fundo, são outros
rasgos característicos da sua pintura.
Pode-se afirmar que em comparação com o S. Pedro, o Batismo de Cristo é uma pintura
formalmente menos cuidada. De facto, se o corpo de Cristo apresenta alguns significativos, mas bem
disfarçados, desacertos formais, a perna de S. João Baptista, pela distorção que introduz na pintura dos
pés, resulta numa forma quase aberrante.
É provável que Gaspar Vaz, seu colaborador habitual, tenha trabalhado também na execução
deste retábulo Na predela, trocada sucessivamente com a de S. Pedro, representam-se os bustos de S.
Paulo Eremita, de S. Jerónimo e de Santo Antão.

2. Pentecostes
Atitude dramática dos apóstolos em primeiro plano - S. João e S. Pedro.
No centro da composição, figura a Virgem acompanhada por mulheres santas e dos restantes
apóstolos.
Os objetos de uso quotidiano que aqui se representam (um armário com um candelabro sem
vela, símbolo da presença da luz divina do Espírito Santo, uma jarra e um vaso) para além do seu
simbolismo, oferecem-se ao espectador como se a pintura fosse continuação do seu próprio mundo.
Este modelo figurativo é em todo idêntico ao que Grão Vasco utilizou no retábulo, de 1535,
destinado ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que é sem dúvida, uma das suas melhores obras.
Repetem-se os elementos figurativos do cenário da obra «S. Pedro» - capitéis, azulejos do
pavimento, mas em versão mais simplificada.
Neste retábulo, os erros de perspetiva, as simplificações formais do muro que enquadra a cena, a
modelação de pormenores anatómicos, nomeadamente nos dedos longos e hirtos das mãos, revelam
características de Gaspar Vaz.
Na predela, recortados num fundo de paisagem formalmente contínua, figuram os bustos das
Santas Luzia, Catarina e Margarida.

3. Calvário
Cristo aparece crucificado entre o Bom e o Mau ladrão, acompanhado pela Virgem desfalecida,
Madalena, S. João e uma santa mulher.

Renascimento e Maneirismo - 47
A multidão dos guardas intensifica as cenas do transporte da escada, à esquerda, bem como o
enforcamento de Judas, em escala miniatural à direita, acompanhado por um pequeno diabo que lhe
leva a alma.
Na predela, as cenas que se referem a Cristo perante Pilatos, Descida da Cruz e Descida de
Cristo ao Limbo dão ao retábulo a dimensão temporal e narrativa do ciclo da Paixão.
A cruz de Cristo inscreve-se sensivelmente no centro da composição, numa posição frontal e
num plano mais próximo ao do espaço do espectador, enquanto as cruzes do Bom e Mau Ladrão se
afastam ligeiramente – uma mais do que a outra – e se dispõem em diagonal.
A expressiva contorção da figura do Mau Ladrão reforça a ideia de simetria do campo figurativo e
acentua a tensão dramática em toda a zona direita da pintura.
As cruzes definem o limite de representação das cenas.
Para além da presença de cavalos e da figuração de cenas alusivas à repartição do manto de
Cristo, ostenta-se uma muralha de rostos e de lanças, cujo limite recorta a luz do céu, mal se
distinguindo a cidade distante de Jerusalém.
A relação luz-cor, evidente nas figuras dos primeiros planos, especializa a forma e modela os
volumes com a plasticidade que é habitual em Grão Vasco.

7.7.7. São Sebastião


No S. Sebastião, o mártir está representado atado à coluna e elevado num pedestal, rodeado
pelos seus assassinos.
Agrupamento das figuras e organização dos volumes das arquiteturas, que configuram duas
diagonais dinâmicas, contrariando a solução da frontalidade visual
Subtil nas breves gradações tonais do solo, construindo o espaço em profundidade.
Visão analítica da forma e da matéria, expressa no tratamento da roupa abandonada com
aparente negligência, no lado inferior direito, e no depurado trabalho da pintura da corda que ata o
corpo do Santo à coluna
Tratamento dos corpos nus, cuja unidade cromática recorda a escultura em pedra e remete para
uma sensibilidade italianizante. Esta é também notável nas figuras simplificadas dos assassinos.
Elementos, quase sempre objeitos simples e discretos, inspirados num ambiente quotidiano e
familiar, são frequentes na obra de Grão Vasco.
O S. Sebastião constitui um dos principais momentos criativos do seu autor.
Na predela, representam-se os bustos de Santo Estêvão, S. Brás e S. Roque.

7.7.8. A Última Ceia


Encomendada pelo bispo D. Miguel da Silva para a capela do seu paço, no Fontelo
Na tábua central, as figuras representadas aquém do murete parecem estar relacionadas com a
Última Ceia ou com a Instituição da Eucaristia:
Cristo, que segura o cálice eucarístico, está ladeado por S. Pedro, S. João e por uma outra figura
nimbada, um apóstolo. S. Mateus, já identificado como evangelista através de uma inscrição na
sobrepeliz, está representado enquanto escreve de perfil.

48- Renascimento e Maneirismo


A identificação do tema reforça-se com as figurações da tábua da esquerda. Os sete apóstolos
organizados em redor da mesa, num prolongamento da tábua central com forma de L, elevam também
a hóstia eucarística.
Judas, na tábua direita, com a iconografia habitual da traição, o saco de moedas e o traje
amarelo, completa o grupo dos apóstolos.
O episódio do Lava-Pés evoca-se através da representação da bacia com água em primeiro
plano
Figuras femininas que se aproximam a Cristo, uma delas segurando a boceta que com o perfume
de nardo, atribuído a Madalena
Um murete contínuo que separa os planos - Na tábua central, aparecem, num compartimento
contíguo, algumas personagens, uma das quais leva à mesa eucarística o cordeiro pascal de acordo
com a celebração. Os elementos que figuram sobre a mesa, as ervas amargas e o pão sem fermento,
poderão ser interpretados como uma alusão ao tema da Saída do Egipto.

7.7.9. São Pedro Patriarca – Mosteiro de São João de Tarouca


Também realizado cerca de 1530 é o “São Pedro Patriarca” do Mosteiro de São João de
Tarouca, onde teve a colaboração de Gaspar Vaz, também de Viseu.
Aí estão já definidos o tema e a estrutura do “São Pedro” de Viseu: a composição simétrica
apresenta o fundador da Igreja sentado num trono em posição frontal, olhando para nós, abençoando
com a sua mão direita enquanto a esquerda segura o báculo; assente nos seus joelhos encontra-se um
livro sagrado aberto; de um lado e do outro do trono, dois janelões deixam ver paisagens onde se
evocam cenas da vida do Santo. Mas o quadro de Tarouca é mais goticizante, mais brilhante o seu
colorido acompanhado pela iluminação que vem da esquerda do observador, ao contrário do quadro de
Viseu, com iluminação vinda da direita, marcação de sombras projetadas (a do próprio Santo na parede
interior do nicho) e volumetria da figura humana mais ligada ao espaço arquitetónico do trono.39

7.8. Mestres do Sardoal – Vicente Gil e Manuel Vicente


O Mestre do Sardoal ou Mestres do Sardoal são hoje frequentemente identificados com a oficina,
sediada em Coimbra, de Vicente Gil, continuada pelo seu filho Manuel Vicente e pelo neto Bernardo
Manuel.
Este(s) pintor(es) marca(m) a transição do século XV para o século XVI. A sua ação insere-se no
contexto da pintura manuelina, estilo que coincide na Europa com o final da Idade Média e início do
Renascimento.

Principais obras
Em 1510 executou sete pinturas de óleo, sobre madeira de carvalho, na igreja paroquial de São
Tiago e São Mateus, no Sardoal.
E representam:
São João Evangelista; a pregação; a bênção de Cristo (Cristo abençoando), com coroa de
espinhos; São Pedro e São Paulo.
Assim como há conhecimento de:
39
Idem

Renascimento e Maneirismo - 49
Adoração dos Reis Magos, no Museu Nacional de Arte Antiga (Museu das Janelas Verdes), em
Lisboa.
Um São Bento e Santo Ambrósio, (CAR Centro de Apoio Social), em Runa.
São Vicente, em Beja (Museu Regional)
Anunciação, que pertencia ao retábulo-mor do antigo convento de Santa Maria de Cela, que está
no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra.
Dois santos, no Museu de Évora.
São-lhe também atribuídas as imagens de um retábulo, em Montemor-o-Velho.

7.9. Ciclo renascentista


Características gerais:
 Procura da densidade expressiva da forma
 Adoção de uma linguagem italianizante
 Prevalência do gosto manifesto na pujante produção do “ciclo manuelino”

7.9.1. Vasco Fernandes (2ª fase de atividade)


Contribuiu de modo decisivo para a passagem de um modo nórdico, característico do ciclo
manuelino, para uma linguagem italianizante
Centra-se progressivamente nas potencialidades expressivas
Cria e desenvolve novas soluções de espacialidade

Calvário
 c. 1530
 Óleo sobre madeira de castanho
 242.3 x 239.3 cm.
 Coleção Alpoim Calvão
 Museu Grão Vasco, Viseu
"No Calvário, Cristo surge crucificado entre o Bom e o Mau Ladrão, acompanhado na dor pela
Virgem desfalecida, Madalena, S. João e duas santas mulheres. À multidão de guardas e carrascos,
num espetáculo de expressivo dramatismo, acrescem ainda as cenas do transporte da escada, à
esquerda, e o enforcamento de Judas, em escala miniatural, à direita, acompanhado de um pequeno
diabo que lhe leva a alma"40
 Modelação dos largos e quase teatrais panejamentos
 Recurso a largos fundos paisagísticos roqueiros e a cidades fortificadas, cujos contornos se
perdem na distância
 À força expressiva de Cristo martirizado corresponde o envolvimento dramático das figuras,
acentuado pelo sentido contrastante da luz e da sombra
 Torsão da figura de São João e atitude dolorosa das figuras femininas – acentuação do
dramatismo e síntese expressiva da forma

40
Dalila Rodrigues - Roteiro do Museu Grão Vasco, pág. 127, Edições Asa, 2004.

50- Renascimento e Maneirismo


 No entanto, o empréstimo do magnífico Calvário, que é parte da coleção privada do
Comandante Alpoim Calvão, permite reforçar a narrativa em torno do processo criativo de
Grão Vasco. Esta obra mostra uma sensível reformulação do seu modo de pintar, por volta de
1525. É a ideia de tensão dramática que assume protagonismo na conceção desta imagem
que serviria de estudo preparatório para o grande Calvário da Catedral. A posição das figuras,
investidas por um pathos muito especial, através de grandes manchas cromáticas,
esclarecidas pela luz, e da forma artificiosa e poética dos tecidos expressam esse
fundamental sentido de dramatismo.

Cristo em Casa de Marta


 c. 1535, óleo sobre madeira
 198,1 x 204,8 cm
 Museu de Grão Vasco
 Viseu, Portugal
Há figuras das gravuras de Albert Dürer que aparecem em algumas das suas pinturas,
nomeadamente a célebre “Melancolia” que inspirou a figura de Maria do quadro “Jesus em Casa de
Marta e Maria” (Viseu, Museu Grão Vasco), realizado cerca de 1530.

S. Pedro
 c. 1530-1535, óleo sobre madeira
 213 x 231,3 cm
 Museu de Grão Vasco
 Viseu, Portugal
S. Pedro, o antigo retábulo da capela lateral da Catedral de Viseu, (C.1529), é hoje a obra mais
representativa do talento de Grão Vasco e uma das pinturas mais notáveis do património pictural
português. Numa escala excecionalmente grande, comum aos restantes quatro retábulos que fez para
o mesmo espaço catedralício e para o mesmo encomendante, o célebre D. Miguel de Silva construiu
uma verdadeira imagem de propaganda da supremacia do poder espiritual sobre o temporal.
Esta pintura de grandes dimensões é uma das mais significativas do talento de Vasco Fernandes
(c. 1475-1542). Artista de origem desconhecida, teve uma longa e intensa atividade em Viseu,
tornando-se de tal modo famoso que, até ao século dezanove, os seus admiradores não apenas lhe
valorizaram as pinturas como lhe atribuíram muitas outras pinturas do século dezasseis. Por isso ficou
conhecido por Grão Vasco.
Como muitos outros artistas que trabalhavam em Portugal, Grão Vasco estava informado acerca
da melhor pintura estrangeira da sua época, nela colhendo ensinamentos díspares que o seu talento
soube harmonizar e selecionar. Interessou-se menos pela arte italiana do que pela alemã. Há figuras
das gravuras de Albert Dürer que aparecem em algumas das suas pinturas, nomeadamente a célebre
“Melancolia” que inspirou a figura de Maria do quadro “Jesus em Casa de Marta e Maria” (Viseu, Museu
Grão Vasco), realizado cerca de 1530.
O quadro de Viseu parece ter sido inteiramente realizado por Grão Vasco e o seu estilo é
claramente renascentista. Na própria volumetria, ainda que um pouco arcaizante e rude, há sentido
dramático controlado, cujo realismo culmina no rosto. O olhar do Santo está intensamente presente,

Renascimento e Maneirismo - 51
como passou a acontecer na arte do retrato desenvolvida desde o Renascimento. A parte superior do
trono apresenta uma concha italianizante. Alguns elementos pagãos aparecem na decoração, como os
putti, em vez de anjos, montados em animais fantásticos. Estes animais, copiados certamente do
bestiário antigo, agarram em escudos frontalizados, exibindo as chaves cruzadas da heráldica papal,
contrastando com outra representação dos mesmos escudos, no alto do trono, onde duas carrancas, no
cruzamento das chaves, quase as ocultam, para, chegadas à frente, segurar com a boca o palio
colocado acima da cabeça do Santo. Quer no recurso a esta mistura de elementos decorativos pagãos
e cristãos, quer na estrutura compositiva, este quadro de forte e digna expressividade é um bom
exemplo da pintura renascentista realizada em Portugal.41
A monumentalidade do apóstolo, sentado num trono pontifical de arquitetura italianizante, em
atitude de bênção e com o seu olhar dirigido a um espaço absoluto, resulta da confluência de uma série
de estratégias representativas. A estrutura da composição é essencial a essa monumentalidade
impositiva. Num esquema simétrico, Grão Vasco, inscreve a figura no centro e define o espaço. Através
de duas aberturas, cria o efeito contrário, isto é, representa o espaço em profundidade, conquistando
para a imagem um sentido de distância até ao infinito. Ainda que o prolongamento da visão às duas
paisagens laterais sirva também para as necessidades narrativas, já que são duas cenas alusivas à
vida do apóstolo que lhe correspondem - à esquerda O Chamamento do Pescador e à direita «Quo
Vadis» - é sobretudo a conquista de monumentalidade para a figura, no primeiro plano da
representação, a figuração de um verdadeiro papa entronizado, que está aqui em jogo. A
monumentalidade da figura é enfatizada na sua absoluta autonomia em relação ao trono, sendo esta
conseguida através da manipulação extraordinariamente sensível da luz. Esta obra não tem paralelo na
restante pintura portuguesa do tempo.
A luz, proveniente do lado esquerdo superior, assume diferentes níveis de intensidade,
destacando volumetricamente as formas do trono e do apóstolo, e conferindo-lhe autonomia. A projeção
de sombra da figura sobre a metade esquerda do espaldar, bem como o feixe de luz entre a figura e o
trono são essenciais. Mas a força expressiva de S. Pedro é também o resultado de um virtuosismo e de
um paciente trabalho de elaboração pictural, na poderosa caracterização do rosto e nas formas
exuberantes do pluvial.
Toda a superfície do quadro é, sob um ponto de vista plástico, extraordinariamente programada e
elaborada. A decoração da capa e o pluvial em brocado, denunciam o virtuosismo da sua técnica, nos
delicadíssimos motivos ornamentais, inumeráveis joias encaixadas e anjos pintados que levam os
instrumentos da Paixão, a configuração minuciosa da tiara ou dos anéis nas mãos enluvadas, os
elementos decorativos do ladrilhado traçado em perspetiva.
Na predela representam-se meio apostolado: S. João Evangelista e Santo André, S. Bartolomeu
e S. Judas Tadeu, S. Paulo e S. Tiago.
Nas várias tábuas de madeira de castanho, que constituem o suporte, identificam-se as marcas
originais do desbaste, enquanto os processos de união, e o entalhamento entre elas deixam perceber
traços de uma obra de restauro, como as superfícies com óxido de ferro e as caudas de andorinha.

7.9.2. Gaspar Vaz

41
Análise de Rui-Mário Gonçalves, http://e-cultura.sapo.pt/DestaqueCulturalDisplay.aspx?ID=598

52- Renascimento e Maneirismo


Gaspar Vaz foi um pintor português da primeira metade do século XVI. A aprendizagem deste
pintor decorreu na oficina de Jorge Afonso, em Lisboa, onde se encontra documentado entre 1514 e
1515, ano em que também Vasco Fernandes se encontrava na capital. Uma carta, descoberta e
publicada por Sousa Viterbo, escrita por D. João III a Cristóvão de Figueiredo, pelos anos de 1531-1540
mandando-o «ver e receber as obras que fez Gaspar Vaz em São João de Tarouca», documenta a
atividade deste pintor na região Norte de Portugal. A ele são atribuídas as pinturas do Convento de São
João de Tarouca, núcleo importante de obras que serviram de base de identificação estilística do pintor.
São belíssimas as pinturas de São Pedro e de São Miguel Arcanjo. Este apresenta menos recursos
técnicos que Vasco Fernandes, optando por soluções tradicionais, mostrando-se menos rigoroso nos
detalhes, mas atribuindo maior elegância, dinamismo e graciosidade às suas personagens.42

S. Pedro
 c. 1530, óleo sobre madeira
 215x173 cm
 Igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca
Virgem da Anunciação
 c. 1530, óleo sobre madeira
 53 x 61 cm
 Museu Soares dos Reis

7.9.3. Cristóvão de Figueiredo


Cristóvão de Figueiredo (Portugal, ? - c.1543) foi um pintor maneirista português da primeira
metade do século XVI, examinador do ofício e pintor do infante-cardeal D. Afonso, filho do rei D. Manuel
I e irmão de D. João III.
Ignoram-se os locais do seu nascimento e da sua morte. A sua vida e a sua atividade artística
encontra-se, porém, documentadas de 1515 a 1543. Casado com Ana Pires, filha do mestre régio das
obras de carpintaria Pero Anes e de Beatriz Afonso, teve um filho chamado Pedro de Figueiredo, moço
de câmara do infante D. Afonso; era cunhado de Isabel Pires, mulher do arquiteto francês João Ruão.
Tinha oficina e morava em Lisboa, na Rua da Mangalassa, na freguesia de Santa Justa. Existe
documentação que se encontrava nesta cidade em 1515 e por ocasião da peste de 1518-19. Esteve
posteriormente em Coimbra no ano de 1530, em Lamego em 1533-1534, e novamente em Lisboa a
partir de 153843.
Foi aluno da oficina lisboeta, orientada por Jorge Afonso, pintor régio de D. Manuel I, onde
passaram numerosos artistas alguns dos quais constituíram uma segunda geração de pintores que viria
a alcançar grande importância. Como desenhista, trabalhou para o rei D. João III e fez esboços de
painéis que haviam de ser pintados por outros artistas, como é de crer que tenha acontecido com os do
retábulo do altar-mor da Igreja de Valdigem, encomendado ao pintor Bastião Afonso.
Trabalhou como examinador de pintores em 1515. Cerca de 1518-19 trabalhou nas obras para a
Relação de Lisboa sob a chefia de Francisco Henriques, juntamente com André Gonçalves, Gaspar
Vaz, Gregório Lopes, Garcia Fernandes, entre outros artistas, entre os quais sete pintores flamengos.
42
Luís Alberto Casimiro, Pintura e Escultura do Renascimento no Norte de Portugal
43
Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. 11, p. 304

Renascimento e Maneirismo - 53
Entre 1522 e 1533, por encomenda do rei D. Manuel I, trabalha na pintura do retábulo grande da
capela-mor do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, que lhe foi atribuído primeiro por Teixeira de
Carvalho, com base numa carta de Gregório Lourenço, vedor das obras do mosteiro, que, em 19 de
março de 1522, escreve a D. João III e, entre outras coisas, faz-lhe saber que o retábulo grande da
capela mor, já concluído na parte da marcenaria, precisa de ser pintado.
A 20 de maio do mesmo ano, o rei, recomendando que se acabem algumas obras do mosteiro e
se façam outras, menciona a pintura do referido retábulo. Em 07 de outubro de 1530, Cristóvão de
Figueiredo estava em Coimbra, possivelmente a trabalhar no retábulo, visto que assina como
testemunha, na casa do Conselho de Santa Cruz, um contrato entre o Padre Frei Brás, governador do
Mosteiro, e o arquiteto francês Hodart, para execução do passo da Ceia de Cristo.
Dos seus quadros neste retábulo, de que foi entalhador Francisco Lorete, destacam-se A
Deposição de Cristo no Túmulo, A Invenção da Cruz, Ecce Homo e Milagre da Ressurreição do
Mancebo. Há diversas características que estas obras foram realizadas em parceria.
O retábulo foi apeado no início do século XVII quando foi substituído pelo novo retábulo
maneirista do escultor Bernardo Coelho e dos pintores Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão.
Deste retábulo de Cristóvão de Figueiredo subsistem outras tábuas na sacristia do cenóbio crúzio e no
Museu Machado de Castro44.
Trabalhou ainda, durante o ano de 1533, em Lamego. Em 31 de outubro de 1533 assinou, como
testemunha, uma procuração que o rev. António Lopes, camareiro do bispo D. Fernando de Meneses
Coutinho e Vasconcelos, fez a Jorge Alvares, feitor de sua senhoria. Este é o mais antigo documento
conhecido em que o artista se intitula pintor do infante cardeal45.
No mês seguinte, a 27 de novembro de 1533, no paço episcopal de Lamego, assina com o Padre
Frei Francisco de Vila-Viçosa, guardião do Mosteiro de Ferreirim, e de acordo com o que antes ficara
estabelecido perante o infante D. Fernando, um contrato para execução de três retábulos destinados à
igreja daquele mosteiro franciscano, conforme desenhos que fizera e outras obras que realizara com o
seu parceiro Garcia Fernandes. Por uma procuração, feita igualmente em Lamego aos 22 de abril de
1534, sabe-se, porém, que na execução dos referidos retábulos colaboraram igualmente Garcia
Fernandes e o pintor régio Gregório Lopes, tendo este grupo sido apelidado por Luís Reis-Santos de
"Mestres de Ferreirim"46.
Dos retábulos iniciais destinados à igreja de Santo António de Ferreirim apenas subsistem dois
compostos por quatro tábuas cada inicialmente destinadas aos altares colaterais, e que se encontram
distribuídas por duas séries, cuja reconstituição conjetural foi recentemente ensaiada por Fernando
António B. Pereira. Uma diz respeito à vida da Virgem e deste ciclo fazem parte os seguintes temas:
Anunciação, Natividade, Dormição da Virgem e Assunção da Virgem. O outro retábulo representa
temas da Paixão de Cristo: Caminho para o Calvário, Crucificação, (tábuas bastante danificadas por um
incêndio), Pranto sobre Cristo morto e Ressurreição de Cristo.
Conforme refere Luís Alberto Casimiro:
"as pinturas, que ainda permanecem na mesma igreja embora deslocadas do seu lugar de
origem, refletem uma maior sensibilidade às fórmulas italianas e grande coerência e unidade apesar de
44
http://www.matriznet.imc-ip.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=249930
45
Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. 11, p. 305
46
Luís Reis-Santos, Estudos de pintura antiga, 1943

