Você está na página 1de 7

resenhas 163

Passado e presente da sociologia iniciais do século seguinte foi marcado por uma
norte-americana profunda preocupação com as ideias de reforma
e de progresso social. Esse ideário mobilizava um
Stephen Turner. American sociology: from pre-dis- vasto conjunto de instituições, como igrejas, orga-
ciplinary to post-normal. Londres, Palgrave, 2014. nizações filantrópicas, governos estaduais etc. Em
137 páginas. vários centros urbanos existiam charity organization
societies (sociedades de organizações de caridade),
Carlos Benedito Martins
que prestavam serviços para as camadas pobres
A constituição e o desenvolvimento da sociolo- dos centros urbanos, coletavam informações so-
gia norte-americana vêm merecendo uma contínua bre sua situação e ao mesmo tempo procuravam
reflexão por parte de seus praticantes. Em 1990, formular explicações sobre as causas da pobreza.
Stephen Turner e Jonathan Turner publicaram o in- A organização de reforma social mais poderosa nesse
fluente livro The impossible science: an institutional período, Woman’s Christian Temperance Union,
analysis of American sociology. Em um período mais fundada em 1874, se opunha à utilização de crian-
recente, a trajetória histórica, social e universitária da ças no mercado de trabalho, pleiteava a proteção da
sociologia norte-americana foi objeto de uma ampla mulher nos ambientes de domicílio e de trabalho,
análise explorada na coletânea Sociology in America, apoiava o voto feminino etc.
organizada por Craig Calhoun, que contou com a Ainda em relação aos movimentos de re-
participação de renomados acadêmicos, entre eles forma social, os atores que os integravam, como
Stephen Turner, Patricia Collins, Charles Camic, advogados, educadores e filantropos, passaram
Barbara Laslett, Andrew Abbot e Immanuel Wallers- a reivindicar uma presença no meio universitá-
tein (Turner e Turner, 1990; Calhoun, 2007). rio. Dessa forma, em 1880, criaram a American
O livro American sociology: from pre-discipli- Social Science Association, que também foi fre-
nary to post-normal, de Stephen Turner – que tem quentada temporariamente por uma nova geração
realizado importantes contribuições acadêmicas na de cientistas sociais. Essa organização buscou im-
área de teoria social –, insere-se nessa trilha. Traça primir uma abordagem mais objetiva aos diver-
um instigante percurso da sociologia norte-ameri- sos problemas sociais, patrocinando a realização
cana desde seu início, no século XIX, até a época de vários estudos e pesquisas (surveys) apoiados
presente e sua relação com diferentes movimentos por organizações filantrópicas e por fundações,
sociais existentes nesse período. Em sua perspectiva tal como a Russell Sage Foundation. Esses diver-
durante a fase pré-disciplinar, que cobre o final do sos surveys realizados sobre as condições sociais de
século XIX e as primeiras décadas do século poste- vida urbana, impulsionados pelo movimento re-
rior, a sociologia norte-americana esteve, em gran- formista – dentre os quais se destacam The Pitts-
de medida, associada ao movimento de reforma burgh Survey, realizado entre 1909 e 1914, e Sprin-
social. Para o autor, no período atual, a proposta de gfield Survey, desenvolvido entre 1918 e 1920 –,
uma sociologia pública levada a cabo por Michael contribuíram para despertar a atenção de uma nova
Burawoy tem impulsionado também a sociologia geração de sociólogos sobre a existência desse rico
norte-americana a estabelecer uma relação orgâni- material empírico (Calhoun, 2007, p. 1-38; Faris,
ca com certos tipos de movimentos sociais daquela 1967).
sociedade. Na percepção de Turner, no entanto, o De seu lado, o meio universitário beneficiou
envolvimento da sociologia com as diferentes confi- a emergente sociologia norte-americana, em razão
gurações de movimentos sociais tanto no seu perío- da reestruturação do sistema de ensino superior da-
do inicial como no presente pouco contribuiu para quele país, iniciado no final do século XIX e for-
sua consolidação científica (Blau e Smith, 2006; temente influenciado pelo modelo de universidade
Deegan, 1988). concebido por Humbolt para as instituições ale-
A leitura do livro assinala que o início da so- mãs, no qual a pesquisa era concebida como ativi-
ciologia norte-americana no século XIX e nos anos dade fundamental. O surgimento de universidades

