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Paulina Chiziane:

as diversas possibilidades
de falar sobre o feminino
Rosália Estelita Gregório Diogo

PAULINA CHIZIANE nasceu em escritora Paulina Chiziane insere-se


1944, em Manjacaze, província de no rol de escritores contemporâneos
Gaza, sul de Moçambique. Escreveu africanos que prvilegiam as narrativas
alguns contos e estreou no romance de tradição oral, trazem-nos algumas
com a obra Balada de amor ao vento, possibilidades de reflexão e, talvez,
publicado pela União dos Escritores respondam a algumas lacunas sobre
Moçambicanos em 1990 e pela a tradição africana, quando, por
Editora Caminho em 2003. Publicou vezes, muitas histórias apresentam-
ainda outros romances: Ventos do se-nos sem sentido. Podemos, pois,
Apocalipse, publicado pela autora em compreender a escrita de Chiziane
1993 e pela Editora Caminho em 1999; como uma reconfiguração da
O Sétimo Juramento, publicado memória social de Moçambique,
pela Editora Caminho em 2000; auxiliando-nos compreender melhor
Niketche: uma história de poligamia, a constituiçao identitária daquele país.
publicado pela Editora Caminho em
2002, pela Editora Companhia das RD: Por que você escreveu
Letras em 2004 e pela Editora Ndjra Niketche?
em 2009; e recentemente, no ano de PC: Você quer saber a verdade
2008, O alegre canto da perdiz e mesmo? Eu sou do sul, mas fui criada
As Andorinhas (Contos), publicados aqui em Maputo. A região de Gaza é
pela Editora Caminho. Paulina de um machismo terrível. Nasci em
Chiziane foi a primeira mulher um ambiente da religião cristã. Meus
moçambicana a publicar um romance. pais são presbiterianos. Eu fui para a
Dessa forma, a escritora desafiou e escola católica e tive a formação de
desafia críticas e resistências sociais uma identidade feminina bem rígida,
e culturais no seu país, no continente patriarcal, etc. Sempre ouvi falar
africano e, porque não, no mundo. A da cultura matriarcal, mas era algo

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bem longe da minha


realidade. Quando Fui sucesso por acaso.
Alguns escritores
chego na Zambézia, representada consideraram que eu
que é uma província
no Norte do país, a como a estava escrevendo
sobre o feminino
trabalho, encontro escritora que porque era moda. Mas
uma sociedade
rompe com eu segui com muita

os tabus
matriarcal em que força e determinação.
os comportamentos Muitas pessoas
masculino e feminino consideram que como
são completamente diferentes do que eu escrevo para as mulheres, eu sou
eu vivia e observava no Sul. Primeiro femininista, mas eu não vejo a questão
foi um choque, depois me diverti com dessa forma. O fato é que sou uma
isso. E daí escrevi o livro, inspirada mulher e escrevo sobre temas que me
nas mulheres da Zambézia e pensando tocam nessa minha condição. O que
“aquelas mulheres são loucas”. Ainda me incomoda é que, quando é o homem
agora parece que estou a ver aquelas escrevendo, as pessoas não o chamam
mulheres sentadas em volta de uma de machista e nós, mulheres, quando
mesa, comendo, bebendo cerveja escrevemos, somos chamadas de
e conversando naturalmente, sem feministas. É verdade que eu escrevo
perceber que eu estava fazendo a muito forte sobre o feminino, sobre as
minha pesquisa. E eu ouvi coisas que questões que interessam de perto às
nunca imaginei ouvir na vida. mulheres. O fato é que a tendência da
socidade é qualificar pejorativamente
RD: Qual é a sua leitura sobre as esses escritos, estigmatizá-los como
manifestações literárias ou escritas feministas e eu não gostaria que as
em Moçambique hoje? coisas acontecessem dessa forma.
PC: Eu quero dizer que não fui muito Não quero ser chamada de feminista.
bem recebida no meio literário quando Essa é outra guerra, pois prefiro que
comecei a escrever. Fui representada os meus livros falem por si e que não
como a escritora que rompe com os seja eu o alvo da mensagem. Agora,
tabus, mas sempre tive vontade de tem poucas mulheres escrevendo em
escrever aquilo que é novo. As pessoas Moçambique na atualidade. O número
ficaram chocadas, pois não esperavam cresce gradualmente. O processo da
que uma mulher entrasse em grandes escrita é muito longo. Amadurecer
temas e eu ia cada vez mais fundo. não acontece de um dia para o outro.
Houve pessoas que pensaram que tive Vejo algumas iniciativas de mulheres