54- Renascimento e Maneirismo


serem o resultado de um trabalho de parceria entre artistas com linguagens plásticas diversificadas. Tal
constatação evidencia não só a grande qualidade dos artistas intervenientes como a sua formação
comum."47
No primeiro trimestre de 1538, Cristóvão de Figueiredo compromete-se, perante a Mesa da
Consciência e Ordens, a acabar o retábulo do Infante Santo, que a rainha D. Leonor, viúva de D. João
II, mandara fazer para o Mosteiro da Batalha. Em agosto de 1539 já esse retábulo estava concluído.
Trabalhou a mando do cardeal-infante D. Afonso e celebrizou-se por pintar quadros sacros ricos
em colorido e dramatismo. Influenciado pelas correntes estéticas florentinas e flamengas, trouxe para a
pintura portuguesa uma opulência inusitada. Especializou-se na reconstituição dos passos da Paixão,
onde os rostos ganham expressividade notável.
De uma Escritura de “Renunciação e Encampação” de um emprazamento em três vidas com
data de 11 de Junho de 1543, documento esse que foi encontrado por João de Lacerda ficou a
conhecer-se a vida e obra de Cristóvão de Figueiredo.
Em 1940 foi feita uma “Exposição de Os Primitivos Portugueses” realizada em Lisboa e ai foram
atribuídos a Cristóvão de Figueiredo os painéis: Calvário, da Igreja de Santa Cruz de Coimbra;
Achamento da Cruz pela Rainha Santa Helena; O Imperador Heraclito, levando para Jerusalém a
Verdadeira Cruz, ou Exaltação da Cruz, ambos do Museu Machado de Castro, de Coimbra, Deposição
de Cristo no Túmulo, do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa; Tríptico da Igreja de Nossa Senhora
do Pébulo, das Caldas da Rainha; Martírio de Santo André, Martírio de Santo Hipólito, e dois pequenos
trípticos tendo ao centro o Calvário que pertencem ao Museu de Arte Antiga em Lisboa bem como do
mesmo Museu O Menino Jesus entre os Doutores.48
 O mais importante depois de Nuno Gonçalves
 Parente da maior parte dos grandes pintores da época
 Pintor do cardeal D. Henrique
 1515 – Examinador de pintores
 1540 – Ainda estava vivo

Tríptico da Igreja do Pópulo das Caldas da Rainha:


 Afirmação da presença das figuras; busca do carácter, da verdade, da realidade em
detrimento da “beleza” das formas
 Figuras humanas e já não celestiais

«Calvário» - Coimbra – sacristia – Igreja de Santa Cruz


Obra fundamental à compreensão do universo pictórico de Vasco Fernandes, e importante
testemunho da sua adesão aos valores do Renascimento italiano, é um dos melhores exemplares da
pintura quinhentista portuguesa, ostentando ainda uma magnífica moldura coeva.
Vasco Fernandes recebia, em 1535, parte do pagamento pela feitura de quatro retábulos para o
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Desta empreitada resta apenas o retábulo da Capela do Espírito

47
Luís Alberto Casimiro, Pintura e Escultura do Renascimento no Norte de Portugal, Revista da Faculdade de Letras,
Ciências e Técnicas do Património, Porto 2006-2007, I Série vol. V-VI, pp. 87-114
48
http://pt.wikipedia.org/wiki/Crist%C3%B3v%C3%A3o_de_Figueiredo

Renascimento e Maneirismo - 55
Santo, Claustro da Portaria, que, em 1541, D. Fernando de Mendanha considera pintado "por mão de
outro Apeles".
Foi, durante anos, uma obra de autoria controversa, por se supor que a assinatura VELASC9 não
correspondia à forma latinizada de Vasco. Reynaldo dos Santos, através do Livro da Receita e Despesa
do Mosteiro de Santa Cruz, referente ao ano 1534-35, e de um recibo de pagamento a Vasco
Fernandes de uma prestação de quatro retábulos executados para este mosteiro, vem definitivamente
provar a sua autoria e cronologia.
A contradição entre o classicismo da arquitetura e a ideia nervosa e dramática das figuras está
expressa numa obra de intensidades e contradições. A intensa expressividade dos rostos e o patetismo
como expressão do sentimento religioso são notórios nas figuras dos apóstolos que se agitam num
arrebatamento cósmico. Uma luz intensa e quase apocalíptica revela um espaço cénico racional,
depurado e de evidente inspiração renascentista, ao centro da qual, e contrastante na serenidade
escultórica, figura o grupo da trindade feminina. O contraste entre o espaço cénico e as figuras
femininas, por um lado, e a energia emergente das figuras que definem uma estrutura elíptica, por
outro, evidencia o ecletismo dos componentes classicistas em Vasco Fernandes. Este dramatismo,
acentuado pela cor vermelha das figuras em primeiro plano, é alheio a qualquer conceção classicista da
figura humana. Não se trata, como é evidente, de uma prática empírica de resolver o fenómeno pictural.
A conceção e disposição espacial das figuras e os valores cromáticos remetem para um modelo ou
para uma reflexão profunda. A latinização da assinatura, que figura em primeiro plano sobre um
pergaminho enrolado, é sintomática da utilização de um novo estilo enquanto linguagem alternativa.49
 Arquitetura de inspiração renascentista, estruturada pela luz incidente da abóbada central
 Luz, mais expressiva que denotativa, unifica de uma forma dinâmica a composição
 Composição desenvolvida em jogos visíveis de simetria
 Expressividade das figuras – serenidade contida das figuras do grupo central, arrebatamento
dos apóstolos aproximados do 1º plano – concentra todo o esforço expressivo e narrativo da
obra
 Figura de costas, debruçada sobre um livro, alheada da emotividade da cena e do
arrebatamento expressivo das restantes personagens ---- imagem do humanista que valoriza
o livro, elogio do saber

«Retábulo de Santa Cruz de Coimbra --- parte no Museu Machado de Castro


Reconstituição do retábulo: Calvário, Ecce Homo e Bustos dos Apóstolos (hoje na sacristia da
Igreja da Santa Cruz)
Ecce Homo:
 Influência da obra de Quentin Metsys – aba do tríptico encomendado para o Convento de Santa
Clara de Coimbra
 Afasta-se de Quentin Metsys substituindo os excessos caricaturais, os esgares dos rostos e as
inúmeras mãos agitadas em gestos simbólicos, pela monumentalização da figura de Cristo, na
qual concentra toda a expressividade narrativa, transformando-a no centro estruturante de toda
a composição
49
Dalila Rodrigues (publ. em Grão Vasco e a Pintura Europeia do Renascimento, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1992)

56- Renascimento e Maneirismo


 Utiliza arquiteturas e esculturas “ao romano” – pilastras
 Visão mais sintética que analítica da forma
Imperador Heráclio levando para Jerusalém a Verdadeira Cruz, Achamento da Cruz por Santa
Helena e o Milagre da ressurreição do mancebo (Museu Machado de Castro)
Incluiria, no centro, uma composição escultórica figurando Cristo deposto da Cruz (atualmente na
capela de Nossa Senhora da Piedade de Antuzede)
Lança as bases da pintura barroca, passando por cima do Maneirismo - «Procissão do Túmulo» -
Museu Nacional de Arte Antiga
Seriedade
Busca da realidade – reordenação dos elementos numa hierarquia mais atrativa e deleitosa para
os sentidos
Arte modifica o real para ir ao encontro do desejo
Concentra-se na rigorosa perfeição do desenho e nas potencialidades tonais das cores (no Cristo
Deposto da Cruz a transparência da camada cromática permite ver o desenho), tira partido das
potencialidades gráficas do óleo, imprimindo uma notável expressão à forma
Profundamente inovador pela qualidade tonal do cromatismo e pelos efeitos expressivos da luz
Unidade da composição, em geral triangular, concentrada e convergente para o ponto essencial
do tema
Dramatismo das atitudes e das expressões
Sentimento excecional de colorista, certamente o mais pintor dos artistas da sua época
Envolve e modela mais pela mancha do que pelo traço, à maneira de um impressionista

Cristo Deposto da Cruz


 C. 1530
 Óleo sobre madeira
 143,5 x 124 cm
 Patriarcado de Lisboa

Exaltação da Santa Cruz


 Capela-mor do Mosteiro de Sta Cruz de Coimbra
 c. 1530, óleo sobre madeira
 Museu Nacional de Machado de Castro

Deposição no Túmulo
 Anos 30 do século XVI
 Provavelmente do Hospital de Coimbra
 Óleo sobre madeira de carvalho
 A 182 x L 156 cm
 MNAA
 Virgem amparada pelas Santas Mulheres – à esquerda, colocadas em grelha de modo a
destacar a Virgem

Renascimento e Maneirismo - 57
 No centro – São João – de vermelho – destaque pela cor – cromatismo diferencial na vertical
de uma pirâmide
 Justaposição de diferentes estruturas organizativas das figuras no quadro:

- Estrutura em pirâmide

São João

Madalena – vermelho menos acentuado


Nicodemos

- Estrutura em cavalete

- Estrutura em retângulos – verticais ou horizontais

- Oblíqua – figura instável que ocupa o centro da composição

José de Arimateia
(os doadores estão atrás, na vertical de Madalena)

Cristo

Nicodemos

58- Renascimento e Maneirismo


- Estrutura construída de forma a orientar o olhar para José de Arimateia mas
sobretudo para os doadores
- Estrutura construída de forma o orientar o olhar para Madalena e os doadores

Apogeu da pintura portuguesa do Renascimento – estética


própria não decorrente de uma escola estrangeira

ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO – FIGURAS:


Doadores:
 Naturalismo
 Intensidade do olhar
 Vida transmitida
 Exuberância da vida
 Identificação dos doadores: Físico do Hospital de Coimbra e Cónego Regrante de
Santo Agostinho de Coimbra – lidam com as duas dimensões do Homem: o corpo e
o espírito
 Faz parte da vida deles a memória cristã, a crença, a saúde, a vida
 A estrutura em pirâmide exclui os doadores da história
 A estrutura isola-os mas a cor integra-os – gama de cores que se aproxima da
gama de tons de cores frias das figuras principais
 Cristóvão de Figueiredo revela-se um excelente retratista na modelação plástica
dos rostos dos doadores
Madalena:
 Perdeu a exuberância do corpo
 Perdeu a exuberância da cor
 Não aparece como objeto de desejo
 Não aparece sequer como imagem de mulher
 Aparece só – com a coroa de espinhos na mão
 Delicada, frágil, abandonada
 Mulher perante a perda do objeto do amor
 Diálogo silencioso com uma memória, ainda presente mas morto
 É o amor
Virgem:
 Como mãe
São João:
 Como seguidor
José de Arimateia e Nicodemos:
 Como servos
Santas mulheres:
 Como mulheres santas
Cristo:

Renascimento e Maneirismo - 59
 Rígido, quase esquemático
 Hirto
 Efeito da distanciação – afastamento; transformação do Cristo em memória, em
símbolo
 Mancha branca de Cristo ---------- orienta o olhar para José de Arimateia mas sobretudo
para os doadores
Primeira pintura em valores da Escola Portuguesa:
- Tons escuros
- Pintura em tons, interrompida por algumas manchas brancas e vermelhas

Em três planos bem definidos se estrutura a encenação desta pintura: túmulo, friso de figuras e
paisagem. A marcada horizontalidade é cortada pela diagonal do corpo de Cristo envolto na mortalha,
figura principal desta representação fixada no momento exato em que desce à sepultura. De um lado e
doutro convergem as cabeças dos figurantes e João, o discípulo tão amado, reúne no seu rosto a
expressão sofrida de Maria e das santas mulheres. Há outros valores essenciais para o entendimento
plástico e psicológico desta pintura de Cristóvão de Figueiredo. Um deles é a paisagem clareada, no
canto superior esquerdo do quadro, zona de fuga desta dramatização contida e que tem o seu
contraponto na figura de Madalena, em primeiro plano, que segura a coroa de espinhos em figurada
atitude de apresentação da morte. Outro dos motivos é a representação em plano ligeiramente
diferenciado, dos dois personagens de negro trajados que rematam a estrutura compositiva apontada
pela colocação do divino corpo. O seu retrato, de expressão absolutamente personalizada, tão diversa
das circundantes, testemunha um caminho diferente no tratamento convencional dos rostos, na pintura
portuguesa do século XVI.50

7.9.4. Mestre do Retábulo de Santa Auta


Retábulo de Santa Auta
 Museu: Museu Nacional de Arte Antiga
 N.º de Inventário: 1462
 Denominação: Retábulo de Santa Auta
 Título: Martírio das onze mil Virgens
 Autor: Mestre do Retábulo de Santa Auta
 Datação:1520 d.C. - 1525 d.C.
 Suporte: Madeira de carvalho
 Técnica: Pintura a óleo
 Dimensões (cm): altura: 93 (painel central); 67 (esq.); 69 (dir.); largura: 192,5 (painel central);
72 (esq.); 74,5 (dir.);

Descrição do Retábulo de Santa Auta seguindo uma lógica narrativa:

Painel lateral esquerdo (reverso) - "Encontro de Santa Úrsula e do Princípe Conan":

50
www.mnarteantiga-ipmuseus.pt

60- Renascimento e Maneirismo


O fundo deste quadro é composto por um amplo brocado de trama de ouro relevado de
ramagens castanhas e verde escuro.
No canto superior esquerdo figura um anjo com ampla túnica branca e asas verdes orladas de
branco.
À direita, numa tribuna forrada do mesmo brocado com um colunelo vermelho e capitel e base
de bronze, encontra-se um grupo de seis músicos negros que envergam gibão cor-de-rosa com
mangas verdes e chapéus largos de aba revirada e golpeada em tons verdes e amarelos. Tocam
instrumentos de sopro, mais concretamente três charamelas, uma bombarda e uma sacabuxa. Atrás,
de gorro de veludo preto e sobrevestido amarelo, aparece uma personagem que já foi apontado como
sendo o chefe dos músicos.
Na parte esquerda da composição, em primeiro plano entre o Príncipe Conan e Santa Úrsula,
situa-se um bispo (Tiago de Antioquia) com mitra bipartida de trama de ouro cravejada de joias de ouro
com pérolas e cabochões, apresentando à frente, em relevo, três nichos com a figura de Cristo no
centro. A mitra assenta sobre um barrete vermelho escuro, pendendo do lado esquerdo uma fita escura
que é rematada por quatro pingentes dourados e esféricos. A cobrir os ombros tem um pluvial e
sebastos de tecido de ouro com arabescos de ouro cravejados de cabochões e fios de pérolas. As
mãos, calçadas por luvas vermelhas, abençoam o encontro do Príncipe e da Santa, os quais são
secundados por uma série de personagens, estando os homens atrás de Conan e as mulheres a rodear
Santa Úrsula, (nomeadamente Santa Auta representada de perfil).

Painel lateral direito (reverso) - "O Papa Ciríaco abençoa Santa Úrsula e as suas companheiras":
A enquadrar as personagens encontra-se uma paisagem rochosa pontuada por árvores e
arquiteturas acasteladas.
O Papa, à direita da composição, enverga barrete verde na cabeça no qual assenta uma tiara
dourada. Veste alva de gola e de mangas largas e, sobre ela, uma casula de brocado de ouro. Nos
ombros tem um pluvial de tecido verde bordado a ouro e sebastos tecidos a fio de ouro com cabochões
e pérolas incrustados. O firmal ostenta ao centro um peitoral com um rubi inserido num quadrifólio de
pérolas e cercaduras de pérolas na medalha. Calça luvas vermelhas, fazendo o gesto da bênção com a
mão direita e segurando a vara de uma cruz processional na mão esquerda. Atrás de si destacam-se
outras figuras, mais exatamente três cardeais: o da direita tem um capuz preto, capelo vermelho e
hábito vermelho com cabeção de arminho; o do centro apresenta capelo vermelho escuro com gola de
arminho e o último usa chapéu vermelho de aba redonda.
Em frente do Papa representam-se quatro figuras ajoelhadas recebendo a bênção. São elas
Santa Auta, Santa Úrsula, o Príncipe Conan e uma jovem.
Por detrás surge uma multidão de personagens liderada por sete das mil virgens.

Painel central - ''Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens'':


A cena fundeira da composição é formada por um amplo estuário onde sete galeões e duas
caravelas se encontram fundeados. A par das bandeiras portuguesas da época de D. João II hasteadas
nalgumas das embarcações, também se podem observar flâmulas e bandeiras com a esfera armilar,
símbolo do Rei D. Manuel. Este cenário é o elemento unificador de uma pintura que, em termos

Renascimento e Maneirismo - 61
narrativos, pode ser dividida em duas partes distintas: do lado esquerdo, temos o embarque das
Virgens na cidade de Basileia e, do lado direito, o martírio aquando da chegada a Colónia.
No cais (parte esquerda da composição) encontram-se alinhadas diversas personagens,
destacando-se em primeiro plano um bispo - Tiago de Antioquia - com mitra dourada, alva amarela,
casula e pluvial de brocado de ouro, sebastos com cercadura de pérolas e firmal de brocado dourado
tendo como peitoral uma joia de ouro cercada de diamantes e com um rubim incrustado no centro. As
mãos do Bispo apoiam-se numa muleta castanha cujo báculo é ferrado de bronze, ostentando a
personagem um anel de ouro e uma joia colocada no dorso da mão esquerda.
A figura que se recorta por trás, de que apenas se vislumbram parte da túnica vermelha e os
sapatos, indiciam que a tábua foi cortada, não correspondendo, pois, as atuais dimensões do quadro às
medidas (e ao formato) originais.
À esquerda de Tiago de Antioquia surge representado um Papa (o Papa Ciríaco) com a respetiva
tiara de ouro, alva anilada, pluvial de brocado com peitoral de ouro e pedraria e luvas vermelhas. Na
mão esquerda segura a haste de cristal, enquanto à direita, fazendo o sinal de bênção, apresenta um
anel de ouro.
Ao seu lado e em posição de diálogo figura uma dama com trajes religiosos: escapular branco
cingido na cabeça por um diadema dourado com hastes flordelizadas, hábito castanho com um filete de
ouro debruando o canhão e manto igualmente com cercadura dourada.
Uma rapariga de cabelos loiros e gorra vermelha, assim como uma outra sem qualquer espécie
de toucado ou ornamento na cabeça, são as últimas personagens que se individualizam da multidão
que se encontra no cais.
Em primeiro plano observa-se um batel conduzido por um barqueiro de chapéu vermelho, gibão
amarelo e calções encarnados que, na proa do barco, afasta a embarcação do cais com a ajuda de um
remo. Dentro encontram-se ainda mais três personagens que se podem identificar com o príncipe
Conan, Santa Úrsula e Santa Auta.
Na parte direita do quadro, obedecendo a uma lógica narrativa, a figuração centra-se na chegada
do cortejo a Colónia (surgindo de novo o Príncipe Conan, Santa Úrsula, Santa Auta, o Papa Ciríaco,
Tiago de Antioquia e, provavelmente, um cardeal), e o consequente martírio das onze mil virgens
perpetrado pelos Hunos sob incitamento dos Romanos.

Painel lateral esquerdo (verso) - ''Partida das relíquias de Santa Auta de Colónia'':
No lado esquerdo da composição ergue-se uma cidade (Colónia) com as suas muralhas,
bastiões e torres.
Da porta sai um cortejo que caminha em direção ao cais, no qual está ancorado um galeão de
que apenas se pode observar a proa. Pormenor curioso é o de, numa flâmula branca colocada no cesto
da gávea, se inscrever o camaroeiro, símbolo da Rainha D. Leonor. Também no mastro (em baixo, à
proa, e no topo), estão hasteadas duas bandeiras portuguesas de escudo esquartelado que têm por
pala uma tira vermelha com dois castelos no meio, sendo a bordadura do escudo formada por quatro
tiras vermelhas com doze castelos. A faixa do escudo é formada por uma outra tira encarnada com três
escudetes azuis (o Escudo nacional do Rei D. João II).
Em primeiro plano destaca-se a figura de Santa Auta com um livro de letras góticas aberto nas
mãos. A santa veste um rico corpete de brocado de fio de ouro ornado de ramagens e folhas. A gola é

62- Renascimento e Maneirismo


de fio de ouro em relevo, sendo as mangas de brocado idêntico ao do corpete, golpeadas e enfeitadas
de tufos de tecido branco presos por laços azuis escuros, voltadas no punho e decoradas por filetes de
ouro, fio de pérolas e arabescos dourados. A capa, também ela de brocado e cercadura de filete de
ouro, pérolas e arabescos, apresenta um forro vermelho carmesim, imprimindo assim à figura uma nota
de cor. Com a cabeça aureolada por um duplo nimbo, tem os cabelos cobertos por um gorro de veludo
vermelho escuro circundado por um diadema de ouro com hastes encimadas alternadamente por três
ou por uma pérola. Do lado direito pende uma joia de ouro circular com pedraria e pérolas a toda a
volta. No colo, suspensa de um fio de veludo preto, sobressai outra joia semelhante à primeira e, por
baixo desta, uma terceira de lavores recortados, pérolas e pedras com um cabochão vermelho no
centro terminando na parte inferior por três pingentes com pérolas. A seta cravada no peito testemunha
a forma como a santa foi martirizada.
Em segundo plano, saindo da porta da cidade, um numeroso cortejo conduz em procissão o
caixão com as relíquias de Santa Auta que serão embarcadas no galeão português que as trará até
Lisboa.
Liderando o cortejo, estão representados quatro frades que conduzem aos ombros o caixão
coberto por um brocado de ouro.
Seguem-se outros frades com hábitos de cores e tons variados, sendo dado algum relevo a um
sacerdote de hábito cinzento-esverdeado de cabeção e mangas brancas, o qual transporta uma cruz
processional gótica de prata dourada e vara vermelha.
Atrás pode-se identificar um cardeal de manto e chapéu de abas largas vermelhos, túnica branca,
luvas vermelhas e mangas azuladas.
À sua esquerda um personagem vestido de preto e com longos cabelos e barba castanhos é a
última figura a ser retratada com alguma individualidade no conjunto da procissão.

