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“São os brancos, rio abaixo, guas ficarem doentes e tornam a querem a nossa morte para se a-
que estão abrindo um caminho e carne dos peixes mole e podre.” possar de nossas terras. [...] Não
arrancando o chão da floresta!” “Não viemos para fazer guer- quero me perder entre os bran-
“Nossos antigos sempre foram ra, mas para pedir a vocês que cos. Meu espírito só fica mesmo
protegidos das doenças pelo fres- saiam deste lugar. Queremos tranquilo quando estou rodeado
cor da floresta. Somos de outro convencê-los com nossas pala- pela beleza da floresta, junto dos
sangue. Nunca vivemos, como os vras, não com nossas flechas. meus. Na cidade, fico sempre an-
brancos, em terras ardentes e Vocês destroem a floresta, pen- sioso e impaciente. Os brancos
sem árvores, percorridas por má- sando que está vazia, mas não nos chamam de indigentes apenas
quinas em todo lugar. No primeiro está. Há nela muitas de nossas porque somos gente diferente de-
tempo, nossos maiores viviam so- casas e nós bebemos a água les.”
zinhos na floresta, longe das mer- desses rios que vocês sujam!” “Vocês repetem muito que a-
cadorias e dos motores. Essas fu- “[...] Sei apenas que a terra é mam o que chamam de natureza.
maças de epidemia têm um cheiro Se é mesmo o caso, parem de só
ruim que cortou o sopro de vida discursar, defendam-na de verda-
deles. Desde que as respiraram, de!”
morreram todos, uns após os ou- “Por quererem possuir todas as
tros. E, ainda hoje, as gentes das mercadorias, foram tomados de
terras altas continuam morrendo um desejo desmedido. Seu pensa-
disso. Eu gostaria de ter dito aos mento se esfumaçou e foi invadi-
brancos, já na época da estrada: do pela noite. Fechou-se para to-
‘Não voltem à nossa floresta! Su- das as outras coisas. Foi com es-
as epidemias xawara já devora- sas palavras da mercadoria que os
ram aqui o suficiente de nossos brancos se puseram a cortar to-
pais e avós! Não queremos sentir das as árvores, a maltratar a terra
tamanha tristeza de novo! Abram e a sujar os rios. Começaram on-
os caminhos para seus caminhões de moravam seus antepassados.
longe da nossa terra!’”. Hoje já não resta quase nada de
“Sujaram os rios com lamas e Davi Kopenawa floresta em suas terras doentes e
os enfumaçaram com a epidemia não podem mais beber a água de
xawara de seus maquinários. En- mais sólida do que nossa vida e seus rios. Agora querem fazer a
tão, meu peito voltou a se encher que não morre. Sei também que mesma coisa na nossa terra.”
de raiva e de angústia ao vê-los ela nos faz comer e viver. Não é “[...] os brancos costumam
devastar as nascentes dos rios o ouro, nem as mercadorias, que empilhar seus bens de modo mes-
com voracidade de cães famintos. faz crescer as plantas que nos a- quinho e guardá-los trancados.
[...] Mas entendi logo que os ga- limentam e que engordam as Por sinal, sempre levam com eles
rimpeiros eram verdadeiros come- presas que caçamos! Por isso di- muitas chaves, que são as das ca-
dores de terra e que iam devastar go que o valor de nossa floresta sas em que escondem seus per-
com a floresta.” é muito alto e muito pesado. To- tences. Vivem com medo de ser
“Se deixarmos os garimpeiros das as mercadorias dos brancos roubados.”
cavarem por toda parte, e como jamais serão suficientes em troca “Se destruírem a floresta, o céu
porcos-do-mato, os rios da flores- de todas as suas árvores, frutos, vai quebrar de novo e vai cair na
ta logo vão se transformar em po- animais e peixes”. terra!”
ças lamacentas, cheias de óleo de “Essa política não passa de fa- Texto extraído do livro
motor e lixo. [...] Todas essas coi- las emaranhadas. São só as pa- “A Queda do Céu” de Davi
sas sujas e perigosas fazem as á- lavras retorcidas daqueles que Kopenawa e Bruce Albert
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expediente
Sois todos sumário
uma vez que, a
meu ver,
muito sábios,
informes
loucura é o m sa
sugestão
a Én a t u r de
e z a ,livros
bedoria. [...]
que,
sugestão de filmes
artigos
No livro Sobre o
poder pessoal, Carl
Quando pensamos no tema da mental a inclusão de mecanis- Com o cinema, trazemos a diver-
surdez, sabemos que não é novi- mos de acessibilidade para esses sidade para a sala de aula. Dessa
dade que o audiovisual possa co- sujeitos. A imagem torna-se um forma, podemos questionar este-
laborar significativamente para o recurso bastante rico para ser reótipos que reforçam as diferen-
aprendizado desses sujeitos. Dife- explorado com os alunos surdos, ças. No tocante aos surdos, para
rentes teorias acadêmicas se des- tanto por sua aproximação com Skliar (1998), tais sujeitos “não
dobram para tentar compreender seu modo de produção de signi- são reconhecidos nos diferentes e
e explorar esta linguagem na es- ficado, sua experiência visual (a múltiplos recortes de identidade,
cola. Atualmente, com a compro- própria língua de sinais é uma linguagem, raça, gênero, idade,
vação do estatuto linguístico das língua gesto-visual), como por comunidade, culturas etc”, redu-
línguas de sinais, provou-se que permitir outras formas de com- zidos ao fato de não ouvirem,
estas não correspondiam a desconsiderando-se outras
uma versão deficitária das formas de existir e lidar
línguas orais. Antes, corres- com o mundo.