14090_RBCS87MioloAF5a.indd 163 4/8/15 1:29 PM


164 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 87

de pesquisas nesse período foi impulsionado pela para outros prédios nos anos seguintes e transfor-
crença da elite política e empresarial de que a pro- mou-se não apenas em um centro de oferta gratuita
dução de conhecimentos poderia oferecer soluções de serviços sociais, mas também em um espaço no
para os múltiplos problemas sociais que surgiram qual reformadores, políticos e acadêmicos se en-
no bojo de um acelerado processo de industrializa- contravam com frequência para discutir questões
ção e urbanização (Reuben, 1995). sociais (Recchiuti, 2007). Albion Smal, que chefiou
A sociologia beneficiou-se também da atuação por quase trinta anos o departamento de sociolo-
de fundações privadas de pesquisa. Determinadas gia da Universidade de Chicago e que acreditava
universidades norte-americanas contaram com ex- que a sociologia poderia oferecer uma importan-
pressivos aportes financeiros da Carnegie Corpora- te contribuição para a reforma social, era um dos
tion, da Rockefeller Foundation, por meio da Lau- frequentadores habituais da Hull House. Em sua
ra Spelman Rockefeller Foundation, que criou, em companhia, George Herbert Mead e Charles Hen-
1923, o Social Science Research Council. Os subsí- derson, que eram também professores de ciências
dios da Rockefeller Foundation não visavam promo- sociais da Universidade de Chicago. O sociólogo
ver a criação de uma “ciência social pura”, mas apoiar William Thomas, também da Universidade de Chi-
o desenvolvimento de uma sociologia que, por meio cago, marcava presença na Hull House, o que lhe
de dados empíricos, pudesse contribuir para a solu- permitiu obter um considerável volume de infor-
ção de questões sociais relevantes. A esse propósito, mações empíricas (Janowitz, 1966; Volkart, 1951).
seria oportuno assinalar que um dos primeiros de- Entretanto, na avaliação do autor, entre os anos
partamentos de sociologia no contexto norte-ameri- 1920 e 1930 ocorreu um relativo afastamento da so-
cano foi criado na Universidade de Chicago com um ciologia do movimento reformista, sendo um motivo
substancial apoio financeiro de John Rockefeller para o desenvolvimento por parte da disciplina de abor-
a sua fundação, em 1892, tendo o departamento de- dagens metodológicas diversificadas, que favorece-
senvolvido uma agenda de pesquisa sobre problemas ram seu amadurecimento científico, como se vê nos
urbanos (Bulmer, 1984; Geiger, 1986). exemplos a seguir. Franklin Giddings, por exemplo,
Na fase inicial de implementação dos depar- no longo período em que esteve na direção do de-
tamentos de sociologia, não era incomum a con- partamento de sociologia de Columbia, entre 1890
tratação de líderes reformistas e/ou de indivíduos e 1920, influenciado pelas concepções de ciência de
que desenvolviam trabalhos em organizações assis- Karl Pearson, trabalhou ativamente para incorporar
tenciais como seus docentes. Vários presidentes de métodos estatísticos nas investigações sociológicas
universidades renomadas, assim como destacados (Camic, 1996). Na mesma direção, o departamento
professores que atuavam nas ciências sociais, man- de sociologia de Chicago forneceu uma base empírica,
tinham estreitos laços com organizações inseridas desenvolvendo técnicas qualitativas, como observação
no movimento reformista. O presidente da Uni- participante, história de vida etc. O trabalho de Ro-
versidade Johns Hopkins, por exemplo, Daniel bert Lynd e Helen Lynd, Middletown: a study of Ame-
Gilman, participava do movimento cooperativista rican culture, publicado em 1929, combinou observa-
e mantinha relações com as Charity Organization ções etnográficas com dados estatísticos. O pioneiro
Societies. Envolveu alunos e professores com esse trabalho The polish peasant in Europe and America,
movimento de organizações filantrópicas ao mesmo publicado por William I. Thomas e Florian Znanie-
tempo em que pleiteava a inclusão de uma disci- cki, entre 1918 e 1920, integrou de forma exitosa um
plina denominada por ele de “caridade científica” exaustivo material empírico com uma reflexão teórica,
no interior da universidade. Em Chicago, a figura iniciando uma nova etapa na trajetória da sociologia
de Jane Addams destacava-se como uma liderança norte-americana (Fine, 1995). Por meio dessas diver-
central no movimento reformista. A Hull House, sas contribuições metodológicas, a sociologia foi se
originalmente sediada em um barracão reformado e afastando, gradativamente, dos pontos de vista refor-
inaugurado por ela em 1889 para oferecer serviços mistas, buscando infundir um grau de maior objetivi-
assistenciais para as camadas pobres, expandiu-se dade em suas análises (Smith, 1994).

