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ÉTICA CRISTÃ E

RESPONSABILIDADE
SOCIAL

Professor Me. Maurício José Silva Cunha


Revisor Técnico: Lissânder Dias do Amaral

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Diretoria Executiva
Chrystiano Mincoff
James Prestes
Tiago Stachon
Diretoria de Graduação e Pós-graduação
Kátia Coelho
Diretoria de Permanência
Leonardo Spaine
Diretoria de Design Educacional
Débora Leite
Head de Produção de Conteúdos
Celso Luiz Braga de Souza Filho
Head de Curadoria e Inovação
Jorge Luiz Vargas Prudencio de Barros Pires
Gerência de Produção de Conteúdo
Diogo Ribeiro Garcia
Gerência de Projetos Especiais
Daniel Fuverki Hey
Gerência de Processos Acadêmicos
Taessa Penha Shiraishi Vieira
Gerência de Curadoria
Giovana Costa Alfredo
Supervisão do Núcleo de Produção
de Materiais
Nádila Toledo
Supervisão Operacional de Ensino
Luiz Arthur Sanglard
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Designer Educacional
Agnaldo Ventura
Maringá-PR: Unicesumar, 2018. Reimpresso em 2024.
200 p. Projeto Gráfico
“Graduação - EaD”. Jaime de Marchi Junior
José Jhonny Coelho
1.Ética. 2. Responsabilidade 3. Cristã 4. EaD. I. Título.
ISBN 978-85-459-1029-9
Arte Capa
CDD - 22 ed. 174 Arthur Cantareli Silva
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Editoração
Ana Eliza Martins
Qualidade Textual
Cintia Prezoto Ferreira
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Ilustração
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Marta Kakitani
Impresso por:
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
transformamos também a sociedade na qual estamos
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns
e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis-
cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe
de professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
AUTOR

Professor Me. Maurício José Silva Cunha


Mauricio Cunha, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal
do Paraná, com especialização em Gestão de sistemas e serviços de saúde, é
Engenheiro Agrônomo (UFPR), Administrador de empresas (FAE) e professor
universitário. Atuou como missionário em diversos países, tendo também
trabalhado em gestão pública como secretário municipal de saúde, ação
social e governo. É coach de empreendedores sociais, e co-autor de dois livros:
O Reino entre nós - transformação de comunidades pelo evangelho integral e
Cosmovisão Cristã e Transformação, ambos pela editora Ultimato. É fundador
e presidente do CADI - Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral /
Brasil, coalizão de 12 organizações que atuam em 9 estados brasileiros, com
cerca de 18.000 beneficiários. Atuou como Diretor Nacional de Programas da
Visão Mundial para o Brasil. É membro da equipe técnica que está conduzindo
o Diagnóstico da Criança e do Adolescente de Curitiba. Foi o representante
da sociedade civil na Cúpula do G20 (Cannes 2011), é assessor da Aliança
Evangélica Brasileira para o tema “Igreja e Políticas Públicas” e Conselheiro
Nacional de Assistência Social.

Plataforma Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4411366039454659>.


APRESENTAÇÃO

ÉTICA CRISTÃ E RESPONSABILIDADE SOCIAL

SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá, caro(a) aluno(a)!
Você está prestes a embarcar em uma jornada fascinante pelos caminhos de uma fé
cristã engajada com a ética social e a transformação integral das pessoas. Talvez para al-
guns seja um trajeto totalmente novo, já que nem sempre nossas convicções cristãs são
traduzidas em bem comum a todos, mantendo-se relevante apenas em uma dimensão
individual da fé. No entanto, como aprenderemos neste livro, a vida com Cristo é abun-
dante e rica em princípios e fundamentos para sermos “sal e luz” em todas as dimensões
da vida, inclusive, no serviço aos mais vulneráveis social e economicamente.
Esta publicação une, integra e conecta teoria e prática, pois o “o que” é tão importante
quanto o “como” diante do objetivo de tornar concreta nossa fé. Como disse Tiago, em
seu livro bíblico homônimo: “a fé sem obras é morta”, (Tg 2:17). Por isso, queremos dar
conceitos, mas também ferramentas para os cristãos realizarem intervenções intencio-
nais, estratégicas e planejadas, sem cair no “tecnicismo” vazio ou na superficialidade do
chamado “marketing social” sem consistência.
Na Unidade I, você aprenderá, principalmente, que a missão cristã tem a natureza de
transformação integral e que ela pode, sim, influenciar todas as áreas da vida, porque
cremos que Deus se preocupa com toda a vida. Na Unidade II, aprenderemos os funda-
mentos teóricos de uma cosmovisão realmente cristã, que coloca-se como “óculos” para
ler o cenário da realidade complexa dos nossos dias. Na Unidade III, o tema principal é
ética social e suas relações com a igreja diante dos desafios contemporâneos, mas não
somente isso; vamos, também, aprender sobre o conceito bíblico de “diaconia”, espiritu-
alidade e direitos humanos, ressaltando a importância de sermos igrejas cristocêntricas.
Na Unidade IV, vamos conversar sobre Políticas Públicas – um tema fundamental em
uma nação democrática, mas ainda injusta como o Brasil é. Quais os princípios fundan-
tes sobre a responsabilidade social presentes no Antigo Testamento? Quais as implica-
ções sociopolíticas no significado do Evangelho e da prática missionária da igreja? O
que é Advocacy? Vamos conhecer o estudo de caso de uma igreja que nasceu igreja,
mas que estendeu suas ações no âmbito das políticas públicas de forma bem-sucedida.
E, por fim, a Unidade V traz uma série de ferramentas para iniciar-se - e desenvolver – um
programa de intervenção social relevante, sustentável e que gere transformações inte-
grais nas vidas das pessoas e das comunidades.
Como você pode perceber, este livro traz elementos importantes para pensar-se uma
ordem social que reflita o caráter de justiça de Deus, bem como sugestões práticas para
que a Igreja de Cristo cumpra seu papel num mundo em crise e necessitado de ações
transformadoras.

Aperte os cintos e vamos em frente!


09
SUMÁRIO

UNIDADE I

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA

15 Introdução

16 Introdução a uma Teologia Bíblica Integral

19 Chave Hermenêutica e Equívocos Interpretativos

26 O Dualismo Grego e a sua Influência na Missiologia da Igreja

32 As Implicações do Dualismo Grego para uma Visão das Vocações Humanas

34 O Senhorio de Cristo Sobre os Diferentes Domínios Sociais

41 Considerações Finais

46 Referências

47 Gabarito

UNIDADE II

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO

51 Introdução

52 Cosmovisão: Conceito e Relevância

56 Elementos Essenciais da Cosmovisão Cristã e sua Relação com a Ética Social

64 Construímos Nossas Sociedades Baseados nos Deuses que Cultuamos

68 Justiça Social e Compaixão Bíblica

73 Considerações Finais

78 Referências

79 Gabarito
10
SUMÁRIO

UNIDADE III

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL

83 Introdução

84 Ética: Conceito e Fundamentos Filosóficos

90 Igreja e Ética Cristocêntrica e Responsabilidade

93 Ética, Teologia e Espiritualidade

95 Diaconia, Cidadania e Ação Evangelizadora

100 Ética, Igreja e Direitos Humanos

108 Considerações Finais

112 Referências

113 Gabarito

UNIDADE IV

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA


ESFERA PÚBLICA

117 Introdução

118 Antigo Testamento e Ordem Social

123 O Significado Político do Evangelho

129 Advocacy e Incidência em Políticas Públicas

133 Advocacy: Níveis, Estratégias e Princípios Orientadores


11
SUMÁRIO

137 Estudo de Caso: uma Experiência de Inserção em Políticas Públicas a Partir


da Igreja Local: o Caso da Associação Beneficente “Encontro com Deus”, de
Curitiba

145 Considerações Finais

150 Referências

151 Gabarito

UNIDADE V

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E


COMUNITÁRIO

157 Introdução

158 Princípios Orientadores na Atuação Social

163 Diagnóstico Comunitário Participativo

168 Diagnóstico Organizacional

172 Programa de Intervenção Social

176 Monitoramento e Avaliação

179 Mensuração de Impacto

186 Considerações Finais

192 Referências

193 Gabarito

195 Conclusão
Professor Me. Mauricio José Silva Cunha

INTEGRALIDADE E MISSÃO

I
UNIDADE
TRANSFORMADORA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender a fundamentação bíblico-teológica da integralidade da
Missão e da responsabilidade social da Igreja.
■■ Adquirir uma visão abrangente e integrada das implicações
missiológicas do conceito de Reino de Deus como tema central das
Escrituras, em contraposição ao dualismo grego.
■■ Entender o conceito de esfera de soberania e o modelo reformado de
sociedade.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Introdução a uma teologia bíblica integral
■■ Chave hermenêutica e equívocos interpretativos
■■ O Dualismo Grego e a sua influência na missiologia da Igreja
■■ As implicações do dualismo grego para uma visão das Vocações
Humanas
■■ O senhorio de Cristo sobre os diferentes domínios sociais
15

INTRODUÇÃO

Olá, seja bem-vindo(a)!


Nesta unidade, você vai aprender sobre a fundamentação bíblico-teológica
da integralidade da missão e da responsabilidade social da Igreja por meio da
compreensão de Reino de Deus. Para tanto, vamos explicar como a “chave her-
menêutica” da realidade depende da compreensão do conceito de Reino de Deus
como tema central das Escrituras. Nesse sentido, você será instigado a compre-
ender a abrangência do Governo de Deus.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Faremos uma abordagem sobre o dualismo grego na dicotomia: sagrado


versus profano, sua influência sobre o pensamento ocidental - o que gerou o cha-
mado gnosticismo evangélico - e nossa maneira de pensar a ordem social e a
missão da Igreja, em contraste com os valores da Reforma Protestante e o ensino
da vida Coram Deo (diante de Deus ou perante a face de Deus).
Apresentaremos, também, as implicações desses conceitos e da Integralidade
do Reino no campo das vocações humanas, introduzindo o tema da Teologia
Vocacional, como componente fundamental do exercício da ética cristã e da
ação dos cristãos na sociedade.
A partir dessa conceituação, discorreremos sobre o modelo de sociedade a
partir da filosofia reformada e sua proposta de reforma social, ao abordarmos o
conceito de esfera de soberania ou domínio social. Desta forma, forneceremos
as bases para a atuação dos cristãos na sociedade, no exercício das suas vocações
e nos diferentes campos sociais, como resultado da ética cristã e da responsabi-
lidade social da Igreja, no sentido mais abrangente.
Assim, nesta unidade, propomos o rompimento paradigmático com a visão
de mundo do dualismo grego e sua derivação para o gnosticismo evangélico,
abrindo espaço para uma teologia bíblica integral como sólido fundamento de
uma ética cristã e de responsabilidade social da Igreja. Somente a partir de uma
sólida base bíblico-teológica é que poderemos inferir o uso de princípios, méto-
dos, técnicas e estratégias no exercício da responsabilidade social da Igreja.

Introdução
16 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
INTRODUÇÃO A UMA TEOLOGIA BÍBLICA INTEGRAL

Ao falarmos de ética cristã e responsabilidade social da Igreja, a nossa base


orientadora, tanto a nível conceitual quanto prático, deve ser a partir de uma
fundamentação bíblico-teológica. O que as Escrituras têm a nos informar sobre
isso? Qual é a base e o fundamento para a ética cristã e a ação cristã na sociedade?
Qualquer resposta a essas perguntas que seja diferente de um sólido fun-
damento bíblico será reducionista, ineficaz e frágil. Temos visto engajamentos
de igrejas na ação social com base em um desencargo de consciência ou, mui-
tas vezes, o envolvimento é meramente um gancho para o evangelismo. Outras
vezes, a igreja age, ressentindo-se do Governo não fazer a sua parte (como se
a nossa Missiologia pudesse ser baseada apenas em alguma coisa que alguém
deixou de fazer). No campo mais prático, as ações, na maioria das vezes, res-
tringem-se a atividades de cunho assistencialista, mais voltados para o doador
do que para o beneficiário, sem causar impactos transformadores e sustentáveis
efetivos, aumentando a relativa irrelevância social da Igreja.

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


17

Certamente, uma das razões desta ineficácia e irrelevância se deve a uma


carência de fundamentação bíblico-teológica, a partir de uma visão cristã de
mundo com base no Cristianismo histórico, na tradição da Igreja em sua ação
social transformadora e nos ensinamentos dos pais da Igreja. Será que temos com-
preendido de fato a nossa responsabilidade ética e social diante de um mundo
caído, distante de Deus, e de tantos problemas e mazelas sociais?
Se a nossa fé não dá conta da vida real, das múltiplas necessidades das pes-
soas em seus dilemas e anseios mais profundos, estamos brincando de uma
ilusão, pois a vida real exige de nós respostas concretas para as questões do ser
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

humano e da sociedade em toda a sua complexidade. Isto é, não é opção para a


Igreja engajar-se no mundo sem ser do mundo.
Uma teologia integral, em resposta ao fundamentalismo raso que não dá
conta do nosso contexto social e cultural, vai muito além de uma preocupa-
ção mera com a salvação das almas. Embora a Verdade revelada de Deus seja
supracultural e supratemporal, nossa teologia e nossa missiologia devem ser
adequadas ao contexto, uma vez que a elaboração desta verdade se dá a par-
tir da realidade social.

“Não há um só centímetro, em todos os domínios da nossa vida humana,


sobre o qual Cristo, o Senhor de tudo, não clame: É meu!”
(Abraham Kuyper)

Introdução a uma Teologia Bíblica Integral


18 UNIDADE I

Recebemos, em grande medida, um cristianismo acrítico em termos de diá-


logo social, com a ausência de uma resposta cristã elaborada acerca da nossa
realidade e das nossas mazelas sociais. Nossa teologia integral nasce do questio-
namento do reducionismo que coloca a fé cristã apenas como uma experiência
subjetiva, religiosa, individual e mística. A fé cristã certamente envolve tudo
isso, mas não se restringe apenas a isso. O Cristianismo bíblico provê os ele-
mentos fundamentais e fundantes para o estabelecimento de uma visão de
mundo, ou seja, para o discipulado de indivíduos, comunidades e nações, em
todos os seus aspectos e dimensões.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A Missão da Igreja deve ser, portanto, mais do que o povoamento do céu, a
tradução da ação de Deus para o discipulado de nações. A fé deve dar conta da
realidade, urge a compreensão de uma missiologia integral como fundamento
efetivo para nossa ética e nossa responsabilidade diante da sociedade.
Essa compreensão deve nos levar a uma ação mais efetiva e transformadora,
fundamentando e orientando aquilo que, muitas vezes, já acontece na prática de
forma amadora e intuitiva. Vemos indivíduos cristãos e igrejas empreendendo
um esforço grande para, de alguma forma, impactar a sua comunidade, ou um
grupo de pessoas em condições de vulnerabilidade ou marginalidade.
Os missionários no campo transcultural, ou não, estão envolvidos na mais
ampla gama de atividades. Eles estão plantando igrejas, mas estão também ensi-
nando a plantar, construindo escolas, lutando contra injustiças, trabalhando em
centros de saúde etc. O campo, a vida real, exigem da Igreja e do seu povo um
engajamento integral, quer ela queira, quer não.

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

CHAVE HERMENÊUTICA E EQUÍVOCOS


INTERPRETATIVOS

A Bíblia não é um livro comum. Ela é uma biblioteca, um conjunto de 66 livros


escritos por pessoas inspiradas pelo Espírito Santo, nos originais aramaico,
hebraico e grego, num intervalo de milhares de anos e em contextos totalmente
diferentes do nosso. Embora sejamos defensores do princípio reformado do livre
exame das escrituras, concluímos que a leitura e a apreensão da verdade e bíblica
é uma tarefa complexa, que requer conhecimento e critério.
Por essa razão, muitas vezes, a Bíblia tem sido mal interpretada, chegando,
inclusive, a ser fonte de todas as heresias. Ela foi utilizada para fundamentar o
apartheid, por exemplo, ou para o sistema escravocrata. Atualmente, sacrali-
zando o sistema capitalista, ela tem sido usada como amuleto para a prosperidade
material. A Bíblia tem sido colocada a serviço da cultura, dos valores do nosso
tempo, de um sistema específico de crenças, para fundamentá-lo e justificá-lo.
Sem uma ortodoxia e uma chave hermenêutica ou interpretativa adequada, con-
seguimos moldar a Bíblia ao que queremos.

Chave Hermenêutica e Equívocos Interpretativos


20 UNIDADE I

Sempre que nos aproximamos da Bíblia, usamos óculos e isso ocorre sempre
com todos nós. Não estou me referindo aos óculos físicos, mas aos óculos da
nossa cultura, dos nossos valores, da nossa família, e da experiência cultural,
religiosa e subjetiva que acumulamos.
Podemos chamar esses óculos de cosmovisão ou visão de mundo, e todos
nós os usamos constantemente, pois a ausência deles significaria a ausência de
sentido e significado, ou seja, um mergulho no caos. Esses óculos fazem a media-
ção entre conteúdo e o que absorvemos e interpretamos dele.
Ao fazer essa mediação sócio-analítica, eles são encarregados de conferir

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sentido ao todo da revelação. Como estamos continuamente em busca de sen-
tido e significado, não conseguimos ficar sem os óculos. Não conseguimos nos
despir totalmente deles, pois tirar os óculos significaria deixar de ser, o cair no
caos ou o completo esvaziamento. Seja como for, os óculos estarão sempre lá,
moldando a nossa maneira de ver, perceber e interpretar.
Podemos usar o livro do Êxodo como exemplo: a história de um povo opri-
mido e de um povo opressor. O relato do Êxodo nos mostra a impressionante
saga de libertação do povo de IsraeI rumo à Terra Prometida. Ao lê-lo, isso pode
fazer tanto sentido para alguém, em seu contexto, que é utilizado como chave
hermenêutica para o todo da revelação. A tarefa primordial de Deus passa a ser
libertar o oprimido do seu opressor.
Jesus se torna um mero ativista sociopolítico, sempre privilegiando o cui-
dado dos pobres e oprimidos. Começamos a transformar um princípio relativo
e fundamental em princípio absoluto, orientador de toda a Verdade, em res-
posta à realidade social que nos cerca. Nasce uma teologia ou uma missiologia
e, neste caso, podemos citar a Teologia da Prosperidade, que teve um impacto e
uma contribuição importante, especialmente na América Latina, apresentando
importantes contribuições para a compreensão da Igreja sobre sua Missão e sua
relação com a cultura, mas que, como sistema teológico completo, orientador de
mundo, entendemos ser insuficiente e um equívoco hermenêutico.
No outro extremo, um exemplo poderia ser relacionado aos textos que falam
sobre prosperidade. Sabemos que a Bíblia apresenta um modelo holístico de
prosperidade, e que há diversos textos que abordam essa questão, inclusive sobre

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


21

a prosperidade material. Num contexto como o nosso, de cultura humanista e


secularizada, a classe média integra um sistema capitalista na busca de ascensão
social e melhoria das condições materiais de vida e da capacidade de consumo.
Torna-se fácil colocar a Bíblia a serviço dessa ideologia. A evidência da bên-
ção divina para ser a bênção material, a Palavra é utilizada para não só justificar,
mas fundamentar e fortalecer o sistema cultural vigente, sacralizando o capita-
lismo contemporâneo e colocando os cristãos e a Igreja à mercê dos ventos da
nossa época. Com isso, transformamos Deus em um Papai Noel cósmico, que
existe quase unicamente para me prosperar e me abençoar, e cometemos grave
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

equívoco hermenêutico, causador de muitos problemas e disfunções no exercí-


cio da nossa fé e da nossa Missão.
Em outro exemplo, podemos pensar nos sinais, prodígios e maravilhas relata-
dos em numerosos textos da Bíblia como chave hermenêutica e interpretativa das
Escrituras, esperando que as manifestações sobrenaturais do poder de Deus sejam
o que define o cerne da Sua ação e da nossa relação com Ele, devendo acontecer
em toda reunião e em todo culto. Novamente, nasce um equívoco hermenêutico.
Diante disso, então, qual deveria ser a chave hermenêutica e interpretativa
das Escrituras? Que óculos devemos usar quando nos aproximamos da Bíblia
para compreender a revelação de Deus? Em outras palavras: qual o tema central
das Escrituras? Qual o assunto mais ensinado por Jesus Cristo? Qual o tema cen-
tral da maior parte das parábolas? Qual a razão última da existência da Igreja,
a chave da sua missão?

O REINO DE DEUS COMO CHAVE HERMENÊUTICA DAS


ESCRITURAS

A compreensão mais fundamentada acerca da integralidade da missão, ética


cristã e responsabilidade social da Igreja se baseia numa compreensão acerca
do próprio reino de Deus, sua definição e abrangência. Poderíamos dar muitas
definições de reino de Deus. Aqui, utilizaremos uma definição simples, porém
profunda e abrangente.