pondem a sistemas próprios Além disso, os surdos
de comunicação que também nem sempre têm acesso à
apresentam as mesmas ca- produção em língua portu-
racterísticas das demais lín- guesa, pela não utilização
guas (SALLES et al., 2004, p. de legendas. É uma ques-
89). A surdez saiu de um pa- tão política e de inclusão
radigma puramente clínico social para uma parcela sig-
(da reabilitação) para abar- nificativa de indivíduos. Al-
car também um paradigma guns grupos surdos passa-
linguístico (da diferença). ram a solicitar, inclusive, a
Assim, há uma série de polí- tradução para a língua de
ticas públicas que buscam sinais, com a presença do
garantir à comunidade surda tradutor-intérprete em for-
sua inserção em grupos lin- mato de janela no próprio
guísticos minoritários, pro- filme. Isso poderia ser feito
cesso ainda bastante com- em exibições exclusivas pa-
plexo e em curso nas dife- ra a comunidade surda usu-
rentes esferas sociais, inclu- ária de língua de sinais, por
Acson exemplo. Em algumas ex-
indo as artes.
No caso específico do Brasil, preensão textual que vão para periências realizadas em escola
com a atribuição do status de lín- além do texto escrito. de surdos, foi produtivo propor
gua à LIBRAS, por meio de legis- Um primeiro passo, então, pequenas resenhas sobre a obra,
lação específica (BRASIL, 2002), seria propor um encontro entre antes de começar o filme, resu-
reconhece-se o direito de o surdo alunos e filmes que pudesse fun- mindo um pouco o que seria con-
ter acesso a uma língua, que se- cionar como ponto de partida tado, sem, entretanto, adiantar
ria sua língua própria, como pri- para propostas de análise a se- demais o enredo. A ideia era des-
meira língua, ponto de partida, rem organizadas e desenvolvidas pertar o interesse ao mesmo tem-
inclusive, para qualquer outra a- de acordo com temáticas de in- po que facilitasse a compreensão
prendizagem. Ressaltamos a ne- teresse dos alunos, como, por de movimentos importantes para
cessidade de o surdo tornar-se exemplo, trabalho, família, pre- a sua construção.
bilíngue, uma vez que, de acordo conceito, entre outras possibili- Por fim, gostaríamos de ressal-
com Skliar (1998), há o direito dades. Incorpora-se também in- tar a importância da educação
deste ao aprendizado da língua de formações acerca do próprio ci- audiovisual. A escola é um espaço
sinais como primeira língua, sua nema, tais como seu surgimen- rico para a desconstrução dos es-
língua de instrução, e a língua to, a importância de determina- tereótipos, sobretudo, incluindo
portuguesa, em sua modalidade do filme em sua historiografia, os conteúdos que abordam as ar-
escrita, como segunda língua. sua forma de representar o lu- tes. O cinema corresponde a um
Nesse contexto, torna-se funda- gar, entre outras possibilidades. potente recurso para a construção
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de uma escola mais democrática Referências lia: MEC, SEESP, v.1, 2004.
que convive e respeita as diferen- SKLIAR, Carlos. Bilinguismo e Bi-
ças, proporcionando aos seus e- SALLES, H.M.M.L et al. Ensino de culturalismo: uma análise sobre
ducandos diferentes visões de língua portuguesa para surdos: as narrativas tradicionais na edu-
mundo, ampliando repertórios caminhos para a prática pedagó- cação dos surdos. Revista Brasi-
artísticos, críticos e criativos dos gica. Programa Nacional de apoi- leira de Educação, 8, 1998. (p.44-
sujeitos. o a Educação dos surdos. Brasí- 57)
Miguel Almir
Professor da UEFS
Somos constituídos, de modo mediante formas que desqualifi- vamente suas capacidades cogniti-
estruturante, de afecções cam suas potências vitais, sua vas, se sobressaem profissional-
(emoções e sentimentos) e de ra- fruição sensata e salutar através mente no campo da técnica e da
zão (cognição/pensamento). Por- de ações que recalcam e domesti- operacionalidade pragmática, mas,
tanto, para cuidarmos da inteireza cam. Um exemplo disso é o que no campo emocional, apresentam
da complexidade de nosso ser, ca- ocorre nos campos do marketing características bastante frágeis.
rece de que cultivemos a relação e das lógicas mercantis que utili- Essas posturas, ao revelarem as
de complementaridade e de coe- zam de recursos sofisticados para fragilidades da musculatura emo-
xistência entre essas dimensões de ludibriar e manipular o espectro cional, incidem em comportamen-
forma primorosa e efetiva. Super- emocional das pessoas através tos/atitudes melindrosas e infanti-
estimar uma em detrimento da das propagandas etc. lizadas que revelam muita insegu-
outra traz implicações diversas que Apesar de diversas pesquisas, rança interna.
nos mutilam e empobrecem huma- produções, eventos e projetos na Na proporção em que, em nos-
namente. Se nos atemos apenas à seara da chamada “inteligência sos processos de formação, não
esfera emocional nos reduzimos a emocional”, do campo afetivo, cuidamos dos aspectos emocio-
meros seres impulsivos, instinti- que afirma a relevância do cuida- nais, da expressão dessas nossas
vos; nutrimos apenas nossas sen- do com as emoções, os descuidos pulsões, tendemos a não amadure-
sações, o que pode nos trazer afe- com essa instância ainda são pre- cer existencialmente e continuar
tações doentias. Se apenas fica- dominantes, tanto nas famílias, tendo atitudes infantis, mesmo
mos no trato com o pólo da razão quanto nas igrejas, escolas etc. quando adultos. Essas atitudes se
podemos nos tornar seres glaciais, São muitos os exemplos de pes- revelam através de comportamen-
máquinas funcionais, com posturas soas que desenvolvem expressi- tos diversos como, por exemplo, a
calculistas e insensatas. Ambos os
excessos podem nos desfigurar e
desqualificar.