14090_RBCS87MioloAF5a.indd 164 4/8/15 1:29 PM


resenhas 165

Um marco nesse processo de amadurecimen- instalou o Bureau of Applied Social Research, vin-
to científico da disciplina, na visão do autor, foi a culado ao departamento de sociologia daquela uni-
criação da American Sociological Society (ASS), em versidade (Camic,1996).
1930, uma vez que a associação procurou impri- Na apreciação do autor, a proeminência dos
mir uma identidade científica e profissional a seus departamentos de sociologia de Harvard e Co-
membros. Os sociólogos começaram a priorizar lumbia, entre as décadas de 1940 e 1960, produ-
suas atividades acadêmicas, relegando a segundo ziu um falso clichê, segundo o qual a sociologia
plano sua participação em movimentos reformistas. norte-americana seria uma combinação entre o
Procurando afirmar um modelo de trabalho acadê- funcionalismo conduzido por Parsons e Merton e
mico, a ASS passou a vetar a entrada de praticantes as pesquisas de survey capitaneadas por Lazarsfeld.
amadores e de membros do movimento de reforma Ao contrário, ressalta que existia uma pluralida-
que não possuíssem vínculos acadêmicos. Poucos de de orientações teóricas no período. Assim, a
anos depois, criou-se a Sociological Research Asso- presença de Max Weber inspirou trabalhos sobre
ciation, que adotou o critério de autorrecrutamen- poder, civilidade e intelectuais, conduzidos por
to de seus membros e que passou a ser frequentada Edward Shils em Chicago, e instigou os escritos
pela elite da sociologia norte-americana. Na dinâ- sobre estrutura social e caráter liderados por Hans
mica desse processo de institucionalização da socio- Gerth e Wrigth Mills. As pesquisas realizadas por
logia, ocorreu em 1936 a criação da American So- Anselm Strauss, Harold Garfinkel, Aaron Cicou-
ciological Review, que, ao lado do American Journal rel, Erving Goffman e outros, influenciadas direta
of Sociology, criado em 1895, passou a funcionar ou indiretamente pelo interacionismo simbóli-
como uma instância de legitimação acadêmica dos co, distanciavam-se do eixo Harvard-Columbia
artigos publicados pelos sociólogos norte-america- (Gouldner, 1970). A sociologia realizada em de-
nos (Bannister, 1987; Lengermann, 1979). terminadas universidades estatais era indiferente
No pós-guerra, a balança de poder acadêmico ao funcionalismo e concentrava seus esforços em
deslocou o departamento de Chicago a favor dos analisar problemas locais. Dessa forma, durante as
departamentos de sociologia de Harvard e de Co- décadas de 1940 a 1960, a sociologia norte-ameri-
lumbia. Sobre o caso da Universidade de Harvard, cana teve grande produtividade intelectual, sendo
assinala o autor que, nos anos de 1930, o futura- orientada pelo ideal de realização de um trabalho
mente célebre sociólogo funcionalista Talcott Par- científico que não se reduziu ao monopólio de
sons era ainda uma figura marginal e um autor de uma postura positivista, uma vez que foi fomen-
pequeno impacto na disciplina. Durante a guerra tada por uma diversidade teórica e metodológica.
recebeu fundos da Carnegie Corporation para de- Ao analisar a situação da sociologia norte-
senvolver um ambicioso projeto teórico. Seu tra- -americana nos anos de 1970, Turner ressalta que
balho The structure of social action, publicado em uma crise de grandes proporções abateu-se sobre
1937, recorreu exclusivamente a pensadores euro- a disciplina: franca hostilidade das novas gerações
peus para formar um quadro analítico que propo- à orientação funcionalista, que contribuiu para o
sitadamente ignorou o que vinha sendo realizado descrédito dessa vertente; sensível decréscimo das
na sociologia norte-americana. Enquanto Parsons fontes de financiamento para as atividades da disci-
desenvolvia uma abrangente teoria voltada para a plina; declínio das matrículas nos cursos de socio-
compreensão da ação humana, Robert Merton – logia na graduação, no mestrado e doutorado, que
cujas fontes de inspiração também eram europeias levou ao fechamento do departamento de sociolo-
– propunha no departamento de sociologia de Co- gia da Universidade de Washington; dificuldades
lumbia uma teoria de médio alcance, procurando de inserção de titulados no mercado de trabalho, o
integrar teoria e pesquisa empírica. Também na que possivelmente conduziu jovens que aspiravam
Universidade de Columbia, Paul Lazarsfeld, que, tornar-se sociólogos a realizar cursos oferecidos nas
como nos informa o autor, não possuía formação business school. O ideal de imprimir um padrão
em sociologia e não tinha interesse na disciplina, científico ao trabalho sociológico, que marcou as