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jovens no conto, na poesia, mas


consolidadas mesmo são poucas. Tentei
Posso citar nomes como o de Lilia mostrar que
Momplé, que deve estar em uma fase
mais cansada da sua vida. Temos o o feminino
caso da Lina Magaia, que escreveu e também
agora está em uma fase de repouso e
sei de muitas boas mulheres que estão
tem vez
a começar e estão em uma fase de confessar uma coisa em relação a esse
experimentação da escrita. livro: tenho comigo algo que chamo
de livro do autor. Escrevi o livro de
RD: Como você vê homens e uma forma bem pessoal, escrevi a
mulheres escrevendo sobre as minha versão. Um dia o editor ligou-
questões do feminino? Você disse, me cobrando o trabalho e eu expliquei
mais de uma vez, que não gosta de que faltava lapidá-lo de modo a ser
ser rotulada como feminista, mas apresentado ao leitor, ou seja, uma
que a escrita feita por homens versão final e ele disse que eu poderia
é diferente da escrita feita por enviar assim mesmo, pois ele também
mulheres. não teria tempo para viabilizar a
PC: Não sei se posso responder. Por publicação. Dias depois ele me envia
exemplo: as respostas que tentei um email dizendo que aquela versão
dar em Niketche: uma história estava ótima e que iria ser publicada
de poligamia, que foi colocar as assim mesmo. Eu pensei: e agora!
mulheres para falarem sobre sexo, E aquelas expressões que eu acho
foi uma maneira de dizer que existem que precisam ser melhoradas? Ele
outras possibilidades de falar sobre o respondeu que o livro iria ficar bom
feminino que são diferentes daquelas exatamente por casusa dessa forma de
formas padronizadas. O homem, escrita, de uma certa “informalidade”
quando fala do sexo relacionado à com a qual ele fora criado. E o livro
uma mulher, fala normalmente do que saiu. No princípio fiquei até escondida,
ele consumiu, portanto, sua fala é uma pensando sobre o que o mundo iria
expressão do prazer de ter devorado pensar de mim. Mas o livro foi bem
alguma coisa. Já do lado da mulher, aceito, esgotou rapidinho. Penso que
o sentimento é algo que salta. Tentei foi exatamente porque ninguém tinha
fazer uma espécie de provocação falado antes, por aqui, das questões
mostrando que o feminino também do feminino de maneira tão direta.
tem vez, não sei se fui feliz, mas, vou Mas, enfim, a responsabilidade sobre
a profundidade do feminino deve
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também ser atribuída à minha editora, que toda mulher luta por uma vida
porque eu teria lapidado um pouco nova, tem esperança. As mulheres são
mais a escrita antes da publicação. inquietas nesse sentido, mesmo com
todos os problemas que enfrentamos.
RD: Paulina, sigo o pensamento Esse, para mim, foi o maior ganho
dos teóricos que apontam que a trazido pela independência, por
literatura não é mero deleite e grupos como a Organização das
que o escritor faz uma imersão Mulheres Moçambicanas - OMM -
no cotidiano em que vive ou a e o Fórum Mulher. E tantos outros.
observação da situação social dos Mas reafirmo que o novo horizonte
sujeitos para encenar literariamente me deixa esperançosa. Eu viajo muito
os temas abordados em suas obras. pelo campo e vejo que todo sonho de
Acho que esse é o caso também da uma mulher mãe, por mais pobre que
sua produção literária. O que você ela seja, é ver a sua filha na escola,
pensa disso? O escritor como crítico em busca de desenvolvimento. Prefiro
social: como vivem as mulheres mais falar do que se ganhou, embora
moçambicanas? tenhamos tantos problemas como
PC: Quando se deu a independência violência, aids e outros.
eu tinha 18 anos. Significa que eu vivi
o período colonial, um pouco da visão RD: Qual é a sua opinião sobre
das mulheres moçambicanas daquela lobolo e poligamia, tradição e
época. Eu fui do tempo, e tenho modernidade. Alguns dizem que o
prazer de informar, das mulheres que romance Nikecthe: uma história
faziam bordados, ficavam sentadas na de poligamia é um pretexto para
varanda, em que as mulheres faziam você levantar a discussão na
o enxoval, esperando um príncipe, modernidade em Moçambique. O
faziam croché, trico. Portanto, era essa que tem a dizer sobre esses temas?
a realidade do período em que se deu PC: Eu fui a escritora que mais
a independência. Eu tenho hoje uma escrevi sobre os temas lobolo e
filha moça e observo em volta que poligamia. Em todos os livros que
toda mulher deseja ser alguma coisa eu publiquei trato desses temas, de
na vida, ainda que casando-se e tendo uma forma ou de outra. Eu acho que
filhos, mas sonha em ser professora, todos os moçambicanos deveriam
campeã olímpíca, empresária. discutir seriamente sobre o tema
Portanto, houve uma viragem poligamia e eu, pessoalmente, não
considerável em 30 anos. Mas o mais concordo com ela. Não concordo
importante dessas transformações é mesmo. Mas, por outro lado, nós