A emoção precisa do discerni-
mento do espírito da razão para
que compreendamos com mais
vastidão e criticidade. A razão pre-
cisa da textura das emoções para
que o saber esteja imbuído de sa-
bor e de vigor; para que o pensa-
mento não se torne um espectro
abstrato e esteja encarnado nos
contextos vivos do existir cotidia-
no.
Nesse cotidiano, de modo geral,
privilegia-se a formação racional,
cognitiva, os domínios analíticos e
técnicos que predominam nos
campos da produtividade, da lógi-
ca mercantil e consumista, descui-
dando-se, consideravelmente, do
cultivo das afecções – da educação
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emocional. Ou “cuida-se” destas
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coberta; da expressão dos valores riências e contatos diretos com a expressivamente difíceis, como
da paz, da amorosidade, da justi- natureza; os movimentos que quase tudo que é belo e precioso.
ça... Esses desdobramentos afir- sacolejam o corpo para expres- Não podemos encontrar ouro na
mam em cada indivíduo a capaci- sar seus impulsos e sensações superficie da terra. Há que garim-
dade de ser si mesmo, de cami- como também para descompri- par. Cuidar desses processos im-
nhar com suas próprias pernas, mir e desbloquear; as experiên- plica na abertura d’alma para as
mediante as in-tensidades das re- cias calorosas e entrelaçantes intensidades dos desafios das
lações com os outros. dos abraços; o tropeçar e cair contingências, para as constantes
O desenvolvimento dos fluxos para que aprendamos a levantar aprendências cotidianas, tanto de
emocionais, de forma expansiva e mais firmes, entre tantas outras adultos como de crianças e jo-
despojada, desemboca também possibilidades. Quanto mais cri- vens; em posturas despojadas e
na expressão robusta dos senti- anças e adolescentes, bem co- arejadas; no cuidar da autodisci-
mentos de simpatia e de empatia mo, jovens e adultos vivenciam plina e do autoconhecimento per-
para com as pessoas, no cuidado com in-tensidade essas inicia- manentes. São também marcados
com a delicadeza, com a generosi- ções mais fortalecem e qualifi- pela complementaridade entre
dade; suscita a altivez e a plastici- cam sua musculatura emocional. momentos de prazer e de dor, de
dade do senso de humor; impele Quanto mais proibição, repres- alegria e de tristeza, de sim e de
a energia de animação que es- são e recalque, mais inibição, não enquanto expressões dos flu-
tampa o existir. medo, insegurança e subordina- xos de emoções e sentimentos.
O desvelo com os processos de ção ou a explosão de atitudes Fluxos que perfazem os pro-
formação emocional, sobretudo na destrutivistas. Toda iniciação se cessos de iniciação ao se traduzi-
infância, mas também em quais- traduz em experiências intensas, rem nas aprendências que nos
quer fases da vida, é impulsiona- que atravessam o corpo e a al- atravessam por inteiro robuste-
do através do dinamismo de di- ma e são marcadas por momen- cendo o espírito para desafiar as
versas formas, como por exem- tos, muitas vezes, dolorosos que proezas e riscos do viver cotidia-
plo: as atividades e os jogos lúdi- são como as dores de parto: fa- no; que vigoram os compassos
cos; as vivências com as lingua- zem rebentar o novo. intensivos dos processos de ma-
gens de arte (dança, teatro, dese- Sabemos que esses processos turação existencial.
nho, pintura, música...); as expe- não são fáceis. Ao contrário, são
Este texto surge do desejo de a literatura na vida dessas mulhe- comum, o trabalho de agentes de
com-partilhar e visibilizar a experi- res pois além de ativistas e media- mediações da palavra literária, mas
ência do projeto “Profundanças: doras de leitura o interesse pela também camuflavam a vida secreta
antologia literária e fotográfica”, do literatura “resguardava experiên- de escritoras. A escritura represen-
qual fiz parte com satis-tesão em cias íntimas de escrita”. Mulheres tava um lugar diferenciado na vida
sua primeira edição, em 2014. Or- que publicavam seus escritos pela dessas mulheres, era um espaço de
ganizada por Daniela Galdino, pro- internet ou tinham apenas um li- expressão, de transgressão à posi-
fessora da Universidade do Estado vro publicado individualmente. ção reservada à mulher socialmen-
da Bahia (UNEB), poeta, performer, Ao revés disso, a antologia Pro- te, ligada ao cotidiano e à vida do-
produtora cultural e divulgadora da fundanças frutificou e deu voz a méstica, familiar. Dessa inquietação
literatura, mas, especialmente, a- essas mulheres. Especialmente, da organizadora, surgiu a ideia de
miga e a aventureira maior que já pela percepção sensível de Daniela um projeto artístico e literário, in-
tive o prazer de conhecer, uma en- Galdino de que muitas mulheres dependente e sem fins lucrativos,
tusiasta, a antologia conseguiu reu- de seu círculo de trabalho e de que mobilizasse a ação conjunta
niu um grupo empolgado e feliz por andanças artísticas possuíam, em dessas mulheres escritoras. Já en-
participar de seu projeto escri- tregues ao risco de dançar a
tural. ciranda da criação literária,
Trago aqui a voz de muitas mas trazendo os textos ar-
outras que comigo integraram quivados, por diversos moti-
a vivência de retirar seus poe- vos, dentre os quais, o medo
mas e outros escritos do sufo- de mostrar as criações, as
camento das gavetas e supe- escritoras viram no Profun-
rar o desconforto de não di- danças a oportunidade de
vulgar seus escritos. Incômo- lançaram-se à aventura da
do que, segundo Daniela Gal- primeira publicação de seus
dino (2014, p. 7), ocultava um poemas, contos e crônicas,
lugar especial reservado para de trazer a público os seus