14090_RBCS87MioloAF5a.indd 165 4/8/15 1:29 PM


166 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 87

décadas anteriores, enfraqueceu-se enquanto ponto dos anos 1990, determinados cargos da ASA foram
de referência. Ao contrário, o trabalho sociológico ocupados por sociólogos que não trabalhavam nos
foi substituído pela prática da expertise, ou seja, a departamentos de elite da sociologia, o que foi des-
utilização de métodos quantitativos na explicação crito como “diluição da elite” (Simpson e Simpson,
de determinados fenômenos, vinculados a interes- 2001). O autor salienta que os departamentos de
se públicos e/ou privados. Na avaliação do autor, elite estavam estrategicamente abrindo mão de par-
vários trabalhos sobre educação realizados por Ja- te do seu controle da ASA para preservar o domínio
mes Coleman – que fora estudante de Merton e completo das revistas American Journal of Sociology
Lazarsfeld – expressam essa vertente de expertise, e American Review of Sociology, que, em sua visão,
afastando-se de um ideário de afirmação científica tornaram-se um cartel de periódicos inserido no
da disciplina (Coleman, 1966). funcionamento de outro cartel, comandado por
O colapso da demanda de estudantes de socio- cinco departamentos da disciplina, que eram os de
logia entre os anos de 1970 e 1980 teve um efeito Harvard, Chicago, Columbia, Wisconsin e Berke-
diferente entre os departamentos. Os que estavam ley. A alta taxa de rejeição desses dois periódicos, e
inseridos na Ivy League e outros, em termos de re- de outros próximos da elite sociológica, contribuiu
conhecimento acadêmico, ficaram relativamente para a criação de revistas específicas tais como Rural
imunes à escassez de alunos de graduação. Alguns Sociological Society, Society for the Study of Simbolic
deles chegaram a perder a totalidade desses alunos e Interaction, Society for the Study of Social Problems
sobreviveram apenas com programas de doutorado. etc. Esse processo atendeu também à diversificação
No entanto, os departamentos que não pertenciam dos grupos de pesquisa.
às instituições de elite promoveram ajustes. Por um Na parte final do livro, o autor aborda determi-
lado, intensificaram a oferta de cursos optativos da nadas mudanças ocorridas na universidade norte-
disciplina na graduação para outras áreas do co- -americana contemporânea, tais como a introdução
nhecimento – com isso, os docentes centralizaram de políticas de ação afirmativa e a expressiva parti-
suas atividades acadêmicas nos afazeres do ensino cipação de mulheres nas matrículas. Nos cursos de
de sociologia. Por outro lado, os cursos de gradu- sociologia, as mulheres superaram a presença dos
ação atenuaram a presença e/ou a quantidade de homens na graduação, no mestrado e doutorado.
determinadas disciplinas consideradas impopulares Em alguns departamentos, especialmente na Costa
pelos alunos, como estatística. Procuraram incluir Oeste, os estudantes participaram da contratação
também determinados tópicos que pudessem atrair de docentes, utilizando critérios políticos no pro-
alunos de graduação de sociologia para suas insti- cesso. Em outros departamentos, adotaram-se cri-
tuições. Com isso, criou-se uma divisão do trabalho térios de ação afirmativa na admissão de docentes.
acadêmico entre os departamentos: os que desfru- O movimento de mulheres e a assertividade das rei-
tavam de posições dominantes focaram na pesquisa vindicações postuladas pelos sociólogos negros fo-
e os que se distanciavam dos círculos dominantes ram recebidos favoravelmente por vários segmentos
concentraram-se nas atividades de ensino. da academia como importante contribuição para
A geração que se opôs à orientação funcionalis- modificar o caráter discriminador da universidade.
ta, gradativamente, ocupou espaço na American So- Na perspectiva do autor, essas mudanças re-
ciological Association (ASA), que era praticamente percutiram na forma de considerar o trabalho so-
controlada pelos quadros dos departamentos de ciológico, na medida em que determinados grupos
sociologia mais reputados. Esse grupo dominante imprimiram um comportamento de ativismo e de
buscou acomodar a demanda de participação de so- engajamento social, relegando a um segundo plano
ciólogos alocados em instituições universitárias de o compromisso com um ideário científico. A dispo-
menos reconhecimento acadêmico, facultando-lhes sição de aliar a sociologia a uma militância adotada
o acesso à programação anual da ASA, por meio por alguns grupos, de certa forma, relembra a rela-
da modalidade de “sessões”, que no decorrer do ção da sociologia em sua fase pré-disciplinar com
tempo proliferaram de forma expressiva. Por volta movimentos de reforma social no século XIX, abor-