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temos a seguinte situação: a região Já na relação monogâmica, os filhos


sul do país é patriarcal e a favor da das outras mulheres que não são
poligamia. Dai veio a religião cristã consideradas legítimas podem ser
e instalou a monogamia. E na região marginalizados. Eu, pessoalmente,
norte, que era matriarcal e, portanto, penso que poligamia, nem pensar,
sem espaço para a poligamia, vieram mas sou apologista da legalização
os mulçumanos se instalarem por lá e da plogamia, pois, se ela for bem
implementaram a poligamia. Então, legislada, as coisas tendem a ficar
é uma verdadeira confusão. Por lá bem. Os homens fogem das leis e vão
instalou-se uma religião que não preferir fugir das leis da poligamia e
tem nada a ver com os costumes do serem monogâmicos. Os homens têm
povo. E vivemos nessa complicação. uma mulher hoje, outra amanhã, e vão
Agora, o que posso dizer da poligamia usando e abusando. As pessoas que
é que ela é benéfica para as crianças, vivem na cidade é que acreditam na
porque os homens não param de ter monogamia. A maioria das mulheres
mulheres, mesmo que as leis sejam que vive no sistema tradicional
contra a poligamia. Os filhos, em poligâmico não tem proteção legal,
uma situação poligâmica, têm uma o que não é correto. Portanto,
identidade, e na situação monogâmica devemos encarar a poligamia como
não. Dessa forma, as crianças, uma realidade sobre a qual é preciso
independente de serem filhos de uma legislar, pois, no sistema poligâmico,
ou de outra mulher, são reconhecidos o homem tem uma mulher, e quando
como filhos legítimos de uma família. resolve ter a segunda, deverá

O maior
inicialmente resolver a situação com
a primeira: dividir os bens, incluindo

ganho da a casa; deixar a parte dela resolvida


e ir construir a nova vida sem que a

independência mulher fique desprotegida. Mas o que


acontece, de fato, é que, com a ausência
foi a de legislação, o homem vive com uma
mulher um tempo e, quando bem
organização de entende, manda-a ir-se embora. No dia

grupos como
seguinte vai buscar outra ou fica com
umas três ao mesmo tempo. Portanto,

o OMM e o há de haver um instrumento legal para


proteger essas mulheres que vivem

Fórum Mulher nessa situação, pois são a maioria.

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Como você teve oportunidade de ver, agora a essa outra família também.
as nossas cidades são bem pequenas Portanto, para mim, o lobolo é uma
e a zona rural é imensa. Dessa forma, cerimônia religiosa. O lobolo precisa
toda essa imensidão de mulheres está ser estudado e analisado, porque o
sem proteção legal. Portanto, é mais casamento legal é a união entre duas
ou menos dessa forma que eu levanto famílias que estão vivas, mas o lobolo
o tema da poligamia – é um sistema é a união dos espíritos de ambas as
que tem coisas boas e coisas más. famílias. É uma união física, uma
Mulher em uma situação de poligamia união de futuro. Para mim, os estudos
sofre, mas as crianças ganham uma que têm sido feitos sobre o lobolo
identidade. Portanto, não sou eu que são limitados por olharem somente
vou responder se é bom ou ruim. para a dimensão terrena e não para a
dimensão espiritual das relações que
RD: E sobre o lobolo, qual a sua ele estabelece. Eu não estou satisfeita
opinião? com os estudos que estão sendo feitos
PC: O lobolo foi adulterado, foi porque fala-se do preço da noiva.
andando, ganhou novas formas, mas Por exemplo: lobola-se a mulher
o lobolo é uma cerimônia tradicional para ser esposa, lobola-se o filho.
como tantas outras. Portanto, por ser Portanto, um homem vai trabalhar
tão importante, tentou-se lutar contra em uma determinada região e faz um
o lobolo até hoje, mas ele resistiu. É filho com uma determinada mulher e
muito difícil explicar, mas o lobolo é não casa com ela. Para perfilhar essa
muito mais que o preço da noiva. É criança, faz-se o lobolo. O meu irmão