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textos e se apresentarem como se tornou difícil hoje (ou quase bém com Márcia Soares, outra bru-
mulheres escritoras. impossível) reunir pessoas em um madense que também, assim como
Na concepção do primeiro volu- projeto sem interesse comercial. Celeste Bastos, tive o prazer de
me, em 2014, participaram 13 mu- Naquela época, venci o medo a- tornar-me amiga, a participação no
lheres, com textos inéditos e acom- través da escritura, ao publicar os primeiro volume da coletânea. Már-
panhados de um ensaio de fotogra- versos: “Tenho tanto medo de d- cia Soares traz nos versos a cor, o
fias, outra experiência de ineditis- eus/ Que até fraquejei com esta cheiro, da terra seca sertaneja,
mo, da qual muitas de nós nunca caneta”. Assim, partilho as vivên- misturados com sentimentos telúri-
pensamos em nos envolver. Agra- cias de um projeto literário inco- cos de espera e alegria pela chega-
deço por ter partilhado da primeira mum por trazer trajetórias disso- da da chuva. Em Saudade envelhe-
edição com as mulheres (e demais nantes, vozes inquietas e desejo- cida, (2014, p. 76) mostra os senti-
fotógrafos pela dedicação e entusi- sas do encontro com leitores e a- mentos fundos de saudade e a au-
asmo no ensaio fotográfico) que preciadores da palavra artística. sência de alguém; estas se mistu-
atualmente se reconhecem como Re-parto esta experiência da ram com as sensações provocadas
escritoras e já se engajaram em primeira publicação com a Celeste pela passagem das estações do ano
publicações individuais e indepen- Bastos, “Mulher simples, de garra, no sertão: “É mês de junho,/ e al-
dentes. baiana vendedora de acarajé, es- guns umbuzeiros já começaram a
A ação já resultou na publicação tudou apenas até sexta série e florir. [...]/ No outono/ as folhas
de dois volumes, respectivamente acabou interrompendo seus estu- caem desnudando as árvores/ e
em 2014 e 2017, os quais tiveram, dos para trabalhar e ajudar a fa- atenuando o verão sertanejo. [...]/
nas duas edições, a produção do mília”, conforme biografia que Meu sertão tem a cor amarela/ Co-
site de divulgação artística Voo mo as folhas no outono /E a mi-
Audiovisual. Até o momento par- nha saudade tem a cor sépia /
ticiparam 29 escritoras da Bahia, Como numa fotografia /uma
de Pernambuco, São Paulo e Rio saudade assim /envelhecida”.
Grande do Norte. Construído Não poderia deixar de aludir e
com a força de vontade e o ta- citar o poema no qual Soares
lento de pessoas que de alguma (2014, p. 77) mostra que não se
forma cultivam a literatura e a intimida diante do verbo e escre-
arte em seu cotidiano, a antolo- ve sobre as promessas e os des-
gia tem percorrido vários esta- caminhos do sexo-amor, no poe-
dos do país, através da promo- ma The end: “As princesas não
ção de rodas de conversas com podem fazer sexo/ por isso suas
as autoras, em feiras literárias, histórias logo se findam./Eu que-
em eventos universitários e ar- ria que você me amasse/além da
tísticos que estão dando visibili- minha vulva,/mas as tuas pro-
José Arcanjo
dade a essas escritoras. messas secaram/como o vinho
Conforme pondera Galdino consta na antologia (GALDINO, daquelas taças.../E esse foi o nosso
(2014, p. 7) na apresentação do 2014, p. 131). Celeste foi desco- final feliz:/A cópula”.
trabalho, intitulada “Irmanades pe- berta como poeta nas andanças de No projeto da segunda edição,
lo grito”, o livro se constitui em u- Daniela pelas ruas de Brumado, “Profundanças 2”, a ação colabora-
ma forma de “refutarmos as dinâ- cidade na qual a organizadora atu- tiva foi protagonizada por escrito-
micas literárias que, a cada dia, a como professora da UNEB. ras, fotógrafas e fotógrafos, edito-
fabricam a nossa invisibilidade”. Tal Na escrita dessa autora, pode- res, ilustradoras, designes gráficos,
concepção da autora entra em de- mos perceber a observação sensí- publicitários, cineasta e uma estu-
sacordo com as formas de controle vel sobre a existência, que sofre a dante do ensino médio que, volun-
da produção, da circulação e da di- dor humana sob o poder da morte tariamente, engajaram-se para re-
vulgação literárias, que envolvem a (2014, p. 39): “Esta arma mata velar o protagonismo de 16 mulh-
participação de instituições, edito- amigos e inimigos/ Destruiu a mi- eres/escritoras (algumas delas lés-
res e críticos, já que a antologia nha humanidade/ Hoje sou nada bicas e trans), que mostraram seus
Profundanças pode ser acessada não, moço/ Sou a raiz da fúria”. escritos, em sua maioria, inéditos,
através de download gratuito. As Ou, no mesmo poema, sentenci- acompanhados de ensaios fotográ-
rodas de conversa promovidas com ando sobre o vazio da alegria e a ficos realizados por 19 fotógrafas. A
a participação das autoras já acon- inexistência da felicidade: antologia foi lançada, em 06 de ju-
teceram em diversas instituições “Gargalhadas preenchem um vazio lho de 2017, data de nascimento da
universitárias e escolares em dife- interior/ Felicidade não existe!”. pintora mexicana Frida Kahlo, bus-
rentes localidades da Bahia e de Diante desses versos, imagino o cando ressignificar as referências
Pernambuco, configurando-se como encontro que nós leitores mante- desta artista para a vida e a criação
um projeto ambicioso de circulação mos com essas imagens construí- de mulheres brasileiras, sobretudo,
da palavra e da voz feminina. das por Celeste Bastos; mas pen- da Bahia, Pernambuco, São Paulo e
No que diz respeito a minha par- so também na triste possibilidade Rio Grande do Norte. Na apresenta-
ticipação, tenho a dizer que fiquei desses versos jamais serem lidos, ção do volume 2, Galdino (2017, p.