14090_RBCS87MioloAF5a.indd 166 4/8/15 1:29 PM


resenhas 167

dado na parte inicial do seu livro. Com isso, a etapa oriundos de departamentos prestigiosos. Desde o
presente da sociologia aproxima-se dos argumentos fim do milênio passado, as mulheres passaram a ser
favoráveis a essa conexão apresentados por Robert eleitas para a presidência da ASA. Nesse contexto de
Lynd, na década de 1930 (Lynd, 1939) mobilização, o autor salienta que na época presente
As demandas iniciais de inclusão dos black stu- ocorreu a reabilitação e canonização de Jane Adda-
dies nas universidades norte-americanas postulavam ms – figura de destaque no movimento reformista
que os sociólogos negros deveriam não apenas mi- do início do século passado – por parte de algumas
nistrar a nova disciplina como deter o controle do feministas, reivindicado sua inclusão como uma das
currículo, a fim de que este refletisse o seu ponto de fundadoras da sociologia norte-americana (Deegan,
vista. Essas demandas foram parcialmente aceitas e 1988). A posição de Stephen Turner a respeito desse
pouco a pouco a disciplina black studies foi introdu- movimento de recuperação é clara: Jane Addams não
zidas nos cursos acadêmicos. Os sociólogos negros possuía nenhuma preocupação com a sociologia,
envolvidos com a demanda dessa disciplina criaram não tinha qualquer ambição de torná-la uma disci-
a Caucus of Black Sociologist, que posteriormente plina científica. Seu trabalho e seu interesse estavam
transformou-se na Association of Black Sociologist. voltados exclusivamente para a reforma social.
Passaram a reivindicar participação nos comitês da Ao assinalar a mescla entre ideologia e socio-
American Sociological Association, pleitearam atu- logia presente no trabalho de determinados grupos
ar como referees na análise de artigos do American no contexto da sociologia norte-americana, o autor
Journal of Sociology e exigiram estar sempre repre- recorre a uma passagem do livro de Louis Horo-
sentados como expositores e debatedores de papers witz, The decomposition of sociology, amplamente
nos programas desta associação que abordassem utilizado por ele em sua argumentação para demar-
questões de relevância para a comunidade negra car a separação entre problema sociológico e pro-
(Conyers, 1992). blema social, ciência e ideologia. Nessa passagem
O livro destaca que a geração de mulheres que do livro de Horowitz, este, por sua vez, cita um ar-
exerceu a profissão na década de 1950 encontrou tigo de 1984, publicado na Mid-American Review
obstáculos explícitos, em função de estereótipos of Sociology, de autoria do sociólogo Michael Hill,
nutridos por sociólogos que ocupavam posições companheiro de Mary Jo Deegan, artigo em que
de mando na disciplina: parte deles acreditava que Hill pleiteia a incorporação de ideologia enquanto
as mulheres abandonariam seus projetos profissio- elemento de legitimação de grupos militantes que
nais em função do casamento (Laslett, 2007). A utilizam a sociologia, afirmando: “primeiro ideolo-
principal organização das mulheres na sociologia gia, segundo axiologia e terceiro epistemologia”.
norte-americana, a Sociologist for Women Socie- Turner salienta que o movimento das mulheres
ty (SWS), começou a se organizar para romper as recorreu às reflexões de Thomaz Khun sobre o fun-
barreiras que enfrentavam para ter acesso à discipli- cionamento do conhecimento científico e pleiteou
na. A SWS realizou um trabalho contra formas de a fundação de um novo paradigma para suas for-
discriminação profissional das mulheres, lutou pela mulações explicativas: o paradigma de gênero. No
sua participação na sociologia e passou a publicar entanto, discordando dessa reivindicação, Turner
o influente periódico Gender and Society. As ações sugere que, quando um grupo de sociólogos postula
afirmativas e o trabalho do grupo SWS mudaram para si o estabelecimento de um novo paradigma, os
a composição de gênero dos docentes nos departa- seus pressupostos são assumidos como um conjunto
mentos de sociologia, na medida em que as mulhe- de convicções, ou seja, como uma doxa pelos seus
res tiveram acesso a eles. O mesmo processo ocor- seguidores. Do mesmo modo, o autor considera que
reu com a American Sociological Association, onde a proposta de Michael Burawoy de levar a cabo uma
as mulheres passaram a se candidatar para todas sociologia pública, capaz de aproximar os sociólo-
as posições: algumas delas, em início de carreira e gos dos diversos movimentos sociais – o que para
provenientes de departamentos menos prestigiosos, Turner mereceu poucas críticas na sociologia norte-
obtiveram cargos, ganhando de sociólogos seniores -americana –, os têm convertido em intelectuais or-

