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Academia Militar

Introdução ao Estudo do Direito


Fast-Reading
4.ª Edição

Rute Saraiva
Ano lectivo 2009/2010

1
Nota Explicativa

As páginas que se seguem resultam das aulas ministradas na Academia Militar


ao primeiro ano do Curso da Guarda Nacional Republicana (GNR-Armas), no ano
lectivo de 2003/2004, tendo sido posteriormente actualizadas Desta feita, não
pretendem ser um tratado ou um verdadeiro manual de Introdução ao Estudo do
Direito mas antes um conjunto de pistas ordenadas para quem necessita de noções
elementares e de se orientar no complexo mundo do Direito. Aliás, o público alvo não
é o aluno de Direito ou com formação jurídica consolidada mas o aluno com interesse
na matéria. No fundo, pretende-se que seja um livrinho de leitura rápida, fácil, prática
e actualizada, tipo literatura light ou fast-food – daí o subtítulo Fast-Reading- mas ao
mesmo tempo com conteúdo pedagógico-didáctico que incentive um estudo
aprofundado das questões apresentadas e sobretudo o espírito crítico. Assim se
compreende, por um lado, uma linguagem mais oral e a minimização de referências
bibliográficas (apenas em português e com mera indicação do autor sem a indicação
de páginas devido à multiplicidade de edições e fontes utilizadas pelos alunos) e da
contextualização histórico-filosófica de certas problemáticas e, por outro, a introdução
de questões novas com que o Direito actual se depara. Por fim, acrescente-se que a
sistematização adoptada procura ir ao encontro da estrutura do programa de
Introdução ao Estudo do Direito estipulado na Academia Militar embora se reconheça
que se sentiu a necessidade de o transgredir, de quando em vez, de forma a torná-lo
mais aliciante para o aluno e mais prático para a resolução de hipóteses.

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Índice

I. Preliminares
1. Objecto e fim de Introdução ao Estudo do Direito
2. Plano de curso

II. Conceito de Direito


1. Ideia geral do Direito. Considerações introdutórias.
a. O quotidiano e o Direito
b. Polissemia
i. Direito objectivo – Direito natural e Direito positivo
ii. Direito subjectivo
iii. Direito como ciência
2. Direito e ordem social
a. Carácter necessário do Direito
i. Homem como animal associal social. Conflito de interesses
ii. Autonomia na resolução de conflitos
iii. Direito e poder
iiia. Poder político
iiib. O Estado
iv. Sistemas de Direito
b. Direito antropocêntrico?
i. Antropocentrismo
ii. Ecocentrismo
iii. Antropocentrismo mitigado
iv. Ordenamento jurídico português
c. Sujeitos do Direito.
i. Personalidade jurídica.
ii. Capacidade de gozo e de exercício
iii. Pessoas singulares
iv. Pessoas colectivas
v. Outros

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3. Realidades afins e conexas com o Direito
a. Usos
b. Religião
c. Moral
4. Ordem jurídica como ordem normativa
a. Conhecimento do Direito pelo cidadão e pelo julgador
b. Complexidade, unidade e sistematicidade
c. Imperatividade
d. Sanções
i. Sanções jurídicas
ii. Sanções compulsórias
iii. Sanções reconstitutivas
iv. Sanções compensatórias
v. Sanções punitivas
vi. Sanções preventivas
e. Coercibilidade
i. Noção
ii. Tutela preventiva e tutela repressiva
iii. Meios de tutela jurídica. Pública, privada e arbitral.
iv. Tutela pública
iva. Noção e tipos de polícia
ivb. Órgãos judiciais
v. Formas de tutela privada
va. Acção directa
vb. Legítima defesa
vc. Direito de resistência
vd. Estado de necessidade
ve. Direito de retenção
f. Exterioridade
5. Situação jurídica
i. O facto, o acto e negócio jurídicos
ii. Valores negativos
6. Regra jurídica
a. Caracterização

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i. Estrutura
ii. Hipoteticidade
iii. Generalidade
iv. Abstracção
v. Bilateralidade
vi. Imperativo
b. Classificação das regras jurídicas
i. Relação entre normas
ia. Regras principais e derivadas
ib. Regras interpretativas e inovadoras
ic. Regras autónomas e não autónomas
id. Regras primárias e secundárias
ii. Relação com o destinatário da norma
iia. Regras proibitivas, preceptivas e permissivas
iib. Regras injuntivas
iic. Regras dispositivas. Permissivas, interpretativas e supletivas
iii. Âmbito de aplicação material
iiia. Regras gerais, especiais e excepcionais
iiib. Regras comuns e particulares
iiic. Regras universais, nacionais, gerais, regionais e locais
iv. Aplicabilidade das regras
iva. Regras programáticas e preceptivas
v. Relações entre os vários tipos de regras.
7. Ramos de Direito
a. A árvore do Direito
b. Direito supraestadual
i. Direito internacional público
ia. Distinção de Direito internacional privado
ii. Direito comunitário
c. Direito interno
i. Direito público e Direito privado. Distinção
ii. Direito público
iia. Direito constitucional
iib. Direito administrativo

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iic. Direito penal
iid. Direito processual civil
iie. Direito processual penal
iii. Direito privado
iiia. Direito civil: obrigações, reais, família e sucessões
iiib. Direito privado especial: Direito comercial e Direito do
trabalho
iv. Outros
8. Conhecimento científico do Direito
9. Profissões jurídicas

III. Fontes de Direito

1. Noção de Fonte
2. Equidade
3. Fontes de Direito internacional
a. Ius cogens
b. Costume
c. Princípios gerais de Direito
d. Convenções
e. Actos unilaterais
f. Soft Law
g. Jurisprudência
h. Doutrina
4. Fontes de Direito Comunitário
a. Direito primário
b. Direito derivado
i. Regulamentos
ii. Directivas
iii. Decisões
iv. Soft Law
c. Princípios gerais de Direito
d. Costume

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e. Jurisprudência
f. Doutrina
5. Fontes internas
a. Princípios gerais de Direito
b. Lei
c. Costume
i. Noção e características
ii. Costume e Usos
iii. Relação entre lei e costume
d. Actos normativos de particulares
e. Jurisprudência
f. Doutrina
6. A lei, em especial
a. Polissemia
b. Tipos
i. Lei material e lei formal
ii. Lei constitucional e lei ordinária
iii. Leis solenes e leis comuns
iv. Leis de valor reforçado
c. Processo de formação
i. Elaboração
ii. Publicação
iii. Vigência
iv. Cessação da vigência
d. Desvalores do acto legislativo
e. Codificação
i. Noção de Código
ii. Conveniência
iii. Códigos
7. Hierarquia das Fontes
a. Direito internacional e Direito interno
b. Direito comunitário e Direito interno
c. No Direito interno
i. Entre fontes de origem interna

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ii. Entre os vários tipos de actos legislativos

IV. A Aplicação das Regras

1. Introdução
2. Interpretação
a. Considerações introdutórias
b. Elementos e instrumentos interpretativos
i. Elemento literal
ii. Elemento sistemático
iii. Elemento histórico
iv. Elemento teleológico ou racional
c. Tipos de interpretação
i. Interpretação declarativa
ii. Interpretação extensiva
iii. Interpretação restritiva
iv. Interpretação correctiva
v. Interpretação ab-rogante
vi. Interpretação enunciativa
3. Integração de lacunas
a. Integração e interpretação
b. Lacuna. Noção e determinação
c. Dever de integração
d. Integração intra-sistemática
i. Costume
ii. Analogia
iia. Analogia legis
iib. Analogia iuris
iic. Limites ao recurso à analogia
iii. A norma que o intérprete criaria
e. Integração extra-sistemática
i. Regulação a posteriori
ii. Discricionariedade

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iii. Equidade
4. Aplicação no tempo
a. Considerações introdutórias
b. Direito transitório
c. Regra geral de aplicação no tempo. A não retroactividade.
i. Fundamento jurídico da não retroactividade
ii. O artigo 12.º CC
d. Critérios especiais
i. Alguns ramos de Direito
ii. Prazos
iii. Lei interpretativa
e. Método de resolução
5. Aplicação no espaço
a. Territorialidade. A pretensa aplicação
b. O Direito internacional privado
i. Regulamentação material
ii. Regulamentação formal
c. Direito penal, em especial
d. Direito supra-estadual
e. Direito infra-estadual

V. Fins do Direito

1. Considerações introdutórias
2. Ordem Social
3. Justiça
a. Polissemia e complexidade
b. Justiça e Segurança
c. A problemática do Direito injusto. Direito Natural e Direito Positivo.
4. Bem Comum

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QUADROS RECAPITULATIVOS
CASOS PRÁTICOS
BIBLIOGRAFIA EM PORTUGUÊS

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Abreviaturas

 CC – Código Civil
 CNU – Carta das Nações Unidas
 CP – Código Penal
 CPA – Código de Procedimento Administrativo
 CRP – Constituição da República Portuguesa
 CSC – Código das Sociedades Comerciais
 ETIJ – Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça
 TCE – Tratado das Comunidades Europeias
 TJCE – Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias

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I. Preliminares
1. Objecto e fim de Introdução ao Estudo do Direito

Todos os dias somos bombardeados na televisão, nos jornais ou no cinema com


factos da vida jurídica. São os filmes americanos com advogados expeditos, são
processos mediáticos como o da alegada rede pedófila na Casa Pia, o do Apito
Dourado e a discussão na praça pública do segredo de justiça, das escutas, da prisão
preventiva, das relações entre tribunais e entre o poder judicial e o poder político, do
funcionamento da justiça em geral, dos limites ao direito à greve e à liberdade de
manifestação dos militares. A actual mediatização do Direito tem dois efeitos, um
positivo e outro negativo. O positivo traduz-se na democratização do Direito e na
conscencialização da sua importância. O negativo resulta do facto de todos acharem
que o dominam. O Direito acaba, assim, banalizado e deturpado na sua essência,
caindo, depois de séculos, outra vez na rua.

A cadeira de Introdução ao Estudo do Direito tem, desta feita, como primeiro


objectivo fazer compreender aos alunos que o Direito é mais do que saber de cor uma
série de leis e do que ler normas. O Direito é uma ciência social consolidada mas
dinâmica que implica conhecimentos teóricos e práticos elementares para poder ser
correctamente apreendida e aplicada. Assim, esta disciplina pretende munir os alunos
de ferramentas básicas para a compreensão do universo jurídico (e não apenas do
Direito Civil), permitindo-lhes orientar-se e, sobretudo, pensar numa lógica jurídica.
Só desta forma poderão perceber as especificidades do Direito e a sua vivência.

Que matérias então escolher? Na nossa opinião, a escolha deve recair nos aspectos
práticos e teóricos fundamentais que permitam, no seu conjunto, uma compreensão
genérica do funcionamento do universo jurídico e que possibilitem a formação
gradual de um raciocínio jurídico crítico, esperando que tais ensinamentos sejam
frutuosos tanto em termos pessoais como em termos profissionais.

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2. Plano de curso

Como acima salientámos, a estrutura do plano de curso segue, em linhas gerais, o


programa adoptado na Academia Militar, tendo-se, no entanto, optado por alterar um
pouco o seu conteúdo de forma a ir ao encontro das necessidades manifestadas pelos
alunos. Aliás, nesta óptica, resolvemos detalhar mais o programa de forma a que
através da simples consulta do índice o aluno possa ter uma espécie de sumário
desenvolvido das matérias abordadas, servindo-lhe, assim, como um elemento
adicional de estudo.

A explanação da matéria passa, desta feita, por cinco grandes capítulos:

I. Preliminares
II. Conceito de Direito
III. Fontes de Direito
IV. Aplicação das regras
V. Fins do Direito

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II. Conceito de Direito
1. Ideia geral de Direito. Considerações introdutórias.
a. O quotidiano e o Direito

Antigamente havia um enorme respeito por quatro tipos de profissões: os


padres, os professores, os médicos e os “homens das leis”, ou seja advogados e
magistrados. Hoje a democratização do ensino e do acesso à informação e à
tecnologia retiram a estas profissões, e em especial ao Direito, o seu carácter elitista.
Mais, a mediatização da vida jurídica acima referida faz-nos compreender que o
nosso quotidiano está repleto de factos jurídicos. Não é só conviver com o dia-a-
dia dos tribunais através dos jornais e da televisão, é ser autuado por estacionar em
cima do passeio, é pagar a conta da luz ou do supermercado, é ir à reunião de
condomínio ou votar nas eleições do nosso clube, é andar de autocarro, pagar
impostos ou trabalhar. Por outras palavras, convivemos, mesmo sem o saber,
diariamente com o Direito. Ou seja, não é possível orientar a vida sem luzes
jurídicas mas também não é possível conhecer o Direito sem conhecer a vida.
Ambos andam de mãos dadas. Mas o que significa, afinal, Direito? E porque faz ele
parte do nosso quotidiano? Responderemos de seguida a estas duas questões.

b. Polissemia

A palavra “direito” é empregue com diversos sentidos tanto no universo


extra-jurídico como no jurídico, facto que cria algumas confusões e dificuldades.
Senão vejamos cinco exemplos:

1. “O Direito português prevê a protecção dos herdeiros legítimos.”


2. “Tenho direito a expressar a minha opinião.”
3. “Direito não é só decorar e ler a lei.”
4. “A professora de Direito marcou um teste para dia 27 de Janeiro.”
5. “Direito venceu a Academia Militar por 5-0”

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A primeira frase refere-se ao Direito objectivo, a segunda ao direito
subjectivo e a terceira a uma ciência que estuda as duas primeiras acepções de
direito. A quarta acepção refere-se a uma disciplina académica e a quinta à própria
escola onde se estuda Direito.

Antes de avançar, refira-se que está convencionado que na primeira acepção


direito se escreve com maiúscula e na segunda com minúscula. Ao longo destas
páginas estudaremos sobretudo o Direito objectivo.

i. Direito objectivo – Direito natural e Direito positivo

Mesmo sem grandes conhecimentos de Direito, rapidamente se compreende o


que se entende por Direito objectivo: este mais não é do que o conjunto das regras de
conduta social ou, por outras palavras, das normas que regulam a nossa vida em
sociedade. Este Direito objectivo pode, no entanto, para alguns, ter uma dupla
origem: ser uma obra humana ou derivar da natureza humana. No primeiro caso
fala-se de Direito positivo em sentido estrito (alvo principal destas páginas), no
segundo de Direito natural1.

1
Assumimos aqui a nossa adesão à teoria jusnaturalista que reconhece a existência de um Direito
natural, por oposição a uma corrente juspositivista que apenas reconhece a existência do Direito
positivo e em posições mais extremistas a Lei. Refira-se, contudo, que mesmo entre os jusnaturalistas o
entendimento sobre o Direito natural e a sua relação com o Direito positivo varia. Assim, por exemplo,
para Galvão Telles, o Direito natural é imutável e traduz o que de imutável há no ser humano, ou seja,
o que faz de nós Homens. Contudo, em caso de conflito com o Direito positivo, à semelhança de
Sócrates, o Professor defende o acatamento deste em nome da segurança jurídica. Para Oliveira
Ascensão, o Direito natural não é imutável, varia assim como o Homem varia, embora reconheça que
existe um núcleo permanente de princípios. Por outro lado, este Direito natural, que traduz como deve
ser o dever ser, é também ele Direito positivo pois há apenas um único Direito. Maria Luísa Duarte, por
seu lado, defende que o Direito natural não é um Direito imutável nem dependente de revelação, mas
historicamente universal e inerente à dignidade da pessoa humana e à convivência social. Em caso de
inapelável conflito com o Direito positivo pode o Direito natural, na posição da Professora, legitimar a
rebelião anti-Direito. Resumindo, independentemente da sua posição sobre o âmbito e conteúdo do
Direito natural, todos estes autores reconhecem que Direito não se traduz apenas em factos e normas
mas necessita de valores.

15
A noção corrente de Direito é que este se identifica com a lei (ideia, aliás,
errada e que rebateremos mais à frente), o que significa, em última análise, que é
palpável2, resulta do trabalho e da autoridade dos órgãos e instituições competentes
para o criar. Este Direito dito positivo tem tendencialmente uma existência
material/física efectiva, podendo, via de regra, ser consultado, por exemplo, em
códigos ou em diplomas avulsos. Contudo, enquanto obra humana é bastante
mutável no tempo e no espaço. O Direito de hoje não é igual ao do século passado e
o português difere do inglês.

Já o Direito natural é diferente. Trata-se de um Direito superior e anterior


(não obrigatoriamente em sentido cronológico) que emana da própria natureza
humana. Como tal não se encontra reunido em nenhum Código e quase não varia no
tempo e no espaço. No fundo, trata-se de um conjunto muito restrito de princípios que
se coadunam com o que há de tendencialmente imutável e universal no Homem3. A
verdade é que apesar do Direito positivo se alterar, existe sempre Direito e nele uma
essência comum, um carácter necessário e de continuidade, essencial à convivência
social e inerente à dignidade da pessoa humana. É, no fundo, nesta essência comum
que reside o Direito natural que pode ser conhecido através do uso da razão ou do
coração e que deve enformar o Direito positivo.

ii. Direito subjectivo

Quando se refere o direito à vida, à liberdade de expressão, à educação ou à


saúde não estamos a falar de direito como conjunto de normas mas sim num poder,
num espaço de liberdade que nos é concedido. No entanto, se olharmos com mais
atenção para os direitos em causa verificamos que são diferentes em conteúdo e
estrutura. No direito à vida e na liberdade de expressão há um poder imediato de
actuar, enquanto que o direito à saúde e à educação dependem da intervenção do
Estado para serem concretizados. Ou seja, apenas há um poder mediato.
2
Nas sociedades modernas a lei identifica-se com a forma escrita, se bem que esta não se traduz numa
característica essencial da lei. Por oposição, o costume, geralmente tido como não escrito, encontra-se
por vezes codificado ou compilado.
3
Defendemos a tendencial imutabilidade do Direito natural pois se é verdade que faz parte da essência
humana a defesa da própria vida/dignidade da pessoa humana e a defesa da espécie ou grupo social, é
também verdade que ao longo do tempo e dos lugares varia a graduação entre uma e outra.

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Por fim, refira-se ainda que os direitos subjectivos dependem do Direito
objectivo pois é este que os cria, modifica, condiciona ou extingue quando os
enquadra em regras. Por exemplo, é na Constituição que está previsto o direito à
liberdade mas também aí se prevê limites como a pena de prisão (artigo 27.º CRP).

iii. Direito como ciência

O Direito pode ainda surgir como significando uma ciência social e


eminentemente cultural que estuda o Direito objectivo e os direitos subjectivos nele
contidos, ou seja, que estuda o conjunto das normas jurídicas na sua forma e
conteúdo de acordo com uma lógica muito própria: o método jurídico.

2. Direito e ordem social


a. Carácter necessário do Direito
i. Homem como animal associal social. Conflito de interesses

Sem grandes dificuldades, todos sentimos e sabemos intuitivamente que o


Direito sempre existiu em todos os tempos, em todos os lugares e com todos os povos.
Também de forma fácil percebemos que ele é mutável, que ele varia ao longo do
tempo, dos lugares, dos povos. O Direito português actual é diferente do Direito
português do século XV ou do Direito japonês dos séculos XV e XXI. Resumindo, o
Direito, apesar de variável, é um elemento fundamental e necessário da vida em
sociedade pois sem ele esta não conseguiria sobreviver. Porquê?

O Homem tem duas tendências opostas: isolar-se e conviver. A verdade é que


a tendência predominante é a que nos impele a conviver, a socializar, daí se dizer que
o Homem é um animal associal social. Por outras palavras, o Homem vive
naturalmente em sociedade4 apesar dos seus impulsos de isolamento. Assim, onde há

4
Já houve autores como Grotius, Hobbes ou Rousseau que defenderam uma teoria hoje abandonada de
“estado natureza”, em que os homens conviveriam livres e sem Direito, embora os autores apontados
não concordassem quanto à sua descrição. Em resumo, a tese é da passagem de um estado natural para
a vida em sociedade através de um acordo (contrato social) que limita a esfera de poder/liberdade de
cada um.

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Homem há sociedade e isto é tanto mais verdade quanto mais evoluída e desenvolvida
for uma sociedade.

Se recordarmos os ensinamentos de Adam Smith, pai da Economia moderna, a


especialização e divisão do trabalho e o instituto das trocas permitem a um agente
económico ter mais do que se produzisse tudo aquilo que precisa. Imaginem a farda:
se cada um tivesse de fazer a própria farda (o que implicava fazer o tecido, a linha e a
agulha para cozer, a tesoura, os botões…) dificilmente chegaria às aulas fardado.
Assim, alguém se especializa em fazer tecidos, outro em fazer as máquinas ou os
utensílios necessários, outro em fazer os moldes… Ou seja, não só a farda é feita da
forma mais eficiente (menos tempo, menos custos, podemos fazer outras coisas) como
nos tornamos dependentes uns dos outros.

Por outro lado, sabemos também empiricamente que as nossas necessidades


são múltiplas mas que os bens para as satisfazer são escassos. Ora, tudo isto leva a
conflitos de interesses, reais ou potenciais, nem sempre passíveis de serem resolvidos
amigavelmente. Imagine-se uma reunião de condomínio das Twin Towers de Lisboa.
Conseguir reunir toda a gente, decidir como votar, como marcar futuras reuniões, o
que fazer quando não aparece um número significativo de condóminos… Os custos
seriam imensos, pelo menos em termos de tempo. O Direito resolve estes conflitos,
estabelece o que se fazer, poupa tempo e dinheiro. Ou seja, na maioria dos casos, o
Direito enquanto conjunto de normas de conduta aparece como a melhor forma de
resolução de conflitos.

Resumindo, onde há Homem há Sociedade, onde há Sociedade há Direito.


Portanto onde há Homem há Direito (ubi homo, ibi jus). Este é necessário para
ultrapassar conflitos de interesses entre Homens e garantir o Bem Comum, a Justiça e
a Paz. Por fim, pressupõe organização, autoridade para decidir e a possibilidade de
recurso à força para se impor. No fundo, de uma forma simplista, o Direito surge
como disciplina do Estado e como linguagem de quem governa, ou seja, em última
análise, do povo.

ii. Autonomia na resolução de conflitos

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Os conflitos de interesses podem ser resolvidos, em certos casos, pelos
próprios envolvidos, ou seja entre as partes, sem que seja necessário recorrer ao
Direito criado pelo Estado ou por este aplicado, por exemplo por via judicial. A esta
via chama-se autonomia reconhecida, aliás, pelo Estado aos indivíduos. Esta solução
resulta, no fundo, da colaboração entre o Homem e o Direito pois, afinal, este não
é omnipotente e depende do espaço que lhe é socialmente atribuído.

No uso desta autonomia estabelecem-se negócios jurídicos. Os negócios


jurídicos mais não são do que os actos celebrados ao abrigo da autonomia da vontade
dos indivíduos como, por exemplo, um contrato.

iii. Direito e poder

O poder surge, também ele, como uma forma de resolução de litígios pois
traduz-se na faculdade de influenciar ou determinar a conduta alheia. No primeiro
caso, falamos de poder de influência em que se procura persuadir a adopção de uma
certa conduta. Por exemplo, o Estado, quando atribui benefícios fiscais às empresas
que se fixam no interior do país, procura incentivar a deslocalização da actividade
económica. A segunda forma de poder é conhecida por poder injuntivo. Neste caso,
visa-se impor condutas, por exemplo, quando se fixa a obrigação de pagar impostos
ou de não fazer barulho depois de uma certa hora.

iiia. Poder político

O poder político é geralmente um poder injuntivo que nasce da vivência


em sociedade e da necessidade de se resolver eventuais conflitos de interesses,
fixando objectivos comuns e os meios para os alcançar, sendo, por isso, dotado de
coercibilidade material, ou seja, da susceptibilidade do uso da força e da aplicação
de sanções.

Uma questão que surge associada ao poder político e à sua manutenção é a da


legitimidade, ou seja a problemática da sua admissibilidade e consensualização.
Existem dois tipos de legitimidade: a legitimidade de título e a legitimidade de
exercício.

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A legitimidade de título prende-se com a forma como foi adquirido o poder
de acordo com as regras estabelecidas para tal, por exemplo, democraticamente, por
questões de sangue ou de antiguidad

Já a legitimidade de exercício prende-se com a forma como é utilizado o


poder. Pense-se, por exemplo, na violação reiterada dos direitos humanos. Assim,
pode haver legitimidade de título mas não de exercício e vice-versa. A verdade é que
se a primeira é formalmente tida como necessária, a segunda é, na prática, decisiva.
Assim, um ditador pode ter sido eleito democraticamente mas o exercício do poder
não ser aceite; enquanto que o golpista não tem legitimidade de título mas se o seu
governo, por ser socialmente útil e proveitoso, for bem aceite pela comunidade, então
o seu poder pode ser legitimado por via do exercício e contribui para a diminuição da
necessidade de coercibilidade.

Por fim, refira-se que o poder político é um poder auto-limitado: as relações


entre o poder político e o Direito são complexas, uma vez que o poder político é
regulado e limitado pelo Direito mas é ele que cria o Direito. Por outras palavras, o
poder político é fonte e objecto do Direito.

iiib. O Estado

O Estado nem sempre existiu nos moldes em que hoje o conhecemos, nem a
entidade estadual teve a importância actual. Basta pensar na Idade Média e no
predomínio do poder infra-estadual. Actualmente, assiste-se a uma tendência para
uma valorização do plano supra-estadual com a multiplicação das organizações
internacionais com as mais variadas formas e objectos, tendo por expoente máximo a
União Europeia e a sua perspectiva integracionista. No entanto, a figura do Estado
continua como a principal referência5. E o que se entende por Estado?
5
Apesar do Estado continuar como a principal referência a nível do Direito, isto não significa que a
estadualidade seja uma característica do mesmo pois, não só o aparecimento do Estado como o
conhecemos é posterior ao nascimento do Direito, como a sua importância tem variado ao longo dos
tempos. Por outro lado, nem mesmo poderemos considerar a estadualidade uma característica do
Direito contemporâneo, apesar da crescente institucionalização, pois continuam a existir fontes não
voluntárias de Direito como o costume e os princípios gerais de Direito. Por outro lado, nos últimos

20
Deixaremos as considerações mais aprofundadas para a disciplina de Ciência
Política e Direito Constitucional e ficaremos apenas pelo mais essencial. O Estado
resulta da soma de três elementos: povo, território e poder político organizado 6, ou
seja, necessita de um suporte humano, de um suporte físico e de uma vontade
estruturada.

A sua existência surge da necessidade da prossecução em colectividade de


certos objectivos como a estabilidade/segurança, justiça e bem-estar comum. Os
meios e a intensidade com que estes fins são prosseguidos variam de sociedade em
sociedade, no tempo e geograficamente. Para os alcançar, o Estado desenvolve
actividades continuadas e homogéneas a que se dá o nome de funções do Estado e que
se encontram intimamente ligadas. São elas, o poder constituinte, o poder de revisão
constitucional, a função política, a função legislativa, a função jurisdicional e a função
administrativa.

O poder constituinte permite o enquadramento de todas as outras funções,


definindo não só o seu conteúdo como a forma como elas deverão ser exercidas, a sua
extensão e limites. No fundo, o poder constituinte cria a norma das normas, a
Constituição que depois condiciona o poder de revisão constitucional e as outras
quatro funções.

O poder de revisão constitucional deve respeitar o que está para esse efeito
previsto na Constituição mas permite modificá-la. As alterações são depois
incorporadas no texto constitucional e condicionam, por sua vez, as outras funções do
Estado.

A função política corresponde à delimitação e prossecução dos objectivos


tidos como fundamentais pela comunidade. Esta função interage com a função
legislativa.

anos tem-se assistido a uma erosão da soberania. Pense-se na multiplicidade de convenções


internacionais, na ingerência humanitária ou na integração europeia.
6
Veja-se na CRP, artigo 3.º - poder político, artigo 4.º - povo, artigos 5.º e 6.º- território.

21
Esta última traduz-se na criação de actos legislativos pelos órgãos
considerados constitucionalmente competentes.

Tanto a função política como a legislativa são funções ditas primárias e


independentes pois consubstanciam-se em actividades muito pouco vinculadas
(apenas limitadas constitucionalmente), determinando o exercício das funções
secundárias, ou seja, a função jurisdicional e a função administrativa.

A função jurisdicional consiste na resolução de lítigios e na aplicação de


sanções por violação do Direito, através de órgãos independentes.

Já a função administrativa implica a satisfação das necessidades colectivas


que se entendeu política e legalmente entregar ao Estado.

iv. Sistemas de Direito

Como vimos anteriormente, o Direito sempre existiu embora varie de


sociedade para sociedade. Este carácter mutável é explicável pela natureza
eminentemente cultural do Direito: se onde há Homem há Direito, se o Homem é
diferente em termos culturais no tempo e no espaço (o Homem português do século
XXI é diferente do português do século XV ou do japonês), então o Direito é diferente
no tempo e no espaço, embora saibamos já que há um núcleo universal no Direito (o
Direito Natural) que deriva da nossa essência humana.

Daqui resulta que diferentes soluções ou estruturas são encontradas para


satisfazer a necessidade premente de resolução dos conflitos de interesse que nascem
da vivência em sociedade. Assim, obtemos vários sistemas de Direito. Podemos, por
exemplo, falar de um sistema romano-germânico (ao qual pertencemos), de um
sistema anglo-saxónico (que estamos habituados a ver nos filmes), de um sistema de
tipo soviético (em crise profunda), de um sistema muçulmano e de um sistema
extremo-oriental. Aqui apenas estudaremos, de forma rápida, os dois primeiros.

Tanto o sistema romano-germânico como o anglo-saxónico têm raízes


comums. Ambos vão beber à civilização grega e romana e são influenciados pela

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cultura judaico-cristã e pela lógica capitalista. A grande diferença não é, desta feita,
tanto em termos de bases mas em termos de técnica utilizada. Assim, o sistema
romano-germânico tem como principal fonte a lei, adoptando soluções genéricas e
tendencialmente abstractas e concede um importante papel ao Estado. Já o sistema
anglo-saxónico privilegia o costume, a solução casuística e concreta, a jurisprudência
e a regra dos precedentes e confere à sociedade civil um papel preponderante.
Contudo e para terminar, duas reflexões impõem-se.

 Com a integração europeia e o fenómeno da globalização não se estará


hoje a limar de forma cada vez mais célere a diferença entre sistemas?
Basta pensar que, por exemplo, a Polónia recém integrada na União
Europeia tem, neste momento, um ordenamento jurídico em certas
matérias em tudo idêntico ao português.
 Que sistema será preferível? Um sistema que se incline para soluções
abstractas ou para um sistema que se orienta para uma aplicação
individualizadora? Se o primeiro aponta para uma maior segurança e
estabilidade, o segundo aponta para uma maior proximidade com o caso
concreto e, portanto, para uma maior justiça material. O melhor caminho
parece ser o casamento entre as duas soluções, o que aliás já resulta da
prática pois é deixado, num sistema como o nosso mais normativista, uma
margem criadora ao intérprete e aplicador do Direito.

b. Direito antropocêntrico?
i. Antropocentrismo

Já aqui dissemos que há Direito porque há Homem e há Sociedade e que


aquele serve para resolver os conflitos de interesses que resultam da vivência em
colectividade. Também já aqui afirmámos que o Direito em sentido objectivo se
traduz num conjunto de regras de conduta que determinam os comportamentos
humanos. Por outras palavras, temos vindo a sufragar a tese de que o Direito é
antropocêntrico, ou seja centrado no Homem pois é feito pelo Homem para o
Homem em função do Homem. Aliás, dificilmente se entenderia o Direito de outra
forma pois o Homem é o único ser dotado de racionalidade suficiente para adequar o
seu comportamento às exigências jurídicas. No entanto, nos últimos anos fortemente

23
marcados pela consciencialização ambiental, têm-se desenhado novas idealizações do
Direito, em especial de um Direito ecocêntrico e de um antropocentrismo mitigado.

ii. Ecocentrismo

A corrente ecocêntrica defende, em traços muito largos, que o Direito, mais


do que centrado no Homem, deve estar centrado no ambiente pois se este não existir,
então também não há Homem e por consequência Direito. Assim o Direito não visa
apenas regular comportamentos humanos mas regular a relação entre o Homem e o
ambiente, atribuindo a este último uma protecção imediata que passa,
nomeadamente, pela atribuição de direitos ao ambiente e imposição de deveres ao
Homem.

No nosso conhecimento, em Portugal, apenas um diploma legal se guiou pela


perspectiva ecocêntrica, a saber, a lei de defesa dos direitos dos animais, a Lei n.º
92/95, de 12 de Setembro. No Direito internacional do ambiente, alguns instrumentos
seguiram esta tendência como a Carta mundial para a natureza, a Convenção sobre a
diversidade biológica, o Convénio internacional sobre ambiente e desenvolvimento da
responsabilidade da IUCN. Contudo e reiterando o que acima defendemos, esta opção
não deixa de ser estranha, confundindo objecto e sujeito de Direito.

Com efeito, o Direito, enquanto ciência social e reguladora, visa enquadrar


comportamentos humanos, os únicos susceptíveis de serem guiados por normas
jurídicas, visto o Homem ser o único ser racional (ou pelo menos, supõe-se). Assim,
somos da opinião que uma visão ecocêntrica não é possível em termos de doutrina do
Direito, uma vez que o ambiente não é animado de vontade racional. A visão
antropocêntrica é a única que faz sentido por estarmos no campo normativo e o que se
procura é regular comportamentos humanos. Como dar um direito a uma flor? Como
pode ela assumi-lo ou mesmo defendê-lo?7

7
Poderíamos aqui, por exemplo, até pensar numa solução próxima do instituto da representação
utilizado para menores e interditos. Mas a quem entregar essa função de tutela? Aos proprietários? Aos
Estados? A associações especializadas? E não correríamos sempre o risco de existir um conflito de
interesses entre o Homem e o Ambiente? Ou de sermos tentados a negligenciar o nosso papel de
protectores do Ambiente? Não tem sido essa, aliás, a realidade?

24
iii. Antropocentrismo mitigado

A visão antropocêntrica pode parecer a mais indicada, no entanto, levada ao


extremo, implica uma total subordinação do ambiente ao Homem com base em
critérios de utilidade, sem ter em conta a ponderação de outros interesses. Por outro
lado, face ao egoísmo natural do Homem, pode ser esquecida a perspectiva temporal e
só se pensar no presente, esquecendo as gerações futuras. No entanto, tornar o
ambiente um bem juridicamente tutelado e dar um direito subjectivo ao Homem face
a outros homens conduz à protecção mediata do ambiente e consciencializa o ser
humano para a necessidade de preservar o ambiente. Por outras palavras, o facto de
sermos todos titulares de um direito ao ambiente, face a todos, leva-nos a tentar
proteger melhor esse mesmo direito e, assim, mediatamente, o ambiente.

A nosso ver, assemelha-se-nos melhor uma terceira via para a defesa do


ambiente e a sua consagração a nível jurídico: a perspectiva antropocêntrica
moderada intergeracional. Esta é, aliás, a perspectiva de alguns textos
internacionais que Portugal tem assinado e ratificado, como os textos decorrentes da
cimeira do Rio 92 e a parte XII da convenção de Montego Bay sobre o Direito do
mar. Esta nova perspectiva faria, de acordo com o artigo 8.º n.º 2 da CRP, parte do
ordenamento jurídico lusitano (não vamos aqui analisar a questão da relação entre
Direito interno e Direito internacional) e traduz-se, em particular, na ideia de
Desenvolvimento Sustentado.

Deste modo, é preciso ter em conta as gerações futuras e deixar-lhes um


legado que seja equivalente àquele que recebemos. Ou seja, consagra-se uma ideia de
durabilidade, de gestão calculada dos recursos, de crescimento económico mas tendo
em atenção a protecção do ambiente. Por outras palavras, esta posição permite
conciliar o antropocentrismo natural do Direito com a necessidade de abertura e
flexibilidade incutidas pela problemática ambiental. Refira-se, desde já, que as
expressões solidariedade entre gerações e Desenvolvimento Sustentado se encontram
previstas na CRP (artigo 66.º n.º2- corpo – e alínea d) ou artigo 81.º alínea a)) e na Lei
de Bases do Ambiente.

25
No entanto, subsistem algumas questões. Como densificar o
Desenvolvimento Sustentado? A verdade é que este conceito, apesar de mais
desenvolvido a nível internacional, contém ainda muitas dúvidas por resolver, assim
como a ideia de defesa do ambiente numa perspectiva intergeracional: quanto às
gerações do futuro, quem nos garante que necessitam de um legado equivalente ao
nosso? Não poderá a tecnologia mais avançada ou novas descobertas científicas fazer
com que estejamos a limitar o uso de certos recursos que afinal não vão ser
necessários? Por outro lado, as gerações futuras ainda não existem, nem têm
personalidade jurídica, como tal estão longe de ser sujeitos ou titulares de direitos.
Não nos estaremos, no presente, a privar de bens que, hipoteticamente, no futuro, não
terão utilidade face à ideologia e técnica dominantes? Até que ponto, então, será
acertado defender-se uma solidariedade intergeracional? Para além do mais, como
definir “geração futura”? E que gerações futuras é que relevam? Esta polémica está,
portanto, longe de ter terminado.

iv. Ordenamento jurídico português

O ordenamento jurídico português caracteriza-se por uma tendência


antropocêntrica. No artigo 66.º n.º1 da CRP, com efeito, liga-se a problemática
ecológica a um “ambiente humano, sadio”. Por outras palavras, parece inclinar-se
para uma visão antropocêntrica, se bem que, na parte final, ”ecologicamente
equilibrado” possa fazer eco de uma posição mais mitigada. No entanto, a leitura de
outros preceitos, tais como os artigos 9.º alínea d), 66.º n.º2 (exemplo, “valorização
da paisagem”) 81.º alíneas l) e m) e 228.º alínea c), sugere, claramente, uma
subordinação do ambiente ao Homem, na medida em que lhe é útil para viver. Há,
portanto, uma opção claramente antropocêntrica da CRP.

No que respeita a Lei de Bases do Ambiente, chegamos às mesmas


conclusões, logo com a definição amplíssima de ambiente no artigo 5.º n.º2 alínea a) e
reiterada no artigo 2.º n.º1 in fine, assim como, por exemplo, no corpo do artigo 4.º.
No entanto, a divisão posteriormente feita entre componentes ambientais naturais
(capítulo II) e componentes ambientais humanos (capítulo III) mitiga este

26
antropocentrismo tão exagerado que chega a confundir questões ambientais, com
questões de ordenamento do território.