em estado de encantamento, por divulgados e, com isso, não terem 7) chama a atenção para o sentido
poder compartilhar de um trabalho como contribuir e melhorar a nos- da escrita de mulheres lésbicas e
tão bonito e de significado afetivo sa humanidade. trans no momento atual do país,
incomum, se pensarmos o quanto Com lisonja compartilho tam- em que um golpe “jurídico-
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parlamentar tenta silenciar e matar antologia “Profundanças 2” como dutoras de literatura ganham visibi-
as manifestações mais espontâneas sendo uma “ação literária e foto- lidade e mostram que a mulher po-
da sociedade civil”. Nesse momen- gráfica colaborativa já implode as de cumprir outras funções e não
to, a literatura viria como um cami- formas como a literatura tem se apenas aquelas demarcadas pelos
nho alternativo e de enfrentamen- tornado uma propriedade de pou- valores sociais e culturais machis-
to, e até de socorro a grupos mar- cos”. tas, racistas e homofóbicos. A gira
ginalizados, como as mulheres ne- Profundanças 2 configura-se, de Profundanças continua a girar
gras, os trans e as lésbicas, invi- nos tempos atuais de acirramento em suas rodas de conversas e en-
sibilizadas/os em existência e em e/ou reconhecimento do machis- contros nos quais as escritoras são
sua potência criativa e expressiva. mo contundente e aviltamento de visibilizadas em diversos lugares do
A literatura é considerada, nessa forças opressoras da sociedade país.
coletânea, como uma forma de re- brasileira, como uma ação femi- E também porque a antologia
sistência, e mais, como lugar de nista, e uma ferramenta de resis- está disponível para download gra-
recriação e de reinvenção de traje- tência que se faz por via da pala- tuito no link: http://
tórias, conforme também afirma vra poética. Assim, o projeto en- vooaudiovisual.com.br/projects/
Daniela Galdino (2017, p.7) “re- volve também a proposta de liber- profundancas/.
existências de quem também está tação do desejo e do corpo da mu-
sob a mira do ódio, do aniquila- lher por meio da literatura e da Referências
mento e do desencanto”. cena fotográfica. No poema “Um
No que toca à composição dos pé de á-gua”, que integra a cole- GALDINO, Daniela (Org.). Profun-
textos que integram o livro – poe- tânea, Galdino (2017, p. 41) ex- danças: antologia literária e foto-
mas, contos e crônicas, conforme pressa esse desejo de libertação gráfica. Ipiaú: Voo Audiovisual,
já dito –, Daniela Galdino apresenta do corpo e da vontade feminina 2014.
uma seleção cujo critério de esco- nos versos “macero vontades ex- GALDINO, Daniela (Org.). Profun-
lha baseia-se em concepções do traviadas/ quem respira terrem- danças 2. Ipiaú: Voo Audiovisual,
fazer literário que têm por objetivo otos/ inibe a calma de hesitações”. 2017.
desorganizar a forma como a litera- Profundanças promove uma in-
tura é compreendida socialmente. subordinação que ressoa no cam-
Galdino (2017, p.7) considera a po social, pois tais mulheres pro-
contos e crônicas
O (des)concerto
Fernando Pardo
São Paulo - SP
tigo prédio histórico, um grande bre os compositores, as obras e dagação, mas a resposta é óbvio
contingente de policiais se fazia volta e meia dirigia-se ao piano que vocês já conhecem.
presente para evitar que algum para executar alguns trechos do
walking dead perdesse o rumo e concerto, seguidos por um co-
viesse a incomodar os ilustres fre- mentário recorrente e um sorriso
quentadores do evento. maroto que por algum motivo me
Para quem não conhece ou nun- pareceram irônicos: “vou tocar
ca veio a São Paulo, a sala de con- um trechinho da obra, mas é ób-
certos fica no mesmo edifício onde vio que vocês já conhecem”. Em
está localizada a estação de trem algum momento de sua fala, um
Júlio Prestes e de dentro do hall é inconveniente telefone celular to-
possível avistar os trens que vêm ca e, ligeiramente incomodado, o
da periferia e as pessoas que che- jovem musicólogo pergunta àque-
gam e saem da estação. De um la atriz-atroz-atrás-há-três se por
lado, frequentadores da sala de acaso seria o próprio Stravinsky
concertos, do outro, moradores e telefonando do além para corrigir
transeuntes. Tudo bem separado alguma informação incorreta que
por um paredão enorme de janelas ele havia proferido a seu respeito.
de vidro, o qual divide os dois ti- Meio “desconcertada”, a jovem
pos de portadores de capital cultu- senhora se retira da sala para a-
ral distintos ali presentes, pois tender a chamada.
pressupõe-se que quem anda de Após receber aula magna e es-
trem não ouve música erudita, é clarecedores comentários acerca
claro. do que me esperava no concerto,
Ao adentrar o estacionamento, me dirigi à sala principal para lo-
minha primeira surpresa desagra- calizar meu assento. Uma emoção
dável. Preço único: R$ 25,00. Co- indescritível, tal qual a primeira C Matos
mecei a perceber que este concer- vez que contemplei aquela fabu-
to gratuito estava se tornando ca- losa arquitetura. Após o terceiro A história da garota
ro. Procedi para dentro do local, sinal das trombetas e as formali- e o pano
que figura na lista entre as dez dades todas, como a entrada tri-
melhores salas de concerto do unfante do spalla, do solista e do Naiana Souza de Almeida
mundo, com seus maravilhosos maestro, a orquestra afina os ins-
Um dia, sobre um pano enchar-
vitrais e lustres formidáveis. Já na trumentos e inicia a execução.