14090_RBCS87MioloAF5a.indd 167 4/8/15 1:29 PM


168 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 87

gânicos desses movimentos, na esteira da formula- dêmica e geracional da universidade daquele país,
ção proposta por Gramsci (apud Horowitz, 1993). abordando a existência de uma divisão hierárquica
Ao longo do texto constata-se que os depar- entre seus distintos departamentos de sociologia e
tamentos de sociologia norte-americana de maior o impacto desses fenômenos na vida institucional
prestígio acadêmico possuem uma cultura que pri- da disciplina praticada nesse contexto societário.
vilegia a pesquisa, enfatiza um padrão de trabalho Ao analisar os ganhos e perdas da vinculação da
científico e são defensores desse ethos acadêmico sociologia com movimentos sociais tanto do passa-
(Max, 1990). No entanto, o autor destaca que uma do como do presente, Stephen Turner realiza uma
parte expressiva da sociologia norte-americana, nos contundente separação entre o compromisso do
dias atuais, lamentavelmente, considera irrelevan- investigador de fornecer uma análise objetiva dos
te o legado teórico e metodológico edificado – a fatos e a explicação sinuosa embasada por crenças
partir de diversas orientações – pelas gerações de ideológicas. Certamente, esse denso e corajoso livro
sociólogos que trabalharam entre os anos de 1940 produzirá acalentadas polêmicas, mas, seguramen-
e 1970, visando fornecer um alicerce científico te, fornece uma profícua reflexão não apenas sobre
para a sociologia. O panorama atual da sociologia os rumos da sociologia norte-americana, mas tam-
norte-americana construído pelo autor tende a in- bém para (re)pensar os caminhos de outras sociolo-
dicar que a disciplina vem sendo produzida por um gias nacionais.
emaranhado de grupos, cada qual orientando-se a
partir de suas agendas políticas específicas, ora rei-
vindicando um “paradigma” particular para si, ora Bibliografia
instrumentalizando a atividade teórica, tornando a
defesa de determinadas causas sociais a motivação BANNISTER, R. (1987), Sociology and scientism:
primordial da produção do conhecimento. the American quest for objectivity 1880-1940.
A leitura do livro sugere que a disposição de Chapell Hill, The University of North Caro-
produzir um conhecimento sociológico em defesa line Press.
dos interesses de determinados movimentos sociais BULMER, M. (1984), The Chicago School of socio-
corre o risco de conduzir o investigador a estabe- logy: institutionalization, diversity, and the rise
lecer uma relação incontrolada com seu objeto de of sociology research. Chicago, The University of
análise. Isso tende a confundir a explicação socio- Chicago Press.
lógica de um determinado movimento social com BLAU, J. & SMITH, K. (2006), Public sociologies
o ponto de vista dos atores que neles participam. reader. Oxford, Rowman & Littlefield Publi-
Com essa adesão às crenças dos participantes dos shers.
movimentos sociais, o investigador abdica da re- CALHOUN, C. (org.). (2007), Sociology in Ame-
alização de um trabalho sociológico objetivo, mi- rica: a history. Chicago, The University of Chi-
nando a credibilidade da própria disciplina. Diante cago Press.
desse cenário, o autor indaga: na medida em que CAMIC, C. (1996), “Three departments in search
a sociologia norte-americana vem se pautando, de of a discipline: localism and interdisciplina-
forma crescente, por agendas políticas construídas ry interaction in American sociology, 1890-
por diferentes grupos, a disciplina tem condições 1940”. Social Research, 62 (4): 1003-1033.
de sobreviver nos espaços científico e universitário? COLEMAN, J. ([1966] 1996), Equality of educa-
American sociology: from the pre-disciplinary to tional opportunity. Comissionado pelo US De-
post-normal é um agradável convite ao leitor inte- partment of Health, Education, and Welfare.
ressado em refletir sobre os condicionantes institu- Washington, Office of Education.
cionais e sociais que têm permeado o desenvolvi- CONYERS, J. (1992), “The Association of Black
mento e os rumos da sociologia norte-americana. Sociologist: a descriptive account from an ‘in-
Trata-se ainda de um livro que fornece valiosas in- sider’”. The American Sociologist, 23: 49-55.
formações sobre as mudanças na configuração aca- DEEGAN, M. J. (1988), Jane Addams and the men

