Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Rute Saraiva
Ano lectivo 2009/2010
1
Nota Explicativa
2
Índice
I. Preliminares
1. Objecto e fim de Introdução ao Estudo do Direito
2. Plano de curso
3
3. Realidades afins e conexas com o Direito
a. Usos
b. Religião
c. Moral
4. Ordem jurídica como ordem normativa
a. Conhecimento do Direito pelo cidadão e pelo julgador
b. Complexidade, unidade e sistematicidade
c. Imperatividade
d. Sanções
i. Sanções jurídicas
ii. Sanções compulsórias
iii. Sanções reconstitutivas
iv. Sanções compensatórias
v. Sanções punitivas
vi. Sanções preventivas
e. Coercibilidade
i. Noção
ii. Tutela preventiva e tutela repressiva
iii. Meios de tutela jurídica. Pública, privada e arbitral.
iv. Tutela pública
iva. Noção e tipos de polícia
ivb. Órgãos judiciais
v. Formas de tutela privada
va. Acção directa
vb. Legítima defesa
vc. Direito de resistência
vd. Estado de necessidade
ve. Direito de retenção
f. Exterioridade
5. Situação jurídica
i. O facto, o acto e negócio jurídicos
ii. Valores negativos
6. Regra jurídica
a. Caracterização
4
i. Estrutura
ii. Hipoteticidade
iii. Generalidade
iv. Abstracção
v. Bilateralidade
vi. Imperativo
b. Classificação das regras jurídicas
i. Relação entre normas
ia. Regras principais e derivadas
ib. Regras interpretativas e inovadoras
ic. Regras autónomas e não autónomas
id. Regras primárias e secundárias
ii. Relação com o destinatário da norma
iia. Regras proibitivas, preceptivas e permissivas
iib. Regras injuntivas
iic. Regras dispositivas. Permissivas, interpretativas e supletivas
iii. Âmbito de aplicação material
iiia. Regras gerais, especiais e excepcionais
iiib. Regras comuns e particulares
iiic. Regras universais, nacionais, gerais, regionais e locais
iv. Aplicabilidade das regras
iva. Regras programáticas e preceptivas
v. Relações entre os vários tipos de regras.
7. Ramos de Direito
a. A árvore do Direito
b. Direito supraestadual
i. Direito internacional público
ia. Distinção de Direito internacional privado
ii. Direito comunitário
c. Direito interno
i. Direito público e Direito privado. Distinção
ii. Direito público
iia. Direito constitucional
iib. Direito administrativo
5
iic. Direito penal
iid. Direito processual civil
iie. Direito processual penal
iii. Direito privado
iiia. Direito civil: obrigações, reais, família e sucessões
iiib. Direito privado especial: Direito comercial e Direito do
trabalho
iv. Outros
8. Conhecimento científico do Direito
9. Profissões jurídicas
1. Noção de Fonte
2. Equidade
3. Fontes de Direito internacional
a. Ius cogens
b. Costume
c. Princípios gerais de Direito
d. Convenções
e. Actos unilaterais
f. Soft Law
g. Jurisprudência
h. Doutrina
4. Fontes de Direito Comunitário
a. Direito primário
b. Direito derivado
i. Regulamentos
ii. Directivas
iii. Decisões
iv. Soft Law
c. Princípios gerais de Direito
d. Costume
6
e. Jurisprudência
f. Doutrina
5. Fontes internas
a. Princípios gerais de Direito
b. Lei
c. Costume
i. Noção e características
ii. Costume e Usos
iii. Relação entre lei e costume
d. Actos normativos de particulares
e. Jurisprudência
f. Doutrina
6. A lei, em especial
a. Polissemia
b. Tipos
i. Lei material e lei formal
ii. Lei constitucional e lei ordinária
iii. Leis solenes e leis comuns
iv. Leis de valor reforçado
c. Processo de formação
i. Elaboração
ii. Publicação
iii. Vigência
iv. Cessação da vigência
d. Desvalores do acto legislativo
e. Codificação
i. Noção de Código
ii. Conveniência
iii. Códigos
7. Hierarquia das Fontes
a. Direito internacional e Direito interno
b. Direito comunitário e Direito interno
c. No Direito interno
i. Entre fontes de origem interna
7
ii. Entre os vários tipos de actos legislativos
1. Introdução
2. Interpretação
a. Considerações introdutórias
b. Elementos e instrumentos interpretativos
i. Elemento literal
ii. Elemento sistemático
iii. Elemento histórico
iv. Elemento teleológico ou racional
c. Tipos de interpretação
i. Interpretação declarativa
ii. Interpretação extensiva
iii. Interpretação restritiva
iv. Interpretação correctiva
v. Interpretação ab-rogante
vi. Interpretação enunciativa
3. Integração de lacunas
a. Integração e interpretação
b. Lacuna. Noção e determinação
c. Dever de integração
d. Integração intra-sistemática
i. Costume
ii. Analogia
iia. Analogia legis
iib. Analogia iuris
iic. Limites ao recurso à analogia
iii. A norma que o intérprete criaria
e. Integração extra-sistemática
i. Regulação a posteriori
ii. Discricionariedade
8
iii. Equidade
4. Aplicação no tempo
a. Considerações introdutórias
b. Direito transitório
c. Regra geral de aplicação no tempo. A não retroactividade.
i. Fundamento jurídico da não retroactividade
ii. O artigo 12.º CC
d. Critérios especiais
i. Alguns ramos de Direito
ii. Prazos
iii. Lei interpretativa
e. Método de resolução
5. Aplicação no espaço
a. Territorialidade. A pretensa aplicação
b. O Direito internacional privado
i. Regulamentação material
ii. Regulamentação formal
c. Direito penal, em especial
d. Direito supra-estadual
e. Direito infra-estadual
V. Fins do Direito
1. Considerações introdutórias
2. Ordem Social
3. Justiça
a. Polissemia e complexidade
b. Justiça e Segurança
c. A problemática do Direito injusto. Direito Natural e Direito Positivo.
4. Bem Comum
9
QUADROS RECAPITULATIVOS
CASOS PRÁTICOS
BIBLIOGRAFIA EM PORTUGUÊS
10
Abreviaturas
CC – Código Civil
CNU – Carta das Nações Unidas
CP – Código Penal
CPA – Código de Procedimento Administrativo
CRP – Constituição da República Portuguesa
CSC – Código das Sociedades Comerciais
ETIJ – Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça
TCE – Tratado das Comunidades Europeias
TJCE – Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
11
I. Preliminares
1. Objecto e fim de Introdução ao Estudo do Direito
Que matérias então escolher? Na nossa opinião, a escolha deve recair nos aspectos
práticos e teóricos fundamentais que permitam, no seu conjunto, uma compreensão
genérica do funcionamento do universo jurídico e que possibilitem a formação
gradual de um raciocínio jurídico crítico, esperando que tais ensinamentos sejam
frutuosos tanto em termos pessoais como em termos profissionais.
12
2. Plano de curso
I. Preliminares
II. Conceito de Direito
III. Fontes de Direito
IV. Aplicação das regras
V. Fins do Direito
13
II. Conceito de Direito
1. Ideia geral de Direito. Considerações introdutórias.
a. O quotidiano e o Direito
b. Polissemia
14
A primeira frase refere-se ao Direito objectivo, a segunda ao direito
subjectivo e a terceira a uma ciência que estuda as duas primeiras acepções de
direito. A quarta acepção refere-se a uma disciplina académica e a quinta à própria
escola onde se estuda Direito.
1
Assumimos aqui a nossa adesão à teoria jusnaturalista que reconhece a existência de um Direito
natural, por oposição a uma corrente juspositivista que apenas reconhece a existência do Direito
positivo e em posições mais extremistas a Lei. Refira-se, contudo, que mesmo entre os jusnaturalistas o
entendimento sobre o Direito natural e a sua relação com o Direito positivo varia. Assim, por exemplo,
para Galvão Telles, o Direito natural é imutável e traduz o que de imutável há no ser humano, ou seja,
o que faz de nós Homens. Contudo, em caso de conflito com o Direito positivo, à semelhança de
Sócrates, o Professor defende o acatamento deste em nome da segurança jurídica. Para Oliveira
Ascensão, o Direito natural não é imutável, varia assim como o Homem varia, embora reconheça que
existe um núcleo permanente de princípios. Por outro lado, este Direito natural, que traduz como deve
ser o dever ser, é também ele Direito positivo pois há apenas um único Direito. Maria Luísa Duarte, por
seu lado, defende que o Direito natural não é um Direito imutável nem dependente de revelação, mas
historicamente universal e inerente à dignidade da pessoa humana e à convivência social. Em caso de
inapelável conflito com o Direito positivo pode o Direito natural, na posição da Professora, legitimar a
rebelião anti-Direito. Resumindo, independentemente da sua posição sobre o âmbito e conteúdo do
Direito natural, todos estes autores reconhecem que Direito não se traduz apenas em factos e normas
mas necessita de valores.
15
A noção corrente de Direito é que este se identifica com a lei (ideia, aliás,
errada e que rebateremos mais à frente), o que significa, em última análise, que é
palpável2, resulta do trabalho e da autoridade dos órgãos e instituições competentes
para o criar. Este Direito dito positivo tem tendencialmente uma existência
material/física efectiva, podendo, via de regra, ser consultado, por exemplo, em
códigos ou em diplomas avulsos. Contudo, enquanto obra humana é bastante
mutável no tempo e no espaço. O Direito de hoje não é igual ao do século passado e
o português difere do inglês.
16
Por fim, refira-se ainda que os direitos subjectivos dependem do Direito
objectivo pois é este que os cria, modifica, condiciona ou extingue quando os
enquadra em regras. Por exemplo, é na Constituição que está previsto o direito à
liberdade mas também aí se prevê limites como a pena de prisão (artigo 27.º CRP).
4
Já houve autores como Grotius, Hobbes ou Rousseau que defenderam uma teoria hoje abandonada de
“estado natureza”, em que os homens conviveriam livres e sem Direito, embora os autores apontados
não concordassem quanto à sua descrição. Em resumo, a tese é da passagem de um estado natural para
a vida em sociedade através de um acordo (contrato social) que limita a esfera de poder/liberdade de
cada um.
17
Homem há sociedade e isto é tanto mais verdade quanto mais evoluída e desenvolvida
for uma sociedade.
18
Os conflitos de interesses podem ser resolvidos, em certos casos, pelos
próprios envolvidos, ou seja entre as partes, sem que seja necessário recorrer ao
Direito criado pelo Estado ou por este aplicado, por exemplo por via judicial. A esta
via chama-se autonomia reconhecida, aliás, pelo Estado aos indivíduos. Esta solução
resulta, no fundo, da colaboração entre o Homem e o Direito pois, afinal, este não
é omnipotente e depende do espaço que lhe é socialmente atribuído.
O poder surge, também ele, como uma forma de resolução de litígios pois
traduz-se na faculdade de influenciar ou determinar a conduta alheia. No primeiro
caso, falamos de poder de influência em que se procura persuadir a adopção de uma
certa conduta. Por exemplo, o Estado, quando atribui benefícios fiscais às empresas
que se fixam no interior do país, procura incentivar a deslocalização da actividade
económica. A segunda forma de poder é conhecida por poder injuntivo. Neste caso,
visa-se impor condutas, por exemplo, quando se fixa a obrigação de pagar impostos
ou de não fazer barulho depois de uma certa hora.
19
A legitimidade de título prende-se com a forma como foi adquirido o poder
de acordo com as regras estabelecidas para tal, por exemplo, democraticamente, por
questões de sangue ou de antiguidad
iiib. O Estado
O Estado nem sempre existiu nos moldes em que hoje o conhecemos, nem a
entidade estadual teve a importância actual. Basta pensar na Idade Média e no
predomínio do poder infra-estadual. Actualmente, assiste-se a uma tendência para
uma valorização do plano supra-estadual com a multiplicação das organizações
internacionais com as mais variadas formas e objectos, tendo por expoente máximo a
União Europeia e a sua perspectiva integracionista. No entanto, a figura do Estado
continua como a principal referência5. E o que se entende por Estado?
5
Apesar do Estado continuar como a principal referência a nível do Direito, isto não significa que a
estadualidade seja uma característica do mesmo pois, não só o aparecimento do Estado como o
conhecemos é posterior ao nascimento do Direito, como a sua importância tem variado ao longo dos
tempos. Por outro lado, nem mesmo poderemos considerar a estadualidade uma característica do
Direito contemporâneo, apesar da crescente institucionalização, pois continuam a existir fontes não
voluntárias de Direito como o costume e os princípios gerais de Direito. Por outro lado, nos últimos
20
Deixaremos as considerações mais aprofundadas para a disciplina de Ciência
Política e Direito Constitucional e ficaremos apenas pelo mais essencial. O Estado
resulta da soma de três elementos: povo, território e poder político organizado 6, ou
seja, necessita de um suporte humano, de um suporte físico e de uma vontade
estruturada.
O poder de revisão constitucional deve respeitar o que está para esse efeito
previsto na Constituição mas permite modificá-la. As alterações são depois
incorporadas no texto constitucional e condicionam, por sua vez, as outras funções do
Estado.
21
Esta última traduz-se na criação de actos legislativos pelos órgãos
considerados constitucionalmente competentes.
22
cultura judaico-cristã e pela lógica capitalista. A grande diferença não é, desta feita,
tanto em termos de bases mas em termos de técnica utilizada. Assim, o sistema
romano-germânico tem como principal fonte a lei, adoptando soluções genéricas e
tendencialmente abstractas e concede um importante papel ao Estado. Já o sistema
anglo-saxónico privilegia o costume, a solução casuística e concreta, a jurisprudência
e a regra dos precedentes e confere à sociedade civil um papel preponderante.
Contudo e para terminar, duas reflexões impõem-se.
b. Direito antropocêntrico?
i. Antropocentrismo
23
marcados pela consciencialização ambiental, têm-se desenhado novas idealizações do
Direito, em especial de um Direito ecocêntrico e de um antropocentrismo mitigado.
ii. Ecocentrismo
7
Poderíamos aqui, por exemplo, até pensar numa solução próxima do instituto da representação
utilizado para menores e interditos. Mas a quem entregar essa função de tutela? Aos proprietários? Aos
Estados? A associações especializadas? E não correríamos sempre o risco de existir um conflito de
interesses entre o Homem e o Ambiente? Ou de sermos tentados a negligenciar o nosso papel de
protectores do Ambiente? Não tem sido essa, aliás, a realidade?
24
iii. Antropocentrismo mitigado
25
No entanto, subsistem algumas questões. Como densificar o
Desenvolvimento Sustentado? A verdade é que este conceito, apesar de mais
desenvolvido a nível internacional, contém ainda muitas dúvidas por resolver, assim
como a ideia de defesa do ambiente numa perspectiva intergeracional: quanto às
gerações do futuro, quem nos garante que necessitam de um legado equivalente ao
nosso? Não poderá a tecnologia mais avançada ou novas descobertas científicas fazer
com que estejamos a limitar o uso de certos recursos que afinal não vão ser
necessários? Por outro lado, as gerações futuras ainda não existem, nem têm
personalidade jurídica, como tal estão longe de ser sujeitos ou titulares de direitos.