Chave Hermenêutica e Equívocos Interpretativos


22 UNIDADE I

Entendemos o reino de Deus como todo lugar ou todo ambiente onde Deus Reina.
O reino de Deus é o governo de Deus, a plena manifestação da Sua vontade.
Afirmar que o reino de Deus é chegado a nossa vida é afirmar que o Governo de
Deus chegou a nós. Isso abre para a possibilidade de ampliar o escopo da nossa
Missão, pois passamos a entender que o reino de Deus vai além da própria igreja,
assim como as implicações sociais deste Governo.
Ao nos ensinar a orar (seja feita a Tua vontade, assim na terra como nos céus
- Mateus 6:10), Jesus nos ensina que o reino de Deus está associado à vontade
de Deus, e que a manifestação desse reinado é terrena, ou seja, embora seja um

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
reino celestial, seus sinais se manifestam na Terra, criação sua, para a Glória de
Deus. O campo de batalha é aqui!
O reino de Deus compreendido como vontade, governo e domínio de Deus
nos leva a perguntar: então, porque a Igreja existe? Podemos dar infinitas res-
postas a essa pergunta: ela existe para proclamar, servir, amar. Porém, ao final
do dia, a razão última da existência da Igreja é: para que Deus governe! Para isso
damos o dízimo, fazemos missões transculturais, temos ministério de casais,
criamos as nossas organizações... a sinalização do reino é a razão da existência
da Igreja, portanto, o cerne da sua Missão.
O reino de Deus é a volta do governo sobre todas as coisas criadas para as
mãos de quem nunca deveria ter saído. Diferenciamos o Governo de Deus da
Soberania de Deus. Sua soberania permanece para sempre, mas em sua pró-
pria soberania Deus deu a liberdade ao homem como cocriador e cogestor da
criação, e este, ao pecar, distanciou-se de Deus, levando toda a criação consigo.
Deus é soberano, mas o Governo dEle ainda não está estabelecido sobre toda
a Criação. A obra de Deus consiste em restaurar todas as coisas, reconciliar con-
sigo mesmo toda a criação, que está em rebelião contra Ele. Esta é a essência do
relato bíblico, desde Gênesis até Apocalipse.

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


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CRIAÇÃO - QUEDA - REDENÇÃO

A história bíblica pode ser resumida na camada tríade bíblica teológica refor-
mada: criação, queda e redenção. É como se, para entender um enredo que é
complexo, apontássemos três grandes acontecimentos em que todos os elementos
do enredo devem se enquadrar e fazer sentido, à luz destes três acontecimentos.
A Bíblia é a história de uma Criação, de uma Queda e de uma Redenção.
Sabemos que Deus é o criador de todas as coisas. O argumento lógico é que, se
Deus é o criador de todas as coisas, não pode haver nenhum aspecto da cria-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ção sobre o qual ele não tenha interesse ou não deva governar. Em nossa ênfase
soteriológica, esquecemos que a Criação toda pertence a Deus, que Ele ama a
Sua criação, e que a Criação, em si, é boa.
Contudo, a Bíblia deixa claro, no relato de Gênesis, que os plenos desígnios
de Deus não se cumpriram. A liberdade do homem e o seu pecado abriu espaço
para a manifestação do segundo elemento da tríade: a Queda.
Quais os aspectos da Criação foram afetados pela Queda? Esta é uma per-
gunta muito importante, pois o terceiro elemento (a Redenção), só faz sentido
a partir do segundo (a Queda). Só é necessário haver uma Redenção porque
houve uma Queda e, por isso, a compreensão da Queda, muitas vezes negligen-
ciada, é tão importante.
Entendemos que todos os elementos da Criação foram afetados pela queda,
caracterizando o conceito reformado de “depravação total”. O que isso quer
dizer? Este conceito não diz respeito à intensidade do pecado, mas à sua ampli-
tude. Todas as dimensões de Criação foram afetadas pelo pecado. Tudo caiu,
logo tudo pode ser redimido. Nesse sentido, a Queda não afetou apenas a alma
humana, como muitas vezes tem sido a ênfase da nossa teologia. Um texto que
nos ajuda a compreender isso é o de Romanos 8:19-21:
A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de
Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas
por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação
será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos
filhos de Deus (Romanos 8:19-21).

Chave Hermenêutica e Equívocos Interpretativos


24 UNIDADE I

Em nossa ênfase reducionista, afirmamos que nossa missão como Igreja é levar
pessoas a um relacionamento com Deus, ensinando-os a ser apenas religiosos.
Embora isso não seja errado, é incompleto, ou seja, não abarca toda a verdade
bíblica. A redenção, por definição, tem que ser maior que a Queda. Essa compre-
ensão é radical e muda a nossa proposta missiológica. Aqui está o fundamento
da nossa responsabilidade social e da integralidade da Missão.
Esta verdade está permeada em toda a Escritura, mas o texto de Colossenses
1:15-20 a deixa ainda mais evidente:
Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação;

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as vi-
síveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados,
quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de
todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do corpo, da igreja.
Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as
coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda
a plenitude que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio
dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra,
quer nos céus (Colossenses 1:15-20).

Vemos aqui que, em seis versos, quando fala da pessoa e da obra de Cristo, o
apóstolo Paulo apresenta oito vezes a noção de totalidade ou de integralidade, e
o versículo 20 evidencia a redenção de todas as coisas tocadas pelo pecado. Da
mesma forma, o discurso de Pedro no templo, em Atos 3:18-21, destaca a inte-
gralidade da obra redentora de Cristo:
Mas Deus, assim, cumpriu o que dantes anunciara por boca de todos
os profetas: que o seu Cristo havia de padecer. Arrependei-vos, pois, e
convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados, a fim de que, da
presença do Senhor, venham tempos de refrigério, e que envie ele o Cris-
to, que já vos foi designado, Jesus, ao qual é necessário que o céu receba
até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por
boca dos seus santos profetas desde a antiguidade (Atos 3:18-21).

Na mesma linha, no texto de Efésios 1:10, podemos ver a consumação do pleno


propósito de Deus, que trará de volta todas as coisas e as colocará em ordem, isto
é, debaixo do senhorio cósmico de Cristo. Quando Paulo diz: “de fazer conver-
gir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu,
como as da terra”, ele está declarando que todas as coisas encontram sua exis-
tência, propósito e significado em Cristo.

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


25

A Missio Dei, ou Deus em Missão (BOSCH, 2002), é a restauração de todas as


coisas caídas. Portanto, que outra missão há, senão uma missão integral? Somos
cooperadores com Deus na Obra de reconciliação de todas as coisas! Deus está
em Missão. Deus está reconciliando consigo mesmo todas as coisas. Todos os
domínios sociais, estabelecidos por Ele na Criação, e que foram integralmente
afetados pela Queda, devem ser entregues ao Governo de Deus. Neste caso, o
próprio termo Missão Integral seria redundante, pois somente Missão deveria
definir, por si só, o escopo integral da ação missionária de Deus.
Ser cristão reformado deveria ser capaz de compreender isso perfeitamente,
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vivendo a vida Coram Deo (MILLER, 2003), ou seja, a vida que deve ser vivida
integralmente diante da face de Deus. A compreensão da integralidade da mis-
são e das implicações éticas disso é muito mais do que uma ideologia ou um
modismo, pois é bíblico e está profundamente arraigado nas Escrituras Sagradas.
O fundamento sólido da Integralidade da Missão se dá pela compreensão
do oniabrangente Reino de Deus. A chegada do Reino em nossas comunidades,
cidades e nações, traria implicações abrangentes, afetando todas a áreas da vida.
Logo, se a Missão da Igreja é, em última análise, a manifestação do Governo de
Deus, ou seja, a chegada do Seu reino, ainda que não completamente, é sua mis-
são atuar em todos os domínios sociais, como agente da sinalização desse reino
e do Senhorio Cósmico de Cristo sobre todas as dimensões da Vida.
Missão Integral não pode, portanto, ser confundida com evangelismo e cesta
básica. Vai muito além do que fazer ação social e cuidar do pobre, é muito mais
abrangente do que isso, e vai para muito além da ação intraeclesiástica, tendo
aplicação em todos os domínios sociais, incluindo a arte, o direito, a economia,
o Estado, a ciência, a família etc.
Não fazemos ação social como gancho para evangelizar, como desencargo
de consciência ou para suprir algo que o Governo não está fazendo. Nossa mis-
siologia não pode ser baseada na omissão de alguém! O fundamento da missão
e da nossa responsabilidade social é o resgate total de todas as áreas da vida
e de todas as dimensões da Criação. Evangelismo e ação social são, portanto,
aspectos indissociáveis do agir redentor de Deus. Da mesma forma, compre-
enderemos, aqui, ação social como ação na sociedade, e não apenas como
enfrentamento à pobreza.

Chave Hermenêutica e Equívocos Interpretativos


26 UNIDADE I

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O DUALISMO GREGO E A SUA INFLUÊNCIA NA
MISSIOLOGIA DA IGREJA

A compreensão mais aprofundada da necessidade de uma missiologia integral,


a partir de uma cosmovisão cristã, passa pelo entendimento do dualismo grego
como forte influência sobre o pensamento da Igreja ao redor da sua história.
A cultura greco-romana sempre influenciou o pensamento da Igreja, e deve-
mos lembra que à época do Novo Testamento, esta era a cultura dominante na
Palestina (MILLER, 2003).
Para o dualismo grego, tudo que é espiritual ou etéreo é sagrado, e tudo
que é físico e material, é profano. Nesta concepção de mundo, a matéria é
essencialmente má. A cosmovisão grega antiga, portanto, concebia a realidade
em termos de uma dualidade que colocava em oposição o sagrado e o pro-
fano. A matéria estava na esfera do profano, simplesmente por ser matéria.
Ao contrário dos hebreus, que concebiam a vida de uma forma mais integral e
integrada, emprestando dos aspectos concretos da vida atributos para o próprio
Deus. Isto é, enquanto o grego tende a abstrair os atributos da divindade (onis-
ciente, onipotente, onipresente), o hebreu o chama de rocha, escudo, refúgio e
fortaleza (Salmos 18:2; 46:1).

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


27

Deus

ado
Sagr

Se
cu
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lar

Figura 1 - A dicotomia sagrado versus profano


Fonte: adaptado de Miller (2003).

Com a chegada do evangelho, em certo sentido houve um teísmo de síntese, ou


seja, elementos da fé cristã foram acrescidos, mas a estrutura do pensamento,
em muitos casos, permaneceu dual. Essa estrutura se manifesta de várias for-
mas. Atualmente, toma forma na ideia de vida cristã versus vida secular, ou seja,
as esferas do sagrado e do profano assumem contornos com outras nomencla-
turas, mas a estrutura e as concepções originais permanecem em outros termos.
A dicotomia sagrado versus profano assume, também, a forma de
evangelismo versus ação social, missões versus desenvolvimento social,
fé versus obras e penetra na esfera vocacional, na forma clero versus lai-
cato, contrariando o conceito bíblico de sacerdócio universal dos crentes.
Esta tendência gnóstica de superespiritualização sempre acompanhou e foi uma
tendência na História da Igreja, manifestando uma orientação de sacralização
das atividades espirituais e místicas. Fazemos vigílias de oração pela libertação
dos presos, enquanto Jesus nos manda visitá-los em suas prisões. Chegou-se ao
ponto de, já nos primórdios do Cristianismo, negar-se a encarnação de Cristo,
o que foi duramente enfrentado pelos apóstolos.

O Dualismo Grego e a sua Influência na Missiologia da Igreja


28 UNIDADE I

Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espí-


ritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído
pelo mundo fora. Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito
que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; E todo espírito
que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é
o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e,
presentemente, já está no mundo. Filhinhos, vós sois de Deus e ten-
des vencido os falsos profetas, porque maior é aquele que está em vós
do que aquele que está no mundo. Eles procedem do mundo; por essa
razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. Nós somos de
Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte
de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o

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espírito do erro (BÍBLIA, 1 João 4:1-6).

O que isso significa? A palavra provai (versículo 4) no original grego é dokimazo,


que significa testar, examinar, provar, verificar ver se uma coisa é genuína ou não;
reconhecer como genuíno depois de examinar, aprovar, julgar valioso, ou seja,
provar os espíritos é provar o ensino, a mensagem. Historicamente, essa carta foi
escrita quando a igreja estava sendo influenciada por muitos ensinamentos falsos,
inclusive doutrinas gnósticas, filhas do dualismo grego, que até mesmo negavam
a humanidade de Jesus e Sua ressurreição física. Essa carta foi escrita para forta-
lecer os irmãos na fé na sã doutrina, e para corrigir os falsos ensinos da época.

A Dicotomia Grega


Teologia
Domingo

Mais alto
Espiritual Ética
Graça

Mais
(sagrado) Missões
importante
Vida devocional
Evangelho

Razão
Dias da semana

Ciência
Natureza

Mais baixo Negócios/economia


Físico
Menos Política
(secular)
importante Arte/música
Ministério físico
Pão

Figura 2 - A Dicotomia Grega


Fonte: adaptado de Miller (2003).

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


29

O gnosticismo evangélico (MILLER, 2003), derivado do dualismo grego,


mantém, no plano superior, espiritual e sagrado, dimensões da vida, como:
consagração devocional, oração, jejum, moral, ética, missões, teologia, evan-
gelismo, disciplinas espirituais, guerra espiritual, além disso joga para o plano
inferior, secular, aspectos ou domínios sociais, como: trabalho, razão, negó-
cios, política, ciência, economia, mídia, artes, serviço comunitário e satisfação
de necessidades físicas.

Gnosticismo Evangélico
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Deus
Espiritual
Moral >> Sagrado
Graça Teologia
Fé Evangelismo
Ética Discipulação
Missões Devocionais Natural
Disciplinas Espirituais Físico >> Secular
Guerra Espiritual
Trabalho Ciência
Razão Economia
Negócios Mídia
Política As Artes
Ministérios Físicos
Justiça Social
Dias da Semana

Figura 3 - O Gnosticismo Evangélico


Fonte: adaptadado de Miller (2003).

O traço mais característico do gnosticismo era um dualismo ontológi-


co irreversível, uma oposição entre um Deus transcendente e um de-
miurgo obtuso que criara o mundo material. Essa criação material era
integralmente perversa e adversária irrevogável do deus transcendente.
Via-se o mundo, primordialmente, como uma ameaça, uma fonte de
contágio. Por conseguinte, a cristologia do gnoticismo seria docética:
Cristo não era um ser humano real, mas apenas parecia sê-lo. Esse
dualismo ontológico onipresente manifestava-se em pares infinitos de
opostos: o temporal e o eterno, o físico e o espiritual, o terreno e o ce-
lestial, o aqui e o além, a carne aqui embaixo e o espírito lá em cima etc.
(BOSCH, 2002, p. 249).

O Dualismo Grego e a sua Influência na Missiologia da Igreja


30 UNIDADE I

Não haverá uma ética cristã sólida, um ministério efetivo de transformação


comunitária e tampouco uma ação transformadora relevante da Igreja se a nossa
concepção de mundo e, consequentemente, a nossa missiologia for baseada no
gnosticismo evangélico, filho do dualismo grego. O conceito de vida Coram Deo
(vida perante a face de Deus, o todo da vida vivido para a Glória dEle) é o con-
ceito reformado que desconstrói o gnosticismo evangélico.

CORAM DEO

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Diante de Deus

Deus
Fé Raciocínio
Ciência Teologia
Administração Ética
Missões Política
Direito Evangelismo
Arte/Música A Natureza
Vida Serviço
devocional Comunitário
Pão Evangelho

Figura 4 - A Vida Coram Deo


Fonte: adaptado de Miller (2003).

Logo, o Cristianismo como sistema total de vida e pensamento é o funda-


mento da responsabilidade social da Igreja. A fé cristã é uma visão de mundo
e as escrituras oferecem os elementos fundamentais e fundantes para o dis-
cipulado de nações, possuindo um escopo integral, não dualista, a partir da
revelação de Deus. Nesse sentido, a fé é muito mais do que uma experiência
religiosa, subjetiva, individual e mística (embora inclua isso). É uma visão de
mundo. Nesse sentido, o pecado do incrédulo é resistir à Verdade, o pecado
da Igreja tem sido restringir a Verdade.

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


31

Existem outros sistemas totais de vida e pensamento, como o Islamismo,


o Humanismo Secular, possuindo cosmologia, moralidade, escatolo-
gia e influenciando todos os domínios sociais. Um sistema total é o grande
orientador de sentido e significado para determinada coletividade.
Sabemos que a estrutura dual de pensamento é muito presente no pensamento
e na concepção ocidental de mundo. Dentre as explicações para a permanência
do dualismo grego em nosso meio, encontramos uma explicação histórica ligada
à história do mundo ocidental. Na segunda metade do século XIX, a fé cristã foi
duramente atacada em seus fundamentos.
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Nesta época, nasceram disciplinas, como a sociologia, e psicologia e o


darwinismo emergiu com a publicação de Origem das Espécies (1865). Os
líderes cristãos em geral, nessa época, não souberam responder ao debate
no campo das ideias, criando espaço para o movimento fundamentalista: a
ideia era voltar ao que é fundamental ou essencial, como Missão da Igreja.
A tarefa da Igreja teria que ser a salvação das almas e o cuidado das coisas espi-
rituais, caracterizando o movimento missionário hegemônico que veio para o
Brasil. A Igreja, que tinha universidades, passou a preocupar-se apenas com a
formação teológica. A omissão da Igreja e a redução da fé abriu o caminho para
o fortalecimento do humanismo secular na batalha pela cultura ocidental.

O Dualismo Grego e a sua Influência na Missiologia da Igreja


32 UNIDADE I

AS IMPLICAÇÕES DO DUALISMO GREGO PARA UMA


VISÃO DAS VOCAÇÕES HUMANAS

Como resultado do dualismo grego e do gnosticismo evangélico, muitos cristãos


em geral, têm vivido uma espiritualidade fragmentada, em que não conseguem
ligar o mundo do trabalho com o Reino de Deus. Isso traz uma série de pro-
blemas e frustrações para os cristãos. Substituímos o conceito hebraico de avad
(trabalho como adoração), pela ideia latina de tripalium (instrumento romano
de tortura que gerou a palavra trabalho, em português).

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A concepção dicotômica da realidade e sua influência na vida do trabalho
pode ser melhor traduzida pelos ensinamentos de Eusébio, bispo de Cartago,
no século IV. Ele ensinou:
Dois modos de vida foram dados pela lei de Cristo à Sua Igreja. O pri-
meiro é acima da natureza e além da vida humana comum… plena-
mente e permanentemente separada da vida comum e costumeira do
ser humano, ela se devota somente ao serviço de Deus… esta é a forma
perfeita da vida Cristã.
O segundo, mais humilde e mais humano me permite possuir capacidade
para agricultura, comércio e para outros interesses mais seculares como
também para religião… E um tipo secundário de graça é atribuído aos tais.

Na concepção eusebiana, a Vida Perfeita era a vida contemplativa, mais elevada,


sagrada, espiritual, era exercida pelos “superiores” sociais e espirituais. Neles,
estão incluídos os padres (sacerdotes), freiras, monges e os aristocratas. Já a Vida
Permitida correspondia à vida ativa, ou seja, à atuação secular e inferior, exer-
cida pelos “inferiores” sociais e espirituais. Aqui, incluem-se os agricultores, as
donas de casa, os atendentes de loja, trabalhadores braçais etc. (MILLER, 2012).
A reforma da Igreja do século XVI veio, entre outras coisas, para romper
com esta mentalidade dual no que diz respeito à vida vocacional e as profissões.
Martinho Lutero afirmou, em Do Cativeiro Babilônico da Igreja, 1520:
O trabalho de monges e sacerdotes, ainda que sagrado e árduo, não
difere em nada à vista de Deus do trabalho do operário braçal ou da
mulher que cuida de suas tarefas domésticas; todo e qualquer trabalho
é medido por Deus somente com base na fé… de fato, o simples tra-
balho doméstico de um criado ou criada geralmente é mais aceitável
diante de Deus do que todos os jejuns e outros afazeres dos monges ou
sacerdotes, porque os monges e sacerdotes carecem de fé.

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


33

Nesta mesma linha, um dos ícones do neocalvinismo holandês, o reformador


social e primeiro ministro da Holanda, Abraham Kuyper, afirmou nas famosas
The Stone Lectures, na Universidade de Princeton, em 1898:
Onde quer que o homem esteja, o que quer que faça, ao que quer que
lance às mãos, na agricultura, no comércio e na indústria, ou em sua
mente, no mundo das artes e ciências, no que quer que seja, ele perma-
necerá sempre diante da face de Deus, ele está empregado no serviço
de seu Deus, ele tem que obedecer ao seu Deus e, acima de tudo, seu
objetivo deve ser a glória de Deus.

Segundo Miller (2012), esta é a essência da vida Coram Deo, pregada pelos refor-
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madores da Igreja. A nossa responsabilidade social e ética diante da sociedade


passa por uma concepção integral e integrada de vocação e chamado, compre-
endido, aqui, a partir do conceito de Vocare, ou Vox, ou seja, da compreensão
da Voz de Deus, do Chamado peculiar e da contribuição de cada indivíduo para
a concretização do plano e dos desígnios de Deus na construção do Seu reino.
Sabemos que a Queda também afetou o mundo da vocação e do trabalho,
transformando o avad (trabalho como adoração) em eved (trabalho escravo).
O trabalho, concebido por Deus para ser o exercício da vocação de cada pessoa,
em resposta ao mandato cultural de Gênesis, tornou-se penoso e difícil. Nasceu
o trabalho escravo, a exploração do homem pelo homem, a opressão, o abuso, a
exploração. Aqui também, o agir transformador da Igreja, no campo do traba-
lho, deveria ser traduzido na mudança do eved em avad, ou seja, em ajudar as
pessoas a encontrar as suas vocações e a andar nela.
A compreensão e o ensino de uma teologia vocacional são fundamentais para
o agir transformador da Igreja. Somente quando entendermos as nossas atividades
como resultado de um chamado de Deus, realizadas para a Glória dEle, é que rom-
peremos com o dualismo e o gnosticismo em nossas próprias vidas e modelos de
espiritualidade, abrindo o caminho para uma relevância maior da Igreja na sociedade.
A necessidade de integração da vida dos cristãos é tema que precede a ques-
tão da ética e da responsabilidade social, pois é a partir desta integração é que
geraremos pessoas mais plenas e atuantes no exercício da sua vocação como
manifestação do seu chamado específico. A vida cristã passa a ir muito além do
que um conjunto de normas morais e condutas no ambiente do trabalho, para
traduzir a atividade em si, como a forma do cristão glorificar a Deus no mundo.