Para além destas referências legais, muitas mais poderiam sufragar a opção
antropocêntrica do legislador português, nomeadamente o próprio Código Civil que
encara os animais como coisas móveis (artigo 205.º) e que no artigo 502.º, por
exemplo, não tem como destinatário da norma os animais mas o Homem.

Contudo, como vimos, no nosso ordenamento jurídico já existe uma lei


ecocêntrica e algumas referências normativas de origem interna e internacional que
apontam no sentido de um antropocentrismo mitigado. Mas na sua quase totalidade o
Direito português assume-se claramente como antropocêntrico como, aliás, acontece
na generalidade dos ordenamentos jurídicos. De qualquer forma, a juridicização do
ambiente é uma certeza e implicará, nos próximos anos, repensar todo o Direito. É um
verdadeiro desafio que vai ocupar, a todos os juristas interessados nestes domínios,
alguns anos de estudo árduo e espinhoso.

c. Sujeitos do Direito.
i. Personalidade jurídica.

Os direitos e as obrigações não existem no ar. Pelo contrário, necessitam de


um suporte físico. Assim, a personalidade jurídica vai-se reconduzir àquela
qualidade essencial que se traduz na susceptibilidade de ser sujeito de direitos e
obrigações e que, no fundo, permite ver quem se pode mover no mundo jurídico
como sujeito com poderes e deveres.

Historicamente, a personalidade jurídica tem evoluído e variado. Pense-se, por


exemplo, na divisão no Direito romano entre romanos, bárbaros e selvagens, ou nos
escravos, no estatuto das mulheres, dos condenados e mesmo dos monges que
ingressavam num mosteiro, ou na criação de pessoas colectivas.

A verdade é que decorre do Direito natural a atribuição de personalidade


jurídica a qualquer ser humano, se bem que o Direito positivo nem sempre tenha ido

27
ao encontro dessa exigência. Contudo, nas sociedades mais desenvolvidas e evoluídas
já se verifica a adequação do Direito positivo ao Direito natural nesta matéria.

ii. Capacidade de gozo e de exercício

Intimamente associada à personalidade jurídica surge a capacidade, que pode


ser de gozo ou de exercício.

A capacidade de gozo é uma capacidade estática que se traduz na aptidão


para ter direitos e obrigações. Tal é, de certa forma, o que se pode retirar do artigo
67.º CC a respeito das pessoas singulares. Assim sendo, não pode existir
personalidade jurídica sem capacidade de gozo, nem vice-versa. No fundo, a
personalidade jurídica é uma questão de qualidade - ou se tem personalidade jurídica
ou não se tem -, enquanto que a capacidade de gozo é uma questão quantitativa –
pode-se ter mais ou menos capacidade de gozo, mais ou menos aptidão para ter
direitos e obrigações. Por exemplo, uma pessoa singular tem mais aptidão para ter
direitos e obrigações do que uma pessoa colectiva: dificilmente se poderá imaginar
uma sociedade anónima a casar ou a perfilhar.

Por fim, refira-se que a capacidade de gozo de pessoas singulares deriva, à


semelhança da personalidade jurídica, do Direito natural, o que explica o artigo 69.º
CC que proíbe a renúncia, em todo ou em parte, à capacidade jurídica.

A capacidade de exercício encara a questão da capacidade de uma


perspectiva dinâmica, de acção e consiste na idoneidade reconhecida para exercer
direitos e contrair obrigações, ou seja, traduz-se na capacidade de se movimentar no
universo jurídico. A capacidade de exercício pressupõe, portanto, uma vontade
consciente e esclarecida, ou seja, agir com conhecimento e diligência necessária. Ora,
nem todos os sujeitos dotados de personalidade jurídica e de capacidade de gozo se
encontram munidos de vontade consciente. É o caso dos incapazes que não podem
adquirir direitos nem contrair obrigações sozinhos.

Existem três grupos de incapazes: os menores, os interditos e os


inabilitados.

28
Segundo, o artigo 122.º CC é menor quem ainda não tiver completado dezoito
anos de idade, terminando a sua incapacidade quando atinja a maioridade ou se
emancipe pelo casamento (artigos 129.º e 132.º CC). A lei presume, assim, que até
aos dezoito anos as pessoas não têm uma vontade consciente e suficientemente
estruturada para poderem agir sem apoio, o que se pode traduzir num desencontro
entre a realidade jurídica e a realidade de facto. Por exemplo, um jovem de catorze
anos pode até ser maduro o suficiente para reger a sua pessoa e dispor dos seus bens
mas a lei considera que tal só acontece a partir dos dezoito anos. Isto deriva da técnica
utilizada no sistema romano-germânico, que, como acima referimos, adopta regras
gerais.

A incapacidade que afecta os menores é de exercício como decorre dos artigos


123.º, 130.º e 133.º CC e implica a anulação dos negócios jurídicos nos termos do
artigo 125.º. Contudo, preveêm-se excepções no artigo 127.º CC. A incapacidade dos
menores pode, aliás, segundo o artigo 124.º CC ser suprida pelo poder paternal
(1877.º CC e seguintes e, em especial, 1901.º e 1902.º CC) e, subsidiariamente, pela
tutela (1927.º CC e seguintes), admitindo-se, ainda, a administração de bens nos
artigos 1922.º e 1967.ºCC. No fundo, os pais ou o tutor substituem o menor no
exercício dos seus direitos e obrigações, o que significa que agem em nome do menor
e que os efeitos das suas acções se repercutem na esfera jurídica do menor. Por outras
palavras, estamos aqui a falar do instituto da representação como, aliás, resulta dos
artigos 1878.º e 1881.º CC.

Os interditos, por sua vez, são todos aqueles que por anomalia psíquica,
surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens, ou
seja de estruturar e formular a sua vontade de forma consciente e com conhecimento
(artigo 138 n.º1 CC), devendo essa incapacidade, ao contrário do que acontece com a
menoridade, ser declarada judicialmente. Por outro lado, as interdições são aplicadas a
maiores, o que significa que, por exemplo, um menor com atrasos mentais profundos
deva ver a sua incapacidade regida pelos artigos referentes à menoridade (artigo 138
n.º2 CC) e não é considerado no sentido técnico-jurídico interdito. O regime da
interdição é, aliás, na sua generalidade, salvo adaptações decorrentes das suas
especificidades, equiparado ao da menoridade, como decorre do artigo 139.º CC.

29
Assim, também aqui estaremos a falar do instituto da representação no que respeita à
forma de se ultrapassar a incapacidade de exercício e que se reconduz ao poder
paternal (artigo 144.º CC) ou à tutela (artigos 143.º e 145.º CC). A interdição termina
quando cessa a causa que determinou a interdição, nos termos do artigo 151.º CC.

Os inabilitados são todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou


cegueira, embora de carácter permanente, não sejam enquadráveis no instituto da
interdição, assim como aqueles que revelam habitual prodigalidade ou abuso de álcool
ou de estupefacientes e que se mostrem incapazes de governar convenientemente o
seu património, ou seja de estruturar e formular a sua vontade de forma
completamente consciente e com conhecimento.

As inabilitações são supridas através da curadoria (artigo 153.º CC). O


curador, ao contrário do tutor, não representa o inabilitado, apenas ajuda-lo na tomada
de decisões.

iii. Pessoas singulares

A personalidade jurídica das pessoas singulares deriva, como já vimos, do


Direito natural, embora nem sempre tal seja respeitado. Basta recordar os escravos.

A personalidade jurídica adquire-se no momento do nascimento completo e


com vida (artigo 66.º n.º1 CC) e os direitos dos nascituros dependem do seu
nascimento (artigo 66.º n.º2 CC). A personalidade jurídica cessa com a morte, nos
termos do artigo 68.º n.º1 CC.

iv. Pessoas colectivas

As pessoas colectivas resultam do poder criativo do Direito e da sua


capacidade de encontrar expedientes técnicos para resolver problemas. Assim,
concede-se personalidade jurídica a agrupamentos de homens com vista a alcançar
fins comuns ou à satisfação de interesses humanos e a património com os mesmos
intuitos. No fundo, este alargamento da personalidade jurídica nasce de um critério de
funcionalidade e transforma as pessoas colectivas em verdadeiros centros de direitos e

30
obrigações em função de um fim. A sua capacidade de gozo será assim limitada pelo
objectivo a prosseguir. Fala-se em princípio da especialidade.

Têm personalidade jurídica associações, fundações e sociedades,


nomeadamente, nos termos dos artigo 158.º CC e artigo 5.º CSC e, ainda, o próprio
Estado. Mais, se pensarmos em termos de Direito internacional podemos acrescentar
além dos Estados soberanos, os Estados semi-soberanos, as associações de Estados, os
beligerantes, a Santa Sé e a Ordem de Malta (interesses espirituais), as nações,
movimentos nacionais e governos no exílio (interesses políticos) e as organizações
internacionais.

v. Outros

Em tempos remotos, a personalidade jurídica também deve ter sido atribuída a


divindades, corpos celestes e animais. Hoje em dia, há uma tendência para começar a
atribuir personalidade jurídica aos animais, se bem que estes continuam, na prática
jurídica, a serem considerados coisas móveis (artigo 205.º CC), ou seja, objecto e não
sujeito de Direito. Ora, as coisas, segundo o que decorre do artigo 202.º CC, não têm
personalidade jurídica e reconduzem-se a tudo aquilo que pode ser susceptível de
apropriação individual e exclusiva.

31
3. Realidades afins e conexas com o Direito
a. Usos

Os usos reconduzem-se a práticas sociais reiteradas que facilitam a


convivência social e que, em princípio, não contribuem para a preservação da
comunidade. No entanto, nem todos se revelam juridicamente interessantes como,
por exemplo, as regras de etiqueta à mesa ou a oferta de presentes no Natal.

Os usos diferem do Direito por não visarem aspectos fundamentais da


estabilidade e progresso sociais, por terem uma génese não organizada, por terem uma
estrutura unilateral (a conduta imposta não tem como contrapartida um direito a essa
conduta por parte de outrem) e por não serem dotados de coercibilidade. Até podemos
imaginar sanções associadas à violação dos usos mas estas reconduzem-se à
reprovação, segregação social ou outras sanções difusas que pouco ou nada pretendem
garantir a sobrevivência da sociedade.

Adiante-se, por outro lado, que os usos diferem do costume. Como veremos a
propósito das fontes de Direito, o costume pressupõe não só uma prática reiterada, um
uso, mas também a convicção da sua obrigatoriedade.

Por fim, refira-se que o artigo 3.º n.º1 CC prevê que os usos que não forem
contrários aos princípios de boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o
determine, ou seja, o uso existe mas é ineficaz se não for legalmente reconhecido. No
fundo, os usos são apenas auxiliares, ajudando a compreender e completar o sentido
das declarações de vontade das partes. A importância que lhes é atribuída é, desta
feita, bastante reduzida, ideia que é, aliás, reforçada pela ausência de uma referência
aos usos no artigo 239.º CC.

b. Religião

A ordem religiosa é uma ordem normativa que condiciona as condutas,


em primeiro lugar, interiores e só depois exteriores do Homem mas que é

32
instrumental pois visa preparar-nos para um mundo futuro e para uma
realidade transcendente, Deus, através da fé.

Refira-se, no entanto, que mesmo em Estados em que existe uma diferença


marcada entre religião e Direito (ao contrário do que sucede nos países islâmicos, não
laicos), aquela não deixou ainda de influenciá-lo.

c. Moral

A ordem moral é uma ordem de conduta unilateral, na medida em que se


dirige ao Homem isoladamente e pretende o seu aperfeiçoamento (e não o da
sociedade), o que explica que apenas determine deveres para os sujeitos. Já o
Direito visa regular as relações entre Homens, sendo, portanto, bilateral e, assim,
atribuindo deveres mas também direitos.

Por outro lado, tanto a Moral como o Direito se interessam pelo lado interno e
externo das questões. No entanto, a perspectiva utilizada difere: na Moral vai-se do
aspecto interno para o externo, no Direito é o inverso. Por exemplo, a Moral
preocupa-se se temos pensamentos sobre adultério mas toma em atenção se acabámos
ou não por cometê-lo. O Direito tem em conta um facto, nomeadamente, um
homicídio mas depois interessa apurar se este foi cometido com ou sem dolo.

Uma outra diferença entre Moral e Direito prende-se com o tipo de sanções
aplicáveis. Enquanto que na moral são sanções éticas, já no Direito temos sanções
físicas e a coercibilidade.

Por fim, refira-se que, apesar da possível distinção entre Direito e Moral, o Direito
se reconduz, no seu todo, a um mínimo ético 8, ou seja, a princípios morais
fundamentais para a preservação da sociedade, como a regra do “não matarás”.
Contudo, não ultrapassará, por vezes, o Direito esse mínimo ético quando legisla, por
exemplo, sobre o atentado ao pudor, a homossexualidade ou os deveres dos cônjuges?
Além de que o Direito não se reconduz apenas a normas eminentemente morais. A
grande maioria das normas pouco tem, aliás, a ver com a Moral, sendo soluções
8
Contra, Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.

33
técnicas para resolver conflitos de interesses. Por outras palavras, o Direito, apesar de
constituir um manancial de regras técnicas, corresponde, em termos valorativos, no
seu todo, a um mínimo ético. Por outro lado, embora Direito e Moral se distingam há
que reconhecer uma certa porosidade do Direito que, influenciado pela moral
dominante, integra soluções que ultrapassam o mínimo ético. Pense-se na
homossexualidade ou no transexualismo.

4. Ordem jurídica como ordem normativa


a. Conhecimento do Direito pelo cidadão e pelo julgador

Dispõe o artigo 6.º CC que a ignorância ou má interpretação da lei não


justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela
estabelecidas. Assim, um condutor alemão apanhado nas auto-estradas portuguesas
em excesso de velocidade não pode alegar o desconhecimento do nosso Código da
Estrada. Qual a razão desta norma? Afinal, nem todos são juristas, nem é
humanamente possível conhecer todas as normas. A verdade é que se assim não fosse,
todos os pretextos surgiriam para não se aplicar o Direito, este não seria respeitado e,
no extremo, mergulharíamos no caos. Por outras palavras, visa-se, desta feita, garantir
a segurança, a estabilidade e a preservação da sociedade, através da certeza e
imperatividade do Direito. Excepcionalmente, no Direito Penal, admite-se que a falta
de consciência da ilicitude do comportamento, quando não censurável, se traduza
numa exclusão da culpa do autor e, portanto, na sua não punição.

Quanto ao juiz é seu dever funcional conhecer a lei e aplicá-la aos factos
submetidos para sua apreciação, o que significa que o juiz não se encontra limitado
pelas normas invocadas pelas partes e estas não são objecto de prova em juízo. Por
outras palavras, o juiz tem conhecimento oficioso da lei, ou seja, tem autonomia para
indagar a norma aplicável e para a interpretar.

No que respeita o direito consuetudinário, local ou estrangeiro, dispõe o artigo


348.º n.º1 CC que aquele que os invocar deve fazer prova da sua existência e
conteúdo mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respectivo
conhecimento. O n.º2, por seu turno, estipula que o conhecimento oficioso incumbe
igualmente ao tribunal, sempre que este tenha de decidir com base neles e que

34
nenhuma das partes o tenha invocado, ou a parte contrária tenha reconhecido a sua
existência e conteúdo ou não haja deduzido oposição.

No que respeita o Direito estrangeiro, este deve ser interpretado dentro do


sistema a que pertence e segundo as regras interpretativas nele fixadas e, na
impossibilidade de se conhecer o seu conteúdo, deve-se, então, aplicar a lei
subsidiariamente competente, segundo o artigo 23.º CC. Na total impossibilidade de
se determinar o conteúdo aplicável, deverá o tribunal competente recorrer ao Direito
português pois o juiz tem o dever de julgar, de resolver o conflito. É o que resulta do
artigo 348.º n.º3. Também se poderá aplicar o Direito português subsidiariamente, nos
termos do artigo 22.º CC, se as normas de Direito estrangeiro ofenderem os princípios
fundamentais da ordem pública portuguesa e se não existirem, na legislação
estrangeira competente, outras mais apropriadas.

b. Complexidade, unidade e sistematicidade

A ordem jurídica é dinâmica, no sentido, em que todos os dias novas normas


são criadas, outras alteradas ou extintas. Hoje, aliás, com o fulgor da produção
legislativa (atente-se ao volume quotidiano do Diário da República, a um fenómeno
de verdadeira legislarreia e a uma cultura de tentativa de resolução de qualquer tipo de
conflito, mesmo o resultante da não aplicação da lei, por via legislativa) aumenta não
apenas a quantidade de normas a considerar e a abrangência da temática jurídica
como a susceptibilidade de criação de novos conflitos derivados da complexidade da
previsão jurídica. O ordenamento jurídico é, portanto, complexo devido não apenas
à multiplicidade de normas mas também devido à pluralidade das fontes de
Direito, questão que analisaremos mais à frente.

Contudo, apesar de complexa, a ordem jurídica apresenta-se como um todo,


una e unitária. A existência de um Direito internacional público ou de um Direito
comunitário, assim como a de um Direito infraestadual, ou mesmo de um Direito
natural não põe em causa a unidade da ordem jurídica. Tudo é Direito. Todas as
normas exprimem uma ideia de Direito comum. Esta unidade é, sobretudo, alcançada
através da sistematicidade. Por outras palavras, a ordem jurídica apresenta-se como
um sistema de normas, em que estas não devem ser encaradas isoladamente mas

35
ligadas umas às outras, graças a uma coluna vertebral essencialmente hierárquica e
valorativa (em última análise guiada pela dignidade da pessoa humana) que as torna
ordenadas, coerentes e harmoniosas. Em caso de conflito entre normas, intolerável no
sistema jurídico e cada vez mais frequente devido à explosão da produção normativa,
a solução passa pela utilização de vários crivos: hierárquico, cronológico, de
especialidade, de competência, de prevalência da lei mais favorável, de ponderação
dos valores e interesses em causa.

Por fim, esta ideia de sistema é fundamental tanto em matéria de aplicação


normativa por via da interpretação e da integração de lacunas, como na própria
criação de normas, garantindo o papel de guia no labiríntico mundo do Direito.

c. Imperatividade

A ordem jurídica é uma ordem normativa eminentemente ética e dotada de


imperatividade. O Direito traduz uma noção de dever ser e de obediência absoluta,
nem sequer desculpável por falta de conhecimento (cf. artigo 6.º CC). O Direito como
comando e a obediência categórica resultam da própria condição individual e social
do Homem. Parafraseando Hegel, o imperativo traduz-se em sermos pessoas e
respeitarmos os outros enquanto tal, senão o Direito não resiste.

A moral, aliás, reforça esta imperatividade do Direito quando estabelece um


dever de respeito das normas jurídicas. Contudo, refira-se desde já, não são as normas
em si que são imperativas mas a ordem jurídica que é assim caracterizada.

d. Sanções
i. Sanções jurídicas

As sanções reforçam a imperatividade pois representam a consequência


do não cumprimento das normas. Assim, para termos uma sanção, é, em primeiro
lugar, necessária uma previsão normativa de um dever, por exemplo, “o cadete deve
obedecer aos seus superiores hierárquicos”. Em segundo lugar, necessitamos de uma

36
conduta violadora9: neste caso, desobediência. Em terceiro lugar, este incumprimento
conduz à aplicação de uma sanção como ser repreendido, detido 10 ou preso ou ver um
negócio jurídico anulado. Ou seja, a punição representa a estatuição 11 da regra
sancionatória. As sanções podem ser jurídicas em sentido estrito ou materiais. As
primeiras reconduzem-se a valores jurídicos negativos como a inexistência, a
nulidade, a anulabilidade, a ineficácia em sentido estrito e a irregularidade. Estudá-
las-emos mais à frente. As segundas podem ser compulsórias, reconstitutivas,
compensatórias, punitivas ou preventivas.

ii. Sanções compulsórias

As sanções compulsórias são pouco frequentes e visam obrigar o infractor a


adoptar a conduta devida, mesmo que tardiamente. Recorde-se a prisão por dívidas
ou a dívida de alimentos em que o devedor pode ser preso até cumprir as suas
obrigações, ou ainda o direito de retenção (abaixo analisado) e o artigo 829-A CC que
estabelece uma sanção pecuniária compulsória ao estatuir que, em determinadas
condições, pode o tribunal condenar o devedor ao pagamento de uma quantia
pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção.

9
Por vezes encontra-se a expressão algo contraditória de “sanções premiais”. Correntemente, estas
encontram-se associadas a casos em que são conferidos prémios ou vantagens no caso do cumprimento
(ou seja, em que não existe uma conduta violadora) de uma obrigação. Pense-se, por exemplo, na
atribuição de mais dias de férias por conta da assiduidade. Contudo, por não haver a violação de um
dever, parece-nos que o termo empregue deveria ser substituído por tutela positiva ou premial. Já a
expressão “sanções premiais”, por seu lado, deveria ser empregue em situações em que se atribuem
vantagens, mesmo que condicionadas, quando existe um incumprimento. Esta situação algo paradoxal
começa a ter expressão no Direito internacional do desenvolvimento e do ambiente. Pense-se num
Estado pouco desenvolvido que incumpre as suas obrigações internacionais por não possuir de todo
meios para as cumprir. Hoje prevê-se, em determinados casos, a atribuição aos Estados incumpridores
de meios para poderem respeitar as disposições internacionais, em vez de os sancionar negativamente.
10
Cf. leque de sanções previstas na AM.
11
Como veremos mais à frente, uma norma jurídica tem a seguinte estrutura: em primeiro lugar a
previsão (enquadramento da questão, previsão de um acontecimento, delimitação de factos) e, em
segundo lugar, a estatuição (consequências).

37
iii. Sanções reconstitutivas

As sanções reconstitutivas visam a restauração natural, ou seja, visam


repor a ordem no sentido de a deixar igual ao que ela estaria se não tivesse havido
violação. Assim, por exemplo, se alguém se apropriou ilegalmente de um bem, esse
deve ser devolvido ao legítimo proprietário.

Também no Direito das obrigações, quando há possibilidade de execução


específica, pode-se verificar uma sanção reconstitutiva em que o credor acaba, no fim,
por obter o próprio bem devido. Pense-se, por exemplo, no artigo 827.º CC quanto à
entrega de coisa determinada; no 828.º CC quanto a uma prestação de facto fungível
em que há a faculdade de requerer que o facto seja prestado por outrem à conta do
devedor; no artigo 829.º CC quanto à prestação de facto negativo que estabelece que
se o devedor estiver obrigado a não praticar um acto e vier a fazê-lo, então tem o
credor o direito de exigir que a obra seja demolida às custas de quem se obrigou a não
a fazer; ou então quanto ao artigo 830.º CC quanto à obrigação de contratar.

Por fim, no que respeita as sanções reconstitutivas, refira-se a indemnização


específica em que há reconstituição da situação anterior à violação com o recurso a
um bem equivalente, por exemplo, dá-se um livro igual ao que foi danificado. A lei
privilegia, aliás, a indemnização específica pois o artigo 566.º n.º1 CC só prevê a
indemnização pecuniária (em dinheiro) nos casos em que a reconstituição natural não
seja possível.

iv. Sanções compensatórias

Nem sempre a reconstituição natural é possível, suficiente ou pode mesmo ser


demasiado onerosa para o devedor (por exemplo, a vida de uma pessoa, uma lesão
corporal, um quadro de Picasso…). Nestes casos, admite a lei, no artigo 566.º n.º1
CC, a indemnização em dinheiro que visa, assim, reparar os danos sofridos. Se não
puder ser averiguado o valor exacto dos danos, estabelece o n.º3 do mesmo artigo que,
então, deverá o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver como
provados. Por outras palavras, neste caso não se visa repor a ordem tal e qual ela

38
estaria se não houvesse incumprimento mas procura-se criar uma situação que seja
valorativamente semelhante à primeira.

Dois tipos de danos podem ser considerados: os danos patrimoniais e os


danos morais. Os danos patrimoniais referem-se não apenas à ausência do bem ou
prestação devidos mas ainda aos chamados danos emergentes e aos lucros cessantes.
Os danos emergentes prendem-se com os custos que se tem de acarretar por se ficar
sem o bem ou prestação devidos. Por exemplo, imaginemos que inadvertidamente
danifico um carro de uma outra pessoa. Se não for possível a restauração natural
(sanção reconstitutiva - restaurá-lo ou comprar um igual ou equivalente) é preciso
ponderar não só uma indemnização pelo carro (sanção compensatória – imagine-se
que o carro era uma antiguidade ou um protótipo), mas ainda devo pagar os serviços
de táxi de que o lesado precisou por não ter o carro e compensá-lo, ainda, pelo que
deixou de ganhar por não ter o carro. Imaginemos, por exemplo, que este é o seu
instrumento de trabalho. Neste último caso estaremos a falar de lucros cessantes. No
caso do pagamento do táxi (custos emergentes) e dos lucros cessantes a sanção será,
neste caso concreto, reconstitutiva e não compensatória.

Já os danos morais são danos pessoais, não patrimoniais, como o desgosto


com a morte de um ente querido, o stress pós-traumático, o atentado à honra e ao bom
nome, entre outros. A indemnização nestas situações visa reintegrar de uma forma
muito grosseira os danos sofridos. Assim, os danos morais geram, via de regra,
sanções compensatórias e não reconstitutivas.

v. Sanções punitivas

As sanções punitivas visam castigar o infractor, fazendo-o sofrer e sentir a


reprovação pelo seu acto, funcionando de forma repressiva. Normalmente, as sanções
punitivas visam as violações mais graves da ordem jurídica.

As sanções punitivas podem ser penais, como a prisão, mas também contra-
ordenacionais (coima por estacionar em cima do passeio), civis (como não poder ser
herdeiro legitimário ou não poder casar - respectivamente artigos 2166.º n.º1 e 1062.º

39
d) CC) e disciplinares (detenção ou expulsão do cadete quando desobedece às regras
da Academia Militar).

vi. Sanções preventivas

As sanções preventivas visam evitar novos incumprimentos. Podem


enquadrar-se, assim, nesta categoria, a título exemplificativo, a liberdade condicional,
o artigo 781.º CC sobre as dívidas a prestações (estas podem ser cobradas na sua
totalidade quando há incumprimento de uma prestação), a inibição do exercício da
tutela ou de funções públicas, a inibição de conduzir.

Mas uma pergunta fica no ar. A expulsão do cadete desobediente, a pena de


prisão para o burlão, ou seja, as sanções ditas punitivas não terão elas também uma
função eminentemente preventiva, ou seja, dissuadir à partida comportamentos
reprováveis?

e. Coercibilidade
i. Noção

A ordem jurídica é dotada de coercibilidade, o que significa a


susceptibilidade do recurso à força e da aplicação de sanções nos termos
juridicamente estabelecidos e delimitados. Repare-se que não se fala em coacção
pois o Homem tende naturalmente para a ordem, sendo só preciso recorrer à força em
casos extremos e devendo esse recurso à força encontrar-se legitimado pelo próprio
Direito, sob pena de abuso e arbitrariedades. Mais, também não se fala de
susceptibilidade de aplicação coactiva da regra pois nem sempre a regra violada pode
ser aplicada, mesmo coercivamente. Por exemplo, não se pode dar vida a um morto,
um braço a quem o perdeu, pintar um quadro de Picasso que foi destruído. Aliás, se
atentarmos às sanções atrás estudadas, então verificaremos que apenas nas sanções
compulsórias haverá uma aplicação da regra.

Por outro lado, refira-se que há sanções que funcionam de forma automática
sem necessidade de recurso à força física como a perda de direitos políticos ou o
dever de indemnizar. No entanto, outras situações há que podem implicar o recurso à

40
força se não forem acatadas como a expulsão, a detenção… Nesses casos a sanção
liga-se intimamente com a coercibilidade.

E será a coercibilidade realmente uma característica da ordem jurídica? E


quem detém essa coercibilidade? Os Estados, sem dúvida. Todavia ao nível infra-
estadual tal não é frequente.

Por outro lado, se bem que menos estruturada do que a nível estadual, na
ordem jurídica internacional existe uma coercibilidade crescente. Pense-se na
limitação do uso da força pelos Estados no âmbito das relações internacionais (artigo
2.º n.º 4 da CNU) e no capítulo VII da mesma Carta que permite ao Conselho de
Segurança usar a força em situações de violação de normas internacionais. Recorde-se
ainda o Tribunal Penal para o Rwanda ou para a Jusgoslávia e a criação do Tribunal
Penal Internacional. Mas até que ponto a imposição de sanções internacionais não
esconde um jogo de influências e de interesses. Alguém imagina o Afeganistão ou o
Iraque a invadir os Estados Unidos, por exemplo, por violação dos direitos humanos?

No Direito comunitário, sobretudo com o processo de integração política e


embora os Estados detenham ainda os meios típicos de tutela pública, encontramos
coercibilidade a nível supranacional que, quanto mais não seja, se impõe aos Estados
Membros por via do princípio do primado12. Atente-se, aliás, à previsão de sanções
contra os Estados (artigos 228.º e 309.º do TCE) e contra particulares (artigo 83.º
n.º2b) TCE).

Resumindo, a coercibilidade não é uma característica da totalidade da


ordem jurídica mas da ordem jurídica estatal, comunitária e, cada vez mais, da
ordem jurídica internacional. Mais, constata-se, em especial, a partir da segunda
metade do século XX, uma perda do seu monopólio por parte do Estado.

A coercibilidade é, como vimos, uma característica tendencial da ordem


jurídica na sua totalidade mas não da regra jurídica isoladamente considerada, uma
vez que há regras jurídicas que não têm sanção e outras cuja sanção não pode ser
coactivamente imposta.
12
Cf. supra.

41
No que respeita o primeiro caso, relembre-se aqui, por exemplo, as regras
sobre os deveres dos cônjuges (respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e
assistência – artigo 1672.º CC) em que só situações muito graves, como a não
prestação de alimentos, poderão implicar a aplicação de sanções. Isto compreende-se
pelo facto de não se achar conveniente uma intromissão excessiva do Direito e do
Estado no seio familiar que poderia minar a sua intimidade e convivência.

No segundo caso, pense-se, designadamente, que nem sempre se aplica a


sanção pois o órgão que a deveria aplicar não o faz, o que implicaria recorrer a uma
instância superior. E se esta resolver também nada fazer? No fundo, estamos perante o
eterno problema de quem guarda o guarda.

Por fim, recordem-se as obrigações naturais. O artigo 403.º CC estabelece que


nestes casos, como por exemplo nas dívidas de jogo tolerado 13, o devedor não pode
ser obrigado ao pagamento da dívida mas se o fizer espontaneamente não poderá
depois reclamar a restituição do montante pago.

ii. Tutela preventiva e tutela repressiva

O Direito, como temos vindo a referir, é necessário para a conservação social


e procura garantir a sua aplicação de duas formas: preventiva e repressivamente.

A tutela preventiva visa evitar violações das normas e situações de


instabilidade social. Cabe sobretudo à administração o papel de acompanhamento da
sociedade para identificação e contenção precoce de eventuais situações de conflito,
em especial através da polícia. A aplicação de sanções preventivas e mesmo
repressivas como acima apontámos contribui, de igual modo, para a tentativa de se
evitar conflitos de interesses.

Quando a tutela preventiva não é possível, falha ou não é suficiente recorre-se


à tutela repressiva de forma a garantir a estabilização do universo jurídico e a
efectivação do Direito. A tutela repressiva visa sancionar a violação do
13
Existe três tipos de jogo: ilícito, legalizado e tolerado.

42
ordenamento jurídico e repor a situação nas mesmas condições em que estaria se
não tivesse havido infracção, nos casos em que isso é possível. Esta função cabe,
essencialmente, aos tribunais embora, por um lado, não sejam os únicos responsáveis
pela tutela repressiva e, por outro, também possam ter um papel preventivo, por
exemplo, quando aplicam sanções preventivas ou quando estabelecem uma
providência cautelar.

No fundo, tanto a tutela preventiva como a repressiva traduzem-se na


fiscalização da vivência jurídica e no não alheamento do Homem, do Estado ou da
Comunidade internacional das suas responsabilidades.

iii. Meios de tutela jurídica. Pública, privada e arbitral.

Existem três formas de tutela jurídica: pública, privada e arbitral, consoante a


solução adoptada e agentes envolvidos.

A tutela pública reconduz-se à autoridade pública e à concentração da


Justiça no Estado. Assim, traduz-se na necessidade de uma polícia e de tribunais.

A Justiça enquanto função do Estado resulta da própria Constituição (artigo


202.º CRP) que a entrega aos tribunais, órgãos de soberania independentes e apenas
sujeitos à lei (artigo 203.º CRP) dirigidos por juízes inamovíveis e que não podem ser
responsabilizados pelas suas decisões, salvo nas excepções consagradas legalmente
(artigo 216.º n.º1 e 2 CRP).

Contudo, refira-se que existem outros tribunais que não os estatais que
garantem a tutela pública. Pense-se nos tribunais internacionais como o Tribunal
Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, os Tribunais Penais para o
Rwanda e para a Jugoslávia e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ou nos
tribunais comunitários, a saber, o Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias. Acrescente-se ainda os tribunais eclesiásticos e
os tribunais estrangeiros que podem resolver conflitos ligados a outros Estados e cujas
sentenças podem ser reconhecidas a nível interno mediante determinadas condições,
em nome da segurança e continuidade jurídicas.

43
Adiante-se, no entanto, que o recurso aos tribunais procura ser a última forma
empregue para resolver lítigios, tentando-se ultrapassá-los primeiro através da
conciliação das partes.

Por sua vez, a justiça privada ou autotutela traduz-se na justiça feita pelas
próprias mãos, em que o ofendido procura não só agir por sua conta para evitar um
perigo mas também sancionar o agressor e a ofensa. Esta é uma forma de tutela
genericamente abandonada e repudiada em sociedades evoluídas que evitam a justiça
de rua e que surge, sobretudo, em sociedades pouco coesas e institucionalizadas. No
fundo, reconduz-se à lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, se bem que neste
caso haja já sinais de progresso social por se considerar que a sanção a aplicar não
pode ultrapassar a ofensa sofrida.

A autotutela tem, contudo, vantagens: é mais célere, oportuna e rápida a


afastar a ofensa. No entanto, as desvantagens são bem maiores: o ofendido é juiz e
carrasco ao mesmo tempo, o que não permite isenção e distanciamento necessários a
uma boa avaliação da situação, depende da força (uma mulher violentada pelo marido
dificilmente terá possibilidade de o enfrentar) e, por fim, cria desordem social (pense-
se nos casos em que a reparação da ofensa passa para a família como na vendetta da
mafia ou nas comunidades ciganas). Por estas razões, a justiça privada é proibida,
salvo excepções pontuais.

Por fim, atente-se à tutela arbitral que surge de um casamento entre a tutela
pública e a tutela privada. Assim, sob a vigilância do Estado, as partes envolvidas
no litígio escolhem um juiz que funciona como um árbitro para resolver o
conflito. A nível internacional é também utilizada esta opção.

44
iv. Tutela pública
iva. Noção e tipos de polícia

A palavra polícia deriva de polis (cidade), ou seja traduz a necessidade de uma


fiscalização da vida em sociedade (na polis) de forma a prevenir eventuais conflitos e
a contê-los quando já estão acesos. O papel da polícia é, assim, em primeiro lugar,
preventivo e só depois repressivo. Aliás, distingue-se classicamente dois tipos de
polícia: uma polícia administrativa preventiva (que engloba grande parte da
actividade da GNR) e uma polícia de investigação como a Polícia Judiciária que
funciona a posteriori, depois da violação das normas. Podemos ainda distinguir entre
forças e serviços. No primeiro caso existe um uniforme e uma competência genérica.
Trata-se desde o gato que está preso no telhado ao homicídio. No segundo caso, não
há farda e a competência é específica: informação, estrangeiros e fronteiras, por
exemplo.

Refira-se, ainda, o enquadramento da actividade policial a nível constitucional,


em particular nos artigos 9.º a) e 272.º CRP, em que ressaltam três aspectos: o carácter
necessário da polícia como cara da coercibilidade e da manutenção da ordem social, a
sua submissão à lei e aos direitos, liberdades e garantias dos particulares e a sua
subordinação ao princípio da proporcionalidade, na suas vertentes de adequação,
princípio do mínimo e de não abuso. Encarnando a polícia o uso da força e a
consequente contradição com direitos constitucionalmente garantidos, a sua
intervenção tem de ser muito bem fundamentada num Estado democrático. O polícia
deve, nesta óptica actual de Estado pós-social, mais do que tratar os sujeitos como
cidadãos, tratá-los como clientes, utentes de um serviço. Contudo, uma dúvida paira
no ar: esta flexibilização crescente do papel da polícia não poderá gerar situações de
arbitrariedades e uma sensação de insegurança?

ivb. Órgãos judiciais

Apenas sujeitos à lei, aos tribunais cabe administrar a justiça de forma


independente, a fim de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente

45
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados (artigos 202.º e 203.º CRP).

Além do Tribunal constitucional existem, a nível interno, outras categorias de


tribunais como o Supremo Tribunal de Justiça e tribunais judiciais de primeira e
segunda instância, o Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais
administrativos e fiscais, o Tribunal de Contas, tribunais militares, arbitrais e julgados
de paz (artigo 209.º CRP). Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria
cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens
judiciais. Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e
especializados para o julgamento de determinadas matérias (artigo 211.º n.º1 e 2
CRP). Os tribunais administrativos e fiscais julgam, por seu turno, acções e recursos
contenciosos referentes a litígios emergentes das relações jurídico-administrativas e
fiscais (artigo 212.º n.º3 CRP). O Tribunal de Contas, por seu lado, é o órgão supremo
de fiscalização da legalidade da despesa pública e de julgamento das contas que a lei
mandar submeter-lhe (artigo 214.º CRP). Quanto aos tribunais militares dispõe o
artigo 213.º CRP que serão constituídos durante a vigência do estado de guerra com
competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar.

v. Formas de tutela privada

Como acima referimos a justiça privada é repudiada nas sociedades mais


evoluídas e institucionalizadas. Contudo, admitem-se excepções que resultam da
impossibilidade de recurso aos meios coercivos normais. Assim, aceita-se a acção
directa, a legítima defesa, o direito de resistência, o estado de necessidade e o direito
de retenção.

va. Acção directa

A acção directa encontra-se prevista no artigo 336.º CC e estabelece que


determinadas condutas, que normalmente poderiam ser consideradas ilícitas como a
destruição ou a deterioração de uma coisa, são, afinal, lícitas. Vejamos quais as
condições para que assim seja.