O lobolo
uma união espiritual já lobolou seu filho
entre duas famílias. porque teve a criança
Uma família
buscar uma mulher,
vai
precisa ser em um período em
que era militar e teve
daí as famílias se
juntam e os espíritos
estudado, que fazer o lobolo
de um filho homem.
se juntam também.
Existe uma espécie
pois é Conheci casos em
Moçambique, caso de
de benção espiritual uma união uma pessoa importante

espiritual
no lobolo. Vai-se a politicamente que teve
uma família com o que lobolar a prórpia
dinheiro e diz-se: a
partir de hoje a filha entre as esposa para fazer o
funeral. Ou seja, eles
dessa família pertence
famílias casaram sem o lobolo e

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Devemos continuar com ela, teve que fazer


também o lobolo dos espíritos que

encarar a a cercavam. Estamos falando de


algo bem complexo e os primeiros
poligamia antropólogos que analisaram o lobolo
não foram profundos o suficiente para
como uma compreendê-lo. Esse tema deve ser

realidade
visto com sabedoria. Quando chegou
a hora da minha filha se casar eu

sobre a qual disse que era melhor o marido fazer o


lobolo, porque não se sabe do futuro.

é preciso Nas famílias alargadas, por exemplo,


quando acontece alguma infelicidade,
legislar é preferível aceitar o lobolo, para
tentar resolver eventuais problemas
quando ela morreu a família exigiu o mais à frente.
lobolo porque ela não era reconhecida
pelos antepassados. Então, com o RD: Estou em Moçambique pelo fato
cadáver daquela senhora, teve que se de fazer uma análise comparada da
fazer-se o lobolo, por meio da troca de sua literatura com a obra de Conceição
prendas, de pequenas outras coisas, Evaristo. Sei que ela já esteve aqui o
mas fez-se, não em clima de festa, mas ano passado. O que acha da escritora
tratando-se de uma cerimônia. Existe afrobrasileira?
outra forma de lobolo, que acontece, PC: O que tenho a dizer é que eu não
por exemplo, quando a mulher e tenho palavras para explicar o que vou
um homem não têm filhos e querem dizer: peguei o livro Ponciá Vicêncio
perfilhar uma criança. Nesse caso, para ler e começo a identificar-me com
devem fazer o lobolo dela. O lobolo ele. Li também poemas da recordação
tem, portanto, várias versões. Agora, e outros movimentos e agradei-me
se formos falar da relação marido e muito. A sonoridade me chamou atenção
mulher, a minha opinião é a mais firme, também. Conceição escreve, na obra,
mas o lobolo é algo muito profundo assuntos completamente diferentes dos
para se tratar. Conheci uma situação meus, mas quando fecho os olhos, me
de lobolo de espíritos também. Um vejo no Brasil e penso que poderia ter
casal havia se casado há muito tempo, sido eu a escrever o romance. A obra me
com lobolo, mas a mulher enveredou- fez sentir muito próximo dela. É como se
se pelo espiritismo e o homem, para meu espírito estivesse naquela história.

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Recebi essa obra diretamente das passagens lapidares que ilustram a