cado de dor, ela simplesmente teve
entrada avistei um enorme buffet Em meio a alguns olhares aten-
coragem de se debruçar, mas ela
do restaurante onde as pessoas tos, outros nem tanto, flagro uma
sabia do perigo que corria, ainda
faziam uma boquinha antes do senhora muito bem vestida a
assim, não quis desistir. Deitada
concerto. Fiquei com medo de per- qual, após um rompante stra-
naquele lugar marcado, a menina
guntar o valor e passei na surdina, vinskyano fortíssimo da orques-
descobriu o mundo... Por entre seu
aproveitando aqui a metáfora mu- tra, desperta de seu cochilo ente-
corpo fraco, arranhado, vozes a
sical. Mais adiante, pessoas muito diado ao lado do marido.
fazia ouvir o eco do sofrimento que
bem alinhadas bebericavam Pros- É chegado o primeiro intervalo
habitava nas sombras de quem ou-
seco e uísque, destilando, talvez e resolvo ir ao banheiro para co-
trora era mar. A tão pequenina ga-
pelo efeito do destilado, comentá- letar mais dados. Resultado: pe-
rota, dos olhos da cor da terra se
rios pedantes sobre os composito- los corredores, mais Prosseco,
agigantou para brigar com as som-
res da escola de Viena. mais uísque, mais comentários
bras, era o passado brotando, co-
Antes do início de cada concerto, sobre o último concerto assistido
mo raiz que quer espaço para cres-
acontece uma breve palestra expli- em Nova Iorque. Volto para o
cer... Ela inerte, diante do caos,
cativa com o intuito de informar a meu lugar e aguardo então o não tinha mais força para gritar.
plateia mais desavisada sobre o gran finale. Após a impecável e- Mas para que gritar? Ninguém a
conteúdo da apresentação da noi- xecução da obra para o balé Pe- ouviria, o silêncio e a treva já do-
te, neste caso Haydn e Stravinsky. trouchka, o público segue a orien- minavam o pano...
Apesar de ter formação em música tação veiculada através do slogan Foram dias de guerra, as som-
popular, ou seja, que pertence ao da orquestra na mídia: “pode a- bras estavam sempre com a moça
“povo”, em uma das melhores es- plaudir que a orquestra é su- dos cabelos dourados, de dia os
colas de música da capital, a qual a”...Minha? Me pergunto. vultos eram casa de esperança,
por coincidência fica exatamente Eis que então, em meio à ova- conversavam sobre o futuro, à noi-
em frente a esta mesma sala de ção e gritos de bravo!!!, todos te, eles eram tempestades, ruídos,
concertos, resolvi assistir à pales- retornam felizes e satisfeitos para gemidos.
tra, já que meu conhecimento em casa, carregando todo o peso da Um longo período já era passa-
música erudita se limita à Nona de cultura adquirida naquela noite. do, e o corpo da garota do sorriso
Beethoven, ao Quebra-Nozes e às Enquanto isso, me pergunto, será de estrela, resistia ao sofrimento
Bachianas do Villa. O jovem pales- que alguém vai embora de trem? do pano... A liberdade, enfim, che-
trante falava com propriedade so- Eu poderia responder a tal in- gou na hora em que o sol brilhou
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por entre as brechas deixadas pe- cou as águas geladas que insisti- os fantasmas, teve coragem, dor-
las almas da noite. Sorte da meni- am em umedecer o pano. Foram miu com os ecos.
na, ninguém sabia até quando a- dias de dor, mas a menina, gigan- Saudai a garota que renasceu. E
quele pano continuaria encharca- te que foi, venceu o frio, a chuva, viva está, liberta ficou.
do... Viva o sol da manhã, que se-
Mulher em grafite
Lalucha Mineiro
Belo Horizonte - MG
Ele a tinha desenhado em grafi- intacto. Olhando a imagem da nho. Passava o dia, à tarde e à
te como queria: meiga, sensível e mulher de seus sonhos, contava- noite, nu, em frente ao quadro,
dedicada. A moça do papel tinha lhe como havia sido seu dia. Pro- masturbando-se. Ela não reclama-
os olhos grandes, os lábios peque- tegido pelo barulho da música, va nunca. Parecia gostar e provo-
nos, os cabelos rubros, cor de ele reclama das injustiças do cá-lo intensamente: “Mais, mais,
sangue. O corpo esguio, mas car- mundo, das dificuldades para pa- mais”... assssimmm... Ohhhhh!
nudo em algumas partes. Seios gar as contas, das cobranças dos Ele ouvia os gritos dos orgasmos
pequenos, quadris grandes, coxas professores na escola noturna, da Mulher em Grafite e só para-
grossas. Nu artístico, escultural e da incompreensão da família. E vam quando dormiam, ou quando
maravilhosa. Ao lado dela, tam- ela o ouvia, dava conselhos. ele precisava fazer suas necessi-
bém traçou delicadas rosas em “Fique comigo, só comigo”. dades fisiológicas, muitas vezes,
seu colo. Ela seria sensível. Ele já a amava. Amava e senti- excretadas ali mesmo, ao lado da
Pegou o resto da mesada e a-se amado. A mulher, a moça cama. Ele não queria deixá-la
comprou moldura e colocou-a em sem nome, a figura inventada, nem por um minuto.
um quadro na parede em frente à feita em grafite, existiria en- Um dia, inesperadamente, sem
cama. Presa ao papel, a Mulher quanto ele quisesse. Isso era im- que pudesse perceber nenhum
em Grafite era uma deusa, uma portante. Porque, poderoso, a sinal, eles o traíram. Pai, mãe,
rainha, uma mulher singular. Aci- irmã, desesperados, invadiram o
ma de todas as outras. Pregada à quarto. Tentaram quebrar a mol-
folha, a diva nunca teria rugas, ou dura, rasgar o desenho. Tirá-la
celulite. Não ficaria menstruada dali à força. Mas ele a defendeu e
ou teria TPM. Seria perfeita. espancou a todos. Tirou sangue
No início, a mãe, o pai, a irmã da boca da irmã, da mãe e deixou
acharam graça. Então, ele tinha hematomas no pai.