Não nos estaremos, no presente, a privar de bens que, hipoteticamente, no futuro, não
terão utilidade face à ideologia e técnica dominantes? Até que ponto, então, será
acertado defender-se uma solidariedade intergeracional? Para além do mais, como
definir “geração futura”? E que gerações futuras é que relevam? Esta polémica está,
portanto, longe de ter terminado.
26
antropocentrismo tão exagerado que chega a confundir questões ambientais, com
questões de ordenamento do território.
Para além destas referências legais, muitas mais poderiam sufragar a opção
antropocêntrica do legislador português, nomeadamente o próprio Código Civil que
encara os animais como coisas móveis (artigo 205.º) e que no artigo 502.º, por
exemplo, não tem como destinatário da norma os animais mas o Homem.
c. Sujeitos do Direito.
i. Personalidade jurídica.
27
ao encontro dessa exigência. Contudo, nas sociedades mais desenvolvidas e evoluídas
já se verifica a adequação do Direito positivo ao Direito natural nesta matéria.
28
Segundo, o artigo 122.º CC é menor quem ainda não tiver completado dezoito
anos de idade, terminando a sua incapacidade quando atinja a maioridade ou se
emancipe pelo casamento (artigos 129.º e 132.º CC). A lei presume, assim, que até
aos dezoito anos as pessoas não têm uma vontade consciente e suficientemente
estruturada para poderem agir sem apoio, o que se pode traduzir num desencontro
entre a realidade jurídica e a realidade de facto. Por exemplo, um jovem de catorze
anos pode até ser maduro o suficiente para reger a sua pessoa e dispor dos seus bens
mas a lei considera que tal só acontece a partir dos dezoito anos. Isto deriva da técnica
utilizada no sistema romano-germânico, que, como acima referimos, adopta regras
gerais.
Os interditos, por sua vez, são todos aqueles que por anomalia psíquica,
surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens, ou
seja de estruturar e formular a sua vontade de forma consciente e com conhecimento
(artigo 138 n.º1 CC), devendo essa incapacidade, ao contrário do que acontece com a
menoridade, ser declarada judicialmente. Por outro lado, as interdições são aplicadas a
maiores, o que significa que, por exemplo, um menor com atrasos mentais profundos
deva ver a sua incapacidade regida pelos artigos referentes à menoridade (artigo 138
n.º2 CC) e não é considerado no sentido técnico-jurídico interdito. O regime da
interdição é, aliás, na sua generalidade, salvo adaptações decorrentes das suas
especificidades, equiparado ao da menoridade, como decorre do artigo 139.º CC.
29
Assim, também aqui estaremos a falar do instituto da representação no que respeita à
forma de se ultrapassar a incapacidade de exercício e que se reconduz ao poder
paternal (artigo 144.º CC) ou à tutela (artigos 143.º e 145.º CC). A interdição termina
quando cessa a causa que determinou a interdição, nos termos do artigo 151.º CC.
30
obrigações em função de um fim. A sua capacidade de gozo será assim limitada pelo
objectivo a prosseguir. Fala-se em princípio da especialidade.
v. Outros
31
3. Realidades afins e conexas com o Direito
a. Usos
Adiante-se, por outro lado, que os usos diferem do costume. Como veremos a
propósito das fontes de Direito, o costume pressupõe não só uma prática reiterada, um
uso, mas também a convicção da sua obrigatoriedade.
Por fim, refira-se que o artigo 3.º n.º1 CC prevê que os usos que não forem
contrários aos princípios de boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o
determine, ou seja, o uso existe mas é ineficaz se não for legalmente reconhecido. No
fundo, os usos são apenas auxiliares, ajudando a compreender e completar o sentido
das declarações de vontade das partes. A importância que lhes é atribuída é, desta
feita, bastante reduzida, ideia que é, aliás, reforçada pela ausência de uma referência
aos usos no artigo 239.º CC.
b. Religião
32
instrumental pois visa preparar-nos para um mundo futuro e para uma
realidade transcendente, Deus, através da fé.
c. Moral
Por outro lado, tanto a Moral como o Direito se interessam pelo lado interno e
externo das questões. No entanto, a perspectiva utilizada difere: na Moral vai-se do
aspecto interno para o externo, no Direito é o inverso. Por exemplo, a Moral
preocupa-se se temos pensamentos sobre adultério mas toma em atenção se acabámos
ou não por cometê-lo. O Direito tem em conta um facto, nomeadamente, um
homicídio mas depois interessa apurar se este foi cometido com ou sem dolo.
Uma outra diferença entre Moral e Direito prende-se com o tipo de sanções
aplicáveis. Enquanto que na moral são sanções éticas, já no Direito temos sanções
físicas e a coercibilidade.
Por fim, refira-se que, apesar da possível distinção entre Direito e Moral, o Direito
se reconduz, no seu todo, a um mínimo ético 8, ou seja, a princípios morais
fundamentais para a preservação da sociedade, como a regra do “não matarás”.
Contudo, não ultrapassará, por vezes, o Direito esse mínimo ético quando legisla, por
exemplo, sobre o atentado ao pudor, a homossexualidade ou os deveres dos cônjuges?
Além de que o Direito não se reconduz apenas a normas eminentemente morais. A
grande maioria das normas pouco tem, aliás, a ver com a Moral, sendo soluções
8
Contra, Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.
33
técnicas para resolver conflitos de interesses. Por outras palavras, o Direito, apesar de
constituir um manancial de regras técnicas, corresponde, em termos valorativos, no
seu todo, a um mínimo ético. Por outro lado, embora Direito e Moral se distingam há
que reconhecer uma certa porosidade do Direito que, influenciado pela moral
dominante, integra soluções que ultrapassam o mínimo ético. Pense-se na
homossexualidade ou no transexualismo.
Quanto ao juiz é seu dever funcional conhecer a lei e aplicá-la aos factos
submetidos para sua apreciação, o que significa que o juiz não se encontra limitado
pelas normas invocadas pelas partes e estas não são objecto de prova em juízo. Por
outras palavras, o juiz tem conhecimento oficioso da lei, ou seja, tem autonomia para
indagar a norma aplicável e para a interpretar.
34
nenhuma das partes o tenha invocado, ou a parte contrária tenha reconhecido a sua
existência e conteúdo ou não haja deduzido oposição.
35
ligadas umas às outras, graças a uma coluna vertebral essencialmente hierárquica e
valorativa (em última análise guiada pela dignidade da pessoa humana) que as torna
ordenadas, coerentes e harmoniosas. Em caso de conflito entre normas, intolerável no
sistema jurídico e cada vez mais frequente devido à explosão da produção normativa,
a solução passa pela utilização de vários crivos: hierárquico, cronológico, de
especialidade, de competência, de prevalência da lei mais favorável, de ponderação
dos valores e interesses em causa.
c. Imperatividade
d. Sanções
i. Sanções jurídicas
36
conduta violadora9: neste caso, desobediência. Em terceiro lugar, este incumprimento
conduz à aplicação de uma sanção como ser repreendido, detido 10 ou preso ou ver um
negócio jurídico anulado. Ou seja, a punição representa a estatuição 11 da regra
sancionatória. As sanções podem ser jurídicas em sentido estrito ou materiais. As
primeiras reconduzem-se a valores jurídicos negativos como a inexistência, a
nulidade, a anulabilidade, a ineficácia em sentido estrito e a irregularidade. Estudá-
las-emos mais à frente. As segundas podem ser compulsórias, reconstitutivas,
compensatórias, punitivas ou preventivas.
9
Por vezes encontra-se a expressão algo contraditória de “sanções premiais”. Correntemente, estas
encontram-se associadas a casos em que são conferidos prémios ou vantagens no caso do cumprimento
(ou seja, em que não existe uma conduta violadora) de uma obrigação. Pense-se, por exemplo, na
atribuição de mais dias de férias por conta da assiduidade. Contudo, por não haver a violação de um
dever, parece-nos que o termo empregue deveria ser substituído por tutela positiva ou premial. Já a
expressão “sanções premiais”, por seu lado, deveria ser empregue em situações em que se atribuem
vantagens, mesmo que condicionadas, quando existe um incumprimento. Esta situação algo paradoxal
começa a ter expressão no Direito internacional do desenvolvimento e do ambiente. Pense-se num
Estado pouco desenvolvido que incumpre as suas obrigações internacionais por não possuir de todo
meios para as cumprir. Hoje prevê-se, em determinados casos, a atribuição aos Estados incumpridores
de meios para poderem respeitar as disposições internacionais, em vez de os sancionar negativamente.
10
Cf. leque de sanções previstas na AM.
11
Como veremos mais à frente, uma norma jurídica tem a seguinte estrutura: em primeiro lugar a
previsão (enquadramento da questão, previsão de um acontecimento, delimitação de factos) e, em
segundo lugar, a estatuição (consequências).
37
iii. Sanções reconstitutivas
38
estaria se não houvesse incumprimento mas procura-se criar uma situação que seja
valorativamente semelhante à primeira.
v. Sanções punitivas
As sanções punitivas podem ser penais, como a prisão, mas também contra-
ordenacionais (coima por estacionar em cima do passeio), civis (como não poder ser
herdeiro legitimário ou não poder casar - respectivamente artigos 2166.º n.º1 e 1062.º
39
d) CC) e disciplinares (detenção ou expulsão do cadete quando desobedece às regras
da Academia Militar).
e. Coercibilidade
i. Noção
Por outro lado, refira-se que há sanções que funcionam de forma automática
sem necessidade de recurso à força física como a perda de direitos políticos ou o
dever de indemnizar. No entanto, outras situações há que podem implicar o recurso à
40
força se não forem acatadas como a expulsão, a detenção… Nesses casos a sanção
liga-se intimamente com a coercibilidade.
Por outro lado, se bem que menos estruturada do que a nível estadual, na
ordem jurídica internacional existe uma coercibilidade crescente. Pense-se na
limitação do uso da força pelos Estados no âmbito das relações internacionais (artigo
2.º n.º 4 da CNU) e no capítulo VII da mesma Carta que permite ao Conselho de
Segurança usar a força em situações de violação de normas internacionais. Recorde-se
ainda o Tribunal Penal para o Rwanda ou para a Jusgoslávia e a criação do Tribunal
Penal Internacional. Mas até que ponto a imposição de sanções internacionais não
esconde um jogo de influências e de interesses. Alguém imagina o Afeganistão ou o
Iraque a invadir os Estados Unidos, por exemplo, por violação dos direitos humanos?
41
No que respeita o primeiro caso, relembre-se aqui, por exemplo, as regras
sobre os deveres dos cônjuges (respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e
assistência – artigo 1672.º CC) em que só situações muito graves, como a não
prestação de alimentos, poderão implicar a aplicação de sanções. Isto compreende-se
pelo facto de não se achar conveniente uma intromissão excessiva do Direito e do
Estado no seio familiar que poderia minar a sua intimidade e convivência.
42
ordenamento jurídico e repor a situação nas mesmas condições em que estaria se
não tivesse havido infracção, nos casos em que isso é possível. Esta função cabe,
essencialmente, aos tribunais embora, por um lado, não sejam os únicos responsáveis
pela tutela repressiva e, por outro, também possam ter um papel preventivo, por
exemplo, quando aplicam sanções preventivas ou quando estabelecem uma
providência cautelar.
Contudo, refira-se que existem outros tribunais que não os estatais que
garantem a tutela pública. Pense-se nos tribunais internacionais como o Tribunal
Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, os Tribunais Penais para o
Rwanda e para a Jugoslávia e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ou nos
tribunais comunitários, a saber, o Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias. Acrescente-se ainda os tribunais eclesiásticos e
os tribunais estrangeiros que podem resolver conflitos ligados a outros Estados e cujas
sentenças podem ser reconhecidas a nível interno mediante determinadas condições,
em nome da segurança e continuidade jurídicas.
43
Adiante-se, no entanto, que o recurso aos tribunais procura ser a última forma
empregue para resolver lítigios, tentando-se ultrapassá-los primeiro através da
conciliação das partes.
Por sua vez, a justiça privada ou autotutela traduz-se na justiça feita pelas
próprias mãos, em que o ofendido procura não só agir por sua conta para evitar um
perigo mas também sancionar o agressor e a ofensa. Esta é uma forma de tutela
genericamente abandonada e repudiada em sociedades evoluídas que evitam a justiça
de rua e que surge, sobretudo, em sociedades pouco coesas e institucionalizadas. No
fundo, reconduz-se à lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, se bem que neste
caso haja já sinais de progresso social por se considerar que a sanção a aplicar não
pode ultrapassar a ofensa sofrida.
Por fim, atente-se à tutela arbitral que surge de um casamento entre a tutela
pública e a tutela privada. Assim, sob a vigilância do Estado, as partes envolvidas
no litígio escolhem um juiz que funciona como um árbitro para resolver o
conflito. A nível internacional é também utilizada esta opção.
44
iv. Tutela pública
iva. Noção e tipos de polícia
45
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados (artigos 202.º e 203.º CRP).
46
Em primeiro lugar, segundo o n.º1, a acção directa só é possível quando haja
impossibilidade de recorrer, em tempo útil, aos meios coercivos normais. Por outras
palavras, a situação pode ser tutelada publicamente (caso que pode não acontecer, por
exemplo, nas relações familiares) e a acção directa é subsidiária.
Esta ideia, aliás, está ligada com a proporcionalidade exigida no n.º3 quando
considera ilícita a acção directa que sacrifica interesses superiores aos que o agente
vise realizar ou assegurar. Isto pressupõe uma prévia ponderação de interesses.
Por ser considerada lícita, a acção directa não implica uma indemnização. Tal
também sucede quando exista erro desculpável sobre os pressupostos da acção
47
directa, como decorre do artigo 338.º CC. Para averiguar se o erro é ou não
desculpável, atente-se ao artigo 487.º n.º2 CC e ao critério do bom pai de família.
Por outro lado, a agressão deve ser “actual”. Desta forma, afastam-se
agressões passadas, pois já se encontram consumadas, e futuras por existir a
possibilidade de recurso aos meios coercivos normais. E se a agressão for iminente?
Aparentemente parece possível considerar que estamos ao abrigo da legítima defesa
pois ainda há uma reacção imediata sem possibilidade de recurso aos meios normais.
48
Por fim, na legítima defesa tem de haver proporcionalidade nos meios
empregues e uma ponderação de interesses pois o prejuízo causado pelo acto não
pode ser “manifestamente15 superior ao que pode resultar da agressão”. A
racionalidade dos meios de defesa implica uma medição em concreto não exigindo,
no entanto, uma equivalência absoluta (por exemplo, ver quais os meios disponíveis e
aplicáveis). O n.º2 do artigo 337.º CC prevê que é ainda lícita a legítima defesa
quando o excesso de reacção se deva a medo ou perturbação não culposa, o que
implica apurar se o “bom pai de família” reagiria da mesma forma naquela situação
(artigo 487.º n.º2 CC). Sendo lícita, a legítima defesa não implica a obrigação de
indemnização e no caso de erro nos pressupostos veja-se o que acima se afirmou
sobre o artigo 338.º CC.