Painel lateral direito (verso) - “Chegada das relíquias de Santa Auta à Igreja da Madre de Deus”:
Destaca-se neste painel a fachada manuelina da Madre de Deus com a cimalha de ameias
chanfradas alternando com escudos de três palas, gárgulas góticas e friso da cimalha com pequenas
esferas em relevo.
O portal tem arco trilobado, sendo o tímpano lavrado e encimado por molduras em voluta,
rematando dos lados em bolotas.
Completa o conjunto o escudo português de D. João II (ao centro), ladeado pelo escudo com a
divisa de D. João II (o pelicano) e o escudo com o símbolo da rainha D. Leonor (o camaroeiro).
Os dois botaréus torsos que se dispõem lateralmente ao portal são encimados ao nível dos
escudos por coroas reais de onde partem coruchéus piramidais igualmente torsos.
Dois panos de brocado de ouro com ramagens grená cobrem os botaréus e os lados do portal
até ao nível do arco.
Na fachada, por baixo de uma pequena janela retangular, colocado sobre uma mísula, assenta
um medalhão della Robbia com cercadura de festões de folhagem castanha com frutos amarelos e
centro com fundo de esmalte esverdeado e a escultura da Virgem com o Menino.
À direita dois vãos são rasgados, respetivamente, por duas janelas. O primeiro vão, com uma
gárgula no ângulo, cimalha com friso igual ao do corpo principal da igreja e uma torre de dimensões
reduzidas que termina com um botaréu torso rematado por coruchéu cónico, apresenta uma abertura

Renascimento e Maneirismo - 63
com arco de ogiva gótica e fundo verde nas vidraças, estando do lado direito novamente representado
o camaroeiro. O segundo vão, mais recuado e mais baixo, tem um telhado de telhas mouriscas
colocadas em três fiadas cor-de-rosa separadas por faixas amarelas.
A janela é, à semelhança da anterior, gótica, embora surja com arco trilobado.
Defronte ao portal está disposto um altar com um crucifixo e dois castiçais de prata dourada e, à
esquerda, um púlpito armado forrado de brocado.
No canto esquerdo do quadro, no prolongamento da fachada, pode-se distinguir um vão com
quatro janelas de grades e em cuja parede se encosta uma tribuna coberta com um pano e forrada com
um brocado de fio de ouro. Nela estão três personagens femininas, tendo a primeira sido já apontada
como sendo a própria rainha D. Leonor.
Santa Auta, de pé em primeiro plano, enverga panejamentos ricos compostos por uma gorra
vermelha com um diadema de ouro, pedras e pérolas e hastes encimadas por trifólios de pérolas,
pendendo-lhe sobre os cabelos uma joias com cabochão vermelho no centro e pérolas na cercadura. O
vestido é de damasco com fio de ouro e ramagens, com decote quadrado com um bico aberto no meio
do peito, orlado de verde e descobrindo parcialmente a camisa branca. O cinto que lhe cinge a cintura é
largo e com fechos de ouro presos no centro por uma argola de ouro de onde pende uma corrente de
elos dourados. O manto é de cetim vermelho com arabescos dourados e cercadura de pérolas, mangas
largas e golpeadas reviradas nos punhos com canhões bordados a ouro e pérolas. Na mão esquerda a
Santa segura um livro aberto encadernado a couro castanho e na mão direita revela uma seta e a
palma do martírio.
Entre a figura de Santa Auta e o plano fundeiro desenrola-se a procissão que transporta a arca
funerária do galeão até ao Mosteiro.

Incorporação: Outro - Transferência: Palácio das Necessidades (Lisboa)

Origem / Historial:
O designado retábulo de Santa Auta procedente do Mosteiro da Madre de Deus em Xabregas
estava originalmente colocado na capela onde se guardaram as relíquias de Santa Auta enviadas pelo
imperador Maximiliano a D. Leonor, irmã do Rei D. Manuel.
Sobre a fundação do Mosteiro da Madre de Deus e da chegada das relíquias de Santa Auta a
Lisboa, escreve Damião de Góis no capítulo XXVI da Crónica de D. Manuel: «Fundou esta Senhora [a
Rainha D. Leonor] também de novo o mosteiro da invocação da Madre de Deus, no vale de
Enxobregas, junto de Lisboa, e povoou de novo de freiras de santa Clara da Ordem de são Francisco
da Observância, que por seus intuitos comem sempre peixe, onde ela jaz sepultada, na crasta, junto da
porta do refeitório em sepultura simples, rasa igual com o chão. E porque era muito devota da bem-
aventurada santa Úrsula, guia e capitoa das virtuosas mártires onze mil virgens, pediu por suas cartas
ao Imperador Maximiliano, seu primo com-irmão, que quisesse mandar algumas relíquias destas santas
virgens, o que lhe concedeu facilmente; e dentre todas mandou tirar do mosteiro de santa Úrsula da
cidade de Colónia Agripina, onde estão todas estas sepultadas, as da bem-aventurada santa Auta, e as
mandou a entregar a boa guarda a Francisco Pessoa, que então era feitor del Rei em Flandres,
residente na vila de Anvers, para as mandar à Rainha, como o fez em uma nau holandesa, que chegou
ao porto de Lisboa aos dois dias de Setembro deste ano de mil e quinhentos e dezassete; e aos doze

64- Renascimento e Maneirismo


do mesmo mês mandou el Rei dom Emanuel que então estava em Lisboa, que levassem estas
relíquias ao mosteiro da Madre de Deus na mesma nau em que vieram, o que se fez com muita festa, e
companhia de navios, e batéis embandeirados, posto que todo o reino então estivesse de dó pela
Rainha dona Maria. Como a nau ancorou defronte do mosteiro da Madre de Deus, foram alguns
cónegos da Sé tirar as relíquias, e as trouxeram a terra, onde a Rainha dona Leonor, e o Príncipe dom
João seu sobrinho as estavam esperando. Da praia foi a arca, em que vinham, levada com solene
procissão ao mosteiro, e postas por dom Martinho da Costa, Arcebispo de Lisboa, em um altar que na
igreja para isso a Rainha dona Leonor mandou fazer.»
Num artigo publicado no Diário de Lisboa de 24 de Dezembro de 1950 e assinado por Alberto
A. da Silveira Costa Santos, Juíz-Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, transcreve-se o relatório
datado de 2 de Junho de 1913 sobre os quadros que, provenientes da Madre de Deus, estavam
indevidamente na posse da família real, incluindo-se neste conjunto o retábulo de Santa Auta. De
acordo com este texto, «O quadro pedido sob o Nº 50, um quadro semicircular, pintura sobre madeira,
século XVI, representando "O martírio de Santa Úrsula e suas companheiras" pertence ao Estado
porque foi indevidamente retirado por D. Fernando do convento da Madre de Deus, a que pertencia.
Interroguei sobre este e outros quadros o distinto crítico de arte Sr. Joaquim de Vasconcelos, o qual
declarou que, tendo sido consultado várias vezes (sendo a última em 1879) por D. Fernando sobre as
obras de arte, quadros e objetos de arte com carácter nacional português, tinha por isso conhecimento
de alguns objetos cuja propriedade era reclamada pela extinta família real. E, pelo que toca aos
quadros da Madre de Deus, muito podia falar a seu respeito, porque, de 1867 a 1869, por ocasião das
obras de restauração da Madre de Deus, examinou minuciosamente os quadros ali existentes, que
foram apeados e estendidos no chão da igreja. Os assuntos desses quadros estavam ligados e por isso
fácil é reconhecer os que de lá tivessem sido tirados. Além da sua inspeção direta, foi-lhe afiançado
pelo arquiteto da Casa Real, Joaquim Possidónio Narciso da Silva, que foi dedicadíssimo a D. Fernando
e cujo filho, Ernesto da Silva, foi criado particular do Rei e depois mordomo particular da Rainha D.
Amélia, que o dito D. Fernando não só tirara da igreja e convento da Madre de Deus os modelos Luca
della Robbia a que adiante me referirei, mas outros objetos, especialmente pinturas em tábua do século
XVI. Que Possidónio conhecia as peças da coleção de D. Fernando a uma e uma como as suas mãos.
Que o quadro atrás referido pintado sobre madeira em forma de segmento de círculo alusivo à lenda de
Santa Auta (onze mil virgens) estava como luneta de uma das capelas da nave central da Madre de
Deus.»
Também Ramalho Ortigão refere-se ao Retábulo de Santa Auta no "Catálogo da Sala de Sua
Majestade El-Rei na Exposição de Arte Sacra Ornamental" de 1895 nos seguintes termos: «Quadro a
óleo de forma semicircular, ou em arco de volta cheia, cujo assunto parece ser o martírio de Santa
Úrsula e o das Virgens suas companheiras. Pertenceu evidentemente à coleção da Madre de Deus e
fazia parte da série em que entram os dois quadros presentemente emoldurados nas portas do armário
sobre o arcaz da sacristia naquela igreja. O pincel é indubitavelmente o mesmo e são os mesmos os
personagens principais deste quadro e do quadro do casamento e da bênção nupcial da Madre de
Deus (...)»
Relativamente à autoria desta obra, foram já apontados os nomes dos pintores Vasco
Fernandes (por Cyrillo Volkmar Machado), Cristóvão de Figueiredo (por José de Figueiredo e Reinaldo
dos Santos), Gregório Lopes (por José de Figueiredo) e Garcia Fernandes (por Luís Reis Santos). Esta

Renascimento e Maneirismo - 65
pintura na Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola figurou como sendo
da propriedade da Condessa de Edla.

Chegada das relíquias de Santa Auta à Igreja da Madre de Deus de Lisboa.


 Painel da escola portuguesa da primeira metade do século XV I
 (Dimensões: 705x760 mm.)
 Museu Nacional de Arte Antiga (Lisboa).

Em 1517 chegaram a Lisboa as relíquias de Santa Auta, oferecidas pelo imperador Maximiliano
da Alemanha a sua prima D. Leonor, viúva do nosso D. João II e irmã do rei D. Manuel. Por ordem de
D. Manuel (e de acordo, sem dúvida, com a vontade da irmã), as relíquias foram conduzidas para a
igreja do convento da Madre de Deus, que D. Leonor havia mandado construir na capital, pouco antes,
na zona de Xabregas. Depositadas solenemente num altar próprio - encomendado, para o efeito, por D.
Leonor -, para esse altar se fez a seguir, ao que se julga, um retábulo de pinturas adequadas à
evocação de Santa Auta, do qual existem três tábuas atualmente no Museu Nacional de Arte Antiga,
encontradas no convento da Madre de Deus.
Santa Auta, uma das Onze Mil Virgens martirizadas em Colónia, tem a sua biografia ligada a uma
das mais curiosas lendas medievais. Pensa-se hoje que o número elevado das suas companheiras de
martírio, referido por escritores e copistas, resultou de um erro de tradução de antigos textos. Na Idade
Média, porém, o relato hagiográfico não levantou reparos e, embora com variantes, difundiu-se pela
Europa ocidental - particularmente depois que Tiago de Voragine, na 2ª metade do século XIII, incluiu
na sua Legenda Dourada uma das versões mais comuns. Segundo o bom frade dominicano, a
personagem central da história das Onze Mil Virgens foi a jovem Úrsula, linda filha do rei da Bretanha,
cristã fervorosa, que o poderoso rei da Inglaterra, pagão, pedira em casamento para o seu filho único. A
fim de desencorajar o pretendente (Etereu ou Conan), Úrsula propôs-lhe que se deixasse batizar e
Instruir na fé de Cristo, pedindo-lhe ainda onze mil companheiras que, com ela, se dirigiriam em
peregrinação a Roma, onde dentro de três anos se realizariam as bodas. O príncipe inglês aceitou as
condições, vindo a consumar-se a grande viagem das onze mil virgens até Roma (através do Mar do
Norte, do curso do Reno e das estradas dos Alpes). Recebida festivamente pelo papa Ciríaco, a
piedosa hoste de Úrsula, engrossada entretanto por cavaleiros, bispos, damas, etc., deparou no
regresso, junto de Colónia (Alemanha), com um exército dos hunos, que, num terrível massacre, matou
o imenso grupo de peregrinos! Os corpos das vítimas, sepultados em Colónia, passariam mais tarde a
tornar-se objeto de intenso culto.
No século XV, a evocação da odisseia de Santa Úrsula e das suas companheiras ganhou certa
popularidade na pintura da Alemanha e da Flandres -territórios que possuíam relíquias das mártires -,
posto que não fosse também desconhecida, na mesma época, dos artistas da França, da Itália ou da
Espanha. Em tal movimento iconográfico se inseriu o retábulo quinhentista da igreja lisboeta da Madre
de Deus, executado provavelmente à volta de 1520, em cujas tábuas se aliavam cenas da aventura de
Santa Úrsula com a lembrança da vinda para Lisboa das relíquias de Santa Auta. Na verdade, após a
rainha D. Leonor ter solicitado ao imperador da Alemanha, por devoção, a cedência de algumas das
relíquias das Onze Mil Virgens, Maximiliano sublinhara, na carta que à prima escreveu em 8 de Abril de
1517, que lhe enviava "as relíquias da Virgem Santa Auta, que fez parte do séquito da rainha Úrsula e

66- Renascimento e Maneirismo


com ela compartilhou o martírio". No que resta do retábulo quinhentista da igreja da Madre de Deus
vemos, por isso, um painel maior, já alterado no seu formato primitivo, que figura o Martírio das Onze
Mil Virgens; nos dois outros painéis, de menores dimensões, e que funcionaram como abas ou
volantes, aparecem representados o Encontro de Santa Úrsula e do Príncipe Conan e o Papa Ciríaco
abençoando Santa Úrsula, as companheiras e o Príncipe Conan. Mas nestes volantes, no reverso,
desdobram-se, respetivamente, os episódios da Partida de Colónia das relíquias de Santa Auta e da
Chegada das relíquias de Santa Auta à igreja da Madre de Deus. Verifica-se, pois, que o retábulo,
quando fechado, explicava aos adorares a presença, em Lisboa, das relíquias da padroeira do altar. Os
demais (e prováveis) painéis do conjunto, infelizmente desaparecidos, mostrariam talvez (à semelhança
do que acontece nas peças estrangeiras), outros passos da vida de Santa Úrsula e da viagem das
Onze Mil Virgens.
Das tábuas do retábulo guardadas no Museu Nacional de Arte Antiga, a Chegada das relíquias
Santa Auta à igreja da Madre de Deus é, sob o ponto de vista plástico, uma das mais belas, e quanto à
iconografia, a de maior interesse nacional.
Ela ilustra, na sua escala reduzida e delicada, a página que Damião de Góis dedicou ao
acontecimento na Crónica do Rei D. Manuel.
A fachada da igreja da Madre de Deus domina o fundo do quadrinho, com o seu aparatoso
pórtico manuelino, de sabor boitaquiano, ao lado do qual se reconhece um dos medalhões "Dei Ia
Robbia" agora recolhidos no Museu Nacional de Arte Antiga.
Quebrando o estatismo do monumento desenhado, buliçosa e polícroma, a curva da procissão
das relíquias, que nasce junto do Tejo e termina, num rito, na dinâmica e triunfal abertura do pórtico. As
relíquias, sob o pálio, vão num caixão que frades franciscanos transportam, cobertas por um rico pano
flamengo.
Atrás caminha o arcebispo de Lisboa, D. Martinho da Costa, acompanhado de eclesiásticos e de
um compacto grupo de cavaleiros, reconhecíveis pelo tom vivo dos chapéus.
À frente do pálio segue uma fila de clérigos - monges e sacerdotes envergando alvas -, enquanto
à porta do templo ornamentada de panos bordados, outras figuras da clerezia, de cruz alçada, e da
nobreza (incluindo o príncipe D. João?), aguardam o cortejo. Ali se armaram um púlpito e um altar (este
já rodeado de um círculo de cabeças), onde irão decorrer as cerimónias religiosas.
Numa distorção da realidade, as águas do rio flanqueiam a igreja, à direita, descobrindo-se ainda
a proa da nau que de Antuérpia trouxera as relíquias - nau que horas antes, naquele dia de 12 de
Setembro de 1517, subira o Tejo até defronte do convento da Madre de Deus, escoltada por uma
flotilha de navios e batéis embandeirados (como o recorda, na pintura, a caravela que singra acima da
nau).
No primeiro plano da composição estende-se, entanto, a praia de Xabregas, estando no rio,
dentro de um barco, um organista a tocar, assistido do jovem barqueiro.
À esquerda, na extremidade do painel, avulta a imagem de Santa Auta, bonita e graciosa,
segurando nas mãos um livro e as duas flechas simbólicas do martírio, de elegante túnica castanha e
manto vermelho, adereços de oiro, o rosto de carnações suaves e os cabelos claros.
Na sua retaguarda, diante do convento, levanta-se um palanque resguardado, no qual se
encontram várias damas, e à frente delas, vestida de negro, a que se supõe ser a rainha D. Leonor, de
mãos postas e voltada para a procissão.

Renascimento e Maneirismo - 67
O camaroeiro, divisa de D. Leonor, vê-se aliás neste painel, desenhado na parede da capela-mor
e numa bandeira da nau (repetindo-se, no retábulo, na tábua do Martírio das Onze Mil Virgens).
Tudo leva a crer que o retábulo haja sido uma encomenda de D. Leonor, e que portanto se tenha
executado entre 1517 e a data da morte da rainha (1525).
Ignora-se, porém, o autor dos painéis, denominado vulgarmente o "Mestre de Santa Auta".
Trata.se de um artista amaneirado, de paleta luminosa e de desenho quase miniatural que pelo seu
notável sentido da cor se aproxima da personalidade do grande pintor Cristóvão de Figueiredo (act.
1515-1543).51

«O RETÁBULO DE SANTA AUTA. ARTE E COMEMORAÇÃO»


JOSÉ CARLOS DA CRUZ TEIXEIRA
DATA: 7 DE ABRIL DE 1999

Organização do Retábulo - Verso

Organização do Retábulo – Anverso

Hipótese: Solenidade da bênção aos noivos

Duas cenas em simultâneo:


 1º Barco - embarque de Santa Úrsula, Santa Auta e príncipe
Conan, com os altos dignatários de Roma a assistir
 2º Barco – chegada a Colónia e martírio de Santa Auta

51
I.F.G., Texto fornecido pelos Serviços Educativos do MNAA

68- Renascimento e Maneirismo


Hipótese: colagem do verso e reverso da mesma tábua – daí que tenha
metade da espessura das outras; daí 2 tempos na mesma tábua
1 e 2 terão trocado de lugar

11.000 Virgens massacradas pelos Hunos:


 Ocorrido entre os séculos III e V
 Lenda fixada por um dominicano italiano – Santo Inácio Gorogine
Santa Úrsula:
 Princesa cristã prometida a um príncipe pagão – príncipe Conan
 Ossadas encontradas no cemitério de Colónia no início do século XII
 Tem a seta como atributo
 Palma – símbolo do martírio
Relíquias:
 Relíquias de uma das virgens, pedidas por D. Leonor (mulher de D. João II) ao Imperador
Maximiliano
 1517 – Destinadas ao Mosteiro da Madre de Deus
 1522 – As relíquias são colocadas na capela de Santa Auta
 Retábulo pintado a partir de 1522

Retábulo de Santa Auta:


 1ª Notícia ---- 1639 – posterior em mais de 100 anos
 Atribuído a Cristóvão de Figueiredo
 Disparate em termos de perspetiva
 Pintado dos dois lados – tipo biombo ---- anversos – dois episódios da história das relíquias:
 Tríptico visível, de um dos lados, do interior da nave central da Igreja da Madre de
Deus
 O outro lado seria visível da Igreja de Santa Auta
 Temas:
 História de Santa Úrsula
 História de Santa Auta
 Meados do século XVIII – duas das tábuas foram cortadas e passaram a servir de portas num
arcaz da sacristia
 Até ao século XIX não há qualquer referência ao painel central
 Por volta de 1860:
 Aparece o painel já cortado em redondo
 Painel central transformado em lunette de igreja
 Levado para o Palácio das Necessidades por D. Fernando
 Só recuperado para o Estado em 1913

7.9.5. Garcia Fernandes


Garcia Fernandes (Portugal, c.1514 - c. 1565) foi um pintor português do início do século XVI.

Renascimento e Maneirismo - 69
Foi aluno da Oficina de Jorge Afonso, tendo aí colaborado com outros artistas do período
manuelino como Gregório Lopes, Cristóvão de Figueiredo, Pero Vaz e Gaspar Vaz. Jorge Afonso tinha-
o em alta conta, como se conclui do facto de haver dito ao rei D. Manuel I que ele poderia vir a ser um
novo Francisco Henriques.
Em 1518-1519, juntamente com Gregório Lopes, Cristóvão de Figueiredo e outros, entre os quais
sete pintores flamengos, trabalhava nas obras da Relação de Lisboa, sob a chefia de Francisco
Henriques. Este mestre teria falecido em 1518, vítima da peste, e Garcia Fernandes comprometeu-se a
casar com uma das suas filhas, com que teve, pelo menos, nove filhos, sucedendo Francisco Henriques
na chefia da obra da Relação, o que constitui prova de grande prestígio de que já desfrutava. Foi-lhe
então prometido ser nomeado passavante, mas viu-se preterido nesta pretensão por António de
Holanda. Cerca de 1519, já casado, continuava a obra de Francisco Henriques, completando o
coruchéu do Limoeiro.
Em 1533-1534, em conjunto com Cristóvão de Figueiredo e Gregório Lopes, e ainda com
Cristóvão de Utreque, encontrava-se em Lamego, onde produziu três retábulos para o Mosteiro de
Ferreirim.
Numa petição apresentada em 1540 ao rei D. João III, queixando-se da falta de cumprimento de
promessas que lhe haviam sido feitas, diz ter trabalhado nas obras de Coimbra (Mosteiro de Santa Cruz
e Universidade de Coimbra), na Igreja de São Francisco em Évora (três painéis para o transepto), em
Leiria, Montemor-o-Novo, além de outras para a Índia e no Retábulo de Santo Elói, em Lisboa.
Manuel André, seu discípulo, diz que ele pintou um quadro na Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa, de cuja mesa fazia parte em 1521.
Através deste testemunho José de Figueiredo atribui-lhe o quadro "Os Desposórios" ou "O
Casamento da Virgem", da Misericórdia, hoje no Museu de São Roque, obra datada de 1541 e que
parece representar o casamento do rei D. Manuel I ou de D. João III. Ultimamente este quadro tem sido
interpretado com o "Casamento de Santo Aleixo".
José de Figueiredo atribui-lhe também uma "Pietà" da Igreja de São Francisco de Évora.
Reynaldo dos Santos é de parecer que as obras de Garcia Fernandes em São Francisco de Évora
devem ser os retábulos das capelas do cruzeiro, datáveis de 1530-1540 e aliás com afinidades
estilísticas com as pinturas de Ferreirim: "Anjo Custódio", "São Francisco" e "São Miguel". Túlio
Espanca diz que ele interveio, de facto, na feitura dos ditos retábulos, executados cerca de 1535, e bem
assim na da "Pietà". Têm intimas afinidades de técnica e de estilo com estas obras a "Anunciação" e a
"Morte da Virgem" (Museu Grão Vasco) de Ferreirim, que constituem sem dúvida o seu quinhão neste
conjunto. Pelas mesmas razões, devem também considerar-se da sua autoria as tábuas "Santo
António", "São Sebastião" e "São Vicente" da Igreja de Santa Cruz de Coimbra. Estes três grupos -
Évora, Ferreirim e Coimbra - constituem, pois, a base de identificação da sua obra.
Reynaldo dos Santos entende que se podem encabeçar com segurança neste pintor: o tríptico
"Aparição de Cristo à Virgem", do Museu Nacional Machado de Castro, de Coimbra, datado de 1531,
que lhe fora atribuído por Luciano Freire; os dois quadros "Aparição de Cristo à Virgem" e
"Ressurreição", da Igreja das Chagas, em Vila Viçosa, datados de 1536, atribuição esta feita por José
de Figueiredo; "Apresentação do Menino no Templo", do Museu Nacional de Arte Antiga, datado de
1538; e ainda o painel da Misericórdia de Lisboa, de 1541, já referido. José de Figueiredo atribui-lhe
mais "A Santíssima Trindade", do Museu Nacional de Arte Antiga. Aarão de Lacerda dá-lhe