As Implicações do Dualismo Grego para uma Visão das Vocações Humanas


34 UNIDADE I

Em lugar de considerar algumas atividades mais sagradas do que outras, hierar-


quizando os chamados vocacionais, devemos pensar que toda ação é legítima,
desde que se realizada em resposta ao um chamado obedecido em fé. Podemos
limpar o chão de uma casa de forma consagrada, ao passo que é possível pregar
para multidões de uma maneira não santa.
O que importa não é a atividade em si, mas a forma como ela é exercida. Há
diferenciações de destacamento e designação (local e extralocal) e de consagra-
ção, mas todas as atividades, sejam de cunho intelectual ou braçal, são legítimas e
devem ser santificadas diante de Deus. Esse é um firme fundamento da ética cristã.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O SENHORIO DE CRISTO SOBRE OS DIFERENTES
DOMÍNIOS SOCIAIS

A compreensão da integralidade das


intenções de Deus na vida vocacional
e profissional nos traz à tona a ques-
tão dos diferentes domínios sociais,
ou esferas de soberania, conforme
a definição de diferentes autores.
Em alguns ambientes, as esferas são
também conhecidas como áreas de
influência ou os sete montes. A ideia
central é que a sociedade é composta
por diferentes áreas, cada qual com
suas características específicas, e que
a Igreja deve influenciar todas elas,
manifestando o senhorio de Cristo. Mas o que significa pensar o senhorio cósmico
sobre os diferentes domínios sociais em uma sociedade complexa como a nossa?

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


35

Aqui, utilizaremos a abordagem de Herman Dooyeweerd (1986), que esta-


beleceu o conceito de esfera de soberania, ou esferas modais, ou seja, a sociedade
seria dividida em diferentes esferas, cada qual com o seu próprio núcleo de sentido,
com suas peculiaridades advindas da essência do próprio Deus e estabelecidas
na ordem criacional. Deste modo, cada esfera de soberania revela quem Deus é,
tem uma lei específica, ou um motivo-base, e Cristo deve governar sobre todas
elas. Além disso, cada esfera estabelecida por Deus tem as suas próprias institui-
ções sociais, à medida que as sociedades vão formando-se e complexificando-se.
Apresentaremos de forma simplificada e didática alguns exemplos:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a. Esfera pística – esta é a esfera da fé (do grego pisthos, fé). Ela existe para
nutrir a fé. Nesta esfera está a igreja local, os seminários teológicos, as
agências missionárias para a propagação da fé.
b. Esfera ética – esta é a esfera do casamento e da família, governada pelo
amor.
c. Esfera estética – esta é a esfera da arte, governada pela beleza, existe para
a expressão do Belo (o Criador).
d. Esfera jurídica – esta é a esfera do Estado, governada pela lei da Justiça.
Aqui também estão os movimentos de pressão e os partidos.
e. Esfera lógica – esta é a esfera do conhecimento, onde está a produção do
conhecimento científico e as Universidades.
f. Esfera econômica – esta é a esfera do mercado, o domínio social das
empresas, da produção de riqueza para o bem comum (CARVALHO
2006; DOOYEWEERD, 1986).

Entender as leis que governam as esferas específicas ou o motivo-base de cada


uma delas é fundamental em diversos aspectos:
a. para a compreensão e o exercício do chamado vocacional de cada indi-
víduo;
b. para a compreensão da natureza das instituições pertencentes a cada
esfera: para que elas existem, como devem funcionar e o resultado que
cada uma delas deve trazer para a sociedade;

O Senhorio de Cristo Sobre os Diferentes Domínios Sociais


36 UNIDADE I

c. para o discernimento dos efeitos da Queda sobre cada esfera específica,


as influências de outros sistemas de crenças e visões de mundo sobre elas,
consequentemente, qual é a tarefa da Igreja na cooperação com Deus
para a redenção das esferas (CARVALHO, 2006; DOOYEWEERD, 1986).

A alteração ou distorção de um motivo-base (igrejas que funcionam como


empresas, em que o critério último de êxito é a condição financeira, por exem-
plo, ou igrejas que funcionam como clubes sociais, onde há comunhão, mas
não há nutrição da fé) causam desconforto, pois ferem princípios da ordem
da criação estabelecida por Deus. A igreja local, sendo da esfera pística (a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
esfera da fé), tem como finalidade a nutrição da fé. Todos os demais atribu-
tos (beleza estética do culto, arrecadação financeira, gestão por competências
etc.) podem e devem existir em harmonia, mas a finalidade é prioritária e não
pode faltar. Os demais atributos e características devem estar a serviço disso.
Outros exemplos são empresas que funcionam pastoralmente, como se fos-
sem igrejas, e acabam indo à falência, pois a empresa está na esfera econômica,
e não na esfera pística. Um político que, ao invés de fazer o que é justo e pro-
pagar a justiça, utiliza-se do Estado para propagar a adesão à fé ou impô-la à
sociedade, comete um equívoco, uma confusão de esferas, ferindo a ordem cria-
cional, o que causa confusão e vários problemas.
A esfera jurídica, ou do Estado, como derivação do caráter do próprio
Deus, é a esfera da Justiça. O cristão que tem vocação para a política exerce o
seu trabalho na arena política para que a Justiça se manifeste, e não para que
a fé se propague (embora isso também possa e deva acontecer como resultado
do seu testemunho).
Logo, a sua preocupação deve ser: o que é justo para todos os cidadãos? Que
tipo de decisão ou de política pública vai gerar uma sociedade com mais justiça,
equidade, prosperidade e solidariedade? A confusão de esferas causa desequilí-
brio e toda sorte de equívocos, abusos e problemas.
Dentro do princípio do homem como cogestor da criação e como aquele a
quem Deus instituiu autoridade sobre a criação, compreendemos que cada esfera
possui as respectivas classes de pessoas que exercem autoridade sobre aquele
domínio social específico, a partir de um chamado ou uma vocação dada por

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


37

Deus. Desta forma, o prefeito não pode dizer à igreja como praticar os sacramen-
tos. Da mesma forma, o pastor não deve dizer ao cientista como fazer a pesquisa
científica, nem ao prefeito como governar.

Karl Barth foi um dos primeiros teólogos a articular o conceito de Missio Dei,
que diz respeito à ideia de missão como atividade de Deus mesmo, e não
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da igreja, e representa uma superação da mera compreensão em termos


soteriológicos (como salvar indivíduos da condenação eterna) ou culturais
(expansão dos valores do Ocidente para o sul e o oriente). Na definição do
conceito de Missio Dei, afirma-se que, na nova imagem, a missão não é pri-
mordialmente uma atividade da igreja, mas um atributo de Deus. Deus é
um Deus missionário. “Não é a igreja que deve cumprir uma missão de sal-
vação no mundo; é a missão do Filho e do Espírito mediante o Pai que inclui
a igreja” (MOLTMANN, 1977, p. 64). Bosch (2002, p. 468) nos afirma que “o
propósito primeiro das missiones eccelsiae não pode, por consequência, ser
simplesmente a implantação de igrejas ou a salvação de almas; pelo con-
trário, ele deverá ser o serviço à Missio Dei, representar Deus no e diante do
mundo, apontar para Deus”.
Fonte: adaptado de Bosch (2002).

Segundo Dooyeweerd (1986), embora as esferas sejam autônomas, essa autono-


mia não é absoluta. Na ordem criacional, há uma interdependência entre elas,
ou seja, elas não são isoladas, pois nascem da mesma fonte, a essência do pró-
prio caráter de Deus. Por exemplo: vamos à igreja para nutrir a fé (esfera pística),
mas apreciamos uma ministração de louvor em que há beleza artística (esfera
estética), mas não vamos à igreja para assistir a um espetáculo de música, para
isso, iríamos a um concerto.
Da mesma forma, uma família existe para nutrir o amor. Seria ridículo pen-
sar que o critério de êxito de uma família seria a quantidade de dinheiro que ela
consegue economizar e acumular, porém, uma família saudável também tem as
finanças em ordem. Desta forma, as esferas conversam entre si, mas são gover-
nadas por leis diferentes.

O Senhorio de Cristo Sobre os Diferentes Domínios Sociais


38 UNIDADE I

Parte da compreensão da nossa plena vocação deve ser entender completamente o


significado da lei que governa a nossa esfera, como resposta ao Mandato Cultural
de Gênesis 1:26. A responsabilidade social (ou seja, o agir na sociedade) e a ética
cristã da Igreja passam pelo entendimento da existência das esferas, a compre-
ensão da sua amplitude e a especificidade de cada uma.
Um princípio fundamental a ser observado, dentro de uma perspectiva cristã
de reforma social, é que Cristo deve estar no centro, governando todos os domí-
nios sociais. Logo, não é a Igreja em si que deve ser a governante (embora ela seja
a grande influenciadora de todas as demais esferas), tampouco qualquer uma das

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outras esferas. Segundo esta teoria, o reino de Deus seria caracterizado pela har-
monia dos domínios sociais, que respeitariam uns aos outros. Sempre que uma
esfera se coloca no centro, tentando governar as demais, ou mesmo tentando
“achatar as demais”, Dooyeweerd (1986) chama isso de tirania.
Alguns exemplos históricos podem ser citados. Um deles seria a Igreja domi-
nando todas as esferas na Idade Média (o domínio do papa sobre os reis, a arte
sacra como a única legítima etc.). Outro exemplo poderia estar relacionado às
várias tentativas do Estado de legislar sobre a consciência das pessoas e dominar
sobre todas as demais áreas, em diversos momentos da história, gerando totali-
tarismo, violência, discriminação e até genocídios e guerras.
Atualmente, vivemos a tirania da esfera econômica ou esfera do mercado. A
manifestação disso na Igreja, atualmente, está na constatação de que ela se torna
um empreendimento econômico-religioso e as evidências de uma vida de fé se
confundem pelas evidências do próprio mercado, ou seja, a bênção divina repousa
(ou, no mínimo, é enfatizada) sobre a prosperidade material. O mercado domina
a produção cultural e artística, as relações e as decisões das pessoas e dos países.
Nesta visão reformada, que foi brilhantemente sistematizada pelo neocalvi-
nismo holandês, as esferas devem ser integradas e harmônicas. Isso caracteriza
uma visão cristã de sociedade, em que a família, o Estado e a Igreja, assim como
cada uma das instituições sociais, têm, cada qual, o seu devido lugar, exercendo
o seu papel com clareza a cooperando entre si.

INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


39

A Igreja transformadora, portanto, é aquela que identifica e prepara os seus


vocacionados para todas as esferas de soberania, entendendo que o vocacionado
não é apenas para a esfera pística (âmbito da igreja local), mas para todas elas.
Cada cristão deve se perguntar: o que significa ser um agente de reconcilia-
ção da esfera para o qual eu fui chamado? Qual é a lei dominante para a esfera do
meu chamado vocacional, ou que significa glorificar a Deus nesta esfera? Quais
as marcas da Queda na minha esfera?
Sabemos que esta é uma tarefa muito grande e desafiadora, e que nenhuma
igreja local conseguiria identificar e preparar os seus membros para os chama-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dos específicos em cada uma das esferas. Nesse sentido, cremos em ministérios
de referência específicas, caminhando lado a lado com as igrejas locais, ou pasto-
rais que apoiam os cristãos em seu chamado para os diferentes domínios sociais.
Assim, temos ministérios, organizações e instituições cristãs voltadas exclu-
sivamente para a área da educação, por exemplo, formulando novos currículos,
ensinando crianças a pensar de acordo com os princípios das Escrituras, fun-
dando escolas e influenciando as políticas públicas na área da educação.

Criticando a omissão de igrejas em projetos sociais, um sociólogo não cris-


tão me disse certa vez: “eu não acredito em grupos que falam de amor, mas
só ministram às necessidades dos seus próprios membros”. O que você acha?

Os educadores devem conhecer este trabalho e ser capacitados por estas inicia-
tivas, a fim de serem melhores obreiros de transformação. O mesmo acontece
entre artistas cristãos, políticos, cientistas, empresários etc. As esferas estão orga-
nizadas em instituições e ministérios que devem sempre andar em harmonia e
cooperação com as igrejas locais e nunca competir com elas.

O Senhorio de Cristo Sobre os Diferentes Domínios Sociais


40 UNIDADE I

O ensino das esferas de soberania, ou domínios sociais, é desafiador, mas, ao


mesmo tempo, extremamente libertador para os cristãos, pois libera e empodera
cada cristão para exercer o seu chamado e a sua vocação livremente, cumprindo
a Sua Missão, abrindo espaço para a sua contribuição única no mundo.
Esperamos que esta unidade tenha contribuído para trazer um sólido fun-
damento histórico, bíblico e teológico para uma ética cristã integral e para a
responsabilidade social da Igreja, estabelecendo as bases para uma práxis trans-
formadora e sinalizadora do Reino de Deus. Isso é o Discipulado da Nação.

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INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA


41

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta unidade, estudamos sobre a fundamentação teológica da integralidade da


missão e da responsabilidade social da Igreja, a partir de uma leitura abrangente
e integrada das Escrituras e da noção do Reino de Deus. Aprendemos sobre a
tríade bíblico teológica Criação – Queda – Redenção e sobre o dualismo grego e
suas implicações na nossa compreensão da realidade e na missiologia, por meio
do gnosticismo evangélico.
Aprofundamos, também, especificamente, a questão da influência desse tipo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de pensamento dual no campo das vocações humanas, em oposição ao conceito


reformado de vida Coram Deo. Por fim, pudemos conhecer mais sobre o modelo
de sociedade da filosofia reformada, com a apreensão do conceito de esfera de
soberania ou de domínio social, abrindo espaço para a ampla participação dos
cristãos nas diferentes áreas da sociedade como expressão dos seus chamados
e das suas vocações.
A apreensão desses conceitos nos traz à reflexão sobre até que ponto, em nos-
sas igrejas, temos uma teologia e uma missiologia de fato integral e integrada,
ou se ainda estamos reféns do dualismo grego e sua derivação, que denomina-
mos aqui de gnosticismo evangélico. Ainda há, em sua comunidade de fé, a ideia
implícita de sagrado versus secular?
As questões das esferas ditas seculares, como o mundo do trabalho, a arte,
a educação, a economia, o direito, a política, a satisfação de necessidades físicas,
entre outras, são consideradas menos espirituais ou inferiores? Algumas vocações
específicas, como o pastorado e o chamado missionário para o campo transcul-
tural, são consideradas superiores ou mais espirituais do que outras?
A desconstrução desses conceitos arraigados é condição para que tenhamos
uma ética cristã e uma responsabilidade social solidamente assentadas no fun-
damento bíblico do senhorio de Cristo sobre todas as dimensões da vida.

Considerações Finais
42

1. De acordo com o que foi abordado nesta unidade, diante do escopo abrangente
da ação cristã em uma sociedade ao longo dos séculos cada vez mais complexa
e dinâmica, assinale a alternativa correta:
a) O dualismo sagrado versus profano, ou dualismo grego, exerceu influência
decisiva na formação do gnosticismo evangélico, presente ainda hoje na te-
ologia e missiologia cristã.
b) A vida cristã coram deo, que quer dizer “diante de Deus” ou “perante a face de
Deus” foi um dos lemas da Reforma Protestante.
c) Eusébio, bispo de Cartago, pregava dois modos de vida cristã, influenciando
até hoje uma visão fragmentada da vida vocacional.
d) A esfera pística é a esfera de nutrição da fé, onde se encontra a igreja local e
as agências missionárias com ênfase na implantação de igrejas.
e) Todas as anteriores estão corretas.
2. A compreensão mais fundamentada acerca da integralidade da missão, ética
cristã e responsabilidade social da igreja baseia-se em uma compreensão acerca
do próprio reino de Deus, sua definição e abrangência. Discorra sobre o concei-
to de Reino de Deus e sua relação com a responsabilidade social da Igreja.
3. A história bíblica pode ser resumida na chamada tríade bíblica teológica refor-
mada: criação, queda e redenção. É como que se para entender um enredo que
é complexo, apontássemos três grandes acontecimentos em que todos os ele-
mentos do enredo devem enquadrar-se e fazer sentido, à luz destes três aconte-
cimentos. Explique e relacione a tríade bíblica teológica cristã com a respon-
sabilidade social e a natureza integral da missão.
4. A cultura greco-romana sempre influenciou o pensamento da Igreja e devemos
lembrar que, à época do Novo Testamento, esta era a cultura dominante na Pa-
lestina (MILLER, 2003). Para o dualismo grego, tudo que é espiritual, ou”etéreo” é
sagrado, e tudo que é físico e material, é profano. Nesta concepção de mundo, a
matéria é essencialmente má. Quais as implicações do dualismo grego para
uma visão das vocações humanas?
5. A compreensão da integralidade das intenções de Deus na vida vocacional e
profissional nos traz à tona a questão dos diferentes domínios sociais, ou esferas
de soberania, conforme a definição de diferentes autores. Em alguns ambientes,
as esferas são também conhecidas como áreas de influência ou os sete montes.
A ideia central é que a sociedade é composta por diferentes áreas, cada qual com
suas características específicas, e que a Igreja deve influenciar todas elas, mani-
festando o senhorio de Cristo. Apresente de forma simplificada a didática, os
exemplos destas “esferas” citados na unidade.
43

Leia uma parte das conclusões do artigo “A Missão da Igreja à Luz do reino de Deus”, de René
Padilha, um dos ícones da Teologia da Missão Integral, para reforçar o conteúdo da Unidade:

Tanto a evangelização como a respon- escatologia em processo de realização –


sabilidade social podem ser entendidas e apontam para sua realidade presente
unicamente à luz do fato de que, em Cristo e futura. A necessidade mais ampla e
Jesus, O Reino de Deus invadiu a histó- mais profunda de todo o ser humano é
ria e agora é uma realidade presente e, um encontro pessoal com Jesus Cristo,
ao mesmo tempo, um “ainda não”. Neste o Mediador do Reino. Deus é o mesmo
sentido, O Reino de Deus não é “o melhora- Senhor de todos e abençoa muito a todos
mento social progressivo da humanidade, os que pedem a sua ajuda. Como dizem
segundo o qual a tarefa da Igreja é trans- as Escrituras Sagradas: “Aquele que pedir
formar a terra em céu, e isto agora”, nem “o ajuda do Senhor será salvo” (Rm 10.12-13,
reinado interior de Deus presente nas dis- LH). Nesta perspectiva, e somente nela, é
posições morais e espirituais da alma, com possível afirmar que “o serviço de evan-
sua base no coração”. Antes, ele é o poder gelização abnegada figura como a tarefa
de Deus, liberto na história, que traz boas mais urgente da Igreja” (Pacto Lausanne,
novas aos pobres, liberdade aos cativos, seção 6), e o evangelho é boa-nova acerca
vista aos cegos e libertação aos oprimidos. do Reino, e o Reino é o domínio de Deus
sobre sua totalidade da vida. Cada neces-
A evangelização e a responsabilidade social sidade humana, portanto, pode ser usada
são inseparáveis. O evangelho é boa nova pelo espírito de Deus como o ponto de par-
acerca do Reino de Deus. As boas obras, tida para a manifestação de seu poder real.
por outro lado, são os sinais do Reino para Por isso, na prática, é irrelevante pergun-
as quais fomos criados em Cristo Jesus. A tar qual vem primeiro, a evangelização ou
palavra e a ação estão indissoluvelmente a ação social. Em cada situação concreta,
unidas na missão de Jesus e de seus após- as próprias necessidades provêm a defi-
tolos, e devemos mantê-las unidas na nição das prioridades. Se a evangelização
missão da Igreja, na qual se prolonga a mis- e a ação social são consideradas essên-
são de Jesus até o final do tempo. O Reino cias na missão, não necessitamos de um
de Deus não é meramente o governo de manual que nos diga qual vem primeiro
Deus sobre o mundo por meio da criação e e qual vem depois. Por outro lado, se não
da providência; e se esse fosse o caso, não são considerados essenciais, o esforço para
poderíamos afirmar que foi inaugurado entender a relação entre elas é um exercí-
por Jesus Cristo. O Reino de Deus é, antes, cio acadêmico inútil; tão inútil como tentar
uma expressão do governo final de Deus entender a relação entre a asa esquerda e
em toda a criação, o mesmo que, em ante- a direita de um avião, quando acredita-se
cipação ao fim, fez-se presente na pessoa que um avião pode voar com uma asa só.
e obra de Jesus Cristo. Tanto a proclama- E quem pode negar que a melhor maneira
ção do Reino como os sinais visíveis de de entender a relação entre duas asas de
sua presença por meio da Igreja se reali- um avião é voar nele, ao invés de especu-
zam pelo poder do Espírito – o agente da lar a respeito?
44

De acordo com a vontade de Deus, a Igreja Por sua morte e ressurreição, Jesus Cristo
é chamada a manifestar o Reino de Deus foi exaltado como Senhor do universo.
aqui e agora, tanto por meio daquilo que Consequentemente, todo o mundo foi
ela faz, como por meio do que proclama. colocado sob seu senhorio. A Igreja ante-
Porque o Reino de Deus já veio e está por cipa o destino de toda a humanidade. Entre
vir; a Igreja “entre os tempos” é uma rea- os tempos, portanto, a Igreja – a comuni-
lidade escatológica e histórica. Se não dade que confessa a Jesus Cristo como
manifesta plenamente o Reino, isto não se Senhor e por meio dele reconhece a Deus
deve a que o Reino dinâmico de Deus tenha como criador e juiz de todos os homens
invadido a presente era “sem a autoridade – está chamada a “participar dessa solici-
ou o poder para transformá-la na era vin- tude divina pela justiça e reconciliação em
doura”, (Nota 11. Arthur P. Johnston. Op cit., todas as sociedades humana, e pela liberta-
p. 23), mas porque a consumação não che- ção do homem de toda forma de opressão”
gou ainda. O poder que está ativo na igreja, (Pacto de Lausanne, seção 5). A entrega de
no entanto, é como a operação do poder Jesus Cristo é entrega a ele como Senhor
de Deus, o qual “exerceu ele em Cristo, res- do universo, o Rei diante do qual todo joe-
suscitando-o dentre os mortos, e fazendo-o lho se dobrará, o destino final da história
sentar à sua direita nos lugares celestiais, humana. Contudo, a consumação do Reino
acima de todo principado e potestade, e de Deus é a obra de Deus. Nas palavras de
poder, e domínio, e de todo o nome que Wolfhart Pannenberg, “O Reino de Deus
se possa referir não só no presente século, não será estabelecido pelo homem. Muito
mas também no vindouro” (Ef 1:20-21). A enfaticamente, ele é o Reino de Deus (...)
missão da Igreja é a manifestação histórica O homem não é exaltado, mas degradado
deste poder por meio da palavra e da ação, quando se torna vítima de ilusões acerca
no poder do Espírito Santo. de seu poder”.