aptidão para artista! Apesar de Trouxeram pastor, benzedeira,
tantos detalhes, ficara bonito o padre e exorcista. Chamaram um
quadro! Mas, com o passar do psicanalista e ele foi dopado e a-
tempo, a família começou a odiar marrado em camisa de força. Le-
aquela pintura. Ficou intolerável a vado a uma clínica, ele ficou em
obsessão que aquele desenho outro quarto, sem ela, com a pa-
despertava nele. A empregada rede nua, branca, sem vontade de
não podia limpar. Só as mãos do viver, exaurido de forças para lu-
garoto podiam tocar aquela ima- tar.
gem. Voltou para casa com um diag-
No início, o adolescente acorda- nóstico de esquizofrenia. Passou a
va cedo, estudava e trabalhava tomar remédio de tarja preta com
normalmente. Mas os telefonemas hora marcada. Acharam melhor
dos amigos foram cessando. Nada deixá-lo quieto dentro do quarto.
de festas, farras, porres. Chegava José Arcanjo
Não ousaram, por sugestão médi-
cedo. Introspectivo como nun- ca, tirar o desenho da parede. A
ca havia sido antes. Antes de qualquer minuto, ele sentia que inimiga da família ficou ali. Gro-
dormir, ele que antes, nunca ou- podia destruí-la, reduzi-la a pe- gue, o semideus estava alheio a
sara colocar música alta, trancava daços, quebrá-la em cacos. Ele tudo.
a porta e ligava o rádio a um vo- era senhor da existência dela. Se Os remédios matavam seu de-
lume intolerável. A família recla- tinha sido anjo da vida, poderia sejo. O tempo já não existia, mas
mava e os vizinhos também bati- ser o demônio da morte. Do alto ele não estava nem aí. De dentro
am à porta. Queriam chamar a de seus 17 anos, ele era, final- do vidro, a moça recitava poemas.
polícia. Afinal, todos estavam can- mente, deus. Zelosa, velava o sono de seu
sados e precisavam dormir. Os meses passaram e o ado- grande amor. Desenhada em pa-
Mas ele, o amante, precisava do lescente abandonou a escola e o pel, livre, dentro da moldura e
barulho. Para manter seu segredo emprego. Deixou de tomar ba- protegida pelo vidro da poeira, do
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desgaste do tempo, das doenças e ra para ser sua mulher. Fêmea linda. Os mamilos de seus seios
da morte, ela vivia. dele. estavam mais cheios e negros.
Vencera. Agora, ela era a deusa. Agora, ela sabia. Seria a pri- Sem que ninguém percebesse, vez
A vida daquele rapaz dependia da meira e a única. Embora as for- por outra, aquela Mulher em Grafi-
existência dela. E isso era impor- mas perfeitas continuassem ele- te, presa à moldura, suspirava.
tante. Podia rasgá-lo, mesmo que gantes, sua beleza desabrochava Suas mãos alisavam com cuidado
de papel ele não fosse. Podia des- cada dia um pouco mais. Os o- extremoso o ventre que teimava
truí-lo a cacos de ossos, músculos lhos brilhavam. A pele, mesmo em não parar de crescer...
parcos e sangue. Mas não. Nasce- de papel, ficava cada vez mais
Cássia Venezuela
São Paulo - SP
Negríndia
Carla Mello
Florianópolis - SC
Sou índia, sou bugra, sou ne- Sou aquela bugra que conse- Sou a bruxa que desperta em
gra, sou bruxa, sou deusa, sou guiu se desvencilhar do homem cada mulher para oferecer a magia
mulher! que quis lhe assediar; da vida oculta a seu favor.
Sou aquela que suportou o peso Sou aquela negra que conse- Sou a deusa que se ativa em
do mundo nos ombros e sorriu guiu correr pela vida para não ser cada instante para fazer acontecer
com amor para o próximo, mesmo estuprada; o milagre de viver.
chorando na alma. Sou a índia, sou a bugra e sou Sou a sábia índia, a bugra selva-
Sou aquela índia que conseguiu a negra que, mesmo violentadas, gem e a experiente negra velha
fugir pelas florestas para não ser ergueram suas cabeças e segui- que habitaram pelos séculos e sé-
violentada; ram adiante! culos com suas divindades relu-
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zindo sobre o mundo dos homens. como a mulher que me tornei: antecederam e darei forças a to-
Sou eu quem ama e quem per- negríndia e dona de mim, com das aquelas que virão depois de
doa a mim e aos outros. minhas identidades múltiplas mim!
Sou eu quem aprende e quem borbulhando no poder de ser Essa sou eu, a índia de alma
muda a rota da minha vida. quem eu quiser! negra que escreve palavras de re-
Sou eu quem tem um abraço e Sou aquela que jamais baixará sistência para lembrar a todas as
um beijo para oferecer como re- a cabeça novamente pois somos mulheres que nada mais será em
compensa a quem merece. muitas, e assim sendo, tenho a vão!
Sou eu quem guia a minha vida força de todas aquelas que me
Maria Fulô
Camila de Matos Silva
Cordisburgo - MG
Maria Fulô era uma mulher ho- longas histórias e fingia ser suas chuvosa ficaram no aconchego do
nesta – vivia ali ninguém sabia di- personagens. Inventou uma vez a lar.
zer desde quando. Havia carregado história de mulher que virou O que não sabiam era que no
muito feixe de lenha e muita lata flor... outro dia acordariam com o céu
d’água na cabeça quando criança, Alguém sempre batia à porta e em fúrias. O arraial em águas – o
quando jovem, quando adulta, deixava lá um prato de comida, sol desapareceu e o céu parecia
quando velha... uma broa ou um pedaço de bolo. derreter. Tudo começou a morrer.
