Você está na página 1de 4

TRADUÇÃO AL POMODORO

Certa vez, logo após a morte de Gabriel García Márquez, fiquei um pouco
exasperada com alguns comentários no Facebook (sou assídua frequentadora) que se
compraziam em apontar, entre milhares e milhares de páginas de sua obra publicada no
Brasil, uma meia dúzia de lapsos e defeitos nas traduções. E comentei que, numa
ocasião daquelas, mais valeria olhar todo esse trabalho conjunto de trazer a obra de
García Márquez ao público brasileiro do que se deter num pequeno punhado de deslizes.
Em vez de procurar a pintinha no tomate, mais valia olhar o movimento da feira, foi a
analogia que usei.
Há o tomate ali, ele sozinho, talvez com um amassado, uma mancha ou até
algum – hoje em dia raro – buraquinho de verme. Há a banca inteira forrada de tomates,
todos sortidos, uns mais verdes, outros mais maduros, uns de pele mais lisa, outros de
pele mais engruvinhada. Estendendo-se pela rua, há várias outras bancas de tomates,
mais rechonchudos, mais minguados, de preços variados. Orgânicos, naturais ou à base
de adubos químicos e agrotóxicos. Há até uma feira inteira de produtores de tomates.
Redondos, alongados, rasteiros, trepadeiros, cereja, débora, carmen, caqui, tantos e
tantos, de características diversas, para fins diversos. E aquela fartura maravilhosa com
um mundaréu de tomates à escolha.
E há os produtores: quem arou, lavrou e preparou a terra, ao ar livre, em
canteiro, em estufa ou em lata; quem semeou, aguou, esperou, transplantou as mudas,
estaqueou e acompanhou diariamente o crescimento dos frutos. Colheu, lavou, limpou,
enxugou e levou ou fez chegar à feira. Agora lá estão expostos, em sua fulgurante glória
rubra, alguns mais acanhados, outros mais esplendorosos.
Eu não descartaria totalmente alguma singela aproximação entre o tomate na
feira à escolha da freguesia e a tradução de um livro ofertada a um leitor, entre as
variadas bancas e as mais diversas editoras, entre a freguesia e o público leitor, entre a
feira que traz os produtos que comporão a mesa do consumidor e o conjunto da
produção traduzida no Brasil. E acima de tudo, como o tomate-cerejinha do bolo, uma
singela aproximação entre o conjunto de práticas e valores embutidos na própria
existência de uma feira e o conjunto da cultura em que se insere a prática e a leitura de
traduções: afinal, aí está o indispensável pastel de feira para provar que ir à feira nunca
é apenas ir à feira.
Este livro pretende ser um passeio por essa metafórica feira. Pararemos na banca
do senhorzinho que tem mil histórias de tomates para contar, de meio século ou século e
meio atrás; conversaremos animadamente com a moça que deixou a faculdade, virou
vegan e planta tomates orgânicos numa pequena chácara próxima, tudo feito de maneira
artesanal; bateremos uma aposta com a freguesa cética ao nosso lado de que justamente
aqueles tomates já muito maduros, quase passando, ainda têm carnadura firme e são, de
longe, os melhores para preparar uma bela fornada de tomates secos; discutiremos
vivamente as razões da diferença de pigmentação entre dois ou mais espécimes, as
razões daquelas manchas que parecem ferrugem na pele dos tomates de salada, e
também as razões de alguns coscorões em alguns outros.
Escolheremos nossos tomates para a semana, simpatizando com os mais
variados tipos, talvez nem sabendo muito bem por que, e com certa dor no coração,
eventualmente venhamos a desdenhar alguns. E, coroando o passeio, iremos direto para
a banca do pasteleiro, onde pediremos meia dúzia de pastéis – e sabor pizza, claro, com
belas rodelinhas de tomate lá dentro.
I

CAUSOS DE ANTIGAMENTE
Amigos do alheio

Tomates, goiabas, galinhas, roupas no varal e traduções parecem exercer uma


misteriosa e irresistível atração sobre os amigos do alheio.
Um dos casos mais célebres – ou, pelo menos, um marco na história dos
surripios no mundo das letras traduzidas – é o da H. Garnier e, mais adiante, da Livraria
Garnier.
Foi assim: XXXX B.L etc. À morte de Baptiste-Louis, foi seu irmão Hyppolite
Garnier que ficou com a firma. Mas, já idoso, nem se animou a vir ao Brasil e incumbiu
XXX de assumir a gerência da casa. Isso foi em XXX.
Paralelamente a isso, estava ocorrendo em XXX a XXX direitos autorais.
XXX deve ter achado muito trabalhoso