Fonte: adaptado de Padilla (1992).


MATERIAL COMPLEMENTAR

Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia


da missão
David Bosch
Editora: Sinodal
Sinopse: esse livro nos traz uma visão histórica e abrangente acerca da
teologia da missão. Ele aponta que a mudança de paradigma não nos
confronta apenas com um perigo, mas também com oportunidades.
Missão transformadora está numa classe toda própria, tornando-se uma
referência-padrão no estudo da missão cristã mundial, e talvez o livro-texto
mais usado em aulas e curso de missão. Esta grande obra de David Bosch
transformou-se em seu legado permanente para todas as pessoas que
procuram entender, servir e disseminar a causa de Cristo no mundo.

Brincando nos campos do Senhor


Ano: 1991
Sinopse: um casal de mimissionários e seu filho pequeno embrenham-
se na selva amazônica brasileira para catequisar índios ainda arredios
à noção de Deus. Martin Quarrier (Aidan Quinn) é sociólogo e termina
sendo motivado pelas experiências de outro casal, os Huben. As
intenções religiosas e a harmonia entre brancos e índios no local
ficam instáveis devido à presença de Lewis Moon (Tom Berenger), um
mercenário descendente dos índios americanos.

O site do Centro de Reflexão Missiológica Martureo traz densos artigos, vídeos e dicas de cursos
sobre questões contemporâneas da missão da Igreja.
Disponível em: <https://www.martureo.com.br>.

O artigo “Missão Integral e a Grande Comissão – as cinco marcas da missão”, de Chris Wright,
apresenta visão panorâmica sobre os conceitos principais da missão contemporânea. Verifique no
link disponível em: <https://www.martureo.com.br/missao-integral-e-a-grande-comissao/>.

Material Complementar
46
REFERÊNCIAS

BÍBLIA ONLINE. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/>. Acesso em: 23


fev. 2018.
BOSCH, D. Missão transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Mis-
são. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2002.
CARVALHO, G. (org). Cosmovisão cristã e transformação. Viçosa: Ultimato, 2006.
COLSON, C.; PEARCEY, N. E Agora, como viveremos? Rio de Janeiro: CPAD, 2000.
CONGRESSO BRASILEIRO DE EVANGELIZAÇÃO. Missão Integral: Proclamar o reino
de Deus, vivendo o Evangelho de Cristo. Belo Horizonte: Ultimato, 2004.
DOOYEWEERD, H. A Christian Theory of Social Institutions. La Jolla: The Herman
Dooyeeweerd Foundation, 1986.
LUTERO, M. Do Cativeiro Babilônico da Igreja. São Paulo: Martin Claret, 1520.
MILLER, D. Discipulando as Nações: O Poder da Verdade para transformar culturas.
Curitiba: FatoÉ, 2003.
______. Vocação: Escrevendo a sua assinatura no Universo. Belo Horizonte: Editora
Jocum, 2012.
PADILLA, R. O que é Missão Integral? Viçosa: Ultimato, 2009.
47
GABARITO

1. A opção correta é a letra E.


2. O conceito de Reino de Deus deve ser relacionado pelo aluno à noção de Go-
verno de Deus, abarcando todas as dimensões e aspectos da vida. Essa integra-
lidade, assim como a dimensão presente do Reino (agora, mas ainda não), são o
fundamento para a ação da Igreja na sociedade, ou seja, para a sua responsabi-
lidade social.
3. A Bíblia é a história de uma Criação, de uma Queda e de uma Redenção. Sabe-
mos que Deus é o criador de todas as coisas. O argumento lógico é que, se Deus
é o criador de todas as coisas, não pode haver nenhum aspecto da criação sobre
o qual ele não tenha interesse ou não deva governar. Em nossa ênfase soterioló-
gica, esquecemos que a Criação toda pertence a Deus, que Ele ama a Sua criação
e que a Criação, em si, é boa. Contudo, a Bíblia deixa claro, no relato de Gênesis,
que os plenos desígnios de Deus não se cumpriram.
A liberdade do homem e o seu pecado abriram espaço para a manifestação do
segundo elemento da tríade: a Queda. Em nossa ênfase reducionista, afirmamos
que nossa missão como Igreja é levar pessoas a um relacionamento com Deus,
ensinando-os a ser religioso. Embora isso não seja errado, é incompleto, ou seja,
não abarca toda a verdade bíblica. A redenção, por definição, tem que ser maior
que a Queda.
Esta compreensão é radical e muda a nossa proposta missiológica. Aqui está o
fundamento da nossa responsabilidade social e da integralidade da Missão. A
Missio Dei, ou Deus em Missão (BOSCH, 2002), é a restauração de todas as coi-
sas caídas. Portanto, que outra missão há, senão uma missão integral? Somos
cooperadores com Deus na Obra de reconciliação de todas as coisas! Deus está
em Missão. Deus está reconciliando consigo mesmo todas as coisas. Todos os
domínios sociais, estabelecidos por Ele na Criação, e que foram integralmente
afetados pela Queda, devem ser entregues ao Governo de Deus. Neste caso, o
próprio termo “Missão Integral” seria redundante, pois somente Missão deveria
definir, por si só, o escopo integral da ação missionária de Deus.
4. Como resultado do dualismo grego e do gnosticismo evangélico, muitos cris-
tãos, em geral, têm vivido uma espiritualidade fragmentada, em que não con-
seguem ligar o mundo do trabalho com o Reino de Deus. Isso traz uma série
de problemas e frustrações para os cristãos. Substituímos o conceito hebrico
de avad (trabalho como adoração), pela ideia latina de tripalium (instrumento
romano de tortura que gerou a palavra trabalho, em português) e por eved (tra-
balho escravo). O trabalho, concebido por Deus para ser o exercício da vocação
de cada pessoa, em resposta ao mandato cultural de Gênesis, tornou-se peno-
so e difícil. Nasceu o trabalho escravo, a exploração do homem pelo homem, a
opressão, o abuso, a exploração. Aqui também, o agir transformador da Igreja,
no campo do trabalho, deveria ser traduzido na mudança do eved em avad, ou
seja, em ajudar as pessoas a encontrar as suas vocações e a andar nela.
GABARITO

5.
■■ Esfera pística – esta é a esfera da fé (do grego pisthos, fé). Ela existe para nutrir
a fé. Nesta esfera está a igreja local, os seminários teológicos, as agências mis-
sionárias para a propagação da fé.
■■ Esfera ética – esta é a esfera do casamento e da família, governada pelo amor.
■■ Esfera estética – esta é a esfera da arte, governada pela beleza, existe para a
expressão do Belo (o Criador).
■■ Esfera jurídica – esta é a esfera do Estado, governada pela lei da Justiça. Aqui
também estão os movimentos de pressão e os partidos.
■■ Esfera lógica – esta é a esfera do conhecimento, onde está a produção do
conhecimento científico e as Universidades.
■■ Esfera econômica – esta é a esfera do mercado, o domínio social das empresas,
da produção de riqueza para o bem comum (CARVALHO, 2006; DOOYEWEERD,
1986).
Professor Me. Mauricio José Silva Cunha

II
COSMOVISÃO CRISTÃ:

UNIDADE
ÉTICA, JUSTIÇA E
TRANSFORMAÇÃO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Definir conceito e importância de uma cosmovisão cristã.
■■ Apontar propostas distintas de uma cosmovisão cristã reformada
diante dos dilemas atuais.
■■ Analisar características propositivas da cosmovisão cristã no
desenvolvimento social.
■■ Discorrer sobre o conceito da justiça social e da compaixão cristã no
contexto da luta contra a pobreza.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Cosmovisão: conceito e relevância
■■ Elementos essenciais da Cosmovisão Cristã e sua relação com a Ética
Social
■■ Construímos nossas sociedades baseados nos deuses que cultuamos
■■ Justiça Social e Compaixão bíblica
51

INTRODUÇÃO

O tema da cosmovisão cristã é de extrema relevância não só para a compreensão


da ética cristã e da responsabilidade social da Igreja, mas da própria essência da
nossa fé. Ele trata de uma “maneira cristã” de se entender o mundo, já que a fé,
mais do que uma experiência mística, subjetiva e religiosa, fornece os “óculos”
pelos quais compreendemos, interpretamos e criamos nosso mundo.
Entender e viver a cosmovisão cristã significa, entre outras coisas, “amar a
Deus de todo o nosso entendimento”, no sentido amplo, ou seja, compreender a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

aplicar a Verdade em todos os domínios da vida humana. No campo do desen-


volvimento social, o estudo sobre cosmovisão tem sido cada vez mais discutido,
partindo do pressuposto de que a essência da transformação social se dá pela
mudança das estruturas de pensamento que mantêm as pessoas e comunidades
em situação de pobreza.
A análise de programas e projetos sociais de desenvolvimento nos traz algu-
mas perguntas intrigantes: por que, dadas as mesmas condições materiais, algumas
comunidades prosperam e outras não? Por que alguns países que receberam
milhões de dólares em ajuda humanitária permanecem na miséria? Como gerar
transformação genuína, duradoura e sustentável em uma comunidade – ou seja,
como gerar um resultado que vá muito além de propostas paliativas de “dar coi-
sas” para as pessoas, mas que alterem a sua condição de risco e vulnerabilidade?
Podemos, ainda, indagar: qual é o diferencial cristão nos processos de trans-
formação social? Há uma peculiaridade cristã ou os projetos realizados a partir
da Igreja devem seguir a mesma lógica das políticas públicas ou dos programas
humanistas e secularizados?
Trataremos destas questões nesta unidade. A compreensão de que, na ver-
dade, o Cristianismo é uma cosmovisão é o que oferecerá à Igreja a força para
ser relevante em seu agir transformador.

Introdução
52 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
COSMOVISÃO: CONCEITO E RELEVÂNCIA

O termo cosmovisão remonta a Emanuel Kant (1724 – 1804), filósofo alemão


que exerceu grande influência no pensamento ocidental. Ele cunhou o termo
Weltanschauung, em alemão, traduzido posteriormente para o seu equivalente
em inglês, Worldview. Em 1790, em sua obra Crítica do Julgamento, Kant utiliza
este termo, proveniente da junção de Welt = Mundo e Anschauung = Percepção,
que significaria a capacidade humana de intuir o mundo exterior à medida que
este é apreendido pelos sentidos.
A partir de então, o desenvolvimento do conceito de Weltanschauung
passou a ter diversos desdobramentos e influências, incluindo o idealismo
alemão e a tradição romântica, influenciando amplamente a teologia, a filo-
sofia e a arte. No início do século XX, o termo já era encontrado em mais de
2 mil obras em alemão e passava a ocupar espaço em contextos culturais e lin-
guísticos diversos, com sentido próximo a uma visão metafísica do mundo,
uma concepção de vida.

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


53

O termo em inglês Worldview já aparece em 1860, sendo definido, pelo


Oxford English Dictionary, como uma palavra carregada de sentido que define
uma filosofia ou visão particular de vida; um conceito do mundo utilizado por
um indivíduo ou um grupo. Dada a riqueza do conceito, o termo passou a ser de
uso obrigatório no universo intelectual da Europa e dos Estados Unidos, o que
gerou também, ao longo de décadas, uma série de controvérsias e diferentes apli-
cações do conceito, caracterizando uma rica e diversificada evolução histórica.
Aqui, para nossa reflexão, podemos definir cosmovisão como “a visão ou
conjunto de suposições e crenças que um determinado indivíduo ou grupo pos-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sui acerca da realidade: a vida, o mundo, Deus, a si mesmo, a suas interrelações”.


Em termos mais simplificados, podemos explicar cosmovisão como a forma pela
qual vemos e entendemos o universo (CUNHA 2003).
Sire (2009, s/p.) define cosmovisão (visão do mundo e da vida) como “um
conjunto de suposições e crenças que mantemos, consciente ou inconsciente-
mente, em fé, sobre o caráter básico do nosso mundo e sobre a maneira como ele
funciona”. Desta forma, a cosmovisão de um indivíduo ou de uma coletividade
diz respeito às pressuposições ou axiomas (uma evidência cuja comprovação é
dispensável, princípio evidente por si mesmo) considerados verdadeiros, inde-
pendentemente de averiguação empírica.
Vemos, então, que a cosmovisão está profundamente arraigada na mente e
no coração das pessoas, a partir das suas percepções e experiências subjetivas.
Se ela é inconsciente, foi transmitida e aprendida por meio da aculturação ou
socialização. Se é consciente, a pessoa examinou criticamente suas suposições e
consequências. Por ser uma pressuposição, ela se forma e se consolida em fé, ou
seja, é uma declaração de fé (quer seja examinada ou não).
Por meio da nossa cosmovisão, apreendemos a composição básica do uni-
verso, e como ele funciona, ou seja, a cosmovisão trata com todos os aspectos da
realidade: o epistemológico (como podemos saber e conhecer), o metafísico (o que
é a realidade, o que é o homem, qual é a natureza do trabalho, quais os determi-
nantes da saúde e da doença, qual é o rumo da História) e o moral (o que é certo,
o que é errado e de onde vem o mal). Ela interpreta, explica e define o universo,
não apenas determina nossa visão do “que é”, mas também nos diz o que “deve ser”.

Cosmovisão: Conceito e Relevância


54 UNIDADE II

Alguns dos sinônimos de cosmovisão e que também podem ser utilizados e


encontrados na literatura são: sistema sagrado de crenças, ato cognitivo, pres-
suposição, ideologia e paradigma.
Segundo Carvalho (2006, p. 47), a apropriação cristã do conceito de cosmo-
visão se dá pelo fato de que:
o cristianismo europeu, não obstante as discussões em torno do con-
ceito, consciente das profundas implicações que este trouxera para as
mentes e vidas de milhões de pessoas, passou a se apropriar da catego-
ria de cosmovisão como uma forma legítima de abordagem do cristia-
nismo em um tempo de desafios à sua presença e relevância como força

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
espiritual e cultural.

A existência de uma cosmovisão cristã está fundamentada em toda a Escritura, tanto


no Antigo como no Novo Testamento. A partir do segundo século da era cristã, os
cristãos passariam a ter um sistema de pensamento teológico com pressuposições
próprias, desmembrado das concepções gregas. Podemos citar Agostinho e Calvino
como teólogos que partiram exclusivamente das Escrituras para fundamentar uma
compreensão abrangente da realidade, “tornando o cristianismo autoconsciente
de seu distinto fundamento epistemológico, metafísico e ético, em clara contra-
posição às formas não cristãs de apreensão da vida” (CARVALHO, 2006, p. 48).
A noção de peculiaridade da visão cristã de mundo e seu escopo integral,
não dualista, enfrentou uma dura oposição no processo de secularização que
ocorreu da Europa e nos Estados Unidos no final do século XIX, em que todas
as dimensões da vida social, incluindo as artes, a política, a ciência, a economia,
o direito etc., estariam divorciados da fé, reduzindo o cristianismo à esfera “reli-
giosa”, uma devoção individual e subjetiva, com pouca ou nenhuma influência
sobre as dimensões manifestas da vida – o que foi aceito por amplos movimen-
tos, incluindo o pietismo extremo e o liberalismo teológico.
O movimento contra hegemônico deste período teve em Abraham Kuyper
(1837 – 1920) uma de suas vozes mais marcantes. Teólogo e estadista holandês,
Kuyper adotou o conceito de cosmovisão como uma ferramenta poderosa de
expansão de um cristianismo integral. Ele acreditava que o cristianismo deveria
ser compreendido e articulado em termos de uma visão abrangente da realidade,
a partir da revelação de Deus nas Escrituras, conduzindo à adoração e à submis-
são a Deus em todos os domínios sociais. Assim:

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


55

o papel do cristão deveria ser agir e compreender a realidade a partir de


suas próprias pressuposições, as quais possui pela revelação de Deus, e,
ao mesmo tempo, apontar e denunciar a origem religiosa das visões de
mundo não cristas, disfarçadas em uma suposta neutralidade racional
e científica(CARVALHO, 2006, p. 50).

Sucessores de Kuyper, como o filósofo e jurista Herman Dooyeweerd (1894


– 1977), aprofundaram esta compreensão, desencadeando o movimento deno-
minado neocalvinismo holandês. Dooyeweerd seguiu Kuyper na proposição do
cristianismo como visão integral de vida e pensamento. Em decorrência desses
ensinamentos, o movimento gerou uma genealogia e uma influência própria sobre
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

muitos líderes e teólogos, que passaram a interpretar o cristianismo como uma


cosmovisão integral, ou seja, um sistema total de vida e pensamento.
A penetração da compreensão do conceito de cosmovisão no meio evan-
gélico brasileiro se dá mais recentemente, na década de 70, pela tradução da
trilogia de Francis Schaeffer: O Deus que Intervém, Morte da Razão e O Deus
Que se Revela. Posteriormente, diversas outras obras e autores abordaram
o tema, que começou a ganhar espaço em seminários teológicos, congres-
sos e conferências.
O interesse acerca do tema da cosmovisão encontrou solo fértil, a meu ver,
como uma reação à ideia de um evangelho desengajado e escapista, ou seja,
desencarnado da realidade social, com seus dilemas e desafios. A nova geração
de cristãos brasileiros, agora com mais acesso às Universidades a ao conhe-
cimento globalizado, não satisfeita com uma espiritualidade fragmentada e
desprovida de relevância, começou a refletir: quais as implicações da minha
fé na realidade social? Como minha igreja ou o movimento do qual faço parte
pode ser mais relevante em meu contexto? Como posso manifestar minha fé
publicamente, com coragem e relevância? Em outras palavras, que diferença
que a fé cristã faz em um contexto como o brasileiro, marcado por tantas injus-
tiças sociais, violência e pobreza?
A noção de cosmovisão cristã responde a muitos destes anseios e traz con-
sigo um cabedal de questões e conhecimentos, desde a proposta de uma teologia
vocacional não dualista, que confere sentido à vida de trabalho dos cristãos, como
traz todo um sentido novo de vida, uma nova razão para viver a fé, de maneira
engajada, contextualizada e encarnada.

Cosmovisão: Conceito e Relevância


56 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ELEMENTOS ESSENCIAIS DA COSMOVISÃO CRISTÃ E
SUA RELAÇÃO COM A ÉTICA SOCIAL

Partindo do pressuposto da existência de uma cosmovisão cristã, ou seja, de


uma maneira cristã de se perceber a vida e o universo, quais seriam, então, os
elementos fundamentais e fundantes dessa visão de mundo? O que a torna dis-
tinta e peculiar? O que nela é fundamental para o que mais nos interessa aqui,
que é o campo da ética, da justiça e do desenvolvimento social?
É importante esclarecer, neste ponto, que quando falamos de cosmovisão
cristã, dadas as muitas vertentes da fé cristã universal, estaremos nos referindo à
cosmovisão em seu aspecto reformado, aceita e ensinada historicamente pela igreja
reformada e evangélica, em geral, com base em consensos praticamente universais.
Nesse sentido, uma das coisas que distingue a cosmovisão reformada é a
autoridade suprema das escrituras, entendida como revelação de Deus a ponto
de partida para a formação de uma cosmovisão cristã. E, segundo lugar, ela ofe-
rece as bases para uma leitura de mundo a partir de três aspectos fundamentais
da revelação bíblica, já tratadas no primeiro capítulo: a tríade criação - queda –
redenção. Com isso, a visão de mundo reformada enfatiza que a mensagem cristã
não se inicia com o apelo à salvação, mas está fundamentada, também, na dou-
trina da boa criação de Deus.