70- Renascimento e Maneirismo


conjeturalmente "A Assunção da Virgem" da Igreja de Sardoura. Também lhe tem sido atribuído o
"Políptico de São Miguel", da Coleção Duque de Palmela. José de Figueiredo julga ainda que Garcia
Fernandes deve ter colaborado no "Políptico de Santa Auta", da Igreja da Madre de Deus, hoje no
Museu Nacional de Arte Antiga, sendo igualmente sua um painel em tábua, na Igreja da Misericórdia,
em Sesimbra, representando "Nossa Senhora de Misericórdia".
Passando a Lisboa, deixou obras no Convento da Trindade e na Sé de Lisboa.
Nas suas obras vêem-se introduzidos, pela primeira vez, elementos orientais. Em 1540, Garcia
Fernandes, refere que executou trabalhos para a Índia, provavelmente a sua "Santa Catarina" que
esteve exposta na Catedral de Velha Goa. A sua tela "Anunciação", hoje no Museu Nacional Soares
dos Reis, inclui uma representação de uma jarra de porcelana Ming52.
Deu mostras de uma atenção especial à arquitetura, cujos edifícios criava diretamente a partir da
régua e do compasso, cujos traços vincados são observáveis nos painéis.
Garcia Fernandes manteve, sobretudo na década de 1530, o hábito de datar os seus quadros, o
que facilita bastante o estudo da sua evolução53.
São da sua autoria a "Anunciação da Virgem" (Museu Nacional Machado de Castro), "Santo
António pregando aos peixes" (Museu Nacional de Arte Antiga) e "Santos Mártires Veríssimo, Máxima e
Júlia" (Museu Carlos Machado.54
 O mais jovem dos pintores do círculo de Lisboa
 O que melhor ilustra um sentido de continuidade com a arte dos mestres do “ciclo
manuelino”, por um lado, e a abertura a um italianismo crescente, por outro
 1514 – encontra-se na oficina de Jorge Afonso, juntamente com Pêro Vaz e Gaspar
Vaz
 Colabora com Cristóvão de Figueiredo e Gregório Lopes
 Vida muito longa (em 1565 ainda vivia) e uma enorme produção, embora algumas
obras de difícil atribuição
 A incorporação de elementos italianizantes, numa linguagem de dominante ecletismo,
define a sua trajetória
 Estilo muito particular de modelar panejamentos – fartos e duramente quebrados,
evoluindo para movimentos circulares em ondulantes remoinhos
 Imprime uma estranha energia às figuras – volante da esquerda que figura o Anjo da
anunciação – recorrendo a um gestualismo, por vezes insólito

Aparição de Cristo a Nossa Senhora


 1531
 Coimbra
 Óleo sobre madeira
 Dimensões:
 Anjo Gabriel, 126 x 45,5 cm
52
Donald F. Lach, Asia in the Making of Europe, Volume II: A Century of Wonder, Book 1, The University of Chicago Press,
1970, p. 69
53
Joel Serrão, João José Alves Dias, António Henrique R. de Oliveira Marques, Portugal do Renascimento à crise dinástica,
Editorial Presença, 1998
54
Wikipédia

Renascimento e Maneirismo - 71
 Aparição de Cristo, 123 x 101 cm
 Nossa Senhora, 126 x 45,5 cm
 Museu Nacional Machado de Castro

Fazendo parte do acervo do Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra, e atribuído a


Garcia Fernandes, o tríptico que apresenta como painel central O aparecimento de Cristo à Virgem
Maria e se encontra cronografado de 1531, terá sido resultante de uma encomenda feita para a igreja
do mosteiro de clarissas de Santa Clara-a-Antiga, em Coimbra, pela abadessa, D. Margarida de Castro
que iniciou a direção do convento em 1529. D. Margarida era filha do Conde de Monsanto, D. Álvaro de
Castro, alcaide-mor de Lisboa e camareiro de D. Afonso V. Deste modo, a prioresa, quer pela linhagem,
quer pelos contactos com a nobreza, adquiriu uma elevada cultura e sensibilidade artística que a levou
a encomendar, aos melhores artistas da época, boas obras de arte para o seu mosteiro. […]
Joaquim Caetano de Oliveira evidencia a importância deste conjunto ao afirmar:
“Este tríptico inaugura, no conjunto de obras conhecidas, a década mais prolífera e
importante de Garcia Fernandes. […] O pintor inicia com esta obra um processo de
autonomização crescente do seu estilo, progressivamente mais aberto a modelos
italianizantes com uma nova noção da importância da figura, pelo seu isolamento, pela
idealização dos modelos femininos e pela forma como os panejamentos se vão moldar
ao corpo.”

O tríptico representa no painel central o tema da Aparição de Cristo à Virgem Maria, cotejado,
nos planos secundários, por episódios centrados no tema da Ressurreição e apresenta, no anverso dos
volantes, o Anjo Gabriel (à esquerda) e a Virgem da Anunciação (à direita). A Virgem encontra-se
sentada diretamente sobre o tapete, ou sobre um coxim, numa posição frontal. As feições revelam uma
jovem de rosto sereno, ligeiramente inclinado, faces rosadas, fronte bastante pronunciada, olhar fixo no
chão e lábios fechados. Os braços, abertos em atitude de orante, apresentam as mãos com as palmas
viradas para o observador, dedos finos e levemente afastados, obedecendo a um correto desenho
anatómico e a um domínio perfeito da volumetria o que já se verificava no tratamento do rosto através
de uma perfeita utilização dos tons das carnações. Sobre o regaço de Maria o pintor representou um
livro. Este consiste num belíssimo exemplar de um códice iluminado, indicando que a jovem Anunciada
se encontrava ocupada na leitura e meditação das Sagradas Escrituras, ou de um livro de orações.
[…]55

Casamento de D. Manuel I ou Casamento de Santo Aleixo


 1531
 Óleo sobre madeira
 Dimensões 210 x 165cm
 Igreja da Misericórdia
 Museu de S. Roque
55
Texto de Luís Alberto Casimiro, docente e investigador, doutorado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto no
Ramo de Conhecimento em História da Arte, in http://abrancoalmeida.com/2011/01/24/garcia-fernandes-o-aparecimento-de-
cristo-a-virgem-maria/ (consultado a 30-12-2014)

72- Renascimento e Maneirismo


 Exemplo concreto do italianismo de Garcia Fernandes visível na atitude das figuras,
no idealismo dos rostos e no sentido da cor
 A magnífica figura feminina que, em 2º plano à direita, se estrutura no alteamento
pouco vulgar, envolvida por largo panejamento que lhe modela o corpo é a expressão
concreta do desejo de referentes mais expressivos que narrativos

Até ao final do século XX, esta obra, executada em 1541 por Garcia Fernandes, foi interpretada
como representando o Casamento de D. Manuel I com D. Leonor, ocorrido em 1518, após a morte da
segunda esposa do monarca, a Infanta D. Maria de Castela. Contudo, em 1998, Joaquim de Oliveira
Caetano apresentou uma nova leitura da obra, interpretando-a como uma representação do Casamento
de Santo Aleixo
De facto, não é plausível que se mandasse executar uma pintura representando o casamento de
D. Manuel com D. Leonor, vinte e três anos após a sua ocorrência. À data da execução desta pintura,
D. Manuel falecera, D. Leonor estava casada em segundas núpcias com Francisco I de França, e o rei
de Portugal era D. João III, a quem D. Leonor estivera prometida antes de casar com D. Manuel. Por
outro lado, tendo em conta as diretivas tridentinas, é de estranhar a colocação de uma obra de temática
profana, num espaço sagrado público. Acresce o facto de, o presumível D. Manuel não apresenta a
insígnia do Tosão de Ouro que recebera pelo casamento com D. Leonor.
A existência de uma Confraria de Santo Aleixo, na Igreja da Misericórdia encontra-se
documentada, embora não conheçamos a data de instituição desta Confraria. Contudo, sabemos que
em 1538 foi anexada à Misericórdia, por vontade régia, uma confraria de caridade. Assumindo o
pressuposto, que a confraria anexada à Misericórdia em 1538, foi a Confraria de Santo Aleixo, faria todo
o sentido a execução, em 1542, de uma pintura dedicada a Santo Aleixo, para colocar na Igreja da
Misericórdia. Justifica-se, deste modo, a presença do retrato de D. Álvaro da Costa na pintura -
identificado por uma inscrição desenhada nas suas vestes -, uma vez que era Provedor da Misericórdia
em 1538.
Em primeiro plano, e ao centro da composição, o pintor representou Santo Aleixo, a sua noiva e o
sacerdote que celebra o casamento. As figuras que assistem à cerimónia distribuem-se de forma
equilibrada, em torno do casal, separadas por sexos.
Esta pintura, apresenta uma certa graciosidade que lhe é conferida pela idealização dos rostos,
em particular dos rostos femininos, sinuosidades dos corpos e tratamento expressivo dos panejamentos
das vestes.56
Site do Museu de São Roque

Retábulo da vida da Virgem - Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho


As tábuas existentes (todas medindo 1220 x 665) são: Encontro de Santa Ana e S. Joaquim na
Porta Dourada, Nascimento da Virgem, Apresentação da Virgem no templo, Casamento da Virgem,
Anunciação, Natividade, Adoração dos Reis Magos, Apresentação do Menino no templo.
Os temas dos oito painéis decorrem, principalmente, dos Evangelhos Apócrifos e da Lenda
Dourada e, em menor grau, dos Evangelhos Canónicos. Todavia, o modo de valorizar cada um dos

56
http://www.uc.pt/artes/6spp/ia.html

Renascimento e Maneirismo - 73
temas, quer pelo desenho, pelo ambiente quer, pela luminosidade, e também pela introdução de alguns
pormenores ditos de género, resultam muito claramente de uma perspetiva que já foi considerada como
decorrente do nominalismo, segundo o qual, e simplificando muitíssimo o conceito, cada coisa vale por
si. Foi o Prof. Camón Aznar quem, numa síntese publicada em 1971, chamou a atenção para este
aspeto. Salientava o ilustre professor que “aquilo que antes (no pensamento escolástico) se
desvalorizava, (…) é agora acarinhado e representado precisamente por causa dos seus sinais próprios
e únicos”. Vão predominar, nesta época, “os temas concretos e palpáveis, as características tácteis das
coisas, um naturalismo sem véus conceptuais”. É com este nominalismo, acrescentava então Cámon
Aznar, “que se inaugura o realismo da arte moderna”.
O Encontro na Porta Dourada e o Nascimento da Virgem, as duas primeiras pinturas na
sequência cronológica do nascimento de Maria, serão as mais ricas de uma perspetiva de composição
onde, na primeira das tábuas, a cena principal, de inspiração em gravura dureriana, é completada pelos
apontamentos em fundo do aparecimento do anjo a S. Joaquim e a Santa Ana. O Nascimento da
Virgem recorre ao imaginário popular do tempo para as cenas de parto, com apontamentos de género,
não havendo fonte escrita que mencione explicitamente o ato. A gravura de Dürer que pode ter servido
de inspiração remota ao pintor é muito mais complexa quer na composição quer no ambiente, quer na
atitude muito agitada dos personagens que intervêm no ato. Todavia, do ponto de vista iconográfico, há
a curiosa novidade, na pintura portuguesa da época, do aparecimento de uma mulher negra, pormenor
a que nos referiremos noutro local.
A Apresentação da Virgem no templo é outra das cenas inspiradas nos textos dos Evangelhos
Apócrifos (Evangelho do Pseudo Mateus) e também em gravura, esta do alemão Israel van Meckenem.
Trata-se de uma pintura onde o mestre, tal como sucede na tábua já mencionada do Nascimento da
Virgem e também no Casamento da Virgem e Apresentação do Menino no templo mostra uma
preferência especial pelos interiores e pela subordinação das figuras ao enquadramento arquitetónico.
O Casamento da Virgem é uma das três pinturas que apresentam elementos iconográficos do
maior interesse para a identificação do conjunto. Segundo o texto apócrifo em que se fundamenta, os
pretendentes a Maria deviam apresentar-se no templo com uma vara e aquele a quem pertencesse o
ramo que floriria seria o escolhido. Apesar de contrariado, pela sua idade avançada e por já ter filhos, é
a José que cabe “receber Maria”. Na pintura, vê-se José com a vara de ponta reverdecida e, atrás,
outros pretendentes e um grande conjunto de varas secas.
Se observarmos a pintura na zona atrás de José, verificaremos que existe uma alusão às varas
dos pretendentes à exceção de um único, exatamente aquele de quem vemos o busto, mais à direita.
É nesta figura que encontramos um outro elemento fundamental para a identificação que
propomos. Este personagem exibe um emblema, designado mais corretamente por estampa,
representando um pelicano alimentando os filhos. Este símbolo, que foi de D. João II (falecido em
1495), pertenceu, depois, ao seu filho natural, D. Jorge de Lencastre (21 de Agosto de 1481 – 22 de
Julho de 1550).
Afastado da sucessão, por decisão papal e, seguramente, influência da rainha D. Leonor, D.
Jorge manteve sempre um estatuto especial, tendo sido investido, ainda em vida de seu pai e apenas
com onze anos, no mestrado da Ordem de Santiago, na administração da Ordem de Avis, no ducado
de Coimbra e recebendo vários títulos, entre os quais, o de senhor de Montemor.

74- Renascimento e Maneirismo


Na sua juventude, D. Jorge de Lencastre foi educado pela tia-avó, a infanta Santa Joana e,
depois da morte desta, ficou a cargo do primeiro conde de Abrantes, D. Lopo de Almeida, pai de D.
Jorge de Almeida, bispo de Coimbra desde 1481 até 1543 e primeiro inquisidor-mor do reino a partir de
1536.
As relações entre D. Jorge de Lencastre e o bispo D. Jorge de Almeida não podiam deixar de ser
muito próximas não apenas pelo facto de ambos terem sido educados pelo conde D. João, mas
também porque o primeiro, sendo Duque de Coimbra tinha, certamente, estreitos contactos com o bispo
D. Jorge. Curiosamente, na tábua Casamento da Virgem, vêem-se as armas do bispo inscritas numa
bandeira que sai do candelabro ao centro e o chapéu episcopal noutra do lado esquerdo.
Os elementos heráldicos referidos – o pelicano de D. Jorge de Lencastre, as armas e o chapéu
episcopal D. Jorge de Almeida – representam claramente a relação entre ambos, o que permite
determinar o aparecimento simultâneo desta simbologia. Este D. Jorge de Almeida desenvolveu
importante ação mecenática em Coimbra e fora da cidade, sabendo-se que mandou reconstruir a igreja
colegiada de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho, confiando esse trabalho a algum
construtor procedente do grande estaleiro da Batalha e elemento da oficina coimbrã de Marcos Pires,
mestre responsável pelo claustro de Santa Cruz de Coimbra e pela capela da Universidade daquela
cidade, falecido em 1522.
A clara identificação do Senhor D. Jorge, representando-o como testemunha e participante no
ato, e também como encomendador, é confirmada na tábua Anunciação onde, na orla do tapete onde
ajoelha a Virgem, estão inscritos, em dimensões muito reduzidas, entre outros, os emblemas da Ordem
de Santiago e da Ordem de Avis, e as armas antigas da vila de Montemor.
A Natividade e a Adoração dos Reis Magos não apresentam, aparentemente, nenhum elemento
que contribua para a identificação do doador ou do local para onde o conjunto foi executado mas são
indiciadores da intervenção de Garcia Fernandes, quer nos panejamentos dos anjos, quer na riqueza
das ourivesarias, que fazem recordar outras, semelhantes, da companhia Cristóvão de Figueiredo com
aquele mestre de Ferreirim no Retábulo de S. Bartolomeu, da Sé de Lisboa.
A última pintura da série, a Apresentação do Menino no Templo, apresentando elementos
estilísticos próximos de pintura do mesmo tema da série do Paraíso, é a tábua da dedicação feita pelo
encomendador. Em vez da habitual inscrição retirada do texto bíblico pode ler-se: PIETATI SACRUM
N.N., o que, em tradução livre, significa, “pela piedade, consagrado em nosso nome”.
Os elementos que temos vindo a referir permitem-nos defender a ideia de que o retábulo que foi
do Duque de Palmela, terá sido mandado executar para Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho
pois só aqui se verificava a estreita conjugação de poderes do senhor D. Jorge e do bispo D. Jorge de
Almeida. De facto, enquanto o filho natural do rei D. João II era não apenas mestre de Santiago e
administrador da Ordem de Avis, era também como já referimos, Duque de Coimbra e senhor de
Montemor-o-Velho, cidade e vila integradas no episcopado de Coimbra, à frente do qual estava D.
Jorge de Almeida. Tanto o primeiro como o bispo foram educados pelo conde de Abrantes e, com toda
a probabilidade, o bispo e o senhor de Montemor-o-Velho terão seguido as lições do humanista Cataldo
Sículo, o gramático e humanista italiano que foi convidado expressamente por D. João II para instruir o
seu filho natural. A educação recebida por ambos estará certamente na base da importante ação
mecenática que desenvolveram nas diversas regiões sob sua influência e onde começa a descobrir-se
a introdução de um novo gosto.

Renascimento e Maneirismo - 75
Às informações de carácter heráldico-iconográfico deveremos agora acrescentar uma outra,
documental, relativa à autoria. Vários autores têm atribuído estas pinturas ao pintor Garcia Fernandes.
De facto, a maioria das tábuas aponta para aquilo que tem sido considerado como a mão deste mestre,
sobretudo no que refere ao modo largo de tratar os panejamentos, aos cromatismos onde conjuga
tonalidades quentes com a frieza de alguns amarelos e verdes e, sobretudo, ao gosto pelas cenas de
interior, fazendo uso persistente das arquiteturas para localizar espacialmente os temas tratados e,
mais obviamente, como foi salientado por Joaquim Oliveira Caetano a riqueza do tratamento dos
objetos, da ourivesaria e da armaria. De facto, este último aspeto parece constituir um dos meios
possíveis para encontrar a “mão” de Fernandes que, mesmo em obras já claramente datáveis de
período em que o gosto renascentista se havia implantado, continua a persistir nas formas do gótico
final nas suas peças de ourivesaria.
Em 1533, Garcia Fernandes estava a trabalhar em Ferreirim numa obra entregue ao seu
companheiro Cristóvão de Figueiredo, na qual participaram Gregório Lopes e Cristóvão de Utreque. A
atividade de Garcia Fernandes entre a conclusão da pintura do coruchéu do Tribunal da Relação e o
ano de 1533 não está documentada. No entanto, por uma petição por ele dirigida ao rei D. João III
sabemos que trabalhou em diversas empreitadas, designadamente para Coimbra e Montemor.
Esta informação não pode deixar de ser cruzada com uma outra, constante de um depoimento de
1540, segundo o qual Garcia Fernandes, referindo-se ao pintor seu colega Cristóvão de Figueiredo,
atesta que “são compadres e amigos e companheiros em as obras que fazem e comem e bebem
ambos”. Não deverá esquecer-se, também, que Cristóvão de Figueiredo trabalhara na obra da Relação,
ao tempo de Francisco Henriques, e se encontrava em Coimbra, entre 1522 e 1533, a cumprir o
encargo das pinturas da Igreja do Mosteiro de Santa Cruz onde também é detetável a colaboração de
Garcia Fernandes.
A propósito destas tábuas do Retábulo da Vida da Virgem já foram indicadas, a traços gerais,
muitas das características do trabalho de Garcia Fernandes e poderemos adiantar que, neste mesmo
conjunto, alguns outros pormenores com valor para a identificação ali podem ser encontrados.
Refiramos, por exemplo, o modo da gestualidade, a utilização de pormenores de género, as
ourivesarias e, sobretudo, o gosto por espaços fechados e cenas preocupadamente circunscritas por
elementos arquitetónicos.
Todavia, para além dos modos identificáveis de Garcia Fernandes, outros há que julga-mos mais
próprios de Cristóvão de Figueiredo. Salientamos, entre estes, o tratamento de alguns rostos onde a
intensa dramaticidade das expressões nos sugere a mão deste pintor, examinador de pintores e,
sobretudo, debuxador de retábulos, conforme ficou atestado no documento de encomenda das obras
de pintura para a igreja do Convento de Ferreirim, datado de 1533.
Sendo verdade, de acordo com a petição de 1540, que Garcia Fernandes trabalhou para
Montemor, será de admitir, também, que Cristóvão de Figueiredo, o seu amigo, compadre e
companheiro “nas obras que fazem” e com quem ele “comia e bebia” tenha participado, e talvez
debuxado, o Retábulo da Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho. Considerando que
Cristóvão de Figueiredo esteve em Coimbra entre 1522 e 1533 e que Garcia Fernandes, após a
conclusão da obra da Relação, terá ido juntar-se ao seu companheiro, poderemos sem dificuldade
admitir esta colaboração, datando o conjunto retabular de finais dos anos vinte, como propõe Joaquim

76- Renascimento e Maneirismo


Oliveira Caetano, ou começos dos anos trinta, período em que ambos, e também Gregório Lopes,
tiveram atividade na região coimbrã.
Quanto à encomenda da obra, reiteramos a nossa opinião que, dada a conjunção de elementos
heráldicos em duas das tábuas, desde o pelicano às insígnias das ordens de Santiago e Avis, a obra foi
encomendada por D. Jorge de Lencastre que não deixou de aludir à autoridade eclesiástica da igreja e
colegiada, mandando inscrever no exuberante lampadário do painel Casamento da Virgem as armas
pessoais e o símbolo episcopal de D. Jorge de Almeida.
A figura que ostenta o emblema com o pelicano seria, então, o filho legitimado de D. João II,
embora o provável retrato não seja “tirado do natural” porque, ao tempo, o Senhor de Montemor já teria
quase cinquenta anos. Este “retrato” é, naturalmente, uma figuração icónica, de representação, tal
como surge em muita da nossa pintura da época, sobretudo na figuração de doadores.
Junto ao provável D. Jorge de Lencastre encontra-se um outro, mais jovem, que ostenta outro
emblema. Os heraldistas consultados não lhe conferem uma caracterização específica, mas admitem
que, sendo essa figura D. João de Lencastre, o filho primogénito do eventual doador e mais tarde
primeiro Duque de Aveiro, o referido emblema, que parece representar um guerreiro com escudo, terá a
ver com alguma empresa do mesmo.
Pelos motivos expostos, consideramos que o Retábulo é obra da companhia Garcia Fernandes –
Cristóvão de Figueiredo, por eles executado para a Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-
Velho, por encomenda de D. Jorge de Lencastre, ali representado como doador e acompanhado de seu
filho D. João, futuro Duque de Aveiro. Ficará, assim, afastada a remota e equivocamente fundamentada
proposta de atribuição do conjunto ao pintor Jorge Leal, parceiro eventual de Gregório Lopes, referido
em escassa documentação e acerca de quem não existem estudos laboratoriais, mesmo em primeira
aproximação. Partindo da leitura sequencial da iconografia, poderemos propor uma reconstituição
presumível do retábulo eventualmente montado numa máquina ainda ao gosto do gótico final, próximo,
portanto, do razoavelmente anterior que ainda hoje se vê no altar-mor da Sé Velha de Coimbra. O
Retábulo da Vida da Virgem da Igreja de Santa Maria da Alcáçova incluiria na fieira central, duas
imagens em vulto: ao cimo, uma representação do Calvário e ao centro uma imagem de Nossa Senhora
da Assunção, a quem a igreja era dedicada. Não seria de excluir a existência, em fieira inferior,
ladeando o Sacrário, uma predela com pinturas alusivas a santas mártires, à semelhança do que
ocorria com o retábulo da Igreja do Paraíso, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga.