46
Em primeiro lugar, segundo o n.º1, a acção directa só é possível quando haja
impossibilidade de recorrer, em tempo útil, aos meios coercivos normais. Por outras
palavras, a situação pode ser tutelada publicamente (caso que pode não acontecer, por
exemplo, nas relações familiares) e a acção directa é subsidiária.

Em segundo lugar, impõe adequação entre a acção directa e a manutenção do


direito ofendido, já que o n.º1 dispõe que aquela tem de ser “indispensável (…) para
evitar a inutilização prática desse direito”.

Em terceiro lugar, a acção directa é regida pelo princípio do mínimo, em que


se visa procurar o meio menos gravoso para agir. Assim se entende a parte final do
n.º1 do artigo 336.º: “contanto que o agente não exceda o que for necessário para
evitar o prejuízo”.

Esta ideia, aliás, está ligada com a proporcionalidade exigida no n.º3 quando
considera ilícita a acção directa que sacrifica interesses superiores aos que o agente
vise realizar ou assegurar. Isto pressupõe uma prévia ponderação de interesses.

Em quinto lugar, o uso da força tem como intuito realizar ou assegurar “o


próprio direito” do agente, o que pressupõe que haja conhecimento da situação
(elemento subjectivo). A referência ao “próprio direito” distingue esta figura da
legítima defesa ou do estado de necessidade em que se permite a defesa da esfera de
terceiros. Por outro lado, a acção directa não pressupõe um perigo ou uma agressão
actual e iminente, o que transforma esta forma de autotutela numa regra geral, numa
categoria de reserva mais lata do que a legítima defesa ou o estado de necessidade.

O n.º2 do artigo 336.º CC enumera, a título de exemplo (“ou acto análogo”),


alguns tipos de actuações enquadráveis na acção directa: apropriação, destruição ou
deterioração de uma coisa ou a eliminação da resistência irregularmente oposta ao
exercício do direito.

Por ser considerada lícita, a acção directa não implica uma indemnização. Tal
também sucede quando exista erro desculpável sobre os pressupostos da acção

47
directa, como decorre do artigo 338.º CC. Para averiguar se o erro é ou não
desculpável, atente-se ao artigo 487.º n.º2 CC e ao critério do bom pai de família.

vb. Legítima defesa

A legítima defesa é uma forma de justiça privada que decorre do Direito


natural e que é necessária em qualquer sociedade pois não seria compreensível que
pudessemos sofrer agressões sem poder reagir. Daqui desde já se retira que se trata de
uma reacção, o que pressupõe a existência de uma acção anterior. O artigo 337.º n.º1
CC é, aliás, muito claro e específico a este propósito. Atente-se, também, ao artigo
51.º CNU que legitima o uso privado da força em Direito internacional.

Assim, exige-se uma “agressão”, expressão bem mais restrita do que a


prevista a propósito do estado de necessidade que se refere, no artigo 339 n.º1 CC, a
um “perigo”.

Por outro lado, a agressão deve ser “actual”. Desta forma, afastam-se
agressões passadas, pois já se encontram consumadas, e futuras por existir a
possibilidade de recurso aos meios coercivos normais. E se a agressão for iminente?
Aparentemente parece possível considerar que estamos ao abrigo da legítima defesa
pois ainda há uma reacção imediata sem possibilidade de recurso aos meios normais.

A agressão deve também ser “contrária à lei”, subentenda-se ilegal, ilícita ou


manifestamente injusta, o que significa que não precisamos de estar face a uma acção
culposa.

A agressão pode ser contra a pessoa (o próprio ou terceiro) ou contra o


património (do próprio ou de terceiro). Este é, aliás, um dos pressupostos que
distingue a legítima defesa da acção directa que não atende, como vimos, a terceiros.

A legítima defesa só é permitida com carácter subsidiário, ou seja, quando não


seja possível o recurso aos meios normais. Contudo, uma questão levanta-se: e se o
agressor for imputável14? Dever-se-á impor uma fuga humilhante?
14
Ou seja, nos casos não previstos no artigo 488.º CC.

48
Por fim, na legítima defesa tem de haver proporcionalidade nos meios
empregues e uma ponderação de interesses pois o prejuízo causado pelo acto não
pode ser “manifestamente15 superior ao que pode resultar da agressão”. A
racionalidade dos meios de defesa implica uma medição em concreto não exigindo,
no entanto, uma equivalência absoluta (por exemplo, ver quais os meios disponíveis e
aplicáveis). O n.º2 do artigo 337.º CC prevê que é ainda lícita a legítima defesa
quando o excesso de reacção se deva a medo ou perturbação não culposa, o que
implica apurar se o “bom pai de família” reagiria da mesma forma naquela situação
(artigo 487.º n.º2 CC). Sendo lícita, a legítima defesa não implica a obrigação de
indemnização e no caso de erro nos pressupostos veja-se o que acima se afirmou
sobre o artigo 338.º CC.

vc. Direito de resistência

O Direito de resistência encontra-se consagrado constitucionalmente no artigo


21.º CRP e divide-se em dois tipos de reacções lícitas quando não seja possível
recorrer à autoridade pública: em primeiro lugar, resistência do agente a qualquer
ordem ofensiva dos seus direitos, liberdades e garantias e, em segundo lugar, repúdio
de agressões pela força.

Ambas as formas se enquadram num tipo mais lato de legítima defesa, no


primeiro, para defesa de direitos próprios (e não de terceiros) contra uma ordem
ofensiva no âmbito de relações de poder (veja-se o direito de resistência ao
pagamento de impostos inconstitucionais previsto no artigo 103.º n.º3 CRP, ou na
recusa, por parte de um cadete, em obedecer a uma ordem arbitrária e ofensiva dos
seus direitos, liberdades e garantias); no segundo, para a defesa de qualquer agressão.
Atente-se que aqui, ao contrário do que acontece no artigo 337.º n.º1 CC, não se exige
uma agressão actual, nem ilegal, nem racionalidade dos meios. Temos, portanto, uma
figura mais abrangente do que a definida no Código Civil, embora se tente limitá-la a
relações de poder.

vd. Estado de necessidade


15
Por nós sublinhado.

49
O estado de necessidade encontra-se previsto no artigo 339.º n.º1 CC e visa a
remoção de um “perigo” (expressão bem mais lata do que agressão prevista para a
legítima defesa e, por outro lado, não pressupõe a violação de um direito como na
acção directa) que tem de ser “actual” ou iminente (ao contrário da acção directa ou
do direito de resistência).

Por outro lado, a reacção visa beneficiar quer o próprio agente quer terceiros
(ao contrário da acção directa ou do direito resistência na vertente de reacção a uma
ordem ofensiva de direitos).

Em terceiro lugar, a reacção tem de ser proporcional e implica uma


ponderação de interesses, uma vez que apenas visa remover o perigo de danos
manifestamente superiores.

Em quarto lugar, a reacção traduz-se na destruição ou em danos a coisas (e


não pessoas) alheias. O artigo refere-se apenas a coisas alheias e não próprias pois a
deterioração destas pelo proprietário é, em princípio, lícita. No entanto, uma questão
fica por resolver, a saber, haverá indemnização ao proprietário no caso de destruição
ou danos causados aos seus próprios bens para afastar um perigo de terceiros? Dois
caminhos nos parecem possíveis para resolver a questão: a gestão de negócios ou
accionar a responsabilidade civil.

No que respeita a indemnização, ao contrário do que sucede na acção directa e


na legítima defesa, o estado de necessidade determina a sua existência. Se o perigo for
causado por culpa exclusiva do agente, este deve indemnizar o lesado pelo prejuízo
havido. Em qualquer outro caso, o tribunal pode fixar uma indemnização equitativa e
condenar nela não só o agente, como aqueles que beneficiaram do acto ou que
contribuíram para o estado de necessidade. Dito de outra forma, fica nas mãos do
tribunal a decisão da existência ou não da indemnização. Este decide, por outro lado,
com base na equidade (atender ao enquadramento da situação, agravantes, atenuantes)
e, por fim, a indemnização cabe não só ao agente mas eventualmente a quem
beneficiou da sua acção ou a causou.

50
ve. Direito de retenção

Dispõe o artigo 754.º CC que “o devedor que disponha de um crédito contra


o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa,
o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela
causados”.

O direito de retenção traduz-se, desta feita, numa forma de sanção


compulsória. Normalmente ninguém pode recusar a entrega de coisa alheia alegando
o não pagamento de uma quantia devida. A retenção é, no entanto, lícita se houver
uma relação causal entre a dívida e a coisa, em que a dívida resulte das despesas feitas
por sua causa (reparação, pagamento de um espaço para a guardar…) e pelos danos
por ela causados. O direito de retenção difere, portanto, da excepção de não
cumprimento.

A lei prevê ainda casos especiais de direito de retenção no artigo 755.º CC e


no artigo 756.º CC dispõe sobre a exclusão do direito de retenção: a favor dos que
tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar, desde que, no momento
da aquisição, conhecessem a ilicitude desta; a favor dos que tenham realizado de má
fé as despesas de que proveio o seu crédito; relativamente a coisas impenhoráveis e
quando a outra parte preste caução suficiente.

O artigo 757.º CC prevê, por sua vez, a inexigibilidade e iliquidez do crédito e


os artigos 758.º e 759.º CC referem-se, respectivamente, à retenção de coisas móveis e
de coisas imóveis. Já o artigo 760.º CC dispõe sobre a transmissão do direito de
retenção que depende da transmissão do crédito a que se refere e o artigo 761.º CC,
por fim, debruça-se sobre a sua extinção.

f. Exterioridade

A exterioridade enquanto pretensa característica do Direito surgiu da


necessidade de se tentar distinguir Direito de Moral. Assim, segundo este critério, o
Direito teria a ver com o lado externo, a acção, enquanto que a Moral importar-se-ia
com o aspecto interno, a consciência de cada um.

51
Como acima vimos a propósito da distinção entre Direito e Moral, este critério
não funciona pois ao Direito também interessa o lado íntimo de quem age, embora
nem sempre a prova seja fácil ou mesmo possível. Assim, o estado de espírito do
sujeito e a determinação da sua vontade releva para se saber, por exemplo, se estamos,
face a um homicídio por negligência ou doloso, sendo as consequências jurídicas
diferentes. Por outro lado, também à Moral importa a efectivação das condutas.
Contudo, o mero crime por convicção ou o pensamento ilegal sem concretização não
interessam ao Direito, da mesma forma que para a Moral não interessa apenas a
acção. Só neste sentido é que a exterioridade poderá ser útil para caracterizar o
Direito.

5. Situação jurídica
a. O facto, o acto e o negócio jurídicos

Considera-se facto jurídico, em sentido amplo, todo o evento, toda a situação


da vida que produz efeitos jurídicos, desde o nascimento de uma criança a um
incêndio. O facto jurídico divide-se em facto jurídico em sentido restrito e em acto
jurídico.

O facto jurídico em sentido restrito traduz-se num evento em que a vontade


humana não intervém na produção de efeitos. Pense-se, por exemplo, num
naufrágio causado pelo mau tempo. Já um acto jurídico implica um facto humano e
voluntário.

O acto jurídico, por sua vez, desdobra-se em acto jurídico em sentido restrito
e em negócio jurídico.

O acto jurídico em sentido restrito implica um facto em cuja a vontade


humana intervém mas sem poder determinar os efeitos. Pense-se, por exemplo, no
voto.

No negócio jurídico, por seu turno, a parte ou partes envolvidas


determinam os efeitos jurídicos a que ficam subordinadas, no âmbito da sua

52
autonomia privada. O negócio jurídico subdivide-se em unilateral (ex. testamento) e
bilateral (ex. casamento) consoante haja apenas uma ou mais do que uma declaração
de vontade. Ao negócio jurídico bilateral dá-se o nome de contrato.

b. Valores negativos

As partes podem, como vimos, ao abrigo da sua autonomia da vontade,


determinar os efeitos jurídicos a que querem ficar sujeitas. Contudo, nenhuma ordem
jurídica pode aceitar toda e qualquer estipulação das partes. Por outras palavras, a
autonomia privada tem limites que se prendem com os sujeitos envolvidos, o objecto,
o conteúdo e a forma do negócio jurídico. Pense-se, nomeadamente, nas
incapacidades que derivam da menoridade, num objecto contratual física e legalmente
impossível (artigo 280.º CC), em cláusulas proíbidas como as referentes à limitação
da responsabilidade e na forma especial para um contrato de compra e venda de
imóvel (artigo 875.º CC). Assim, se os limites da autonomia privada não forem
respeitados estamos face a uma ilegalidade que deve ser sancionada.

A violação do ordenamento jurídico implica, como já vimos, o recurso a


sanções várias que visam garantir a estabilidade e segurança do mesmo. Aqui vamos
apenas ter em conta as sanções jurídicas em sentido estrito em contraposição às físicas
acima estudadas a propósito da imperatividade e do reforço da coercibilidade.

Os valores negativos ou sanções jurídicas visam, à excepção da irregularidade


- forma de desconformidade leve - evitar que se verifiquem de facto os efeitos
contrários à ordem estabelecida. Assim, podemos reuni-los sob a categoria muito lata
da ineficácia que alberga a inexistência, a invalidade (nulidade e anulabilidade) e a
ineficácia em sentido estrito.

A inexistência representa o caso mais grave de não produção de efeitos, em


que uma situação é de tal forma disconforme com o ordenamento jurídico que este
considera que não existe. Pense-se, por exemplo, num casamento homossexual
(artigos 1577.º e 1628 e) CC).

53
No caso de invalidade, o acto existe mas é considerado sem valor. Desta feita,
o acto pode ser considerado nulo ou anulável.

A nulidade visa proteger o interesse público 16, o que implica que o acto é
ineficaz desde o início e que o vício existe independentemente da declaração judicial.
Aliás, o que o tribunal faz é meramente constatar a nulidade, declará-la, ao contrário
do que sucede com a anulabilidade em que o tribunal destrói, a posteriori, os efeitos
de um determinado negócio. De acordo com o artigo 286.º CC, a nulidade é invocável
a todo o tempo, por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo
tribunal. Segundo o artigo 289.º n.º1 CC, a declaração de nulidade tem efeito
retroactivo.

Já a anulabilidade visa proteger um interesse particular 17. Assim, o acto


produz efeitos mas pode vir a ser destruído, deixando-se à disponibilidade daquele
cujo interesse tutela. A anulabilidade pode, portanto, sanar-se e o acto tornar-se
válido, com eficácia retroactiva, por duas vias: mediante confirmação, como resulta
do artigo 288.º CC ou mediante a passagem do tempo (a anulabilidade só pode ser
invocada num prazo de um ano subsequente à cessação do vício 18 – 287.º n.º1 in fine
CC). Também como no caso da nulidade, a anulabilidade tem efeito retroactivo.

Por fim, refira-se que a nulidade ou a anulabilidade parciais não determinam a


invalidade de todo o negócio, a não ser que este deixe de ter sentido sem aquelas
partes. Fala-se, então, de redução do negócio (artigo 292.º CC). Este pode também ser
convertido num negócio de tipo ou conteúdo diferente nos termos do artigo 293.º CC.

No caso da ineficácia em sentido estrito, o acto não é nem inexistente nem


inválido mas por causa da sua irregularidade não produz no todo ou em parte efeitos
jurídicos. Pense-se nos artigos 119.º n.º2 CRP ou no artigo 268.º n.º1 CC.

16
Por exemplo, o artigo 280.º CC considera nulo o negócio jurídico física e legalmente impossível,
ilegal, indeterminável, contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.
17
Por exemplo, atente-se ao artigo 125.º CC e aos actos anuláveis praticados por menores.
18
Atente-se que o n.º2 do artigo 287.º CC exceptua desta regra os casos em que o negócio não está
cumprido. Nesse caso, não há prazo.

54
6. Regra jurídica
a. Caracterização

O ordenamento jurídico é constituído por um corpo coerente de regras


jurídicas que o personificam e exprimem. Mas o que é uma regra jurídica? Como se
caracteriza?

i. Estrutura

A regra jurídica tem uma estrutura bifronte composta por dois elementos: a
previsão que contém uma situação de facto juridicamente valorada e a estatuição ou
consequência jurídica.

Imagine-se a seguinte regra: “O cadete que não fizer a cama será punido com
cem flexões”.

“O cadete que não fizer a cama” representa a previsão da norma e consagra


um evento juridicamente relevante e qualificado. Assim, será não fazer a cama não
puxar a coberta? E se os lençóis não estiverem esticados?

“Será punido com cem flexões” constitui a estatuição em que se estabelecem


os efeitos jurídicos resultantes do preenchimento da previsão da norma.

Antes de avançarmos mais sobre a caracterização das normas jurídicas,


deixemos aqui apenas duas notas explicativas. Em primeiro lugar, nem todas as
normas têm a estrutura aqui apresentada. Trata-se, apenas, de uma tendência. Por
outro lado, uma regra jurídica não coincide obrigatoriamente com um qualquer artigo
de uma qualquer lei. Por vezes, é necessário conjugar vários artigos para obter uma
regra. Assim, a previsão pode estar num artigo e a estatuição num outro. Por outro
lado, também é possível um artigo conter mais do que uma regra.

ii. Hipoteticidade

55
Hipoteticidade significa que a regra só se aplica aos factos que prevê, ou
seja é preciso que se verifique um facto que preencha a previsão normativa para se
poder retirar as devidas consequências. Por outras palavras, nenhuma regra se aplica
por si só. Por exemplo, reportando-nos à regra acima enunciada, só há cem flexões
quando o cadete não faz a cama e não quando ele não arruma o quarto ou quando tem
menos de seis nos testes.

A hipoteticidade assim entendida é uma característica da regra jurídica.

iii. Generalidade

Generalidade significa a indeterminabilidade dos destinatários da regra à


data da sua elaboração. Em certas situações, existe um conjunto identificável de
sujeitos ou um único destinatário. Pense-se nas situações referentes ao Presidente da
República. Para se saber se se está face a uma regra é necessário apurar se se está a
apontar directamente para os sujeitos (Jorge Sampaio, Mário Soares…) ou para a
categoria em que se inserem (Presidente da República). Só neste último caso é que
estaremos face a uma regra19.

iv. Abstracção

A abstracção implica a indeterminabilidade da situação de facto, ou seja,


refere-se apenas a factos futuros. Contudo, se pensarmos nas leis retroactivas
constatamos que estamos face a situações determináveis e que, por essência, não se
reportam ao futuro. A abstracção não é, desta feita, uma característica da regra
jurídica mas um aspecto tendencial.

19
A doutrina divide-se quanto à caracterização das regras jurídicas, em torno da generalidade e da
abstracção. Para Inocêncio Galvão Telles e M. L. Duarte, tanto a abstracção como a generalidade são
características da regra jurídica. Para Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão estas são meramente
tendenciais. Já nós seguimos a posição de Oliveira Ascensão que considera apenas a generalidade,
sendo a abstracção meramente tendencial. Refira-se, aliás, que no artigo 1.º n.º2 CC e 2.º n.º1 da Lei n.º
74/98, de 11 de Novembro, apenas se atende ao critério da generalidade. Só no caso de leis restritivas
de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º n.º3 CRP) é que se exige para além da generalidade a
abstracção.

56
v. Bilateralidade

A bilateralidade traduz a ideia de relação jurídica, o que pressupõe a existência


de duas partes. Ou seja, os direitos de uns têm como reverso os deveres de outros.
Contudo, há situações em que temos só direitos ou só deveres. Por exemplo, o direito
de propriedade vale por si. Quanto muito, implica um dever genérico (e não
específico) de respeito oponível a um número indeterminado de pessoas. Os deveres
penais como não matar, não furtar não implicam como contrapartida um direito a não
ser morto ou a não ser assaltado. Desta feita, concluímos que a bilateralidade não é
uma característica da regra jurídica, embora personifique a alteridade social do
Direito.

vi. Imperativo

Como tivemos oportunidade de observar anteriormente, a imperatividade não


é uma característica da regra jurídica. Há regras que não traduzem uma ordem ou
um comando do legislador. Pense-se nas regras definitórias, qualificativas, sobre
regras ou retroactivas. Contudo, as regras jurídicas, em sentido estrito, constituem por
si critérios de decisão, traduzindo um dever ser, no sentido de um imperativo
categórico (e não hipotético) socialmente eficaz, e não meramente uma descrição do
real. Por outras palavras, uma norma jurídica stricto sensu atribui valores, predica,
prescreve comportamentos, regula condutas.

57
b. Classificação das regras jurídicas

Por existir um grande número de regras pode ser útil a sua arrumação em
grandes categorias, atendendo a vários critérios tais como relação entre normas,
relação com a vontade do destinatário da norma, âmbito material de aplicação e
aplicabilidade.

i. Relação entre normas


ia. Regras principais e derivadas

A regra principal resulta directamente da interpretação do Direito objectivo


enquanto que a derivada é retirada posteriormente de uma regra preexistente, ou seja,
encontra-se implícita na primeira. Por exemplo, se no estado de necessidade se
permite destruir ou danificar coisa alheia (artigo 339.º CC), então também se pode
retirar que é igualmente possível usar coisa alheia, já que o uso é um acto menos
intenso do que a destruição. Assim, quem pode o mais pode o menos. Já em sentido
inverso, a regra que proíbe o menos proíbe o mais: se proíbe danificar, proíbe destruir
por maioria de razão. O argumento a contrario sensu constitui um outro exemplo: o
que não é proíbido, é permitido, regra que, contudo, deve ser interpretada com algum
cuidado.

ib. Regras interpretativas e inovadoras

As regras interpretativas destinam-se a fixar o sentido de uma outra regra.


Por exemplo, a regra que vem explicitar o sentido de “prédio rústico”. As regras
inovadoras, por sua vez, acrescentam algo de novo à ordem jurídica porque
modificam o enquadramento jurídico pré-existente.

ic. Regras autónomas e não autónomas

As regras autónomas têm, por si, sentido completo enquanto que as não
autónomas só o conseguem através da combinação com outras regras. Convém, no
entanto, distinguir estas últimas de proposições jurídicas não normativas - como as

58
classificações legais (cf. classificação das coisas, artigos 203.º CC e ss.) e as
definições legais (cf. definição de coisa artigo 202.º n.º1 CC).

Nas regras não autónomas podemos incluir regras sobre regras que fixam o
âmbito de regras anteriores, como as regras restritivas ou ampliativas e as regras
remissivas em que o seu sentido só se completa se olharmos para a regra para onde
remete. Pensemos, por exemplo, nas regras de devolução do Direito internacional
privado previstas nos artigos 25.º e ss. do CC ou nas regras de Direito transitório
formal que resolvem problemas de aplicação da lei no tempo remetendo a solução
para uma das leis envolvidas na questão. Em ambos os casos a remissão funciona
como estatuição (consequência jurídica).

Outra possibilidade de regras não autónomas é a das ficções e as presunções.


Neste caso a remissão que está implícita prende-se com a previsão da norma.

Nas ficções, como as dos artigos 242.º, 275.º n.º 2 e 2752.º CC, assume-se que
um facto é igual a um outro previsto numa outra regra, mesmo se a realidade jurídica
não coincida com a realidade material.

As presunções podem ser relativas (iuris tantum) ou absolutas (iuris et de iure)


consoante possam ou não ser afastadas e traduzem ilações que a lei ou o julgador
tiram de um facto conhecido para estabelecer um facto desconhecido (artigo 349.º
CC) de forma a aliviar do ónus da prova de quem tem a seu favor a presunção. As
primeiras, que constituem a regra, nos termos do n.º2 do artigo 350.º CC, são
susceptíveis de ser contrariadas mediante prova, ou seja são ilidíveis (veja-se, entre
outros, o artigo 68.º n.º2 CC). Já as segundas, como no artigo 243 n.º3 CC,
representam situações em que se exclui a faculdade de se provar o contrário do que
está previsto, sendo o resultado, portanto, igual àquele que se prevê e equivalente ao
de uma ficção jurídica. Também aqui pode haver uma divergência entre a realidade
jurídica e a realidade material.

59
id. Normas primárias e normas secundárias

As normas primárias ou normas quadro estabelecem um enquadramento


geral de uma determinada matéria, sendo depois desenvolvidas e completadas por
normas secundárias ou de execução que garantem, desta forma, a sua aplicação.

ii. Relação com o destinatário da norma


iia. Regras proibitivas, preceptivas e permissivas

As regras proibitivas, preceptivas e permissivas são regras de conduta. As


primeiras proíbem/vedam uma conduta (não matar), as segundas impõem uma
conduta (regularização da situação militar) e as terceiras permitem uma determinada
conduta (elaborar um testamento).

iib. Regras injuntivas

As regras injuntivas são as que se aplicam independentemente da vontade


dos sujeitos. Pense-se nas regras de trânsito. Mais, por via de regra, os negócios
jurídicos que atentam contra regras injuntivas são nulos, nos termos do artigo 294.º
CC.

iic. Regras dispositivas. Permissivas, interpretativas e supletivas.

As regras dispositivas são as que podem ou não ser aplicadas, atendendo à


vontade das partes. São, no fundo, regras facultativas e podem ser divididas em três
tipos: permissivas, interpretativas e supletivas.

As regras permissivas, como o nome indica e acima referimos, permitem um


determinado comportamento baseado na vontade humana. Só depois de
manifestarmos a nossa vontade é que poderemos sentir os devidos efeitos. Pense-se,
no casamento.

60
As regras interpretativas, como supra dissemos, não são inovadoras e
permitem apurar o sentido das regras. Aqui, interessam-nos apenas as que se
encontram dispostas em negócios jurídicos e que dependam da vontade das partes
pois as outras (normas sobre normas), ao contrário destas, são injuntivas.

As regras supletivas, por seu turno, resultam da impossibilidade das partes


conseguirem prever toda e qualquer situação emergente dos seus negócios. A lei
minimiza esta deficiência estabelecendo um regime legal para os negócios mais
importantes, regime esse que pode ser afastado se as partes envolvidas assim o
entenderem. Pense-se, por exemplo, no regime supletivo de comunhão de adquiridos,
no que respeita ao regime de bens no casamento ou nas regras sobre preço, condições
de prestação, entrega e pagamento no contrato de compra e venda.

iii. Âmbito material de aplicação


iiia. Regras gerais, especiais e excepcionais

As regras gerais definem um regime para a generalidade das situações


consideradas, enquanto que as regras especiais só se reportam a uma parte
merecedora de um tratamento diferenciado. As regras excepcionais representam
também uma parte das situações consideradas mas que, pelas suas características,
merece uma resposta oposta à da generalidade dos casos. Imagine-se as provas físicas
a que são submetidos os cadetes. Estes devem, em 12 minutos, dar seis voltas e uma
recta (regime geral). Com a entrada de cadetes femininas estabelece-se um regime
diferenciado (especial) de cinco voltas e três rectas. Já os cadetes com baixa médica
na altura das provas não têm de correr (regime excepcional).

A regra especial, ao contrário da regra excepcional, não contraria o princípio


geral e, por isso, pode ser alvo de uma interpretação analógica, realidade que está
vedada para a regra excepcional.

iiib. Regras comuns e particulares

As regras são comuns quando se aplicam a uma generalidade de sujeitos e


particulares quando se reportam apenas a certas categorias. Recorde-se a antiga

61
divisão entre nobreza, clero e povo e em a que cada categoria era aplicado um
conjunto de normas. No nosso ordenamento actual, as regras são comuns pois visam
todos e qualquer um, se bem que no artigo 20.º n.º3 CC se atente à existência de
ordenamentos plurilegislativos de natureza interpessoal.

iiic. Regras universais, nacionais, gerais, regionais e locais

A distinção entre regras universais20, nacionais, gerais (continentais21),


regionais e locais prende-se com a aplicação geográfica das mesmas. No entanto,
refira-se uma diferença quanto à prova do Direito. De acordo com o artigo 348.º CC,
o Direito local, porque menos conhecido, deve ser provado em juízo, ao contrário do
que acontece com o Direito geral.

iv. Aplicabilidade das regras


iva. Regras programáticas e preceptivas

As regras programáticas fixam objectivos a alcançar mas que não são de


aplicação imediata pois dependem de um complemento legislativo e da simultânea
existência de um enquadramento político, económico e social favorável. Pense-se, em
especial, em grande parte dos direitos económicos, sociais e culturais previstos na
Constituição como o acesso tendencialmente gratuito à educação. As normas
preceptivas, ao contrário, definem objectivos de aplicação imediata, gerando enormes
expectativas por parte dos seus destinatários.

v. Relações entre os vários tipos de regras.

Existem diferenças resultantes da caracterização das regras. Por exemplo, qual


será a relação entre uma norma local e uma norma geral (em sentido geográfico)? Se a
regra é local (emanada por órgãos locais e com um âmbito de aplicação local,
20
De uma forma mais simples podemos considerar que são universais as regras que se aplicam à
totalidade do território sob jurisdição, seja ele estadual, comunitário ou internacional. Regionais serão
aquelas regras que só se aplicam em parte do território, seja ele nacional, comunitário ou internacional.
21
O território continental português não se encontra dividido em regiões mas também não se reconduz
ao espaço nacional pois há que ter em conta as regiões autónomas. Assim, as regras gerais enquanto
regras para o continente são uma especificidade interna portuguesa.

62
atendendo a especificidades locais), dificilmente, em primeiro lugar, se encara a
possibilidade de esta ser interpretada de forma analógica para um âmbito mais lato ou
para uma localização diferente. Em segundo lugar, devido às especificidades que são
tidas em linha de conta, apesar de haver regras gerais sobre a mesma matéria, parece
de se manter a aplicação da regra local, salvo se intenção das primeiras for revogar
esta. No entanto, parece que poderemos considerar as regras gerais como subsidiárias
das locais se não puserem em causa a lógica local e as suas especificidades.

Esta questão conduz-nos a uma outra de grande importância: a relação entre as


regras gerais (em sentido material) e as regras especiais. Dois aspectos a considerar: a
prevalência das regras e a eventual revogação da lei especial por uma lei geral
posterior.

No que respeita a primeira questão, há que atender primeiro às regras especiais 22,
porque são mais específicas e precisas e, só no caso de estas não se aplicarem,
procurar enquadrar a questão na regra geral. Pense-se no que acima se referiu sobre o
estado de necessidade e a legítima defesa.

No segundo caso, atente-se ao artigo 7.º n.º3 CC que estipula que a lei geral não
revoga a lei especial, salvo se tal resultar do espírito da lei, de forma contundente,
explícita ou implicitamente. Esta solução implica, por parte do intérprete, um trabalho
minucioso de apuramento do sentido da lei geral.

Por fim, resulta do que dissemos que a lei especial posterior não revoga a lei geral,
apenas a derroga na parte em que se aplica. Se a lei especial vier a ser revogada e não
for substituída então a lei geral volta a aplicar-se na sua totalidade.

22
Idealmente, o melhor é começar por ponderar a regra geral, depois procurar a existência de regras
especiais e, na falta destas, retornar à regra geral.

63
7. Ramos de Direito
a. A árvore do Direito

Se optarmos por uma metáfora podemos comparar o Direito a uma árvore num
jardim. O ambiente que rodeia a nossa árvore, o jardim, representa o Direito
internacional e o Direito comunitário que condicionam a forma como a nossa árvore
pode crescer e desenvolver-se mas também como ela se relaciona com as outras
árvores e elementos do jardim. A terra representa o Direito natural e é, assim,
fundamento de todas as árvores e do ambiente que as rodeia.

Por sua vez, a árvore, que representa o Direito interno, tem um tronco que
simboliza a espinha dorsal de todos os ordenamentos jurídicos, o Direito
constitucional, que está enraízado no Direito natural. Este tronco vai depois
subdividir-se nos principais ramos de Direito como o Direito civil, penal, processual,
administrativo… que se subdividem em galhos e folhas, ou seja, em especializações
dos ramos principais como o Direito da família, das sucessões, das coisas, das
obrigações, o Direito penal económico, o Direito económico, o Direito fiscal…
Convém, ainda, acrescentar à nossa árvore umas lianas que representam ramos
jurídicos transversais (como o ambiente e a energia) que a atravessam, ligando-se a
todos os ramos.

b. Direito supraestadual
i. Direito internacional público

O Direito internacional público é constituído por um conjunto de princípios e


regras jurídicas criados por processos internacionais e não se reconduz apenas a uma
regulação das relações entre Estados. A evolução do Direito internacional tem sido
muito vincada nos últimos anos e, ao lado dos Estados, surgem novos sujeitos como
as organizações internacionais, a Santa Sé e o próprio indivíduo. Assim, autores há
que preferem falar em Direito das Gentes. Por outro lado, os assuntos tratados não se
resumem a questões de paz ou de guerra mas alargam-se cada vez mais (comércio,
desenvolvimento, ambiente, direitos humanos, cultura, educação, menores…), não se
podendo hoje determinar à partida se uma matéria é ou não do foro interno ou

64
internacional face à globalização da maioria das questões. Desta feita, emergem agora
novos subramos do Direito internacional como o Direito internacional do ambiente,
do desenvolvimento, dos direitos humanos e económico. Contudo, paralelamente a
este alargamento do âmbito do Direito internacional, tem-se assistido a uma tendência
de recusa do seu total acatamento, sobretudo pelos Estados mais poderosos, que
tentam bloquear a sua natural e necessária evolução. Pense-se nos Estados Unidos e
na recente guerra no Iraque ou na sua recusa em ratificar o Protocolo de Quioto ou a
criação do Tribunal Penal Internacional. Já atrás, aliás, tínhamos chamado a atenção
para as fragilidades da coercibilidade neste campo.

ia. Distinção de Direito internacional privado

O Direito internacional privado não se confunde com o Direito internacional


público. Aquele pode ter origem interna (pense-se nos artigos 14.º a 65.º CC) ou
internacional (por exemplo, a Convenção de Roma em matéria de obrigações ou a lex
mercatoria) e é constituído, em sentido estrito, por princípios e regras que visam
determinar, em situações de conflitos de leis, qual o ordenamento jurídico a aplicar. A
sua importância é, por sinal, cada vez mais notória numa sociedade cada vez mais
globalizada. Por exemplo, se um militar da GNR destacado no Iraque resolver casar-
se com uma iraquiana, que lei deve ser aplicada ao matrimónio? A portuguesa ou a
iraquiana? Ou as duas? E se o militar comprar um produto made in China defeituoso a
um comerciante paquistanês sediado em Nassíria? Parafraseando a Prof. Doutora
Magalhães Collaço, o Direito internacional privado é, como o nome indica, um
Direito privado23 que regula relações entre particulares atravessadas por fronteiras.

ii. Direito comunitário

O Direito comunitário tem, hoje em dia, em Portugal, uma importância


esmagadora mesmo em detrimento do Direito interno. Fala-se em Direito comunitário
primário e em Direito comunitário secundário ou derivado. No primeiro caso, temos
os tratados constitutivos das Comunidades e da União Europeia e as suas respectivas

23
Inocêncio Galvão Telles critica a expressão Direito internacional privado e relembra que este
também regula questões de Direito criminal que são claramente do foro público e não privado,
preferindo a expressão conflito de leis.

65
revisões e tratados de adesão. No segundo caso, trata-se de princípios e regras que
resultam dos processos de criação próprios da Comunidade. Refira-se, adiantando já
alguma matéria, que qualquer bom jurista deve estar muito atento ao Direito
comunitário, não só pela abrangência de matérias abordadas mas devido ao seu
primado sobre o Direito interno, à aplicabilidade directa e ao efeito directo de certas
normas. Por outras palavras, o Direito comunitário é parte integrante da ordem
jurídica portuguesa e prevalece sobre o Direito interno.

c. Direito interno
i. Direito público e Direito privado. Distinção

Vários têm sido os critérios para distinguir Direito público de Direito privado.

Segundo o critério do interesse, será público o conjunto de normas que visar a


defesa e a satisfação de interesses públicos e privado o que pretender a defesa e a
satisfação dos interesses dos particulares. No entanto, este critério é pouco claro pois
nem sempre é fácil a distinção entre interesse público e privado, quanto mais não seja
porque o primeiro corresponde mediatamente ao segundo e este é protegido pelo
primeiro.

Um outro critério prende-se com a qualidade dos sujeitos. Se está em causa o


Estado, então o Direito será público. Se estiver em causa um particular, então será
privado. Contudo, este critério também pouco satisfaz pois o Estado, por vezes,
comporta-se como um qualquer outro sujeito de Direito24. Por exemplo, se o Estado
compra canetas, deveremos encarar este facto à luz do Direito público? As regras que
regem este contrato de compra e venda já não são as mesmas do que as estipuladas
para os particulares?

Assim, na nossa opinião, este critério devia ser corrigido e deveríamos


também atentar à forma como os sujeitos se apresentam 25. Ou seja, quando um sujeito
age dotado de poder de autoridade, o famoso ius imperii, então o Direito em causa

24
Também os particulares, em determinadas condições (em especial quando prosseguem o interesse
público) se comportam como uma entidade pública dotada de poderes especiais. Pense-se nas
colectividades de interesse público ou de solidariedade social.

66
será público. Se o sujeito agir como um qualquer outro sujeito, por outras palavras, se
houver paridade entre os sujeitos, então o Direito será privado.

Por fim, refira-se que hoje em dia se assiste a um fenómeno de contágio mútuo
entre o Direito público e o Direito privado na procura de soluções mais adequadas
para a dinâmica natural do Direito.

ii. Direito público


iia. Direito constitucional

O Direito constitucional desempenha o papel principal no Direito interno pois


constitui a espinha dorsal de qualquer ordenamento, fixando os princípios
fundamentais de todos os ramos jurídicos.

iib. Direito administrativo

O Direito administrativo, de uma forma simplista, mais não é do que o


conjunto de princípios e normas jurídicas que regulam a organização e a actividade do
Estado na prossecução dos interesses colectivos. Devido ao crescendo das tarefas do
Estado com a passagem de um Estado liberal para um Estado social e depois pós-
social, a tendência tem sido no sentido do alargamento das matérias tratadas e no
surgimento de Direitos administrativos especiais, como, para alguns, o Direito fiscal e
o Direito económico.