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


57

Isto é, antes de ser o Deus salvador, Ele é o Deus criador e apenas Ele é a
fonte da ordem criada. Na ordem criacional, assim como em todo o relato bíblico,
temos os elementos fundamentais e fundantes para o estabelecimento de uma
visão cristã de mundo, capaz não apenas de interpretar o mundo, mas de trans-
formá-lo, por meio do discipulado de indivíduos, comunidades e nações. Neste
sentido, o principal desafio do cristianismo em relação à cultura contemporânea
não seria uma oposição de detalhes, mas de princípios gerais, ou seja, a proposta
da cosmovisão cristã reformada seria “apresentar princípios gerais do cristia-
nismo que nos orientarão na sua integração com as diversas dimensões da vida,
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enriquecendo a vida cristã e a capacidade da igreja em expandir o reino de Deus


sobre a terra” (CARVALHO, 2006, p. 54).
Trataremos, agora, de alguns desses princípios fundamentais e fundantes,
relevantes para o tema da responsabilidade social e da influência da Igreja na
sociedade e que devem estar presentes na concepção de projetos e programas
de intervenção social.
■■ A sacralidade intrínseca da vida humana, como reflexo do nosso valor
transcendente. Na visão cristã de mundo, toda vida humana é sagrada, a
partir da sua natureza, e não da sua funcionalidade, pois reflete a imagem
do próprio Criador. “Criou, pois, o homem à sua imagem, à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os criou” (BÍBLIA, Gênesis 1:27).
Temos aqui um firme fundamento para a ação humanitária cristã e para o
serviço incondicional. Não servimos para que haja adesão à fé, mas sim-
plesmente porque as pessoas são o objeto do nosso serviço e compaixão,
em nome de Deus. Os resultados em termos de conversões ou adesões
à fé são uma consequência do nosso serviço e testemunho, fruto do agir
do Espírito Santo, mas nunca devem ser o objetivo final de uma inter-
venção social.
Ainda como parte deste princípio, a cosmovisão cristã nos traz a noção
da igualdade de valor e de dignidade entre as pessoas, refutando as teses
de superioridade racial. Não há nenhuma evidência destas teses, a nível
da natureza essencial do ser humano, nas Escrituras Sagradas, e o cristão
comprometido com a ética e os valores do reino deve combatê-las for-
temente, reconhecendo-as como resultado da opressão, do pecado e da
tentativa de dominação do homem pelo homem.

Elementos Essenciais da Cosmovisão Cristã e sua Relação com a Ética Social


58 UNIDADE II

■■ O Homem como co-criador, chamado por Deus para ser gestor da Criação,
e, portanto, com responsabilidade e com a incumbência de ser autor da
própria história. Vemos estes princípios nos textos de Gênesis:
Também disse Deus: façamos a homem à nossa imagem, conforma a
nossa semelhança, tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre
todos os répteis que rastejam sobre a terra (BÍBLIA, Gênesis 1:26).

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Figura 1 - Dando nome aos animais


Fonte: o autor.

Nesta visão, o ser humano assume um papel protagonista, construindo


a sua própria história em cooperação com Deus. Isso contrasta com
outras visões de mundo, de cunho fatalista/animista, que colocam um ser

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


59

humano, ora como “vítima adoradora”, ora com um papel subserviente a


forças espirituais, ora como mero espectador de um destino “pré-deter-
minado”. Esse conceito é fundamental para a superação da pobreza e da
miséria, assim como para a não aceitação da resignação passiva do mal
e constitui uma das principais contribuições cristãs para o desenvolvi-
mento e o empreendedorismo humano.

Neste ponto, temos também uma correlação com o entendimento da


Natureza (Criação) como um sistema aberto, passível de sofrer a interfe-
rência do próprio Deus e da capacidade humana de agregar valor às coisas
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criadas. Neste sentido, não partilhamos de uma noção estreita de que os


recursos são totalmente escassos e apenas a redistribuição deles pode tra-
zer justiça social, mas de que novos recursos podem ser criados, de que o
empreendimento humano como resultado do Mandato Cultural, no sen-
tido de criar cultura, produzir prosperidade e justiça, não é apenas uma
possibilidade, mas uma Ordem do Criador.
■■ A equidade de gênero e a restauração da dignidade intrínseca da mulher
e do homem, como manifestações da natureza do próprio Deus. Em
Gênesis 1:27, lemos que Deus criou o homem (raça humana) à sua ima-
gem, à imagem de Deus o criou, “homem e mulher os criou”. Temos
aqui a noção de que a natureza divina é refletida igualmente no homem
e mulher, ambos assumindo diferentes formas, papéis e funções, mas
iguais em dignidade e valor.

Com a necessidade de “antropomorfização” da divindade por parte dos


sistemas religiosos, a fim de explicá-la, na cultura judaico-cristã, Deus
assumiu a forma masculina de uma cultura patriarcal. Porém, esse texto
de Gênesis, juntamente com outras passagens ao longo das Escrituras,
deixa claro que Deus é pai, mas também é mãe, e que homem e mulher,
como reflexos de quem Ele é, embora diferentes em função, são iguais
em dignidade e valor perante Ele.

Elementos Essenciais da Cosmovisão Cristã e sua Relação com a Ética Social


60 UNIDADE II

Esta noção traz à tona uma série de questões relacionadas ao desenvolvi-


mento social, pois sabemos que, na maioria das culturas, a mulher assume
um papel de subserviência em relação ao homem, tem menos acesso à edu-
cação e a recursos e, em alguns casos, é concebida como “inferior”. Também
coloca em cheque a visão cristã de equidade de gênero em contraste com
a visão humanista e ao feminismo secular, que reduz esta questão às rela-
ções de poder entre os sexos, especialmente relacionadas ao mercado de
trabalho e à autonomia econômica (embora estas sejam questões relevantes
também), e não a uma questão ainda mais radical, de natureza e dignidade

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intrínsecas, ou seja, do valor natural da mulher conferido pelo Criador.

De qualquer forma, projetos e programas de desenvolvimento social,


especialmente os relacionados ao enfrentamento à pobreza e proteção da
infância, devem estar intencionalmente direcionados ao empoderamento
da mulher, à afirmação da sua dignidade, valor e autonomia diante do
homem, ao seu protagonismo e à sua capacidade de realização.

Figura 2 - A criação humana


Fonte: o autor.

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


61

■■ O mal inerente ao homem como resultado da Queda, reforçando o


imperativo de distribuição de poder. Temos, aqui, um aspecto da visão
cristã de mundo muito importante para a arena da política e das relações
de poder numa determinada sociedade. A visão cristã de mundo em rela-
ção à humanidade é, até certo ponto, ambígua, pois assim como valoriza
incondicionalmente o ser humano como a coroa e clímax da criação, por
outro lado, reconhece a maldade do homem, como resultado da Queda,
e o pecado universal que afetou a todos. A cosmovisão cristã, portanto,
não é ingênua em relação ao ser humano, e sabe que é necessária a cria-
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ção de mecanismos de proteção do homem em relação ao seu próprio


semelhante:

“Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (BÍBLIA, Romanos 3:23);

“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente


corrupto; quem o conhecerá? ” (BÍBLIA, Jeremias 17:9);

“Não há homem justo sobre a terra que faça o bem e que não pegue”
(BÍBLIA, Eclesiastes 7:20).

Isso é particularmente relevante na arena da política, que constitui, por


definição, a esfera das relações de poder. Os cristãos sempre terão ten-
dência de desconfiar das pessoas investidas de poder, não porque sejam
piores do que ninguém, mas porque sabem que o Poder oferece oportu-
nidades para que o pecado se manifeste na sua forma mais prejudicial,
por meio do abuso, opressão e exploração, e que se “o poder corrompe, o
poder absoluto corrompe absolutamente”. Não à toa, sociedades de tradi-
ção cristã têm a tendência de serem mais democráticas, com sistemas de
governança mais descentralizado e maior distribuição de poder.

No ordenamento do Estado, essas sociedades criam sistemas de pesos e


contrapesos, garantindo que não haja muita distribuição de poder nas
mãos de poucas pessoas ou grupos. São criados, também, procedimen-
tos e uma cultura de prestação de contas e de controle social, garantindo
“freios” para o exercício do poder, seja em que nível for, tanto no sistema
de governo eclesiástico quanto civil.

Elementos Essenciais da Cosmovisão Cristã e sua Relação com a Ética Social


62 UNIDADE II

Projetos e organizações tendem a ter uma governança mais participativa


e horizontal, fazendo com que a sociedade se torne menos hierárquica e
mais equânime. A sociedade orientada, a partir de uma cosmovisão refor-
mada, é mais intolerante com a corrupção, com as oligarquias e certas
práticas comuns, como o coronelismo e o clientelismo. Além disso, tende
a se iludir menos com propostas populistas e com messianismos na arena
política, ao mesmo tempo que observa e fiscaliza mais as atividades das
pessoas investidas de poder.
■■ O homem como mordomo regente da Criação, estabelecendo as bases

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para uma ética cristã no manejo ambiental. Em contraste com outras
cosmovisões, a fé cristã traz uma visão muito peculiar da relação do ser
humano com a criação, ao compreendê-lo como mordomo, administra-
dor e regente na natureza criada. Para a visão cristã de mundo, a maneira
como o Homem administra os recursos naturais está submetida ao senho-
rio e à soberania de Deus e em obediência aos seus princípios.
Desta forma, toda ação humana no meio ambiente deve ter um compo-
nente moral e teocêntrico, ou seja, há limites éticos para essa ação, à luz
do bem comum para as futuras gerações. Ao contrário da visão huma-
nista (abordagem antropocêntrica), que coloca apenas o próprio homem
e os seus interesses no centro, a visão cristã impõe limites para a ação do
mercado e dos interesses financeiros sobre a natureza, buscando a oti-
mização de recursos, mas também a busca do bem comum, tendo como
pano de fundo a celebração da Criação como a boa obra de Deus.
O ser humano deixa de ser mero “consumidor de recursos” – mais que
isso, de ter o seu valor atrelado à sua capacidade de consumo – para assu-
mir o seu papel de fiel mordomo regente da criação, impondo a si mesmo
limites para sua latente ganância e tendência autodestrutiva.
Por outro lado, a cosmovisão cristã também se opõe à visão animista, que
idolatra as forças da natureza (abordagem biocêntrica), submetendo o

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


63

homem a elas e, muitas vezes, atribuindo à natureza um caráter animado,


com vontade e personalidade próprias, capaz de subjugar o ser humano
– a ideia de que “a natureza controla e ser humano”, e não o contrário –
o que constitui, por si só, uma forte barreira ao desenvolvimento. Nesta
visão, a natureza é caprichosa e o papel do homem se restringe à vítima
adoradora, ele está constantemente à mercê dessas forças, que o contro-
lam e são muito mais poderosas do que ele.

A “Natureza” da Natureza
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ANIMISMO TEISMO SECULARISMO

GOVERNANTE Natureza Deus Homem

PERSPECTIVA Biocêntrica Teocêntrica Antropocêntrica

Caprichosa Sistema aberto


NATUREZA Sistema fechado
(não há Sistemas) (criado)
Mente Uma boca, O animal
HOMEM Espírito A imagem de Deus
(alma vivente) superior

RECURSOS Bens Limitados Soma positiva Soma zero


Consumidor dos
PAPEL DO HOMEM Vítima Adoradora Mordomo Regente recursos

Figura 3 - A Natureza da natureza


Fonte: o autor.

É interessante notar que as abordagens humanista e animista, ao colocarem “no


centro”, como governantes, quem não deveria estar (a saber, respectivamente, o
homem e a natureza), são as que mais destroem aqueles que idolatram: o próprio
ser humano e a criação, justamente por caracterizarem uma distorção da ordem
criada. A cosmovisão cristã aponta para uma ética ambiental solidamente arraigada
nas Escrituras, e a Igreja deveria estar na vanguarda na discussão dos relevan-
tes temas relacionados à questão ambiental, mudanças climáticas e conservação.

Elementos Essenciais da Cosmovisão Cristã e sua Relação com a Ética Social


64 UNIDADE II

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CONSTRUÍMOS NOSSAS SOCIEDADES BASEADOS
NOS DEUSES QUE CULTUAMOS

Como já dissemos, um dos aspectos mais relevantes da compreensão do con-


ceito de cosmovisão é a ideia de que esta não é apenas descritiva, mas prescritiva.
Isto quer dizer que, mais do que nos dar “óculos” para compreender o universo e
conferir sentido a ele, nossa cosmovisão determina como será o mundo em que
vivemos. Por meio dos nossos óculos e da nossa maneira de ver o mundo, cha-
mamos à existência a realidade que é baseada em nossas próprias percepções.
O antropólogo David Buchdahl escreveu: “uma mudança na concepção
de Deus é um evento cultural de alguma magnitude, especialmente porque o
caráter de uma cultura é fortemente influenciado pela noção de Deus que pre-
domina dentro dela”.
Assim, elementos do caráter da divindade, como sua justiça, santidade, imu-
tabilidade, incorruptibilidade, imparcialidade, fidedignidade, previsibilidade,
compaixão e amor, trarão reflexos nas relações sociais em geral e, consequente-
mente, no tipo de sociedade que construímos. A partir desses elementos, uma
forma de se ver e interpretar o mundo é construída e, essa forma, moldando
mentes e corações, trará consequências sobre a sociedade.

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


65

Embora saibamos que cada indivíduo possui a sua própria cosmovisão, pode-
mos afirmar que há certos “traços de regularidades”, padrões mais ou menos aceitos
por uma grande parcela de determinado grupo coletivo, influenciando a maneira
como este grupo se organiza, o que ele valoriza, as instituições que cria e os com-
portamentos que legitima e aprova - é o que chamamos de “mente coletiva”. Os
padrões da mente coletiva, baseados em crenças relativamente comuns em uma
dada sociedade, determinam os seus valores. Os valores, por sua vez, governam
as vidas das pessoas, moldando os seus comportamentos. E os comportamentos
manifestam as consequências que vivemos em uma dada realidade social.
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Figura 4 - Ideias e consequências


Fonte: o autor.

Baseados nesta premissa, a essência do trabalho de transformação social, muito


longe de significar a retirada dos frutos podres, deve ser caracterizado pela
transformação das raízes, isto é, pela substituição das estruturas de pensamento
“caídas” ou pecaminosas, pelas estruturas de pensamento do reino de Deus. Já
vemos este princípio exposto, a nível individual, no texto de Romanos 12:1-2:

Construímos Nossas Sociedades Baseados nos Deuses que Cultuamos


66 UNIDADE II

Rogo-vos pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o


vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-
-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus. (BÍBLIA, Romanos 12:1-2).

A força da mente coletiva, além da legitimidade e coesão social, reside no fato


dela ser, em geral, “impermeável à experiência”. O que isso quer dizer? Temos a
tendência de adaptar à realidade a nossa volta as nossas crenças e valores, e não
o contrário. Mesmo que a realidade grite e os fatos mostrem que temos alguma
crença equivocada ou limitante, daremos um jeito de interpretar os fatos à luz

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dessas crenças. Isso acontece porque não suportamos cair no vazio e no caos da
ausência de sentido, da desorganização do mundo.
Isto é, mesmo que o mundo mostre o contrário, a tendência é que as cren-
ças sejam afirmadas, e não transformadas. Porém, isso não nos deve levar a
uma visão determinista. A fé cristã sempre vai abrir espaço para a mudança
e para a transformação, e não permite o fatalismo e a resignação passiva do
mal. Cremos que a transformação é possível, no nível individual e coletivo,
pelo ensino da verdade, no poder do Espírito Santo e pela vivência desta ver-
dade na experiência de mundo.

“A reconciliação requer justiça social porque as condições de pobreza muito


frequentemente surgem do exercício injusto de poder”.
(Tearfund: Missão, Declaração de Fé e Valores)

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


67

Um bom projeto de desenvolvimento e de serviço social deve se perguntar, por-


tanto, acerca da sua comunidade-alvo:
■■ Quais são os sinais do Reino que se observam na realidade social (como
manifestações da graça comum ou do agir de Deus) e que devem ser
afirmados?
■■ Quais são os sinais da Queda que se observam nas crenças, valores e
comportamentos individuais e coletivos (como manifestações da ideia
de “depravação total”) e que devem ser transformados?
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■■ Quais são as manifestações meramente humanas e moralmente “neutras”


(a dança, a música, a comida, as roupas etc.) e que devem ser celebradas,
como evidências do mandato cultural e da diversidade das expressões
culturais e humanas?

A resposta clara a essas perguntas e a elaboração de uma estratégia de ação a par-


tir dela e da compreensão do ensino sobre cosmovisão, constitui o “coração” de
um programa de transformação e é o que vai nos proteger de cairmos em uma
série de equívocos missiológicos históricos que marcaram a história da evan-
gelização. Esses equívocos decorreram, em grande parte, da falta de um claro
discernimento acerca da diferença entre o que precisava e o que não precisava
ser transformado em determinada comunidade ou cultura. Isto é, muitas vezes
a ação missionária e transformadora acabou sendo associada a uma imposição
da cultura do agente evangelizador/transformador sobre a cultura receptora,
caracterizando uma espécie de “colonização”.
Ao invés de levar a cultura do Reino de Deus, marcada pela Verdade, pela
Justiça e pela Beleza, desprezou-se, em grande parte, a Graça Comum que já
havia nas comunidades e culturas, e muitos dos atributos do próprio reino que
estavam lá, impondo padrões sociais e culturais que, por si só, não expressam a
cultura do Reino e a cosmovisão cristã.

Construímos Nossas Sociedades Baseados nos Deuses que Cultuamos


68 UNIDADE II

JUSTIÇA SOCIAL E COMPAIXÃO BÍBLICA

A cosmovisão cristã está baseada no caráter de um Deus que é de profunda


compaixão e misericórdia. O nosso relacionamento com o Deus da compai-
xão, necessariamente deverá nos levar ao exercício da compaixão em relação
ao próximo, especialmente os desprezados, humilhados, vulneráveis e frágeis.
O exercício da compaixão e do olhar cuidadoso em direção ao próximo consti-
tui o centro da vida cristã e do chamado do povo de Deus em um mundo caído.
É do caráter do próprio Deus que decorre o nosso compromisso com a com-

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paixão e a justiça social. Esse compromisso é muito mais do que uma emoção
ou um sentimento, mas uma escolha ética que nasce também da Imago Dei – a
consciência da imagem de Deus em cada ser humano, conferindo a ele digni-
dade inalienável e valor infinito.

Podemos dividir as causas da pobreza em três categorias principais: pobreza


causada por pecado pessoal; pobreza causada por calamidade e pobreza
causada por opressão. (...) no contexto da pobreza, o evangelho é tanto de
julgamento como de misericórdia. Para o rico e opressor, ele é a mensa-
gem de julgamento e desgraça, que exige arrependimento: “Mas ai de vós,
os ricos, pois já receberam sua consolação. Ai de vocês que agora têm far-
tura, porque passarão fome. Ai de vocês que agora riem, pois haverão de
se lamentar e chorar” (Lc 6.24,25). Mas para os pobres, o evangelho é uma
mensagem de ascensão, se eles se arrependerem e crerem: “Venham a mim
todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso”
(Mt 11.28).
Fonte: Grigg (2008, p. 64, 65).

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


69

Há inúmeros exemplos de textos bíblicos e exortações que direcionam o povo


de Deus para o exercício da justiça e da compaixão, tanto no Antigo quanto no
Novo Testamento. Citamos a seguir apenas alguns deles:
■■ Salmo 82:3 – “Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para
com o aflito e desamparado”.
■■ Zacarias 7: 9-10 – “Assim falara o Senhor dos Exércitos: executai juízo
verdadeiro, mostrai bondade e misericórdia, cada um a seu irmão; não
oprimais a viúva, nem o órfão, nem o estrangeiro, nem o pobre, nem
intente cada um, em seu coração, o mal contra o seu próximo”.
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■■ Mateus 22: 37-40 – “Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus,


de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento.
Este é o grande e primeiro mandamento”. O segundo, semelhante a este,
é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos
dependem toda a lei e os profetas”.

Na mensagem bíblica, o cuidado com os mais vulneráveis é muito mais do que


uma opção sentimental, mas uma obrigação ética, e a negligência ou omissão
em relação aos menos favorecidos é considerado um ato de extrema gravidade,
como vemos no texto de Ezequiel 16:49: “Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma,
tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera tranquilidade teve ela e suas filhas;
mas nunca amparou o pobre e o necessitado”.
O texto do Grande Julgamento, em Mateus 25, também deixa claro que os
critérios de separação das ovelhas e dos bodes diz respeito à maneira como tra-
tamos as pessoas em necessidade. Esta compreensão não nos permite aceitar de
maneira passiva um evangelho “superespiritual”, que prega a salvação da alma,
mas que é indiferente e despreza as necessidades materiais das pessoas. A busca
pela justiça neste mundo é uma das coisas que caracteriza o discípulo de Cristo.
Miller (2015) aponta que a Justiça é um produto da cultura do Reino. Significa
fazer o que correto e justo em relação aos outros, além de corrigir e reparar o
que já foi feito de errado para as pessoas.

Justiça Social e Compaixão Bíblica


70 UNIDADE II

O conceito de Justiça Social não é encontrado, nestes termos, nas Escrituras,


mas está claramente ancorado na narrativa bíblica. Miller (2015) também nos
traz um resgate histórico do termo, iniciando com Tomás de Aquino, que utili-
zou o termo justiça geral, trazendo a noção do direcionamento do homem para
o bem comum, e não apenas o seu próprio bem. Em 1840, o jesuíta italiano
Luigi Taparelli Dazeglio, a partir do conceito de Aquino, cunhou o termo justiça
social, em resposta às profundas transformações que aconteciam em decorrên-
cia da Revolução Industrial. Na perspectiva de Taparelli, o conceito de justiça
social estava enraizado na liberdade e no respeito pelos seres humanos e na habi-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
lidade de uma sociedade em permitir que a família, a igreja e as organizações e
associações de base comunitária florescessem, para o bem da coletividade. Suas
ideias influenciaram, também, a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII,
de 1891. Embora hoje, muitas vezes, o termo “justiça social” possa estar asso-
ciado apenas ao discurso “de esquerda” e de ações do Estado para redistribuição
da riqueza, sua origem tem base teológica e cristã.
Com a secularização da sociedade ocidental, a “linguagem da compaixão”
- que significa, em termos bíblicos, “sofrer com alguém, junto, com paixão”, foi
sendo gradualmente substituída pela “linguagem de direitos”, influenciando a
noção de justiça social, que passou a ter um enfoque impessoal, burocrático e
programático, e não mais baseado nas relações humanas. Esse movimento de
secularização levou e Igreja a restringir o escopo na sua ação e a compreensão
da sua missão, ao ponto de o conceito de justiça social ter sido ressignificado em
termos gerais ou, até mesmo, esquecido ou negligenciado.
A contribuição cristã para o debate acerca da erradicação da pobreza, tal-
vez, resida na compreensão de que a raiz para a injustiça é cultural, baseada na
cosmovisão das comunidades e nações e não apenas econômica. Esta última,
é apenas uma consequência da primeira, tendo em vista que o alicerce para a
pobreza material está na “pobreza de mentes e corações”, em padrões culturais
caídos e distantes dos valores do Reino de Deus. Na cosmovisão cristã, a trans-
formação social e cultural é possível pela aplicação da Verdade em todos os
domínios sociais, como resultado da compaixão e do serviço.

COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


71

O conceito de compaixão, como inteligível em termos bíblicos, está arrai-


gado na narrativa das Escrituras de forma profunda e inequívoca, expressando
a natureza do próprio Deus. Ele é chamado de “compassivo” (BÍBLIA, Êxodo
34:5,6) e a suprema manifestação dessa faceta do Seu caráter encontra-se na
encarnação de Cristo. Esse conceito, como já dissemos, vai muito além da ideia
de “sentir pena”, “sentir dó”, “emocionar-se, simpatizar-se ou identificar-se com”.
Compaixão, na cosmovisão cristã, está sempre associada à ação, a partir de
uma profunda identificação com o próximo. O amor transcendente e místico
que vem de Deus necessariamente se manifesta em ações práticas e concretas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

oriundas de um compromisso ético. A compaixão é uma atitude moral. A espi-


ritualidade bíblica, para além de uma coletânea de práticas místicas, revela-se
no encontro com o próximo, em ações de amor e serviço:
Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da im-
piedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e
despedaces todo jugo? Porventura, não é também que repartas o teu pão
com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e, se vires o nu,
o cubras, e não te escondas do teu semelhante? (BÍBLIA, Isaías 58: 6 – 7).

Com a mudança do paradigma dominante no mundo ocidental, ao longo dos


últimos 200 anos, do teísmo judaico-cristão para o humanismo secular, houve
uma transição do próprio conceito de compaixão e do entendimento do senso
comum acerca desse termo. O quadro nos ajuda a compreender o verdadeiro
significado de compaixão e sua transição para a ideia dominante atual.
Quadro 1 - Desenvolvimento da Compaixão

DE PARA
Serem humanos criados à imagem de
Seres humanos como animais racionais
Deus
Sofrer com Pena ou sentimentalismo
Fazer o bem Sentir-se bem
Compartilhamento de si, do tempo e
Doar dinheiro (para aliviar a culpa)
dos talentos
Fonte: Miller (2015, p. 55).

Justiça Social e Compaixão Bíblica


72 UNIDADE II

A ideia cristã de justiça social deriva do conceito bíblico de compaixão que, por
sua vez, está ancorado na natureza do próprio Deus. Ela está baseada na respon-
sabilidade individual, de cada pessoa, com o seu próximo, para somente depois
alavancar outros níveis de responsabilidade (família, grupos comunitários, igre-
jas, associações, governos, organismos internacionais).
Ela se expressa num compromisso ético e moral, que pode ou não envolver
sentimentos, devendo sempre levar a ações concretas de serviço incondicional
ao ser humano, criado à imagem de Deus. A manifestação desta justiça implica
renúncia, “sofrer com”, identificação e doação de si, para muito além de progra-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mas, projetos e políticas. Este é o diferencial, é a contribuição única e peculiar
da Igreja para que a justiça do Reino de Deus se manifeste na terra.
A compaixão, portanto, não é um mero sentimento fabricado. Ela nasce no
coração de quem leva a sério a própria natureza de Deus e ganha forma no cará-
ter corajoso de quem segue a Cristo nos lugares mais necessitados deste mundo.
Assim como Jesus Cristo, que nossos olhares estejam treinados para enxergar, com
compaixão, “aqueles que estão como ovelhas sem pastor” (BÍBLIA, Mateus 9:36).










COSMOVISÃO CRISTÃ: ÉTICA, JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO


73

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olá, caro(a) aluno(a)!


A Unidade II trouxe uma importante conexão entre o conceito de cosmo-
visão cristã, a compaixão bíblica e as aplicações éticas no desenvolvimento de
projetos sociais. Em um país como o Brasil, que é um dos primeiros no ranking
da desigualdade social, essa reflexão é de grande relevância.
Nesta unidade, você pode ter um olhar ainda mais específico, pensando
como os pressupostos da Reforma Protestante dialogam ainda hoje para a con-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

solidação de uma cosmovisão cristã preocupada com os problemas da sociedade.


Com isso, podemos entender que as doutrinas teológicas não devem ser cai-
xinhas de conhecimento trancafiadas em nossas mentes ou – para usar uma
metáfora bíblica – não devemos acender uma candeia e colocá-la debaixo de
uma vasilha; pelo contrário, devemos colocá-la no lugar apropriado para, assim,
iluminar toda a casa (BÍBLIA, Mateus 5:15).
Como resultado, nossa Teologia trará respostas relevantes para os desafios
que a sociedade enfrenta, com base em princípios, como: a sacralidade intrín-
seca da vida humana e, ao mesmo tempo, o mal inerente ao homem como
resultado da Queda.
Aprendemos como o estudo da cosmovisão cristã chegou ao Brasil na década
de 70 com os escritos de Francis Schaeffer e como isso pode ajudar a geração de
cristãos presentes das universidades.
Esta unidade também nos provocou a pensar como construímos nossas socie-
dades com base nos deuses que cultuamos, ou seja, os padrões da mente coletiva,
baseados em crenças relativamente comuns numa dada sociedade, determinam
os seus valores. Os valores, por sua vez, governam a vida das pessoas, moldando
os seus comportamentos. E os comportamentos manifestam as consequências
que vivemos numa dada realidade social.
Espero que você tenha aproveitado este estudo a tal ponto que encontre, a
partir de sua cosmovisão cristã, respostas para os problemas da sua cidade, da
sua igreja e do seu bairro.

Considerações Finais
74

1. O termo “cosmovisão” remonta a Emanuel Kant (1724 – 1804), filósofo alemão


que exerceu grande influência no pensamento ocidental. Ele cunhou o termo
Weltanschauung, em alemão, traduzido, posteriormente, para o seu equivalen-
te em inglês, Worldview. Segundo Carvalho (2006), como se deu o desenvolvi-
mento do conceito de uma cosmovisão especificamente cristã?
2. Uma das vozes mais marcantes na elaboração de uma cosmovisão cristã refor-
mada foi Abraham Kuyper (1837 – 1920). Teólogo e estadista holandês, Kuyper
adotou o conceito de cosmovisão como uma ferramenta poderosa de expansão
de um cristianismo integral. Segundo Kuyper, qual deveria ser o papel do cris-
tão a partir de uma cosmovisão cristã?
3. Partindo do pressuposto da existência de uma cosmovisão cristã, ou seja, de
uma maneira cristã de se perceber a vida e o universo, quais seriam, então, os
elementos fundamentais e fundantes dessa visão de mundo, o que a torna dis-
tinta e peculiar e o que nela é fundamental para o que mais nos interessa aqui,
que é o campo da ética, da justiça e do desenvolvimento social?
4. A fé cristã sempre vai abrir espaço para a mudança e para a transformação, e não
permite o fatalismo e a resignação passiva do mal. A transformação é possível, no
nível individual e coletivo, pelo ensino da verdade, no poder do Espírito Santo e
pela vivência dessa verdade na experiência de mundo. O que um bom projeto
cristão de desenvolvimento e de serviço social deve se perguntar?
5. Miller (2015, p. 25) aponta que a Justiça é um produto da cultura do Reino. Signi-
fica fazer o que é correto e justo em relação aos outros, além de corrigir e reparar
o que já foi feito de errado para as pessoas. O conceito de Justiça Social não é
encontrado, nestes termos, nas Escrituras, mas está claramente ancorado na nar-
rativa bíblica. Que contribuição específica o Cristianismo pode trazer para o
debate acerca da erradicação da pobreza?
75

Olhos, ouvidos e mãos que atuam

Sem dúvida, as boas obras de Jesus não Mateus 9.36: “Vendo ele as multidões, com-
devem ser entendidas somente como padeceu-se delas, porque estavam aflitas e
evidência da presença do reino de Deus exaustas, como ovelhas que não têm pas-
e da derrota do reino de Satanás. Foram, tor”.
além disso, e principalmente, frutos de
sua própria compaixão. Essa era a moti- Marcos 6. 34 acrescenta: “E passou a ensi-
vação suprema de seus serviços! Jesus se nar-lhes muitas coisas”.
comovia profundamente ao ver a neces-
sidade humana, e isso o movia à ação. Ao Mateus 14.14: “Desembarcando, viu Jesus
examinarmos algumas passagens que nos uma grande multidão, compadeceu-se dela
servem de exemplo, encontramos sempre o e curou os seus enfermos”.
mesmo esquema de ação. Em cada caso, foi
uma tremenda necessidade humana que Marcos 8.2-3 e Mateus 15.32: “Naqueles dias,
despertou o interesse de Jesus. quando outra vez se reuniu grande multi-
dão, e não tendo eles que comer, chamou
Marcos 1.40-41: “Aproximou-se dele um Jesus os discípulos e lhes disse: Tenho com-
leproso, rogando-lhe, de joelhos: Se paixão desta gente, porque há três dias que
quiseres, podes purificar-me. Jesus, pro- permanecem comigo, e não têm o que
fundamente compadecido, tocou-o e disse: comer. Se eu os despedir para suas casas
“Quero, fica limpo!”. em jejum, desfalecerão pelo caminho; e
alguns deles vieram de longe”.
Lucas 7.11-14: “...dirigia-se Jesus a uma
cidade chamada Naim, e (...) como se apro- Quer se tratasse de multidões ou indiví-
ximasse da porta da cidade, eis que saía duos, a sequência era a mesma. A primeira
o enterro do filho único de uma viúva; e coisa que fazia era ver. O verdadeiro amor
grande multidão da cidade ia com ela. Ven- está sempre observando com atenção, e
do-a, o Senhor se compadeceu dela e lhe os olhos de Jesus jamais estiveram fecha-
disse: Não chores! Chegando-se, tocou o dos ante a necessidade humana. Ninguém
esquife e, parando os que o conduziam, podia acusá-lo de ser como o sacerdote ou
disse: “Jovem, eu te mando: Levanta-te”. como o levita da parábola do bom samari-
tano. De ambos se diz “vendo-o (...)”, mas
Não eram somente as necessidades indi- não viram corretamente, porque passa-
viduais que despertavam a compaixão de ram “de largo” (Lc 10.31-32). Em contraste,
Jesus, mas também as necessidades das Jesus viu corretamente, pois não temia
multidões, que ele viu como “ovelhas sem encontrar-se cara a cara com a necessi-
pastor”, ou “porque havia muitos enfermos dade humana e toda a sua angustiosa
entre eles”, ou “porque não havia comido realidade. E quando viu, inevitavelmente
por vários dias e estavam famintos”. foi movido à compaixão e a um serviço
76

efetivo. Algumas vezes, expressou o seu Esses versículos são precedidos da surpre-
sentimento com palavras, mas jamais sua endente afirmação de que pelo sacrifício
compaixão se diluiu somente em palavras. de Jesus nós “conhecemos o amor”. O que
Sempre foi concretizada em atos. Viu, sen- João quer dizer é que o mundo jamais teria
tiu e agiu. A motivação para a ação passou conhecido o verdadeiro significado de amor
dos olhos ao coração e daí para as mãos. se não tivesse sido pela cruz de Cristo. “Mas
Tinha sempre compaixão ao ver a neces- isso é ridículo” – poderá replicar alguém
sidade humana, e sempre a demonstrava – “todos nós conhecemos o verdadeiro sig-
com uma ação positiva. nificado do amor. Não necessitamos de que
Jesus nos ensine”. Dificilmente essas pala-
E assim o apóstolo João, inspirado pela ine- vras críticas poderiam mudar a opinião do
xorável lógica dessa compaixão, volta ao apóstolo João. E a explicação consiste em
tema em sua primeira carta. Certamente, que todos os amores humanos tornam-
João assimilou bem a lição, ao escutar e -se pequenos perto do amor supremo.
observar Jesus em seus ensinos e ações. Por Muito amor humano é bom e nobre, mas
isso, escreve: “Nisto conhecemos o amor, em algum grau oculta motivos ulteriores
em que Cristo deu a sua vida por nós; e ou é uma mescla de generosidade e ego-
devemos dar nossa vida pelos irmãos. Ora ísmo. Somente um ato de amor puro foi
aquele que possuir recursos desde mundo realizado na história humana, e este é o
e vir a seu irmão padecer necessidade e sacrifício de Jesus na cruz. Na cruz Jesus
fechar-lhe o seu coração, como pode per- amou – e amou com amor perfeito. Ali ele
manecer nele o amor de Deus? Filhinhos, deu tudo o que tinha: deu-se a si mesmo,
não amemos de palavra, nem de língua, por aqueles que não mereciam nada, que
mas de fato e de verdade” (1 Jo 3.16-18). eram simples pecadores como nós.

Fonte: Stott (2003, p. 48-50).


MATERIAL COMPLEMENTAR

Fé Cristã e Cultura Contemporânea


Leonardo Ramos, Marcel Camargo e Rodolfo Amorim
Editora: Ultimato
Sinopse: é raro perceber alguma articulação com bases bíblicas que
contraponha a tendência cultural dominante. Não há uma mentalidade
evangélica. Assim, muitos cristãos assumem formas de pensamento que
revelam uma visão limitada do senhorio de Cristo e do alcance do reino
de Deus. Fé Cristã e Cultura Contemporânea apresenta a cosmovisão cristã
como fonte e ferramenta de transformação e, ao mesmo tempo, aponta
as possibilidades da prática cristã integral em áreas como ação social, arte,
psicologia e economia. Uma leitura essencial para os cristãos que querem responder às perguntas
do nosso tempo e atuar nos diferentes campos da cultura.

O site do L´Abri Fellowship Brasil apresenta a proposta, a estrutura, material teológico e cursos
de formação da comunidade cristã fundada por Francis Schaeffer, um dos primeiros teólogos
que refletiram sobre cosmovisão cristã e que foram lidos no Brasil. Visite a página e conheça uma
proposta prática de estudo e acolhimento com raízes teológicas de reflexão entre a fé cristã e a
cultura atual. Disponível em: <https://www.labri.org.br/>.

Material Complementar
78
REFERÊNCIAS

CARVALHO, G. V. R. (Org.). Cosmovisão cristã e transformação. Viçosa: Ultimato,


2006.
CUNHA, M.; WOOD, B. O Reino entre nós: transformação de comunidades pelo
evangelho integral. Viçosa: Ultimato, 2003.
GRIGG, V. Servos Entre os Pobres: Cristo nas favelas urbanas. Viçosa: Ultimato, 2008.
MILLER, D. Discipling Nations: the power of truth to transform cultures. Seattle:
YWAM Publishing, 1998.
______. Rethinking Social Justice: restoring biblical compassion. Seattle: YWAM
Publishing, 2015.
SIRE, J. O Universo ao Lado. Campinas: United Press, 2009
STOTT, J. Os cristãos e os desafios contemporâneos. Viçosa: Ultimato, 2014.
______. Tive Fome: um desafio a servir a Deus no mundo. São Paulo: ABU, 2003.
TEARFUND: MISSÃO, DECLARAÇÃO DE FÉ E VALORES. Teddington. [201?]. Disponível
em: <http://learn.tearfund.org/~/media/files/tilz/churches/short_introduction_to_
mission_portuguese.pdf?la=pt-pt>. Acesso em: 13 set. 2017.
79
GABARITO

1. Segundo Carvalho (2006, p. 47), a apropriação cristã do conceito de cosmovisão


se dá pelo fato de que “o cristianismo europeu, não obstante as discussões em
torno do conceito, consciente das profundas implicações que este trouxera para
as mentes e vidas de milhões de pessoas, passou a se apropriar da categoria de
cosmovisão como uma forma legítima de abordagem do cristianismo em um
tempo de desafios à sua presença e relevância como força espiritual e cultural”.
A existência de uma cosmovisão cristã está fundamentada em toda a Escritu-
ra, tanto no Antigo como no Novo Testamento. A partir do segundo século da
era cristã, os cristãos passariam a ter um sistema de pensamento teológico com
pressuposições próprias, desmembrado das concepções gregas. Podemos citar
Agostinho e Calvino como teólogos que partiram exclusivamente das Escritu-
ras para fundamentar uma compreensão abrangente da realidade, “tornando o
cristianismo autoconsciente de seu distinto fundamento epistemológico, meta-
físico e ético, em clara contraposição às formas não cristãs de apreensão da vida”
(CARVALHO, 2006, p. 48).
2. Abraham Kuyper cria que o cristianismo deveria ser compreendido e articulado
em termos de uma visão abrangente da realidade, a partir da revelação de Deus
nas Escrituras, conduzindo à adoração e à submissão a Deus em todos os domí-
nios sociais. Assim, “o papel do cristão deveria ser agir e compreender a realidade
a partir de suas próprias pressuposições, as quais possui pela revelação de Deus,
e, ao mesmo tempo, apontar e denunciar a origem religiosa das visões de mun-
do não cristas, disfarçadas em uma suposta neutralidade racional e científica”
(CARVALHO, 2006, p. 50).
3. A sacralidade intrínseca da vida humana, como reflexo do nosso valor transcen-
dente:
■■ O Homem como co-criador, chamado por Deus para ser gestor da Criação.
■■ A equidade de gênero e a restauração da dignidade intrínseca da mulher e
do homem, como manifestações da natureza do próprio Deus.
■■ O mal inerente ao homem como resultado da Queda, reforçando o impera-
tivo de distribuição de poder.
■■ O homem como mordomo regente da Criação, estabelecendo as bases para
uma ética cristã no manejo ambiental.

4. Quais são os sinais do Reino que se observam na realidade social (como manifes-
tações da graça comum ou do agir de Deus) e que devem ser afirmados?
Quais são os sinais da Queda que se observam nas crenças, valores e compor-
tamentos individuais e coletivos (como manifestações da ideia de “depravação
total”) e que devem ser transformados?
GABARITO

Quais são as manifestações meramente humanas e moralmente “neutras” (a dan-


ça, a música, a comida, as roupas etc.) e que devem ser celebradas, como evidên-
cias do mandato cultural e da diversidade das expressões culturais e humanas?
5. A contribuição cristã para o debate acerca da erradicação da pobreza, talvez,
resida na compreensão de que a raiz para a injustiça é cultural, e baseada na cos-
movisão das comunidades e nações e não apenas econômica. Esta última, é ape-
nas uma consequência da primeira, tendo em vista que o alicerce para a pobreza
material está na “pobreza de mentes e corações”, em padrões culturais caídos e
distantes dos valores do Reino de Deus. Na cosmovisão cristã, a transformação
social e cultural é possível pela aplicação da Verdade em todos os domínios so-
ciais, como resultado da compaixão e do serviço.
Professor Me. Mauricio José Silva Cunha

III
ÉTICA: CONCEITO,

UNIDADE
FUNDAMENTOS E
RESPONSABILIDADE SOCIAL

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender os conceitos de ética na Filosofia.
■■ Entender a importância de uma igreja cristocêntrica diante dos
desafios sociais contemporâneos.
■■ Discutir o papel de uma teologia e de uma espiritualidade
socialmente responsáveis.
■■ Definir o significado da “diaconia” nos textos bíblicos e seu impacto
em uma evangelização transformadora.
■■ Relacionar os conceitos de direitos humanos com a ética cristã.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Ética: conceito e fundamentos filosóficos
■■ Igreja e Ética Cristocêntrica e Responsabilidade
■■ Ética, teologia e espiritualidade
■■ Diaconia, Cidadania e Ação Evangelizadora
■■ Ética, Igreja e Direitos Humanos
83

INTRODUÇÃO

Olá, caro(a) aluno(a)!


Nesta unidade, vamos continuar nossa jornada de estudo pelo tema da ética
e da responsabilidade social da igreja no mundo atual. Você viu nas duas unida-
des anteriores que a fé cristã tem, em sua natureza, um arcabouço transformador
muito mais profundo e amplo que temos imaginado na igreja.
Esta natureza produz tanto uma cosmovisão cristã relevante para todas as
áreas da sociedade quanto uma missão integral e integralizante que dê respos-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tas aos anseios da sociedade. Primeiro, vamos analisar a conceituação de ética,


fazendo um resgate histórico da evolução do conceito e dos seus fundamentos
filosóficos, desde os filósofos gregos até ao secularismo do século XX.
Em seguida, vamos discutir sobre a ética cristã e seus elementos constituti-
vos, a partir de uma das referências no assunto, o teólogo Dietrich Bonhoeffer.
Para ele, a estruturação da Igreja pela pessoa de Cristo é o ponto de partida para
a ética cristã.
Aí, então, trataremos da relação entre ética e espiritualidade, procurando fazer
uma análise crítica da teologia cristã nesta matéria, bem como considerando a
responsabilidade social da Igreja. O divórcio entre a teologia e a espiritualidade
tornou possível estudar sobre Deus, sem conhecê-lo de fato, e mais ainda, sem
viver uma espiritualidade plena e transformadora.
Por fim, estudaremos alguns temas de especial relevância para nosso curso
na perspectiva da ética cristã, tais como: cidadania, evangelização, diaconia e
direitos humanos. Nessa parte da unidade, você vai perceber como há uma forte
correlação entre direitos humanos e os princípios cristãos, e paralelos entre os
artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e as Escrituras.
Bom estudo!