49
O estado de necessidade encontra-se previsto no artigo 339.º n.º1 CC e visa a
remoção de um “perigo” (expressão bem mais lata do que agressão prevista para a
legítima defesa e, por outro lado, não pressupõe a violação de um direito como na
acção directa) que tem de ser “actual” ou iminente (ao contrário da acção directa ou
do direito de resistência).
Por outro lado, a reacção visa beneficiar quer o próprio agente quer terceiros
(ao contrário da acção directa ou do direito resistência na vertente de reacção a uma
ordem ofensiva de direitos).
50
ve. Direito de retenção
f. Exterioridade
51
Como acima vimos a propósito da distinção entre Direito e Moral, este critério
não funciona pois ao Direito também interessa o lado íntimo de quem age, embora
nem sempre a prova seja fácil ou mesmo possível. Assim, o estado de espírito do
sujeito e a determinação da sua vontade releva para se saber, por exemplo, se estamos,
face a um homicídio por negligência ou doloso, sendo as consequências jurídicas
diferentes. Por outro lado, também à Moral importa a efectivação das condutas.
Contudo, o mero crime por convicção ou o pensamento ilegal sem concretização não
interessam ao Direito, da mesma forma que para a Moral não interessa apenas a
acção. Só neste sentido é que a exterioridade poderá ser útil para caracterizar o
Direito.
5. Situação jurídica
a. O facto, o acto e o negócio jurídicos
O acto jurídico, por sua vez, desdobra-se em acto jurídico em sentido restrito
e em negócio jurídico.
52
autonomia privada. O negócio jurídico subdivide-se em unilateral (ex. testamento) e
bilateral (ex. casamento) consoante haja apenas uma ou mais do que uma declaração
de vontade. Ao negócio jurídico bilateral dá-se o nome de contrato.
b. Valores negativos
53
No caso de invalidade, o acto existe mas é considerado sem valor. Desta feita,
o acto pode ser considerado nulo ou anulável.
A nulidade visa proteger o interesse público 16, o que implica que o acto é
ineficaz desde o início e que o vício existe independentemente da declaração judicial.
Aliás, o que o tribunal faz é meramente constatar a nulidade, declará-la, ao contrário
do que sucede com a anulabilidade em que o tribunal destrói, a posteriori, os efeitos
de um determinado negócio. De acordo com o artigo 286.º CC, a nulidade é invocável
a todo o tempo, por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo
tribunal. Segundo o artigo 289.º n.º1 CC, a declaração de nulidade tem efeito
retroactivo.
16
Por exemplo, o artigo 280.º CC considera nulo o negócio jurídico física e legalmente impossível,
ilegal, indeterminável, contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.
17
Por exemplo, atente-se ao artigo 125.º CC e aos actos anuláveis praticados por menores.
18
Atente-se que o n.º2 do artigo 287.º CC exceptua desta regra os casos em que o negócio não está
cumprido. Nesse caso, não há prazo.
54
6. Regra jurídica
a. Caracterização
i. Estrutura
A regra jurídica tem uma estrutura bifronte composta por dois elementos: a
previsão que contém uma situação de facto juridicamente valorada e a estatuição ou
consequência jurídica.
Imagine-se a seguinte regra: “O cadete que não fizer a cama será punido com
cem flexões”.
ii. Hipoteticidade
55
Hipoteticidade significa que a regra só se aplica aos factos que prevê, ou
seja é preciso que se verifique um facto que preencha a previsão normativa para se
poder retirar as devidas consequências. Por outras palavras, nenhuma regra se aplica
por si só. Por exemplo, reportando-nos à regra acima enunciada, só há cem flexões
quando o cadete não faz a cama e não quando ele não arruma o quarto ou quando tem
menos de seis nos testes.
iii. Generalidade
iv. Abstracção
19
A doutrina divide-se quanto à caracterização das regras jurídicas, em torno da generalidade e da
abstracção. Para Inocêncio Galvão Telles e M. L. Duarte, tanto a abstracção como a generalidade são
características da regra jurídica. Para Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão estas são meramente
tendenciais. Já nós seguimos a posição de Oliveira Ascensão que considera apenas a generalidade,
sendo a abstracção meramente tendencial. Refira-se, aliás, que no artigo 1.º n.º2 CC e 2.º n.º1 da Lei n.º
74/98, de 11 de Novembro, apenas se atende ao critério da generalidade. Só no caso de leis restritivas
de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º n.º3 CRP) é que se exige para além da generalidade a
abstracção.
56
v. Bilateralidade
vi. Imperativo
57
b. Classificação das regras jurídicas
Por existir um grande número de regras pode ser útil a sua arrumação em
grandes categorias, atendendo a vários critérios tais como relação entre normas,
relação com a vontade do destinatário da norma, âmbito material de aplicação e
aplicabilidade.
As regras autónomas têm, por si, sentido completo enquanto que as não
autónomas só o conseguem através da combinação com outras regras. Convém, no
entanto, distinguir estas últimas de proposições jurídicas não normativas - como as
58
classificações legais (cf. classificação das coisas, artigos 203.º CC e ss.) e as
definições legais (cf. definição de coisa artigo 202.º n.º1 CC).
Nas regras não autónomas podemos incluir regras sobre regras que fixam o
âmbito de regras anteriores, como as regras restritivas ou ampliativas e as regras
remissivas em que o seu sentido só se completa se olharmos para a regra para onde
remete. Pensemos, por exemplo, nas regras de devolução do Direito internacional
privado previstas nos artigos 25.º e ss. do CC ou nas regras de Direito transitório
formal que resolvem problemas de aplicação da lei no tempo remetendo a solução
para uma das leis envolvidas na questão. Em ambos os casos a remissão funciona
como estatuição (consequência jurídica).
Nas ficções, como as dos artigos 242.º, 275.º n.º 2 e 2752.º CC, assume-se que
um facto é igual a um outro previsto numa outra regra, mesmo se a realidade jurídica
não coincida com a realidade material.
59
id. Normas primárias e normas secundárias
60
As regras interpretativas, como supra dissemos, não são inovadoras e
permitem apurar o sentido das regras. Aqui, interessam-nos apenas as que se
encontram dispostas em negócios jurídicos e que dependam da vontade das partes
pois as outras (normas sobre normas), ao contrário destas, são injuntivas.
61
divisão entre nobreza, clero e povo e em a que cada categoria era aplicado um
conjunto de normas. No nosso ordenamento actual, as regras são comuns pois visam
todos e qualquer um, se bem que no artigo 20.º n.º3 CC se atente à existência de
ordenamentos plurilegislativos de natureza interpessoal.
62
atendendo a especificidades locais), dificilmente, em primeiro lugar, se encara a
possibilidade de esta ser interpretada de forma analógica para um âmbito mais lato ou
para uma localização diferente. Em segundo lugar, devido às especificidades que são
tidas em linha de conta, apesar de haver regras gerais sobre a mesma matéria, parece
de se manter a aplicação da regra local, salvo se intenção das primeiras for revogar
esta. No entanto, parece que poderemos considerar as regras gerais como subsidiárias
das locais se não puserem em causa a lógica local e as suas especificidades.
No que respeita a primeira questão, há que atender primeiro às regras especiais 22,
porque são mais específicas e precisas e, só no caso de estas não se aplicarem,
procurar enquadrar a questão na regra geral. Pense-se no que acima se referiu sobre o
estado de necessidade e a legítima defesa.
No segundo caso, atente-se ao artigo 7.º n.º3 CC que estipula que a lei geral não
revoga a lei especial, salvo se tal resultar do espírito da lei, de forma contundente,
explícita ou implicitamente. Esta solução implica, por parte do intérprete, um trabalho
minucioso de apuramento do sentido da lei geral.
Por fim, resulta do que dissemos que a lei especial posterior não revoga a lei geral,
apenas a derroga na parte em que se aplica. Se a lei especial vier a ser revogada e não
for substituída então a lei geral volta a aplicar-se na sua totalidade.
22
Idealmente, o melhor é começar por ponderar a regra geral, depois procurar a existência de regras
especiais e, na falta destas, retornar à regra geral.
63
7. Ramos de Direito
a. A árvore do Direito
Se optarmos por uma metáfora podemos comparar o Direito a uma árvore num
jardim. O ambiente que rodeia a nossa árvore, o jardim, representa o Direito
internacional e o Direito comunitário que condicionam a forma como a nossa árvore
pode crescer e desenvolver-se mas também como ela se relaciona com as outras
árvores e elementos do jardim. A terra representa o Direito natural e é, assim,
fundamento de todas as árvores e do ambiente que as rodeia.
Por sua vez, a árvore, que representa o Direito interno, tem um tronco que
simboliza a espinha dorsal de todos os ordenamentos jurídicos, o Direito
constitucional, que está enraízado no Direito natural. Este tronco vai depois
subdividir-se nos principais ramos de Direito como o Direito civil, penal, processual,
administrativo… que se subdividem em galhos e folhas, ou seja, em especializações
dos ramos principais como o Direito da família, das sucessões, das coisas, das
obrigações, o Direito penal económico, o Direito económico, o Direito fiscal…
Convém, ainda, acrescentar à nossa árvore umas lianas que representam ramos
jurídicos transversais (como o ambiente e a energia) que a atravessam, ligando-se a
todos os ramos.
b. Direito supraestadual
i. Direito internacional público
64
internacional face à globalização da maioria das questões. Desta feita, emergem agora
novos subramos do Direito internacional como o Direito internacional do ambiente,
do desenvolvimento, dos direitos humanos e económico. Contudo, paralelamente a
este alargamento do âmbito do Direito internacional, tem-se assistido a uma tendência
de recusa do seu total acatamento, sobretudo pelos Estados mais poderosos, que
tentam bloquear a sua natural e necessária evolução. Pense-se nos Estados Unidos e
na recente guerra no Iraque ou na sua recusa em ratificar o Protocolo de Quioto ou a
criação do Tribunal Penal Internacional. Já atrás, aliás, tínhamos chamado a atenção
para as fragilidades da coercibilidade neste campo.
23
Inocêncio Galvão Telles critica a expressão Direito internacional privado e relembra que este
também regula questões de Direito criminal que são claramente do foro público e não privado,
preferindo a expressão conflito de leis.
65
revisões e tratados de adesão. No segundo caso, trata-se de princípios e regras que
resultam dos processos de criação próprios da Comunidade. Refira-se, adiantando já
alguma matéria, que qualquer bom jurista deve estar muito atento ao Direito
comunitário, não só pela abrangência de matérias abordadas mas devido ao seu
primado sobre o Direito interno, à aplicabilidade directa e ao efeito directo de certas
normas. Por outras palavras, o Direito comunitário é parte integrante da ordem
jurídica portuguesa e prevalece sobre o Direito interno.
c. Direito interno
i. Direito público e Direito privado. Distinção
Vários têm sido os critérios para distinguir Direito público de Direito privado.
24
Também os particulares, em determinadas condições (em especial quando prosseguem o interesse
público) se comportam como uma entidade pública dotada de poderes especiais. Pense-se nas
colectividades de interesse público ou de solidariedade social.
66
será público. Se o sujeito agir como um qualquer outro sujeito, por outras palavras, se
houver paridade entre os sujeitos, então o Direito será privado.
Por fim, refira-se que hoje em dia se assiste a um fenómeno de contágio mútuo
entre o Direito público e o Direito privado na procura de soluções mais adequadas
para a dinâmica natural do Direito.
25
A preferência por este critério não afasta o recurso aos outros dois apontados. Neste sentido e
apontando para o facto do critério do interesse determinar a entrega de poderes de autoridade, M. L.
Duarte; Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.
67
iic. Direito penal
O Direito, como vimos, tem uma função de dirimir conflitos mas para tal é
necessária a criação de órgãos - os tribunais – e a definição das regras para a sua
organização e actividade. Por outras palavras, o Direito Processual visa estabelecer os
princípios e as normas relativas ao mecanismo de funcionamento da resolução de
litígios. Trata-se, portanto, de um Direito adjectivo pois é instrumental face aos outros
ramos de Direito.
68
partes que o fazem avançar ou parar, que definem o seu âmbito, que apresentam
provas…, embora o juiz não se reduza a um papel de mero espectador.
O Direito penal não pode ser efectivado se não for por via do processo. Ou
seja, eu posso cometer um crime mas só sofrerei a respectiva sanção se esta me for
aplicada em juízo, cabendo ao juiz apreciar as provas relativamente aos factos.
69
Para terminar, refira-se que novos ramos de Direito civil têm surgido nos
últimos tempos como o Direito de autor e o Direito da personalidade.
iv. Outros
Queremos aqui apenas referir que têm surgido recentemente ramos mais ou menos
individualizados de Direito que se distinguem dos outros por serem transversais (as
nossas lianas), ou seja, atravessam o ordenamento jurídico e tocam em todos os outros
ramos. Pense-se no Direito do ambiente, do urbanismo, da energia ou dos transportes.
Como vimos acima, a expressão direito tem vários sentidos e podemos, desta
forma, falar de Direito como uma ciência que estuda o Direito em sentido objectivo
70
através de um método próprio, o método jurídico. Fala-se em Ciência do Direito ou
Ciência jurídica. Atente-se, no entanto, ao facto de ser humana e cientificamente
impossível conhecer todo o Direito. Daqui resulta não só o inevitável fenómeno de
especialização a que nos referimos acima, como, por outro lado, a relativização do
conhecimento jurídico-científico.
Ainda no âmbito das ciências que estudam o Direito na sua essência normativa
necessária e imperativa, atente-se à Sociologia do Direito (que se preocupa com a
análise das situações de vida sobre as quais o Direito se baseia) e à Filosofia do
Direito (que estuda o Direito de forma crítica, avaliando, sobretudo a sua
conformidade com os valores sociais e a Justiça).
Por fim, múltiplas são as ciências auxiliares, em especial numa época em que o
Direito se torna cada vez mais técnico, como a Antropologia, a Linguística, a
Medicina legal e até a Física, Matemática ou Biologia.
9. Profissões jurídicas
71
malhas da saturação de licenciados em Direito passa pela aposta em profissões
jurídicas menos conhecidas como a tradução jurídica e na aposta em áreas em
desenvolvimento, novas ou pouco exploradas como o Direito fiscal e financeiro, o
Direito bancário e dos seguros, o Direito imobiliário, o Direito do trabalho, do
consumo, da concorrência e da regulação, da energia e do ambiente, da medicina e do
medicamento, do desporto, das autarquias locais, as ciências jurídico-militares, o
Direito internacional privado…
72
III. Fontes de Direito
1. Noção de Fonte
A ordem jurídica é composta por regras. Ora estas têm uma origem histórica à
qual se dá o nome de fonte, assim como se dá o nome de fonte à sua base filosófica,
sociológica e à sua proveniência orgânica. A palavra fonte é, portanto, polissémica.
Em sentido técnico, significa o modo de formação e de manifestação das regras
jurídicas. Quando se fala em formação está-se a pensar no facto de que derivam as
normas (o acto legislativo, por exemplo), na sua génese e no seu processo de
formação. No que respeita a manifestação ou revelação das regras, pensa-se na sua
sinalização exterior: o texto legal ou a conduta no costume. Por fim, acrescente-se a
esta definição formal, o facto da fonte exprimir “um querer legitimado de regulação
social”.27
2. Equidade
27
Cf. M.L. Duarte.