25
A preferência por este critério não afasta o recurso aos outros dois apontados. Neste sentido e
apontando para o facto do critério do interesse determinar a entrega de poderes de autoridade, M. L.
Duarte; Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.

67
iic. Direito penal

O Direito penal corresponde à definição de comportamentos considerados


criminosos e ao estabelecimento das respectivas sanções (penas ou medidas de
segurança) que traduzem, no fundo, a reprovação de determinadas acções e a forma
mais óbvia de garantir a estabilidade e a sobrevivência social.

O Direito penal só se preocupa com condutas legalmente tipificadas que se


podem traduzir em acções ou omissões, por negligência ou dolosas, e traduz-se, desta
forma, numa delimitação dos espaços de liberdade de actuação dos particulares,
chocando, assim, com os seus direitos, liberdades e garantias. A sua aplicação deve,
portanto, face à sensibilidade da matéria, ser acautelada por princípios bem recortados
que garantam a segurança dos particulares e evitem abusos e arbitrariedades. Pense-
se, no princípio da legalidade ou da tipicidade, na não retroactividade da lei penal ou
na impossibilidade de se recorrer à analogia. Contudo, não se pense no Direito penal
como um Direito meramente repressivo. As suas normas podem ser encaradas como
uma forma de prevenção, procurando dissuadir e evitar mais comportamentos
criminosos, quer de quem cometeu o ilícito como por parte da restante comunidade.
As próprias medidas de segurança hoje aplicadas em consonância com as penas são,
aliás, um bom exemplo de intuito preventivo especial.

iid. Direito processual civil

O Direito, como vimos, tem uma função de dirimir conflitos mas para tal é
necessária a criação de órgãos - os tribunais – e a definição das regras para a sua
organização e actividade. Por outras palavras, o Direito Processual visa estabelecer os
princípios e as normas relativas ao mecanismo de funcionamento da resolução de
litígios. Trata-se, portanto, de um Direito adjectivo pois é instrumental face aos outros
ramos de Direito.

No caso do Processo civil, este é instrumental face a todos os ramos de Direito


privado, salvo os que estão autonomizados a nível processual, como o Direito do
trabalho. Mais, trata-se de um Direito dispositivo, ou seja encontra-se nas mãos das

68
partes que o fazem avançar ou parar, que definem o seu âmbito, que apresentam
provas…, embora o juiz não se reduza a um papel de mero espectador.

Por fim, é necessário distinguir entre um processo declarativo, em que se


declara os direitos e deveres das partes, e um processo executivo que visa a
efectividade do direito ou dever declarado.

iie. Direito processual penal

O Direito penal não pode ser efectivado se não for por via do processo. Ou
seja, eu posso cometer um crime mas só sofrerei a respectiva sanção se esta me for
aplicada em juízo, cabendo ao juiz apreciar as provas relativamente aos factos.

Ao contrário do processo civil, o penal não é dispositivo, estando entregue a


sua direcção ao Ministério Público e rege-se pelos princípios do acusatório e do
contraditório, decidindo o juiz no final.

iii. Direito privado


iiia. Direito civil: obrigações, reais, família e sucessões

O Direito privado pode ser dividido em Direito civil ou comum e direito


especial, sendo o primeiro tudo aquilo que não cabe no segundo. O Direito civil
representa, assim, o tronco do Direito privado e é muitas vezes encarado como uma
reserva dos princípios gerais de Direito, em que a maioria das disciplinas vem beber.

Os principais ramos que encontramos no Direito comum são o Direito das


obrigações, das coisas, da família e das sucessões. No primeiro caso, regulam-se as
situações em que uma parte se vinculou a prestar algo a outra. Pense-se num contrato
de compra e venda. No segundo, regula-se a atribuição das coisas. Recorde-se o
exemplo paradigmático do direito de propriedade. O terceiro, por seu turno, regula a
constituição da família e as suas relações: o casamento, a procriação e a adopção. Por
fim, o Direito das sucessões regula a sucessão por morte.

69
Para terminar, refira-se que novos ramos de Direito civil têm surgido nos
últimos tempos como o Direito de autor e o Direito da personalidade.

iiib. Direito privado especial: Direito comercial e Direito do


trabalho

Os Direitos especiais representam uma adaptação do Direito comum a


situações e necessidades especiais. Dois têm hoje um papel preponderante: o Direito
comercial que regula os actos de comércio e o Direito do trabalho que regula as
relações laborais, tendo-se assistido, neste último caso, a um reforço sucessivo da
posição do trabalhador. No entanto, a nova legislação laboral visa agora mitigar essas
conquistas em nome de uma necessária flexibilização para o bom funcionamento da
economia.

iv. Outros

Queremos aqui apenas referir que têm surgido recentemente ramos mais ou menos
individualizados de Direito que se distinguem dos outros por serem transversais (as
nossas lianas), ou seja, atravessam o ordenamento jurídico e tocam em todos os outros
ramos. Pense-se no Direito do ambiente, do urbanismo, da energia ou dos transportes.

Por outro lado, assiste-se, numa sociedade complexa, globalizada e tecnológica, a


uma especialização crescente também no mundo do Direito, quer a nível normativo,
como cientifíco, profissional e pedagógico, o que conduz à multiplicação de ramos,
por vezes ainda mal formados em termos científicos, como o Direito dos valores
mobiliários, bancário, dos seguros, da concorrência, imobiliário, espacial, entre
outros. Este fenómeno, se vantajoso por facilitar a localização das matérias e das
normas aplicáveis e o seu consequente aprofundamento, tem como principais custos o
agravamento da complexidade jurídica e a criação de verdadeiras incongruências.

8. Conhecimento científico do Direito

Como vimos acima, a expressão direito tem vários sentidos e podemos, desta
forma, falar de Direito como uma ciência que estuda o Direito em sentido objectivo

70
através de um método próprio, o método jurídico. Fala-se em Ciência do Direito ou
Ciência jurídica. Atente-se, no entanto, ao facto de ser humana e cientificamente
impossível conhecer todo o Direito. Daqui resulta não só o inevitável fenómeno de
especialização a que nos referimos acima, como, por outro lado, a relativização do
conhecimento jurídico-científico.

Ainda no âmbito das ciências que estudam o Direito na sua essência normativa
necessária e imperativa, atente-se à Sociologia do Direito (que se preocupa com a
análise das situações de vida sobre as quais o Direito se baseia) e à Filosofia do
Direito (que estuda o Direito de forma crítica, avaliando, sobretudo a sua
conformidade com os valores sociais e a Justiça).

Mas várias outras ciências estudam o Direito. Pense-se na História do Direito (é


necessário conhecer o passado para compreender o presente e antecipar o futuro 26), na
Política legislativa (que permite aperfeiçoar o Direito existente através do estudo dos
sistemas jurídicos), no Direito comparado (que como o nome indica passa por uma
comparação dos sistemas jurídicos, permitindo, desta forma, um mais célere
aperfeiçoamento e a sua harmonização em época de forte globalização), ou na análise
económica do Direito (que estuda o Direito através dos métodos próprios da
Economia, nomeadamente através de uma análise de custos-benefícios).

Por fim, múltiplas são as ciências auxiliares, em especial numa época em que o
Direito se torna cada vez mais técnico, como a Antropologia, a Linguística, a
Medicina legal e até a Física, Matemática ou Biologia.

9. Profissões jurídicas

Várias são as profissões jurídicas passíveis de serem consideradas e fuja-se,


assim, à tentação de qualificar todos os licenciados em Direito como advogados ou
juízes. Para além destas duas, há que considerar, por exemplo, os magistrados do
Ministério Público, os notários, os conservadores, os solicitadores, os diplomatas, os
professores, os tradutores jurídicos, os jurisconsultos e os juristas que prestam auxílio
jurídico nas mais diversas áreas, entre outros. Hoje, aliás, o segredo para fugir às
26
M. L. Duarte.

71
malhas da saturação de licenciados em Direito passa pela aposta em profissões
jurídicas menos conhecidas como a tradução jurídica e na aposta em áreas em
desenvolvimento, novas ou pouco exploradas como o Direito fiscal e financeiro, o
Direito bancário e dos seguros, o Direito imobiliário, o Direito do trabalho, do
consumo, da concorrência e da regulação, da energia e do ambiente, da medicina e do
medicamento, do desporto, das autarquias locais, as ciências jurídico-militares, o
Direito internacional privado…

72
III. Fontes de Direito

1. Noção de Fonte

A ordem jurídica é composta por regras. Ora estas têm uma origem histórica à
qual se dá o nome de fonte, assim como se dá o nome de fonte à sua base filosófica,
sociológica e à sua proveniência orgânica. A palavra fonte é, portanto, polissémica.
Em sentido técnico, significa o modo de formação e de manifestação das regras
jurídicas. Quando se fala em formação está-se a pensar no facto de que derivam as
normas (o acto legislativo, por exemplo), na sua génese e no seu processo de
formação. No que respeita a manifestação ou revelação das regras, pensa-se na sua
sinalização exterior: o texto legal ou a conduta no costume. Por fim, acrescente-se a
esta definição formal, o facto da fonte exprimir “um querer legitimado de regulação
social”.27

Refira-se, ainda, antes de avançar, que o leque de fontes previsto no Código


Civil, em especial nos artigos 1.º a 4.º, não se encontra de modo algum completo. Há
que considerar, nomeadamente, as fontes de Direito internacional e de Direito
comunitário, para já não falar da questão relativa ao costume, à jurisprudência ou à
doutrina.

2. Equidade

A equidade (ou a justiça do caso concreto) não se traduz numa verdadeira


fonte de Direito, como poderia resultar da sua integração no capítulo I do Livro I do
CC, na medida em que constitui uma solução não normativa de litígios, ou seja, situa-
se à margem das regras pois não pressupõe sempre a sua existência. Por outras
palavras, a equidade é um modo de revelação do Direito mas não de regras. Desta
feita, a equidade, por atender às circunstâncias concretas, é uma solução flexível que
se adapta a cada caso, constituindo um verdadeiro critério de aplicação correctiva do
Direito imposto pela própria ideia de Justiça.

27
Cf. M.L. Duarte.

73
O Direito português é, no entanto, restritivo no recurso à equidade, como
resulta do artigo 4.º CC, só admitindo a sua aplicação nos casos legalmente previstos.
Veja-se, por exemplo, o já referido artigo 339.º n.º2 CC ou pondere-se a sua
relevância em matéria de integração de lacunas ou em situações de substituição da lei
como critério decisional.

Para poder ser atendida a equidade depende, para além da previsão legal, de
uma cláusula compromissória que a preveja ou de um acordo das partes no âmbito da
sua autonomia.

Por fim, a equidade não é o único critério de resolução não normativo. Pense-
se, por exemplo, numa ordem ou na discricionaridade concedida a um ente público.

3. Fontes de Direito internacional

O artigo 8.º CRP estabelece que as fontes de Direito internacional fazem


parte do Direito português, embora em alguns casos se exijam algumas condições. No
caso das normas e princípios de Direito internacional geral ou comum (que integram
designadamente os princípios gerais, o costume e o ius cogens) essa integração é
imediata, através de uma cláusula de recepção automática prevista no n.º1. No caso
das normas resultantes de convenções (tratados e acordos) é necessária a sua
ratificação ou aprovação regular e apenas vigoram enquanto vincularem
internacionalmente o Estado português. Por outras palavras, resulta do n.º2 e do artigo
277.º n.º2 CRP uma cláusula de recepção plena condicionada 28. No que respeita as
normas de organizações internacionais de que Portugal seja parte, a sua vigência é
automática e directa desde que tal esteja previsto nos tratados constitutivos como
resulta do n.º3. No caso do Direito comunitário primário e secundário, de acordo com
o n.º 4 e o n.º 6 do artigo 7.º, é necessário, nas matérias que são da sua competência,
atender aos próprios termos do Direito da União e ao respeito dos princípios
fundamentais do Estado de Direito democrático.

28
Atente-se, ainda, aos artigos 115.º n.ºs 3 e 5; 119.º n.º1b); 134.º b); 135.º b); 140.º; 161.º i); 197.º
n.º1b) e c); 278.º n.º1 e 279.º CRP.

74
Contudo, antes de avançarmos, convém esclarecer que se deve distinguir a
existência e a validade do Direito internacional da sua aceitação pelo Direito interno.
Aqui existem dois caminhos: o monismo e o dualismo. No monismo aceita-se que a
ordem jurídica é una mas duas posições podem ser defendidas, uma prevalência do
Direito interno (o que se traduz numa negação do Direito internacional) e uma
prevalência do Direito internacional29. No dualismo, o Direito internacional e o
Direito interno apresentam-se como duas ordens jurídicas autónomas, o que significa
que para ser aplicado em termos internos o Direito internacional necessita da
autorização do Direito interno. Isto redunda, no fundo, na sua negação pois é
necessário um acto interno para receber a regra internacional.

Por fim, o artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça


estabelece uma lista das fontes de Direito internacional. Contudo, essa previsão
revela-se criticável e desactualizada, sobretudo tendo em conta a aceleração notória
do Direito internacional nos últimos anos, assim como a sua transformação
progressiva, evidente, por exemplo, em matéria ambiental.

a. Ius cogens

O ius cogens traduz-se num conjunto muito restrito de regras e princípios


que são comummente aceites como obrigatórios e imperativos pela Comunidade
internacional, impondo-se sobre as ordens jurídicas internas. Embora o seu
conteúdo não seja ainda hoje muito pacífico e continue a evoluir, pense-se, por
exemplo, na proibição da escravatura, do genocídio ou da pirataria, do uso da força ou
na solução pacífica dos conflitos e na legítima defesa. Como vimos, o artigo 8.º n.º1
CRP dispõe a sua recepção plena e automática. Por seu lado, os artigos 53.º e 64.º da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados dispõem sobre a nulidade das
normas convencionadas que violem o ius cogens.

29
Esta é a posição adoptada no ordenamento português, sendo a nossa Constituição das mais abertas a
nível mundial.

75
b. Costume

O costume internacional é composto, à semelhança do que acontece no


Direito interno, por dois elementos: um elemento material, o uso, e um elemento
psicológico, a convicção da obrigatoriedade. Hoje em dia, face à aceleração
histórica, tem-se verificado uma suavização do primeiro requisito, o que tem
permitido a formação de diversos costumes em pouco tempo. Ou seja, não interessa
tanto o número de actos ou de omissões mas a uniformidade na reiteração do uso e a
sua aceitação. Como exemplo contundente de celeridade recorde-se o caso da
plataforma continental.

Para além da pretensa morosidade e rigidez do costume, outra crítica prende-


se com o seu carácter vago e impreciso. Se concordamos via de regra com esta
afirmação, no entanto, pensamos que este seu carácter fluido pode permitir uma
melhor adequação e actualização do costume a uma realidade em movimento. Aliás, a
grande mais valia do costume resulta da sua automática adaptação ao pulsar social.

Por fim, chame-se a atenção para a existência de costumes regionais ou


locais e para a polémica em torno da sua aceitação.

c. Princípios gerais de Direito

O artigo 38.º do Estatuto do TIJ prevê os princípios gerais de Direito


internacional como fonte de Direito mas alguns autores, em especial soviéticos,
demonstram alguma relutância em aceitá-los como fonte autónoma. Por outro lado,
nem sempre é fácil distinguir de forma estanque entre o ius cogens, o costume e os
princípios gerais e, por esta razão, a mesma realidade normativa é enquadrada por
vezes numa classificação diferente. Quanto à sua legitimação, esta baseia-se numa
ideia de razoabilidade reconhecida pelas nações “civilizadas”, termo rejeitado pelos
países em vias de desenvolvimento pela sua componente anacrónica e meramente
ocidental. Como exemplo, refira-se o dever de avaliar o impacto e as consequências
no meio ambiente de outro Estado antes de se iniciar qualquer actividade
potencialmente lesiva dos seus interesses.

76
d. Convenções

Esta fonte de Direito internacional de cariz contratual tem tido uma grande
expansão nos últimos tempos graças à crescente institucionalização internacional e
tem sofrido alterações na sua forma, de maneira a se adaptar às novas necessidades de
uma sociedade globalizada, tecnológica e em rápido movimento. Assim, desde
tratados solenes a acordos de cavalheiros, passando por convenções com articulados
minuciosos a outras que apenas fixam meia dúzia de princípios, relegando aspectos
técnicos susceptíveis de alterações frequentes para os anexos, várias têm sido as
formas sob as quais se apresenta. No que respeita o Direito dos Tratados, veja-se as
Convenções de Viena de 1969 e 1986.

Comparando com os princípios gerais de Direito e com o ius cogens, trata-se


de uma fonte mais palpável, precisa e flexível que facilita respostas mais imediatas
aos problemas a solucionar, factor que pode explicar a sua popularidade actual.

e. Actos unilaterais

Os actos jurídicos unilaterais não se encontram previstos no artigo 38.º do


ETIJ mas são hoje comummente aceites como fontes de Direito internacional
reconhecidos por normas consuetudinárias. Trata-se, desta feita, de uma fonte
autónoma que tem como característica principal emanar de apenas uma parte, de
apenas um sujeito de Direito, normalmente um Estado ou uma organização
internacional. A diferença entre os actos unilaterais dos Estados e das organizações
internacionais reside no facto de os segundos terem por base os tratados constitutivos
das mesmas e terem maior diversidade de conteúdo e forma. Pense-se nas resoluções,
recomendações ou decisões que preferimos tratar mais à frente em matéria de soft law
(onde se enquadra a esmagadora maioria) ou nos regulamentos, directivas e decisões a
nível comunitário. No que respeita os Estados, pense-se, por exemplo, nos protestos,
nos reconhecimentos, nas notificações, nas promessas e nas renúncias.

77
f. Soft Law

Desde o seu início que as organizações internacionais adoptam resoluções


dirigidas, em geral, aos Estados membros no sentido de os sensibilizar para algumas
questões. A importância destas medidas tem conhecido um franco desenvolvimento
com a multiplicação de organismos, associações e de conferências internacionais.
Assim, encontramos códigos de conduta, resoluções, declarações de princípios,
directrizes e recomendações como uma forma privilegiada de expressão. Raramente,
no entanto, vinculam os Estados Parte embora obriguem as organizações que as
emitiram a segui-las. Devido a este carácter não vinculativo, muitos autores preferem
falar em soft law.

Alguns, por seu turno, negam-lhe a qualidade de fonte de Direito, até porque
não está prevista no ETIJ. Este argumento não procede, visto que é preciso considerar
a grande evolução que se tem feito sentir no Direito internacional, nomeadamente
com o surgimento de áreas novas, como o ambiente, que não se compadecem com a
rigidez das fontes tradicionais. Por outro lado, não releva a crítica relativa ao carácter
não vinculativo destes instrumentos. Em primeiro lugar porque alguns, ainda que
poucos, o são. Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência têm um alcance limitado
sem que o seu estatuto de fontes de Direito seja posto em causa, pelo menos, enquanto
fontes mediatas.

Deste modo, a soft law representa no mínimo uma fonte mediata ou uma
nova técnica de formação de normas jurídicas. O seu papel é, aliás, da maior
importância, sobretudo a nível ideológico. As fontes de Direito tradicional apresentam
algumas insuficiências que precisam de ser supridas. Quanto ao costume e aos
princípios nem sempre é fácil identificá-los. No que respeita as convenções a sua
celebração é muitas vezes morosa porque implica negociações e acordos difíceis, a
realização de estudos prévios, consultas alargadas. A soft law possibilita uma resposta
mais célere e adequada, sobretudo em ramos muitos técnicos como o ambiente ou o
Direito económico. Por outro lado, reflecte consensos, reflexões e preocupações por
vezes apadrinhadas por uma maioria significativa de Estados, estimulando a

78
sensibilização para as questões internacionais e, mesmo, desbravando caminho para
uma futura opinio juris vel necessitatis (convicção de obrigatoriedade).

De acordo com o seu conteúdo podem ser identificados três tipos de


resolução não vinculativa: recomendações e directivas; programas de acção;
declarações de princípios.

Muito poucas organizações internacionais conseguem impor textos legais


vinculativos: o Conselho de Segurança das Nações Unidas; a OCDE, embora
raramente, por exemplo, através da instituição de um órgão multilateral de consulta e
fiscalização de imersão de lixos radioactivos; mas sobretudo e de grande relevância
para Portugal, as Comunidades Europeias com os seus regulamentos, directivas e
decisões.

g. Jurisprudência

A jurisprudência internacional apresenta-se como uma fonte subsidiária


mas de grande importância, visto as decisões do Tribunal Internacional de Justiça e
dos tribunais arbitrais exprimirem, revelarem e mesmo consagrarem normas
consuetudinárias e princípios gerais de Direito.

h. Doutrina

A doutrina, tal como a jurisprudência, constitui uma fonte mediata na


medida em que não cria directamente normas mas permite o seu reforço e evolução,
ajudando a formar uma opinio iuris. Refira-se que, em Portugal, até pouco antes do 11
de Setembro, a doutrina internacionalista encontrava-se, salvo honrosas excepções,
adormecida.

4. Fontes de Direito Comunitário

Antes de avançar, gostaríamos de deixar aqui um alerta. As fontes


comunitárias são muitas vezes esquecidas e minimizadas, na prática, pelos
profissionais do Direito portugueses. Contudo, tendo em conta o primado do Direito

79
comunitário, a aplicabilidade directa, o efeito directo e a cada vez maior diversidade
de matérias tratadas a nível europeu parece-nos indiscutível a sua importância e
premência.

a. Direito primário

O Direito comunitário originário é constituído pelos tratados institutivos


das Comunidades e da União, bem como os que as modificaram, completaram ou
adaptaram, alguns dos quais encontrando-se já ultrapassados. Pense-se, por exemplo,
nos Tratados constitutivos da CECA (extinta recentemente), da CE e da Euratom, no
Tratado de fusão, no Tratado do Luxemburgo, de Bruxelas, no Acto Único Europeu,
no Tratado de Maastricht, de Amsterdão e de Nice e nos vários Tratados de adesão.

Os tratados são autónomos uns em relação aos outros, o que significa que só
em caso de lacuna se poderá recorrer a um outro tratado para a integrar e a sua
interpretação é sistemática, cabendo ao TJCE. Refira-se ainda que o Direito
comunitário originário prevalece sobre as outras fontes comunitárias e constitui o
fundamento e o limite do Direito derivado.

Por fim, enquanto Direito convencional vigora na ordem jurídica portuguesa


por via do artigo 8.º n.º e 4 CRP e as suas normas, cumpridas determinadas condições,
são dotadas de efeito directo.

b. Direito derivado

Os principais actos de Direito derivado encontram-se previstos no artigo 249.º


TCE.

i. Regulamentos

Os regulamentos são o acto legislativo por excelência da Comunidade e


caracterizam-se por serem actos gerais e abstractos, obrigatórios em todos os seus
elementos e dotados de aplicabilidade directa, conferindo direitos e impondo
obrigações aos Estados e aos particulares. Veja-se o artigo 8.º n.º 4 CRP.

80
ii. Directivas

As directivas são dotadas de obrigatoriedade quanto ao fim, deixando aos


Estados, seus únicos destinatários, margem de manobra quanto à forma e aos
meios para o alcançar. Regra geral, as directivas não têm, por si, alcance geral mas
quando dirigidas à totalidade dos Estados Membros e aí implementadas traduzem-se
num processo legislativo indirecto, tendo, então, alcance geral. Ao contrário dos
regulamentos, as directivas não são dotadas de aplicabilidade directa (ou seja,
necessitam de ser transpostas – cf. artigo 112.º n.º9 CRP) mas podem, em certos
casos, ter efeito directo em relação aos particulares ainda antes de serem transpostas.

O efeito directo resulta da necessidade de protecção dos cidadãos contra a


inércia do Estado, garantindo o primado e a aplicação uniforme do Direito
comunitário ao dar efeito útil às directivas. Refira-se que a jurisprudência comunitária
tem vindo a apenas aceitar o efeito directo vertical, recusando ainda o efeito directo
horizontal. Por outras palavras, apenas se aceita a invocabilidade das directivas contra
qualquer entidade pública mas não contra outros particulares.

Por fim, chame-se apenas a atenção para a tendência, nos últimos anos, de
uma pormenorização cada vez maior das directivas, o que vem esbatendo a sua
diferenciação em relação aos regulamentos e que explica, em parte, uma crescente
preocupação com uma política de melhoria da legislação comunitária encabeçada pela
Comissão europeia.

iii. Decisões

As decisões traduzem-se em actos individuais sem alcance geral dirigidos


aos Estados ou aos particulares, sendo obrigatórias em todos os seus elementos.
Refira-se ainda que apenas as decisões em relação a particulares são dotadas de
aplicabilidade directa.

81
iv. Soft Law

À semelhança do Direito internacional, também no Direito comunitário


encontramos actos variados, muitos dos quais atípicos, que vão influenciando e
enformando as fontes directas de Direito comunitário. Pense-se, por exemplo, nas
resoluções e declarações do Conselho que visam, a mais das vezes, fixar grandes
princípios quanto à actuação comunitária, nas comunicações da Comissão, nas
declarações comuns a vários órgãos ou nas directivas, recomendações e pareceres de
um órgão a outro.

c. Princípios gerais de Direito

No que respeita os princípios gerais de Direito comunitário, há que atender aos


sistemas nacionais dos Estados membros e procurar um património comum,
nomeadamente em matéria de direitos fundamentais.

d. Costume

O costume tem pouca relevância em matéria de Direito comunitário, devido ao


seu carácter fortemente institucionalizado.

e. Jurisprudência

A jurisprudência comunitária tanto do Tribunal de Primeira Instância


como do TJCE tem grande relevo no universo das fontes comunitárias na medida
em que, através de juizes com elevado e reconhecido prestígio e dotados de vasta
competência, permite firmar o Direito comunitário, muitas vezes incompleto e
genérico, em especial a nível do Direito originário. Assim, tem prevalecido uma
interpretação sistemática, teleológica e dinâmica que visa garantir um efeito útil e
necessário ao Direito comunitário, consolidando-o.

82
f. Doutrina

A doutrina, à semelhança do que acontece no Direito internacional, tem


apenas um carácter de fonte mediata.

5. Fontes internas

Antes de avançarmos, importa clarificar a expressão fontes internas. Esta


significa, de uma forma simples, fontes de origem interna, criadas dentro das
fronteiras nacionais. Cabe ainda chamar a atenção para os artigos 1.º a 4.º do CC que
se debruçam especificamente sobre as fontes de Direito, embora o rol apresentado
esteja incompleto. Por exemplo, não há referência ao costume, nem aos princípios
gerais de Direito, nem à jurisprudência 30, nem à doutrina, nem às disposições de
autarquias locais, embora, neste caso, seja fácil contornar o problema, interpretando
de forma lata a referência aos órgãos estaduais no n.º1 do artigo 1.º do CC. Nem se
argumente que apenas se atende a fontes directas pois tal não é o caso da equidade e o
costume não se encontra previsto. A listagem de fontes que parece resultar da epígrafe
do capítulo I é, portanto, exemplificativa, até porque no próprio Código, no artigo
348.º, se chama à colação uma outra fonte, o Direito consuetudinário, que não se
encontra no rol dos quatro primeiros artigos.

a. Princípios gerais de Direito

No que respeita os princípios gerais de Direito, há que atender à unidade e


sistematicidade do sistema jurídico nacional, e, em particular, aos valores
subjacentes, como a dignidade da pessoa humana. A sua importância é muito vincada
sobretudo em matéria de interpretação legislativa (artigo 9.º n.º1 CC – “unidade do
sistema jurídico”) e de integração de lacunas (artigo 10.º n.º3 CC – “espírito do
sistema”). Na sua relação com o legislador, os princípios gerais de Direito limitam
ainda a sua actuação (por exemplo, vedando soluções legislativas que firam o
princípio da igualdade, da universalidade, da proporcionalidade, entre outros), embora
a possam igualmente possibilitar (nomeadamente, permitindo encontrar soluções
30
Recorde-se que o artigo 2.º relativo aos assentos foi revogado.

83
inovadoras que dêem resposta ao princípio da igualdade na sua vertente de
discriminação positiva).31

No que respeita os princípios gerais de Direito, cabe ainda acrescentar que não
se trata propriamente de regras mas de directivas mais flexíveis no estabelecimento de
soluções que decorrem da unidade e sistematicidade do ordenamento jurídico.

b. Lei

A lei tem hoje, no nosso ordenamento jurídico, um papel preponderante, por


vezes demasiado empolado, conduzindo certos autores à defesa de um positivismo
exacerbado que se traduz num monopólio legal. Contudo, tal não é a nossa posição,
como decorre, aliás, da apresentação sistemática da matéria. Defendemos um sistema
de fontes aberto e plural que não reduz o Direito a uma expressão voluntária de um
poder estadual pois como vimos, não só a estadualidade não é uma característica do
ordenamento jurídico, como, por outro, há que atender ao pulsar social, expresso, em
especial, no costume, sob pena de inadequação das soluções encontradas e de letra
morta. Contudo, tal não invalida o reconhecimento de uma posição privilegiada da lei
no universo das fontes, sobretudo devido ao reforço da institucionalização estadual e
da pressão de uma sociedade massificada, dinâmica, célere e técnica que anseia por
respostas rápidas e precisas.

c. Costume
i. Noção e características

Numa época eminentemente positivista e tecnológica como aquela em que


vivemos, existe uma tendência para desconfiar e, consequentemente, minimizar regras
provenientes de fontes não relacionadas com o poder político instituído. Tal é o caso
do costume que representa o próprio pulsar da sociedade civil 32, sendo, aliás, por
esta mais bem aceite do que uma imposição legislativa. Assim sendo, o seu papel não
deve de todo ser minimizado, sobretudo se atendermos ao âmbito regional e local.

31
M.L. Duarte, pgs. 186-187.
32
Por esta razão, Oliveira Ascensão defende, de forma algo exagerada a nosso ver, que o costume é a
fonte privilegiada do Direito.

84
Comummente, aceita-se que o costume é constituído por dois elementos
substanciais, um primeiro, objectivo – a existência de uma prática social reiterada
de modo uniforme - e um segundo, subjectivo – a convicção de obrigatoriedade
daquela prática.

A prática social reiterada representa um uso, resultando a sua existência de uma


mera observação de facto. Recordando um pouco o que acima já foi explanado acerca
do trato social, práticas sociais há que não têm qualquer relevância jurídica. Pense-se
no perú na ceia de Natal. Contudo, para afirmarmos que existe costume não basta a
repetição de um comportamento. Aliás, no Direito internacional, como vimos, existe
hoje uma tendência de minimização deste requisito, pondo-se a ênfase na existência
do elemento subjectivo: a convicção de obrigatoriedade da conduta. Esta encontra-se
intimamente relacionada com a imperatividade e a coercibilidade da ordem jurídica,
ou seja, com o sentimento de necessidade de cumprir um dever e da susceptibilidade
de sofrer sanções pelo seu não cumprimento. No entanto, avise-se desde já que apurar
a existência da convicção de obrigatoriedade é uma tarefa árdua, tendo em conta o seu
carácter pouco pálpavel e vago.

Resumindo, para existir costume necessitamos da cumulação de dois elementos:


a prática social reiterada de modo uniforme e a convicção de obrigatoriedade.
Contudo, alguns autores apontam para a necessidade de se atender ainda a outros
requisitos. A saber, a sua consagração legal, a sua imposição pelos órgãos públicos, a
racionalidade e a sua espontaneidade.

No que respeita o primeiro pretenso requisito, adiante-se que não é necessário o


costume ser aceite legalmente pois tal traduziria não apenas o predomínio da lei sobre
o costume como, indo mesmo mais longe, tal traduziria, acima de tudo, a negação do
costume enquanto fonte de Direito.

A imposição do costume por órgãos públicos, nomeadamente pelos tribunais,


pretende ligar costume e coacção mas, como vimos, a juricidade passa apenas por
uma ideia de coercibilidade.

85
Quanto à racionalidade, o que será um costume racional? E a lei não deverá ela
também ser racional?

Por fim, quanto ao seu pretenso carácter espontâneo, ou seja à não imposição de
uma prática repetida por um dado poder ou grupo social (por exemplo, quando há
ocupação armada), nada de novo se acrescenta ao que já foi afirmado sobre o
costume. Este não se reduz apenas a um elemento objectivo: se não houver convicção
de obrigatoriedade quanto a uma determinada conduta (espontânea ou não), não há
costume.

ii. Costume e Usos

Atendendo às características do costume acima apontadas, é agora fácil


distinguir este dos usos. Enquanto o primeiro exige a cumulação de um elemento
objectivo e de um elemento subjectivo, no segundo constata-se a ausência do
elemento subjectivo, ou seja, os usos representam apenas práticas sociais reiteradas,
embora algumas, como vimos, não sejam juridicamente relevantes.

No Código Civil, no entanto, surgem várias referências aos usos, o que levanta
duas questões. Não estará o legislador, em primeiro lugar, a querer falar de costume?
E se tal não suceder, qual o valor jurídico dos usos?

No que respeita a primeira questão, a resposta parece ser negativa pois no artigo
348.º CC, o legislador refere-se ao “direito consuetudinário”, o que pode subentender
uma distinção terminológica entre usos e costume, um pouco na linha do artigo 9.º
n.º3 in fine. Por outro lado, o artigo 3.º n.º1 CC prevê a subordinação dos usos à lei,
ou seja a sua não autonomia, o que não sucede, como vimos, com o costume que vale
por si. Refira-se ainda que este artigo estipula também a atendibilidade jurídica dos
usos que não forem contrários aos princípios da boa fé. A lei tem, portanto, um
comportamento restritivo quanto aos usos que servem de auxiliares interpretativos das
declarações de vontade das partes e dos negócios jurídicos, nos casos legalmente
previstos. Pense-se no artigo 218.º CC quanto ao valor do silêncio.

86
Serão então os usos fonte de Direito? A sua inserção no capítulo I com a
epígrafe Fontes de Direito e o facto de no n.º2 do artigo 3.º CC serem relacionados
com as normas corporativas indiciariam uma resposta positiva à nossa pergunta.
Contudo, na nossa opinião, ambos os argumentos apresentam fragilidades.

Em primeiro lugar, a epígrafe não tem qualquer valor vinculativo e como vimos,
este capítulo apresenta algumas deficiências, nomeadamente por incluir, no seu rol de
fontes, realidades que a elas não se reconduzem como a equidade.

Em segundo lugar, não procede o argumento de que ao se contrapor as normas


corporativas aos usos se estão a comparar duas realidades da mesma natureza, pois se
assim fosse, não deveria o artigo 1.º CC referir-se também aos usos e não apenas às
normas corporativas? Quanto muito, podemos aceitar que os usos sejam uma fonte
mediata sobretudo em termos interpretativos, um pouco na linha da doutrina e da
jurisprudência.

Contudo, fica uma dúvida no ar: no caso dos usos, ao contrário do que acontece
com a doutrina, a jurisprudência e por maioria de razão com o costume, o legislador
sentiu a necessidade de a eles se referir logo no início do diploma, ainda por cima de
forma restritiva, enfantizando o facto de dependerem de disposição legal. Por outras
palavras, os usos só têm valor quando tal é determinado legalmente, o que parece
significar uma negação do seu carácter de fonte, uma vez que lhes é vedado valerem
autonomamente.

iii. Relação entre costume e lei

Três tipos de situação podem ser identificados:


 Costume secundum legem: há uma coincidência de conteúdo entre a norma
costumeira e a norma legal.
 Costume praeter legem: a norma costumeira vai além da norma legal.
 Costume contra legem: a norma costumeira colide com a norma legal.

Uma questão impera: o que diz a nossa lei sobre estas situações? A verdade é
que não diz nada. Pense-se que não existe, por exemplo, qualquer referência ao

87
costume em matéria de interpretação ou de integração de lacunas, assim como no
artigo 7.º CC não se prevê a cessação da vigência legal por causa do costume. O facto
de se ignorar o costume significará a sua irrelevância e negará o seu estatuto de fonte?

Na linha do que temos vindo a defender, a relevância do costume não depende


do seu reconhecimento pelo legislador, estando, aliás, numa situação de paridade com
a lei33. Mas de onde vem, então, a obrigatoriedade do costume? Esta resulta sobretudo
do pulsar social e da necessidade ainda sentida em determinados sectores do Direito
(sobretudo local e internacional) de uma regulação diversa da institucionalizada, ou
porque esta não existe, ou porque se quer ir além ou contra ela 34, numa clara forma de
diferenciação, a que se tem de atender face ao princípio da igualdade.

Sendo, portanto, o costume uma fonte autónoma em paridade com a lei, aceita-se
o costume praeter legem e, no caso de um costume contra legem ou derrogativo, este,
por via de desuso (prática reiterada de não acatamento de uma conduta legalmente
prevista), implica a caducidade da lei.

d. Actos normativos dos particulares

Os particulares têm um espaço de liberdade que lhes é reconhecido pelo


Direito. Assim, no âmbito da sua autonomia, podem estabelecer, negocialmente,
regras que acabam por completar e concretizar a lei. Pense-se, por exemplo, nas
normas corporativas (artigo 1.º n.º3 CC interpretado de forma actualista), nas
convenções colectivas de trabalho e nos contratos.

e. Jurisprudência

33
Contra, exigindo o reconhecimento legislativo para garantir a vinculabilidade do costume, Galvão
Telles. No pólo oposto, inclinando-se mesmo para uma prevalência do costume sobre a lei, Oliveira
Ascensão. Reconhecendo a autonomia do costume mas conferindo-lhe um papel residual, Marcelo
Rebelo de Sousa e Sofia Galvão; Baptista Machado; Castro Mendes; Dias Marques; M.L. Duarte;
Santos Justo.
34
Os casos de costume secundum legem são raros pois pressupõem um sistema dualista em que se
movem, em zonas bem delimitadas e diferenciadas, lei e costume.