Os Santos Mártires de Lisboa


 c. 1530, óleo sobre madeira
 Museu de Carlos Machado, Ponta Delgada
 Martírio dos santos de Lisboa – Veríssimo, Júlia e Máxima
 Representação imprecisa, ao fundo, do Paço da Ribeira – torreão com telhado piramidal e
loggia de aspeto renascentista

Santíssima Trindade
 Garcia Fernandes e colaboradores – Jorge Afonso
 Retábulo do Convento da Trindade em Lisboa
 Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga

Renascimento e Maneirismo - 77
 Painel central do conjunto
 Trono sobrepujado por um baldaquino ---- influência do Gótico Final
 Putti ---- claramente renascentistas
 Composição ----- lembra a de um tímpano de uma catedral gótica
 Quatro Evangelistas rodeiam o trio central

Santo António pregando aos peixes


 c. 1535-1540
 Óleo sobre madeira de carvalho
 144 x 94,5 cm
 Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

Esta pintura comporta duas cenas fundamentais da hagiografia antoniana. Em primeiro plano
vemos o Santo pregando aos peixes do Adriático, que o escutam com mais atenção que os hereges de
Rimini que debalde tentara convencer e, em cena secundária, representa-se o milagre da mula, o
animal que reconheceu, ajoelhando-se, a presença divina na hóstia consagrada, o que levou à
conversão do judeu Guillard. A relação entre as duas cenas define-se também no espaço pictural,
figurando a segunda num conjunto arquitetónico de laivos classicistas, cuidadosamente riscado a régua
e compasso em incisões que são ainda visíveis.

7.9.6. Gregório Lopes – 1ª fase de atividade


Gregório Lopes (Portugal, c. 1490 - 1550). Foi uma das personalidades mais marcantes na
pintura portuguesa da primeira metade do século XVI, pintor régio de D. Manuel I e D. João III, cedo
aderiu à mudança cultural e artística que levou à italianização da arte portuguesa, nos finais da década
de trinta de 1500. Representante do Renascimento evoluído em Portugal, foi o pintor que introduziu o
«Primeiro Maneirismo de Antuérpia» em Portugal.
Em 1513, Gregório Lopes já exercia o ofício de pintor e, em 1514, trabalhava na Oficina de Jorge
Afonso, em Lisboa, sendo casado com uma filha deste, Isabel Jorge. Nesta Oficina foi companheiro de
Pêro Vaz e Garcia Fernandes, de Lisboa, e de Gaspar Vaz, de Viseu. O seu nome volta a aparecer em
1515 em escrituras relativas à casa e terrenos que possuía junto ao Mosteiro de São Domingos, em
Lisboa.
Em 1518, trabalhou sob a chefia de Francisco Henriques, em parceira com Garcia Fernandes,
Cristóvão de Figueiredo, André Gonçalves e outros pintores portugueses e flamengos, na importante
obra de pintura encomendada pelo rei D. Manuel I para a Casa da Relação de Lisboa - vasto conjunto
que ficou incompleto, devido talvez à morte de Francisco Henriques nesse mesmo ano, e que depois se
perdeu.
Por carta régia de 25 de abril de 1522, o rei D. João III nomeava-o seu pintor; nela se dizia que
Gregório Lopes já o fora de D. Manuel I, embora não se tivesse feito o respetivo registo. Em 1524, foi
ordenado pelo rei Cavaleiro do Hábito da Ordem de Santiago, por instigação de D. Jorge de Lencastre,

78- Renascimento e Maneirismo


Mestre da Ordem Militar dos Espatários, para a qual o pintor trabalhava 57. Em 1526, era-lhe fixada uma
tença anual de 5.000 reais e 1 moio de trigo, por sua qualidade de pintor régio.
Após 1530, Gregório Lopes executou, decerto numa oficina já sua, o retábulo "Martírios de S.
Quintino" para a Igreja de S. Quintino, em Sobral de Monte Agraço, construída nessa data, a qual está
gravada no portal manuelino do referido templo; tal pintura perdeu-se e nada tem que ver com outras
pinturas existentes na mesma igreja, de motivos diversos e de época posterior.
Entre os anos 1533 e 1534, Gregório Lopes colaborou com os pintores Garcia Fernandes e
Cristóvão de Figueiredo, em Lamego, na execução dos painéis do Mosteiro de Ferreirim, como está
provado documentalmente. Por esse trabalho conjunto, habitual à época, os três membros desta
parceria passaram a ser denominados Mestres de Ferreirim, havendo dúvidas sobre a parte que
porventura caberá a cada um deles neste conjunto pictórico, atribuindo-se-lhes outras obras de
características afins, e realizadas em parceira, onde é difícil encabeçar a sua autoria firmemente num
só dos três parceiros.
A partir de 1536 e durante os anos seguintes, sob o mecenato de Frei António de Lisboa,
trabalhou no Convento de Cristo, em Tomar, como se verifica por um documento de Setembro desse
ano, do arquivo do mosteiro e hoje na Torre do Tombo, segundo o qual o artista recebera a avultada
quantia de 168.000 reais pela execução de alguns painéis para a charola - "Martírio de S. Sebastião"
(hoje no Museu Nacional de Arte Antiga), "Santo António pregando aos peixes" e "S. Bernardo" (em
Tomar) e "Santa Madalena" (desaparecido), alem do retábulo para a capela de Nossa Senhora, do
mesmo mosteiro, de que resta no Museu Nacional de Arte Antiga o lindo painel "A Virgem, o Menino e
Anjos", proveniente de Tomar e atribuído por Émile Bertaux, primeiramente, ao Mestre do Paraíso 58.
Francisco Augusto Garcês Teixeira identificou o "Martírio de S. Sebastião" como sendo obra deste
artista, mencionada nos documentos coevos, por as suas dimensões permitirem integrá-lo na série da
charola59. Este precioso conjunto tomarense e o da Igreja do Convento do Bom Jesus de Valverde, em
Évora, constituem, pois, segura base de identificação da obra do pintor, da sua técnica e do seu estilo60.
Artista palaciano, Gregório Lopes amava a pompa, o luxo, as cores quentes e cariciosas, o largo
e vistoso decorativismo. Como o acentua Reynaldo dos Santos, possuía grande sentimento da
composição e as suas Virgens e as mais figuras femininas têm suavidade no oval do rosto, na rósea
carnação, na doçura do olhar61. Atribuindo primacial importância ao desenho, fazia predominar o traço
sobre a mancha, ao contrário de Francisco Henriques, Cristóvão de Figueiredo e Garcia Fernandes; por
outro lado, nas suas pinturas, usava de preferência matéria densa.
Dadas as suas características, também lhe são atribuídas as duas séries de pinturas da Igreja de
S. João Baptista, em Tomar - a de "S. João Baptista" ou "de Salomé" e a "da Eucaristia" - de colorido
opulento e de nobre sentimento decorativo, como o sustentou José de Figueiredo, tanto mais que as

57
CAETANO, J. de Oliveira, “Gregório Lopes, pintor régio e cavaleiro de Santiago – algumas reflexões sobre o estatuto
social do pintor no séc. XV e inícios do séc. XVI”, IN As Ordens Militares em Portugal e no Sul da Europa, Actas do II
Encontro sobre Ordens Militares, Ed. Colibri, Câmara Municipal de Palmela, 1977, p.73
58
Émile Bertaux, Historie de l'Art, vol. IV
59
Francisco Augusto Garcês Teixeira, Estudos in «Anais dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo»
60
CASANOVA, Maria Amélia Pinto da Silva, As Pinturas de Gregório Lopes em Tomar sob o mecenato de Frei António de
Lisboa, Dissertação de mestrado em História da Arte, Património e Restauro, Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, Lisboa, 2002 (http://dited.bn.pt/29988/986/1399.pdf
61
Reynaldo dos Santos, Os Primitivos Portugueses

Renascimento e Maneirismo - 79
obras da dita igreja tomarense dependiam do Convento de Cristo, onde se sabe que trabalhou este
pintor régio62.
José de Figueiredo atribuiu a Gregório Lopes as seguintes obras: "Assunção da Virgem", da
Igreja de Sardoura; "Santa Catarina e um dignitário da Igreja", pintura esta em que, segundo o Abade
de Castro, as personagens seria D. Catarina, filha do rei D. Duarte, e o Cardeal D. Jorge de Costa; o
retábulo da Igreja do Castelo, de Abrantes, hoje Museu Regional D. Lopo de Almeida, com a possível
colaboração de Jorge Afonso; "O Menino entre os doutores", proveniente do Convento da Encarnação,
de Lisboa, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga; as tábuas de "S. Vicente", "S. Lourenço", "S,
Roque", "Santo António" e "S. Sebastião", da Igreja de Santa Cruz, de Coimbra; a série das "Alegrias de
Maria", do retábulo da Igreja de Jesus, de Setúbal, e bem assim a série dos santos franciscanos do
mesmo retábulo, esta de colaboração com seu filho Cristóvão Lopes. Por outro lado identificou-o com o
Mestre de Santa Auta, em cujo belo e decorativo retábulo, pleno de fausto, com figuras femininas
delicadas e enternecedoras, há inegáveis pontos de identidade com a arte deste mestre. Também se
inclinava a pensar que o retábulo do chamado Mestre de S. Bento devia ser fruto da colaboração de
Gregório Lopes e de Cristóvão Lopes, pois é de crer que este tenha colaborado ativamente nas obras
da última fase da vida de seu pai. José de Figueiredo deu-lhe ainda a autoria do célebre "Retrato de
Vasco da Gama", do Museu Nacional de Arte Antiga, que depois preferiu classificar mais
genericamente como provindo da sua oficina63.
Outras obras lhe têm sido atribuídas, como: "A Virgem visitando Santa Isabel", do Museu
Nacional de Arte Antiga, de iluminação e colorido venezianos; a "Adoração dos Magos", do mesmo
museu, com três soberbos retratos de doadores; algumas tábuas da Capela de Nossa Senhora da
Assunção, em Cascais, como "Nascimento de Cristo" e "Reis Magos" no altar-mor e o díptico
"Anunciação" na capela do Santíssimo, todas de bela composição e intenso cromatismo; e, a admitir,
como parece plausível a sua identificação com o Mestre de Santa Auta, retábulo onde surgem, airosas,
caravelas manuelinas, também o lindo painel com naus portuguesas existente no National Maritime
Museum, em Greenwich, Londres, marinha que, conforme o acentua Reynaldo dos Santos, dir-se-ia
dum precursor de Breughel.
É-lhe ainda atribuído o retábulo da Capela de Nossa Senhora dos Remédios, em Alfama
(Lisboa), bem como o conjunto da Igreja do Convento do Bom Jesus de Valverde, em Évora, executado
em meados do ano de 1544, (conjunto vulgarmente designado por Série da Mitra) onde se representam
uma "Natividade", o "Calvário" e "Ressurreição"64.
«Retábulo do Paraíso» - Museu de Arte Antiga
«Adoração dos Magos»
Mundo medieval que isola cada uma das coisas, coisas ideais que não são banhadas pela luz e
não se integram no todo que é o mundo
«Martírio de S. Sebastião» - primeira obra maneirista portuguesa
 Dos discípulos de Jorge Afonso foi o que ganhou maior protagonismo profissional e social
– pintor régio já no tempo de D. Manuel e confirmado por D. João III, em 25 de abril de

62
Francisco Augusto Garcês Teixeira, A pintura antiga da Igreja de S. João Baptista em Tomar
63
José de Figueiredo, A pintura quinhentista em Portugal
64
BRANCO, Manuel J.C., “A Fundação da Igreja do Bom Jesus de Valverde e o Tríptico de Gregório Lopes”, in A Cidade de
Évora, nºs 71-76, 1988-1993, pp.40-71

80- Renascimento e Maneirismo


1522, ascendeu à categoria de cavaleiro da Ordem de Santiago de Espada, por carta régia
de 6 de março de 1524
 Exuberância e requinte áulico (cortesão, palaciano)
 Decorativismo pelo decorativismo
 Duas mãos direitas e nenhuma esquerda

Retábulo do Salvador para a igreja do Convento de São Francisco de Lisboa – vulgarmente designado
com retábulo de São Bento por ter transitado para o Convento de São Bento da Saúde de Lisboa
 Restam 4 painéis: Visitação, Adoração dos Magos, Apresentação no Templo e o Menino
entre os Doutores (MNAA)
 Prevalência do gosto que define as grandes empreitadas áulicas:
 Exuberância decorativa
 Teatralidade galante dos gestos e atitudes
 Requinte dos cenários, das indumentárias e dos adereços
 Sentido invulgarmente harmonioso da cor
 Integração de arquiteturas "ao romano”
 Cuidada modelação dos rostos – doadores junto dos magos -, apesar do sentido idealizado
das figuras com que preenche a imagem

Retábulo da igreja do Paraíso (MNAA)


8 painéis de grandes dimensões e, presumivelmente, uma predela composta por 4 painéis
representando pares de santos mártires (2 no MNAA e 2 no Museu de Poznan na Polónia)
Temas alusivos à vida da Virgem: casamento da Virgem, Anunciação, Visitação, Natividade,
Apresentação no Templo, Adoração dos Magos, Fuga para o Egito e Morte da Virgem (MNAA)
Acumulação de formas ainda com um sentido decorativo e narrativo
Esquemas compositivos notáveis – Natividade – torna-se impositivo o 1º plano mas
confirmando-se a verdade da narrativa com inúmeras figuras ou cenas acessórias
O pintor cria circuitos de leitura com sentido de unidade e equilíbrio ---- diagonal rítmica definida
pelo par de anjos, cuja escala tenta acompanhar a profundidade espacial sugerida pelas manchas de
luz no pavimento
Preenchimento saturado do espaço
Afastamento da figura contida com o recurso constante ao alteamento e à torsão da figura
Abandono dos ritmos vivos e equilibrados das manchas de cor
Opção por uma paleta mais saturada e sombria
Sintomas de um certo esgotamento da linguagem renascentista

Charola do Convento de Cristo em Tomar: S. Sebastião, Virgem dos Anjos (ambos no MNAA), Santo
António pregando aos peixes e S. Bernardo (Convento de Cristo)

7.9.7. O Inferno
 Museu Nacional de Arte Antiga
Renascimento e Maneirismo - 81
 Autor: Desconhecido
 Datação: 1505 d.C. - 1530 d.C.
 Matéria: Óleo
 Suporte: Madeira de carvalho
 Técnica: Pintura a óleo
 Dimensões (cm): altura: 119; largura: 217,5;

Descrição:
O "Inferno" ocupa um lugar à parte no conjunto da pintura portuguesa do século XVI pela
iconografia nele contida. De facto, não se conhece nenhum outro quadro que represente de uma forma
autónoma o tema do Inferno.
Num espaço subterrâneo com uma abertura circular no canto superior direito de onde caem as
almas, os condenados sofrem as penas correspondentes a cada um dos sete pecados mortais.
Sentado num trono, o rei dos demónios preside a esta cena terrífica munido de uma enorme
trompa e vestido como um índio brasileiro.
Ao centro, dentro de um caldeirão com água a ferver, sofrem os invejosos, destacando-se um
personagem - um frade franciscano -, por ser a única figura vestida e sem sinais de sofrimento.
Em torno do caldeirão agrupam-se os outros pecados: o Orgulho (as três mulheres atadas
pelos pés sobre um fogareiro de barro de onde saem chamas que lhes consomem o cabelo), a Avareza
(no homem que é obrigado a engolir moedas), a Gula (no pecador a quem um demónio obriga a beber
vinho contido num odre em forma de porco), a Ira (o homem de cabeça rapada que está a ser pingado),
a Luxúria (no grupo onde, lado a lado, se representa o adultério e a homossexualidade, esta última
visualmente traduzida pelo frade e o jovem acorrentados).

7.10. Evolução do Retrato – do Renascimento ao Maneirismo


7.10.1. Jovem cavaleiro (Príncipe D. João?)
Mestre desconhecido
 Museu Nacional de Arte Antiga
 Príncipe D. João (?) pai de D. Sebastião – com base nas
semelhanças com uma gravura de Peter van der Heyden e uma
pintura de um retrato seu, de autor desconhecido, existentes no
palácio de Vila Viçosa
 Possivelmente pintado por António Moro, discípulo de Ticiano
 Privilegia-se o retrato do príncipe
7.10.2. D. Sebastião
Cristóvão de Morais
 Museu Nacional de Arte Antiga
 Triunfo do retrato maneirista
 Visão revivalista dos valores cavaleirescos
 Representação do mito do grande vingador e regenerador da
cristandade

82- Renascimento e Maneirismo


 Retoma a tradição com que os antecessores da Dinastia de Avis
procuraram enquadrar as ações de alargamento do reino
 Privilegia-se a armadura em detrimento do retrato do rei
 Príncipe-cavaleiro ---- imaginário dos romances da cavalaria

8. Escultura
«As esculturas individualizam-se. Saem do anonimato. Exprimem outros sentimentos e outros
valores. Os materiais que utilizam continuam a ser os mesmos, mas alteram-se as dimensões, os
volumes, as formas, os conteúdos, e com estas alterações modifica-se a nossa relação com elas.»
ANDRADE, Sérgio Guimarães, Imagens no Tempo, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1988
«Deus continua a ser Deus mas os caminhos para O alcançar são outros e outras as Suas
relações com o Homem. As imagens religiosas traduzem esta modificação -realidade dramatizada nos
rostos, nos gestos, nos volumes, nos panejamentos: realidade marcada nas anatomias, no tratamento
do corpo, à procura da dignidade clássica e do sentido harmónico das proporções.» ANDRADE, Sérgio
Guimarães, Visitando Escultura Portuguesa, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, s.d.

8.1. Escultura tumular


8.1.1. Túmulo de D. João de Noronha
Túmulo de D. João de Noronha, alcaide-mor de Óbidos, e da sua esposa, D. Isabel de Sousa.
Esta obra renascentista foi executada pelo grande escultor francês Nicolau Chanterene, provavelmente
entre os anos de 1526 e 1528, sob o patrocínio da viúva de D. João de Noronha. Obra maior da
escultura funerária renascentista do nosso país, o túmulo de D. João de Noronha apresenta uma
elaborada e harmoniosa estrutura retabular formada por arco de volta perfeita, medalhões figurados nos
intercolúnios, enquadrados por colunelos-pilastras, figuras de santos e decoração de cartelas,
pequenos anjos e motivos vegetalistas fitomórficos cobrindo a branda e branca superfície de pedra
calcária. A parte superior é rematada por médio-relevo da Virgem rodeada por anjos, inscrita numa
edícula com pilastras e encimada por pequeno frontão.

8.1.2. Túmulo de D. Afonso 4º. conde de Ourém - Ourém


O túmulo encontra-se na cripta da colegiada de Ourém, que após o terramoto de 1755 foi
reconstruída em estilo barroco, o acesso à cripta do séc. XIV que contem o tumulo é feito por uma
escada num dos braços do transepto, sendo uma sala subterrânea com teto abobadado suportado por
6 colunas com capiteis lavrados e o único vestígio da igreja anterior.
A estátua do túmulo é atribuída a Diogo Pires-o-Velho e o túmulo ao mestre da sinagoga de
Tomar, de reparar na estátua jacente com emblema senhorial em que o conde aparece trajado segundo
a moda da primeira metade do séc. XV com longa cabeleira, barrete mole e a repousar sobre duas
almofadas, o túmulo foi barbaramente saqueado pelas tropas de Napoleão (mais um) que além de o
tratarem mal ainda por cima espalharam os ossos, um monge do séc. XIX recompôs o túmulo e ai esta
ele para a prosperidade, uma joia já Renascentista da arte tumular Portuguesa.

Renascimento e Maneirismo - 83
8.1.3. Túmulo de Baltazar de Faria ( ?- 1584)
Baltazar de Faria foi Comendador da Ordem de Cristo, membro do conselho de D. João III, e
depois de D. Sebastião, do Rei -Cardeal D. Henrique e de D. Filipe I de Portugal.
A mando de D. João III, obteve em Roma a Bula que estabeleceu em Portugal o Santo Ofício da
Inquisição, dada pelo papa Paulo III.
Foi juiz da Casa da Suplicação, o tribunal da Inquisição.
O seu túmulo encontra-se na galeria sul do Claustro do Cemitério, numa edícula de feição
renascentista.

8.1.4. Túmulo de D. Luís da Silveira


Na Igreja Matriz de Góis sobressai uma das melhores obras de escultura tumular renascentista,
o túmulo de D. Luís da Silveira, que foi 1º Conde de Sortelha e Senhor de Góis e a capela-mor com as
suas laterais.

9. Ourivesaria
9.1. Relicário de D. Leonor
 Museu Nacional de Arte Antiga
 Mestre João
 1520-25
 Doado por D. Leonor, mulher de D. João II e irmã de D. Manuel, ao Convento da Madre
de Deus
 Estrutura classizante
 Templete miniaturial
 Reproduz parte da nave e a capela-mor de uma igreja, com uma cobertura em gomos
 Afasta-se da figuração e concentra-se na abstracção da mais pura arquitectura
 Pequeno espaço cénico --- simbolismo ---- aplicação das pedras preciosas e
respectivas cores
 Ouro, esmeraldas, rubis, diamante, pérola, esmaltes polícromos e cristal de rocha
 Inscrição: MISERCORDIE.TVE.TVE.MORTIS.GRAVISSIME.DULCISSIME. DOMINE.
IESV. XPE. RESPLENDOR. PATRIS.CONCEDE.NOBIS.FAMYLIS.TVIS
 Prov. Mosteiro da Madre de Deus, Lisboa

O relicário da rainha D. Leonor (1458-1525), como é vulgarmente conhecido, é uma peça


excecional a todos os títulos: riqueza dos materiais, qualidade de execução, elegância do desenho e
significado histórico da encomenda régia, para além, naturalmente, do seu valor religioso e simbólico.
Este relicário terá sido objeto de devoção especial da Rainha, figurando no seu testamento nestes
termos: “Deixo ao dito moesteiro da Madre de Deus o Relicario que fez mestre Joam, em que esta o
Santo Lenho da Vera Cruz, que ora anda na cruz d'ouro pequena, o Espinho da Coroa de N. Senhor
Jesu Christo ..., o qual relicario he todo de ouro guarnecido de certas pedras finas que estao dentro...”.
O testamento nomeia como seu autor mestre João, um dos muitos ourives estrangeiros que
trabalhavam em Lisboa, de origem alemã ou flamenga e que assinava Johan Van Sta(n)y, também ele

84- Renascimento e Maneirismo


autor de uma custódia (infelizmente desaparecida) encomendada por D. Manuel I para o Mosteiro da
Conceição de Beja.
O relicário, datável do 1º quartel do século XVI, em ouro esmaltado, gemas preciosas e pérolas,
tem a forma de um templete renascentista e obedece a um esquema rigoroso de equilíbrio e proporção.
Na parede do fundo, sobre um pequeno altar, abre-se um nicho destinado à relíquia do Espinho da
Coroa de Cristo. Outros elementos decorativos ou simbólicos surgem nesta visão frontal do relicário: as
gemas preciosas e uma pequenina Cruz de ouro contendo um fragmento do Santo Lenho, os dois
escudetes com o Camaroeiro - emblema da Rainha - na base das colunas, e o seu Escudo de Armas,
na arquivolta superior. É, de facto, uma obra-prima, tanto da colecção do museu como da ourivesaria
em Portugal.
Contemporâneo das obras ditas manuelinas, o relicário, tal como a Custódia de Belém, reproduz
uma requintada miniatura arquitectónica da mais pura expressão clássica, introduzindo-nos, deste
modo, numa estética diametralmente oposta à do gótico final e exemplificando, assim, a coexistência
numa mesma época de tendências artísticas aparentemente contraditórias.65

10. Textos complementares

10.1. Arquitetura e Liturgia


PAULO VARELA GOMES
DATA: 30 DE MARÇO DE 2000

Alterações da Liturgia / Alterações do Espaço Arquitetónico:


 Progressiva clarificação do espaço ----- relação mais direta crente – altar, onde se pratica a
Eucaristia
 Progressiva abertura do espaço interior da igreja
 Progressiva aproximação clero – leigos

Alta Idade Média:


 Divisão da igreja em duas – igreja dos leigos / igreja do clero
 Espaço segmentado, dividido; separado; espaços isolados para clero e leigos
 Igrejas conventuais no Ocidente – os crentes ouviam a Eucaristia, não a viam; nem viam as
freiras

Catedral de Coimbra:

65
Texto fornecido pelos Serviços Educativos do MNAA

Renascimento e Maneirismo - 85
 Existia um corpo separado do resto da Igreja – incluindo a nave central, a partir do 3º pilar, e
o altar-mor – coro cercado com grades que isolava os membros do Clero e a Eucaristia do
conjunto dos fiéis
 Coro à espanhola, onde se sentavam os cónegos, que foi demolido em 1469, substituído por
um coro alto à entrada da Sé – sustentado por arcos de cantaria; demolido em 1854 por não
se adequar à arquitetura original

D. Manuel e D. João III


 Novas Catedrais
 Reforma das Catedrais

Braga – 1501-1509
 Capela-Mor nova
 Grades de bronze para fechar a Capela-Mor
 Galilé e cadeiral novos
 Objectivo: colocar o coro na Capela-Mor?