mãos dela e, fisicamente, não pareço existência do racismo na sociedade
com ela, mas tem algo. Quando se olha moçambicana. O primeiro
para ela e para mim, fica a sensação de momento é quando a personagem
pessoas que viveram no mesmo lugar, Lu abandona a relação com Tony,
ou são irmãs. Eu realmente não tenho passa a conviver com um homem
palavras para explicar. Quando ela branco e diz ao ex-amante que
esteve cá estivemos juntas por alguns os filhos agora podem passear de
lugares de Maputo e eu gostaria de tê- carro pelas ruas com um padrasto
la levado em muito mais lugares dos “branco”. O segundo momento é
que pude levar porque o programa quando os parentes de Tony estão
dela estava muito apertado. Mas a discutindo e dizem que os homens
Conceição Evaristo passa por uma brancos os invejam, por que
pessoa moçambicana, e se eu disser são machos, por que são negros
que ela é minha irmã mais velha ou africanos e, como tal, são viris por
mais nova, com certeza as pessoas natureza. O que tem a dizer?
acreditarão. PC: Não sei bem o que podemos dizer
hoje sobre racismo em Moçambique.
RD: Chiziane, Conceição é uma O Alegre canto da perdiz é um pouco
ativista da temática racial no mais ousado ao abordar o assunto.
Brasil. O nosso país segrega e No fundo, nós fizemos uma luta pela
discrimina, de maneira gritante, independência. Nesse momento ficou
os afrobrasileiros. A obra de claro que os nossos inimigos eram os
Conceição é fortemente marcada portugueses. Mas as questões sobre
pela denúncia das situações de raça, no sistema colonial, eram muito
racismo e de opressão à mulher claras. Fizemos a independência há
negra. As leituras sobre o racismo mais de trinta anos e, desde então, não
em Moçambique são tímidas. Você voltamos a discutir, a fazer o debate
acha que há racismo aqui? sobre revolução. Paramos de fazer
PC: Há racismo sim. Eu não discuto o debate sobre unidade nacional e
muito em Niketche: uma história de outros temas. E eu, como sempre, não
poligamia, mas, na obra O alegre consigo fechar a porta para os debates
canto da perdiz essa leitura é possível que não são tão populares assim. O
com mais amplitude. fato é que os portugueses que aqui
ficaram no período pós-independência
RD: Em Niketche: uma história mantiveram os seus privilégios e os
de poligamia eu vejo duas seus descendentes também, por conta

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da sua mestiçagem. São filhos de relação da obra da autora brasileira


pai branco e, daí, o conceito, dentro com a sua.
da sociedade moçambicana, é mais PC: A questão do racismo que vocês
elevado. Por exemplo: se tu fores às vivem no Brasil é bem diferente da
províncias do norte, como a Zambézia nossa, mas quero dizer que Conceição
ou Nampula, os empregados dos Evaristo tem algumas coisas em
bancos são mestiços; nos aviões, as comum comigo, quero dizer da
funcionárias também são. Raramente, sua luta. De maneira bem ousada,
nesses postos de trabalho, se enfrentando situações de opressão.
encontram pessoas negras, com a Eu, por aqui, enfrento essas situações
pele escura como a minha ou a sua. de maneira diferente, mas enfrento.
Em grandes empreendimentos, hoje, a Por exemplo, o tabu, os espaços das
primeira presença que encontramos é mulheres, etc. Embora eu não goste
a de mestiços, mas esse assunto não que me chamem de feminista, eu faço
se discute por aqui. A desculpa é que a minha luta a partir da condição do
a Constituição diz que não pode haver feminino, da condição de ser negra
discriminação pela raça e outras. e mulher. Tem algo que insisto em
Só que nos basearmos no que está dizer depois de tanto trabalho – o
escrito nela, sem haver que haja um fato de se mulher r negra assume
mecanismo de debate público, não um estatuto diferenciado nessa
basta. Não estamos em igualdade sociedade. Se eu fosse homem, e
racial de forma alguma. Aqui no sul branco, meu estatuto seria muito
não se diz nada, mas na Zambézia, alto. Os problemas que eu enfrentei,
que está no centro, e no norte do país, para me afirmar como escritora, as
é muito flagrante o
estatuto do mulato,
que é superior. É o
Os portugueses
que posso dizer nesse
momento sobre a
que aqui ficaram
questão do racismo mantiveram seus
por agora.
privilégios, e seus
RD: Paulina, o que
mais você gostaria
descendentes
de falar ainda sobre
a obra de Conceição
também, por conta
Evaristo, ou sobre a da sua mestiçagem
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mulheres mulatas não enfrentaram, os


homens brancos muito menos. Daí, eu
venho de um histórico de muita luta.
O pouco que eu tenho, em termos
de reconhecimento, embora seja
resultado de muito trabalho, é pouco.
Sou mais reconhecida fora do meu
país do que aqui dentro. Penso que o
que mais me unifica com a Conceição
Evaristo é isso: ela também vem de
uma condição social muito pobre,
ela é negra e tem que enfrentar várias
barreiras. Portanto, o que vejo muito
forte entre mim e nela é a vontade
de transformar as coisas, de ver um
mundo novo. Talvez seja por isso que
eu me vejo tão próxima dela e das
suas escritas. As palavras que usamos
são palavras mais ou menos comuns.
Penso que seja esse um forte aspecto.
Eu vou trabalhando, lutando, tentando
dar voz aos que não a têm, assim
como faz Conceição Evaristo. Tento
desenterrar alguns pontos obscuros,
aquelas realidades obscurecidas pela
sociedade.

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