88
A jurisprudência, num sistema românico-germânico no qual o Direito
português se insere, tem sobretudo um papel essencialmente mediato, não existindo
entre nós a regra do precedente como nos países anglo-saxónicos. Por outro lado, a
interpretação rígida da separação de poderes (em especial, legislativo e jurisdicional)
conduz à limitação do juiz a um papel de mero aplicador da lei. No entanto, hoje,
reconhece-se uma função criadora à jurisprudência, face à responsabilidade de
administrar Justiça em nome do povo. Assim, o juiz abandona uma obediência cega à
lei para lhe obedecer de forma pensante35, aplicando e recriando as regras, como
intérprete da consciência jurídica social 36. Chame-se, contudo, a atenção para o facto
de esta aplicação criadora do Direito por parte do juiz ser ainda muitíssimo
condicionada, não apenas em virtude do princípio da separação de poderes, mas
também porque o artigo 203.º CRP sujeita os tribunais apenas à lei 37, não lhes
atribuindo, aparentemente, margem de manobra.

No Direito português é preciso, por outro lado, não esquecer os acórdãos com
força obrigatória geral proferidos pelo Tribunal Constitucional no âmbito da
fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade (artigos 281.º n.º1 e 3 e 282.º
CRP).

Por outro lado, até 1996, discutiu-se a relevância dos assentos 38. Contudo, o
Tribunal Constitucional, primeiro no seu Acórdão n.º 810/93, de 7 de Dezembro e
depois, com força obrigatória geral, no Acórdão n.º 743/96, de 28 de Maio reconheceu
a inconstitucionalidade dos assentos por violarem o princípio da tipicidade normativa
prevista no artigo 112.º n.º6 CRP.

Resumindo, a jurisprudência tem um papel maioritariamente indirecto na


criação de regras, estando o seu papel criativo ainda muito limitado e fortemente
condicionado.
35
A obediência pensante não se confunde com a ponderação de juizos equitativos, pois, como vimos, o
artigo 4.º CC restringe o recurso, pelo julgador, à equidade.
36
M.L. Duarte.
37
Formulação muito restritiva que, aliás, pode mesmo indiciar o monopólio da lei.
38
O artigo 2.º CC dispunha, antes da sua revogação pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de
Dezembro: “Nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com
força obrigatória geral”.

89
f. Doutrina

A doutrina é hoje apenas uma fonte mediata39, embora historicamente tenha


desempenhado um papel preponderante. Assim, no passado, em especial no Direito
romano, a opinião de um Doutor criou Direito, do mesmo modo que a convergência
de opiniões doutas. No entanto, apesar de actualmente tal não ser o caso, a sua
importância não deve ser minimizada pois a discussão doutrinária é enriquecedora e
mantém o Direito vivo e dinâmico, levantando novas questões e interpretações. Por
outro lado, é preciso não esquecer a influência a nível da aplicação das normas. Afinal
os aplicadores estudaram Direito nas faculdades através de manuais que ajudaram a
estruturar o seu raciocínio jurídico. Mais, se atentarmos à jurisprudência, podemos
verificar referências, por vezes exageradas, à doutrina.

6. A lei, em especial
a. Polissemia

Lei, à semelhança do que sucede com Direito, pode ter múltiplos


significados. Assim, tanto pode significar Direito objectivo, como regra jurídica,
fonte de Direito, Justiça, diploma, acto da função normativa (lei material) ou da
função legislativa (lei formal), ou ainda acto normativo da Assembleia da República
ou lei geral da República. A confusão e variação terminológicas são não apenas
patentes no mundo extra-jurídico como no próprio universo jurídico. Na Constituição,
por exemplo, esta flutuação encontra-se bem patente com a palavra lei empregue em
pelo menos cinco sentidos diferentes.

39
M. L. Duarte não considera a doutrina uma fonte de Direito apesar da sua importância a nível da
aplicação e renovação das regras.

90
b. Tipos
i. Lei material e lei formal

A distinção entre lei material e lei em sentido formal é das mais importantes e
também das mais polémicas. Não se pense, contudo, que a sua importância é
meramente teórica pois, atendendo à flutuação terminológica da palavra lei, consoante
a sua delimitação as soluções consagradas podem variar. Pense-se, por exemplo, no
artigo 103 .º n.º3 da Constituição. Estará aqui prevista a lei em sentido formal ou em
sentido material? Por outras palavras, a competência em matéria de liquidação e
cobrança de impostos estará apenas nas mãos da Assembleia da República, ou não?

Lei em sentido formal significa que o acto corresponde aos requisitos de


forma constitucionalmente previstos (ou seja, seriam lei formal os actos legislativos
tipificados no artigo 112.º n.º1 CRP) e, em sentido mais restrito, reconduz-se apenas
ao acto legislativo da Assembleia da República.

No que respeita à delimitação das características definidoras da lei em sentido


material, a doutrina diverge. Assim, para uns40, lei em sentido material implica a
existência das características das normas (generalidade e abstracção41), para
outros42, mais restritivamente, implica ainda decorrer da função política. Desta
forma, para os primeiros, um acto regulamentar poderá ser uma lei em sentido
material, o que já não sucede para os segundos.

ii. Lei constitucional e lei ordinária.

A lei constitucional é tida como a norma das normas, dentro de um


determinado ordenamento jurídico. A Constituição portuguesa de 1976, já revista
múltiplas vezes, representa a lei fundamental nacional, definindo as regras de
funcionamento do Estado e dos seus órgãos, assim como os seus fins e competências.

40
Baptista Machado; Galvão Telles; Oliveira Ascensão.
41
Tendencialmente, como acima referimos, salvo em matéria de restrição de direitos, liberdades e
garantias.
42
Castro Mendes; Dias Marques; Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.

91
Como vimos anteriormente, a Constituição fixa as regras sobre a sua própria revisão e
as relativas à elaboração de leis infraconstitucionais ou ordinárias.

iii. Leis solenes e leis comuns

Se considerarmos as leis que são simulaneamente lei em sentido material e


formal encontramos dois tipos de lei: as leis solenes (com estatuto privilegiado face às
outras, devido à sua forma, processo de formação e âmbito material) e as leis comuns
(que resultam da necessidade normativa do poder executivo no âmbito cada vez mais
alargado da Administração Pública, permitindo a exequibilidade das leis ditas
solenes43, mas dentro dos limites por estas estabelecidos ou estabelecidos pela ordem
jurídica no seu todo44).

Como leis solenes, encontramos:


 as leis constitucionais
 as leis da Assembleia da República
 os decretos-leis
 os decretos legislativos regionais

Como leis comuns:


 as que emanam dos órgãos estaduais (actos regulamentares: regimentos,
decretos, resoluções, portarias e despachos normativos)
 as que emanam dos órgãos regionais ou locais do Estado (por exemplo,
decreto regulamentar regional, postura municipal)
 as que emanam de entidades autónomas, embora integradas no Estado.

iv. Leis de valor reforçado

A Constituição, no artigo 112.º n.º3, refere-se a leis infraconstitucionais que


têm valor reforçado e, que, enquanto tal emergem do universo legislativo. Assim, são
leis com valor reforçado, as leis orgânicas 45, as leis que carecem de aprovação por

43
Cf. artigo 199.º c) CRP.
44
Caso dos regulamentos autónomos.
45
Artigo 166.º n.º2 e 168 n.º5.

92
maioria de dois terços46, as leis que constitucionalmente sejam pressuposto normativo
necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.

c. Processo de formação
i. Elaboração

Não cabe em sede de Introdução ao Estudo ao Direito desenvolver de forma


aprofundada a matéria relativa ao processo de elaboração da lei. Deixamos esses
considerandos para a disciplina de Direito Constitucional. Contudo, de forma rápida,
podemos adiantar que este passa por várias fases: a iniciativa, a apreciação e
discussão, a deliberação ou votação, a promulgação e, em certas situações, a referenda
ministerial. Atente-se ainda a uma divisão de competência em razão da matéria entre
os vários órgãos dotados de poder legislativo, à multiplicidade de conteúdos possíveis
e à tipicidade dos actos legislativos (artigo 112.º n.º1 e 6 CRP), atendendo ao seu
processo de formação.

ii. Publicação

A lei para poder ser conhecida e, portanto, obedecida pelos seus destinatários
deve ser publicada. Assim, o artigo 119.º n.º1 c) prevê a sua publicação em jornal
oficial: o Diário da República sob pena de ineficácia (n.º2). A Lei n.º 74/98, de 11 de
Novembro regula os aspectos relativos à publicação, identificação e formulário dos
diplomas.

iii. Vigência

Não basta a promulgação (e referenda ministerial nos casos


constitucionalmente previstos) para uma lei começar a produzir efeitos e obrigar tanto
os seus destinatários como o julgador. Nem mesmo basta a sua publicação. Com
efeito, é preciso decorrer um período de tempo a que se dá o nome de vacatio legis
para a lei entrar em vigor47. A vacatio legis representa o lapso de tempo entre a

46
Artigo 168.º n.º6.
47
Casos há em que a entrada em vigor coincide com a publicação mas tal tem de estar previsto na
própria lei.

93
publicação e a vigência da lei e visa permitir o conhecimento da lei de forma a evitar
surpresas e garantir um período de adaptação às alterações normativas a introduzir no
universo jurídico. De acordo com o artigo 5.º n.º2 CC, a própria lei pode determinar a
duração da vacatio legis. Se não o fizer, aplica-se então o regime subsidiário e
supletivo definido por legislação especial, a saber, neste caso, a Lei n.º 74/98, de 11
de Novembro.

O regime subsidiário estipula períodos de cinco dias no Continente, quinze nas


regiões autónomas e trinta no estrangeiro, contados a partir do dia imediato ao da data
de publicação no Diário da República ou da sua efectiva distribuição, nos casos em
que esta tenha sido posterior.

No caso de divergências entre o texto impresso e o texto original, são


possíveis rectificações, cuja publicação deve ser realizada até sessenta dias após a
publicação do texto rectificado.

iv. Cessação da vigência

Um acto legislativo “nasce, evolui e morre”48, facto inerente ao carácter social,


cultural e dinâmico do Direito. Cabe aqui analisar o término da vida de um acto
legislativo, ou seja, perceber o que leva à cessação de vigência de uma lei. Duas
grandes causas podem ser encontradas: a caducidade e a revogação.

A caducidade pode resultar de três factores:


 Verificação superveniente de um facto previsto e determinado na lei
(pense-se na determinação de um prazo de vigência – artigo 7.º n.º1 CC)
 Verificação da inexistência superveniente dos pressupostos de aplicação da
lei (imagine-se uma lei sobre o lince da malcata quando este já está
extinto)
 Verificação de um costume contra legem sob forma de desuso (prática
reiterada de não acatamento de uma conduta legalmente prevista em que
existe a convicção da sua não obrigatoriedade)49.

48
Galvão Telles.

94
No que respeita a revogação, a vigência de uma lei cessa por força de uma lei
posterior, a que se dá o nome de lei revogatória, e o seu regime encontra-se previsto
nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 7.º CC. Vejamos mais de perto estas disposições.

Segundo o n.º2, a revogação pode ser expressa ou tácita consoante resulte


directamente da lei revogatória ou implicitamente, por via interpretativa da mesma,
em especial por existir uma incompatibilidade entre as novas disposições e as regras
precedentes ou da circunstância da lei revogatória regular globalmente a matéria da lei
anterior. Daqui decorre a possibilidade da revogação ser total (abrogação) ou parcial
(derrogação) e de ser global (totalidade da matéria) ou individualizada (uma
determinada regra).

O n.º3 remete-nos para a problemática das relações entre a lei anterior e a lei
posterior. Por via de regra, a lei posterior revoga a anterior ou, dito de outra forma, a
lei nova revoga a lei antiga. Existem, contudo, duas excepções.

A primeira, já abordada anteriormente, prende-se com a relação entre lei geral


e lei especial. Recordando: lei geral posterior não revoga lei especial anterior, salvo se
essa for a intenção inequívoca do legislador da lei nova.

A segunda, não prevista no artigo 7.º mas que resulta da sistematicidade do


ordenamento jurídico, prende-se com a hierarquia entre actos legislativos. Assim, uma
lei inferior não pode revogar uma lei superior. Por exemplo, um decreto-lei de
desenvolvimento não pode revogar a respectiva lei de bases (112.º n.º2 CRP).

O n.º4, por fim, remete-nos para a problemática da repristinação, ou seja da


recuperação da lei que foi revogada. Por regra, a cessação de vigência de uma lei
revogatória não implica a recuperação da lei revogada. Contudo, o legislador não
proíbe a possibilidade de leis repristinatórias. A este propósito, embora num âmbito
diferente, recorde-se a natureza repristinatória da declaração de inconstitucionalidade
ou de ilegalidade com força obrigatória geral, por via da sua eficácia retroactiva (282.º
n.º1 CRP).
49
Recorde-se o recente caso em torno do Decreto-Lei n.º 555/95, de 16 de Dezembro, agravado por ter
visto a sua suspensão resultar de um despacho.

95
d. Desvalores do acto legislativo

Da mesma forma que um acto jurídico pode sofrer de desvalores por ir contra
ao legalmente estipulado, também os actos legislativos podem ser afectados na sua
eficácia.

Assim, como desvalores do acto legislativo podemos referir:


 a inexistência (por exemplo, ausência de referenda ministerial nos casos
constitucionalmente previstos – 140.º n.º2 CRP)
 a invalidade (por exemplo, a nulidade decorrente de inconstitucionalidade
– 280.º, 281.º e 282.º CRP)
 ineficácia (por exemplo, ausência de publicação – 119.º n.º2)

e. Codificação
i. Noção de Código

A palavra código deriva do latim codex que designava, no Direito romano,


compilações de leis. O seu sentido, hoje, é diverso não se limitando a uma mera
recolha de leis. Por outras palavras, código designa uma organização sistemática e
unitária de regras conexas relativas a uma área bem recortada da regulação jurídica.
Acrescente-se, aliás, que a codificação pode incluir regras que provêm de fontes
diferentes da lei, como o costume. Basta recordar a Convenção de Montego Bay sobre
o Direito do mar, que inclui regras costumeiras.

Assim, há que distinguir código de compilação ou colectânea que, mais


próximos do codex latino, correspondem a uma recolha de fontes de Direito como
leis, costume, convenções e/ou jurisprudência de acordo com critérios materiais mas
sem objectivos unificadores, visando proporcionar um acesso facilitado a textos
conexos.

Também a consolidação se distingue da codificação pois representa a


publicação actualizada de um diploma, integrando as alterações sucessivamente
operadas.

96
ii. Conveniência

A codificação tem vantagens e desvantagens.

Como vantagens, atente-se à sua mais valia prática, facilitando o seu acesso,
tanto por parte do aplicador das regras como dos seus destinatários, assim como a sua
interpretação por via de uma sistematização reforçada. Por outro lado, a sua feitura
implica muita reflexão e estudo de Direito comparado, o que pode permitir uma
aproximação e mesmo harmonização entre os diversos ordenamentos jurídicos. Pense-
se, por exemplo, no facto de o nosso Código Civil ser muito influenciado pelo Código
Civil alemão.

Contudo, refira-se que os Códigos, por traduzirem esta reflexão aprofundada


sobre as soluções jurídicas já consagradas, incarnam um saber cristalizado e de
passado. Assim, a sua desadequação a uma sociedade em movimento é bem patente
na multiplicação de leis avulsas e extravagantes, sentido-se, apesar de tudo, uma certa
relutância na sua publicação. Por outro lado, o próprio intérprete recosta-se na
aparente facilidade que resulta da codificação.

iii. Códigos

Para além do Código Civil, já aqui muitas vezes referido, podemos encontrar em
Portugal outros Códigos que traduzem, nos últimos anos, uma tentativa de ordenação
e sistematização de um ordenamento jurídico português em expansão. Pense-se no
Código penal, de processo civil, de processo penal, de procedimento administrativo,
comercial, das sociedades comerciais, do IVA ou do IRS e do IRC, da estrada, dos
valores mobiliários, do trabalho. Assiste-se, paralelamente, a um fenómeno de
colectâneas legislativas como, por exemplo, sobre o ambiente, urbanismo, transportes,
águas que, de uma forma mais simplista, procuram servir de guia no mundo cada vez
mais labiríntico do Direito.

7. Hierarquia das Fontes

97
Até ao momento enunciámos, sem grande preocupação valorativa, as
principais fontes de Direito que relevam para o ordenamento jurídico português. Cabe
agora conjugá-las pois a multiplicidade de fontes suscita o problema da
susceptibilidade de uma contradição do seu conteúdo.

Refira-se, contudo, que o termo hierarquia é aqui aplicado de forma lata pois
nem sempre existe uma relação de subjugação ou superioridade como acontece no
caso da relação entre lei e costume ou das decisões judiciais com força obrigatória
geral.

Por outro lado, optámos por falar sobretudo em hierarquia de fontes e não de
regras, uma vez que a primeira condiciona a segunda50.

a. Direito internacional e Direito interno

No topo da hierarquia das fontes encontramos o ius cogens que prima sobre
todas as outras fontes, sejam elas de origem internacional, comunitária ou nacional
(incluindo a Constituição – cf. artigo 8.º n.º1 CRP), na medida em que traduz valores
essenciais que não estão na disponibilidade dos sujeitos. O seu reforço resulta do
reflorescimento do Direito natural, em especial depois dos horrores da II Grande
Guerra.

Dois artigos da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados referem-se


ao ius cogens. O artigo 53.º considera uma norma imperativa de Direito internacional
geral a que for aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu
conjunto como norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser
modificada por uma nova norma de Direito internacional geral com a mesma
natureza. Por outro lado, sanciona com nulidade todo o tratado que, no momento da
sua conclusão, seja incompatível com uma norma de ius cogens.

Já o artigo 64.º estipula que em caso de superveniência de uma norma de ius


cogens, todo o tratado existente que seja com ela incompatível torna-se nulo e cessa a
50
Neste sentido, Oliveira Ascensão. Em sentido diverso, privilegiando a hierarquia das regras, M.L.
Duarte.

98
sua vigência. Se é pacífica esta consagração da supremacia do ius cogens, já a
definição do seu conteúdo, como vimos, é polémica, até porque é dinâmico. Contudo,
aí podemos incluir as normas consuetudinárias e convencionais sobre Direitos do
Homem e os princípios constitucionais da Carta das Nações Unidas, o costume
internacional geral como, por exemplo, sobre a pirataria, a tipificação de crimes
internacionais, entre outros.

Associado ao primado do ius cogens, no artigo 8.º n.º1 CRP, surge o


primado das regras de Direito internacional geral e comum (conceito mais lato do
que o ius cogens pois inclui princípios gerais de Direito e normas consuetudinárias
que não têm a mesma natureza imperativa) sobre as regras constitucionais.

Quanto ao Direito internacional convencional e a sua relação com o Direito


interno, a questão é mais controvertida, dividindo a doutrina, em especial no que
respeita a Constituição e a lei. Da CRP, em nossa opinião, combinando os artigos 8.º
n.º2, 277.º n.º2, 278.º n.º1, 279.º e 280 n.º2 parece decorrer o seu valor supralegal
mas infraconstitucional. Contudo não podemos deixar aqui de notar uma
contradição no nosso ordenamento: por um lado aceitamos, por via do artigo 8.º n.º1
CRP, no âmbito do Direito geral e comum, o princípio pacta sunt servanda (os pactos
são para ser cumpridos) e depois consagramos limitações à vigência e eficácia de
convenções que choquem com a Constituição.

No que respeita a relação entre costume e Direito convencionado, existe


teoricamente uma situação de paridade. Dizemos teoricamente, pois na prática é
necessária, para a total revogação de um costume geral por um tratado que todos os
Estados (para além das partes nos tratados) estejam de acordo. Por outras palavras, na
prática, um tratado superveniente só derroga, para as partes do tratado, a submissão a
um costume geral que continua, no entanto, a vigorar nos outros Estados. Contudo, se
tivermos um costume posterior a um tratado, este caduca. Tirando as devidas
consequências, na prática o costume tem uma posição privilegiada face às
convenções.

b. Direito comunitário e Direito interno

99
Decorre da jurisprudência do TJCE o primado de todo o Direito
comunitário sobre o todo o Direito interno como condição existencial do próprio
ordenamento comunitário. Contudo, esta formulação causa alguns arrepios por
submeter as Constituições a um Direito supranacional que poderia ferir o núcleo duro
dos direitos fundamentais ou organização dos estados, conduzindo a posições
defensivas que consideram que o Direito constitucional prima nestas matérias 51.
Parece-nos, nesta fase, excessivas essas posições pois não só os textos originários não
reduzem o âmbito dos direitos fundamentais como reproduzem a vontade dos Estados
que os produziram e ratificaram, num gesto de limitação e entrega de soberania. Por
outro lado, as últimas revisões constitucionais procuraram resolver esta questão,
nomeadamente com a sujeição do Direito comunitário ao respeito dos princípios
fundamentais de um Estado de Direito democrático.

c. No Direito interno
i. Entre fontes de origem interna

Vejamos agora a hierarquia das fontes internas. No topo encontramos a lei


fundamental, a Constituição que, como vimos, condiciona a sua própria revisão e o
processo formativo e o conteúdo dos actos legislativos.

Em segundo lugar, surgem os princípios gerais de Direito. No entanto, refira-


se que alguns princípios estão intimamente ligados com valores incomprimíveis
decorrentes da dignidade da pessoa humana condicionando a própria Constituição.
Por outras palavras, dentro da categoria dos princípios podemos estabelecer uma
hierarquia entre os mesmos. Uns primarão sobre a Constituição (dignidade da pessoa
humana), outros terão um valor constitucional (por exemplo referentes à definição
essencial de um Estado de Direito), outros já terão um valor infraconstitucional mas
supralegal, dependendo, portanto, do seu conteúdo valorativo. Assim, em nossa
opinião existe sempre uma primazia dos princípios gerais de Direito sobre a lei e
costume que resulta do papel preponderante daqueles na garantia da sistematicidade
do ordenamento jurídico.

51
M.L. Duarte. Jurisprudência dos tribunais constitucionais alemão e italiano.

100
Já no que respeita o costume e a lei decorre do que acima defendemos e da
autonomia do costume a paridade entre costume e lei. Assim, uma lei posterior pode
afastar um costume, assim como um costume, por via do desuso, pode afastar a
aplicação de uma lei anterior.

Quanto às decisões judiciais com força obrigatória geral, consideramos


que estão em igualdade com a lei, na medida em que o que estabelecem é
determinante daí por diante.

ii. Entre os vários tipos de actos legislativos

Outro problema que se coloca, prende-se com a relação entre actos legislativos
pois, como podemos observar existem várias categorias. Sem dúvida é, contudo, fácil
colocar no cimo da pirâmide a lei constitucional.

No que respeita a relação entre lei e decreto-lei, a própria Constituição resolve


a questão apontando, no artigo 112.º n.º2, para uma paridade entre ambos, salvo
nos casos de subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso
de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes
jurídicos. Refira-se, contudo, que um decreto-lei só poderá afastar uma lei e vice-
versa no caso de se tratar uma matéria que caia no âmbito de uma competência
concorrencial. Já no que respeita aos decretos legislativos regionais, a Constituição
refere-se à sua subordinação aos princípios fundamentais das leis gerais da República,
nos termos do artigo 112.º n.º4.

Por outro lado, há que salientar a primazia funcional das leis de valor
reforçado sobre as leis ordinárias comuns, na medida em que não podem ser
afastadas por leis posteriores que não tenham a mesma função (cf. artigos 280.º n.º2 a)
e 281.º n.º 1 b) CRP). Pense-se nas leis orgânicas. Ou pense-se, ainda no facto de um
decreto-lei publicado no uso de uma autorização não poder ir contra a lei de
autorização legislativa, ou de um decreto-lei de desenvolvimento não poder contrariar
a lei de bases que desenvolve. Ou na lei das grandes opções do plano e na lei de
enquadramento do Orçamento que devem ser respeitadas pela lei de Orçamento
(artigos 105.º n.º2 e 106.º n.º1 CRP); assim como o Orçamento deve ser respeitado, no

101
ano económico a que diz respeito, por leis posteriores. Ou os Estatutos das regiões
autónomas que devem ser respeitados, mesmo por diplomas da Assembleia da
República (artigos 280.º n.º2 b) e c) e 281.º n.º1 c) e d) CRP).

Por último, refira-se que os actos regulamentares ou leis comuns (decreto


regulamentar, resoluções do conselho de ministros, portarias, despachos, decretos
regulamentares regionais, posturas municipais, regulamentos de institutos públicos ou
ordens profissionais) devem respeitar as leis solenes (leis, decretos-leis e decretos
legislativos regionais)

102
IV. A Aplicação das Regras

1. Introdução

Os capítulos anteriores permitiram-nos descobrir as normas jurídicas, essenciais


para prevenir e resolver conflitos. Contudo, não basta a existência das normas. Elas,
por si só, não são suficientes, precisando de ser aplicadas e depois garantidas para
efectivamente resolver os litígios reais ou potenciais.

Mas quem aplica as regras?

Os órgãos do poder político e executivo, os tribunais, a administração pública (a


nível nacional, regional e local), a provedoria, os notários, os conservadores mas
também o cidadão comum no seu quotidiano. Afinal beber a bica no café da esquina
antes de ir trabalhar é, mesmo sem nos darmos conta, aplicar Direito por estarmos a
celebrar um contrato. Contudo, o Direito também se pode aplicar independentemente
da vontade humana. Trata-se da aplicação ope legis (por obra da lei), por exemplo,
depois da morte de alguém, a lei sucessória aplica-se automaticamente.

Ora o trabalho de aplicação implica, em primeiro lugar, um duplo recorte: (1) da


situação de facto a resolver e (2) da norma a aplicar. Só no fim deste processo é que
se pode, então, reconduzir a situação concreta à norma numa operação chamada
subsunção. Tradicionalmente, começa-se pela circunscrição da situação de facto para
depois a qualificar numa categoria jurídica adequada (conceito-quadro) e assim
subsumir os factos à norma que deve ser interpretada. Outro caminho pode, no
entanto, ser tomado, a saber, numa perspectiva dedutivista, partir da norma para a
situação de facto. Ambos os caminhos, aliás, não se excluem embora, actualmente, se
privilegie a indução (operação de subsunção).

No que respeita a delimitação da norma, várias operações têm de ser levadas a


cabo. Em primeiro lugar há que descobrir se existe ou não, no seio do ordenamento
jurídico, uma norma adequada ao problema identificado. Tal implica um esforço de

103
interpretação, ou seja de determinação do sentido das normas, o que, por vezes, é
suficiente para ultrapassar situações em que parece haver demasiadas soluções
(similares ou mesmo contraditórias) ou nenhuma. Neste último caso, o caminho passa
por um processo de integração de lacunas já que nenhum problema pode ficar sem
resposta, até por questões de justiça, estabilidade social e segurança jurídica.

Apurado o sentido das normas podemos identificar aquela que melhor se adeqúa
ao caso concreto. Contudo, por vezes, ainda assim temos uma concorrência de normas
que parecem habilitadas a resolver a situação em análise. Os critérios de competência,
de especialidade e hierárquico acima referidos podem resolver o problema mas a
resposta pode também passar por uma delimitação espacio-temporal da norma. A
interpretação, a integração de lacunas e a aplicação no espaço e no tempo são, então,
os problemas que nos vão ocupar nas próximas páginas.

Antes de avançarmos, impera, contudo, uma advertência: é comum, nesta matéria


a centralização na lei, embora, por trás, esteja a problemática da aplicação das regras
que, como vimos, não provêm apenas desta fonte. Assim, as referências à lei (por
questões de hábito, comodidade, facilidade e pela sua importância no nosso
ordenamento), nomeadamente em matéria de interpretação ou de aplicação no tempo
e no espaço, devem ser alargadas a outras fontes. A título de exemplo, pense-se nas
regras sobre interpretação de tratados expressas na Convenção de Viena e na
jurisprudência comunitária em matéria de actos comunitários que apontam, em traços
largos, para os mesmos princípios aqui enunciados para a interpretação da lei, em
especial na procura de um sentido útil capaz de responder aos casos concretos.

2. Interpretação
a. Considerações introdutórias

Interpretação pode ser entendida em duas acepções. A primeira mais restrita,


traduz-se no processo de apuramento da delimitação do sentido das normas
jurídicas através de uma técnica própria que permite identificar um critério
operativo e decisório. A segunda, mais lata, abarca ainda a integração de lacunas
na procura da resolução dos casos concretos.

104
Em qualquer uma das acepções, a interpretação jurídica é porventura uma das
mais nobres, delicadas e complicadas tarefas no mundo do Direito, se bem que se
observarmos os media aparentemente está ao alcance de todos. Parece que basta saber
ler para se poder alcançar o sentido das normas e que há normas tão claras que não
necessitam de qualquer trabalho interpretativo. Contudo, a interpretação jurídica
difere da interpretação histórica ou literária pois, como vimos, é activa e teleológica,
ou seja, serve para ser aplicada, na prática, para resolução de conflitos. Mais, como se
assume como um acto de poder destinado a regular coercivamente as relações sociais
não pode ser deixada ao livre arbítrio sob pena de pôr em causa a própria
sobrevivência e segurança do colectivo. Por outro lado, a interpretação jurídica
implica a superação de contradições e de lacunas. Assim, mesmo a norma mais clara
aos olhos do leigo pode, a olhos mais atentos ou treinados, levantar problemas.

Além do mais, várias são as dificuldades que se oferecem ao intérprete, a


começar pela linguagem empregue (jargão jurídico, construção frásica e lógica,
utilização de conceitos indeterminados) nem sempre acessível aos leigos.

Por outro lado, a interpretação não se esgota na análise da letra nem numa
operação mágica e matemática pois pressupõe uma dimensão valorativa a dois níveis
nem sempre facilmente conciliáveis. Em primeiro lugar, como vimos, por trás da
unidade e sistematicidade da ordem jurídica existe uma espinha dorsal de princípios e
valores pois nenhuma ordem jurídica, enquanto ordem social e cultural, pode ser
neutra. Em segundo lugar, o próprio intérprete também ele não é neutro (em termos
políticos, económicos, sociais, culturais, religiosos ou morais) e parte de uma sua
precompreensão do Direito, repercutindo-a no sentido que procura e retira da norma.

A interpretação jurídica exige, portanto, uma técnica própria a que se dá o


nome de hermenêutica e o seu sucesso depende essencialmente de três aspectos: (1)
conhecimentos técnico-científicos, (2) prática e (3) intuição jurídica do intérprete.

Algumas questões ficam, contudo, no ar. Por exemplo, quem é o intérprete?


Em resposta, podemos identificar grosso modo duas situações:
1. a auto-interpretação da responsabilidade do autor (órgão/instituição) da
própria norma.

105
2. A hetero-interpretação, ou seja a interpretação feita por agentes
diferentes do autor da norma, desde órgãos políticos, legislativos, judiciais,
administrativos, públicos ou privados até ao jurista e ao cidadão comum.
Nesta matéria, atente-se, ainda, ao artigo 112.º n.º 6 CRP que estipula que
a hetero-interpretação administrativa não tem eficácia externa, ou seja, não
vincula os particulares apenas valendo internamente.

Por outro lado, qual é o valor da interpretação?


A interpretação é dita autêntica quando a norma interpretativa, seja ela
originária do autor da norma ou de um órgão diferente, reveste uma forma idêntica ou
mais solene do que a norma interpretada (por exemplo, um decreto-lei que interpreta
um decreto-lei anterior) e visa, expressa ou tacitamente, determinar o sentido de uma
lei antecedente de forma a que esta passe a ser entendida nesse sentido. Neste caso,
dispõe o artigo 13.º n.º 1, 1.ª parte CC que “a lei interpretativa integra-se na lei
interpretada”, ou seja é dotada de eficácia retroactiva. Por outras palavras, a
interpretação autêntica tem um fim interpretativo de esclarecimento de eventuais
dúvidas mas impõe-se como obrigatória (mesmo que seja má), formando uma unidade
com a lei que veio interpretar. Refira-se, contudo, que a interpretação autêntica pode
ser perigosa pois sob a capa de um esclarecimento interpretativo pode vir-se a
estabelecer um princípio inovador. Já a interpretação não autêntica apenas contribui
como mais um elemento a ponderar no apuramento do sentido da norma.

Qual o momento para interpretar as normas?


A norma pode ser interpretada logo quando é criada (interpretação originária)
ou posteriormente, em especial, antes de ser aplicada (interpretação superveniente).

Qual a finalidade da interpretação? Qual o sentido que se procura encontrar?


A norma pode vir a ser interpretada de acordo com duas perspectivas que se
podem interligar: uma de posicionamento face à norma e outra de dimensionamento
temporal.
No que respeita o posicionamento, duas posições são atendíveis:
1. Subjectivista em que se procura captar a vontade que o autor
(subjectivismo genético - mens legislatoris) ou o intérprete (subjectivismo
do destinatário) quis imprimir à norma.

106
2. Objectivista em que se assume a norma como uma realidade autónoma do
seu criador e aplicador e que, por isso, tem um significado próprio (mens
legis).

Já no que respeita o dimensionamento temporal da norma, podemos falar em


duas correntes:
1. Historicista em que a interpretação privilegia o elemento histórico e
pretende apurar o sentido da norma no momento da sua elaboração.
2. Actualista que assume o dinamismo da norma e a sua capacidade, quando
é chamada, de solucionar casos concretos.

Na nossa opinião, a interpretação deve ser objectivista e actualista no


sentido de dar autonomia e perenidade (sentido útil) à norma, embora nem
sempre seja fácil ao intérprete afastar a sua precompreensão e se corra o risco de uma
potencial instabilidade por se considerar que o sentido da norma se vai alterando
consoante a evolução das realidades sociais subjacentes 52. Por outras palavras, a
norma deve ser encarada como uma realidade com sentido próprio, autonomizada da
vontade subjectiva do legislador e da sua génese, apta a fornecer critérios operativos e
decisivos para a resolução de casos concretos, embora tal não signifique um desprezo
por elementos históricos. Pelo contrário, estes podem mesmo vir a ser preciosos
auxiliares na delimitação do sentido das normas e da mens legis. Parece também ser
esta a opinião do legislador no n.º 1 do artigo 9.º do CC quando refere o
“pensamento legislativo” (e não a vontade do legislador), “as circunstâncias em que a
lei foi elaborada” e “as condições específicas do tempo em que é aplicado”.

b. Elementos e instrumentos interpretativos


i. Elemento literal

O primeiro dos elementos da interpretação é a letra pois para apurar o sentido


da norma é preciso lê-la e começar por compreender o sentido das palavras
empregues. À interpretação centrada no elemento literal dá-se o nome de exegese.
Contudo, apesar da letra ser essencial (artigo 9.º n.º 2 CC) e de se presumir que o
legislador emprega os termos adequados (9.º n.º 3 CC), a verdade é que tal não basta
52
Contra uma posição histórico-evolutiva, Inocêncio Galvão Telles.

107
como resulta da primeira parte do n.º 1 do artigo 9.º CC. Por outras palavras, a letra
serve de ponto de partida necessário mas não é suficiente para a procura do
“pensamento legislativo”, devendo, portanto, ser conjugada com outros elementos, em
especial, sistemático, histórico e teleológico (artigo 9.º n.º 1 in fine CC), de forma a
lhe conferir um sentido útil e actual.

Assim, mesmo a norma mais clara deve ser sujeita a um processo


interpretativo para o apuramento do seu sentido. Aliás, o apuramento da sua
transparência resulta da própria interpretação. Ou seja, a interpretação é sempre
necessária.

Por outro lado, é preciso não esquecer que a redacção normativa recorre com
alguma frequência não apenas a termos técnicos com sentidos diversos do comum
(entre outros, roubo, arrendamento, prédio, pronúncia, voto validamente expresso)
mas também polissémicos (recorde-se os termos direito ou lei) e, igualmente, a
cláusulas gerais e a conceitos indeterminados (designadamente, ordem pública,
motivos de força maior, qualidade de vida, bom pai de família) com contornos por
vezes vagos, cuja margem interpretativa relativamente elástica proporciona, ao
intérprete e ao aplicador, uma margem de livre apreciação e mesmo de criação, o que,
no entanto, confere ao Direito maior plasticidade e capacidade adaptativa em termos
temporais e materiais. “Em suma, a aplicação da lei pode ser uma mera subsunção,
mas em regra exige um espaço criativo do aplicador”.53

Por fim, refira-se que a formulação raramente é perfeita, apesar da presunção


legislativa do n.º 3 do artigo 9.º CC, e que a linguagem empregue pode deformar a
mensagem a transmitir até porque o redactor dificilmente escapa à sua própria
precompreensão do Direito e das relações sociais.

Resumindo, “a lei (…) está expressa em palavras escritas, mas essas palavras
têm por trás de si um espírito, uma alma, e só quando a lei é vista no conjunto destes
dois aspectos é que pode ser integralmente conhecida.””(…) Em muitos casos é
preciso sacrificar a letra para respeitar o espírito, porque só assim se cumpre

53
Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão.

108
verdadeiramente a lei. (…) O decisivo é verdadeiramente o elemento espiritual, a
voluntas legis.”54

ii. Elemento sistemático

De acordo com o artigo 9.º n.º 1 CC, o intérprete deve ter “sobretudo em
conta a unidade do sistema jurídico”, ou seja, a norma não deve ser interpretada
isoladamente mas como uma peça de um puzzle, construído em torno de determinados
princípios e valores. Por exemplo, quando ao artigo 103.º n.º 2 da CRP impõe a
definição por lei em matéria de incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos
contribuintes, está a referir-se a lei em sentido formal pois é preciso atender ao artigo
165.º n.º 1 i) CRP.

iii. Elemento histórico

O intérprete deve também atender aos factores relacionados com a origem da


norma. Aliás, o artigo 9.º n.º 1 55 do CC refere a reconstituição a partir dos textos do
pensamento legislativo e chama a atenção para as circunstâncias em que a lei foi
elaborada. No entanto, não se pense que com isto se pretende uma interpretação
historicista ou subjectivista que visa reconstituir o sentido dado à norma na sua
elaboração ou à vontade do redactor da lei. Apenas se procura encontrar mais um
elemento auxiliar à fixação do sentido útil e actual da norma que pode resultar das
circunstâncias políticas e socio-económicas que envolveram a génese da norma
(occasio legis), dos precedentes normativos nacionais ou estrangeiros (pois as normas
raramente têm uma geração espontânea) e/ou dos trabalhos preparatórios (projectos,
anteprojectos, propostas, comunicações, pareceres, actas...).

54
Inocêncio Galvão Telles.
55
Numa interpretação declarativa restritiva, o artigo 9.º n.º 1 CC apenas se refere à occasio legis mas
numa interpretação declarativa lata, que nos parece mais correcta, abarca já a consideração de todos os
elementos históricos.