Introdução
84 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ÉTICA: CONCEITO E FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS

“Jesus Cristo reivindica para si e para o Reino de Deus a totalidade da vida


humana, com todas as suas manifestações” (Dietrich Bonhoeffer).
O dicionário define Ética como:
Parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que mo-
tivam, distorcem, disciplinam e orientam o comportamento humano,
refletindo [...] a respeito da essência das normas, valores, prescrições e
exortações presentes em qualquer realidade social (HOUAISS, [2017],
on-line)1.

“Conjunto de regras sobre os valores morais de um indivíduo, um grupo ou uma


sociedade. Parte da filosofia que aborda os fundamentos morais do comporta-
mento humano” (LAROUSSE, [2017], on-line)2.
O termo “ética” deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma pessoa).
Ética é um conjunto de valores morais e princípios que norteiam a conduta humana
na sociedade. A ética serve para que haja um equilíbrio e bom funcionamento

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


85

social, possibilitando que ninguém saia prejudicado. Nesse sentido, a ética, embora
não possa ser confundida com as leis, está relacionada com o sentimento de jus-
tiça social. Ela é construída por uma sociedade com base nos valores históricos
e culturais. Do ponto de vista da Filosofia, a Ética é uma ciência que estuda os
valores e princípios morais de uma sociedade e seus grupos.
Pallister (2002, p. 11), nos ensina que:
[...] a ética pode ser definida como um conjunto de normas que orientam
o comportamento e vivência em sociedade. Desde tempos pré-filosóficos
que existe o discurso ético, fazendo parte, por exemplo, dos códigos de leis
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de Hamurabi (Babilônia), do Egito, da Mesopotâmia e da lei de Moisés.

No contexto filosófico, ética e moral possuem diferentes significados. A ética


está associada ao estudo fundamentado dos valores morais que orientam o com-
portamento humano em sociedade, enquanto a moral são os costumes, regras,
tabus e convenções estabelecidas por cada sociedade. Os termos possuem ori-
gem etimológica distinta.
A palavra “ética” vem do grego “ethos” que significa “modo de ser” ou “cará-
ter”. Já a palavra “moral” tem origem no termo latino “morales”, que significa
“relativo aos costumes”. A moral, portanto, diz respeito ao conjunto de regras
aplicadas no cotidiano e usadas continuamente por cada cidadão. Essas regras
orientam cada indivíduo, norteando as suas ações e os seus julgamentos sobre
o que é moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau.
No sentido prático, a finalidade da ética e da moral é muito semelhante. São
ambas responsáveis por construir as bases que vão guiar a conduta do homem,
determinando o seu caráter, altruísmo e virtudes e por ensinar a melhor forma
de agir e de se comportar em sociedade.
A evolução do conceito de ética, como já dissemos, remonta à Antiguidade.
Os filósofos gregos analisaram, por exemplo, o que constituía uma pessoa boa
ou um ato bom, e a base sobre a qual podemos fazer este tipo de julgamento. Em
Platão, a preocupação ainda era no nível da pessoa, mas do que em suas ações.
Uma boa pessoa orientava bem a sua vida, “era como uma artista que aplica as
suas capacidades para a preparação de uma obra de arte. A justiça era um estado
de bem-estar na alma humana” (PALLISTER, 2002, p. 12).

Ética: Conceito e Fundamentos Filosóficos


86 UNIDADE III

Em Aristóteles surge uma ética imanente (procede do mundo dos homens e


do interior de cada ser humano) e teleológica ou utilitária (avaliada, pelo menos
em parte, pelos resultados práticos que produz). Para ele, o desenvolvimento de
princípios éticos não está, necessariamente, ligado a uma base transcendente,
ao contrário do que afirmavam o epicurismo e do estoicismo.
A reafirmação da base transcendente da ética ressurge no cristianismo, ou
seja, é somente “na relação com Deus, e com a revelação por Ele transmitida aos
homens, é que o ser humano pode encontrar uma base adequada para as suas
decisões éticas” (PALLISTER, 2002, p. 13).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Um dos grandes ícones que influenciou o pensamento cristão no campo da
ética é Agostinho. Para ele, a educação, a razão ou a contemplação, tão estima-
das pelos gregos, por si só não poderiam levar o homem a agir de forma ética. A
graça de Deus era imprescindível para transformar o coração humano.
Ele se ocupou com a ética social, e não apenas pessoal, mas, ao fazer uma
separação radical entre a “cidade de Deus” e a “cidade dos homens”, apresenta
um enorme pessimismo em relação à possibilidade de influenciar a sociedade e
um dualismo que o impedia de cultivar qualquer tipo de esperança, ainda que
relativa, para implantar os valores do Reino na sociedade humana. A ética de
Agostinho, com seu caráter transcendente e deontológico, influenciaria, mais
tarde, de forma inequívoca, a Reforma Protestante.
Tomás de Aquino, séculos mais tarde, não aceitou essa visão agostiniana
tão pessimista e dual, assim como herdou traços aristotélicos do imanentismo e
do consequencialismo em sua perspectiva da ética. Para ele, o bem poderia ser
atingido pela via da natureza e da graça.
A Reforma Protestante nos apresenta uma redescoberta da ética transcen-
dente da Bíblia e de Agostinho. Nela, é reforçado o conceito de depravação total
do homem e a consequente impossibilidade de ele agir bem, sem a transfor-
mação interior efetuada pela ação do Espírito. Em Calvino, as Escrituras são a
única fonte de autoridade e não se pretende aplicar as normas éticas da Bíblia
somente à comunidade de fé.

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


87

Calvino “compreendeu que a lei de Deus é para todos os homens que a


conhecem em parte pela revelação geral e que, perante essa lei, algum dia todos
terão que prestar contas a Deus” (PALLISTER, 2002, p. 14). A ética protestante
é, portanto, transcendente e deontológica, mas, sobretudo em Calvino, alarga
essa deontologia a todo o homem.
Um importante movimento após a Reforma, a partir de Thomas Hobbes,
desvinculou a ética de sua base transcendente e bíblica. Para ele, a análise da
natureza humana em si providencia uma base para o bem-estar geral, caracteri-
zando uma ética imanente e teleológica, em que cada um deve procurar os seus
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

verdadeiros interesses, e que estes irão coincidir com os verdadeiros interesses


da sociedade. A razão humana descobre os princípios em que a ação deve ser
fundada nas leis existentes na natureza.
Para Immanuel Kant, a razão (prática) era de fundamental importância na
definição dos princípios éticos, que estavam desvinculados da noção de reve-
lação. Para ele, este tipo de deontologia não está vinculado aos mandamentos
divinos, e a boa ação não pode derivar a sua lei a partir de alguma coisa fora de
si própria. Segundo o seu pensamento, “a linguagem acerca da lei divina, a graça,
etc., corrompe nosso sentido de sermos agentes morais cuja liberdade da deter-
minação exterior é essencial para atribuição da responsabilidade” (PALLISTER,
2002, p. 14).
Em seguimento a Kant, outros pensadores éticos da época afirmaram uma
base utilitária (teleológica) para a moralidade, por meio da procura do maior
bem para o maior número possível de pessoas. Assim, as ações podem ser deter-
minadas pelas suas consequências e não por algum princípio que nos seja ditado,
por um Deus transcendente ou pela natureza.
Segundo Pallister (2002, p. 15), “os pensadores éticos não cristãos do perí-
odo do Iluminismo e os teólogos liberais que eles influenciaram tiveram em
comum o fato de tentarem desvincular a ética da fonte transcendente da reve-
lação divina”. Para alguns, era a razão humana que direcionava a conduta ética,
para outros, eram as consequências dos nossos atos.

Ética: Conceito e Fundamentos Filosóficos


88 UNIDADE III

Em contraste, para os cristãos que creem na revelação bíblica como fonte


suprema dos valores éticos e morais, as outras fontes não são ignoradas, mas as
tradições éticas do Iluminismo e do Liberalismo, de fato, derivam estes valores
de uma revelação geral, a qual eles, mesmo sem saber, submetem-se e, embora
não creiam na Bíblia, assumem princípios éticos a ela relacionados, ao receberem
muito mais influência da cultura cristã do que eles mesmos pensam e admitem.
O século XX manteve uma postura ainda mais cética em relação a qual-
quer fonte sobrenatural que pudesse ditar os valores éticos, centrando no próprio
homem estas posições. Aqui, surge a “ética da situação”, que afirma que toda mora-

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lidade é relativa à situação em que a pessoa se encontra, sendo o único absoluto
deontológico a exigência do amor. O final do século passado, trazendo consigo a
pós-modernidade, assistiu à afirmação do pluralismo e do pragmatismo em relação
às questões de fé. No campo religioso, aquilo que funciona é aquilo que se aceita.
O supremo valor será a tolerância, e o grande pecado será dizer que alguém
está errado. Esta tolerância, logo, deve ser estendida ao campo da ética, permi-
tindo que as diferentes leituras de mundo evoquem diferentes comportamentos
éticos, que devem ser aceitos por todos. Pallister (2002, p. 18) afirma que, neste
mundo pós-moderno, “a redescoberta do mundo do sobrenatural, que poderia
ter levado a uma redescoberta da base transcendental e deontológica da ética, de
fato leva a uma ética quase totalmente imanente, subjetiva e teleológica”.
Para o autor, essa visão que evita o mundo dos absolutos representa um grande
perigo, pois não há e não pode haver certezas no campo ético, que se tornou subje-
tivista e pragmático, permitindo que cada um se centre apenas em si. Desta forma,
há um profundo contraste com a visão cristã, para a qual a ética é firmemente trans-
cendente e deontológica, embora este fato não exclua critérios imanentes (o homem
natural tem a lei escrita no seu coração – Rm 2.15) e teleológicos (o homem ganha
benefícios tangíveis por causa dos padrões éticos que assume – Efésios 6: 2 – 3 etc.).
Nesta linha, Camargo (2006, p. 178), acerca da natureza da ética, nos lem-
bra que:
[...] o pecado desordena o sistema de referência original que emana
de Deus. Assim o apelo de Cristo à igreja de Éfeso amplifica-se em sua
relevância: Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princí-
pio – Ap 2:5. O apelo é a respeito do retorno à origem, à referência,
às coordenadas absolutas..., portanto, se o reino de Deus é a realidade

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


89

absoluta, fonte de todas as coordenadas, referências conciliadoras entre


Deus e o ser humano, não faz sentido falar de um projeto ético baseado
na razão autônoma. A ética cristã referenda a dependência em Deus e
expõe a rebeldia disfarçada de autonomia.

Refletindo sobre a natureza da ética, sob uma ótica cristã, deveríamos até nos
perguntar, como nos alerta Dietrich Bonhoeffer, se faz sentido falar em ética
cristã, ou se a concepção da ética, a partir da visão cristã de mundo, nos leva à
impossibilidade de qualquer outra ética:
[...] se assim mesmo o fazemos (ou seja, se ainda desejamos falar
nos termos de uma ética cristã), isso só pode significar que a éti-
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ca cristã reivindica tematizar a origem de toda preocupação ética,


pretendendo, como crítica a toda ética, ser a concepção ética única
(BONHOEFFER, 2001, p. 15).

É assim que, da mesma forma, o filósofo Habermas nos ensina que apenas no
teísmo bíblico é possível uma ética capaz de validar e aferir todos os demais dis-
cursos pretensiosamente éticos e, evocando Kierkegaard, afirma que “a forma de
existência ética produzida a partir do esforço próprio, só pode ser estabilizada
na relação do fiel para com Deus” (HABERMAS, 2004, p. 11).










Ética: Conceito e Fundamentos Filosóficos


90 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
IGREJA E ÉTICA CRISTOCÊNTRICA E
RESPONSABILIDADE

Utilizaremos o pensamento de Dietrich Bonhoeffer para tratar dos elementos


constituintes da ética cristã e suas consequências para o engajamento social e
cultural da Igreja. Para ele, a estruturação da Igreja pela pessoa de Cristo é o
ponto de partida para a ética cristã. Sua conceituação de Igreja revela parte do
seu fundamento ético:
Deus se revela na Igreja e pela Igreja. Assim, a Igreja é o lugar onde
Deus se revela. Ela está no centro de todos os acontecimentos que rela-
cionam os homens com Deus. É o lugar onde Deus se faz presente no
mundo. Deus está presente no mundo em forma de comunidade. Em
Jesus Cristo, Deus reúne a humanidade para viver em uma comunida-
de. Em outras palavras, Cristo existe no mundo em forma de comuni-
dade de fé. Ele se identifica com ela, sem que ela se identifique com ele.
Ele vive no mundo em forma de comunidade de fé, mas a comunidade
não é Cristo. Entre a ascensão e a segunda vinda de Cristo, a comunida-
de de fé é a sua única forma possível na história. A comunidade é o cor-
po inteiro de Cristo e não um corpo sem cabeça. Cristo não é somente
a cabeça, mas o corpo inteiro, a comunidade inteira. A comunidade é
o corpo total de Cristo, o lugar onde Deus se faz presente no mundo e

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


91

adota toda a humanidade. Ela é, pois, habitat da humanidade toda. Per-


tencer à comunidade de fé é pertencer a Cristo. Estar na comunidade
é estar em Cristo. O lugar de Cristo no mundo, após a sua ascensão, é
tomado por sua comunidade, a Igreja. A Igreja é, portanto, uma pessoa
e não uma instituição. Ela é a continuação da existência histórica de
Cristo, um prolongamento da encarnação e da ação de Cristo no mun-
do (VELASQUES FILHO, 1977, p. 24).

Para Bonhoeffer, viver em comunidade é muito mais do que viver com os outros,
mas sim viver para os outros. Na comunidade, somos todos membros uns dos
outros. Para ele, a reflexão ética depende diretamente da compreensão da ação
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

estruturadora de Cristo na Igreja. Da mesma forma, Cristo estrutura o seu dis-


cípulo, o que implica a renúncia de ser um super-homem e um semideus, e
colocar-se inteiramente submisso a Ele, simplesmente homem. Ser estruturado
por Cristo significa ser justificado e tornado nova criatura.
Esta visão de Bonhoeffer da ética permite situar com equilíbrio a relevân-
cia da ação da Igreja no mundo. Deus quer ver homens e não fantasmas que
têm medo de tocar a terra. “Procuras Deus? – pergunta ele – poderás encon-
trá-lo no mundo!”. Deus está no mundo, em meio à realidade terrena. Para
Bonhoeffer (2001, p. 34):
[...] a verdadeira vida cristã não consiste em tentar-se uma vida santa,
mas em amar plenamente a vida terrestre, com suas multitudes de
tarefas, questões, sucessos e insucessos, experiências e perplexidades;
viver plenamente no mundo é participar nos sofrimentos de Deus no
mundo... aqui, Deus está no meio da realidade, não nos confins da
vida, mas no seu centro. A sua presença dá significado, revela a ori-
gem e o destino do mundo. Por isto, é necessário que o cristão esteja
presente, juntamente com Deus, no mundo. Mas tal presença implica
sofrer com Deus o sofrimento que o mundo sem Deus inflige a Deus.
Não é a religiosidade pietista que faz um cristão, mas a participação
nos sofrimentos de Deus.

É assim que Bonhoeffer desconstrói a ideia do sistema tradicional de um Deus


forte, vitorioso, que auxilie e ampare o homem em sua fraqueza, mas apresenta
um Deus fraco, com o qual ele é convidado a participar, totalmente imerso no
mundo, em sua fraqueza, impotência, tristeza, sofrimento e morte. Viver como
discípulo de Cristo significa descobrir a plenitude da realidade do mundo, a par-
tir da realidade divina.

Igreja e Ética Cristocêntrica e Responsabilidade


92 UNIDADE III

E a marca de um verdadeiro discípulo, que leva a sério a realidade do mundo


de Deus, é, segundo Bonhoeffer, uma vida responsável. Agir responsavelmente é
agir em conformidade com Cristo. Para ele, é o senso de responsabilidade e não
uma “obediência cega”, que está na origem da ação da Igreja. A ação livre e res-
ponsável, como resposta ao apelo do discipulado, feito por Cristo, é o que pode
manifestar a verdadeira ética cristã.
Para ele, a base do discernimento ético não consiste em evitar o mal e fazer
o bem, mas na compreensão da vontade de Deus. É assim que nos tornamos
livres para servir a Deus e ao próximo e discernir cotidianamente a vontade de

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Deus em situações concretas. “A origem, essência e alvo da nossa existência é
Deus e o próximo, na medida que eles se encontram conosco em Jesus Cristo”
(BONHOEFFER, 2001, p. 50).
A base do pensamento de Bonhoeffer acerca de uma Igreja que vive para
os outros está na sua Cristologia. Para isso, é necessário que a Igreja deixe de
viver para si mesma, e participe das preocupações, dores e anseios dos homens.
Ele queria que a Igreja fosse exatamente aquilo que Deus quer que ela seja: uma
presença serviçal entre os homens, capaz de discernir os verdadeiros valores
humanos, a fim de defendê-los.
Com isso, ele não pensava que um certo ativismo social poderia esvaziar a
Igreja do seu conteúdo, a ponto de lhe fazer perder a identidade, dissolvendo-
-se no mundo. Pelo contrário, agindo assim ela manifestaria verdadeiramente o
testemunho de Cristo, pelo qual o mundo creria.

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


93

ÉTICA, TEOLOGIA E
ESPIRITUALIDADE

A partir da compreensão de uma ética


cristã e da responsabilidade social da Igreja,
faremos, agora, uma crítica à produção do
pensamento teológico e uma reflexão acerca
da ideia de espiritualidade. Para Barbosa
(2001, p. 9), “quando falamos de espiritu-
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alidade, não estamos nos referindo apenas


à obra do Espírito Santo, mas também aos
movimentos do espírito humano na busca
por identidade e significado”.
Acerca dessa matéria, nos afirma o
autor Barbosa (2001, p. 11),
Enquanto que, nos primeiros séculos da Era Cristã, tanto para os pais
da igreja como para os pais do deserto, o conhecimento e o relacio-
namento eram inseparáveis, para a Era Moderna tornaram-se coisas
distintas. Para os pais da igreja, conhecer a Deus implicava em amá-lo.
A teologia e a oração não eram tarefas distintas”. Para o autor, referin-
do-se a vários pais da igreja, “conhecimento e amor, teologia e relacio-
namento eram a mesma coisa. Sua teologia não era outra coisa senão
sua própria experiência com Deus.

O divórcio entre a teologia e a espiritualidade tornou possível estudar sobre


Deus sem conhecê-lo de fato e, mais ainda, sem viver uma espiritualidade plena
e transformadora. A teologia se torna, então, estéril e não produz vida, não leva
os cristãos ao encontro do próprio Deus e do próximo, por meio de ações de
amor e de serviço incondicional. Barbosa (2001, p. 12-13) aponta que:
[...] de um lado, há o desafio teológico, de preservar fundamentos, es-
tabelecer alicerces. Construir as bases. De outro, o desafio espiritual, de
considerar as demandas e anseios do espírito, o lugar e significado da
oração e do relacionamento pessoal com Deus”. Para o autor, “precisa-
mos de uma teologia que nos desperte para um relacionamento pessoal e
verdadeiro com Deus” e “o fruto de Espírito não pode ser igualado a um
simples sentir-se bem... como em todos os outros aspectos da natureza
humana, a afetividade precisa ser interpretada, disciplinada e redimida.

Ética, Teologia e Espiritualidade


94 UNIDADE III

Podemos destacar vários elementos de uma espiritualidade mais teológica. Ela


deve ser centrada em Cristo e na Palavra de Deus, deve ter seu fundamento na
Trindade e manifestar-se na ação missionária. Mas uma das dimensões mais pro-
fundas diz respeito ao seu caráter comunitário. Segundo Barbosa (2001, p. 17):
[...] a pessoa é o ser em comunhão, que se realiza nas relações de afeto e
amizade, é altruísta, concebe a liberdade em termos de entrega, obedi-
ência e amor autodoado e abre para a revelação que se encontra fora de
si mesmo. Essa nova pessoa em Cristo recebe o outro da mesma forma
como em Cristo é recebido.

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Em outras palavras, nosso relacionamento com Deus é refletido em nossas rela-
ções com o próximo. Se nosso modelo de espiritualidade não está nos levando
ao encontro do próximo, especialmente o pobre, humilhado, frágil e desprezado,
precisamos questionar se esse modelo é, de fato, bíblico e cristocêntrico ou se
estamos vivendo apenas uma ilusão pietista e religiosa.

“O amor de Deus é sempre concreto. Ele demanda prática. Ele não permane-
ce no terreno das atitudes, mas busca o dia a dia”.
(Johannes Reimer)

O nosso modelo de teologia, ou melhor, a nossa forma de produzir o pensa-


mento teológico, vai refletir na forma como as comunidades de fé construirão
os seus posicionamentos éticos diante da realidade social. É nesse sentido que
se faz imprescindível uma teologia mais espiritual e uma espiritualidade mais
teológica, a fim de produzir uma teologia (e uma ética) a partir da revelação e
da comunhão com Deus.

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


95

DIACONIA, CIDADANIA E AÇÃO EVANGELIZADORA

Passaremos, agora, a estudar


com mais profundidade, den-
tro do escopo da ética cristã, a
noção e o conceito de diaconia
como um dos elementos cen-
trais do exercício dessa ética.
Veremos a amplitude e rele-
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vância do conceito, assim como


suas implicações para a constru-
ção da cidadania. Como um dos
elementos principais da análise,
trataremos da relação entre dia-
conia/serviço e evangelização
como uma das questões que mais têm ocupado a reflexão teológica da igreja
e suas consequências missiológicas e éticas. Segundo Hoffmann (2001, p. 23):
O objetivo da igreja cristã é trabalhar o homem, levando em conta a
sua diversidade (corpo, alma e espírito). Nesta perspectiva, pastores e
líderes têm dado diferentes ênfases em seus ministérios, de acordo com
os seus dons, a fim de garantir a interação com o ser humano. O desa-
fio continua sendo o de integrar as ações da evangelização e diaconia,
isto porque a tendência da maioria das igrejas é construir a sua ação
somente na evangelização, ignorando a outra parte. Ambas têm o res-
paldo teológico e, bem direcionadas contribuirão, sem dúvida, para o
exercício da cidadania com dignidade.