Agora, ainda mais velha Maria Em ocasiões especiais deixavam A morte vinha certa e visitava pri-
Fulô não conseguia mais fazer também a Santa. Maria Fulô tinha meiro as plantações, depois os bi-
quase nada... Precisava sempre da aprendido a rezar o Rosário, isso chos – depois os homens...
ajuda dos vizinhos que passavam fazia muito tempo, agora ela con- As mulheres, por algum motivo
por ali, ou iam apenas para saber ta às contas do Rosário e passa não recebiam visitas e apenas al-
como ela estava. horas a fio admirando a santa, gumas crianças sentiam o doce frio
Os filhos, perdidos no mundo, tão linda... da morte.
perdidos no tempo... nunca mais Um dia o arraial acordou com o Pois fim, o sol apareceu vestido
apareceram para visitar Fulô. som da chuvinha preguiçosa, as em brancas nuvens... E no meio
Apesar de tudo ela estava sem- pessoas quiseram ficar mais um do ar Maria Fulô, com seu Rosário
pre muito ocupada, passava horas pouco na cama. As mulheres le- na mão. Em um átimo de segundo
olhando para o céu e repetindo vantaram e foram fazer o café, no se lembrou de sua avó – levantou
coisas. Ainda se lembrava de tre- fogão à lenha, enquanto os ho- os braços e foi inundada pela luz
chos que sua avó cantava. Sua avó mens tiravam os feixes de lenha fêmea – amarela.
tinha vindo de África em um navio dos pingos de chuva. Neste dia Maria Fulô desfez-se em flores e
grande – numa tumba sem flores. nenhum dos habitantes foi traba- no céu um arco íris sem fim se fez
Às vezes também, Maria criava lhar, inundados por uma preguiça no ar.
poemas
Existiam dois Rei-
nos. O do Norte cha-
Prenhe de amor
Inerte, entendeu, finalmente:
Coração não ambíguo, partido: Eram fogo e paixão presentes.
Prenhe de puro amor. Desejos intensos de oscular...
Traços tênues de angústia, E rompantes íntimos em deva-
Reflexo do amor ígneo. neio.
É tão gentil ser a casa do outro. Das cinzas vertidas dos prédios em
Ser lugar de conforto. De falar bai- chamas,
xinho, juntinho. Eu renasço.
Das torres altaneiras que juntas
Ser morada segura. caíram,
Ser raiz profunda em tempos de Eu renasço.
tempestades. Sempre nascerei de novo, após
Cada soluço.
É tão gentil ser a casa do outro. Após cada pausa, e diante até dos
Ser flor no cantinho do olho. destroços.
Ser silêncio cheio de palavras. Sim. Eu renasço.
Até mesmo dos tombos que a
É tão gentil ser a casa do outro. Vida me der.
Ser mãos dadas no medo. Beijo de Dos ocasos vindouros que a
passarinho. Caminho certo do tem- Existência trouxer.
po. Eu ressurjo, como fênix,
E não desapareço, jamais, jamais.
Kelly Mayrink
Belo Horizonte - MG Maroel Bispo
Feira de Santana-BA
C Matos
O prazer da vida
Sagittarius
Livre, ancião,
homem animal
Quiron imortal.
Filho de Chronos
o tempo em ti habita.
Pai da música
o ritmo nasce em ti.
Na flecha disparada
pelas mãos de Hércules
nas forças de Zeus
surgem doces estrelas.
Via Láctea,
Constelação
Guia de tantas culturas
Curandeiros de males
menos os seus.
Deus arqueiro
viajante eterno
criatura vital
Laureatti
dentro de mim.
São Paulo - SP
Franciele Guarienti
Palhoça-SC
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Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.
Josafá
Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
Para os que Virão
e com Prometeu refazer
o fígado Como sei pouco, e sou pouco,
- como era antes. faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Catar palavras cortantes
Sabendo que não vou ver
José Arcanjo no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras o homem que quero ser.
Catando os cacos do caos o brilho do diamante. Já sofri o suficiente
É um quebra-cabeça? para não enganar a ninguém:
Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto Então principalmente aos que sofrem
o cacto de cabeça quebrada vamos na própria vida, a garra
- como se fosse flor. sobre a parede do nada da opressão, e nem sabem.
Catar os restos e ossos deixar gravada a emoção
Não tenho o sol escondido
Cacos de mim
da utopia no meu bolso de palavras.
Cacos do não
como de porta em porta Sou simplesmente um homem
o lixeiro apanha Cacos do sim
Cacos do antes para quem já a primeira
detritos da festa fria
Cacos do fim e desolada pessoa
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida Não é dentro do singular - foi deixando,
com os destroços do dia. nem fora devagar, sofridamente
embora seja dentro e fora
Catar a verdade contida de ser, para transformar-se
no nunca e a toda hora
em cada concha de mão, que violento - muito mais sofridamente -
como o mendigo cata as pulgas o sentido nos deflora. na primeira e profunda pessoa
no pêlo do plural.
- do dia cão. Catar os cacos
do presente e outrora Não importa que doa: é tempo
Recortar o sentido
e enfrentar a noite de avançar de mão dada
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso com o vitral da aurora. com quem vai no mesmo rumo,
com a inconsútil emenda mesmo que longe ainda esteja
Affonso Romano de Sant'Anna
à vista. de aprender a conjugar
o verbo amar.
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.
Thiago de Mello
Henfil
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Miguel Almir
Poliana Bastos
C Matos
Josafá