109
iv. Elemento teleológico ou racional

O legislador legisla por necessidade, com vista a um determinado fim. Assim,


a interpretação não pode ser alheia à finalidade da norma (ratio legis) e, portanto, à
procura da solução mais acertada (artigo 9.º n.º 3 CC). Os preâmbulos dos diplomas e
o elemento histórico podem ajudar à delimitação do objectivo prosseguido sobretudo
em diplomas cada vez mais técnicos, por exemplo, em matéria ambiental, de
construção, de comércio electrónico, de crime informático ou económico.

Imagine-se, por exemplo, uma disposição que impõe o uso de trela para os
cães quando são trazidos à rua, sob pena de coima. O objectivo é não apenas a
protecção do animal mas também evitar que este cause danos em terceiros e no seu
património. Deverá então ser autuado o dono que traz o cão preso por uma corda ou
numa caixa apropriada ou ao colo o seu cachorro recém nascido ou que tem um cão
grande livre no seu jardim particular murado ou que o passeia na rua com uma trela de
40 metros?56

c. Tipos de interpretação

A ponderação de elementos extra-literais pode conduzir a uma interpretação


que apura um sentido real que não coincide com o sentido literal. A maior ou menor
correspondência entre o sentido literal e real (espírito da lei) está na base da
classificação de várias modalidades interpretativas, cujos contornos se confundem por
vezes na prática.

i. Interpretação declarativa

Na interpretação declarativa, o sentido real coincide com o literal. A


expressão literal pode, contudo, conter vários sentidos, servindo, então, os elementos
extra-literais para apurar qual se adequa melhor ao espírito da lei. Assim, o sentido
real pode ser mais amplo (interpretação declarativa lata – por exemplo, no artigo
203.º CRP quando se estabelece que os tribunais apenas estão sujeitos à lei, lei deve
56
Cf. Pedro Múrias.

110
ser interpretada num sentido mais amplo de Direito) ou mais estrito (interpretação
declarativa restrita – nomeadamente, no artigo 103.º n.º 2 da CRP, lei deve ser
interpretada como lei em sentido formal) ou coincidir plenamente com o espírito
(interpretação declarativa média).

ii. Interpretação extensiva

Na interpretação extensiva não existe uma total coincidência entre o sentido


real e o sentido literal. Na verdade, a letra da lei ficou aquém do que o legislador
queria dizer, exprimindo de forma imperfeita (artigo 9.º n.º 2 in fine CC) o objectivo
a prosseguir. Pense-se no transporte de cães em caixas apropriadas acima referido.

A interpretação extensiva é, segundo o artigo 11.º CC, aplicável a normas


excepcionais mas deve ser distinguida da analogia. No entanto, no Direito
comunitário, o TJCE, na sua jurisprudência, defende que as normas retritivas de
liberdades comunitárias, por serem excepcionais, não devem ser objecto de
interpretação extensiva57. Também em matéria de Direito penal, em virtude do
princípio da legalidade expresso no artigo 1.º n.º 3 CP e da ténue margem que separa,
por vezes, a analogia da interpretação extensiva, alguns defendem a proibição da
interpretação extensiva ou aconselham muito cuidado na sua utilização num campo
tão delicado que lida com os mais fundamentais direitos humanos, em especial se daí
resultar uma interpretação menos favorável para o agente, um pouco na linha do
Código penal anterior58.

iii. Interpretação restritiva

Também neste caso, o sentido literal e real não coincidem mas, aqui, a letra
da lei foi para além do espírito, ou seja, disse demasiado. Assim, poderá caber ao
intérprete o papel de distinguir aquilo que o legislador não distinguiu. Imagine-se a
situação do cão com uma trela de 40 metros ou o facto de se encontrar num jardim
privado murado.

57
M.L. Duarte.
58
Esta posição era, aliás, mais clara no Código Penal anterior. O Código penal actual não proíbe
expressamente a interpretação extensiva.

111
iv. Interpretação correctiva

Na interpretação correctiva, o intérprete é impelido por razões extra-


jurídicas (justiça, prudência, inadequação, inoportunidade) a modificar o sentido
real (e não apenas literal como sucede na interpretação extensiva e restritiva) da
norma. Contudo, o artigo 8.º n.º 2 CC veda esta possibilidade, embora alguns autores,
atendendo à sistematicidade da nossa ordem jurídica, avancem a possibilidade do seu
recurso em situações de total inadequação do sentido real ou quando o sentido real
apurado choca com o Direito natural59 e com “regras incomprimíveis de justiça e
humanidade"60.

v. Interpretação ab-rogante

Na interpretação ab-rogante, ao contrário da correctiva, a norma


interpretada não tem sequer sentido útil ou porque não é compreensível ou porque
conduz a um comportamento impossível ou inaceitável, sendo, por isso, afastada.
Contudo, a sua aceitação é verdadeiramente excepcional pois não apenas se presume
que o Legislador consagrou as soluções mais acertadas como impende sobre o
intérprete, sobretudo judicial, a procura de um sentido apesar da “obscuridade” da
norma (artigo 8.º n.º 1 CC) no âmbito de um sistema uno e valorativo. No entanto, o
artigo 8.º n.º 2 não proíbe directamente uma interpretação ab-rogante, apenas se
centrando na interpretação correctiva, ou seja na existência de um conteúdo. Ora, na
interpretação ab-rogante este não existe, o que a legitima como solução de último
recurso61. Pense-se, por exemplo, no caso de se remeter a resolução de um problema
para um regime inexistente e que não se adivinha que possa vir a existir ou a
existência de normas abolutamente contraditórias que se encontram simultaneamente
em vigor ou uma disposição absolutamente indecifrável apesar de empregues todos os
utensílios interpretativos.

59
Oliveira Ascensão.
60
M.L. Duarte.
61
M. Rebelo de Sousa e Sofia Galvão apenas defendem a possibilidade de uma interpretação ab-
rogante por razões lógicas e sempre a título muito excepcional.

112
vi. Interpretação enunciativa

Na interpretação enunciativa a questão não se prende tanto com a coincidência


ou não entre sentido literal e real 62. O problema reside na utilização delicada e por
vezes polémica da norma cujo sentido foi apurado para procurar, de forma
derivada, outras normas que não se encontram expressamente formuladas. Por
outras palavras, retira-se de uma norma novas normas numa operação de inferência
lógica. Recorde-se aqui o que acima referimos em relação às normas principais e
derivadas. Assim, vários mecanismos podem ser utilizados:
1. a lei que proíbe o menos proíbe o mais (por exemplo, se proíbe usar,
proíbe destruir)
2. a lei que permite o mais permite o menos (por exemplo, se permite
danificar, permite usar – v.g. artigo 339.º CC)
3. argumento a contrario sensu, ou seja, quando a norma (excepcional)
delimita o seu âmbito de aplicação, entende-se que nos casos não
enquadráveis a solução é a contrária. (Nos casos de tutela privada legais
acima estudados permite-se o recurso à força privada. A contrario, fora
destas situações, tal não é possível)
4. Teoria dos poderes implícitos, a saber, a lei que determina os objectivos a
alcançar legitima os meios adequados e necessários mesmo que estes não
estejam expressamente previstos. (Pense-se na política ambiental
comunitária desenvolvida antes da sua inclusão expressa no TCE)
5. A lei que proíbe os meios exclui os fins aos quais aqueles se destinavam.
(por exemplo, se a lei proíbe escutas, proíbe a sua utilização como prova).

No entanto, refira-se que este processo de inferência lógica deve ser rodeado de
algumas cautelas com o intuito de evitar conclusões abusivas que podem mesmo
colocar em causa a separação de poderes.

3. Integração de lacunas

62
Por esta razão, Oliveira Ascensão autonomiza a interpretação enunciativa dos outros tipos de
interpretação e também da integração de lacunas pois na interpretação a regra está expressa nas fontes,
na interpretação enunciativa a regra está implícita e na integração não se encontra prevista nem
expressa nem implicitamente.

113
a. Integração e interpretação

A interpretação e a integração são, na nossa opinião, duas operações distintas


mas que se interseccionam e que contribuem no final para a afirmação da nobreza do
Direito no sentido da sua concretização. Senão vejamos:
 A interpretação é anterior à integração pois é através dela que se chega ao
apuramento de verdadeiras lacunas. Com efeito, por vezes, basta a
interpretação declarativa lata, extensiva ou enunciativa para se resolverem
aparentes omissões normativas. Contudo, refira-se que nem sempre são
claras as fronteiras entre a integração e a interpretação extensiva. Mas
enquanto neste último caso se estica a letra, no primeiro estende-se o
espírito.
 A interpretação pressupõe a existência de uma norma mesmo que
incompleta ou obscura, ao contrário da integração.
 Apesar de na integração não existir expressa ou implicitamente uma norma
aplicável ao caso concreto, a verdade é que o recurso à analogia legis
traduz-se na procura de uma norma (por via da interpretação) que regule
situações similares.
 Na analogia iuris e no recurso à norma ad-hoc, tal como na interpretação é
necessário ponderar a unidade do sistema e, portanto, a escala de valores
que este traduz.

b. Lacuna. Noção e determinação

A ordem jurídica não é plena no sentido de prever todas as situações da vida


susceptíveis de criar conflitos, tendo lacunas e omissões que, no entanto, vão
encontrar uma resposta no seu seio, devido à unidade e sistematicidade normativa mas
também devido à obrigação que impende sobre o juiz de não deixar casos sem
resposta (artigo 8.º n.º 1 CC).

Uma lacuna traduz-se, assim, numa omissão normativa, numa ausência


expressa ou implícita de uma norma relativa a uma situação da vida que deveria
ser regulada e resolvida pelo Direito. Daqui se retira que determinadas omissões são
conscientes e intencionais pois relacionam-se com matérias que não interessam ao

114
Direito (e que não necessitam, portanto, de serem integradas/resolvidas juridicamente
por não serem lacunas em sentido estrito), uma vez que são do âmbito e solucionadas
por outras ordens normativas como a moral, a religiosa ou a do trato social. Assim,
por exemplo, não será lacuna a ausência de regulamentação relativa às formas de
saudação ou de indumentária nos casamentos.

As lacunas juridicamente relevantes podem resultar de vários factores como a


“incapacidade do legislador para surpreender todos os cambiantes da vida na sua
multiforma riqueza e variedade, ou por modificações das condições económicas ou
sociais e aparecimento de novas necessidades, ou até pelo desejo de não arriscar
soluções que pela dificuldade da matéria a ela não se ajustem bem”63.

Assim, podemos identificar vários tipos de lacuna:


1. Lacunas intencionais e lacunas não intencionais consoante resultem de
uma opção mais ou menos consciente do legislador.6465
2. Lacunas normativas e lacunas de regulação. As primeiras prendem-se
com um regime jurídico incompleto (sanção por não promulgação pelo
Presidente da Répública), enquanto que nas segundas nem sequer existe
um regime previsto (por exemplo, células estaminais ou gestão e
administração de condomínios)
3. Lacunas de previsão e lacunas de estatuição. Esta categoria pode, por
vezes, sobrepor-se à anterior. Nas lacunas de previsão não existe o
enquadramento de uma determinada situação enquanto que nas de
estatuição não se estabelece a consequência para uma determinada
situação de facto.
4. Lacunas patentes e lacunas latentes consoante resultem de uma manifesta
falta de enquadramento normativo ou de um processo interpretativo
restritivo ou abrogante.
63
Inocêncio Galvão Telles.
64
Legislador aqui deve ser interpretado de um modo lato, enquanto regulador, pois a problemática das
lacunas não deve ser encarada numa perspectiva meramente legalista. (cf. infra)
65
M.L. Duarte considera, numa posição que nos parece demasiado restritiva, que apenas as lacunas não
intencionais interessam ao Direito. A verdade é que o legislador, por vezes, não regula
intencionalmente determinada matéria que interessa ao Direito não só porque não detém a informação
técnica para o fazer mas também por manifesta falta de coragem em determinados assuntos delicados.

115
c. Dever de integração

Se é verdade que a existência de lacunas é estrutural a qualquer ordenamento


jurídico, também é verdade que não pode servir de desculpa para a não resolução de
conflitos e que se deve procurar melhorar sempre o sistema. Em relação aos tribunais
tal resulta claramente do artigo 8.º n.º 1 CC quando estabelece a obrigação de julgar
mesmo em caso de “falta ou obscuridade da lei”. Se assim não fosse, a incompletude
jurídica poderia conduzir não apenas a situações de injustiça mas também a problemas
de insegurança social com o agravamento dos lítigios.

Desta feita, identificada uma lacuna, impende sobre o intérprete a


obrigação de a ultrapassar, integrando-a, ou seja, de uma forma simples,
preencher o vazio existente de forma a encontrar uma resposta jurídica ao
problema colocado em concreto. Esta operação depende, como não pode deixar de
ser, do recurso a um processo lógico-jurídico muito próprio que pode encontrar a
resposta ainda dentro do próprio sistema (integração intra-sistemática) ou fora dele
(integração extra-sistemática). No entanto, a solução encontrada apenas diz respeito
ao caso concreto, por outras palavras, é precária, o que significa que se o problema se
voltar a colocar, mais uma vez será necessário integrar o caso omisso. A solução
definitiva depende, portanto, da iniciativa do legislador. Isto não significa, contudo,
que a solução integradora encontrada para o caso omisso não seja normativa. Por estar
em causa uma lacuna dentro de um sistema jurídico, a resposta a encontrar deve
também ela ser normativa, mesmo se temporária. Por outras palavras, procura-se
achar ou construir uma regra que colmate aquele vazio jurídico.

116
d. Integração intra-sistemática
i. Costume

No que respeita o recurso ao costume para integração de lacunas, cabe aqui


fazer alguns reparos e recordar algumas considerações anteriormente ponderadas:
 Existe uma pluralidade de fontes de Direito;
 Não existe um monopólio da lei;
 Lei e costume têm um valor equiparado;
 O costume tem valor autónomo, não sendo necessário o seu
reconhecimento legal;
 O artigo 10.º não prevê o costume como elemento integratório de lacunas,
nem precisa de o fazer pois se um caso for resolvido pelo costume, fonte
autónoma, não se pode sequer dizer que há lacuna no ordenamento, na
medida em que existe uma norma para dar resposta ao caso concreto.
Aliás, por esta ordem de ideias, o mesmo vale para a resolução do caso
concreto por normas originárias de princípios gerais de Direito, de
jurisprudência com força obrigatória geral e regulação internacional ou
comunitária.

Resumindo, quando se fala em lacuna, isto não significa, numa leitura


demasiado restritiva, ausência de lei mas sim ausência de norma provenha ela ou
não de lei. Se houver um vazio legal mas a resposta se encontrar no costume, numa
convenção, num acto comunitário, numa decisão judicial com força obrigatória geral
então, não há lacuna.

ii. Analogia

A analogia consiste na aplicação de uma regra jurídica pensada para um


determinado caso a uma situação juridicamente similar não regulada (artigo 10.º n.º 1
CC) e resulta da necessidade de coerência do sistema. Por outras palavras, casos
semelhantes, devem ser tratados de forma semelhante (e não igual, o que pode
implicar uma adaptação da norma a aplicar ao caso omisso).

117
iia. Analogia legis
Os n.º 1 e 2 do artigo 10.º prevêem expressamente o recurso à analogia legis
que decorre da aplicação de uma norma existente para a resolução de casos
análogos, sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da
regulamentação do caso legalmente previsto. Contudo, refira-se que mais do que
uma mera comparação das situações de facto é preciso comparar as qualificações
jurídicas subjacentes, ou seja, há que atender à ratio legis por trás da norma existente
e apurar se esta também é válida para o caso omisso. Por outras palavras, é necessário
apurar se existe uma equivalência jurídica na essência do caso a regular e do caso
regulado.

iib. Analogia iuris


Na analogia iuris, ao contrário da analogia legis, não é possível identificar
uma norma aplicável a casos similares com a mesma ratio decidendi (razão de decidir
alheada de factores acessórios). Contudo, a resposta pode ser encontrada no
espírito do sistema entendido como um todo, em especial recorrendo aos
princípios gerais de Direito que o norteiam e estruturam. Esta figura não se
encontra literalmente prevista no artigo 10.º CC mas resulta da sua expressão
extensiva66. No fundo, a diferença existente entre a analogia legis e a analogia iuris é
uma diferença de grau. Enquanto na primeira existe como ponto de partida uma
disposição específica, na segunda parte-se de um conjunto sistemático e uno de
preceitos.

iic. Limites ao recurso à analogia


O recurso à analogia nem sempre é possível e encontra-se mesmo, em certos
casos, vedado expressamente na lei. Na maioria dos casos, esta inibição resulta do
fundamentado receio de que a analogia seja utilizada de forma abusiva na restrição
dos direitos, liberdades e garantias e no alargamento de situações tidas como
excepcionais. Assim, a analogia não é permitida:
 Nas normas restritivas de direitos, liberdades e garantias (cf. artigo 18.º n.º
2 CRP)

66
Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão reconduzem a analogia iuris à norma que o intérprete
criaria (artigo 10.º n.º 3 CC).

118
 Nas normas penais positivas (cf. princípio da legalidade/tipicidade –
artigos 29.º n.º 1, 3 e 4 CRP e 1.º n.º 3 CP)67
 No Direito fiscal (princípio da legalidade e direito de resistência – artigo
103.º n.º 2 e 3 CRP)
 Nas normas excepcionais (artigo 11.º CC)
 Nas normas exaustivas (numerus clausus, ou seja normas fechadas que não
contêm uma lista exemplificativa de situações- por exemplo, os artigos
1306 n.º 1 CC ou 1601.º e 1602.º CC)68

iii. A norma que o intérprete criaria

O legislador, atendendo à já referida obrigação de julgar, no n.º 3 do artigo


10.º CC, prevê uma solução de recurso para as situações em que não é possível fazer
uma aplicação analógica: a norma que o intérprete criaria (decisão individual e
subjectiva) mas dentro do espírito de todo o sistema (baliza objectiva que procura
garantir a coerência do sistema – restringindo decisões arbitrárias 69). A norma ad hoc
(ou seja criada à margem especificamente para aquele efeito) apenas resolve o caso
concreto numa lógica de garantir a separação do poder legislativo do poder judicial.
Só o primeiro poderá suprir definitivamente a omissão legislativa.

e. Integração extra-sistemática

Três caminhos podem ser utilizados, fora do sistema, para ultrapassar as


omissões legislativas, embora, no ordenamento jurídico português tenham uma
importância reduzida, se não mesmo, em certos casos, vejam o seu recurso vedado.

67
É possível a aplicação de analogia nas normas penais negativas como as relativas a causas de
exclusão, de escusa ou de justificação (ou seja, portanto, "favoráveis" ao agente).
68
Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão não excluem a possibilidade do recurso à analogia legis.
69
Inocêncio Galvão Telles encontra aqui um argumento a favor do Direito natural enquanto elemento
integrador de lacunas.

119
i. Regulação a posteriori.
Detectada a lacuna, o julgador pode requerer ao legislador que regule
aquela situação, de forma a se resolver o caso concreto e outros potenciais. Esta
solução encontra, contudo, grandes dificuldades não apenas devido às regras de
aplicação da lei no tempo que oportunamente iremos estudar mas, também, devido à
pressão do poder judicial sobre o legislativo, do caso concreto sobre regras que se
querem gerais e abstractas e, esquece, que, na prática, o legislador nem sempre tem a
agilidade necessária para o fazer. Por outro lado, ao legislar-se por e simplesmente a
lacuna deixa de existir.

ii. Discricionariedade
A lei reconhece e confere, em certos casos, até por uma questão prática e de
eficiência, uma certa margem de liberdade de manobra às entidades
administrativas que, assim, podem tomar decisões adequadas à prossecução do
interesse público no caso concreto. Contudo, tal previsão acaba por estabelecer a
inexistência de lacunas pois estas foram previstas e assim prevenidas legalmente.

iii. Equidade
A equidade, como atrás referimos, surge como a justiça do caso concreto. No
entanto, como vimos, a sua aplicação enquanto elemento integrador autónomo de
lacunas não é aceite, como resulta dos artigos 4.º e 10.º CC, até porque não
comporta, em si, uma solução normativa.

4. Aplicação no tempo
a. Considerações introdutórias

As regras nascem num determinado momento e como sabemos são


tendencialmente abstractas, no sentido, em que visam regular situações futuras que se
venham a colocar, ou seja, numa visão ainda muito simplista, o Direito apenas
dispõe para o futuro.

Dizemos que é uma visão muito simplista pois já sabemos que a abstracção é
apenas tendencial. Assim, um diploma pode ter, explícita ou implicitamente, uma

120
intenção de se aplicar a situações passadas. Imagine-se, por exemplo, um diploma
sobre o vencimento dos cadetes em que se dispõe um ajustamento salarial a partir da
data de admissão nas Academias. Há uma aplicação retroactiva.

Por outro lado, sabemos também que o Direito é dinâmico, no sentido em que
estão sempre a surgir novas regras e alterações às regras anteriores, num fenómeno
que actualmente toma mesmo proporções avassaladoras. Basta pensar em matéria de
legislação fiscal ou mesmo na Constituição que deveria, pela sua natureza e função,
ter um carácter mais estável e que já foi objecto de várias revisões e tentativas de
revisão! Além disso, sabemos ainda que, em caso de igualdade hierárquica e de não
existir um critério de especialidade subjacente, Direito novo revoga Direito antigo não
importando, genericamente, a repristinação.

Contudo, é natural que surjam conflitos intertemporais até porque há situações


da vida que não se esgotam num momento pontual pois também elas são dinâmicas e
porque nem sempre coincide o surgimento da situação de facto e a aplicação do
Direito. Por outras palavras, há que ter em conta a continuidade do processo e da vida
social. Por exemplo:
 Maria aborta. Neste momento, como sabemos, é crime e penalizado. No
entanto, imaginemos que quando o caso finalmente chega a julgamento o
Código penal foi alterado nesta matéria, sendo então despenalizado ou
mesmo descriminalizado o aborto. Quid iuris? E se, ao contrário, tiver sido
agravada a pena?
 Silva resolve candidatar-se à Academia Militar. Depois de aprovado nos
exames médicos e testes físicos, psicológicos e académicos, vai efectuar a
sua matrícula mas é informado que, nesse dia, entrou em vigor um novo
diploma que invalida a sua inscrição por falta do cumprimento de alguns
requisitos.
 António e Manuel celebram um contrato de empreitada ao abrigo da lei X,
devendo este, no entanto, ser cumprido já na vigência da lei Y que veio
alterar o primeiro diploma.
 O sr. Moura obteve, há 20 anos, da Câmara de Olhão a autorização para
construir um hotel na ilha da Armona. Por dificuldades financeiras só

121
agora pode avançar com o projecto. Contudo, neste momento, toda a zona
da ria Formosa é reserva natural protegida.

Como saber, então, nestes casos de sucessão temporal, qual a lei aplicável? A
lei antiga ou a lei nova? Encontraremos no sistema jurídico um caminho que nos
revele a melhor resposta para resolver estes conflitos intertemporais?

O Direito pode dar dois tipos de resposta:


 uma resposta concreta para casos concretos, em que se determina
directamente a lei aplicável para uma determinada situação (Direito
transitório)
 uma resposta geral com a definição de critérios sobre a aplicação da lei
no tempo (veja-se os artigos 12.º e 13.º CC; 29.º e 103.º n.º 3 CRP e, em
certa medida, os artigos 140.º e 141.º CPA).

b. Direito transitório

A lei pode fixar casuisticamente a solução para problemas colocados pela


sucessão temporal, indicando a resposta a dar de forma concreta. É costume, no
entanto, distinguir-se entre Direito transitório:
 formal – quando o legislador escolhe uma das leis potencialmente
aplicáveis para regular em todo ou em parte o caso concreto
 material – quando o legislador estabelece um regime próprio (diferente
das leis potencialmente aplicáveis) feito à medida para o caso concreto.

Em termos de segurança jurídica, a fixação de um Direito transitório parece


ser a solução desejável, no entanto, é pouco frequente, devendo o aplicador recorrer
aos critérios gerais ou especiais. Além do mais, nem sempre o legislador consegue
abarcar todas as hipóteses levantadas pelo conflito temporal entre leis. Por outras
palavras, também o Direito transitório pode ter lacunas.

Por fim, refira-se que, regra geral, o Direito transitório mais não representa do
que uma aplicação, pelo legislador, dos critérios gerais de forma a acautelar situações

122
que poderiam levantar dúvidas sensíveis. Por outras palavras, não se pense, que a
solução dada pelo legislador é obrigatoriamente excepcional.

c. Regra geral de aplicação no tempo. A não retroactividade.

O critério geral da aplicação no tempo é o que resulta da não retroactividade


da lei. Por outras palavras, a não aplicação da lei nova a factos passados, ou seja, a
sua aplicação imediata para resolver não apenas os casos futuros mas também os
casos presentes.

Este princípio da não retroactividade, que triunfa com o constitucionalismo


moderno, resulta da necessidade de previsibilidade, de estabilidade, de segurança e de
certeza no e do Direito e, por outro lado, de este ser uma ordem de dever ser, de
regulação de condutas (ora, dificilmente se regulam condutas passadas).

Mas como se concretiza a retroactividade? Em que consiste? É retroactiva a lei


nova que se aplica a factos anteriores ao início da sua vigência. Contudo, podemos
identificar quatro tipos de retroactividade70:
 Retroactividade extrema (ou de 1.º grau): aplica-se a lei nova a todos os
factos passados, não se salvaguardando sequer o caso julgado. Este tipo de
retroactividade é excluída pelo Direito português (cf. artigo 12.º CC e 18.º
n.º 3; 29.º n.º 1 e 3; 103.º n.º 3 e, sobretudo, 282.º n.º 3 CRP), salvo no
âmbito do Direito penal caso a lei nova tenha um conteúdo mais favorável
para o arguido (artigos 29.º n.º 4 in fine CRP e 2.º n.º 2 CP)71
 Retroactividade quase extrema (ou de 2.º grau): aplica-se a lei nova aos
factos passados mas respeitando o caso julgado (artigo 2.º n.º 4 CP)
 Retroactividade agravada (ou de 3.º grau): aplica-se a lei nova ao
passado mas respeitando “os efeitos já produzidos pelas obrigações, por
70
Oliveira Ascensão.
71
Baptista Machado defende a aplicação desta retroactividade extrema a leis confirmativas se estas
forem mais favoráveis aos particulares e não prejudicarem os interesses de terceiros. Entende-se por lei
confirmativa uma lei que venha alterar, aligeirando ou facilitando, o regime estabelecido para o
exercício de direitos reconhecidos aos sujeitos jurídicos (por exemplo, isentar os candidatos a cadetes
de provas físicas para a sua admissão). A maioria da doutrina, contudo, não propugna esta solução,
aplicando às leis confirmativas o regime geral resultante do artigo 12.º CC.

123
sentença passada em julgado, por transacção, ainda não homologada, ou
por actos de natureza análoga” (artigo 13.º n.º 1 CC).
 Retroactividade ordinária (ou de 4.º grau): aplica-se a lei nova ao
passado mas ressalvam-se “os efeitos já produzidos pelos factos que a lei
se destina a regular” (artigo 12.º n.º 1 in fine CC).

i. Fundamento jurídico da não retroactividade

Já aqui referimos alguns artigos do direito interno português referentes à não


retroactividade. Cabe agora apreciá-los mais de perto.

Em primeiro lugar, encontramos na Constituição várias referências ao


princípio da irretroactividade:
 O artigo 18.º n.º 3 determina que “as leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias têm de revestir um carácter geral e abstracto e não
podem ter efeito retroactivo72 (…)” afastando, pela sua ratio legis, a
possibilidade de retroactividade extrema.
 O artigo 29.º n.º 1, 3 e 4 proíbe a retroactividade da lei penal, salvo se a
lei nova tiver um conteúdo mais favorável para o arguido (artigo 29.º n.º 4
in fine que possibilita, a título excepcional, a retroactividade de 1.º grau)
 O artigo 103 n.º 3 proíbe expressamente, desde a revisão constitucional de
1997, a retroactividade da lei fiscal, pondo assim termo a uma celeuma
doutrinária. O seu incumprimento confere aos contribuintes um direito de
resistência. O estabelecimento da irretroactividade da lei fiscal
compreende-se, num Estado de Direito, no âmbito da defesa da igualdade
e do direito de propriedade.
 O artigo 282.º n.º 3 ressalva os casos julgados decididos com base em
legislação declarada inconstitucional ou ilegal com força obrigatória geral.
Por outras palavras, consagra-se o carácter intocável do caso julgado.
Contudo, na segunda parte do artigo, na linha do artigo 29.º n.º 4 in fine,
abre-se uma excepção quando a norma respeitar matéria penal, disciplinar
ou contra-ordenacional e for de conteúdo menos favorável. No entanto,
não se trata de uma retroactividade automática como no artigo 29.º n.º 4 in
72
Por nós sublinhado.

124
fine pois depende de decisão do Tribunal Constitucional e, portanto,
pressupõe uma ponderação dos valores e interesses em causa. Por fim,
mais uma nota: num sistema em que a retroactividade de uma lei
inconstitucional é limitada pelos casos julgados, como defender que
qualquer outra lei retroactiva não esteja da mesma forma limitada?

iii. O artigo 12.º CC

O artigo 12.º é composto por dois números. Comecemos pelo primeiro.

O n.º 1 do artigo 12.º divide-se em duas partes:


 Na primeira dispõe-se que “a lei só dispõe para o futuro”. Três notas
quanto a esta matéria. Em primeiro lugar, recordamos mais uma vez que
lei deve ser interpretada de uma forma lata (fonte de Direito). Em segundo
lugar, a lei não dispõe apenas para o futuro mas também para o
presente, ou seja aquilo que o legislador pretende é o princípio geral de
aplicação imediata da lei. Em terceiro lugar, esta primeira parte, lida
isoladamente, proíbe a retroactividade, contudo, este princípio é mitigado
pela segunda parte do n.º 1 e pelo n.º 2.
 Na segunda parte, com efeito, verifica-se que o artigo 12.º não veda a
possibilidade da existência de leis retroactivas (“ainda que lhe seja
atribuída eficácia retroactiva”), por outras palavras, a não retroactividade
é um princípio geral que pode, contudo, ser afastado. No entanto, parece
existir um limite estabelecido legalmente para a retroactividade pois
ressalvam-se “os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a
regular”. Por outras palavras, apenas se admite a retroactividade ordinária
ou de 4.º grau, ou seja, a forma mais leve de retroactividade. Contudo, é
preciso fazer mais uma ressalva, trata-se de uma presunção ilidível. Desta
feita, o n.º1 do artigo 12.º CC acaba por permitir, se a presunção for
afastada, situações de retroactividade de 2.º e 3.º graus, sendo, portanto, o
limite o caso julgado.

O n.º 2, por seu turno, também ele se divide em duas partes, diferenciando
duas situações:

125
 a primeira parte refere-se às condições de validade substancial (por
exemplo, direitos e obrigações do arrendatário), ou formal (por exemplo,
forma do contrato de arrendamento) de quaisquer actos 73 ou efeitos. Nestas
situações, apenas em caso de dúvida, dever-se-á aplicar a lei antiga (lei
em vigor à data dos factos), numa clara extensão da sua vigência por
razões de certeza. Fala-se em sobrevigência ou ultractividade da lei antiga.
Contudo, trata-se mais uma vez de uma presunção ilidível (“entende-se”),
ou seja, esta solução pode ser afastada em caso de prova em contrário.
 No que respeita o conteúdo (ou mais correctamente, os efeitos) de certas
relações jurídicas que subsistam à data da entrada em vigor da lei
nova, presume-se, até prova em contrário (“entender-se-á”), que se
aplica a lei nova abstraindo-se dos factos que lhes deram origem. Por
outras palavras, é preciso determinar e olhar primeiro para o facto de
origem da relação jurídica para saber se é possível a sua abstracção. Se não
o for, então não se aplica a lei nova mas a lei antiga aos efeitos pendentes.
Clarifiquemos esta ideia através de exemplos. Uma lei sobre a obrigação
de indemnizar não pode abstrair dos factos que estão na base da
responsabilidade. Portanto, a nova lei só se poderá aplicar aos factos
novos, ou seja aos factos que aconteceram depois da entrada em vigor da
nova lei. Aos factos anteriores e efeitos que subsistam aplica-se, desta
feita, a lei antiga. Já uma lei sobre as relações entre proprietário e
inquilinos pode não ter em conta os factos que estiveram na origem dessa
relação e aos contratos pendentes e futuros aplicar-se-á a lei nova.

Resumindo, a ideia subjacente ao artigo 12.º n.º 2 é que cabe à lei antiga
regular os actos passados e os efeitos que lhe estão intimamente ligados. À lei
nova cabe a regulação dos factos novos e dos efeitos que possam ser divorciados
da sua origem. Tudo depende, portanto, da interpretação da lei nova para se apurar se
esta regula actos passados e se liga ou não os efeitos aos factos originários.

Concretizemos, então, rapidamente, através de alguns exemplos74:

73
Preferimos actos à expressão “factos” empregue no artigo 12.º n.º 1 CC pois, em termos estritos, um
facto não pode ser inválido pois não depende da vontade (pense-se, num terramoto).
74
Cf. Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão e Oliveira Ascensão.

126
 Estados pessoais: aplica-se a lei vigente no momento da sua constituição
(lei antiga) quanto à sua constituição e a lei vigente no momento da sua
aplicação (lei nova) quanto ao seu conteúdo.
 Negócios jurídicos: aplica-se a lei em vigor no momento da sua
celebração (lei antiga).
 Obrigações: aplica-se a lei em vigor no momento da celebração do
contrato a este e aos efeitos a ele intimamente ligados (lei antiga). Aplica-
se a lei vigente no momento da aplicação quando os efeitos que se separem
do acto originário (lei nova).
 Direitos reais: aplica-se a lei vigente no momento da constituição (lei
antiga) no que se refere à sua existência, validade e objecto mas aplica-se a
lei vigente no momento da aplicação (lei nova) quanto ao conteúdo.
 Direito da família: aplica-se a lei vigente no momento da constituição (lei
antiga) no que se refere à existência, validade, objecto e conteúdo ligado à
constituição do estado de família mas aplica-se a lei vigente no momento
da aplicação (lei nova) quanto ao conteúdo autonomizado da constituição
do estado.
 Sucessão por morte: quanto à forma do testamento aplica-se a lei vigente
no momento da sua elaboração (lei antiga) e quanto à sucessão, por
interpretação extensiva (visto a morte ser um facto e não um acto jurídico),
a lei vigente no momento da morte (lei antiga).

d. Critérios especiais

O artigo 12.º CC apenas estabelece uma solução geral para a resolução da


sucessão de leis no tempo. Contudo, também existem soluções especiais para
determinados casos que não se confundem com o Direito transitório.

i. Alguns ramos de Direito

Nalguns ramos de Direito, existem normas específicas sobre a aplicação da lei


no tempo. Pense-se, em especial, no Direito penal e no Direito processual.

127
No Direito penal, atendendo à sua delicadeza por interferir com direitos
fundamentais, é preciso ter em consideração os já referidos artigos 29.º CRP e 2.º CP.
Da sua conjugação resulta a proibição da retroactividade, salvo no caso da lei nova
ser mais favorável ao arguido do que a antiga. Neste caso aceita-se a
retroactividade extrema, ou seja, aceita-se que se ponha em causa mesmo o caso
julgado. Por outras palavras, aplica-se, em matéria penal, a lei vigente no momento da
prática do facto penal, salvo se o regime da lei posterior for mais favorável. Entende-
se por momento da prática do facto, aquele em que o agente actuou, ou no caso de
omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento da concretização do
resultado (artigo 3.º CP).

Já no Direito processual, a lei nova aplica-se imediatamente mesmo sobre


os casos pendentes para regular a sua tramitação.

ii. Prazos

O artigo 297.º CC estabelece uma solução especial para a sucessão de leis em


matéria de prazos mas também estende a sua aplicação, no seu n.º 3, “na parte
aplicável, aos prazos fixados pelos tribunais ou por qualquer autoridade”.

A solução encontrada depende de a nova lei fixar um prazo mais curto ou mais
longo do que a lei antiga. Vejamos.

O n.º 1 do artigo 297.º refere-se à fixação de um prazo mais curto pela lei
nova fixando um critério geral e uma excepção. Assim, a lei nova passa a aplicar-se
aos prazos em curso mas o prazo só é contado a partir da entrada em vigor da nova
lei. Contudo, ressalvam-se as situações em que, de acordo com a lei antiga, falte
menos tempo para o prazo se completar. Ou seja, nestes casos não se aplica a lei nova
mas a lei antiga.

Vejamos um exemplo: Imaginemos que a lei nova vem alterar um prazo


previsto na lei antiga de 5 para 4 anos. Imaginemos que já decorreram 3 anos à data
de entrada em vigor da lei nova. Se aplicarmos a lei nova, como a sua aplicação só
conta a partir da entrada em vigor da nova lei, faltariam os 4 anos previstos para

128
completar o prazo. Ora, se aplicássemos ainda a lei antiga já só faltariam 2 anos (5
anos do prazo menos os 3 já decorridos) para se completar o prazo e, portanto, menos
tempo do que se aplicarmos a lei nova. Deve então funcionar a excepção do artigo
297.º n.º 1 e continuar a aplicar-se a lei antiga.

O n.º2 do artigo 297.º vem, por seu turno, estabelecer o regime aplicável
quando a lei nova prevê um prazo mais longo do que a lei antiga. Também aqui se
aplica a lei nova mas, ao contrário do caso anterior, tem-se em atenção o tempo
entretanto decorrido e não se prevê nenhuma excepção.