73
O Direito português é, no entanto, restritivo no recurso à equidade, como
resulta do artigo 4.º CC, só admitindo a sua aplicação nos casos legalmente previstos.
Veja-se, por exemplo, o já referido artigo 339.º n.º2 CC ou pondere-se a sua
relevância em matéria de integração de lacunas ou em situações de substituição da lei
como critério decisional.
Para poder ser atendida a equidade depende, para além da previsão legal, de
uma cláusula compromissória que a preveja ou de um acordo das partes no âmbito da
sua autonomia.
Por fim, a equidade não é o único critério de resolução não normativo. Pense-
se, por exemplo, numa ordem ou na discricionaridade concedida a um ente público.
28
Atente-se, ainda, aos artigos 115.º n.ºs 3 e 5; 119.º n.º1b); 134.º b); 135.º b); 140.º; 161.º i); 197.º
n.º1b) e c); 278.º n.º1 e 279.º CRP.
74
Contudo, antes de avançarmos, convém esclarecer que se deve distinguir a
existência e a validade do Direito internacional da sua aceitação pelo Direito interno.
Aqui existem dois caminhos: o monismo e o dualismo. No monismo aceita-se que a
ordem jurídica é una mas duas posições podem ser defendidas, uma prevalência do
Direito interno (o que se traduz numa negação do Direito internacional) e uma
prevalência do Direito internacional29. No dualismo, o Direito internacional e o
Direito interno apresentam-se como duas ordens jurídicas autónomas, o que significa
que para ser aplicado em termos internos o Direito internacional necessita da
autorização do Direito interno. Isto redunda, no fundo, na sua negação pois é
necessário um acto interno para receber a regra internacional.
a. Ius cogens
29
Esta é a posição adoptada no ordenamento português, sendo a nossa Constituição das mais abertas a
nível mundial.
75
b. Costume
76
d. Convenções
Esta fonte de Direito internacional de cariz contratual tem tido uma grande
expansão nos últimos tempos graças à crescente institucionalização internacional e
tem sofrido alterações na sua forma, de maneira a se adaptar às novas necessidades de
uma sociedade globalizada, tecnológica e em rápido movimento. Assim, desde
tratados solenes a acordos de cavalheiros, passando por convenções com articulados
minuciosos a outras que apenas fixam meia dúzia de princípios, relegando aspectos
técnicos susceptíveis de alterações frequentes para os anexos, várias têm sido as
formas sob as quais se apresenta. No que respeita o Direito dos Tratados, veja-se as
Convenções de Viena de 1969 e 1986.
e. Actos unilaterais
77
f. Soft Law
Alguns, por seu turno, negam-lhe a qualidade de fonte de Direito, até porque
não está prevista no ETIJ. Este argumento não procede, visto que é preciso considerar
a grande evolução que se tem feito sentir no Direito internacional, nomeadamente
com o surgimento de áreas novas, como o ambiente, que não se compadecem com a
rigidez das fontes tradicionais. Por outro lado, não releva a crítica relativa ao carácter
não vinculativo destes instrumentos. Em primeiro lugar porque alguns, ainda que
poucos, o são. Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência têm um alcance limitado
sem que o seu estatuto de fontes de Direito seja posto em causa, pelo menos, enquanto
fontes mediatas.
Deste modo, a soft law representa no mínimo uma fonte mediata ou uma
nova técnica de formação de normas jurídicas. O seu papel é, aliás, da maior
importância, sobretudo a nível ideológico. As fontes de Direito tradicional apresentam
algumas insuficiências que precisam de ser supridas. Quanto ao costume e aos
princípios nem sempre é fácil identificá-los. No que respeita as convenções a sua
celebração é muitas vezes morosa porque implica negociações e acordos difíceis, a
realização de estudos prévios, consultas alargadas. A soft law possibilita uma resposta
mais célere e adequada, sobretudo em ramos muitos técnicos como o ambiente ou o
Direito económico. Por outro lado, reflecte consensos, reflexões e preocupações por
vezes apadrinhadas por uma maioria significativa de Estados, estimulando a
78
sensibilização para as questões internacionais e, mesmo, desbravando caminho para
uma futura opinio juris vel necessitatis (convicção de obrigatoriedade).
g. Jurisprudência
h. Doutrina
79
comunitário, a aplicabilidade directa, o efeito directo e a cada vez maior diversidade
de matérias tratadas a nível europeu parece-nos indiscutível a sua importância e
premência.
a. Direito primário
Os tratados são autónomos uns em relação aos outros, o que significa que só
em caso de lacuna se poderá recorrer a um outro tratado para a integrar e a sua
interpretação é sistemática, cabendo ao TJCE. Refira-se ainda que o Direito
comunitário originário prevalece sobre as outras fontes comunitárias e constitui o
fundamento e o limite do Direito derivado.
b. Direito derivado
i. Regulamentos
80
ii. Directivas
Por fim, chame-se apenas a atenção para a tendência, nos últimos anos, de
uma pormenorização cada vez maior das directivas, o que vem esbatendo a sua
diferenciação em relação aos regulamentos e que explica, em parte, uma crescente
preocupação com uma política de melhoria da legislação comunitária encabeçada pela
Comissão europeia.
iii. Decisões
81
iv. Soft Law
d. Costume
e. Jurisprudência
82
f. Doutrina
5. Fontes internas
83
inovadoras que dêem resposta ao princípio da igualdade na sua vertente de
discriminação positiva).31
No que respeita os princípios gerais de Direito, cabe ainda acrescentar que não
se trata propriamente de regras mas de directivas mais flexíveis no estabelecimento de
soluções que decorrem da unidade e sistematicidade do ordenamento jurídico.
b. Lei
c. Costume
i. Noção e características
31
M.L. Duarte, pgs. 186-187.
32
Por esta razão, Oliveira Ascensão defende, de forma algo exagerada a nosso ver, que o costume é a
fonte privilegiada do Direito.
84
Comummente, aceita-se que o costume é constituído por dois elementos
substanciais, um primeiro, objectivo – a existência de uma prática social reiterada
de modo uniforme - e um segundo, subjectivo – a convicção de obrigatoriedade
daquela prática.
85
Quanto à racionalidade, o que será um costume racional? E a lei não deverá ela
também ser racional?
Por fim, quanto ao seu pretenso carácter espontâneo, ou seja à não imposição de
uma prática repetida por um dado poder ou grupo social (por exemplo, quando há
ocupação armada), nada de novo se acrescenta ao que já foi afirmado sobre o
costume. Este não se reduz apenas a um elemento objectivo: se não houver convicção
de obrigatoriedade quanto a uma determinada conduta (espontânea ou não), não há
costume.
No Código Civil, no entanto, surgem várias referências aos usos, o que levanta
duas questões. Não estará o legislador, em primeiro lugar, a querer falar de costume?
E se tal não suceder, qual o valor jurídico dos usos?
No que respeita a primeira questão, a resposta parece ser negativa pois no artigo
348.º CC, o legislador refere-se ao “direito consuetudinário”, o que pode subentender
uma distinção terminológica entre usos e costume, um pouco na linha do artigo 9.º
n.º3 in fine. Por outro lado, o artigo 3.º n.º1 CC prevê a subordinação dos usos à lei,
ou seja a sua não autonomia, o que não sucede, como vimos, com o costume que vale
por si. Refira-se ainda que este artigo estipula também a atendibilidade jurídica dos
usos que não forem contrários aos princípios da boa fé. A lei tem, portanto, um
comportamento restritivo quanto aos usos que servem de auxiliares interpretativos das
declarações de vontade das partes e dos negócios jurídicos, nos casos legalmente
previstos. Pense-se no artigo 218.º CC quanto ao valor do silêncio.
86
Serão então os usos fonte de Direito? A sua inserção no capítulo I com a
epígrafe Fontes de Direito e o facto de no n.º2 do artigo 3.º CC serem relacionados
com as normas corporativas indiciariam uma resposta positiva à nossa pergunta.
Contudo, na nossa opinião, ambos os argumentos apresentam fragilidades.
Em primeiro lugar, a epígrafe não tem qualquer valor vinculativo e como vimos,
este capítulo apresenta algumas deficiências, nomeadamente por incluir, no seu rol de
fontes, realidades que a elas não se reconduzem como a equidade.
Contudo, fica uma dúvida no ar: no caso dos usos, ao contrário do que acontece
com a doutrina, a jurisprudência e por maioria de razão com o costume, o legislador
sentiu a necessidade de a eles se referir logo no início do diploma, ainda por cima de
forma restritiva, enfantizando o facto de dependerem de disposição legal. Por outras
palavras, os usos só têm valor quando tal é determinado legalmente, o que parece
significar uma negação do seu carácter de fonte, uma vez que lhes é vedado valerem
autonomamente.
Uma questão impera: o que diz a nossa lei sobre estas situações? A verdade é
que não diz nada. Pense-se que não existe, por exemplo, qualquer referência ao
87
costume em matéria de interpretação ou de integração de lacunas, assim como no
artigo 7.º CC não se prevê a cessação da vigência legal por causa do costume. O facto
de se ignorar o costume significará a sua irrelevância e negará o seu estatuto de fonte?
Sendo, portanto, o costume uma fonte autónoma em paridade com a lei, aceita-se
o costume praeter legem e, no caso de um costume contra legem ou derrogativo, este,
por via de desuso (prática reiterada de não acatamento de uma conduta legalmente
prevista), implica a caducidade da lei.
e. Jurisprudência
33
Contra, exigindo o reconhecimento legislativo para garantir a vinculabilidade do costume, Galvão
Telles. No pólo oposto, inclinando-se mesmo para uma prevalência do costume sobre a lei, Oliveira
Ascensão. Reconhecendo a autonomia do costume mas conferindo-lhe um papel residual, Marcelo
Rebelo de Sousa e Sofia Galvão; Baptista Machado; Castro Mendes; Dias Marques; M.L. Duarte;
Santos Justo.
34
Os casos de costume secundum legem são raros pois pressupõem um sistema dualista em que se
movem, em zonas bem delimitadas e diferenciadas, lei e costume.
88
A jurisprudência, num sistema românico-germânico no qual o Direito
português se insere, tem sobretudo um papel essencialmente mediato, não existindo
entre nós a regra do precedente como nos países anglo-saxónicos. Por outro lado, a
interpretação rígida da separação de poderes (em especial, legislativo e jurisdicional)
conduz à limitação do juiz a um papel de mero aplicador da lei. No entanto, hoje,
reconhece-se uma função criadora à jurisprudência, face à responsabilidade de
administrar Justiça em nome do povo. Assim, o juiz abandona uma obediência cega à
lei para lhe obedecer de forma pensante35, aplicando e recriando as regras, como
intérprete da consciência jurídica social 36. Chame-se, contudo, a atenção para o facto
de esta aplicação criadora do Direito por parte do juiz ser ainda muitíssimo
condicionada, não apenas em virtude do princípio da separação de poderes, mas
também porque o artigo 203.º CRP sujeita os tribunais apenas à lei 37, não lhes
atribuindo, aparentemente, margem de manobra.
No Direito português é preciso, por outro lado, não esquecer os acórdãos com
força obrigatória geral proferidos pelo Tribunal Constitucional no âmbito da
fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade (artigos 281.º n.º1 e 3 e 282.º
CRP).
Por outro lado, até 1996, discutiu-se a relevância dos assentos 38. Contudo, o
Tribunal Constitucional, primeiro no seu Acórdão n.º 810/93, de 7 de Dezembro e
depois, com força obrigatória geral, no Acórdão n.º 743/96, de 28 de Maio reconheceu
a inconstitucionalidade dos assentos por violarem o princípio da tipicidade normativa
prevista no artigo 112.º n.º6 CRP.
89
f. Doutrina
6. A lei, em especial
a. Polissemia
39
M. L. Duarte não considera a doutrina uma fonte de Direito apesar da sua importância a nível da
aplicação e renovação das regras.
90
b. Tipos
i. Lei material e lei formal
A distinção entre lei material e lei em sentido formal é das mais importantes e
também das mais polémicas. Não se pense, contudo, que a sua importância é
meramente teórica pois, atendendo à flutuação terminológica da palavra lei, consoante
a sua delimitação as soluções consagradas podem variar. Pense-se, por exemplo, no
artigo 103 .º n.º3 da Constituição. Estará aqui prevista a lei em sentido formal ou em
sentido material? Por outras palavras, a competência em matéria de liquidação e
cobrança de impostos estará apenas nas mãos da Assembleia da República, ou não?
40
Baptista Machado; Galvão Telles; Oliveira Ascensão.
41
Tendencialmente, como acima referimos, salvo em matéria de restrição de direitos, liberdades e
garantias.
42
Castro Mendes; Dias Marques; Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.
91
Como vimos anteriormente, a Constituição fixa as regras sobre a sua própria revisão e
as relativas à elaboração de leis infraconstitucionais ou ordinárias.
43
Cf. artigo 199.º c) CRP.
44
Caso dos regulamentos autónomos.
45
Artigo 166.º n.º2 e 168 n.º5.
92
maioria de dois terços46, as leis que constitucionalmente sejam pressuposto normativo
necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.
c. Processo de formação
i. Elaboração
ii. Publicação
A lei para poder ser conhecida e, portanto, obedecida pelos seus destinatários
deve ser publicada. Assim, o artigo 119.º n.º1 c) prevê a sua publicação em jornal
oficial: o Diário da República sob pena de ineficácia (n.º2). A Lei n.º 74/98, de 11 de
Novembro regula os aspectos relativos à publicação, identificação e formulário dos
diplomas.
iii. Vigência
46
Artigo 168.º n.º6.
47
Casos há em que a entrada em vigor coincide com a publicação mas tal tem de estar previsto na
própria lei.
93
publicação e a vigência da lei e visa permitir o conhecimento da lei de forma a evitar
surpresas e garantir um período de adaptação às alterações normativas a introduzir no
universo jurídico. De acordo com o artigo 5.º n.º2 CC, a própria lei pode determinar a
duração da vacatio legis. Se não o fizer, aplica-se então o regime subsidiário e
supletivo definido por legislação especial, a saber, neste caso, a Lei n.º 74/98, de 11
de Novembro.
48
Galvão Telles.
94
No que respeita a revogação, a vigência de uma lei cessa por força de uma lei
posterior, a que se dá o nome de lei revogatória, e o seu regime encontra-se previsto
nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 7.º CC. Vejamos mais de perto estas disposições.
O n.º3 remete-nos para a problemática das relações entre a lei anterior e a lei
posterior. Por via de regra, a lei posterior revoga a anterior ou, dito de outra forma, a
lei nova revoga a lei antiga. Existem, contudo, duas excepções.