Viseu – 1513 – concluía a reforma


 Construção de um Coro alto sobre a porta, ocupando as três naves
 Separação dos cónegos – que ocupam o coro alto – dos leigos – que ficam em baixo

Guarda
 Catedral de raiz do tempo de D. Manuel
 Coro na Capela-Mor

Silves
 1499 – Coro alto em madeira de cedro
 Destruído em 1769

Funchal
 Catedral com capela-mor manuelina
 1517 – Conclusão da catedral

Idade Média Alterações a partir do século XV


Coros ocupando parte da Nave Central e o Coro Alto
Dois Coros – um alto e outro no
Transepto
presbitério
Coro Alto utilizado
sistematicamente em Portugal a partir do
século XVI

86- Renascimento e Maneirismo


Tomar
 Construção de um coro alto que reoriente a Charola para Oriente
 Infante D. Henrique – já tinha lançado um coro alto, em madeira, aproveitando dois
tramos da Charola, destinados aos freires; permite o acesso dos leigos à Charola

Jerónimos
 Coro Alto
 Coro Alto – contemporâneo da introdução em Portugal da polifonia, da música
flamenga
 Vários coros na igreja com importâncias diferentes e posições diferentes na igreja –
coro dos cónegos e coro destinado aos cantores

Passa-se de um coro que separa e impede a visão do Altar-Mor para um coro alto que separa
clero / leigos mas não impede a visão da Capela-Mor por parte dos leigos

Diretrizes do Concílio de Trento:


 Aproximar os crentes da Eucaristia
 Tornar o espaço claro e racional
 Abrir o espaço da Igreja

Como é que aparecem em Portugal princípios que vão determinar as conclusões de Trento?
Cristianismo peninsular de vanguarda que antecipa a reforma do espaço litúrgico – em Portugal nos
séculos XV e início do XVI – definida em Trento ---- reivindicações que aparecem na correspondência
de D. Manuel e dos Reis Católicos com Roma

D. JOÃO III
LEIRIA
 Capela-mor grande e funda – onde estava instalado o cadeiral
 Planta idêntica à de Miranda do Douro
 Espaço direcionado para o Altar-Mor

PORTALEGRE
 Coro Alto sobre a porta

ANGRA DO HEROÍSMO
 Próxima da solução de Veneza e do Norte de Itália
 Capela-Mor com deambulatório
 Charola clássica
 Coro no próprio presbitério
 Catedral reformada

Renascimento e Maneirismo - 87
 Objetivos:
 Separar clero / leigos
 Desimpedir a vista do altar
 Elevar o altar

Espanha Portugal
 Escorial – coro alto – solução rara  Experimentam-se soluções várias – coro alto
na arquitectura espanhola sobre a porta, coro atrás do Altar-Mor, duas

 A Espanha mantém o coro na igrejas separadas dentro da mesma igreja


(solução utilizada sobretudo nos conventos de
neva com o alta a seguir,
freiras) que permitam separar o clero dos leigos e
perfeitamente isolado dos crentes
tornar visível o Altar-Mor
 Reacção do clero espanhol que
não considera decente pôr o
cadeiral atrás do Altar-Mor

S. VICENTE DE FORA
 Retro-coro – coro por detrás do Altar, separado do resto da Igreja
 Resolve o problema da visibilidade e da separação

S. DOMINGOS DE BENFICA
 A zona do coro é quase metade da Igreja

IGREJA DE SANTA CLARA, A NOVA - COIMBRA


 Modelo de igreja dupla – geral a toda a Europa
 Modelo que vem da Idade Média
 Coro com dois andares:
 Freiras em cima
 Noviças em baixo
 Entrada lateral para os leigos
 Coro das freiras direcionado para a Capela-Mor

SANTÍSSIMO SACRAMENTO DE ALCÂNTARA


 Construída em 1645
 Capela-Mor pentagonal – reproduzindo a planta do Santo Sepulcro, que corria no século
XVI
 Capela-Mor muito elevada
 Sacrário de Machado de Castro
 Sacrário – miniatura do Templo de Jerusalém
 Tipo de arquitetura e capela-mor idênticas às italianas pós 1660

88- Renascimento e Maneirismo


PORTUGAL
 Reformar o culto com uma antecipação de 100 anos em relação à Itália
 Transferência do Santíssimo Sacramento – movimento também inovador em Portugal -----
antecipando as recomendações do Concílio de Trento

Culto Oriental Culto Ocidental


Separação absoluta Caminha-se para uma progressiva
O Mistério da Eucaristia permanece um clarificação e participação no culto
mistério, celebrado longe das vistas dos leigos,
para lá de uma parede

10.2. Comemorações e Renascimento: o Arco dos Vice-Reis de Goa


Rafael Moreira
Data: 21 de Abril de 1999
1597 – Construção
De Vasco da Gama
1ª Vez que se leva para fora da Europa a ideia de comemoração
1º Monumento renascentista comemorativo construído de forma definitiva (não efémero como
era habitual)

Coincidências?
- 1600 – Jubileu – construção e/ou restauro das principais igrejas de Roma
- 1572 – Publicação de «Os Lusíadas»
3º Jubileu da subida ao trono de D. Manuel

Programa de comemorações liderado por Filipe I:


- Vontade comemorativa explícita
- Comemorar a descoberta do caminho marítimo para a índia – 1º centenário
- Acompanhado de um programa de festas oficiais
- Acompanhado da criação da Torre do tombo de Goa
- Acompanhado da criação do cargo de cronista-mor da índia – Diogo do Couto
- Objetivo político – demonstrar que Filipe I era também um rei português, rei da Índia
Portuguesa

Programa das Comemorações:


- 1595 – Nomeação do futuro Vice-Rei da data das comemorações – D. Francisco da Gama –
nomeado contra a vontade expressa do Conselho de Portugal

Renascimento e Maneirismo - 89
- 22/ Maio / 1597 – desembarque do vice-rei em Goa
- 1/ Junho / 97 – entrada solene na cidade (coincidindo com a data em que Vasco da gama
teria desembarcado, segundo a historiografia da época
- Facto histórico visto como um todo e não fragmentado:
- Comemorar a data da partida de Lisboa – a que figura no padrão
- Goa porque é a capital, e não Calecut
- Dia de Natal de 97 – data da morte de Vasco da Gama – ponto alto das comemorações
- Comemora-se a partida de Vasco da Gama, a chegada de Vasco da Gama e a morte de
Vasco da Gama

Objetivos das comemorações:


- Mais do que o facto em si, conta o herói que o realizou
- Afirmar em nome do Estado, do Rei, o papel de Vasco da Gama como fundador da Índia
Portuguesa
- Valorização de Vasco da Gama em detrimento de Afonso de Albuquerque – cujos
descendentes dominavam Goa
- Festa na Câmara Municipal de Goa – desvalorização dos fatores políticos e religiosos,
valorizando o lado cívico das comemorações e do acontecimento comemorado
- Oração pronunciada por Diogo do Couto – que propõe rebatizar a Ásia para “Gama”

Descrição das cerimónias:


- Diogo do Couto - «Década XII da Ásia»; «Biografia de D. Francisco da Gama»

Arco Comemorativo:
- Inauguração do Arco dedicado ao herói – uma porta aberta na muralha do tempo de
Albuquerque ---- porta da Ribeira que dava acesso ao palácio dos Vice-Reis (antiga fortaleza
construída por Afonso de Albuquerque – 1511)
- Construído em calcário de Lisboa
- Feito em Portugal e levado + trabalhado, só para montar
- Plano aprovado por Filipe II

Rua Direita

Igreja de Santa Catarina, construída por A. de Albuquerque


Fortaleza Arco

Terreiro do Paço

Porto de uso exclusivo dos Vice-Reis

90- Renascimento e Maneirismo


- Primazia do Descobridor sobre o Conquistador
- Por baixo do Arco passam todos os vice-reis
- Modelo copiado dos monumentos italianos --- Tratados de Arquitetura
- Métopas:
- Esferas armilares
- Gamo ---- símbolo heráldico da família Gama
- Nicho que encima o arco – estátua em pedra de Vasco da Gama
- Valorização do herói numa dimensão quase divina
- Inscrição no arco - «Vasco da Gama descobridor e conquistador da Índia»
- Júlio Simão ( neta de João de Ruão, de Coimbra) – engenheiro-mor da Índia desde 1597
- Estilo do Arco ---- próximo do estilo do Escorial
- Ordem Dórica

Esquema do monumento:
Nicho com a estátua de Vasco da Gama

Esferas armilares

Gamos

Ordem rústica, aconselhada pa

- Números ímpares, característicos do Tardo-Renascimento


- Estátua de Vasco da Gama – pose de comando, com o bastão na mão ---- próxima da
iconografia de Carlos V (estabelecida por Ticiano) e de Filipe II
- A estátua seria dourada
- Único precedente – estátua do Infante D. Henrique nos Jerónimos
- Consagração como herói sobre-humano, quase divino

Júlio Simão:
 Catedral de Goa (a maior de Portugal)
 Fortaleza da entrada da barra
 Dique que liga Goa à futura Nova Goa (Pajins)
 Igreja do Bom Jesus

Renascimento e Maneirismo - 91
 Convento de Santa Mónica (Agostinhas) – único convento feminino no Oriente

Reações em Goa:
- 1600 – Nas vésperas do regresso do Vice-Rei a Lisboa – apearam a estátua, partiram-na e
espalharam os bocados por Goa, nomeadamente amarrado ao pelourinho
- Esfinge de D. Francisco da Gama – enforcada nos mastros da nau
- Estátua substituída pela de Santa Catarina
- Estátua recolocada pela Câmara passados 2 anos, mas colocando por cima uma estátua de
Santa Catarina
- Só nos anos 50 do século XX, o Arco foi recolocado na sua originalidade

10.3. Iconografia e dimensão criativa na pintura portuguesa do Renascimento


Dalila Rodrigues
11 de Maio
Limites do Renascimento Português
Nuno Gonçalves -------------------------------------------Garcia Fernandes

Dimensão iconográfica, simbólica / Dimensão artística, criativa ?

1506 – Anunciação – Grão Vasco


 Fogareiro – plano intermédio
 Fundamental à construção formal
 Criação de perspetiva pela incidência da luz
 Luz no 1º plano
 Fogareiro em brasa -------- faz ver em profundidade; sem ele o chão ficava alteado

92- Renascimento e Maneirismo


 Fogareiro em brasa -------- verosimilhança representativa --- obrigatória no
Renascimento
 Elementos figurativos que determinam como se vê a imagem e não o que se vê na
imagem

Painéis de São Vicente


 Segundo Filipe de Almeida – a assinatura do autor está na barra decorativa da bota
do Infante D. João
 Obra de Nuno Gonçalves
 Encomenda do regente D. Pedro
 1443-45
 Capela da confraria de Sto. Antoninho
 Tese contestada porque o pormenor, o ornamento, não pode determinar a
interpretação global da obra
 1448
 Infante D. João – representado como cavaleiro – D. João foi armado cavaleiro em
1471, em Arzila
 No desenho subjacente aparece como criança, protegido pelo Infante

 Almada Negreiros – arruma os painéis como estão, com base na análise do chão

 1570-80 – data provável da execução


 1450 – Nuno Gonçalves – nomeado pintor régio
 Interligação material ---- iconográfico – fundamental para a análise das obras

Estudo material da História da Arte


Ecco Homo
 Antes de 1566 – data de abate da árvore66
 Coloca a pintura na segunda metade do séc. XVI
 Pintura maneirista
 Colorido sombrio
 Cópia de um original do séc. XV
Quatro santos de Nuno Gonçalves
66
Análise do suporte de madeira. Dendrocronologia – fixa o limite antes do qual a pintura não pode ter sido feita

Renascimento e Maneirismo - 93
 Dúvidas sobre a participação de Nuno Gonçalves
 1450 – data da execução

Vantagens e perigos do estudo material estrito


 Dá acesso ao não visível ---- dá o desenho subjacente
 Alarga o campo de observação
 Não dá datações e autorias
 Análise do material – falta de rigor científico; falta de cientificidade

São Pedro
Capelas laterais da Sé de Viseu
Rematam as naves laterais
Baptismo de Cristo

 Nova arrumação das pinturas pequenas, por baixo do painel grande


 Trocaram-se as de São Pedro com as do Baptismo de Cristo
 Arrumaram-se de novo em função da continuidade da paisagem, da incidência da luz e da
posição das personagens

Construção empírica da perspectiva ---- faz-se através dos objectos muitas vezes sobrepostos e/ou
colocados estrategicamente e não pela Geometria

10.4. Frei Carlos e o Belo Portátil


De origem flamenga e tendo professado em 1517 no antigo Convento do Espinheiro, junto a
Évora, o monge-pintor Frei Carlos foi uma das mais proeminentes e lendárias figuras da pintura
retabular em Portugal nas primeiras décadas do século XVI e alguns dos grandes painéis que a sua
oficina pintou para os altares daquele convento jerónimo são das obras mais apreciadas na coleção
do Museu Nacional de Arte Antiga.

Mas se é nestes grandes formatos que a pintura do Espinheiro revela desde logo especial
originalidade, demonstrando em tais registos uma invulgar capacidade de integração espacial
dos elementos da imagem em situações narrativas, não deixa de ser nos pequenos painéis devocionais
que se afirma com especial nitidez uma sedutora técnica de utilização da própria matéria pictural, sendo
também por aí que melhor se reconhece a sua ascendência na inconfundível tradição flamenga.

94- Renascimento e Maneirismo


Esta exposição considera essa particular vertente da produção criativa
da Oficina do Espinheiro, a das imagens religiosas para contemplação, meditação e oração individual
ou privada, pinturinhas portáteis ou de oratório privativo que, na cela monástica, estimulavam uma
piedade afectiva na contemplação de figuras de Cristo, da Virgem com o Menino ou de S. Jerónimo no
deserto.
O ponto de partida e fulcro do percurso expositivo é uma obra inédita de Frei Carlos recém-
adquirida para a colecção do MNAA, uma belíssima representação do Ecce Homo (39,5 x 31 cm).
Submetida a exames fotográficos e radiográficos, essa documentação sobre a peça é apresentada em
termos comparativos com documentação congénere de outras pinturas de tipo devocional produzidas
no Espinheiro.
A exposição procura assinalar, através de 30 pinturas de pequeno formato mas de grande
qualidade, a extraordinária procura de imagens devocionais na Europa do final da Idade Média e início
do Renascimento, correspondendo a uma certa expressão do sentimento religioso e a um incremento
do pietismo individual nessa época. As obras são de autoria predominantemente flamenga e
portuguesa e algumas das pinturas mais qualificadas provêm de colecções privadas, nunca ou muito
raramente tendo sido expostas ao público.

Ecce Homo
Jesus Cristo está a chorar. Várias lágrimas, oito, escorrem-lhe pela cara. A luz incide sobre
elas. Algum sangue surge entre os lábios. O novo Ecce Homo do Museu de Arte Antiga, uma pequena
pintura, com 40 centímetros de altura e 30 de largura, é uma obra para se ver muito de perto.
Frei Carlos, o pintor monge do século XVI, fê-la exactamente a pensar nessa proximidade. Fê-la
também a pensar que a pudessem levar de um lado para o outro, como um Livro de Horas. “As
pessoas meditam, rezam, oram em frente a estas imagens. É uma devoção mais humanista.(…)

Renascimento e Maneirismo - 95
A Virgem com o Menino e
Anjos num Jardim – c.1538-39
Finalmente, coroando uma das componentes iconográficas do percurso expositivo, apresenta-
se também o painel Virgem com o Menino e Anjos (1536-38), da autoria de Gregório Lopes, que acaba
de ser restaurado pelo Departamento de Conservação do MNAA.

Uma pintura do século XVI para rezar em casa


Isabel Salema – Público
Esta pequena exposição temporária junta 30 obras, 23 das quais são pinturas com esta
dimensão pequena. “É essa tipologia de pequeno formato que dá à peça um carácter portátil.” O quadro
recém-adquirido pode ter sido pintado para um prior de um convento o utilizar e apreciar em privado.
“Estas peças querem estimular um diálogo piedoso com o sagrado numa dimensão privada. É o que
nos diz o Ecce Homo do ponto de vista material, mas não há lastro do ponto de vista histórico.” Não se
sabe de onde vem, a não ser que estava no século XIX na colecção privada de Jorge O”Neill, em
Lisboa.
“Há um realismo sereno na figura. Tem o sangue a escorrer e está como se nada fosse. Mas
não deixa de ser fortemente dramática, porque a associamos ao heroismo de Cristo. O diálogo emotivo
concentra-se no olhar directo de Cristo, profundamente humanista.” Essa intenção interpelativa, de
experiência imediata com a divindade, tem também um carácter sensorial.

96- Renascimento e Maneirismo


O Bom Pastor – c.1520

O mais poético dos luso-flamengos


Estas peças de devoção privada são o inverso dos grandes retábulos das igrejas – Frei Carlos
pintou vários, alguns encomendados pelo rei D. Manuel I -, que podemos considerar a arte pública da
época. Ao contrário dos retábulos, onde há uma narrativa detalhada, no Ecce Homo não há
representação do espaço ou do tempo. Estas imagens de devoção privilegiam a figura de Cristo e da
Virgem Maria, num retrato em busto ou meio-corpo.
Frei Carlos é uma das figuras lendárias da pintura portuguesa. José Alberto Seabra diz que a
descoberta desta pintura “foi uma surpresa fortíssima”. É “inconfundivelmente” um Frei Carlos no estilo
e terá sido pintada na década em que esteve mais activo, os anos 20 e 30 do século XVI. “Tem essa
característica dos bons pintores flamengos, como Van Eyck e Roger Van der Weiden: consegue um
apurado realismo da forma e simultaneamente uma idealização poética. Junta o real com o ideal.” As
mãos é o que mais impressiona José Alberto Seabra no quadro. “Parecem as de uma Madona. Ele é o
mais poético dos luso-flamengos.”
Frei Carlos é entre os pintores três luso-flamengos da época – além dele há Francisco
Henriques (o favorito do rei) e o Mestre da Lourinhã – o que melhor domina a perspectiva, uma visão
racionalizada do espaço, como se vê nos retábulos. São estes três, aliás, os melhores pintores em
Portugal no início do século XVI. Frei Carlos terá estudado em Bruges ou Antuérpia e vem para
Portugal porque cá há trabalho.

Renascimento e Maneirismo - 97
Ascensão – c.1530
O primeiro documento que se conhece sobre o monge-pintor é aquele que diz que professa no
Convento do Espinheiro, em Évora, em Abril de 1517. “Eu Frei Carlos de Lisboa flamengo faço
profissão…” Em 1540, sabe-se que terá morrido, porque outro documento refere o destino a dar ao
espólio que estava na sua cela. Depois, várias crónicas falam-nos da sua fama como pintor.

Aparição de Cristo a Nossa Senhora – c.1529


Próximo da cidade de Évora, e bem no coração das vastas planícies Alentejanas, ergue-se o
antigo e agora renovado Convento do Espinheiro, transformado num surpreendente hotel de luxoEste
convento tem a sua origem numa lenda que relata a aparição da Virgem sobre um espinheiro. Em 1458,
dada a importância deste local como destino de peregrinações, foi fundada uma igreja e posteriormente
o convento que chegou a receber a visita de reis de Portugal.

98- Renascimento e Maneirismo


Anunciação – c.1520
“Ele tem uma produção em circuito fechado. Terá só feito obras para os conventos da sua
ordem, a dos monges de São Jerónimo.” O Espinheiro, mas também os Jerónimos em Belém, Santa
Marinha da Costa em Guimarães ou a Pena em Sintra. A oficina de Frei Carlos, instalada no Convento
do Espinheiro, é a única em Portugal, na sua época, que faz estas imagens de devoção, chamadas
imago pietatis.
Nos Países Baixos, estas pinturas devocionais de pequeno formato são comuns desde o século
XV. (…)

10.5. O Índio na Arte Portuguesa do Renascimento


Manuel Batoréo
Actas de Da Visão do Paraíso à Construção do Brasil,
II Curso de Verão da Ericeira, Mar de Letras, 2001, pp. 123-133.