Vejamos mais um exemplo. Imaginemos que a lei nova vem alterar um prazo
previsto na lei antiga de 5 para 10 anos. Imaginemos que já decorreram 3 anos à data
de entrada em vigor da lei nova. Ao aplicarmos a lei nova, como prevê o artigo 297.º
n.º 2, o prazo passa a ser de 10 anos e não de 5 mas, como se atende ao tempo
decorrido até à entrada em vigor da nova lei, faltariam 7 anos (10 anos do novo prazo
menos os 3 que já tinham passado) para completar o prazo.

iii. Lei interpretativa

O artigo 13.º CC vem estabelecer mais uma solução especial para o caso das
leis interpretativas. Contudo, antes de avançarmos, temos de tentar definir o que se
entende por lei interpretativa. Ora, no fundo, o que está aqui em causa é a
problemática da interpretação autêntica. Assim, a lei interpretativa deve, à luz do
que referimos em sede anterior:
 Ser uma interpretação normativa, ou seja, veiculada por uma fonte de
Direito75
 Ter explícita ou tacitamente o objectivo de interpretar a lei em vigor, ou
seja, não pode ser inovadora (para as leis inovadoras aplica-se, salvo
critério especial, o artigo 12.º CC)
 Não ser hierarquicamente inferior à lei que vem interpretar
 Ser posterior à lei interpretada

75
Preferimos aqui a expressão mais ampla de Oliveira Ascensão (“interpretação normativa”), contra a
opção mais restritiva de Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão de acto legislativo por aquela atender
à multiplicidade de fontes de Direito.

129
Quanto ao regime aplicável, resulta do n.º 1 do artigo 13.º uma
retroactividade de 3.º grau: a lei interpretativa é retroactiva porque se integra na lei
interpretada, fazendo, portanto, parte dela. Isto significa que a lei interpretada produz
efeitos nos moldes que resultam da lei interpretativa a partir do momento da sua (da
lei interpretada, entenda-se) entrada em vigor. Contudo, ressalvam-se os efeitos já
produzidos:
 pelo cumprimento da obrigação
 por sentença transitada em julgado
 por transacção mesmo se não homologada (v. acordo judicial ou
extrajudicial entre as partes)
 por actos de natureza análoga aos anteriormente referidos (por exemplo, a
compensação nos termos do artigo 847.º CC).

Antes de terminarmos três notas.

Em primeiro lugar, atente-se ao facto de o regime estabelecido no artigo 13.º


CC, ao contrário do artigo 12.º, ser categórico, ou seja, não prevê presunções ilidíveis.
Por outras palavras, não pode ser afastado.

Em segundo lugar, a ressalva de actos de natureza análoga torna


exemplificativa a listagem de efeitos a preservar da retroactividade, abrindo a norma
do artigo 13.º.

Em terceiro lugar, se a lei interpretativa for mais favorável do que a lei


interpretada, pode ser aplicada a desistência do autor ou confissão do arguido não
homologadas pelo tribunal, permitindo ao desistente ou confidente a sua
reconsideração e consequente revogação (artigo 13.º n.º 2 CC)

e. Método de resolução

Quando deparados com uma sucessão temporal de leis como resolver então, na
prática, o problema. Que caminho tomar, atendendo às várias situações acima
analisadas? A solução passa, na verdade, por avançar por passos. Senão vejamos.

130
Em primeiro lugar, há que apurar se:
 existe Direito transitório para resolver a questão, caso em que se aplica a
solução concretamente estabelecida;
 estamos no âmbito do regime próprio de um determinado ramo do Direito,
caso em que se aplica esse regime. Recorde-se o Direito penal e o Direito
processual;
 estamos no caso de uma lei sobre prazos, caso em que se aplica o artigo
297.º CC;
 estamos no caso de uma lei interpretativa, caso em que se aplica o artigo
13.º CC.

Só nos casos de estarmos fora do âmbito das situações acima enunciadas, é


que poderemos recorrer ao critério geral do artigo 12.º CC.

Mas a aplicação do artigo 12.º CC implica, também ela, uma abordagem


faseada.

Assim, em primeiro lugar, é preciso atender à lei nova e apurar se ela


estabelece, expressa ou tacitamente, qualquer indicação sobre a sua aplicação
temporal, em especial a sua aplicação retroactiva e os moldes dessa aplicação.

Se a lei nova nada disser, então aplica-se o n.º 2 do artigo 12.º. Neste caso é
preciso indagar não só se estamos no âmbito da primeira ou da segunda parte do
n.º 2, como se as presunções estabelecidas em ambas as partes não se encontram
afastadas por prova em contrário.

No caso de estarmos no âmbito da 1.ª parte do n.º 2 aplica-se, em caso de


dúvida, a lei antiga.

No caso de estarmos no âmbito da 2.ª parte, temos que começar por apurar se
a origem do facto é ou não relevante para a continuidade da relação jurídica e se
está com ela intimamente ligada. Se não for, aplica-se a lei nova; se for, aplica-se
a lei antiga.

131
Por outro lado, a lei nova pode estipular, directa ou indirectamente, a sua
aplicação retroactiva: Neste caso, aplica-se o n.º 1 do artigo 12.º. Ainda assim, é
preciso ter em conta duas situações.
 A lei nova considera-se aplicável aos factos passados, afastando a
presunção da 2.ª parte do n.º 1. A retroactividade é, no entanto, limitada
pelo caso julgado.
 A lei nova não afasta a presunção e ficam ao seu abrigo os efeitos a
produzir e ao abrigo da lei antiga os efeitos já produzidos pelos factos que
a lei se destina a regular.

5. Aplicação no espaço
a. Territorialidade. A pretensa aplicação

O território é um dos elementos constitutivos do Estado, servindo de suporte


físico ao exercício do poder político e dos poderes de soberania, daí, por vezes, se
falar em territorialidade (a lei de um Estado só é aplicável dentro das fronteiras desse
Estado a quem aí se encontrar independentemente da nacionalidade ou mesmo na falta
dela – apátridas). Trata-se, portanto, de um problema de eficácia e não de existência
ou validade das normas.

Se a soberania dos Estados fosse entendida de uma forma rígida e


isolacionista, então, no final, cada Estado consideraria apenas aplicável dentro das
suas fronteiras apenas a sua própria lei. Contudo, tal não é o que acontece, sobretudo
num mundo cada vez mais global e interdependente. O reconhecimento da
coexistência com outras ordens jurídicas é, portanto, pacificamente aceite nos dias de
hoje. Desta feita, a territorialidade em sentido estrito não passa de um pretenso
princípio, embora as excepções dependam, em última análise de opções estaduais
legal e politicamente legitimadas que definem a forma de aceitação do Direito
não estadual interno.

Em matéria de aplicação no espaço, vários pontos devem ser, aliás,


ponderados:

132
 O Direito não se reduz ao Direito estadual. Basta recordar o Direito
internacional ou o Direito comunitário ou o Direito infra-estadual.
 Há situações excepcionais em que o Direito estadual não se aplica no
interior das fronteiras nacionais. Pense-se nas embaixadas, nas bases
militares estrangeiras sediadas no território nacional, nas zonas
desmilitarizadas ou sob alçada internacional, nas zonas francas.
 Há situações em que o Direito nacional (estadual) se aplica no estrangeiro.
 Há situações em que o Direito estrangeiro se aplica no território nacional.
O Direito estrangeiro pode ser aplicado em território nacional apenas
quando e como o Direito nacional o admitir. Assim, a sua recepção pode
ser formal (o Direito estrangeiro é recebido enquanto tal e com o valor que
lhe era atribuído no ordenamento de origem) ou material (a aplicação do
Direito estrangeiro passa pelo crivo interpretativo e valorativo do
ordenamento receptor).

No fundo, a problemática da aplicação da lei no espaço (mais correctamente


deveríamos dizer do Direito ou da norma 76) prende-se com a divisão artificial do
território e é cada vez mais evidente com a forte globalização económica, social e
cultural, podendo surgir dificuldades na delimitação da norma aplicável e zonas de
conflito positivo (várias normas aplicáveis) ou negativo (nenhuma se aplica). A
resolução desta questão prende-se com imperativos de previsibilidade, continuidade e
segurança jurídica, evitando-se situações de denegação de justiça. Recorde-se a
situação do casamento do elemento da GNR no Iraque. Por que lei é que se rege? Até
que ponto o seu casamento é válido e pode ser reconhecido em Portugal? Que tipo de
efeitos é que produz? E se um jornalista português for raptado, no Iraque, por rebeldes
iraquianos, jordanos e sauditas? E se um turista inglês comprar, em Portugal, a um
vendedor paquistanês uma recordação com defeito do Euro2004 feita na China mas
com componentes indianas? São estas algumas das questões que queremos aqui ver
resolvidas.

76
Do Direito porque, em primeiro lugar, em sentido mais amplo, é preciso saber quais os ordenamentos
jurídicos em jogo e, para além do mais, como já sabemos, a lei não é a única fonte de Direito (âmbito
de eficácia). Da norma porque, depois, é preciso apurar dentro dos ordenamentos em jogo qual a norma
aplicável (âmbito de competência).

133
b. O Direito internacional privado

Cada vez mais assistimos a situações plurilocalizadas que apresentam


conexões mais ou menos estreitas com vários ordenamentos. Cabe ao Direito
internacional privado encontrar soluções para dirimir estes conflitos. Grosso modo,
existem dois caminhos: uma regulamentação material e uma regulamentação
conflitual, que podem, aliás, coexistir.

i. Regulamentação material

Na regulamentação material, o legislador, numa espécie de Direito transitório


só que agora relativo à matéria de aplicação das normas no espaço, determina
directamente a solução a aplicar ao caso em análise. No entanto, três caminhos podem
ser tomados:
 Direito interno material comum, ou seja, trata-se o problema
plurilocalizado como se de um problema interno se tratasse, aplicando-se o
Direito interno do Estado que julga a questão. Esta solução gera alguma
insegurança pois pode-se aplicar uma ordem jurídica a um caso que não
tem com ela qualquer relação estreita. Por outro lado, permite a prática de
forum shopping, ou seja, permite às partes escolher o ordenamento que
lhes seja mais favorável mesmo estando desligado do caso em concreto.
 Direito material uniforme convencional como, por exemplo, a lei sobre
livranças e cheques que determina soluções materiais uniformes para os
diferentes litígios nessa matéria, tendo origem em convenções
internacionais. Esta solução encontra algumas dificuldades como o facto
de nem todos os problemas estarem previstos nessas convenções e, por
outro lado, estas só poderem ser aplicadas em relação aos Estados que lhes
aderiram.
 Direito material especial com soluções ad hoc para problemas concretos
e que pode ter origem convencional, jurisprudencial, costumeira (pense-se
na lex mercatoria) ou interna (nomeadamente as normas sobre
investimento estrangeiro ou importações tecnológicas ou os artigos 26.º n.º
2 e 68.º n.º 2 CC).

134
ii. Regulamentação conflitual

Neste caso, a solução não passa por uma solução material mas por uma
solução formal em que se procura encontrar a resposta ao problema num dos
ordenamentos que esteja em contacto com a situação plurilocalizada. Para tal recorre-
se às chamadas normas de conflito (como aquelas que temos no Código Civil entre
os atigos 25.º e 65.º e que são preferencialmente utilizadas em Portugal), que são
normas remissivas, de conexão (estabelecimento de um elo de ligação entre a situação
da vida e a ordem jurídica designada) e formais (veja-se o artigo 23.º n.º 1 CC que
estabelece que “a lei estrangeira é interpretada dentro do sistema a que pertence e de
acordo com as regras interpretativas nele fixadas”). Trata-se, no fundo, de uma
forma de regulamentação indirecta que permite dar título de vigência ao Direito
estrangeiro dentro do território nacional.

Esta solução tem como vantagens a segurança, a exclusão do forum shopping


(refira-se, aliás, o combate à fraude à lei estipulado no artigo 21.º CC e a utilização de
elementos de conexão extremamente precisos como o do artigo 33.º n.º 1 CC) e o
chamamento de uma ordem jurídica relacionada com o caso. Contudo, nem sempre é
fácil averiguar e apurar, na prática, a lei estrangeira e a sua interpretação mais
correcta. O artigo 23.º (por exemplo, com a referência ao sistema a que pertence –
princípios gerais de Direito inclusive) e o artigo 348.º CC procuram resolver este
problema, recorrendo-se, apenas, em última análise ao Direito português, atendendo à
obrigação de julgar.

Por fim, refira-se que muitos acusam a solução conflitual de ser demasiado
formal e cega aos resultados por se remeter para uma ordem jurídica que pode ter
normas com conteúdos chocantes para o nosso sistema, como por exemplo excluir a
legítima, aceitar casamentos homossexuais ou promover violações flagrantes a um
núcleo fundamental de direitos incomprimíveis. No entanto, também o legislador
português arranjou mecanismos de ultrapassar este formalismo excessivo,
nomeadamente, com a salvaguarda da ordem pública internacional (artigo 22.º CC). O
formalismo também é mitigado pelo princípio de favor negotii expresso, por exemplo,
no artigo 19.º CC (ou seja, o legislador apreciando as normas materiais dos
ordenamentos em contacto com o caso e sensível ao resultado da aplicação da lei

135
considerada inicialmente competente procura, em determinadas condições, a solução
que possa salvar a validade do negócio celebrado).

c. Direito penal, em especial

No Código Penal, nos artigos 4.º a 7.º, o legislador procura definir o âmbito
de aplicação da lei penal portuguesa, adoptando o método de circunscrever as
situações em que se aplica ou não se aplica o Direito português.

Assim, é preciso distinguir entre o facto ter sido praticado dentro ou fora do
espaço nacional. No caso de ser praticado em território nacional (incluindo a bordo de
navios ou aeronaves portugueses), é aplicável a lei portuguesa, salvo convenção
internacional em contrário (artigo 4.º CP), independentemente da nacionalidade do
agente.

No caso do facto ter sido praticado fora do território português, a nossa lei
ainda se aplica a determinados crimes que envolvam interesses nacionais (artigo 5.º
n.º 1 a) CP); a determinados crimes, na condição do agente ser encontrado em
Portugal e não poder ser extraditado (artigo 5.º n.º 1 b) CP); a factos cometidos por
portugueses, ou por estrangeiros contra portugueses, quando se cumulem três
condições: (1) os agentes serem encontrados em Portugal, (2) os factos serem
puníveis pela legislação do lugar em que tenham sido praticados, salvo no caso de aí
não se exercer poder punitivo e (3) os factos constituírem crime que admita extradição
e esta não possa ser concedida (artigo 5.º n.º 1 c) CP); a factos cometidos contra
portugueses por portugueses que residiam habitualmente em Portugal ao tempo da sua
prática e aqui tenham sido encontrados (artigo 5.º n.º 1 d) CP); a factos que o Estado
português se tenha obrigado a julgar por convenção internacional (artigo 5.º n.º 2 CP).

A lei portuguesa não se aplica, contudo, a factos praticados no estrangeiro,


quando tal é excluído por convenção internacional (corpo do artigo 5.º n.º 1 CP);
quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver
subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação (artigo 29 n.º 5 CRP e artigo
6.º n.º 1 CP); quando, salvo nos crimes envolvendo interesses nacionais, o facto é
julgado segundo a lei do país em que o facto foi praticado, sempre que esta seja

136
concretamente mais favorável ao agente, havendo conversão da pena (artigo 6.º n.º 2 e
3 CP).

Por fim, entende-se, no artigo 7.º CP, como lugar da prática do facto tanto
aquele em que, total ou parcialmente, o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria
ter actuado, como aquele em que se concretiza o resultado da sua actuação.

d. Direito supra-estadual

No que respeita o Direito supra-estadual (internacional ou comunitário) a sua


aplicação em Portugal depende, também ela, da aceitação traduzida no Direito
português que, como já vimos, encontramos expressa no artigo 8.º CRP. Para não
nos repetirmos, remetemos, nesta matéria, para o que acima foi referido aquando da
análise das fontes de Direito. Recorde-se, apenas, que se trata de um problema de
eficácia e não de existência ou validade do Direito supra-estadual.

e. Direito infra-estadual

Cabe igualmente ao Direito estadual definir os termos da sua aceitação, se


bem que aqui se vai além da simples delimitação dos seus termos de eficácia. Fixa-se,
igualmente, as condições da sua origem, existência, validade e aplicação.

V. Fins do Direito

1. Considerações introdutórias

O Direito como vimos é necessário e resulta da sociabilidade do Homem,


procurando solucionar litígios reais ou meramente potenciais de forma a garantir, com
a possibilidade do recurso à força, a estabilidade e coesão social. Por outras palavras,
o Direito é, por natureza e na sua essência, finalístico e a sua vocação sobretudo
pacificadora e de gestão de interesses conflituantes, obedecendo a valores que são
mais ou menos universais: segurança, justiça e bem-estar (embora este seja um
objectivo mais recente).

137
Contudo, esta universalidade é meramente formal pois na prática, quer no tempo,
quer no espaço, não apenas varia o seu conteúdo e as formas de os alcançar mas
também a sua hierarquização. Assim, por exemplo, face à iminente ameaça terrorista,
em muitos Estados tem-se vindo a colocar a segurança no topo dos fins do Estado,
mesmo que isto signifique restrições em matéria de direitos ou de bem-estar. Também
a concepção de bem-estar varia e inclui, nomeadamente, hoje em dia, em Portugal,
uma vertente económica, social, cultural e ambiental cujo conteúdo depende
designadamente da conjuntura nacional e internacional, da ideologia dominante, da
cor do governo ou da proximidade de eleições.

2. Ordem Social

A atitude pacificadora do Direito traduz-se, em especial, na manutenção da


ordem social, expressão bastante lata que procura não apenas relembrar a dimensão
necessária e social do Direito mas também a prossecução da segurança, fim herdado
do Estado liberal.

A segurança tem, contudo, várias facetas. Assim ela pode ser interna ou
externa.

A segurança interna atende a três aspectos:


 à garantia de ordem e tranquilidade nas relações sociais, através da polícia
e dos tribunais
 à segurança do particular face ao Estado, procurando evitar abusos do
próprio garante da segurança (o Estado)
 à segurança jurídica, ou seja, a estabilidade, continuidade e certeza do
Direito, condição aliás essencial para garantir os dois aspectos anteriores.
Esta segurança jurídica deve ser verificada não apenas no momento da
aplicação do Direito mas também da sua elaboração. Um esforço de
clareza e racionalização do instrumento jurídico impõe-se. O fenómeno
actual de legislarreia é, desta feita, contraproducente, assim como a
incerteza sobre a eficácia e vigência de certos diplomas, umas vezes

138
esquecidos e outras vezes frequentemente alterados. A segurança jurídica é
ainda reforçada pelos artigos 6.º, 8.º n.º 1 e 2, 9.º e 10.º e 16.º do CC.

A segurança externa prende-se com uma dimensão supra-estadual, ou seja,


com a paz no âmbito das relações internacionais. Este é, aliás, o objectivo principal
das Nações Unidas (dotada até de poderes coercivos no âmbito do Capítulo VII) e
passa pela igualdade soberana dos Estados, pela proibição do uso da força nas
relações internacionais, pela não ingerência em assuntos internos e pela aposta na
melhoria das condições socio-económicas pois a pobreza e a desigualdade socio-
económica são as principais inimigas da paz e da estabilidade social.

3. Justiça
a. Polissemia e complexidade

Apesar da antiguidade e nobreza associada à prossecução da justiça (quase


todos os Estados a reclamam embora nem sempre a garantam) e de muito se ter
discutido sobre o seu significado, a verdade é que ainda hoje a palavra pode
apresentar os mais diversos significados e a sua definição conceptual ser objecto de
polémica. Assim, justiça tanto pode ser a máquina judicial (no seu todo ou
individualmente considerada em cada um dos seus elementos - o tribunal, o juiz, o
ministério público, os advogados…), como o ministério responsável e a máquina
administrativa associada, como virtude, como a justiça divina ou a justiça privada (no
sentido de vingança ou retaliação), a justiça em sentido formal ou material ou a justiça
dita comutativa ou distributiva, ou a justiça como sinónimo de igualdade, etc.

Vejamos apenas as noções de justiça mais relevantes.


 Dar a cada um o que é seu
 Igualdade em sentido formal: universalidade dos comandos e regras
gerais e tendencialmente abstractas. No sentido de justiça comutativa
ou aritmética que preside às relações inter-individuais e que se traduz
no afastamento de situações de desigualdade inaceitável tanto nas
relações negociais como nas que resultam de actos ilícitos. Por
exemplo, perante um crime, um juiz iguala o prejuízo da vítima com
o benefício do arguido, aplicando a este último uma pena.

139
 Igualdade em sentido material: tratamento igual de iguais e
desigual de desiguais. Ou seja, justiça distributiva ou geométrica em
que se deve atender ao mérito ou ao desmérito das pessoas
diferenciando, em consonância, o tratamento. Aliás, a procura desta
igualdade material traduz-se não apenas no não agravamento das
desigualdades mas também na sua correcção, podendo até passar por
medidas de discriminação positiva.

Do que acabámos de referir, resulta uma associação íntima entre justiça e


igualdade mas também com a proporcionalidade na sua tripla vertente de necessidade,
adequação e ponderação e com a responsabilidade que resulta da nossa condição de
seres humanos e sociáveis.

b. Justiça e Segurança

Na complexidade das relações sociais, nem sempre é possível conciliar de


forma perfeita justiça e segurança, sacrificando-se, por vezes, parcialmente uma
em favor da outra, tendo sempre, por pano de fundo, um determinado
enquadramento sistemático e valorativo. Contudo, há determinadas circunstâncias
conjunturais que podem impor respostas casuísticas desligadas da unidade do sistema
jurídico. Encontrar um equilíbrio entre soluções concretas e abstractas é, aliás, um
desafio maior do que o de conciliar justiça e segurança.

Como soluções abstractas em que se sacrifica mais a justiça em nome da


segurança, pense-se, nomeadamente:
 no artigo 6.º CC ao se estabelecer que a ignorância ou má interpretação da
lei não é desculpável;
 quando se proíbe a retroactividade da lei no artigo 12.º n.º 1 CC;
 quando se estabelece o princípio do favor negotii, por exemplo no artigo
19.º CC, na tentativa de salvar negócios jurídicos que de outra forma
seriam inválidos;
 quando se aceita o efeito de caso julgado e se dá por definitiva uma
decisão judicial;

140
 quando se estabelece o deferimento ou indeferimento tácito no caso de
ausência ou demora de resposta da administração;
 quando se reconhecem direitos adquiridos mesmo no caso de contrariarem
interesses gerais. Pense-se nos direitos de construção conseguidos ao
abrigo de legislação que já não está em vigor;
 quando se estabelece o regime da prescrição de direitos (por exemplo,
direito de reclamação ou de indemnização) ou de procedimentos penais
(por exemplo, relativamente a crimes cometidos há muitos anos).

Em sentido contrário, no sacrifício da segurança pela justiça, por exemplo:


 no Direito Penal admite-se que a falta de consciência da ilicitude do
comportamento, quando não censurável, se traduza numa exclusão da
culpa do autor e, portanto, na sua não punição;
 quando no Direito Penal se aceite a aplicação retroactiva da norma de
conteúdo mais favorável (artigo 29.º n.º 1 e 4 CRP);
 quando se estabelece a reserva de ordem pública internacional no artigo
23.º CC;
 quando em matéria de reconhecimento de sentenças estrangeiras, se
permite, a título excepcional a revisão de mérito para portugueses quando
a lei portuguesa seja mais favorável do que a aplicada.

141
c. A problemática do Direito injusto. Direito Natural e Direito Positivo.

Como já sabemos, um dos objectivos do Direito positivo é a prossecução da


Justiça e sabemos também que o Direito natural é ontologicamente justo. Uma
questão logo se levanta: e se tivermos uma disposição injusta? Deveremos afastá-la?
Deveremos obedecer-lhe na mesma? No fundo, a questão, já antevista por Sócrates,
prende-se com uma escolha entre a Justiça e a Segurança que também é um dos
objectivos prosseguidos pelo sistema jurídico.

Porquê este dilema? Se obedecer a leis injustas conduz ao sacrifício da Justiça,


não lhes obedecer pode ser uma porta aberta para legitimar o desrespeito das regras,
mesmo daquelas que são boas, conduzindo ao caos social e, portanto, à insegurança.

A resposta a esta problemática varia. Sócrates, por exemplo, pagou o preço de


defender a segurança mesmo acreditando num Direito superior 77. O nosso legislador,
no artigo 8.º n.º 2, parece também optar por esta posição ao dispor que “o dever de
obediência à lei não pode ser afastado sob o pretexto de ser injusto ou imoral o
conteúdo do preceito legislativo”.

Contudo, apesar da letra da lei, não nos parece que o legislador tenha querido
afastar a possibilidade de insurreição face a normas que choquem com o núcleo
essencial do Direito natural pois é preciso ter em atenção o espírito do nosso
ordenamento jurídico (cf. artigos 9.º n.º 1 e 10.º n.º 3 CC) baseado na dignidade da
pessoa humana (cf. artigo 1.º CRP). Aliás, atente-se, também, ao artigo 29.º n.º 6 CRP
que prevê a revisão de sentença e indemnização pelos danos sofridos a quem for
“injustamente” (e não ilegalmente) condenado. Assim, defendemos que se deve
garantir a segurança jurídica, salvo se estiverem em causa princípios

77
Neste sentido, Inocêncio Galvão Telles que afirma que o Direito natural não é suficiente e deve ser
completado por um instrumento mais concreto, o Direito positivo, em nome da certeza. Assim,
obediência ao Direito injusto deve ser um aviso à consciência do legislador para que corrija o Direito
mau.

142
axiomáticos incomprimíveis como a vida e a dignidade da pessoa humana. Nesse
caso, temos o direito, senão mesmo o dever de resistir78.

4. Bem Comum

A prossecução jurídica do bem comum, fruto do Estado Social de Direito e


contestada pelos neo-liberais, traduz-se na criação das condições necessárias à
satisfação das necessidades colectivas pois se considera que, por um lado, o sistema
de mercado tem falhas que devem ser corrigidas e, por outro, existe sempre um
conflito latente entre justiça e eficiência económica, uma vez que os bens económicos
são escassos face a uma multiplicidade de necessidades. Trata-se, portanto, de um
imperativo de justiça e de um garante da paz social que se materializa,
designadamente, pela fixação de salários mínimos, pensões sociais, acesso
tendencialmente gratuito ao sistema de saúde e de ensino. Atente-se, em especial, aos
artigos 2.º, 9.º d), 58.º e ss. e 81.º a) b) CRP

No entanto, hoje em dia, o Bem-Estar não se resume apenas a uma dimensão


socio-económica. Assim, é preciso acrescentar a dimensão cultural (veja-se o artigo
2.º in fine, 9.º d), 73 e ss. da CRP) mas também a dimensão ambiental que tem vindo
a ganhar força, em especial, depois da revisão constitucional de 1997 (veja-se o artigo
9.º d) que se refere a direitos ambientais, ao artigo 66.º e ao artigo 81.º a) CRP) um
pouco na euforia do pós-cimeira do Rio92 e dos compromissos internacionais e
comunitários assumidos em matéria ambiental.

78
Neste sentido, Oliveira Ascensão e Maria Luísa Duarte.

143
QUADROS RECAPITULATIVOS

QUADRO I – CONCEITO DE DIREITO

1. PLURALIDADE DE SENTIDOS DA PALAVRA DIREITO


Interessa-nos, sobretudo, o Direito em sentido objectivo, ou seja, o Direito
enquanto conjunto de regras de conduta.

2. CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO


a. Sociabilidade: onde há Homem há sociedade, onde há sociedade há
Direito.
b. Antropocêntrico: o Direito centra-se no Homem. É por ele, para ele e
em função dele criado.
c. Necessidade: garante a vida em sociedade, regulando conflitos.
d. Alteridade: atender à conduta do ser humano para com os outros.
e. Imperatividade: o Direito traduz comandos e o seu acatamento constitui
um fim em si mesmo.
f. Coercibilidade: susceptibilidade do uso da força para obrigar ao respeito
da norma ou para sancionar o infractor. Depende sobretudo da tutela pública: polícia e
tribunais.
g. Complexidade: pluralidade de fontes e de normas.
h. Unidade: apesar de complexa, a ordem jurídica apresenta-se como um
todo.
i. Sistematicidade: apesar da complexidade do Direito, este tem uma coluna
vertebral essencialmente valorativa que o torna num sistema uno, ordenado, coerente
e harmonioso.

3. DISTINÇÃO DO DIREITO DE OUTRAS REALIDADES NORMATIVAS


O Direito distingue-se da Moral, da Religião e dos Usos sociais pelo tipo de
sanções aplicáveis, pelos fins almejados e pela perspectiva inter e intra subjectiva.
Contudo, isto não afasta uma certa permeabilidade do Direito em relação aos outros
ordenamentos. O Direito reconduz-se, aliás, no seu todo, a um mínimo ético.

144
4. RAMOS DE DIREITO
Direito supraestadual: Direito internacional público e Direito Comunitário. Direito
interno: Direito público e Direito privado. Multiplicidade e especialização.

5. CARACTERÍSTICAS DA REGRA JURÍDICA


a. Estrutura: geralmente, a regra jurídica tem uma estrutura bipartida com
uma previsão e uma estatuição.
b. Hipoteticidade: a regra só se aplica aos casos que prevê.
c. Generalidade: os destinatários da regra devem ser indetermináveis ou
cair no âmbito de uma categoria.
d. Abstracção: característica meramente tendencial que consiste em apenas
regular situações futuras e indetermináveis.

6. VALORES NEGATIVOS DO ACTO JURÍDICO quando há violação de regras


jurídicas
a. Inexistência: corresponde aos casos mais graves de violação das regras,
em que para o Direito se considera que nada aconteceu. Há total ausência de efeitos.
b. Nulidade: visa proteger o interesse público, existindo desde início
(independentemente de declaração judicial) e não é sanável. O seu conhecimento pode
ser oficioso por parte do juiz e pode ser invocada a todo o tempo por qualquer
interessado.
c. Anulabilidade: visa proteger um interesse particular e fica, por isso, a
sua invocabilidade nas mãos do interessado protegido legalmente. O vício pode ser
sanado com a passagem do tempo ou por confirmação. O acto produz efeitos até ser
anulado judicialmente e a anulação tem efeitos retroactivos.
d. Ineficácia em sentido estrito: o acto existe, é válido mas não produz
efeitos no todo ou em parte.

145
QUADRO II – FONTES DE DIREITO

1. CONCEITO DE FONTE DE DIREITO


Modo de formação e de manifestação das regras jurídicas que exprime “um querer
legitimado de regulação social”.

2. ORIGEM DAS FONTES


As fontes que relevam para o Direito português podem ter origem internacional,
comunitária ou nacional.

3. FONTES DO DIREITO PORTUGUÊS

a. Fontes directas (criam por si só regras jurídicas)


i. Ius cogens
ii. Princípios gerais de Direito internacional, comunitário e interno
iii. Costume internacional, comunitário e interno
iv. Convenções internacionais
v. Alguns actos unilaterais
vi. Regulamentos comunitários
vii. Directivas comunitárias
viii. Decisões comunitárias
ix. Jurisprudência comunitária
x. Lei
xi. Actos normativos dos particulares

b. Fontes indirectas (auxiliares à criação de regras jurídicas)


i. Doutrina internacional, comunitária e interna
ii. Jurisprudência internacional e interna (tendencialmente)
iii. Soft law
iv. Usos?

146
4. HIERARQUIA DAS FONTES
a. Primado do ius cogens sobre todas as fontes, sejam elas de origem
internacional, comunitária ou nacional.
b. Primado do Direito internacional geral e comum sobre a Constituição.
c. Paridade teórica entre costume internacional e tratado.
d. Polémica sobre o primado do Direito internacional convencional sobre
todo o Direito interno, em especial sobre as regras constitucionais e legais. Da CRP
parece decorrer o seu valor supralegal mas infraconstitucional.
e. Primado Direito comunitário sobre o Direito interno. Polémica quanto à
relação entre as regras comunitárias e as regras constitucionais, em especial, quanto
ao núcleo duro dos direitos fundamentais.
f. A nível interno, primado da Constituição, apenas limitada por princípios
gerais de Direito decorrentes dos valores incomprimíveis relacionados com a
dignidade da pessoa humana
g. Primazia dos Princípios gerais de Direito sobre a lei e costume.
g. Paridade entre costume, lei e decisões judiciais com força obrigatória
geral.
h. Paridade entre lei e decreto-lei.
i. Primazia dos princípios fundamentais das leis gerais da República
sobre os decretos legislativos regionais.
j. Primazia funcional das leis de valor reforçado sobre as leis ordinárias
comuns.
k. Primazia das leis solenes sobre as leis comuns (actos regulamentares).

147
QUADRO III – A APLICAÇÃO DAS REGRAS

1. INTERPRETAÇÃO
A interpretação visa a delimitação do sentido da norma de forma a identificar
critérios operativos e decisivos para a resolução do caso concreto. Deve ser
objectivista e actualista e, na procura do espírito da lei, ponderar quatro
elementos:
a. o elemento literal
b. o elemento sistemático
c. o elemento histórico
d. o elemento teleológico ou racional

Consoante a correspondência entre o sentido literal e o sentido real, temos:


a. a interpretação declarativa (estrita, média ou lata)
b. a interpretação extensiva
c. a interpretação restritiva
d. a interpretação correctiva
e. a interpretação ab-rogante

A interpretação enunciativa permite retirar normas implícitas de normas expressas.

Recortada e qualificada a situação de facto e determinada a norma aplicável,


procede-se à subsunção, ou seja, à recondução dos factos à norma.

2. INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
Entende-se por lacuna, uma omissão normativa, uma ausência expressa ou
implícita de uma norma relativa a uma situação da vida que deveria ser regulada
e resolvida pelo Direito (e não apenas pela lei). Ora, esta tem de ser ultrapassada
(integrada), atendendo à obrigação de julgar resultante do artigo 8.º n.º 1 CC por
imperativos de justiça e segurança jurídica e social. A solução resulta do artigo 10.º
CC.

148
A integração é precária e pode ser:
a. intra-sistemática (resposta dentro do próprio sistema normativo)
i. analogia legis
ii. analogia iuris
iii. norma que o intérprete criaria (ad hoc)
b. extra-sistemática (resposta fora do próprio sistema normativo)
Contudo, a regulação a posteriori, a discricionariedade e a equidade não são
solução ou porque a lacuna não existe ou porque o critério encontrado não é
normativo.

No que respeita ao recurso à analogia, existem restrições legais à sua utilização


em determinados casos. Pense-se, por exemplo, no caso das normas excepcionais
(artigo 11.º CC), das normas penais tipificadoras (artigo 1.º n.º 3 CP), das normas
restritivas de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º n.º 3), das normas fiscais
(artigo103.º n.º 2 e 3 CRP) ou das normas completas.

3. APLICAÇÃO NO TEMPO
a. Princípio geral de proibição da retroactividade
b. Vários graus de retroactividade

Solução para o conflito intertemporal:


a. Direito transitório
b. Regimes próprios de certos ramos do Direito. Direito Penal e Direito
Processual
c. Regime especial quanto aos prazos – artigo 297.º CC
d. Regime especial da lei interpretativa – artigo 13.º CC
e. Regime geral – artigo 12.º CC: cabe à lei antiga regular os actos passados e os
efeitos que lhe estão intimamente ligados. À lei nova cabe a regulação dos factos
novos e dos efeitos que possam ser divorciados da sua origem. Tudo depende,
portanto, da interpretação da lei nova para se apurar se esta regula actos passados
e se liga ou não os efeitos aos factos originários.

149
4. APLICAÇÃO NO ESPAÇO
a. Não exclusividade do Direito estadual
b. existência de situações plurilocalizadas
c. pretensa aplicação do princípio da territorialidade
d. a solução de conflitos espaciais passa pelo Direito internacional privado,
seja por via de soluções materiais, seja por via de soluções formais (normas de
conflito) que podem ser corrigidas atendendo ao conteúdo das normas apuradas.

150
QUADRO IV – FINS DO DIREITO

1. ORDEM SOCIAL
O Direito visa assegurar a segurança não apenas nas relações sociais, através da
polícia e dos tribunais, mas também a segurança do particular face ao Estado. A
segurança depende, em última análise, da segurança jurídica, ou seja, da
estabilidade, continuidade e certeza no e do Direito.

1. JUSTIÇA
a. Polissemia e complexidade da palavra e conceito.
b. Justiça em sentido material:
i. Dar a cada um o que é seu
ii. Igualdade em sentido formal: justiça comutativa, universalidade
dos comandos, generalidade e abstracção das regras jurídicas
iii. Igualdade em sentido material: justiça distributiva, tratamento
igual de iguais e desigual de desiguais
c. Problemática do Direito injusto: garantir a segurança jurídica ou
garantir a Justiça? Garantir a segurança jurídica, salvo se estiverem em causa
princípios axiomáticos incomprimíveis como a vida e a dignidade da pessoa humana.
Nesse caso, temos o direito, senão mesmo o dever de resistir.

2. BEM COMUM
Fim novo que decorre do Estado Social de Direito e que se traduz na garantia de
Bem-Estar económico, social, cultural e ambiental ou seja, na prossecução da
satisfação das necessidades colectivas. Trata-se de um imperativo de Justiça e de um
garante da paz social.

151
CASOS PRÁTICOS

Caso 1

Qual o conceito de direito subjacente nas seguintes frases:


1) Direito ganhou à AM por 5-0
2) O meu primo direito é cadete da AM.
3) Eu moro no 4.º direito.
4) Meu filho, vamos ver se a partir de agora andas direito.
5) Põe-te direito se não ficas marreco!
6) O direito à greve está limitado para os militares.
7) Temos direito constitucional ao terceiro tempo.
8) O juiz deve obedecer ao direito.
9) O direito é socialmente necessário.

Caso 2

Estarão aqui em causa ordens normativas? Se a resposta for positiva, quais?


1) Todo o bom muçulmano deve fazer pelo menos uma peregrinação a Meca.
2) Não se deve ir aos casamentos vestido de branco.
3) Para se estar na moda tem de se usar calças de cintura descaída.
4) O árbitro mostra um cartão vermelho directo a JP por agressão.
5) Gastar o ordenado no jogo e em bebida.
6) Normas de vida interna dos alunos da AM.

Caso 3

Se eu for ermita e me isolar numa ilha deserta, há direito nessa ilha?

Caso 4

Admitindo a descoberta de marcianos, terão estes Direito? E direitos? Porque Direito


se deverão reger?