95
d. Desvalores do acto legislativo
Da mesma forma que um acto jurídico pode sofrer de desvalores por ir contra
ao legalmente estipulado, também os actos legislativos podem ser afectados na sua
eficácia.
e. Codificação
i. Noção de Código
96
ii. Conveniência
Como vantagens, atente-se à sua mais valia prática, facilitando o seu acesso,
tanto por parte do aplicador das regras como dos seus destinatários, assim como a sua
interpretação por via de uma sistematização reforçada. Por outro lado, a sua feitura
implica muita reflexão e estudo de Direito comparado, o que pode permitir uma
aproximação e mesmo harmonização entre os diversos ordenamentos jurídicos. Pense-
se, por exemplo, no facto de o nosso Código Civil ser muito influenciado pelo Código
Civil alemão.
iii. Códigos
Para além do Código Civil, já aqui muitas vezes referido, podemos encontrar em
Portugal outros Códigos que traduzem, nos últimos anos, uma tentativa de ordenação
e sistematização de um ordenamento jurídico português em expansão. Pense-se no
Código penal, de processo civil, de processo penal, de procedimento administrativo,
comercial, das sociedades comerciais, do IVA ou do IRS e do IRC, da estrada, dos
valores mobiliários, do trabalho. Assiste-se, paralelamente, a um fenómeno de
colectâneas legislativas como, por exemplo, sobre o ambiente, urbanismo, transportes,
águas que, de uma forma mais simplista, procuram servir de guia no mundo cada vez
mais labiríntico do Direito.
97
Até ao momento enunciámos, sem grande preocupação valorativa, as
principais fontes de Direito que relevam para o ordenamento jurídico português. Cabe
agora conjugá-las pois a multiplicidade de fontes suscita o problema da
susceptibilidade de uma contradição do seu conteúdo.
Refira-se, contudo, que o termo hierarquia é aqui aplicado de forma lata pois
nem sempre existe uma relação de subjugação ou superioridade como acontece no
caso da relação entre lei e costume ou das decisões judiciais com força obrigatória
geral.
Por outro lado, optámos por falar sobretudo em hierarquia de fontes e não de
regras, uma vez que a primeira condiciona a segunda50.
No topo da hierarquia das fontes encontramos o ius cogens que prima sobre
todas as outras fontes, sejam elas de origem internacional, comunitária ou nacional
(incluindo a Constituição – cf. artigo 8.º n.º1 CRP), na medida em que traduz valores
essenciais que não estão na disponibilidade dos sujeitos. O seu reforço resulta do
reflorescimento do Direito natural, em especial depois dos horrores da II Grande
Guerra.
98
sua vigência. Se é pacífica esta consagração da supremacia do ius cogens, já a
definição do seu conteúdo, como vimos, é polémica, até porque é dinâmico. Contudo,
aí podemos incluir as normas consuetudinárias e convencionais sobre Direitos do
Homem e os princípios constitucionais da Carta das Nações Unidas, o costume
internacional geral como, por exemplo, sobre a pirataria, a tipificação de crimes
internacionais, entre outros.
99
Decorre da jurisprudência do TJCE o primado de todo o Direito
comunitário sobre o todo o Direito interno como condição existencial do próprio
ordenamento comunitário. Contudo, esta formulação causa alguns arrepios por
submeter as Constituições a um Direito supranacional que poderia ferir o núcleo duro
dos direitos fundamentais ou organização dos estados, conduzindo a posições
defensivas que consideram que o Direito constitucional prima nestas matérias 51.
Parece-nos, nesta fase, excessivas essas posições pois não só os textos originários não
reduzem o âmbito dos direitos fundamentais como reproduzem a vontade dos Estados
que os produziram e ratificaram, num gesto de limitação e entrega de soberania. Por
outro lado, as últimas revisões constitucionais procuraram resolver esta questão,
nomeadamente com a sujeição do Direito comunitário ao respeito dos princípios
fundamentais de um Estado de Direito democrático.
c. No Direito interno
i. Entre fontes de origem interna
51
M.L. Duarte. Jurisprudência dos tribunais constitucionais alemão e italiano.
100
Já no que respeita o costume e a lei decorre do que acima defendemos e da
autonomia do costume a paridade entre costume e lei. Assim, uma lei posterior pode
afastar um costume, assim como um costume, por via do desuso, pode afastar a
aplicação de uma lei anterior.
Outro problema que se coloca, prende-se com a relação entre actos legislativos
pois, como podemos observar existem várias categorias. Sem dúvida é, contudo, fácil
colocar no cimo da pirâmide a lei constitucional.
Por outro lado, há que salientar a primazia funcional das leis de valor
reforçado sobre as leis ordinárias comuns, na medida em que não podem ser
afastadas por leis posteriores que não tenham a mesma função (cf. artigos 280.º n.º2 a)
e 281.º n.º 1 b) CRP). Pense-se nas leis orgânicas. Ou pense-se, ainda no facto de um
decreto-lei publicado no uso de uma autorização não poder ir contra a lei de
autorização legislativa, ou de um decreto-lei de desenvolvimento não poder contrariar
a lei de bases que desenvolve. Ou na lei das grandes opções do plano e na lei de
enquadramento do Orçamento que devem ser respeitadas pela lei de Orçamento
(artigos 105.º n.º2 e 106.º n.º1 CRP); assim como o Orçamento deve ser respeitado, no
101
ano económico a que diz respeito, por leis posteriores. Ou os Estatutos das regiões
autónomas que devem ser respeitados, mesmo por diplomas da Assembleia da
República (artigos 280.º n.º2 b) e c) e 281.º n.º1 c) e d) CRP).
102
IV. A Aplicação das Regras
1. Introdução
103
interpretação, ou seja de determinação do sentido das normas, o que, por vezes, é
suficiente para ultrapassar situações em que parece haver demasiadas soluções
(similares ou mesmo contraditórias) ou nenhuma. Neste último caso, o caminho passa
por um processo de integração de lacunas já que nenhum problema pode ficar sem
resposta, até por questões de justiça, estabilidade social e segurança jurídica.
Apurado o sentido das normas podemos identificar aquela que melhor se adeqúa
ao caso concreto. Contudo, por vezes, ainda assim temos uma concorrência de normas
que parecem habilitadas a resolver a situação em análise. Os critérios de competência,
de especialidade e hierárquico acima referidos podem resolver o problema mas a
resposta pode também passar por uma delimitação espacio-temporal da norma. A
interpretação, a integração de lacunas e a aplicação no espaço e no tempo são, então,
os problemas que nos vão ocupar nas próximas páginas.
2. Interpretação
a. Considerações introdutórias
104
Em qualquer uma das acepções, a interpretação jurídica é porventura uma das
mais nobres, delicadas e complicadas tarefas no mundo do Direito, se bem que se
observarmos os media aparentemente está ao alcance de todos. Parece que basta saber
ler para se poder alcançar o sentido das normas e que há normas tão claras que não
necessitam de qualquer trabalho interpretativo. Contudo, a interpretação jurídica
difere da interpretação histórica ou literária pois, como vimos, é activa e teleológica,
ou seja, serve para ser aplicada, na prática, para resolução de conflitos. Mais, como se
assume como um acto de poder destinado a regular coercivamente as relações sociais
não pode ser deixada ao livre arbítrio sob pena de pôr em causa a própria
sobrevivência e segurança do colectivo. Por outro lado, a interpretação jurídica
implica a superação de contradições e de lacunas. Assim, mesmo a norma mais clara
aos olhos do leigo pode, a olhos mais atentos ou treinados, levantar problemas.
Por outro lado, a interpretação não se esgota na análise da letra nem numa
operação mágica e matemática pois pressupõe uma dimensão valorativa a dois níveis
nem sempre facilmente conciliáveis. Em primeiro lugar, como vimos, por trás da
unidade e sistematicidade da ordem jurídica existe uma espinha dorsal de princípios e
valores pois nenhuma ordem jurídica, enquanto ordem social e cultural, pode ser
neutra. Em segundo lugar, o próprio intérprete também ele não é neutro (em termos
políticos, económicos, sociais, culturais, religiosos ou morais) e parte de uma sua
precompreensão do Direito, repercutindo-a no sentido que procura e retira da norma.
105
2. A hetero-interpretação, ou seja a interpretação feita por agentes
diferentes do autor da norma, desde órgãos políticos, legislativos, judiciais,
administrativos, públicos ou privados até ao jurista e ao cidadão comum.
Nesta matéria, atente-se, ainda, ao artigo 112.º n.º 6 CRP que estipula que
a hetero-interpretação administrativa não tem eficácia externa, ou seja, não
vincula os particulares apenas valendo internamente.
106
2. Objectivista em que se assume a norma como uma realidade autónoma do
seu criador e aplicador e que, por isso, tem um significado próprio (mens
legis).
107
como resulta da primeira parte do n.º 1 do artigo 9.º CC. Por outras palavras, a letra
serve de ponto de partida necessário mas não é suficiente para a procura do
“pensamento legislativo”, devendo, portanto, ser conjugada com outros elementos, em
especial, sistemático, histórico e teleológico (artigo 9.º n.º 1 in fine CC), de forma a
lhe conferir um sentido útil e actual.
Por outro lado, é preciso não esquecer que a redacção normativa recorre com
alguma frequência não apenas a termos técnicos com sentidos diversos do comum
(entre outros, roubo, arrendamento, prédio, pronúncia, voto validamente expresso)
mas também polissémicos (recorde-se os termos direito ou lei) e, igualmente, a
cláusulas gerais e a conceitos indeterminados (designadamente, ordem pública,
motivos de força maior, qualidade de vida, bom pai de família) com contornos por
vezes vagos, cuja margem interpretativa relativamente elástica proporciona, ao
intérprete e ao aplicador, uma margem de livre apreciação e mesmo de criação, o que,
no entanto, confere ao Direito maior plasticidade e capacidade adaptativa em termos
temporais e materiais. “Em suma, a aplicação da lei pode ser uma mera subsunção,
mas em regra exige um espaço criativo do aplicador”.53
Resumindo, “a lei (…) está expressa em palavras escritas, mas essas palavras
têm por trás de si um espírito, uma alma, e só quando a lei é vista no conjunto destes
dois aspectos é que pode ser integralmente conhecida.””(…) Em muitos casos é
preciso sacrificar a letra para respeitar o espírito, porque só assim se cumpre
53
Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.
108
verdadeiramente a lei. (…) O decisivo é verdadeiramente o elemento espiritual, a
voluntas legis.”54
De acordo com o artigo 9.º n.º 1 CC, o intérprete deve ter “sobretudo em
conta a unidade do sistema jurídico”, ou seja, a norma não deve ser interpretada
isoladamente mas como uma peça de um puzzle, construído em torno de determinados
princípios e valores. Por exemplo, quando ao artigo 103.º n.º 2 da CRP impõe a
definição por lei em matéria de incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos
contribuintes, está a referir-se a lei em sentido formal pois é preciso atender ao artigo
165.º n.º 1 i) CRP.
54
Inocêncio Galvão Telles.
55
Numa interpretação declarativa restritiva, o artigo 9.º n.º 1 CC apenas se refere à occasio legis mas
numa interpretação declarativa lata, que nos parece mais correcta, abarca já a consideração de todos os
elementos históricos.
109
iv. Elemento teleológico ou racional
Imagine-se, por exemplo, uma disposição que impõe o uso de trela para os
cães quando são trazidos à rua, sob pena de coima. O objectivo é não apenas a
protecção do animal mas também evitar que este cause danos em terceiros e no seu
património. Deverá então ser autuado o dono que traz o cão preso por uma corda ou
numa caixa apropriada ou ao colo o seu cachorro recém nascido ou que tem um cão
grande livre no seu jardim particular murado ou que o passeia na rua com uma trela de
40 metros?56
c. Tipos de interpretação
i. Interpretação declarativa
110
ser interpretada num sentido mais amplo de Direito) ou mais estrito (interpretação
declarativa restrita – nomeadamente, no artigo 103.º n.º 2 da CRP, lei deve ser
interpretada como lei em sentido formal) ou coincidir plenamente com o espírito
(interpretação declarativa média).
Também neste caso, o sentido literal e real não coincidem mas, aqui, a letra
da lei foi para além do espírito, ou seja, disse demasiado. Assim, poderá caber ao
intérprete o papel de distinguir aquilo que o legislador não distinguiu. Imagine-se a
situação do cão com uma trela de 40 metros ou o facto de se encontrar num jardim
privado murado.
57
M.L. Duarte.
58
Esta posição era, aliás, mais clara no Código Penal anterior. O Código penal actual não proíbe
expressamente a interpretação extensiva.
111
iv. Interpretação correctiva
v. Interpretação ab-rogante
59
Oliveira Ascensão.
60
M.L. Duarte.
61
M. Rebelo de Sousa e Sofia Galvão apenas defendem a possibilidade de uma interpretação ab-
rogante por razões lógicas e sempre a título muito excepcional.
112
vi. Interpretação enunciativa
No entanto, refira-se que este processo de inferência lógica deve ser rodeado de
algumas cautelas com o intuito de evitar conclusões abusivas que podem mesmo
colocar em causa a separação de poderes.
3. Integração de lacunas
62
Por esta razão, Oliveira Ascensão autonomiza a interpretação enunciativa dos outros tipos de
interpretação e também da integração de lacunas pois na interpretação a regra está expressa nas fontes,
na interpretação enunciativa a regra está implícita e na integração não se encontra prevista nem
expressa nem implicitamente.
113
a. Integração e interpretação
114
Direito (e que não necessitam, portanto, de serem integradas/resolvidas juridicamente
por não serem lacunas em sentido estrito), uma vez que são do âmbito e solucionadas
por outras ordens normativas como a moral, a religiosa ou a do trato social. Assim,
por exemplo, não será lacuna a ausência de regulamentação relativa às formas de
saudação ou de indumentária nos casamentos.
115
c. Dever de integração
116
d. Integração intra-sistemática
i. Costume
ii. Analogia
117
iia. Analogia legis
Os n.º 1 e 2 do artigo 10.º prevêem expressamente o recurso à analogia legis
que decorre da aplicação de uma norma existente para a resolução de casos
análogos, sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da
regulamentação do caso legalmente previsto. Contudo, refira-se que mais do que
uma mera comparação das situações de facto é preciso comparar as qualificações
jurídicas subjacentes, ou seja, há que atender à ratio legis por trás da norma existente
e apurar se esta também é válida para o caso omisso. Por outras palavras, é necessário
apurar se existe uma equivalência jurídica na essência do caso a regular e do caso
regulado.
66
Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão reconduzem a analogia iuris à norma que o intérprete
criaria (artigo 10.º n.º 3 CC).
118
Nas normas penais positivas (cf. princípio da legalidade/tipicidade –
artigos 29.º n.º 1, 3 e 4 CRP e 1.º n.º 3 CP)67
No Direito fiscal (princípio da legalidade e direito de resistência – artigo
103.º n.º 2 e 3 CRP)
Nas normas excepcionais (artigo 11.º CC)
Nas normas exaustivas (numerus clausus, ou seja normas fechadas que não
contêm uma lista exemplificativa de situações- por exemplo, os artigos
1306 n.º 1 CC ou 1601.º e 1602.º CC)68
e. Integração extra-sistemática
67
É possível a aplicação de analogia nas normas penais negativas como as relativas a causas de
exclusão, de escusa ou de justificação (ou seja, portanto, "favoráveis" ao agente).
68
Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão não excluem a possibilidade do recurso à analogia legis.
69
Inocêncio Galvão Telles encontra aqui um argumento a favor do Direito natural enquanto elemento
integrador de lacunas.
119
i. Regulação a posteriori.