As referências a representações do índio na arte portuguesa do renascimento não devem


exceder mais que uns escassos cinco casos, se excetuarmos as representações conhecidas da
cartografia e, naturalmente, as da literatura e de alguns documentos, incluindo, neste último grupo, para
o tema que aqui vimos tratar, a bem conhecida carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, - mas só
conhecida no século XIX -, o auto notarial de Valentim Fernandes, datado de 21 de Fevereiro de 1503,
e uma Relação cujo autor se desconhece e foi largamente divulgada a partir de versão italiana
publicada em 1507. Vários outros são conhecidos, e estão também publicados 67, mas consideramo-los
menos relevantes.
O tema do índio e, claro está, as suas representações na arte, neste caso a pintura e iluminura,
não se insere, ou, pelo menos, não se deve inserir no contexto das maravilhas, monstros e coisas
extraordinárias que percorreram a literatura de viagens desde a Antiguidade até finais da Idade Média.
Há um momento em que o alter mundus, o mundo–outro, começa a deixar de o ser por força do
conhecimento fornecido pelos contactos directos com outros povos. As viagens, e não apenas as

Cf., por exemplo, Descobrimento do Brasil nos textos de 1500 a 1571 (O) , (org. José Manuel Garcia), Fundação Calouste
67

Gulbenkian, Lisboa, 2000

Renascimento e Maneirismo - 99
portuguesas, permitiram não só conhecer aquilo que era tido como exótico mas contribuir para o
desmitificar.
Aos poucos, foi desaparecendo a ideia do insólito, do invulgar e do estranho, mencionado e
imaginosamente descrito em vastíssima literatura, muita da qual foi estudada num interessante trabalho
da drª Adelina Amorim, integrado nas Actas do Congresso Condicionantes Culturais da Literatura de
Viagens.
De facto, na Idade Média, tanto em Portugal como no resto da Europa cristã, encontram-se
variadíssimos exemplos, designadamente na decoração arquitectónica das igrejas românicas. Em
Portugal, é sobretudo no Alto Minho que encontramos figuras não apenas estranhas, monstruosas ou
não identificáveis, como também cenas que a moralidade de hoje não aceitaria, sobretudo em
construções religiosas.
Para simplificar, pretenderia que ficasse registado um dado que, esse sim, é fundamental para
entender toda a arte europeia da época medieval até, pelo menos, ao iluminismo. As representações,
mesmo as não obviamente religiosas, decorrem de textos fundadores e não apenas da Bíblia, mas
também dos evangelhos apócrifos, das lendas de inspiração religiosa – que a igreja nunca renegou,
antes pelo contrário -, e das interpretações teológicas que os padres e doutores da Igreja foram
elaborando.
O caso concreto dos monstros e das figuras ditas amorais que se veem ainda hoje em algumas
igrejas românicas decorrem dos textos de Dinis Areopagita, um neoplatónico que viveu entre o século V
e o século VI. Inspirou-se Dinis Areopagita nos textos clássicos e em Santo Agostinho e a sua obra teve
grande influência e caloroso apoio quer no seu tempo, quer, séculos mais tarde (séc. XIII), em S.
Boaventura e, também, em S. Tomás de Aquino.
Recomendava ele, na sua Hierarquia celeste, o uso de símbolos dissemelhantes, quer dizer
semelhanças dissemelhantes, (...) de modo que o símbolo não permita qualquer identificação possível
entre o que é e o que significa. A extrema beleza pode assim ser manifestada pela extrema fealdade,
quer dizer, de maneira negativa. O carácter repelente dos símbolos mais «baixos» provoca
inevitavelmente uma dialéctica de anagogia, pois que o espírito, longe de se ligar a ela, é de algum
modo projectado para o seu contrário.
Não será, pois, de estranhar que, para além das representações hoje impensáveis e dos seres
monstruosos, venham a surgir, na mesma lógica das imagens fantásticas, os homens selvagens que,
como bem acentuou a drª Maria José Goulão, funcionaram como um mito, ocupando lugar destacado
no imaginário português como amostra de um «mundo às avessas», objecto de sentimentos antitéticos
de repulsa e de sedução68.
É por estas razões que surgem homens selvagens, como o do túmulo de D. Fernando de
Meneses, na Igreja de Santa Clara de Vila do Conde, datado de 1440, ou no túmulo de D. João de
Albuquerque, do Museu de Aveiro, datado de 1480, ou ainda no retábulo de talha do altar-mor da Sé de
Coimbra, de Olivier de Gand e Jean d’Ypres, os entalhadores flamengos que o concluíram em 1502.
A história do aparecimento das representações do índio do Brasil na arte portuguesa do
Renascimento, isto é, no tempo de D. Manuel e D. João III, não é, apenas, o reflexo de um registo
68
Maria José Goulão, “Do Mito do Homem Selvagem à descoberta do «Homem Novo»: a representação do negro e do índio
na escultura manuelina”, Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar, Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História
da Arte, Coimbra, 1988, pp. 321-345

100- Renascimento e Maneirismo


antropológico ou uma curiosidade momentânea, nem de nenhum modo pode ser tomado na mesma
perspectiva nem com o mesmo sentido que era concebido o exótico medieval.
As abordagens feitas a este tema por alguns historiadores da arte permitem verificar que essa
imagem de um homem-outro é uma resultante directa da expansão portuguesa e, mais exactamente,
de uma nova atitude humanista que, aliás, já se esboçava desde, pelo menos, o último terço do século
XV.
Convirá, no entanto, ter presente que essa imagem da diferença não se manifesta apenas nas
representações de habitantes de outros continentes, já referidas em textos resultantes dos percursos ao
longo da costa africana. Essa diferença, é a de um olhar humanista. Um olhar humanista e de homem
novo que tem a ver com os próprios europeus, cristãos, portugueses, e que poderemos considerá-lo já
presente, nos anos setenta do século XV, quando Nuno Gonçalves pinta os célebres painéis da
Veneração de S. Vicente. Como ainda há poucos anos acentuou o investigador alemão Helmut Whol, o
apego a uma estilística tardo medieval é ultrapassado por aquilo que designa como um “humanismo
cavaleiresco”69.
Esta perspectiva não é, aliás, totalmente inovadora tanto mais que alguns historiadores da arte
portuguesa fazem recuar o nosso humanismo renascentista para a época de Nuno Gonçalves, na
esteira da nova ideia do mundo que os primeiros reis da dinastia de Avis vieram trazer, não apenas com
a chegada ao Norte de África e percursos marítimos que se lhe seguiram como, sobretudo, por terem
permitido chegar ao poder, como escreveu Fernão Lopes (Crónica de D. João I, 1ª parte), cap. 163), e
já foi citado por Fernando António Baptista Pereira e Dagoberto Markl 70, filhos de homens de tão baixa
condição que não cumpre dizer, por seu bom serviço e trabalho , os quais, acrescenta o cronista, neste
tempo foram feitos cavaleiros, chamando-se logo de novas linhagens e apelidos.
Este homem novo, europeu, português, que não descendia das linhagens antigas, permite-nos
construir uma imagem oposta às representações medievais do homem selvagem, essas figuras
estranhas, de corpo e membros cobertos de pelos, avançando, ferozes, com um maço de madeira na
mão ou misturando-se em densas folhagens.
A esse homem selvagem, ou homem silvestre, falta-lhe uma característica, inaceitável para o
homem medieval: esse homem não conhecia Deus. É, por isso, um motivo de preocupação e
ansiedade que se reflecte no espírito da cristandade medieval e faz que as suas representações o
coloquem em posição de subserviência ou de evidente submissão relativamente ao europeu, civilizado
e cristão.
Muitas representações em escultura e iluminura assim o apresentam. O homem selvagem é o
baixo, o que não tinha acesso ao conhecimento superior. É, em termos muito simplificados, aquele que
sustenta os escudos e brasões dos que podiam ter acesso ao altum sapere, conforme referiu S. Paulo.
Tratava-se de um saber superior daquilo que está acima de nós, que é próprio de Deus.
Se, nos primeiros tempos, essa soberba em querer conhecer o superior estava interdita aos
mortais, tal problema deixou de se levantar, pelo menos com a mesma acuidade e determinação,
quando o poder se vai tornando absoluto e o rei é considerado como o escolhido de Deus ou o
representante de Deus na Terra.

69
Conferência integrada no Colóquio Nuno Gonçalves. Novos documentos, Lisboa, IPM,1994. (inédito)
70
Dagoberto Markl e Fernando António Baptista Pereira, “O Renacimento”, História da Arte em Portugal, vol. 6, Lisboa, Alfa,
1986.

Renascimento e Maneirismo - 101


Não é, naturalmente, este tema do absolutismo tardo-medieval ou das épocas subsequentes, a
vertente fundamental desta exposição. No entanto, é essa relação do baixo como o alto que está
implícito nas representações do desconhecido, até que os descobrimentos e a expansão trouxeram ao
conhecimento europeu novas realidades, muito embora a persistência das antigas imagens não deixe
de verificar-se como, por exemplo, na iluminura quinhentista da Genealogia do Infante D. Fernando (fl.
1), e no Livro de Horas de D. Fernando.
Cabe referir aqui o texto da carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, escrita, como se sabe
logo após a chegada ao Brasil, no ano de 1500, a 22 de Abril, mas só no século XIX, conhecida da
historiografia71.
Conta o cronista terem encontrado homens pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que lhes
cobrisse as vergonhas e trazendo arcos nas mãos e suas setas. Um desses índios deu a Nicolau
Coelho, que tinha ido a terra, um sombreiro de penas de aves compridas, com uma copezinha
pequena, isto é, com um penacho, de penas vermelhas e pardas, como a de papagaio. E outro lhe deu
um colar grande de continhas brancas miúdas, que querem parecer de aljaveira (espécie de
madrepérola).
Diz ainda Vaz de Caminha que encontraram numa outra praia outros homens cuja feição era
serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem
nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca
disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados e
metidos por eles cada um com seus ossos de osso branco, de compridão de uma mão-travessa e de
grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta como a furador. Metem-nos pela parte de dentro do
beiço e o que lhe fica entre o beiço e os dentes e feito como a roque de enxadrez ”, isto é, a torre do
jogo de xadrez. “E em tal maneira o trazem ali encaixado, que lhes não dá paixão, nem estorva a fala,
nem comer nem beber. Os cabelos seus são corredios e andavam tosquiados de tosquia alta, mais que
de sobreponde, de boa grandura e rapados até cimo das orelhas. E um deles trazia per baixo da
solapa, de fonte a fonte para trás, uma maneira de cabeleira de penas de ave amarela, que seria de
compridão de um coto, muito basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas, a qual andava
pegada nos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda, como a cera e não o era, de maneira
que andava a cabeleira mui redonda, e mui basta e mui igual, que não fazia míngua mais lavagem para
a levantar.
Já o outro cronista, um alegado piloto anónimo 72, além de referir que os homens eram pardos e
andam nus, sem vergonha, acrescentava que tinham os cabelos compridos e usavam barba rapada. As
pálpebras dos olhos e por cima delas, escreveu o piloto, são pintadas com cores brancas, pretas, azuis
e vermelhas e no lábio furado alguns trazem uma pedra comprida azul e verde.
Um deles, escreveu, por seu lado, Vaz de Caminha, andava por louçainha (galanteria), cheio de
penas pegadas pelo corpo, que parecia assetado (espetado por setas) como S. Sebastião. Quanto às
mulheres andam do mesmo modo sem vergonha e são belas mulheres de corpo e cabelo compridos .
Diz mesmo, textualmente, que havia entre eles, quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos

71
A Carta de Pero Vaz de Caminha. Auto do Nascimento do Brasil, Mar de Letras, Ericeira, 2000, p. 10
72
“Relação da viagem da frota comandada por Pedro Álvares Cabral”, O Descobrimento do Brasil nos textos de 1500 a
1571, (org. José Manuel Garcia), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, p. 12-16

102- Renascimento e Maneirismo


muito pretos e compridos pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas
das cabeleiras que, de nós muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
E uma delas era toda tinta (...) daquela tintura, a qual, certo, era tão bem feita e tão redonda, e
sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais
feições, fizera vergonha, por não terem a sua como a ela..
Atentemos nesta conclusão do mesmo cronista: Parece-me gente de tal inocência que se os
homens entendessem e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm, nem entendem em
nenhuma crença, segundo parece. E acrescenta, ainda, não duvidar ser simples que se hão-de fazer
cristãos e crerem em nossa santa fé porque (...) esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á
ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. E porque Nosso Senhor, que lhes deu bons
corpos e bons rostos como a bons homens73.
Na descrição de uma missa, e terminam aqui as citações fundamentais, refere Vaz de Caminha
que, no final de celebração, um deles (...) de 50 ou 55 anos ajuntava aqueles que ali ficaram e (...)
falando-lhes acenou com o dedo para o altar e depois mostrou o dedo para o céu, como a que lhes
dizia alguma coisa de bem74.
Estas descrições não são, obviamente, apenas de interesse antropológico, e desse tratou
cuidadosamente o Prof. Manuel Viegas Guerreiro, mas apontam para os aspectos religiosos e, como
consequência directa, para a aceitação do índio como um homem puro e um cristão potencial.
Terá sido este último sentido que aqui acabamos de referir, um sentido “ edénico”, aquilo que
permitiu substituir o rei Baltazar, o único negro dos três que habitualmente surgem nas Adorações dos
Magos, na tábua desse tema pertencente ao antigo retábulo do altar-mor da Sé de Viseu, até há
poucos anos atribuída a Vasco Fernandes.
O retábulo, pintado entre 1501 e 1506, terá tido como ideólogo, conforme sugeriu Dagoberto
Markl, D. Diego Ortiz de Villegas, à altura bispo de Viseu, tendo sido ele quem pronunciou em Belém o
sermão de despedida da armada.

73
A Carta de Pero Vaz de Caminha. Auto do Nascimento do Brasil, Mar de Letras, Ericeira, 2000, pp. 175-176.
74
Idem, p. 178

Renascimento e Maneirismo - 103


Adoração dos Magos, Antigo retábulo do altar-mor da Sé de Viseu,1501-1506. Museu Grão Vasco, inv.
2145
Mas há, ainda, outro aspecto a considerar. No apócrifo Evangelho Arménio da Infância, o mago
Baltazar é referido como «rei dos Índios», embora, neste caso, se queira referir a Índia. Todavia,
também é verdade que a missão de Pedro Álvares Cabral era dirigir-se para a Índia, o que terá
autorizado esta interpretação pelo ideólogo da pintura.
O índio que ali vemos pertence à etnia tupinambá e a forma cuidadosa com que os seus trajes
são representados corresponde às referências constantes da carta de Pero Vaz de Caminha. Todavia,
tendo em conta que se tratava de uma missiva para D. Manuel e para seu exclusivo conhecimento, o
conteúdo da mesma não teria chegado ao mestre pintor. Aquela figura será, eventualmente, a de um
dos índios que vieram para Portugal numa das naus entretanto regressadas e terá sido visto e depois
descrita ao pintor pelo bispo de Viseu, conselheiro e confessor do monarca.
As penas que o índio ostenta na cabeça e a lança caracterizam a etnia, mas os colares e as
vestes do corpo e dos calções terão sido oferta dos portugueses para o apresentarem em « apropriada
decência».
Procurando seguir cronologicamente as representações conhecidas, apreciemos agora uma
outra pintura de mestre não identificado, mas bem conhecida entre nós: O Inferno, actualmente no
Museu Nacional de Arte Antiga. Trata-se de uma pintura datável de cerca de 1515.

O Inferno (pormenor), MNAA e Ars Moriendi – Temptatio Dyaboli de vana gloria, [fol. Bviii
recto], BNP, Res. Xyl. 21. Reproduzido de Alberto Tenenti, Alberto, La Vie et la Mort à travers l’art du
Xve siècle, Paris, Armand Colin, 1952.

Segundo os autores que têm escrito sobre esta pintura, desde o primeiro estudo do Dr. João
Couto, em 1944, até ao mais recente (1995), de Dagoberto Markl, passando, entre outros, por Flávio
Gonçalves, é unânime o reconhecimento da qualidade da pintura. Todavia, quanto ao seu significado e,
designadamente à interpretação que dele faz Dagoberto Markl, permitimo-nos apresentar algumas
propostas nem sempre coincidentes com este autor.
Defende Dagoberto Markl que os demónios com penas alegadamente de índio representados
na pintura correspondem à sua demonização. Diz este autor que o índio, primeiramente “ símbolo da
pureza e da inocência, dá lugar a seres diabólicos que torturam os pecadores com suplícios atrozes .
Atribui Dagoberto Markl esta alteração de sentido ao texto da carta de Américo Vespúcio a Lourenço de
Medicis, publicada em 1503 ou 1504 na qual se diz que os índios aos prisioneiros de guerra
conservam-nos para os matar e depois comer . Esta imagem não será original de Américo Vespúcio

104- Renascimento e Maneirismo


pois, em 20 de Maio de 1503, Valentim Fernandes escreve no auto notarial que os índios comem
carnes assadas ou cozidas de aves, tal como de todos os animais e também humanas dos inimigos.

De facto, muitos anos mais tarde, em 1558, no Atlas Universal de Diogo Homem essa
antropofagia está ilustrada com muita clareza. No entanto, as referências cartográficas anteriores, como
o Atlas Miller, de 1519, mostram-nos um índio trabalhador e cordato que, como escreveu Vaz de
Caminha, se enfeitavam de penas por «galantaria». Esta constatação não impede, no entanto, de fazer
meditar na imagem da xilogravura de autor desconhecido, datada de cerca de 1505, existente na
Bayerische Staatsbibliotek de Munique, onde as referências à antropofagia são bem evidentes
Julgamos que a ideia de demonização não deve ser tomada à letra. Nem mesmo que os
demónios da pintura O Inferno sejam índios. De facto, se compararmos algumas figuras dos demónios
com gravuras do incunábulo Ars Moriendi vamos encontrar aí o modelo das representações,
designadamente no «demónio-chefe» onde as penas são a «tradução» em pintura da imagem da
xilogravura.

Atlas Miller (pormenor), 1519, Atlas Universal, Diogo Homem, 1558

«A ilha e o povo que foram descobertos pelo rei cristão de Portugal ou pelos seus súbditos» ,
xilogravura em que aparecem representados canibais brasileiros, c. 1505, Bayerische Staatsbibliothek,
Munique. (Publicada por Peter Burke, Eyewitnessing.The uses of image as Historical Evidence , Reak-
tion Books, Londres, 2001.)

Renascimento e Maneirismo - 105


Considerando todo o conjunto da pintura e a representação pormenorizada de pecados, os
próprios demónios não devem ser considerados como representação do mal mas sim como
executantes ou «usufrutuários» da condenação divina.
A própria ideia de salvação e de redenção do índio terá sido uma persistência no tempo do
renascimento português, como a sua presença enquanto servidores da corte, embora seja apresentado
como pertencendo ao mundo de baixo da hierarquia social. Esta perspectiva pode ser comprovada, em
primeiro lugar, por uma imagem do Livro de Horas de D. Manuel onde, na moldura inferior do fólio 11
vemos dois índios, com suas plumas na cabeça, à proa de duas embarcações que, presumivelmente,
transportavam o rei e sua comitiva nos seus passeios pelo Tejo. Outra representação, também da
mesma obra, no fólio 87, mostra, segundo alguns autores, um índio, quanto a nós já tratado com
alguma liberdade iconográfica relativamente às descrições conhecidas.

Livro de Horas de D. Manuel, fl. 11 (pormenor), Museu Nacional de Arte Antiga

Sem querer entrar em qualquer polémica quanto à datação da obra, cujo início tem sido
colocado em 1517, julgamos que este fólio, por razões que nos dispensamos de referir, entra pela
década de 20, se não mais tarde, a confirmar-se a afirmação, não provada, do Dr. José de Figueiredo,
que as moedas ali representadas foram cunhadas em 1538. Basta olhar-lhe para a iconografia, a Cruz
da Ordem de Cristo gravada numa das faces das moedas, para legitimar algumas interrogações.
Uma das mais recentes associações de imagens ao índio foi feita por Vítor Serrão. Trata-se da
identificação da figura do «bom ladrão» no Calvário da antiga capela do Santíssimo da Sé de Viseu,
obra, esta sim, documentalmente de Vasco Fernandes e datável de 1535-1540.

106- Renascimento e Maneirismo


Livro de Horas de D. Manuel, fl. 87, Museu Nacional de Arte Antiga

O «bom ladrão», à esquerda do observador, corresponde às descrições anatómicas de Pero


Vaz de Caminha. Não só é “pardo”, como tem os “cabelos negros e escorridos” e é de “bom corpo”.
É exactamente a tonalidade da pele e a corpulência que nos permitem admitir como boa a
proposta de Vítor Serrão, embora o pormenor dos cabelos escorridos surjam já em imagens dos ladrões
em gravuras dos séculos XV. Nesta pintura o índio é o homem bom como bom era o ladrão do
Evangelho, que é redimido pela sua fé. Esta representação será mais um bom argumento para afastar
a ideia de que os demónios da pintura O Inferno sejam um alter-índio maléfico. A data atribuída à
execução deste painel situa-se entre a da Adoração dos Magos e a do Calvário, não sendo presumível
que haja uma perspectiva intermédia do índio, bom umas vezes e mau noutras, mesmo considerando o
texto de Américo Vespúcio.

Vasco Fernandes, Calvário, antiga capela do Santíssimo Sacramento da Sé de Viseu, c. 1535-


40, Museu Grão Vasco, inv. 2156.

Para terminar, apenas um registo. Tem sido dada como representação de um índio, uma figura
pintada num dos frontispícios da Leitura Nova. O frontispício do livro Estremadura II, datado de 1527 e
assinado ALVARUS, o pintor régio Álvaro Pires, que identificámos como Mestre da Lourinhã.
Consideramos que esta proposta não deve ter seguimento, pois o modelo pode ser encontrado em
gravura do italiano Zoan Andrea, a exemplo do que sucede em muitos outros frontispícios da Leitura
Nova.

Renascimento e Maneirismo - 107


Redimido ou não, cristianizado, certamente, o índio é já, nos meados do século XVI, mais
exactamente em 1545, um homem do mundo português, um dos que ficaram integrados no sonho do
império, como demonstra a imagem do Planisfério hoje guardado na Biblioteca Nacional da Áustria.

Planisfério português anónimo, c. 1545, Viena, Biblioteca Nacional de Áustria

Bibliografia essencial
Carta da Pero Vaz de Caminha (A). Auto do Nascimento do Brasil , (pref. Joaquim Veríssimo Serrão),
Mar de Letras, Ericeira, 2000.
COUTO, João, “O Inferno. Painel português do século XVI”, Litoral, n.º 2, Lisboa, Julho 1944, pp. 179 –
184
Descobrimento do Brasil nos textos de 1500 a 1571 (O) , (org. José Manuel Garcia), Fundação
Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, p. 12-16
GOULÃO, Maria José, “Do Mito do Homem Selvagem à descoberta do «Homem Novo»: a
representação do negro e do índio na escultura manuelina”, Portugal e Espanha entre a Europa e Além-
Mar, Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte, Coimbra, 1988.
MARKL, Dagoberto, “Introdução ao estudo do «Inferno» do Museu Nacional de Arte Antiga”, Póvoa do
Varzim. Boletim Cultural, vol. XXVI nº 2, 1989, pp. 541 – 561.
MARKL, Dagoberto e PEREIRA, Fernando António Baptista, “O Renascimento”, História da Arte em
Portugal, vol. 6, Lisboa, Alfa, 1986.
NABERT, Nathalie (org.), Le Mal et le Diable. Leurs figures à la fin du Moyen Age , Paris, Beauchesne,
1996.
RUSSEL, Jeffrey Burton, Satan. The Early Christian Tradition, Cornell University Press, Ithaca e Lon-
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TENENTI, Alberto, La Vie et la Mort à travers l’art du XVe siècle, Paris, Armand Colin, 1952
VELLENEUVE, Roland, Dictionnaire du Diable, Paris, Omnibus, 1998.