152
Caso 5

Será o Direito antropocêntrico se existir um diploma que:


1) proíba as touradas
2) imponha o uso de trela nos cães que venham a rua
3) imponha medidas mínimas para as jaulas dos animais
4) consagre a defesa da biodiversidade

Caso 6

Terão personalidade jurídica:


1) uma pulga
2) um embrião
3) uma criança de 6 anos
4) uma pessoa em coma profundo
5) um marciano
6) a equipa de futebol da AM
7) o Banco de Portugal
8) a Santa Casa da Misericórdia
9) Benfica, SAD
10) a Cruz Vermelha
11) a União Europeia

Caso 7

Pode:
1) João, com 10 anos, casar?
2) Maria, com 20 anos, casar com o primo Manuel de 21 anos? E com o padrasto?
3) Saúl, com 8 anos, cantar em todas as feiras do país?
4) Inês, com 13 anos, ser modelo?
5) Hugo, com 15 anos arrendar um apartamento?
6) Silvina, surda-muda desde a nascença, com 21 anos, casar?
7) Edilberto, toxicodependente, vender a sua casa?
8) Joaquim, alcoólico inveterado, celebrar um contrato de empreitada?

153
9) Marisa, jogadora compulsiva, vender o seu anel de noivado?

Caso 8

Pode o juiz alegar que não decide sobre um caso:


1) porque não lhe apetece?
2) porque lhe dá demasiado trabalho?
3) porque há situações extremamente confusas?
4) porque a lei aplicável é recente e não foi a que ele analisou nos seus tempos de
estudante?
5) porque a lei aplicável é um decreto-lei sobre as condições térmicas dos edifícios e
ele não é engenheiro?
6) porque a lei aplicável é a francesa e ele não sabe francês?
7) Porque a lei aplicável é a iraquiana e neste momento o Iraque está numa situação
de caos?
8) porque é aplicável ao caso um costume?

Caso 9

Pode Jonathan Palmer alegar que não sabia que em Portugal se conduz pela direita?

Caso 10

Qualifique o tipo de sanções dos seguintes artigos ou hipóteses:


1) artigo 131.º CP (homicídio- pena de prisão de 8 a 16 anos)
1) artigo 257.º CC
2) artigo 280.º n.º 1 CC
3) artigo 566.º n.º 1 CC
4) artigo 829.º CC
5) artigo 829.º-A CC
6) artigo 137.º CRP
7) interdição dos estádios em que haja distúrbios graves
8) promoção por distinção

154
Caso 11

Pode Silva, major da GNR, disparar sobre o condutor de um veículo furtado que se
afasta a alta velocidade do local do crime? E se este vier na sua direcção com intenção
de o atropelar?

Caso 12

Pode o cadete Martins recusar a ordem de treinar tiro ao alvo a uma maçã por cima da
cabeça do cadete Borges?

Caso 13

Podem os camionistas passar na ponte 25 de Abril e não pagar portagens em sinal de


protesto contra o seu aumento?

Caso 14

Podem os cadetes recusar-se a pagar um imposto sobre o gasto da sola das botas
criado pelo Governo?

Caso 15

Pode a empresa Camionex bloquear o acesso ao estádio de Aveiro por falta de


pagamento dos seus serviços pela Câmara de Aveiro?

Caso 16

Pode José buzinar à noite para afugentar um larápio que ia assaltar a casa de um
vizinho? E se for para chamar atenção sobre o larápio que vai a fugir pela rua abaixo?

155
Caso 17

Pode Mariana destruir o telemóvel do marido quando o apanha a falar com a amante?

Caso 18

Serão normas jurídicas:


1) jogar em 4-4-2
2) o artigo 11.º n.º 2 CRP
3) o artigo 136.º n.º 1 CRP que não estabelece uma sanção para o caso de o PR
demorar mais de 20 dias para promulgar ou vetar um diploma
4) o artigo 140.º da CRP
5) as disposições da directiva que regula as características técnicas dos cortadores de
relva
6) "o chefe de turma deve assegurar a ligação entre o corpo docente e os aluno"
7) "o cadete Peça deve assegurar a ligação entre o corpo docente e o corpo de
alunos"
8) "Os cadetes-alunos da GNR-Armas, 1.º ano, turma C, devem apresentar-se
fardados com a farda X nas aulas, sob pena de repreensão"
9) artigo 204.º CC
10) "este diploma aplica-se a todos os contratos de arrendamento, mesmo se
celebrados antes da data de entrada em vigor deste diploma".

Caso 19

Seriam os touros de morte um costume contra legem em Portugal?

Caso 20

Será costume não punir os condutores que circulam até mais 30 km/h nas auto-
estradas?

156
Caso 21

O que são as praxes? E as Normas de Vida Interna da AM?

Caso 22

Pode uma disposição legal ser afastada por:


1) um costume
2) uma outra disposição legal
3) um uso
4) um tratado internacional
5) uma decisão judicial
6) um regulamento comunitário
7) esta sebenta
8) um acto administrativo

Caso 23

Que diploma aplicaria a um jogo de final da taça de Portugal entre o Benfica e o


Porto? E se fosse entre o Benfica e o Nacional? Um regulamento comunitário de 1997
que dispõe que em jogos de alto risco tem de haver uma presença de 1 agente de
autoridade por cada 1000 espectadores, ou um decreto-lei de 2004 que dispõe que nos
jogos de futebol realizados em Portugal se exige 1 agente por cada 5000 espectadores.

Caso 24

Imagine que existe uma lei de 1900, ainda não revogada, que estabelece que as
mulheres só podem andar de calças dentro de casa ou para montar a cavalo. Deverão
os agentes de autoridade autuar, hoje em dia, as infractoras?

157
Caso 25

Imagine que existe uma lei que proíbe a degradação ambiental do habitat do lince da
malcata. Imagine, agora, que a espécie foi dada como extinta em 2004. Quid iuris?

Caso 26

Imagine que no Código da Estrada existe uma norma, não excepcionada e sem
paralelo na legislação, que determina: “É proíbido conduzir carro sem carta de
condução.” Pode a polícia autuar, com base apenas neste artigo:
1) o João que tem carta de condução mas que se esqueceu dela em casa.
2) o Abel de 80 anos que ainda não renovou a sua carta de condução.
3) O André de 14 anos que conduz o seu kart do kartódromo de Palmela.
4) A Susana que conduz o carrinho de bébé do seu filho pelas ruas do Porto.
5) O Leandro de 6 anos que se passeia na marina de Vilamoura no seu carro a
pedais.
6) O Xavier de 5 anos que conduz o seu carro telecomandado no largo em frente
ao seu prédio.
7) O Nuno de 15 anos que dá umas voltas na quinta da família no carro do pai.
8) A Miranda que conduz o carro do supermercado na rua para levar as compras
até onde o seu automóvel está estacionado.
9) O Joaquim conduz a sua Suzuki 1100 sem carta de condução.
10) O Francisco conduz o seu camião sem carta de condução.
11) E se constituisse crime andar sem carta, a sua resposta seria a mesma?

Caso 27

Imagine que num mesmo diploma se estabelece no artigo 5.º que os militares devem
entrar e sair fardados das suas unidades e que o artigo 16.º dispõe que os militares
podem entrar e sair da sua unidade em traje civil. Quid iuris?

158
Caso 28

Será lacuna o não tratamento legal:


1) da clonagem
2) da reprodução assistida
3) dos requisitos do vestido de noiva
4) da forma das filas de espera
5) da posição para se rezar
6) do comércio electrónico
7) das maneiras à mesa
8) da infidelidade pré-matrimonial
9) da união de facto

Caso 29

Imagine que João e Maria vivem em união de facto e que se separam ao fim de 10
anos. Poderá Maria exigir uma pensão de alimentos para ela? Qual o regime jurídico
aplicável aos bens que João e Maria foram acumulando tanto isolada como
conjuntamente?

Caso 30

Militinho, português residente no Brasil, assassinou na Praia do Passado três


industriais portugueses que ali passavam férias. Que lei é que aplica? E se Militinho
residisse habitualmente em Portugal? E se tivesse sido capturado num avião da TAP
que fazia ligação Fortaleza-Sal?

Caso 31

Que lei aplica à sucessão por morte de Angel, cidadão inglês, residente habitualmente
em Portugal? E se ele resolveu deixar em testamento toda a sua fortuna à secretária,
deserdando a esposa fiel e os filhos, sabendo que a lei inglesa não consagra a
legítima?

159
Caso 32

Imagine que foi apanhado a conduzir com 0.7 mg de álcool no sangue. À data do seu
julgamento, a legislação tinha sido alterada e passava a ser considerado crime
conduzir com essa taxa de álcool no sangue? E se a taxa mínima tivesse sido alterada
para 0.8?

Caso 33

Imagine que casou em 2003 sem testemunhas e que em Janeiro de 2004, a lei volta a
exigir a presença de pelo menos duas testemunhas no casamento civil. Será o seu
casamento válido? E se a alteração for sobre os direitos e deveres dos conjuges, por
exemplo, apenas se exigindo agora, respeito mútuo?

Caso 34

Imagine que a legislação W referente aos defeitos nas empreitadas estabelece um


prazo de cinco anos após a construção do prédio para a apresentação de reclamações.
Imagine que já lá vive há quatro anos e que o prazo é reduzido pela lei X para dois
anos. E se o prazo tiver sido, ao contrário, aumentado para dez anos que lei aplica?

Caso 35

Imagine que Adalberto morre em Janeiro deste ano e deixa um testamento em que doa
todos os seus bens à dedicada governanta, não deixando nada à sua megera esposa.
Imagine que em Junho, o CC é alterado, revogando-se a sucessão legitimária. Quando
o caso chega a tribunal em Dezembro, que lei aplica?

Caso 36

Devido à crescente ameaça terrorista, imagine que é aprovada uma disposição legal
que impõe a prisão de qualquer indivíduo muçulmano, independentemente do seu

160
comportamento, nacionalidade, sexo ou idade. Deverá a polícia respeitar esta
disposição?

Caso 37

O jogo do Grupo D do Euro 2004 entre a Alemanha e a Holanda é considerado


de alto risco. Por essa razão, decide-se reforçar a segurança e enviar para o estádio do
Dragão um grupo de 90 elementos da GNR.
Aos 89 minutos, ainda a 0-0, o árbitro italiano Pierluigi Collina marca um
penálti polémico contra a Holanda por falta, na pequena área, do guarda redes van der
Saar. O ambiente torna-se tenso dentro e fora do campo. O germânico Marco Bode e
o holandês Ronald de Boer discutem. As claques começam a agitar-se. Miroslav
Klose aproxima-se da marca da grande penalidade e marca o único golo da partida,
permitindo o apuramento da selecção germânica e o afastamento dos neerlandeses.
No meio da enorme confusão que se gerou nas bancadas, Jörg, adepto alemão,
vê dirigir-se na sua direcção um enorme adepto holandês, Frank, com uma garrafa na
mão e, num gesto rápido, para se defender, arranca a sua cadeira que atira contra
Frank. Este escorrega, batendo no chão com a cabeça, e fica inanimado. Antunes,
soldado da GNR, na sua primeira missão, só assiste ao final da cena e dispara sobre
Jörg de forma a imobilizá-lo mas atinge-o no coração, acabando por matá-lo de
imediato.

1. Comente o comportamento de Jörg e de Antunes. Que sanções


eventualmente lhes aplicaria?

Face à gravidade dos incidentes, a UEFA decide inibir as selecções alemã e


holandesa de jogar no Euro 2004.

2. Que tipo de sanção está aqui em causa? Poder-se-á falar de coercibilidade


na UEFA e da existência de um Direito positivo da UEFA?

No rescaldo do jogo, o Governo português elabora um decreto-lei que dispõe a


proibição da realização de jogos de futebol de elevado risco sem a presença de, pelo
menos, 250 elementos da GNR ou da PSP. O decreto-lei é mandado publicar a 16 de

161
Junho mas, por causa de uma avaria das impressoras da IN-CM, o texto só é
publicado a 23 de Junho. Contudo, por causa de uma greve da função pública, o
Diário da República só é distribuído no dia 1 de Julho.

3. Quando é que entra em vigor o decreto-lei?

O Conselho da União Europeia, preocupado com a violência no futebol,


elabora, posteriormente, a 2 de Setembro, um regulamento que proíbe a realização de
qualquer jogo de futebol sem a presença de pelo menos 50 agentes policiais. O
Benfica, atravessando graves dificuldades financeiras, apenas quer requisitar 50
elementos da GNR para o jogo do final da Taça com o FC Porto, a realizar
excepcionalmente no dia 5 de Outubro.

4. Quantos agentes policiais deverão, pelo menos, estar presentes no Benfica-Porto? E


se fosse um Benfica-Naval?

Antunes, o malogrado soldado da GNR, resolve ingressar na Academia Militar para


aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e militares e sonhar com uma nova
carreira. Contudo, o azar persegue-o pois, num exercício, em Santa Margarida, mata
acidentalmente o seu camarada Eusébio.

5) Que lei aplica, num tribunal português, à sucessão de Eusébio, de nacionalidade


moçambicana, mas residente habitualmente em Cabo Verde e que deixa um terreno
em Angola sabendo que:
a) a norma de conflitos moçambicana remete para a lei da residência habitual e o
sistema de devolução adoptado em Moçambique é o da dupla devolução;
b) a norma de conflitos cabo-verdiana remete para a lei do local do imóvel e o
sistema de devolução adoptado em Cabo-Verde é o da remissão material;
c) a norma de conflitos angolana remete para a lei da residência habitual e o sistema
de devolução adoptado em Angola é o da devolução simples.

6) E se Eusébio residisse habitualmente em Portugal, que lei aplicaria?

162
7) E se a lei aplicável, inspirada no sistema anglo-saxónico, previsse a possibilidade
de liberdade total de testar, excluindo a legítima?
Desesperado, Antunes resolve deixar o país e integra o 3.º contingente da GNR para o
Iraque. Muito deprimido e com fortes instintos suicidas, resolve, no meio de um
tiroteio com rebeldes, em Nassíria, sair do seu esconderijo sem colete à prova de balas
nem capacete, acabando por ser morto.

A Lei n.º Y/87 prevê no seu artigo 4.º:


“Cabe ao Estado português a atribuição de uma pensão vitalícia de viúvez ao
cônjuge do militar falecido em combate.”

8)Terá Joana, sua esposa, direito a esta pensão?

9) E se Joana e Antunes fossem apenas unidos de facto?

10) E se fossem namorados?

11) Dorinda, viúva de Eusébio, vem também exigir a pensão de viuvez. Terá ela
direito a esta pensão?

Caso 38

60 seconds, ou A saga do Lopes.

Lopes, ex-presidiário condenado por furto de automóveis de alta gama, encontra-se


em liberdade condicional.
O seu irmão mais novo, Biscaia, que o tem por modelo, querendo seguir os seus
passos, associa-se a um gang criminoso, conhecido por Unidade de Elite das Armas
da Amadora (UEAA) -, sendo contratado juntamente com o seu parceiro Garção para
furtar um Porsche 911 RSR.
Contudo, algo corre mal e Biscaia acaba por conduzir o implacável Comissário
Antunes da Brigada anti-crime – responsável pela prisão de Lopes - à garagem onde
se encontravam escondidos 50 carros de alta gama furtados pela UEAA.

163
Furioso, o líder do gang, o temível Covelo, mais conhecido por Coronel Scorpio,
resolve reter em cativeiro Biscaia, até Garção lhe entregar um Porsche 911 RSR.

1. Pode Covelo fazê-lo?

Mais, fazendo juz à sua terrível fama, Covelo ameaça de morte Biscaia, se Lopes não
lhe conseguir arranjar em 10 dias cinquenta carros equivalentes aos apreendidos. Para
proteger o irmão, Lopes aceita o desafio.

2. Como qualifica o comportamento de Lopes?


3. Se for apanhado, que sanções lhe seriam aplicáveis?

No entanto, o desesperado Lopes é perseguido de perto pelo incansável e


incorruptível Comissário Antunes. Durante a frenética fuga ao seu adversário, Lopes
destrói com um Bentley Continental GT vários carros à sua passagem.

4. Como qualifica este novo comportamento de Lopes. Quais as suas


consequências?

To be continued….

Caso 39

Código de Honra

Aquartelamento militar português de Tikrit, Iraque.


O soldado Malheiro era considerado a desgraça do aquartelamento. Demasiado
pesado para correr, desastrado no manuseamento das armas, desleixado e de feitio
introvertido e nervoso, acabava sempre por ser responsável por privações dos seus
camaradas de pelotão, em especial quando adormecia em serviço.
Na manhã da sua transferência para Portugal, Monteiro, o seu único amigo,
estranhando o seu atraso para apanhar o avião de regresso a Lisboa, bate à porta do

164
quarto. Não ouvindo nenhuma resposta, arromba a fechadura e descobre o seu
camarada morto por asfixia havia mais de cinco horas.
Um inquérito interno, aponta o cabo Lopes e o soldado Gomes como responsáveis
pelo acto. Estes relatam ao seu advogado Alves que apenas lhe queriam aplicar um
código vermelho por ordem directa do temível mas muito condecorado Coronel
Scorpio. Este código vermelho, não previsto em nenhum Direito militar escrito,
consiste na aplicação de um duro castigo físico aos militares mais fracos, muito
frequente nas unidades de elite destacadas em zonas perigosas.
Alves apurou ainda, através de uma testemunha, o Major Fernandes, que a gota de
água que fizera o Coronel Scorpio ordenar o código vermelho fora o facto de
Malheiro ter criado um comprometedor incidente internacional. Dias antes, Malheiro
teria disparado um tiro para a multidão, ferindo uma criança, quando viu o que
considerou ser uma suspeita movimentação de populares na sua direcção,
envolvendo-se, de seguida, numa luta com Shamir, pai do rapaz atingido, que lhe
partiu o nariz e levou a arma como garantia de que o militar português lhe pagaria os
tratamentos médicos do Shamirzinho.

Admitindo a aplicação do Direito português que conhece, responda, de forma sucinta,


justificando juridicamente, às seguintes questões:

1. Terá o soldado Monteiro de pagar uma nova fechadura?


2. Será o comportamento do cabo Lopes e do soldado Gomes justificável?
3. Fará o código vermelho parte da ordem jurídica portuguesa?
4. Como classifica, em termos sancionatórios, o código vermelho?
5. Será o comportamento de Malheiro justificável? Poderá ser sancionado?
6. Será o comportamento de Shamir justificável? Poderá ser sancionado?

Caso 40

CSI Amadora

A 2 de Fevereiro de 2007, Lopes e Covelo, futuros oficiais da Guarda, depois da sua


habitual expedição nocturna pelos telhados da 1..ª companhia da AM em busca de
diversão, resolvem saltar o muro para ir a um bar, quando se deparam com o cadáver

165
da cadete Mulangui dentro de um camião da GNR estacionado fora do perímetro da
Academia.
Intrigados com a descoberta, os dois amigos iniciam uma investigação minuciosa para
apurar o acontecido com a sua camarada e acabam por descobrir um estranho ritual de
iniciação dos alunos PALOP em Portugal, aceite pelas chefias, que consiste no
encapuçamento e desnudamento dos caloiros PALOP em noites de lua cheia. Pelas
feridas defensivas nas mãos de Mulangui, a jovem teria tentado resistir, arranhando o
agressor e sucumbira, acidentalmente, num ataque de asma. Durante os treinos do dia
seguinte, Lopes e Covelo observam arranhões no pescoço de Santos, cadete
moçambicano do 2..º ano. Encostado à parede, confessa o acontecido mas defende a
legalidade do seu comportamento, invocando a tradição militar.
1. Concorda?
2. No rescaldo do caso, que muita polémica gerou a nível nacional com direito a um
especial do Prós e Contras e a um episódio dos Morangos, a Assembleia da
República elabora a Lei n..º 22B/2007, que dispõe:

Artigo 3..º
Praxes
1. É proibida, dentro das instalações das Forças Armadas, a submissão dos
militares a práticas não necessárias à sua boa integração, desempenho e treino
militar.
2. Os responsáveis por comportamentos que violem o estipulado na alínea
anterior respondem, de forma solidária com as respectivas chefias, por uma
indemnização equitativa a pagar aos militares que tenham sido alvo de danos físicos
ou morais permanentes dentro das instituições militares ou, no caso de dano morte,
aos respectivos herdeiros.

Artigo 4..º
Vigência
A indemnização prevista no artigo 3..º n..º 2 aplica-se com efeitos retroactivos a
todos os casos cujos factos não sejam anteriores a 1 de Janeiro de 2007.

A lei é publicada a 23 de Março. Contudo, por causa de uma greve da função


pública, o Diário da República só é distribuído no dia 1 de Abril.

166
Quando é que a lei entra em vigor?
Como classifica as normas acima reproduzidas?

3. O Conselho da União Europeia, preocupado com a violência no ensino superior,


elabora, posteriormente, a 2 de Maio, um regulamento comunitário que proíbe as
praxes académicas violentas, degradantes e humilhantes, não consagrando, no
entanto, direito a qualquer indemnização. Poderá, no entanto, a família de
Mulangui beneficiar da indemnização quando a 5 de Junho interpõe uma acção
contra Santos e a AM?
4. Que lei aplicaria, num tribunal angolano, à sucessão de Mulangui de
nacionalidade angolana, residente habitualmente em Portugal e que deixa
diamantes num cofre na Suíça e um apartamento em Moscovo, supondo que:
 a norma de conflitos angolana em matéria sucessória remete para a lei do local
dos bens; Angola tem um sistema de dupla devolução
 a norma de conflitos suíça em matéria sucessória remete para a lei da
nacionalidade do de cujus, a Suíça tem um sistema de devolução simples
 a norma de conflitos russa em matéria sucessória remete para a lei da residência
habitual; a Rússia tem um sistema de devolução simples
a norma de conflitos portuguesa em matéria sucessória remete para a lei da residência
habitual; Portugal tem um sistema de dupla devolução.

Caso 41
Sin City – Amadora

1. O temível líder do gang Unidade de Elite das Armas da Amadora (UEAA)


conhecido por Coronel Scorpio assiste impotente, no seu quarto, ao homicídio do seu
verdadeiro e único amor, Goldie, uma escultural loura norte-americana.

Que lei aplica, num tribunal português, à sucessão de Goldie, com residência habitual
no México e que deixa um apartamento nas Bahamas sabendo que:
a) a norma de conflitos americana remete para a lei da residência habitual e o
sistema de devolução adoptado nos Estados Unidos é de dupla devolução;

167
b) a norma de conflitos mexicana remete para a lei do local do imóvel e o sistema
de devolução adoptado no México é de devolução simples;
c) a norma de conflitos das Bahamas remete para a lei do local do óbito e o seu
sistema de devolução é de remissão material.

2. Calejo, ex-fotógrafo, passa a vida a defender “raparigas” do violento e corrupto


polícia Pires que lhes tenta extorquir dinheiro e outros favores ao abrigo da seguinte
norma “os passeios só podem ser utilizados para actividades comerciais mediante
autorização dos serviços camarários, sob pena de coima no valor de 500€ ou
equivalente.” Pode Pires invocar esta norma no caso em análise?

3. O incansável e incorruptível Comissário Antunes, à beira da reforma é preso, em


Maio de 1999, por um crime que não cometeu. Passados seis anos, descobre-se que
estava inocente. Revoltado e desiludido com a vida, processa o Estado português e
pede uma indemnização pelos danos sofridos.

A lei W de Dezembro de 1998 apenas previa uma indemnização por danos morais até
ser alterada pela lei Z em Janeiro de 2005 cobrindo igualmente os danos patrimoniais.

a) que lei aplicar a este caso?


b) E se Portugal tivesse ratificado em Maio de 1997 uma convenção
internacional que estabelecesse o direito de indemnização por danos morais e
patrimoniais paga pelo Estado em caso de erro judicial?

Todas as personagens e situações são fictícias. Qualquer semelhança com a


realidade é pura coincidência…

Caso 42

Helland

Episódio I
Black Devils é o nome de guerra de um perigoso gang criminoso formado por ex-
militares. Escondidos num ilhéu artificial, alheio à jurisdição de qualquer Estado,

168
fortemente dinamitado e baptizado de Helland, os Black Devils devem aí obedecer a
um conjunto de regras definidas pelo fanático líder-em-chefe Covelo,
designadamente:
- devem dizer uma oração antes e depois de uma missão;
- não devem fumar em locais fechados sob pena de passarem até três dias na solitária;
- Qualquer tentativa de homicídio do líder-em-chefe Covelo, mesmo se for anterior à
existência de Helland, é punida com pena capital.

1. Existe Direito em Helland?


2. Serão estas três regras, normas jurídicas? Em caso de resposta afirmativa,
como as classifica?

Certa manhã, exercitava-se Carvalho no pátio de Helland quando se apercebeu de um


forte cheiro a queimado e fumo preto que saía dos aposentos do seu camarada Brito.
Como um relâmpago, arrombou a porta ao pontapé e despejou uma mangueirada no
compartimento. Afinal tratava-se apenas de uma torrada queimada. Infelizmente, o
computador de Brito ficou completamente danificado com a água, perdendo este
todos os seus ficheiros, desde fotografias da namorada a planos de assaltos a bancos.

3. Será justificável a actuação de Carvalho? Será ela sancionável?


4. Poderá Brito reter a torradeira defeituosa que Carvalho lhe tinha emprestado
até este lhe arranjar um novo computador?

Covelo, que se encontrava no quarto de Brito a analisar um projecto de ataque a um


gang rival, é surpreendido pela mangueirada e reage, esvaziando o carregador da sua
arma sobre Carvalho que acaba por falecer uns dias mais tarde.

5. Como qualifica este comportamento de Covelo. Quais as suas consequências?

Caso 43

Floribeta

169
Floribeta, rica em sonhos mas pobre pobre em ouro, despendia o seu tempo em
diálogos com as suas fadinhas e a sonhar com o seu príncipe Fred Fritadeiren de
nacionalidade alemã. Infelizmente para a jovem, Fred, o seu eterno ex-futuro
namorado morreu em sequência das mazelas decorrentes de um atropelamento em
que o jovem gestor se atirou, de forma deliberada, contra um carro para salvar o
amigo Max, deixando um património constituído por um castelo na Áustria e
várias contas no Luxemburgo.

1. Qual a lei aplicável, num tribunal português, à sucessão de Fred, residente


habitualmente em Portugal, sabendo que:
 a norma de conflitos alemã, em matéria sucessória, remete para a lei do
local dos bens; a Alemanha tem um sistema de dupla devolução.
 a norma de conflitos austríaca, em matéria sucessória, remete para a
lei da nacionalidade do de cujus, a Áustria tem um sistema de
devolução simples
 a norma de conflitos luxemburguesa, em matéria sucessória, remete
para a lei da residência habitual; o Luxemburgo tem um sistema de
dupla devolução.

2. Fred, de signo gémeos, dividia-se entre Flor e Definha, vivendo os três


debaixo do mesmo tecto havia dois anos, e hesitava entre a jovialidade da
primeira e a sensualidade da segunda, com quem acabou por ficar oficialmente
noivo, apesar de amar Flor, por achar que Defininha se encontrava
mortalmente doente. Com o falecimento de Fred, Defininha reclama, com a
oposição de Flor, o seguro de vida do príncipe alemão deixado “à mulher que
o levaria ao altar” com base no artigo 5..º do Decreto-Lei n..º 798/2001, de 15
de Junho que dispõe:

“1. Os seguros de vida devem ser pagos aos beneficiários identificados no


contrato de seguro celebrado pelo contraente.
2. No caso do seguro de vida não ter qualquer referência ao beneficiário, o
mesmo será atribuído ao cônjuge sobrevivo e descendentes ou à pessoa com quem
vivia em união de facto e descendentes.”

170
Refira-se ainda que o artigo 6..º estabelece que:

“O pagamento do seguro de vida não é devido em caso de morte propositada


ou em virtude de doença.”

Quem beneficiará do seguro de vida?

3. Um tratado internacional também ratificado em Portugal a 15 de Junho de


2001 determina:

“O pagamento de seguros deve ser feito em benefício dos herdeiros legais e


não pode ser discriminatório.”

Que diploma aplicaria nesta situação?

4. Floribeta, com a ajuda dos seus amuletos, das fadinhas e da mãe-árvore


consegue aos poucos recuperar a sua vontade de viver, dançar e cantar por
todo o lado mas acaba por ser internada à força num hospício pelo Senhor Lei,
amigo do Noddy (companheiro de orfanato da Floribeta) devido a uma regra
que dispõe:
“quem canta à mesa e dança no leito é doido perfeito”.

Concorda? Será esta uma regra jurídica?

Caso 44
O Código d’Avintes

Robalo de Souselas, emérito académico português especialista em livros, em trabalho


em Avintes para promover uma conferência sobre “O vinho do Porto, a broa e as
editoras no Douro”, é chamado por Lopes da Silva, director do museu da Casa do
Povo daquela localidade para resolver o assassinato de Sir Iva, prestigiado historiador
inglês, perito em Direito Canónico e envolvido na busca do obscuro Código

171
d’Avintes, uma espécie de concordata entre o Priorado do Crato e a vila de Avintes
fixando as regras sobre a produção da broa de milho.

Graças às inscrições deixadas em inglês no corpo semi-nu de Sir Iva e aos resultados
medico-legais, concluiu-se que este tinha sido esfaqueado no abdómen por um seu
compatriota, a bordo de um barco com pavilhão holandês atracado em Vila Nova de
Gaia e deixado morrer dentro do museu onde fora encontrado.

1. Poderá o ignóbil assassino de Sir Iva, um monge albino inglês chamado White
Flour, ser julgado em Portugal pelo crime de assassínio?
2. Qual a lei aplicável, num tribunal português, à sucessão de Sir Iva, residente
habitualmente no Porto, constituída pela sua valiosa colecção de livros
deixada num cofre na Suíça e por uma villa a sul de Nápoles, sabendo que:
a. a norma de conflitos inglesa em matéria sucessória remete para a lei do
local dos bens; a Inglaterra tem um sistema de dupla devolução
b. a norma de conflitos suíça em matéria sucessória remete para a lei da
nacionalidade do de cujus, a Suíça tem um sistema de devolução
simples
c. a norma de conflitos italiana em matéria sucessória remete para a lei da
residência habitual; a Itália tem um sistema de referência material

Com a ajuda da neta de Sir Iva, a escultural mas nem por isso menos inteligente
Roose, Robalo de Souselas localiza o Código d’Avintes, um conjunto de três folhas
soltas em avançado estado de deterioração. Ao preparar-se para analisá-lo no seu
laboratório super-equipado com a mais sofisticada tecnologia de restauro, Robalo é
confrontado com uma norma da Lei do Património Cultural de 2001 que estipula:

“O manuseamento de livros de interesse nacional em risco de deterioração só pode


ser levado a cabo por especialistas acreditados pelo Ministério da Cultura”.

3. Poderá Robalo de Souselas, professor catedrático, investigador galardoado e


com a acreditação caducada, analisar o Código?

172
Por seu lado, o Tratado Sobre o Património Cultural que Portugal ratificou em 1997
estipula que:

“O manuseamento de escritos de interesse cultural relevante e em risco elevado de


deterioração deve atender a especiais cuidados técnicos”.

4. Poderá Robalo de Souselas invocar este artigo?

Exemplo de correcção para este caso

1. De acordo com o artigo 7.º CP, considera-se que o crime foi cometido tanto no
local em que total ou parcialmente o agente actuou como no local em que o
resultado típico se verificou. Assim, e apesar de Sir Iva ter sido esfaqueado a
bordo de um barco holandês, pode considerar-se que o crime foi cometido em
Portugal pois o historiador acabou por morrer no museu de Avintes.
Concluindo, nos termos do artigo 4.º a), os tribunais portugueses podem julgar
este caso.

2. De acordo com os artigos 62.º e 31.º n.º1 CC, o ordenamento jurídico


português remete a questão da sucessão por morte para a lei da nacionalidade,
ou seja, neste caso para a lei inglesa.

A lei inglesa, por sua vez, remete por dupla devolução a solução para a lei do
local dos bens. Assim, para os bens móveis (livros) há que atender à lei suíça
que, por sua vez, remete, por devolução simples para a lei da nacionalidade, a
saber a lei inglesa. Já para os bens imóveis (villa), há que atender à lei italiana
que devolve, por referência material para a lei portuguesa (lei da residência
habitual).

Comecemos por apreciar a situação dos bens móveis.

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A lei portuguesa consagra nos seus artigos 16.º a 18.º CC um sistema de
devolução atípico. Estabelecendo o artigo 16.º, a regra geral, há que começar
por analisar se esta situação não se enquadra nas regras especiais dos artigos
17.º e 18.º CC. Ora, como não existe qualquer remissão para a lei do foro
(portuguesa), está afastado o artigo 18.º, restando-nos o artigo 17.º.

A aplicação do artigo 17.º n.º 1 pressupõe duas condições: (1) que o


ordenamento jurídico para o qual o português remete (L2 - nesta caso a lei
inglesa) aplique uma terceira lei e (2) que esta se considere competente.

Ora a lei inglesa remete para a lei suíça através de um sistema de dupla
devolução, o que significa que atende não apenas às normas materiais mas
também às normas de conflito e ao sistema de devolução. Por outras palavras,
a lei inglesa aplica a lei que a lei suíça aplicar.

Por sua vez, a lei suíça remete por devolução simples para a lei inglesa. Isto
significa que a lei suíça atende às normas materiais e às normas de conflito
inglesas, ou seja a lei suíça assume que a remissão que a lei inglesa fizer é
material. Por outras palavras, a lei suíça aplica o ordenamento jurídico para o
qual a lei inglesa remeter. Desta forma, a lei suíça aplica-se a si própria
indirectamente e como a lei inglesa aplica o que a lei suíça aplicar, aplica
igualmente a lei suíça. Os requisitos do artigo 17.º n.º 1 encontram-se,
portanto, preenchidos.

É, contudo, necessário atender ao n.º 2 do artigo 17.º, cujos requisitos se


encontram preenchidos pois não apenas estamos no âmbito do estatuto pessoal
como o de cujus residia habitualmente em Portugal.

Deste modo, é ainda necessário analisar se as condições do n.º 3 do artigo 17.º


também se encontram preenchidas. Todavia, apesar de estarmos no âmbito de
matéria sucessória, L2 (lei inglesa) não aplica a lei da situação dos imóveis
(que seria a lei italiana).

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Desta feita, aplicamos o artigo 17.º n.º 2 e consequentemente o artigo 16.º que
estipula um sistema de referência material. Isto significa que a lei portuguesa
atende apenas às normas materiais da lei inglesa, que aplica.

No que respeita aos imóveis, e não repetindo o que acima foi referido, há que
analisar, em primeiro lugar a possibilidade de aplicação do artigo 18.º por
existir um reenvio para a lei portuguesa. Para esta se considerar competente é
necessário, de acordo com o n.º 1, que L2 (lei inglesa) aplique a lei
portuguesa.

Ora, pelos argumentos supra apresentados quanto ao sistema de dupla


devolução, sabemos que a lei inglesa aplicará a lei que a lei italiana aplicar.
Por sua vez, esta, por ter um sistema de referência material aplica a lei
portuguesa por apenas se interessar pelas suas normas materiais. A lei inglesa
aplica, portanto, também a lei portuguesa.

No entanto, por estarmos no âmbito do estatuto pessoal, é ainda preciso que


um dos requisitos alternativos do n.º 2 do artigo 18.º esteja preenchido. Ora,
Sir Iva residia em Portugal.

Concluindo, no que respeita os livros aplica-se a lei inglesa mas quanto à villa
aplica-se a lei portuguesa.

3. No que respeita esta norma, a sua recondução (subsunção) ao caso em análise


levanta alguns problemas, em especial se não nos cingirmos apenas ao
elemento literal, na linha do artigo 9.º n.º 1, mesmo presumindo, de acordo
com o artigo 9.º n.º 3, que o legislador escolheu os termos mais adequados.

Em primeiro lugar, note-se que o artigo se refere a livros quando em causa


está um conjunto de três folhas soltas. Reconduzir três folhas soltas a um livro
implicaria uma interpretação extensiva.

Em segundo lugar, refere-se ao interesse nacional, sendo necessário densificar


se o código d’Avintes é ou não um documento de interesse nacional ou

175
meramente local. Visto que estamos face a uma espécie de concordata que
relaciona uma ordem religiosa e uma localidade portuguesa e a um documento
antigo relativo ao património cultural e gastronómico luso, parece-nos que o
Código é de interesse nacional.

Em terceiro lugar, o artigo impõe uma acreditação junto do Ministério da


cultura, que no caso de Robalo se encontra caducada.

Para melhor resolver esta questão é necessário chamar à colação não apenas os
elementos histórico e sistemático, mas em especial o elemento teleológico
(ratio legis), ou seja, há que tentar perceber qual a função da norma.

Em nossa opinião, a norma visa proteger documentos escritos de relevância


nacional da sua deterioração, garantindo que são manuseados por especialistas
que se presume capazes de assegurar a sua conservação.

Desta feita, devido a uma interpretação declarativa restrita (ou seja o


legislador apenas visava a acreditação actualizada), Robalo não pode
manusear o Código na medida em que não existe, de momento, garantia da sua
competência, o que poderia implicar a destruição do Código.

Neste caso, seria ainda defensável uma interpretação extensiva que permitisse
o manuseamento a qualquer especialista reconhecido na actualidade, mesmo
se apenas a nível académico. Ou seja a letra teria ficado aquém do espírito.

Por último, se considerarmos que Robalo necessitava de manusear


urgentemente o Código por estar numa situação de perigo actual ou face a uma
agressão eminente (visto haver assassinos atrás do Código, com eventuais
desejos de o matar ou de destruir o documento) seria de ponderar a aplicação
ou do artigo 339.º ou 337.º CC que tornariam a sua conduta lícita.

4. No que respeita a norma do Tratado, vários aspectos há a ponderar.

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Em primeiro lugar, o Tratado é anterior à Lei do Património, o que levanta a
questão da sua revogação.

No entanto, note-se que o artigo 7.º CC não é aqui aplicável pois de acordo
com o artigo 8.º n.º 2 CRP o Direito internacional convencional tem valor
supra-legal, ou seja, tem valor hierárquico superior à lei (fonte interna).

Por outro lado ainda, se compararmos ambas as normas, constatamos que a do


Tratado, apesar de se referir a escritos e a interesse cultural (expressões mais
vagas do que as de livro ou de interesse nacional), pode ser considerada
especial face à norma da Lei de 2001 pois refere-se a situações de ELEVADO
risco de deterioração, o que representa mais uma razão para afastar hipotéticas
revogações.

Desta feita, por uma interpretação declarativa, pode Robalo de Souselas


invocar esta norma: afinal o Código é um escrito de interesse cultural, está em
elevado estado de deterioração e o Professor é um especialista em restauro
reconhecido, tendo à sua disposição o equipamento técnico necessário.

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