Detectada a lacuna, o julgador pode requerer ao legislador que regule
aquela situação, de forma a se resolver o caso concreto e outros potenciais. Esta
solução encontra, contudo, grandes dificuldades não apenas devido às regras de
aplicação da lei no tempo que oportunamente iremos estudar mas, também, devido à
pressão do poder judicial sobre o legislativo, do caso concreto sobre regras que se
querem gerais e abstractas e, esquece, que, na prática, o legislador nem sempre tem a
agilidade necessária para o fazer. Por outro lado, ao legislar-se por e simplesmente a
lacuna deixa de existir.
ii. Discricionariedade
A lei reconhece e confere, em certos casos, até por uma questão prática e de
eficiência, uma certa margem de liberdade de manobra às entidades
administrativas que, assim, podem tomar decisões adequadas à prossecução do
interesse público no caso concreto. Contudo, tal previsão acaba por estabelecer a
inexistência de lacunas pois estas foram previstas e assim prevenidas legalmente.
iii. Equidade
A equidade, como atrás referimos, surge como a justiça do caso concreto. No
entanto, como vimos, a sua aplicação enquanto elemento integrador autónomo de
lacunas não é aceite, como resulta dos artigos 4.º e 10.º CC, até porque não
comporta, em si, uma solução normativa.
4. Aplicação no tempo
a. Considerações introdutórias
Dizemos que é uma visão muito simplista pois já sabemos que a abstracção é
apenas tendencial. Assim, um diploma pode ter, explícita ou implicitamente, uma
120
intenção de se aplicar a situações passadas. Imagine-se, por exemplo, um diploma
sobre o vencimento dos cadetes em que se dispõe um ajustamento salarial a partir da
data de admissão nas Academias. Há uma aplicação retroactiva.
Por outro lado, sabemos também que o Direito é dinâmico, no sentido em que
estão sempre a surgir novas regras e alterações às regras anteriores, num fenómeno
que actualmente toma mesmo proporções avassaladoras. Basta pensar em matéria de
legislação fiscal ou mesmo na Constituição que deveria, pela sua natureza e função,
ter um carácter mais estável e que já foi objecto de várias revisões e tentativas de
revisão! Além disso, sabemos ainda que, em caso de igualdade hierárquica e de não
existir um critério de especialidade subjacente, Direito novo revoga Direito antigo não
importando, genericamente, a repristinação.
121
agora pode avançar com o projecto. Contudo, neste momento, toda a zona
da ria Formosa é reserva natural protegida.
Como saber, então, nestes casos de sucessão temporal, qual a lei aplicável? A
lei antiga ou a lei nova? Encontraremos no sistema jurídico um caminho que nos
revele a melhor resposta para resolver estes conflitos intertemporais?
b. Direito transitório
Por fim, refira-se que, regra geral, o Direito transitório mais não representa do
que uma aplicação, pelo legislador, dos critérios gerais de forma a acautelar situações
122
que poderiam levantar dúvidas sensíveis. Por outras palavras, não se pense, que a
solução dada pelo legislador é obrigatoriamente excepcional.
123
sentença passada em julgado, por transacção, ainda não homologada, ou
por actos de natureza análoga” (artigo 13.º n.º 1 CC).
Retroactividade ordinária (ou de 4.º grau): aplica-se a lei nova ao
passado mas ressalvam-se “os efeitos já produzidos pelos factos que a lei
se destina a regular” (artigo 12.º n.º 1 in fine CC).
124
fine pois depende de decisão do Tribunal Constitucional e, portanto,
pressupõe uma ponderação dos valores e interesses em causa. Por fim,
mais uma nota: num sistema em que a retroactividade de uma lei
inconstitucional é limitada pelos casos julgados, como defender que
qualquer outra lei retroactiva não esteja da mesma forma limitada?
O n.º 2, por seu turno, também ele se divide em duas partes, diferenciando
duas situações:
125
a primeira parte refere-se às condições de validade substancial (por
exemplo, direitos e obrigações do arrendatário), ou formal (por exemplo,
forma do contrato de arrendamento) de quaisquer actos 73 ou efeitos. Nestas
situações, apenas em caso de dúvida, dever-se-á aplicar a lei antiga (lei
em vigor à data dos factos), numa clara extensão da sua vigência por
razões de certeza. Fala-se em sobrevigência ou ultractividade da lei antiga.
Contudo, trata-se mais uma vez de uma presunção ilidível (“entende-se”),
ou seja, esta solução pode ser afastada em caso de prova em contrário.
No que respeita o conteúdo (ou mais correctamente, os efeitos) de certas
relações jurídicas que subsistam à data da entrada em vigor da lei
nova, presume-se, até prova em contrário (“entender-se-á”), que se
aplica a lei nova abstraindo-se dos factos que lhes deram origem. Por
outras palavras, é preciso determinar e olhar primeiro para o facto de
origem da relação jurídica para saber se é possível a sua abstracção. Se não
o for, então não se aplica a lei nova mas a lei antiga aos efeitos pendentes.
Clarifiquemos esta ideia através de exemplos. Uma lei sobre a obrigação
de indemnizar não pode abstrair dos factos que estão na base da
responsabilidade. Portanto, a nova lei só se poderá aplicar aos factos
novos, ou seja aos factos que aconteceram depois da entrada em vigor da
nova lei. Aos factos anteriores e efeitos que subsistam aplica-se, desta
feita, a lei antiga. Já uma lei sobre as relações entre proprietário e
inquilinos pode não ter em conta os factos que estiveram na origem dessa
relação e aos contratos pendentes e futuros aplicar-se-á a lei nova.
Resumindo, a ideia subjacente ao artigo 12.º n.º 2 é que cabe à lei antiga
regular os actos passados e os efeitos que lhe estão intimamente ligados. À lei
nova cabe a regulação dos factos novos e dos efeitos que possam ser divorciados
da sua origem. Tudo depende, portanto, da interpretação da lei nova para se apurar se
esta regula actos passados e se liga ou não os efeitos aos factos originários.
73
Preferimos actos à expressão “factos” empregue no artigo 12.º n.º 1 CC pois, em termos estritos, um
facto não pode ser inválido pois não depende da vontade (pense-se, num terramoto).
74
Cf. Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão e Oliveira Ascensão.
126
Estados pessoais: aplica-se a lei vigente no momento da sua constituição
(lei antiga) quanto à sua constituição e a lei vigente no momento da sua
aplicação (lei nova) quanto ao seu conteúdo.
Negócios jurídicos: aplica-se a lei em vigor no momento da sua
celebração (lei antiga).
Obrigações: aplica-se a lei em vigor no momento da celebração do
contrato a este e aos efeitos a ele intimamente ligados (lei antiga). Aplica-
se a lei vigente no momento da aplicação quando os efeitos que se separem
do acto originário (lei nova).
Direitos reais: aplica-se a lei vigente no momento da constituição (lei
antiga) no que se refere à sua existência, validade e objecto mas aplica-se a
lei vigente no momento da aplicação (lei nova) quanto ao conteúdo.
Direito da família: aplica-se a lei vigente no momento da constituição (lei
antiga) no que se refere à existência, validade, objecto e conteúdo ligado à
constituição do estado de família mas aplica-se a lei vigente no momento
da aplicação (lei nova) quanto ao conteúdo autonomizado da constituição
do estado.
Sucessão por morte: quanto à forma do testamento aplica-se a lei vigente
no momento da sua elaboração (lei antiga) e quanto à sucessão, por
interpretação extensiva (visto a morte ser um facto e não um acto jurídico),
a lei vigente no momento da morte (lei antiga).
d. Critérios especiais
127
No Direito penal, atendendo à sua delicadeza por interferir com direitos
fundamentais, é preciso ter em consideração os já referidos artigos 29.º CRP e 2.º CP.
Da sua conjugação resulta a proibição da retroactividade, salvo no caso da lei nova
ser mais favorável ao arguido do que a antiga. Neste caso aceita-se a
retroactividade extrema, ou seja, aceita-se que se ponha em causa mesmo o caso
julgado. Por outras palavras, aplica-se, em matéria penal, a lei vigente no momento da
prática do facto penal, salvo se o regime da lei posterior for mais favorável. Entende-
se por momento da prática do facto, aquele em que o agente actuou, ou no caso de
omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento da concretização do
resultado (artigo 3.º CP).
ii. Prazos
A solução encontrada depende de a nova lei fixar um prazo mais curto ou mais
longo do que a lei antiga. Vejamos.
O n.º 1 do artigo 297.º refere-se à fixação de um prazo mais curto pela lei
nova fixando um critério geral e uma excepção. Assim, a lei nova passa a aplicar-se
aos prazos em curso mas o prazo só é contado a partir da entrada em vigor da nova
lei. Contudo, ressalvam-se as situações em que, de acordo com a lei antiga, falte
menos tempo para o prazo se completar. Ou seja, nestes casos não se aplica a lei nova
mas a lei antiga.
128
completar o prazo. Ora, se aplicássemos ainda a lei antiga já só faltariam 2 anos (5
anos do prazo menos os 3 já decorridos) para se completar o prazo e, portanto, menos
tempo do que se aplicarmos a lei nova. Deve então funcionar a excepção do artigo
297.º n.º 1 e continuar a aplicar-se a lei antiga.
O n.º2 do artigo 297.º vem, por seu turno, estabelecer o regime aplicável
quando a lei nova prevê um prazo mais longo do que a lei antiga. Também aqui se
aplica a lei nova mas, ao contrário do caso anterior, tem-se em atenção o tempo
entretanto decorrido e não se prevê nenhuma excepção.
Vejamos mais um exemplo. Imaginemos que a lei nova vem alterar um prazo
previsto na lei antiga de 5 para 10 anos. Imaginemos que já decorreram 3 anos à data
de entrada em vigor da lei nova. Ao aplicarmos a lei nova, como prevê o artigo 297.º
n.º 2, o prazo passa a ser de 10 anos e não de 5 mas, como se atende ao tempo
decorrido até à entrada em vigor da nova lei, faltariam 7 anos (10 anos do novo prazo
menos os 3 que já tinham passado) para completar o prazo.
O artigo 13.º CC vem estabelecer mais uma solução especial para o caso das
leis interpretativas. Contudo, antes de avançarmos, temos de tentar definir o que se
entende por lei interpretativa. Ora, no fundo, o que está aqui em causa é a
problemática da interpretação autêntica. Assim, a lei interpretativa deve, à luz do
que referimos em sede anterior:
Ser uma interpretação normativa, ou seja, veiculada por uma fonte de
Direito75
Ter explícita ou tacitamente o objectivo de interpretar a lei em vigor, ou
seja, não pode ser inovadora (para as leis inovadoras aplica-se, salvo
critério especial, o artigo 12.º CC)
Não ser hierarquicamente inferior à lei que vem interpretar
Ser posterior à lei interpretada
75
Preferimos aqui a expressão mais ampla de Oliveira Ascensão (“interpretação normativa”), contra a
opção mais restritiva de Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão de acto legislativo por aquela atender
à multiplicidade de fontes de Direito.
129
Quanto ao regime aplicável, resulta do n.º 1 do artigo 13.º uma
retroactividade de 3.º grau: a lei interpretativa é retroactiva porque se integra na lei
interpretada, fazendo, portanto, parte dela. Isto significa que a lei interpretada produz
efeitos nos moldes que resultam da lei interpretativa a partir do momento da sua (da
lei interpretada, entenda-se) entrada em vigor. Contudo, ressalvam-se os efeitos já
produzidos:
pelo cumprimento da obrigação
por sentença transitada em julgado
por transacção mesmo se não homologada (v. acordo judicial ou
extrajudicial entre as partes)
por actos de natureza análoga aos anteriormente referidos (por exemplo, a
compensação nos termos do artigo 847.º CC).
e. Método de resolução
Quando deparados com uma sucessão temporal de leis como resolver então, na
prática, o problema. Que caminho tomar, atendendo às várias situações acima
analisadas? A solução passa, na verdade, por avançar por passos. Senão vejamos.
130
Em primeiro lugar, há que apurar se:
existe Direito transitório para resolver a questão, caso em que se aplica a
solução concretamente estabelecida;
estamos no âmbito do regime próprio de um determinado ramo do Direito,
caso em que se aplica esse regime. Recorde-se o Direito penal e o Direito
processual;
estamos no caso de uma lei sobre prazos, caso em que se aplica o artigo
297.º CC;
estamos no caso de uma lei interpretativa, caso em que se aplica o artigo
13.º CC.
Se a lei nova nada disser, então aplica-se o n.º 2 do artigo 12.º. Neste caso é
preciso indagar não só se estamos no âmbito da primeira ou da segunda parte do
n.º 2, como se as presunções estabelecidas em ambas as partes não se encontram
afastadas por prova em contrário.
No caso de estarmos no âmbito da 2.ª parte, temos que começar por apurar se
a origem do facto é ou não relevante para a continuidade da relação jurídica e se
está com ela intimamente ligada. Se não for, aplica-se a lei nova; se for, aplica-se
a lei antiga.
131
Por outro lado, a lei nova pode estipular, directa ou indirectamente, a sua
aplicação retroactiva: Neste caso, aplica-se o n.º 1 do artigo 12.º. Ainda assim, é
preciso ter em conta duas situações.
A lei nova considera-se aplicável aos factos passados, afastando a
presunção da 2.ª parte do n.º 1. A retroactividade é, no entanto, limitada
pelo caso julgado.
A lei nova não afasta a presunção e ficam ao seu abrigo os efeitos a
produzir e ao abrigo da lei antiga os efeitos já produzidos pelos factos que
a lei se destina a regular.
5. Aplicação no espaço
a. Territorialidade. A pretensa aplicação
132
O Direito não se reduz ao Direito estadual. Basta recordar o Direito
internacional ou o Direito comunitário ou o Direito infra-estadual.
Há situações excepcionais em que o Direito estadual não se aplica no
interior das fronteiras nacionais. Pense-se nas embaixadas, nas bases
militares estrangeiras sediadas no território nacional, nas zonas
desmilitarizadas ou sob alçada internacional, nas zonas francas.
Há situações em que o Direito nacional (estadual) se aplica no estrangeiro.
Há situações em que o Direito estrangeiro se aplica no território nacional.
O Direito estrangeiro pode ser aplicado em território nacional apenas
quando e como o Direito nacional o admitir. Assim, a sua recepção pode
ser formal (o Direito estrangeiro é recebido enquanto tal e com o valor que
lhe era atribuído no ordenamento de origem) ou material (a aplicação do
Direito estrangeiro passa pelo crivo interpretativo e valorativo do
ordenamento receptor).
76
Do Direito porque, em primeiro lugar, em sentido mais amplo, é preciso saber quais os ordenamentos
jurídicos em jogo e, para além do mais, como já sabemos, a lei não é a única fonte de Direito (âmbito
de eficácia). Da norma porque, depois, é preciso apurar dentro dos ordenamentos em jogo qual a norma
aplicável (âmbito de competência).