Um prato bem temperado

ZORAN NINITCH

JORGE AMADO / NELSON RODRIGUES

II

UM OFÍCIO MILENAR:
DO ARTESÃO AO PÓS-EDITING
Até que ponto você muda o original em sua tradução? Até que ponto a formulação dessa
pergunta faz algum sentido, para começar? Pois você não mexe no original; você
escreve outra coisa em português. Como poderia, então, mudar ou mexer no original?
Ah, mudar ou mexer no sentido dele, é isso? Parece mais fácil de entender. Se no
original aparece, digamos, um personagem de uma novela dizendo que detesta brócolis,
ficaria estranho se ele aparecesse na minha tradução dizendo que adora brócolis.
Aliás, isso me lembra uma vez que fiz algo bem parecido: numa citação de
passagem, em pé de página, aparecia alguém que loathed alguma coisa. No mais
autêntico acesso de distração ou sono, pus lá que o fulano “amava” alguma coisa (é
evidente que li trocado: loved em vez de loathed). Só depois de publicado o livro, veio o
editor e me perguntou, quase me sabatinando: “Denise, você sabe o que significa to
loathe?”. Arregalei os olhos e falei: “Mas claro, detestar, odiar, abominar”. E ele
responde, mostrando uma página do livro: “Então por que é que você traduziu por
‘amar’?”. Bom, desnecessário dizer que, naquela hora, eu quis morrer. Sim, então foi,
foi assim. Erro crasso, por distração e desatenção. Mas claro que eu jamais teria dito que
o fulano amava tal coisa se tivesse lido direito a bendita palavrinha. Não é a esse tipo de
“mudança de sentido”, por erro crasso de leitura, que me refiro.
Refiro-me a intervenções deliberadas, do gênero: “Mas como que ele não gosta
de brócolis? Brócolis é a coisa mais deliciosa do mundo e acho que vai combinar
melhor com o personagem – que fique então adorando brócolis”. Interpreto o
personagem, seus gostos e desgostos, e concluo que vai ser melhor corrigir sua indevida
aversão a essa digna representante da espécie brassica oleracea. Bom, nem aqui nem na
China. Isso não se faz. Talvez algum tradutor faça, mas, se fizer, está fazendo mal
feito.
Por outro lado, e se resolvo enfeitar? Digamos, pego dois versos de um antigo
cântico de escravos americanos: O there'll be mourning, mourning, mourning,/
O there'll be mourning, at the judgment-seat of Christ! Compostos de palavras muito
simples, operam por repetições também simples. Mas, por alguma razão, acho que, em
português, fica bonito assim: “Que dó, que pranto e dor, quando para julgar,/ Vier
Cristo o seu trono esplêndido ocupar!”. Bom, pelo menos não resolvi achar que será a
maior farra, alegria e diversão quando chegar o Juízo Final. Já é um consolo.
Mas vejamos: por que criar rima (e ainda por cima tão pobrezinha, com
julgar/ocupar) se não há rima no original? Por que tirar a sucessão mourning,
mourning, mourning, que, aliás, gera um efeito tão mournful (lamento, lamento,
lamento, o que, pela própria reiteração, soa realmente bastante lamentoso). Por que
eliminar a repetição da frase no segundo verso? E são escravos entoando
lamentosamente um hino já muito lamentoso repleto de lamentos! “O seu trono
esplêndido”? Como assim?
O tradutor pode fazer isso? Bom, poder pode, tanto é que o fez. Mas passa?
Passa o efeito de lamento, passa a paucidade dos termos, passa a simplicidade do canto,
passa a dor? Quer dizer: não basta sermos escravos, ainda vamos ter de nos lamentar no
dia do Juízo Final; que vida mais desgraçada! E é tristíssimo o sentimento nesse trecho
do livro, justamente pelos versos dessa cantilena simples e lastimosa (ah, em tempo:
trata-se da Cabana do Pai Tomás).
Vê-se a intenção do tradutor: edulcorar, embelezar. É legítima a intenção? Bom,
do meu ponto de vista, não se sustenta. Em primeiro lugar, porque ninguém é salvador
do mundo e nada garante que sua intenção seja mais válida ou possa prevalecer sobre a
intenção do autor. E não precisa se pôr a complicar o que é simples, a enfeitar o que é
despojado, só porque acha mais bonito. A questão que então surge, é: “não precisa”? Ou
“não pode”, “não deve”? Aqui então temos um exemplo de “mexer” no original, de
intervir no tipo de formulação das frases do inglês, tentando transpô-las para um registro
mais elevado em português. Além de modificar o registro, altera o sentido? Isso nem
tem resposta, pois é outra coisa – não é mais um canto escravo recheado de lamento.
“Que dó, que pranto e dor, quando para julgar,/ Vier Cristo o seu trono esplêndido
ocupar!” – bom, difícil imaginar um casal de escravos VER O TRECHO murmurando
essas palavras enquanto XXXXX. Fica incongruente, bizarro, perde o sentido. A
questão que então surge, é: “não precisa” se pôr a inventar moda? Ou “não pode”, “não
deve”? Bom, depende.
Eis outro caso. XXXX Coerência interna do partido adotado.

Você também pode gostar