14090_RBCS87MioloAF5a.indd 168 4/8/15 1:29 PM


resenhas 169

of the Chicago School. New Brunswick, Tran- wrong with sociology?, New Brunswick, Tran-
saction Books. saction Publishers.
FARIS, R. (1967), Chicago sociology (1920-1932). SMITH, M. (1994), Social science in the crucible:
Chicago, The University of Chicago Press. the American debate over objective and purpose.
FINE, G. (1995), “A second Chicago School? The Durham, Duke University Press.
development of a postwar American socio- TURNER, S. & TURNER, J. (1990), The impossi-
logy”, in Gary Fine (org.), A second Chicago ble science: an institutional analysis of American
School? The development of a postwar American sociology. Londres, Sage.
sociology, Chicago, The University of Chicago VOLKART, E. (1951), Social behavior and perso-
Press. nality: contributions of W. I. Thomas to theory
GEIGER, R. (1986), To advance knowledge: the and social research. Nova York, Social Science
growth of American research universities (1900- Research Council.
1940). Nova York, Oxford University Press.
GOULDNER, A. W. (1970), The coming crisis of Carlos Benedito Martins
western sociology. Nova York, Basic Books. é professor titular do Departamento
JANOWITZ, M. (org.). (1966), W. I. Thomas on de Sociologia da Universidade de Brasília.
social organization and personality: select papers. Foi professor visitante da Universidade
de Columbia em 2006 e da Universidade
Chicago, The University of Chicago Press.
de Oxford em 2012.
HOROWITZ, L. (1993), The decomposition of the E-mail: carlosb@unb.br.
sociology. Oxford, Oxford University Press.
LENGERMANN, P. M. (1979), “The founding of
DOI: http//dx.doi.org/10.17666/3087163-169/2015
the Sociological Review: the anatomy of a re-
bellion”. American Sociological Review, 44 (2):
185-198.
LASLETT, B. (2007), “Feminist sociology in the
twentieth-century United States; live history
in historical context”, in Craig Calhoun (org.),
Sociology in America: a history, Chicago, The
University of Chicago Press.
LYND, R. (1939), Knowledge for what? The place
of social science in American culture. Princeton,
Princeton University Press.
MAX, G. (1990), “Reflections on academic success
and failure: making it, reshaping it”, in Rei-
nhard Bendix e Bennet Berger (eds.), Authors
of their own lives, Berkeley, University of Cali-
fornia Press.
RECCHIUTI, J. L. (2007), Civic engagement so-
cial science and progressive-era reform in New
York City. Filadélfia, University of Pennsylva-
nia Press.
REUBEN, J. (1995), The shaping of the modern
university. Chicago, The University of Chicago
Press.
SIMPSON, I. H. & SIMPSON, R. (2001), “The
transformation of the American Sociological
Association”, in Stephen Cole (org.), What’s

14090_RBCS87MioloAF6_DOI.indd 169 4/16/15 4:24 PM

Você também pode gostar