133
b. O Direito internacional privado
i. Regulamentação material
134
ii. Regulamentação conflitual
Neste caso, a solução não passa por uma solução material mas por uma
solução formal em que se procura encontrar a resposta ao problema num dos
ordenamentos que esteja em contacto com a situação plurilocalizada. Para tal recorre-
se às chamadas normas de conflito (como aquelas que temos no Código Civil entre
os atigos 25.º e 65.º e que são preferencialmente utilizadas em Portugal), que são
normas remissivas, de conexão (estabelecimento de um elo de ligação entre a situação
da vida e a ordem jurídica designada) e formais (veja-se o artigo 23.º n.º 1 CC que
estabelece que “a lei estrangeira é interpretada dentro do sistema a que pertence e de
acordo com as regras interpretativas nele fixadas”). Trata-se, no fundo, de uma
forma de regulamentação indirecta que permite dar título de vigência ao Direito
estrangeiro dentro do território nacional.
Por fim, refira-se que muitos acusam a solução conflitual de ser demasiado
formal e cega aos resultados por se remeter para uma ordem jurídica que pode ter
normas com conteúdos chocantes para o nosso sistema, como por exemplo excluir a
legítima, aceitar casamentos homossexuais ou promover violações flagrantes a um
núcleo fundamental de direitos incomprimíveis. No entanto, também o legislador
português arranjou mecanismos de ultrapassar este formalismo excessivo,
nomeadamente, com a salvaguarda da ordem pública internacional (artigo 22.º CC). O
formalismo também é mitigado pelo princípio de favor negotii expresso, por exemplo,
no artigo 19.º CC (ou seja, o legislador apreciando as normas materiais dos
ordenamentos em contacto com o caso e sensível ao resultado da aplicação da lei
135
considerada inicialmente competente procura, em determinadas condições, a solução
que possa salvar a validade do negócio celebrado).
No Código Penal, nos artigos 4.º a 7.º, o legislador procura definir o âmbito
de aplicação da lei penal portuguesa, adoptando o método de circunscrever as
situações em que se aplica ou não se aplica o Direito português.
Assim, é preciso distinguir entre o facto ter sido praticado dentro ou fora do
espaço nacional. No caso de ser praticado em território nacional (incluindo a bordo de
navios ou aeronaves portugueses), é aplicável a lei portuguesa, salvo convenção
internacional em contrário (artigo 4.º CP), independentemente da nacionalidade do
agente.
No caso do facto ter sido praticado fora do território português, a nossa lei
ainda se aplica a determinados crimes que envolvam interesses nacionais (artigo 5.º
n.º 1 a) CP); a determinados crimes, na condição do agente ser encontrado em
Portugal e não poder ser extraditado (artigo 5.º n.º 1 b) CP); a factos cometidos por
portugueses, ou por estrangeiros contra portugueses, quando se cumulem três
condições: (1) os agentes serem encontrados em Portugal, (2) os factos serem
puníveis pela legislação do lugar em que tenham sido praticados, salvo no caso de aí
não se exercer poder punitivo e (3) os factos constituírem crime que admita extradição
e esta não possa ser concedida (artigo 5.º n.º 1 c) CP); a factos cometidos contra
portugueses por portugueses que residiam habitualmente em Portugal ao tempo da sua
prática e aqui tenham sido encontrados (artigo 5.º n.º 1 d) CP); a factos que o Estado
português se tenha obrigado a julgar por convenção internacional (artigo 5.º n.º 2 CP).
136
concretamente mais favorável ao agente, havendo conversão da pena (artigo 6.º n.º 2 e
3 CP).
Por fim, entende-se, no artigo 7.º CP, como lugar da prática do facto tanto
aquele em que, total ou parcialmente, o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria
ter actuado, como aquele em que se concretiza o resultado da sua actuação.
d. Direito supra-estadual
e. Direito infra-estadual
V. Fins do Direito
1. Considerações introdutórias
137
Contudo, esta universalidade é meramente formal pois na prática, quer no tempo,
quer no espaço, não apenas varia o seu conteúdo e as formas de os alcançar mas
também a sua hierarquização. Assim, por exemplo, face à iminente ameaça terrorista,
em muitos Estados tem-se vindo a colocar a segurança no topo dos fins do Estado,
mesmo que isto signifique restrições em matéria de direitos ou de bem-estar. Também
a concepção de bem-estar varia e inclui, nomeadamente, hoje em dia, em Portugal,
uma vertente económica, social, cultural e ambiental cujo conteúdo depende
designadamente da conjuntura nacional e internacional, da ideologia dominante, da
cor do governo ou da proximidade de eleições.
2. Ordem Social
A segurança tem, contudo, várias facetas. Assim ela pode ser interna ou
externa.
138
esquecidos e outras vezes frequentemente alterados. A segurança jurídica é
ainda reforçada pelos artigos 6.º, 8.º n.º 1 e 2, 9.º e 10.º e 16.º do CC.
3. Justiça
a. Polissemia e complexidade
139
Igualdade em sentido material: tratamento igual de iguais e
desigual de desiguais. Ou seja, justiça distributiva ou geométrica em
que se deve atender ao mérito ou ao desmérito das pessoas
diferenciando, em consonância, o tratamento. Aliás, a procura desta
igualdade material traduz-se não apenas no não agravamento das
desigualdades mas também na sua correcção, podendo até passar por
medidas de discriminação positiva.
b. Justiça e Segurança
140
quando se estabelece o deferimento ou indeferimento tácito no caso de
ausência ou demora de resposta da administração;
quando se reconhecem direitos adquiridos mesmo no caso de contrariarem
interesses gerais. Pense-se nos direitos de construção conseguidos ao
abrigo de legislação que já não está em vigor;
quando se estabelece o regime da prescrição de direitos (por exemplo,
direito de reclamação ou de indemnização) ou de procedimentos penais
(por exemplo, relativamente a crimes cometidos há muitos anos).
141
c. A problemática do Direito injusto. Direito Natural e Direito Positivo.
Contudo, apesar da letra da lei, não nos parece que o legislador tenha querido
afastar a possibilidade de insurreição face a normas que choquem com o núcleo
essencial do Direito natural pois é preciso ter em atenção o espírito do nosso
ordenamento jurídico (cf. artigos 9.º n.º 1 e 10.º n.º 3 CC) baseado na dignidade da
pessoa humana (cf. artigo 1.º CRP). Aliás, atente-se, também, ao artigo 29.º n.º 6 CRP
que prevê a revisão de sentença e indemnização pelos danos sofridos a quem for
“injustamente” (e não ilegalmente) condenado. Assim, defendemos que se deve
garantir a segurança jurídica, salvo se estiverem em causa princípios
77
Neste sentido, Inocêncio Galvão Telles que afirma que o Direito natural não é suficiente e deve ser
completado por um instrumento mais concreto, o Direito positivo, em nome da certeza. Assim,
obediência ao Direito injusto deve ser um aviso à consciência do legislador para que corrija o Direito
mau.
142
axiomáticos incomprimíveis como a vida e a dignidade da pessoa humana. Nesse
caso, temos o direito, senão mesmo o dever de resistir78.
4. Bem Comum
78
Neste sentido, Oliveira Ascensão e Maria Luísa Duarte.
143
QUADROS RECAPITULATIVOS
144
4. RAMOS DE DIREITO
Direito supraestadual: Direito internacional público e Direito Comunitário. Direito
interno: Direito público e Direito privado. Multiplicidade e especialização.
145
QUADRO II – FONTES DE DIREITO
146
4. HIERARQUIA DAS FONTES
a. Primado do ius cogens sobre todas as fontes, sejam elas de origem
internacional, comunitária ou nacional.
b. Primado do Direito internacional geral e comum sobre a Constituição.
c. Paridade teórica entre costume internacional e tratado.
d. Polémica sobre o primado do Direito internacional convencional sobre
todo o Direito interno, em especial sobre as regras constitucionais e legais. Da CRP
parece decorrer o seu valor supralegal mas infraconstitucional.
e. Primado Direito comunitário sobre o Direito interno. Polémica quanto à
relação entre as regras comunitárias e as regras constitucionais, em especial, quanto
ao núcleo duro dos direitos fundamentais.
f. A nível interno, primado da Constituição, apenas limitada por princípios
gerais de Direito decorrentes dos valores incomprimíveis relacionados com a
dignidade da pessoa humana
g. Primazia dos Princípios gerais de Direito sobre a lei e costume.
g. Paridade entre costume, lei e decisões judiciais com força obrigatória
geral.
h. Paridade entre lei e decreto-lei.
i. Primazia dos princípios fundamentais das leis gerais da República
sobre os decretos legislativos regionais.
j. Primazia funcional das leis de valor reforçado sobre as leis ordinárias
comuns.
k. Primazia das leis solenes sobre as leis comuns (actos regulamentares).
147
QUADRO III – A APLICAÇÃO DAS REGRAS
1. INTERPRETAÇÃO
A interpretação visa a delimitação do sentido da norma de forma a identificar
critérios operativos e decisivos para a resolução do caso concreto. Deve ser
objectivista e actualista e, na procura do espírito da lei, ponderar quatro
elementos:
a. o elemento literal
b. o elemento sistemático
c. o elemento histórico
d. o elemento teleológico ou racional
2. INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
Entende-se por lacuna, uma omissão normativa, uma ausência expressa ou
implícita de uma norma relativa a uma situação da vida que deveria ser regulada
e resolvida pelo Direito (e não apenas pela lei). Ora, esta tem de ser ultrapassada
(integrada), atendendo à obrigação de julgar resultante do artigo 8.º n.º 1 CC por
imperativos de justiça e segurança jurídica e social. A solução resulta do artigo 10.º
CC.
148
A integração é precária e pode ser:
a. intra-sistemática (resposta dentro do próprio sistema normativo)
i. analogia legis
ii. analogia iuris
iii. norma que o intérprete criaria (ad hoc)
b. extra-sistemática (resposta fora do próprio sistema normativo)
Contudo, a regulação a posteriori, a discricionariedade e a equidade não são
solução ou porque a lacuna não existe ou porque o critério encontrado não é
normativo.
3. APLICAÇÃO NO TEMPO
a. Princípio geral de proibição da retroactividade
b. Vários graus de retroactividade
149
4. APLICAÇÃO NO ESPAÇO
a. Não exclusividade do Direito estadual
b. existência de situações plurilocalizadas
c. pretensa aplicação do princípio da territorialidade
d. a solução de conflitos espaciais passa pelo Direito internacional privado,
seja por via de soluções materiais, seja por via de soluções formais (normas de
conflito) que podem ser corrigidas atendendo ao conteúdo das normas apuradas.
150
QUADRO IV – FINS DO DIREITO
1. ORDEM SOCIAL
O Direito visa assegurar a segurança não apenas nas relações sociais, através da
polícia e dos tribunais, mas também a segurança do particular face ao Estado. A
segurança depende, em última análise, da segurança jurídica, ou seja, da
estabilidade, continuidade e certeza no e do Direito.
1. JUSTIÇA
a. Polissemia e complexidade da palavra e conceito.
b. Justiça em sentido material:
i. Dar a cada um o que é seu
ii. Igualdade em sentido formal: justiça comutativa, universalidade
dos comandos, generalidade e abstracção das regras jurídicas
iii. Igualdade em sentido material: justiça distributiva, tratamento
igual de iguais e desigual de desiguais
c. Problemática do Direito injusto: garantir a segurança jurídica ou
garantir a Justiça? Garantir a segurança jurídica, salvo se estiverem em causa
princípios axiomáticos incomprimíveis como a vida e a dignidade da pessoa humana.
Nesse caso, temos o direito, senão mesmo o dever de resistir.
2. BEM COMUM
Fim novo que decorre do Estado Social de Direito e que se traduz na garantia de
Bem-Estar económico, social, cultural e ambiental ou seja, na prossecução da
satisfação das necessidades colectivas. Trata-se de um imperativo de Justiça e de um
garante da paz social.
151
CASOS PRÁTICOS
Caso 1
Caso 2
Caso 3
Caso 4
152
Caso 5
Caso 6
Caso 7
Pode:
1) João, com 10 anos, casar?
2) Maria, com 20 anos, casar com o primo Manuel de 21 anos? E com o padrasto?
3) Saúl, com 8 anos, cantar em todas as feiras do país?
4) Inês, com 13 anos, ser modelo?
5) Hugo, com 15 anos arrendar um apartamento?
6) Silvina, surda-muda desde a nascença, com 21 anos, casar?
7) Edilberto, toxicodependente, vender a sua casa?
8) Joaquim, alcoólico inveterado, celebrar um contrato de empreitada?
153
9) Marisa, jogadora compulsiva, vender o seu anel de noivado?
Caso 8
Caso 9
Pode Jonathan Palmer alegar que não sabia que em Portugal se conduz pela direita?
Caso 10
154
Caso 11
Pode Silva, major da GNR, disparar sobre o condutor de um veículo furtado que se
afasta a alta velocidade do local do crime? E se este vier na sua direcção com intenção
de o atropelar?
Caso 12
Pode o cadete Martins recusar a ordem de treinar tiro ao alvo a uma maçã por cima da
cabeça do cadete Borges?
Caso 13
Caso 14
Podem os cadetes recusar-se a pagar um imposto sobre o gasto da sola das botas
criado pelo Governo?
Caso 15
Caso 16
Pode José buzinar à noite para afugentar um larápio que ia assaltar a casa de um
vizinho? E se for para chamar atenção sobre o larápio que vai a fugir pela rua abaixo?
155
Caso 17
Pode Mariana destruir o telemóvel do marido quando o apanha a falar com a amante?
Caso 18
Caso 19
Caso 20
Será costume não punir os condutores que circulam até mais 30 km/h nas auto-
estradas?
156
Caso 21
Caso 22
Caso 23
Caso 24
Imagine que existe uma lei de 1900, ainda não revogada, que estabelece que as
mulheres só podem andar de calças dentro de casa ou para montar a cavalo. Deverão
os agentes de autoridade autuar, hoje em dia, as infractoras?
157
Caso 25
Imagine que existe uma lei que proíbe a degradação ambiental do habitat do lince da
malcata. Imagine, agora, que a espécie foi dada como extinta em 2004. Quid iuris?
Caso 26
Imagine que no Código da Estrada existe uma norma, não excepcionada e sem
paralelo na legislação, que determina: “É proíbido conduzir carro sem carta de
condução.” Pode a polícia autuar, com base apenas neste artigo:
1) o João que tem carta de condução mas que se esqueceu dela em casa.
2) o Abel de 80 anos que ainda não renovou a sua carta de condução.
3) O André de 14 anos que conduz o seu kart do kartódromo de Palmela.
4) A Susana que conduz o carrinho de bébé do seu filho pelas ruas do Porto.
5) O Leandro de 6 anos que se passeia na marina de Vilamoura no seu carro a
pedais.
6) O Xavier de 5 anos que conduz o seu carro telecomandado no largo em frente
ao seu prédio.
7) O Nuno de 15 anos que dá umas voltas na quinta da família no carro do pai.
8) A Miranda que conduz o carro do supermercado na rua para levar as compras
até onde o seu automóvel está estacionado.
9) O Joaquim conduz a sua Suzuki 1100 sem carta de condução.
10) O Francisco conduz o seu camião sem carta de condução.
11) E se constituisse crime andar sem carta, a sua resposta seria a mesma?
Caso 27
Imagine que num mesmo diploma se estabelece no artigo 5.º que os militares devem
entrar e sair fardados das suas unidades e que o artigo 16.º dispõe que os militares
podem entrar e sair da sua unidade em traje civil. Quid iuris?