10.6. O Retábulo da Vida da Virgem da Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho

108- Renascimento e Maneirismo


Na muito variada colecção de arte do Duque de Palmela incluem-se oito painéis com cenas da
Vida da Virgem, adquiridos por D. Pedro de Sousa Holstein provavelmente após ter sido presidente do
Senado e enquanto desempenhava vários cargos políticos que abandonou em 1848.
A primeira notícia sobre este conjunto retabular data de 1815 e foi dada por Cunha Taborda que
informa pertencerem as pinturas ao Marquês de Valença. Depois daquela data os painéis terão estado
episodicamente na posse do Conde de Figueira, D. José de Castello Branco, surgindo, em 1846, na
colecção do Duque de Palmela, no Palacete do Calhariz, onde o connoisseur e investigador Atanas
Raczynski os viu em 1846, considerando-as próximas do conjunto mariano da igreja do Convento do
Paraíso. Referências posteriores constam de um inventário publicado na Revista Universal Lusitana
(30/10/1854) de outro, com data desconhecida, da Imprensa Nacional e, ainda, de uma relação de
Gabriel Pereira, editada em 1903.
Os inventários, que nem sempre coincidem no número exacto dos painéis, - referindo uns
apenas seis tábuas e outros as oito que, de facto, o compõem -, atribuem a autoria quer a Grão Vasco,
como era vulgar ao tempo, quer a Cristóvão de Utreque, um dos mestres de Ferreirim, provável
companheiro de Cristóvão de Figueiredo, Gregório Lopes e Garcia Fernandes.
O conjunto retabular, hoje disperso por sete colecções particulares, só esteve exposto na sua
totalidade por duas vezes, uma na Exposição Os Primitivos Portugueses (1940) e outra na Exposição
Pintura dos Mestres do Sardoal e Abrantes (1971), embora tenha havido apresentações parciais
designadamente em Garcia Fernandes. Um pintor do renascimento. Eleitor da Misericórdia de Lisboa
(Lisboa, Museu de S. Roque, 1998) e O Negro na Arte (Lisboa, Mosteiro dos Jerónimos, 1999)
As tábuas existentes (todas medindo 1220 x 665) são: Encontro de Santa Ana e S. Joaquim na
Porta Dourada , Nascimento da Virgem, Apresentação da Virgem no templo, Casamento da Virgem,
Anunciação, Natividade, Adoração dos Reis Magos, Apresentação do Menino no templo.
Os temas dos oito painéis decorrem, principalmente, dos Evangelhos Apócrifos e da Lenda
Dourada e, em menor grau, dos Evangelhos Canónicos. Todavia, o modo de valorizar cada um dos
temas, quer pelo desenho, pelo ambiente quer, pela luminosidade, e também pela introdução de alguns
pormenores ditos de género, resultam muito claramente de uma perspectiva que já foi considerada
como decorrente do nominalismo, segundo o qual, e simplificando muitíssimo o conceito, cada coisa
vale por si. Foi o Prof. Camón Aznar quem, numa síntese publicada em 1971, chamou a atenção para
este aspecto. Salientava o ilustre professor que “ aquilo que antes (no pensamento escolástico) se
desvalorizava, (…) é agora acarinhado e
representado precisamente por causa dos seus
sinais próprios e únicos”. Vão predominar, nesta
época, “os temas concretos e palpáveis, as
características tácteis das coisas, um naturalismo
sem véus conceptuais”. É com este nominalismo,
acrescentava então Cámon Aznar, “que se inaugura
o realismo da arte moderna”.
O Encontro na Porta Dourada e o Nascimento
da Virgem, as duas primeiras pinturas na sequência
cronológica do nascimento de Maria, serão as mais
ricas de uma perspectiva de composição onde, na

Renascimento e Maneirismo - 109


primeira das tábuas, a cena principal, de inspiração em gravura dureriana, é completada pelos
apontamentos em fundo do aparecimento do anjo a S. Joaquim e a Santa Ana. O Nascimento da
Virgem recorre ao imaginário popular do tempo para as cenas de parto, com apontamentos de género,
não havendo fonte escrita que mencione explicitamente o acto. A gravura de Dürer que pode ter servido
de inspiração remota ao pintor é muito mais complexa quer na composição quer no ambiente, quer na
atitude muito agitada dos personagens que intervêm no acto. Todavia, do ponto de vista iconográfico,
há a curiosa novidade, na pintura portuguesa da época, do aparecimento de uma mulher negra,
pormenor a que nos referiremos noutro local.

A Apresentação da Virgem no templo é outra das cenas inspiradas


nos textos dos Evangelhos Apócrifos ( Evangelho do Pseudo Mateus) e
também em gravura, esta do alemão Israel van Meckenem. Trata-se de uma
pintura onde o mestre, tal como sucede na tábua já mencionada do
Nascimento da Virgem e também no Casamento da Virgem e Apresentação
do Menino no templo mostra uma preferência especial pelos interiores e pela
subordinação das figuras ao
enquadramento arquitectónico.
O Casamento da
Virgem é uma das três
pinturas que apresentam
elementos iconográficos do
maior interesse para a
identificação do conjunto. Segundo o texto apócrifo em
que se fundamenta, os pretendentes a Maria deviam
apresentar-se no templo com uma vara e aquele a quem
pertencesse o ramo que floriria seria o escolhido. Apesar de
contrariado, pela sua idade avançada e por já ter filhos, é a
José que cabe “receber Maria”. Na pintura, vê-se José
com a vara de ponta reverdecida e, atrás, outros
pretendentes e um grande conjunto de varas secas.
Se observarmos a pintura na zona atrás de José,
verificaremos que existe uma alusão às varas dos
pretendentes à excepção de um único, exactamente
aquele de quem vemos o busto, mais à direita.
É nesta figura que encontramos um outro elemento
fundamental para a identificação que propomos. Este
personagem exibe um emblema, designado mais correctamente por
estampa, representando um pelicano alimentando os filhos.
Este símbolo, que foi de D. João II (falecido em 1495),
pertenceu, depois, ao seu filho natural, D. Jorge de Lencastre (21
de Agosto de 1481 – 22 de Julho de 1550).

110- Renascimento e Maneirismo


Afastado da sucessão, por decisão papal e, seguramente, influência da rainha D. Leonor, D.
Jorge manteve sempre um estatuto especial, tendo sido investido, ainda em vida de seu pai e apenas
com onze anos, no mestrado da Ordem de Santiago, na administração da Ordem de Avis, no ducado
de Coimbra e recebendo vários títulos, entre os quais, o de senhor de Montemor.
Na sua juventude, D. Jorge de Lencastre foi educado pela tia avó, a infanta Santa Joana e,
depois da morte desta, ficou a cargo do primeiro conde de Abrantes, D. Lopo de Almeida, pai de D.
Jorge de Almeida, bispo de Coimbra desde 1481 até 1543 e primeiro inquisidor-mor do reino a partir de
1536.
As relações entre D. Jorge de Lencastre e o bispo D. Jorge de Almeida não podiam deixar de
ser muito próximas não apenas pelo facto de ambos terem sido educados pelo conde D. João, mas
também porque o primeiro, sendo Duque de Coimbra tinha, certamente, estreitos contactos com o bispo
D. Jorge. Curiosamente, na tábua Casamento da Virgem, vêem-se as armas do bispo inscritas numa
bandeira que sai do candelabro ao centro e o chapéu episcopal noutra do lado esquerdo.
Os elementos
heráldicos referidos – o
pelicano de D. Jorge de
Lencastre, as armas e o
chapéu episcopal D.
Jorge de Almeida –
representam
claramente a relação
entre ambos, o que permite determinar o aparecimento simultâneo desta simbologia. Este D. Jorge de
Almeida desenvolveu importante acção mecenática em Coimbra e fora da cidade, sabendo-se que
mandou reconstruir a igreja colegiada de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho, confiando
esse trabalho a algum construtor procedente do grande estaleiro da Batalha e elemento da oficina
coimbrã de Marcos Pires, mestre responsável pelo claustro de Santa Cruz de Coimbra e pela capela da
Universidade daquela cidade, falecido em 1522.
A clara identificação do Senhor D. Jorge,
representando-o como testemunha e participante no acto, e
também como encomendador, é confirmada na tábua
Anunciação onde, na orla do tapete onde ajoelha a Virgem,
estão inscritos, em dimensões muito reduzidas, entre outros,
os emblemas da Ordem de Santiago e da Ordem de Aviz, e as
armas antigas da vila de Montemor.

Renascimento e Maneirismo - 111


A Natividade e a Adoração dos Reis Magos não apresentam,
aparentemente, nenhum elemento que contribua para a identificação do doador
ou do local para onde o conjunto foi executado mas são indiciadores da
intervenção de Garcia Fernandes, quer nos panejamentos dos
anjos, quer na riqueza das ourivesarias, que fazem recordar
outras, semelhantes, da companhia Cristóvão de Figueiredo
com aquele mestre de Ferreirim no Retábulo de S. Bartolomeu,
da Sé de Lisboa.
A última pintura da série, a
Apresentação do Menino no
Templo, apresentando
elementos estilísticos próximos de
pintura do mesmo tema da série
do Paraíso, é a tábua da dedicação feita pelo encomendador. Em vez da
habitual inscrição retirada do texto bíblico pode ler-se: PIETATI
SACRUM N.N., o que, em tradução livre, significa, “ pela piedade,
consagrado em nosso nome”.
Os elementos que temos vindo a referir permitem-nos
defender a ideia de que o retábulo que foi do Duque de Palmela, terá sido mandado executar para
Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho pois só aqui se verificava a estreita conjugação de
poderes do senhor D. Jorge e do bispo D. Jorge de Almeida. De facto, enquanto o filho natural do rei D.
João II era não apenas mestre de Santiago e administrador da Ordem de Avis, era também como já
referimos, Duque de Coimbra e senhor de Montemor-o-Velho, cidade e vila integradas no episcopado
de Coimbra, à frente do qual estava D. Jorge de Almeida. Tanto o primeiro como o bispo foram
educados pelo conde de Abrantes e, com toda a probabilidade, o bispo e o senhor de Montemor-o-
Velho terão seguido as lições do humanista Cataldo Sículo, o gramático e humanista italiano que foi
convidado expressamente por D. João II para instruir o seu filho natural. A educação recebida por
ambos estará certamente na base da importante ação mecenática que desenvolveram nas diversas
regiões sob sua influência e onde começa a descobrir-se a introdução de um novo gosto.

112- Renascimento e Maneirismo


Às informações de carácter heráldico-iconográfico deveremos agora acrescentar uma outra,
documental, relativa à autoria. Vários autores têm atribuído estas pinturas ao pintor Garcia Fernandes.
De facto, a maioria das tábuas aponta para aquilo que tem sido considerado como a mão deste mestre,
sobretudo no que refere ao modo largo de tratar os panejamentos, aos cromatismos onde conjuga
tonalidades quentes com a frieza de alguns amarelos e verdes e, sobretudo, ao gosto pelas cenas de
interior, fazendo uso persistente das arquitecturas para localizar espacialmente os temas tratados e,
mais obviamente, como foi salientado por Joaquim Oliveira Caetano a riqueza do tratamento dos
objectos, da ourivesaria e da armaria. De facto, este último aspecto parece constituir um dos meios
possíveis para encontrar a “mão” de Fernandes que, mesmo em obras já claramente datáveis de
período em que o gosto renascentista se havia implantado, continua a persistir nas formas do gótico
final nas suas peças de ourivesaria.
Em 1533, Garcia Fernandes estava a trabalhar em Ferreirim numa obra entregue ao seu
companheiro Cristóvão de Figueiredo, na qual participaram Gregório Lopes e Cristóvão de Utreque. A
actividade de Garcia Fernandes entre a conclusão da pintura do coruchéu do Tribunal da Relação e o
ano de 1533 não está documentada. No entanto, por uma petição por ele dirigida ao rei D. João III
sabemos que trabalhou em diversas empreitadas, designadamente para Coimbra e Montemor.
Esta informação não pode deixar de ser cruzada com uma outra, constante de um depoimento de
1540, segundo o qual Garcia Fernandes, referindo-se ao pintor seu colega Cristóvão de Figueiredo,
atesta que “são compadres e amigos e companheiros em as obras que fazem e comem e bebem
ambos”. Não deverá esquecer-se, também, que Cristóvão de Figueiredo trabalhara na obra da Relação,
ao tempo de Francisco Henriques, e se encontrava em Coimbra, entre 1522 e 1533, a cumprir o
encargo das pinturas da Igreja do Mosteiro de Santa Cruz onde também é detectável a colaboração de
Garcia Fernandes.
A propósito destas tábuas do Retábulo da Vida da Virgem já foram indicadas, a traços gerais,
muitas das características do trabalho de Garcia Fernandes e poderemos adiantar que, neste mesmo
conjunto, alguns outros pormenores com valor para a identificação ali podem ser encontrados.
Refiramos, por exemplo, o modo da gestualidade, a utilização de pormenores de género, as
ourivesarias e, sobretudo, o gosto por espaços fechados e cenas preocupadamente circunscritas por
elementos arquitectónicos.
Todavia, para além dos modos identificáveis de Garcia Fernandes, outros há que julgamos mais
próprios de Cristóvão de Figueiredo. Salientamos, entre estes, o tratamento de alguns rostos onde a
intensa dramaticidade das expressões nos sugere a mão deste pintor, examinador de pintores e,
sobretudo, debuxador de retábulos, conforme ficou atestado no documento de encomenda das obras
de pintura para a igreja do Convento de Ferreirim, datado de 1533.
Sendo verdade, de acordo com a petição de 1540, que Garcia Fernandes trabalhou para
Montemor, será de admitir, também, que Cristóvão de Figueiredo, o seu amigo, compadre e
companheiro “nas obras que fazem” e com quem ele “comia e bebia” tenha participado, e talvez
debuxado, o Retábulo da Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho. Considerando que
Cristóvão de Figueiredo esteve em Coimbra entre 1522 e 1533 e que Garcia Fernandes, após a
conclusão da obra da Relação, terá ido juntar-se ao seu companheiro, poderemos sem dificuldade
admitir esta colaboração, datando o conjunto retabular de finais dos anos vinte, como propõe Joaquim

Renascimento e Maneirismo - 113


Oliveira Caetano, ou começos dos anos trinta, período em que ambos, e também Gregório Lopes,
tiveram actividade na região coimbrã.
Quanto à encomenda da obra, reiteramos a nossa opinião que, dada a conjunção de elementos
heráldicos em duas das tábuas, desde o pelicano às insígnias das ordens de Santiago e Avis, a obra foi
encomendada por D. Jorge de Lencastre que não deixou de aludir à autoridade eclesiástica da igreja e
colegiada, mandando inscrever no exuberante lampadário do painel Casamento da Virgem as armas
pessoais e o símbolo episcopal de D. Jorge de Almeida.
A figura que ostenta o emblema com o pelicano seria, então, o filho legitimado de D. João II,
embora o provável retrato não seja “tirado do natural” porque, ao tempo, o Senhor de Montemor já teria
quase cinquenta anos. Este “retrato” é, naturalmente, uma figuração icónica, de representação, tal
como surge em muita da nossa pintura da época, sobretudo na figuração de doadores.
Junto ao provável D. Jorge de Lencastre encontra-se um outro, mais jovem, que ostenta outro
emblema. Os heraldistas consultados não lhe conferem uma caracterização específica, mas admitem
que, sendo essa figura D. João de Lencastre, o filho primogénito do eventual doador e mais tarde
primeiro Duque de Aveiro, o referido emblema, que parece representar um guerreiro com escudo, terá a
ver com alguma empresa do mesmo.
Pelos motivos expostos, consideramos que o Retábulo é obra da companhia Garcia Fernandes –
Cristóvão de Figueiredo, por eles executado para a Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-
Velho, por encomenda de D. Jorge de Lencastre, ali representado como doador e acompanhado de seu
filho D. João, futuro Duque de Aveiro. Ficará, assim, afastada a remota e equivocamente fundamentada
proposta de atribuição do conjunto ao pintor Jorge Leal, parceiro eventual de Gregório Lopes, referido
em escassa documentação e acerca de quem não existem estudos laboratoriais, mesmo em primeira
aproximação. Partindo da leitura sequencial da iconografia, poderemos propor uma reconstituição
presumível do retábulo eventualmente montado numa máquina ainda ao gosto do gótico final, próximo,
portanto, do razoavelmente anterior que ainda hoje se vê no altar-mor da Sé Velha de Coimbra. O
Retábulo da Vida da Virgem da Igreja de Santa Maria da Alcáçova incluiria na fieira central, duas
imagens em vulto: ao cimo, uma representação do Calvário e ao centro uma imagem de Nossa Senhora
da Assunção, a quem a igreja era dedicada. Não seria de excluir a existência, em fieira inferior,
ladeando o Sacrário, uma predela com pinturas alusivas a santas mártires, à semelhança do que
ocorria com o retábulo da Igreja do Paraíso, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga.
Reconstituição (muito) conjectural

114- Renascimento e Maneirismo


A Igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho

Bibliografia específica
BATORÉO, Manuel, 1999; CAETANO, Joaquim Oliveira, 1997
PEREIRA, F. A Baptista, 1996
REIS SANTOS, 1957; PEREIRA, Gabriel,1903
RACZYNSKI, Atanas, 1846; Revista Universal Lisbonense, 1854
TABORDA, Cunha, 1815

10.7. O notável Retábulo Flamengo da Sé de Évora

Renascimento e Maneirismo - 115


Há muito quem desconheça que do espólio do Museu de Évora faz parte o importante e mui
valioso conjunto retabular do primitivo altar-mor da Catedral, encomendado em Bruges pelo Bispo de
Évora, D. Afonso de Portugal, cerca do ano de 1500. Obra notável da arte flamenga esta, que o prelado
eborense de então, homem de muitas posses e importantes ligações na Corte, adquiriu para enriquecer
e adornar, ao gosto da época, o símbolo maior da sua poderosa diocese.
Segundo o historiador de arte Joaquim Oliveira Caetano, antigo director do Museu, é hoje
sabido que o retábulo se integrou num vasto e profundo plano de melhoramentos do monumental
edifício, que em algumas das partes se deteriorara e ameaçava ruir. A autorização para essa
intervenção, que obrigava à remoção temporária de vários altares e a mexidas nas estruturas de outras
salas, foi concedida por uma bula do Papa Alexandre VI em 1495.
O bispo que governou a diocese entre 1485 e 1522 decidiu- se então pela construção de um
altar-mor que seria preenchido com um conjunto retabular de cuja execução incumbiu uma oficina de
Bruges, próxima do estilo do apreciado pintor flamengo Gerard David. Uma escolha tida como óbvia,
dado que a pintura flamenga era muito apreciada pelos portugueses, que a conheciam através das
relações comerciais com as principais cidades da Flandres, zona onde Portugal havia criado, quase um
século antes, uma feitoria de muita fama e proveito.
A obra produzida tem uma qualidade excepcional e impressiona pela dimensão invulgar das
suas pinturas, em óleo sobre madeira de carvalho, atribuindo-lhe ainda os especialistas grande
importância histórica por ter, ao que se julga, desbravado o caminho para a emergência de grandes
retábulos pintados que viriam a instalar-se numa caterva de catedrais e conventos do
período manuelino.

O retábulo do Museu de Évora é composto por 19 pinturas, divididas em duas séries: a primeira
compreende a Vida da Virgem e é constituída por 13 painéis, o maior dos quais com 269,5 cm por 157
cm; a segunda é composta pelos restantes 6, todos eles alusivos à Vida de Cristo. Ao centro da
primeira série está o maior, que representa a Virgem da Glória e é, curiosamente, o último da
sequência. É antecedido, por ordem, pelo Encontro na Porta Dourada, Nascimento da Virgem,
Apresentação da Virgem no Templo, Casamento da Virgem, Anunciação, Presépio, Adoração dos Reis

116- Renascimento e Maneirismo


Magos, Circuncisão, Apresentação do Menino no Templo, Fuga para o Egipto, Menino entre os
Doutores e Morte da Virgem.
Os da segunda série são mais pequenos e menos vistosos e referem-se, de modo
indiferenciado, a cenas da Paixão de Cristo, e servem de predela, isto é, formam a parte inferior do
retábulo. Entre 2003 e meados de 2009, período em que o Museu esteve encerrado para obras de
ampliação e requalificação, o retábulo foi submetido a um profundo trabalho de conservação e restauro,
a cargo do ICM (Instituto de Museus e Conservação). Simultaneamente realizou-se um projecto de
estudo e investigação, coordenado pelo Museu de Évora e participado pelo Metropolitan Museum of Art
(New York), New Gallery of Art (Washington, D.C.) e pelo Museu Nacional de Arte Antiga, em que as
pinturas foram restauradas, fotografadas e estudadas laboratorialmente.
Esta última instituição organizou, entre Fevereiro e Abril de 2008, a Exposição “Olhar de Perto:
Os Primitivos Flamengos do Museu de Évora”, que resultou num grande sucesso e foi considerada uma
das mais importantes mostras artísticas do ano. Quando regressou ao Museu de Évora foi reconstituído
na sua primitiva disposição e colocado na mesma orientação, na parede do fundo a nordeste. Por outro
lado, o pavimento foi rebaixado para favorecer a visualização de diversos ângulos e níveis de altura.
Realizou-se, no dia 18 de Fevereiro, em Lisboa, e nos dois dias seguintes, em Évora, um
Congresso Internacional subordinado ao tema “O Retábulo de Évora e a Pintura Flamenga do Sul”, com
o qual se pretendeu, segundo a organização, «juntar ao conhecimento adquirido um novo enfoque,
baseado no confronto de pinturas de Évora com a produção da Escola de Flandres e com o gosto dos
países da Europa do Sul pela pintura da época». Ao turista e ao residente se recomenda pois que entre
no Museu de Évora e, mais que não seja, tome contacto visual com esta obra fundamental no âmbito
das colecções nacionais de pintura flamenga.

Texto: José Frota

10.8. Retrato da Infanta D. Isabel – Van Eyck

Renascimento e Maneirismo - 117


INFANTA D. ISABEL
SIBILA DE
CUMAS
À esquerda: Desenho à pena e tinta-da-
china sobre papel (séc. XVII), cópia de retrato da
infanta D. Isabel realizado em Portugal, entre
Janeiro e Fevereiro de 1429, por Jan van Eyck, em
missão por conta do duque de Borgonha (Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, Lisboa). À direita:
Pormenor do retábulo do Cordeiro Místico (Jan e
Hubert van Eyck, 1432), mostrando uma
representação da Sibila de Cumas (Catedral de
Saint Bavon, Gand).

O desenho do séc. XVII é a única cópia


conhecida de um retrato, por Jan van Eyck, da
infanta D. Isabel, filha de D. João I, pintado por
encomenda do duque Filipe o Bom, seu futuro
marido. O retrato foi pintado em duplicado,
conforme a relação da embaixada borgonhesa a
Portugal refere, mas nenhuma das duas versões
sobreviveu até aos nossos dias. Tanto a
representação de uma moldura ornamental (onde
figuram elementos decorativos alusivos à Ordem

118- Renascimento e Maneirismo


do Tosão de Ouro, fundada apenas em Janeiro de
1430, por ocasião da chegada de Isabel ao
ducado), como a inscrição exterior em torno da
mesma, são posteriores ao quadro de 1429. Em
contrapartida, a inscrição interior «LINFANTE
DAME ISABIEL» que parece cinzelada na pedra,
num estilo de trompe-l'oeil frequente na pintura
eyckiana, pertence provavelmente à pintura
original. A inscrição exterior identifica o retrato
copiado com precisão: «Cest la pourtraiture qui fu
envoiié a phe duc de bourgoingne & de brabant de
dame ysabel fille de roy Jehan de portugal & dal-
garbe seigneur de septe par luy conquise qui fu
depuis feme & espeuse du desus dit duc phe».
Uma orla decorativa adicional, exterior a esta
inscrição, que repete os motivos do Tosão de Ouro
e os monogramas «PY» da cercadura contígua
interior, não é mostrada na figura acima.
Por sua vez, a representação da Sibila de
Cumas no retábulo de Gand tem sido referida
como provavelmente inspirada na duquesa Isabel,
a partir do estilo das suas vestes e sobretudo da
touca constelada de pérolas que reúne os seus
cabelos (o «adereço todo redondo à maneira de
Portugal» segundo a expressão do cronista
borgonhês Olivier de la Marche), similar à do
quadro de 1429. O ano de conclusão inscrito no
famoso retábulo é 1432, correspondendo portanto
ao terceiro ano posterior à chegada da nova
duquesa de Borgonha.

Renascimento e Maneirismo - 119

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