158
Caso 28
Caso 29
Imagine que João e Maria vivem em união de facto e que se separam ao fim de 10
anos. Poderá Maria exigir uma pensão de alimentos para ela? Qual o regime jurídico
aplicável aos bens que João e Maria foram acumulando tanto isolada como
conjuntamente?
Caso 30
Caso 31
Que lei aplica à sucessão por morte de Angel, cidadão inglês, residente habitualmente
em Portugal? E se ele resolveu deixar em testamento toda a sua fortuna à secretária,
deserdando a esposa fiel e os filhos, sabendo que a lei inglesa não consagra a
legítima?
159
Caso 32
Imagine que foi apanhado a conduzir com 0.7 mg de álcool no sangue. À data do seu
julgamento, a legislação tinha sido alterada e passava a ser considerado crime
conduzir com essa taxa de álcool no sangue? E se a taxa mínima tivesse sido alterada
para 0.8?
Caso 33
Imagine que casou em 2003 sem testemunhas e que em Janeiro de 2004, a lei volta a
exigir a presença de pelo menos duas testemunhas no casamento civil. Será o seu
casamento válido? E se a alteração for sobre os direitos e deveres dos conjuges, por
exemplo, apenas se exigindo agora, respeito mútuo?
Caso 34
Caso 35
Imagine que Adalberto morre em Janeiro deste ano e deixa um testamento em que doa
todos os seus bens à dedicada governanta, não deixando nada à sua megera esposa.
Imagine que em Junho, o CC é alterado, revogando-se a sucessão legitimária. Quando
o caso chega a tribunal em Dezembro, que lei aplica?
Caso 36
Devido à crescente ameaça terrorista, imagine que é aprovada uma disposição legal
que impõe a prisão de qualquer indivíduo muçulmano, independentemente do seu
160
comportamento, nacionalidade, sexo ou idade. Deverá a polícia respeitar esta
disposição?
Caso 37
161
Junho mas, por causa de uma avaria das impressoras da IN-CM, o texto só é
publicado a 23 de Junho. Contudo, por causa de uma greve da função pública, o
Diário da República só é distribuído no dia 1 de Julho.
162
7) E se a lei aplicável, inspirada no sistema anglo-saxónico, previsse a possibilidade
de liberdade total de testar, excluindo a legítima?
Desesperado, Antunes resolve deixar o país e integra o 3.º contingente da GNR para o
Iraque. Muito deprimido e com fortes instintos suicidas, resolve, no meio de um
tiroteio com rebeldes, em Nassíria, sair do seu esconderijo sem colete à prova de balas
nem capacete, acabando por ser morto.
11) Dorinda, viúva de Eusébio, vem também exigir a pensão de viuvez. Terá ela
direito a esta pensão?
Caso 38
163
Furioso, o líder do gang, o temível Covelo, mais conhecido por Coronel Scorpio,
resolve reter em cativeiro Biscaia, até Garção lhe entregar um Porsche 911 RSR.
Mais, fazendo juz à sua terrível fama, Covelo ameaça de morte Biscaia, se Lopes não
lhe conseguir arranjar em 10 dias cinquenta carros equivalentes aos apreendidos. Para
proteger o irmão, Lopes aceita o desafio.
To be continued….
Caso 39
Código de Honra
164
quarto. Não ouvindo nenhuma resposta, arromba a fechadura e descobre o seu
camarada morto por asfixia havia mais de cinco horas.
Um inquérito interno, aponta o cabo Lopes e o soldado Gomes como responsáveis
pelo acto. Estes relatam ao seu advogado Alves que apenas lhe queriam aplicar um
código vermelho por ordem directa do temível mas muito condecorado Coronel
Scorpio. Este código vermelho, não previsto em nenhum Direito militar escrito,
consiste na aplicação de um duro castigo físico aos militares mais fracos, muito
frequente nas unidades de elite destacadas em zonas perigosas.
Alves apurou ainda, através de uma testemunha, o Major Fernandes, que a gota de
água que fizera o Coronel Scorpio ordenar o código vermelho fora o facto de
Malheiro ter criado um comprometedor incidente internacional. Dias antes, Malheiro
teria disparado um tiro para a multidão, ferindo uma criança, quando viu o que
considerou ser uma suspeita movimentação de populares na sua direcção,
envolvendo-se, de seguida, numa luta com Shamir, pai do rapaz atingido, que lhe
partiu o nariz e levou a arma como garantia de que o militar português lhe pagaria os
tratamentos médicos do Shamirzinho.
Caso 40
CSI Amadora
165
da cadete Mulangui dentro de um camião da GNR estacionado fora do perímetro da
Academia.
Intrigados com a descoberta, os dois amigos iniciam uma investigação minuciosa para
apurar o acontecido com a sua camarada e acabam por descobrir um estranho ritual de
iniciação dos alunos PALOP em Portugal, aceite pelas chefias, que consiste no
encapuçamento e desnudamento dos caloiros PALOP em noites de lua cheia. Pelas
feridas defensivas nas mãos de Mulangui, a jovem teria tentado resistir, arranhando o
agressor e sucumbira, acidentalmente, num ataque de asma. Durante os treinos do dia
seguinte, Lopes e Covelo observam arranhões no pescoço de Santos, cadete
moçambicano do 2..º ano. Encostado à parede, confessa o acontecido mas defende a
legalidade do seu comportamento, invocando a tradição militar.
1. Concorda?
2. No rescaldo do caso, que muita polémica gerou a nível nacional com direito a um
especial do Prós e Contras e a um episódio dos Morangos, a Assembleia da
República elabora a Lei n..º 22B/2007, que dispõe:
Artigo 3..º
Praxes
1. É proibida, dentro das instalações das Forças Armadas, a submissão dos
militares a práticas não necessárias à sua boa integração, desempenho e treino
militar.
2. Os responsáveis por comportamentos que violem o estipulado na alínea
anterior respondem, de forma solidária com as respectivas chefias, por uma
indemnização equitativa a pagar aos militares que tenham sido alvo de danos físicos
ou morais permanentes dentro das instituições militares ou, no caso de dano morte,
aos respectivos herdeiros.
Artigo 4..º
Vigência
A indemnização prevista no artigo 3..º n..º 2 aplica-se com efeitos retroactivos a
todos os casos cujos factos não sejam anteriores a 1 de Janeiro de 2007.
166
Quando é que a lei entra em vigor?
Como classifica as normas acima reproduzidas?
Caso 41
Sin City – Amadora
Que lei aplica, num tribunal português, à sucessão de Goldie, com residência habitual
no México e que deixa um apartamento nas Bahamas sabendo que:
a) a norma de conflitos americana remete para a lei da residência habitual e o
sistema de devolução adoptado nos Estados Unidos é de dupla devolução;
167
b) a norma de conflitos mexicana remete para a lei do local do imóvel e o sistema
de devolução adoptado no México é de devolução simples;
c) a norma de conflitos das Bahamas remete para a lei do local do óbito e o seu
sistema de devolução é de remissão material.
A lei W de Dezembro de 1998 apenas previa uma indemnização por danos morais até
ser alterada pela lei Z em Janeiro de 2005 cobrindo igualmente os danos patrimoniais.
Caso 42
Helland
Episódio I
Black Devils é o nome de guerra de um perigoso gang criminoso formado por ex-
militares. Escondidos num ilhéu artificial, alheio à jurisdição de qualquer Estado,
168
fortemente dinamitado e baptizado de Helland, os Black Devils devem aí obedecer a
um conjunto de regras definidas pelo fanático líder-em-chefe Covelo,
designadamente:
- devem dizer uma oração antes e depois de uma missão;
- não devem fumar em locais fechados sob pena de passarem até três dias na solitária;
- Qualquer tentativa de homicídio do líder-em-chefe Covelo, mesmo se for anterior à
existência de Helland, é punida com pena capital.
Caso 43
Floribeta
169
Floribeta, rica em sonhos mas pobre pobre em ouro, despendia o seu tempo em
diálogos com as suas fadinhas e a sonhar com o seu príncipe Fred Fritadeiren de
nacionalidade alemã. Infelizmente para a jovem, Fred, o seu eterno ex-futuro
namorado morreu em sequência das mazelas decorrentes de um atropelamento em
que o jovem gestor se atirou, de forma deliberada, contra um carro para salvar o
amigo Max, deixando um património constituído por um castelo na Áustria e
várias contas no Luxemburgo.
170
Refira-se ainda que o artigo 6..º estabelece que:
Caso 44
O Código d’Avintes
171
d’Avintes, uma espécie de concordata entre o Priorado do Crato e a vila de Avintes
fixando as regras sobre a produção da broa de milho.
Graças às inscrições deixadas em inglês no corpo semi-nu de Sir Iva e aos resultados
medico-legais, concluiu-se que este tinha sido esfaqueado no abdómen por um seu
compatriota, a bordo de um barco com pavilhão holandês atracado em Vila Nova de
Gaia e deixado morrer dentro do museu onde fora encontrado.
1. Poderá o ignóbil assassino de Sir Iva, um monge albino inglês chamado White
Flour, ser julgado em Portugal pelo crime de assassínio?
2. Qual a lei aplicável, num tribunal português, à sucessão de Sir Iva, residente
habitualmente no Porto, constituída pela sua valiosa colecção de livros
deixada num cofre na Suíça e por uma villa a sul de Nápoles, sabendo que:
a. a norma de conflitos inglesa em matéria sucessória remete para a lei do
local dos bens; a Inglaterra tem um sistema de dupla devolução
b. a norma de conflitos suíça em matéria sucessória remete para a lei da
nacionalidade do de cujus, a Suíça tem um sistema de devolução
simples
c. a norma de conflitos italiana em matéria sucessória remete para a lei da
residência habitual; a Itália tem um sistema de referência material
Com a ajuda da neta de Sir Iva, a escultural mas nem por isso menos inteligente
Roose, Robalo de Souselas localiza o Código d’Avintes, um conjunto de três folhas
soltas em avançado estado de deterioração. Ao preparar-se para analisá-lo no seu
laboratório super-equipado com a mais sofisticada tecnologia de restauro, Robalo é
confrontado com uma norma da Lei do Património Cultural de 2001 que estipula:
172
Por seu lado, o Tratado Sobre o Património Cultural que Portugal ratificou em 1997
estipula que:
1. De acordo com o artigo 7.º CP, considera-se que o crime foi cometido tanto no
local em que total ou parcialmente o agente actuou como no local em que o
resultado típico se verificou. Assim, e apesar de Sir Iva ter sido esfaqueado a
bordo de um barco holandês, pode considerar-se que o crime foi cometido em
Portugal pois o historiador acabou por morrer no museu de Avintes.
Concluindo, nos termos do artigo 4.º a), os tribunais portugueses podem julgar
este caso.
A lei inglesa, por sua vez, remete por dupla devolução a solução para a lei do
local dos bens. Assim, para os bens móveis (livros) há que atender à lei suíça
que, por sua vez, remete, por devolução simples para a lei da nacionalidade, a
saber a lei inglesa. Já para os bens imóveis (villa), há que atender à lei italiana
que devolve, por referência material para a lei portuguesa (lei da residência
habitual).
173
A lei portuguesa consagra nos seus artigos 16.º a 18.º CC um sistema de
devolução atípico. Estabelecendo o artigo 16.º, a regra geral, há que começar
por analisar se esta situação não se enquadra nas regras especiais dos artigos
17.º e 18.º CC. Ora, como não existe qualquer remissão para a lei do foro
(portuguesa), está afastado o artigo 18.º, restando-nos o artigo 17.º.
Ora a lei inglesa remete para a lei suíça através de um sistema de dupla
devolução, o que significa que atende não apenas às normas materiais mas
também às normas de conflito e ao sistema de devolução. Por outras palavras,
a lei inglesa aplica a lei que a lei suíça aplicar.
Por sua vez, a lei suíça remete por devolução simples para a lei inglesa. Isto
significa que a lei suíça atende às normas materiais e às normas de conflito
inglesas, ou seja a lei suíça assume que a remissão que a lei inglesa fizer é
material. Por outras palavras, a lei suíça aplica o ordenamento jurídico para o
qual a lei inglesa remeter. Desta forma, a lei suíça aplica-se a si própria
indirectamente e como a lei inglesa aplica o que a lei suíça aplicar, aplica
igualmente a lei suíça. Os requisitos do artigo 17.º n.º 1 encontram-se,
portanto, preenchidos.
174
Desta feita, aplicamos o artigo 17.º n.º 2 e consequentemente o artigo 16.º que
estipula um sistema de referência material. Isto significa que a lei portuguesa
atende apenas às normas materiais da lei inglesa, que aplica.
No que respeita aos imóveis, e não repetindo o que acima foi referido, há que
analisar, em primeiro lugar a possibilidade de aplicação do artigo 18.º por
existir um reenvio para a lei portuguesa. Para esta se considerar competente é
necessário, de acordo com o n.º 1, que L2 (lei inglesa) aplique a lei
portuguesa.
Concluindo, no que respeita os livros aplica-se a lei inglesa mas quanto à villa
aplica-se a lei portuguesa.
175
meramente local. Visto que estamos face a uma espécie de concordata que
relaciona uma ordem religiosa e uma localidade portuguesa e a um documento
antigo relativo ao património cultural e gastronómico luso, parece-nos que o
Código é de interesse nacional.
Para melhor resolver esta questão é necessário chamar à colação não apenas os
elementos histórico e sistemático, mas em especial o elemento teleológico
(ratio legis), ou seja, há que tentar perceber qual a função da norma.
Neste caso, seria ainda defensável uma interpretação extensiva que permitisse
o manuseamento a qualquer especialista reconhecido na actualidade, mesmo
se apenas a nível académico. Ou seja a letra teria ficado aquém do espírito.
176
Em primeiro lugar, o Tratado é anterior à Lei do Património, o que levanta a
questão da sua revogação.
No entanto, note-se que o artigo 7.º CC não é aqui aplicável pois de acordo
com o artigo 8.º n.º 2 CRP o Direito internacional convencional tem valor
supra-legal, ou seja, tem valor hierárquico superior à lei (fonte interna).
177
BIBLIOGRAFIA EM PORTUGUÊS
178
LARENZ, Karl – Metodologia da Ciência do Direito – 2.ª ed., Lisboa, 1989.
LATORRE, Angel – Introdução ao Direito - 5.ª reimpressão, Coimbra, 2002.
MÚRIAS, Pedro - Exercícios de Introdução ao Estudo do Direito – AAFDL,
Lisboa, 2001.
OLIVEIRA ASCENSÃO, José de – O Direito. Introdução e Teoria Geral – 11.ª
ed., Almedina, Coimbra, 2001.
OTERO, Paulo – Lições de Introdução ao Estudo do Direito – Lisboa, Tomo 1.º,
1998, Tomo 2.º, 1999.
RAWLS, John – Uma Teoria da Justiça – 2.ª ed., Lisboa, 2001.
REBELO DE SOUSA, Marcelo e GALVÃO, Sofia - Introdução ao Estudo do
Direito, 5.ª ed., Lex, Lisboa, 2000.
SANTOS JUSTO, A. - Introdução ao Estudo do Direito – Coimbra ed., Coimbra,
2001.
179