Acerca do significado mais abrangente e profundo do termo Diaconia, Hoffmann


(2001, p. 24) nos mostra que:
Diaconia é uma palavra de origem grega (diaconia) que significa ser-
viço. Ela tem um sentido amplo em que se incluem todos aqueles que
servem na igreja, como por exemplo: o pastor, a diretoria, os professo-
res, os assistentes sociais e os membros em geral. Num sentido restrito,
ela designa o serviço em favor dos necessitados.

Diaconia, Cidadania e Ação Evangelizadora


96 UNIDADE III

Já o termo evangelização, do grego euangelizomai, tem como objetivo “tornar


conhecido o evangelho de Cristo Jesus. É o ato de trazer ou anunciar boas-no-
vas, proclamar, pregar e evangelizar” (HOFFMANN, 2001, p. 24).
A intrínseca relação entre evangelização e serviço (diaconia/ação social),
como elementos indissociáveis do agir redentor de Deus, é reafirmada em Oliveira
(2001, p. 31):
[...] o contexto no qual estamos inseridos exige de nós como igreja uma
ação evangelizadora com forte conteúdo profético, capaz de fazer fren-
te aos mais diversos mecanismos e esquemas opressores e desumanos,
revelando um profundo compromisso com Deus e com o resgate da

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dignidade humana.

Para o autor, tal como tratamos na Unidade I, para que a evangelização seja trans-
formadora, capaz de promover o resgate da espiritualidade e dignidade humana,
é imprescindível romper com o dualismo que opõe corpo e alma:
[...] a indiferença e o distanciamento da igreja em relação aos problemas
e necessidades que afligem o mundo em que vivemos é, em parte, resul-
tado de uma teologia desencarnada, ..., que ensina que a verdadeira espi-
ritualidade consiste em privar o corpo de todos os seus desejos e necessi-
dades e viver na expectativa da vinda de Jesus (OLIVEIRA, 2001, p. 42).

A ação evangelizadora, tendo Cristo como modelo e referência, deve ser base-
ada na identificação com aqueles a quem servimos, no sacrifício e no amor.
Para Hoffmann, o grande desafio é traçar a relação destas duas ações da igreja
(diaconia e evangelização), visando o bem-estar do ser humano no exercício da
cidadania. Há diversos textos bíblicos que não fazem separação dessas ativida-
des, quando se trata de diaconia. Alguns deles são:

Atos 6: 1 – 7: “Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve


murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam
sendo esquecidas na distribuição diária. Então, os doze convocaram a comunidade
dos discípulos e disseram: não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus
para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa repu-
tação, cheios de Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço;
e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra. O parecer
agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espíri-
to Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


97

Antioquia. Apresentaram-no perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram


as mãos. Crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o número de
discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé”.

Nessa passagem, a igreja passava por uma crise de exclusão em sua ação social.
Nota-se que os pré-requisitos para compor a equipe liderada por Estêvão eram
os mesmos para uma equipe apostólica de evangelização aos gentios. Segundo
Hoffmann (2001, p. 25):
[...] o termo para ministério é diaconia. Deduz-se que o anúncio da
palavra, e evangelização, fazia parte da diaconia. Ao que tudo indica,
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não havia distinção entre um e outro. Poderíamos ainda dizer que os


discípulos distribuíram (diaconia) a palavra e os diáconos distribuí-
ram (diaconia) os alimentos. E isto era feito tudo em conjunto. Ambos
exerciam a diaconia. Faziam parte da ação diaconal tanto o anúncio da
palavra, por parte dos apóstolos, como a distribuição das cestas básicas,
feita pelos diáconos.

Romanos 12: 6-7: “tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi
dada; se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos
ao ministério; ou o que ensina, esmere-se em fazê-lo”.

Nessa passagem, novamente, o termo ministério (como parte dos dons dados à
igreja) é correspondente ao grego: diaconia. Diaconia, portanto, significaria o
serviço em geral prestado a outras pessoas.

2 Coríntios 9: 12-14: “porque o serviço desta assistência não só supre a necessidade


dos santos, mas também redunda em muitas graças a Deus, visto como, na prova
desta ministração, glorificam a Deus pela obediência da vossa confissão quanto ao
evangelho de Cristo e pela liberalidade com que contribuís para eles e para todos,
enquanto oram eles a vosso favor, com grande afeto, em virtude da superabun-
dante graça de Deus que há em vós”.

Aqui, da mesma forma, diaconia é serviço, ministração, relacionado à liturgia,


que também tem como significado serviço. Além disso, a diaconia favorece a koi-
nonia (comunhão) em amor, resultado deste serviço, como demonstra o texto.
Podemos, então, afirmar que “no exercício da diaconia eu exponho a minha fé
no evangelho de Cristo e sou inserido num contexto de comunhão com todos
os santos” (HOFFMANN, 2001, p. 25).

Diaconia, Cidadania e Ação Evangelizadora


98 UNIDADE III

João 2: 9 - 10: “tendo o mestre-sala provado a água transformada em vinho (não


sabendo donde viera, se bem que o sabiam os serventes que haviam tirado a
água), chamou o noivo e lhe disse: Todos costumam pôr primeiro o bom vinho e,
quando já beberam fartamente, servem o inferior; tu, porém, guardaste o bom
vinho até agora”.

Nesse texto do primeiro milagre de Jesus nas bodas de Caná da Galileia, o termo
que se refere aos serventes (empregados) é diáconos, com o significado literal de
servos ou garçons. Trata-se daqueles que estão a serviço de Deus e do próximo.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
2 Coríntios 6:4: “pelo contrário, recomendando-nos a nós mesmos como ministros
de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites,
nas prisões”.

A palavra ministros, utilizada no texto, vem do grego diaconia. Para Hoffmann


(2001, p. 26), “deduz-se que tanto pastores, evangelistas, apóstolos, presbíteros,
etc., todos são diáconos”, num sentido amplo. Também fica evidente a relação
íntima dos ministros com Deus e o serviço como consequência desta relação e
do exercício das suas vocações.

Lucas 4: 18 – 19: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para
evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restau-
ração de vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano
aceitável do Senhor”.

Aqui, temos um texto profético de Isaías que se cumpriu plenamente em Cristo,


revelando o seu propósito, que serve de exemplo e fundamento para a Igreja.
Segundo Hoffmann (2001, p. 26):
[...] nesse texto verificamos o resumo da missão de Jesus. Não temos
aqui a palavra diácono. Porém, a sua missão é um exercício da diaconia.
Os evangelhos não nos apresentam Jesus apenas como evangelista, isto
é, como mensageiro das boas-novas de Deus. Ele também é o diácono
que realiza obras de misericórdia para suprir as necessidades materiais
e físicas das pessoas.

Verificamos, pois, nesses textos, que o termo diácono, na verdade, tem um signi-
ficado muito mais profundo e abrangente daquele a que normalmente é referido
em nossas igrejas e organizações.

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


99

Exemplos da igreja primitiva

Em diversas passagens bíblicas, observamos o exercício da ética social da igreja


primitiva, que não estava preocupada se deveria ou não fazer o serviço social.
Tudo acontecia naturalmente como resultado da comunhão com Deus e com
os outros, manifestando, de forma radical, o amor do Pai no serviço, a ponto
de as pessoas terem tudo em comum e distribuírem os seus bens, à medida que
alguém tinha necessidade (Atos 2).
Nesse contexto mais coletivo da noção de diaconia, Hoffman (2001, p. 29)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

nos escreve:
O termo diaconia pode ser usado como termo técnico para a obra de
proclamar o evangelho. A igreja inteira passa a ser um corpo para o ser-
viço no mundo. É composta de membros – os servos – e funciona como
preparativo para a volta do Senhor. É preciso lembrar que fé e obras
normalmente andam juntas. Não tem como separamos estas posições.
Uma vez que fomos amparados por Cristo Jesus é hora de arregaçar as
mangas pela diaconia / evangelização.

Vemos, pois, nessas citações, uma afirmação da harmonia entre evangelização


e serviço como componentes fundamentais e concomitantes do exercício da
ética cristã.










Diaconia, Cidadania e Ação Evangelizadora


100 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ÉTICA, IGREJA E DIREITOS HUMANOS

O tema dos direitos humanos, expresso de forma mais contundente na Declaração


Universal dos Direitos Humanos, tem uma grande relevância quando falamos
de ética cristã nos dias atuais. Sabemos que há uma forte correlação entre esse
assunto e os princípios cristãos e poderíamos até traçar um paralelo entre os
artigos da Declaração e as Escrituras.
A Declaração Universal foi adotada pela Assembleia Geral no dia 10 de
dezembro de 1948, com 48 votos a favor, nenhum contra e oito abstenções. Em
seu preâmbulo, governos se comprometem, juntamente com seus povos, a toma-
rem medidas contínuas para garantir o reconhecimento e efetivo cumprimento
dos direitos humanos, anunciados na Declaração.

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


101

Ela está fundamentada em Princípios de Dignidade, Igualdade, Liberdade,


Segurança, Justiça e Paz, buscando assegurar a todos os homens acesso a esses
princípios, partindo da compreensão de sua dignidade intrínseca. Seus princípios
estão detalhados em tratados internacionais, tais como: Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, Convenção Sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança, Convenção contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, entre muitos outros.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é amplamente citada por
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

governantes, acadêmicos, advogados e cortes constitucionais, bem como por indi-


víduos que apelam a seus princípios para proteger seus direitos. A questão dos
direitos humanos remonta à Antiguidade. O primeiro registro pode ser conside-
rado o Código de Hamurabi e, mais tarde, entre os gregos, que já apresentavam,
em suas leis, um certo respeito pelo ser humano, por meio dos princípios da isogo-
ria (igualdade na liberdade para os cidadãos) e isonomia (igualdade diante da lei).
No âmbito do pensamento moderno, destaca-se John Locke e importantes
documentos que contribuíram para a construção histórica da noção de direitos
humanos, tais como a Carta de Direitos (promulgada pelo parlamento inglês,
em 1689), Declaração da Independência dos Estados Americanos (1776) e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, culminando com
a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, como resposta direta e
contundente às atrocidades e violações aos direitos que haviam ocorrido durante
as guerras mundiais da primeira metade do século XX.
Podemos afirmar com segurança que a questão dos direitos humanos está
fundamentada no absoluto reconhecimento da dignidade da pessoa humana,
um valor essencialmente cristão e profundamente bíblico. Reconhecemos esse
princípio na criação do homem à imagem e semelhança do Criador, e encontra-
mos seu ápice na encarnação de Cristo, o “Filho do Homem”.

Ética, Igreja e Direitos Humanos


102 UNIDADE III

É o conceito bíblico de imago Dei que, mais que qualquer outro, provê o
fundamento ontológico dos direitos humanos que falta às narrativas pura-
mente seculares. É duvidoso que o respeito a todos os seres humanos possa
florescer em sociedades intocadas pela visão bíblica. Historiadores médi-
cos mostraram que, por exemplo, o cuidado a recém-nascidos defeituosos
simplesmente não era uma preocupação médica na antiguidade clássica. A
moralidade de matar recém-nascidos doentes ou deformados não parece
ter sido questionada até o nascimento da igreja cristã. Nenhum escritor pa-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
gão – nem grego, nem romano, indiano ou chinês – parece ter levantado a
questão de os serem humanos terem valor ontologicamente inerente, inde-
pendente de valor social, estado legal, idade, sexo, e assim por diante.
Fonte: Peskette e Ramachandra (2005, p. 39).













ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


103

Segundo Aquino (2001, p. 90), podemos definir didaticamente quatro eta-


pas na formação dos direitos humanos.
1. Direitos de Liberdade - relativos ao fim da Idade Média e início da Idade
Moderna, com o desmantelamento do sistema feudal e a eliminação dos
chamados “privilégios de sangue”. Nesta época, reconhece-se os direitos
das pessoas à liberdade, propriedade, segurança, pensamento e resis-
tência à opressão.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

2. Direitos de Igualdade – relativos às melhores condições de vida, em


reação às péssimas condições de vida geradas pela Revolução Industrial
e em resposta às injustiças geradas pelo sistema capitalista.
3. Direitos dos povos – representados pela Declaração Universal dos Di-
reitos do Homem, ao final da Segunda Guerra Mundial, como um gran-
de documento que marca a fé nos direitos fundamentais do homem, na
dignidade e no valor da pessoa humana.
4. Ecodireitos - podemos, quem sabe, começar a pensar atualmente
numa quarta geração de direitos, mais sistêmicos e holísticos, os cha-
mados biodireitos ou ecodireitos. Eles partem de uma consciência
mais integrada e abrangente, tendo relação direta na forma como li-
damos com o ecossistema, a partir de uma visão comum para toda a
humanidade.
Fonte: adaptado de Aquino (2001, p. 90).

Atualmente, tem crescido também a consciência e a mobilização da comunidade


internacional em torno dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODSs.
Os 193 países-membros das Nações Unidas adotaram oficialmente a nova agenda
de desenvolvimento sustentável, intitulada “Transformando Nosso Mundo: A
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, na Cúpula de Desenvolvimento
Sustentável, realizada na sede da ONU, em Nova York, em setembro de 2015.
Essa agenda contém 17 Objetivos e 169 metas. A nova Agenda de desenvol-
vimento propõe uma ação mundial coordenada entre os governos, as empresas, a
academia e a sociedade civil para alcançar os ODS e suas metas, de forma a erra-
dicar a pobreza e promover vida digna para todos, dentro dos limites do planeta,
de modo a não comprometer a capacidade das futuras gerações em fazer o mesmo.

Ética, Igreja e Direitos Humanos


104 UNIDADE III

Embora os ODSs não sejam legalmente vinculantes, espera-se que os países


se apropriem da agenda e estabeleçam um arcabouço nacional para alcançarem
os 17 Objetivos. Os países têm a responsabilidade primária de acompanhar e
revisar - a nível nacional, regional e global – os progressos feitos para a imple-
mentação dos Objetivos e metas nos próximos anos.
Em termos da relação entre os fundamentos dos direitos humanos e a
igreja cristã, podemos constatar, ao longo da História, fatos, ensinos, decla-
rações e posicionamentos que evidenciam a ideia cristã acerca da pessoa
humana e sua dignidade intrínseca. Desde o período patrístico (termo que se

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
refere à presença dos chamados pais da Igreja), observamos essa relação, por
meio de Agostinho, Teófilo de Antioquia, Gregório de Nazianzeno e São João
Crisóstomo, entre outros, em discursos críticos acerca dos atos errados das
autoridades, condenação da opressão e da escravidão, assim como na denún-
cia profética contra a pobreza.
A Igreja primitiva não só tinha um discurso comprometido com a vida
humana, como também evidenciava de forma prática esse compromisso pelas
ações diaconais. Muitos historiadores fazem referência à forma como as primei-
ras comunidades de fé acolhiam os necessitados e doentes. Havia, também, uma
forte dimensão de comunhão, que transformava as comunidades de fé em ver-
dadeiros espaços terapêuticos.
Mais tarde, os mosteiros se transformaram em locais de ajuda e socorro aos
necessitados. Segundo Aquino (2001, p. 94), “faziam parte das regras das primei-
ras comunidades monásticas, a prática da hospitalidade e a proibição da negação
da ajuda aos mais carentes”.
A Idade Média, embora tenha sido marcada pelo processo de institucio-
nalização da Igreja e de inúmeros equívocos, também nos apresentaria os seus
profetas. Um deles foi Francisco de Assis, cuja imensa influência se manifestou
nos âmbitos profético (por meio da denúncia da riqueza e da avareza), prá-
tico (conferindo uma nova dimensão à ideia de diaconia, servindo a todos os
que precisassem, indistintamente) e de koinonia (com o estabelecimento das
Ordens de vida comunitária que enfatizavam um estilo de vida simples e dedi-
cado ao próximo).

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


105

Por ocasião da Reforma, alguns ensinos acerca da igualdade entre os seres


humanos se destacavam. Em Calvino, observamos que o plano original de Deus
envolvia a igualdade dos bens para todos, e que o acúmulo e concentração de
riqueza seria uma consequência do pecado e da Queda. Aquino (2001, p. 96)
escreve que:
[...] a igreja, para o reformador francês, representa o lugar onde a or-
dem original pode ser refeita e reconstruída. A igreja é o lugar onde o
plano original de Deus pode ter um reinício e onde as diferenças trazi-
das pelo pecado podem desaparecer.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Para Calvino, colocar a riqueza à disposição de Deus significava colocá-la à


disposição dos pobres, uma postura que em nada se parece com a Teologia da
Prosperidade atual. A influência de Calvino é claramente vista na reforma social
da cidade de Genebra, onde ele se estabeleceu, que acolheu os imigrantes e refu-
giados e reduziu os seus índices de violência e analfabetismo.
Mais tarde, durante o avivamento Wesleyano e como consequência deste,
a Inglaterra experimentou uma extraordinária mudança em diversos aspectos
sociais, tanto na esfera do serviço direto aos pobres e desfavorecidos, até em
mudanças estruturais, como a abolição da escravatura, por exemplo. Charles
Finney, outro ícone avivalista, afirmava que “o evangelho libera um poderoso
impulso rumo à reforma social” e acreditava que a negligência da igreja pela
reforma social entristecia o Espírito Santo e era um empecilho para o aviva-
mento. Aquino (2001, p. 98-99) afirma que:
[...] o movimento missionário do século XIX também implicava em
melhoramentos sociais. No caso do Brasil, os missionários trouxeram
consigo as ideias avançadas da república, do liberalismo e da demo-
cracia. Com estas ideias, os missionários trouxeram escolas, hospitais
e orfanatos. A evangelização nunca esteve isolada da educação e da
formação política. [...] no início do século XXI, os estudantes de te-
ologia não podem mais fazer de conta que não existem temas como
bioética, políticas públicas e direitos humanos. Uma nova geração
que honre o sangue daqueles que lutaram e morreram pela paz. Uma
nova geração, mais tolerante, diante do acirramento do fundamen-
talismo judaico, islâmico e cristão. Uma nova geração que acredita
firmemente em Cristo, que não usa sua verdade para ferir o outro,
mas para respeitar e acolher o diferente.

Ética, Igreja e Direitos Humanos


106 UNIDADE III

Os Dez Mandamentos representam, talvez, o maior testemunho de preocupação


com a forma como devemos viver em sociedade, expressando, dentro do espírito
da Lei, o que se deve e, principalmente, o que não se deve fazer. Basta observar
que são nove proibições, e somente uma orientação positiva: honrar pai e mãe.
Em Jesus Cristo, vemos a passagem para uma nova ética, não mais aquela base-
ada apenas em regras claras e proibitivas, mas um novo sentido de liberdade com
responsabilidade, que somente a Graça de Deus pode dar.
O Sermão do Monte, no Novo Testamento, representa essa nova ética base-
ada na nova aliança que ele estava nos ensinando, dentro dos elevados princípios

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
do amor e Deus de todo o coração, alma, entendimento e força - ao próximo
como a si mesmo. Um bom resumo está na consagrada frase: “Ama a Deus e faze
o que queres”. O amor a Deus e ao próximo deve nortear as nossas escolhas do
que é certo e errado, bom e ruim, melhor e pior, nas situações concretas e coti-
dianas, da vida, para muito além de regras generalizadoras (embora elas também
tenham sua utilidade e agradem certos tipos de pessoas).
Nesta lógica da graça, a liberdade é acompanhada de responsabilidade: “Todas
as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas,
mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1 Cor 6:12). O desafio
da ética cristã (quem sabe, a única ética de fato ou dizendo de outra maneira, “a
mãe de todas as éticas”), portanto, vai muito além de não fazer o que é errado, e
fazer o que é certo. Entre o branco e o preto, há milhões de tons de cinza.
A ideia de uma obediência cega, militar, baseada no “cumprir ordens”, é sim-
plista e não dá conta das realidades e dilemas cotidianos. A verdadeira ética vem,
então, como resultado do relacionamento com Deus, no discernimento entre o
que é mais ou menos edificante e conveniente, com o apoio de conselheiros pie-
dosos e da comunidade de fé. Como nos diz Velasques Filho (1977, p. 88):
[...] o conhecimento da vontade de Deus implica total submissão a Ele.
Esta submissão só se expressa através da ação responsável. Não é uma
ação qualquer, decidida e realizada pelo homem, mas a ação que Jesus
Cristo realiza no homem e mediante ele no mundo. Isto significa que,
para o cristão, não existe ação correta que não expresse a ação de Jesus
Cristo em sua vida. Agir em Cristo é agir em amor. Isto faz do amor o
significado e o conteúdo da ética cristã.

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


107

É a aplicação dessa ética, geradora de um profundo compromisso com Deus e


com o próximo, que pode transformar a sociedade, manifestando a chegada do
reino. Que você, caro(a) leitor(a), possa participar da construção deste reino
que “não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo”
(BÍBLIA, Romanos 14:7).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.














Ética, Igreja e Direitos Humanos


108 UNIDADE III

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a),
Chegamos ao fim de mais uma unidade deste livro. Esperamos que sua lei-
tura contribua para o aprofundamento e ampliação da visão cristã na sociedade.
Neste capítulo, você aprendeu sobre os significados de ética e de moral, a par-
tir de um apanhado histórico-filosófico da Antiguidade, passando pela Reforma
Protestante e chegando aos dias atuais. Assim, ficou claro que a fé cristã sempre
esteve na esfera da ética e da moral.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Aprendeu, também, a partir do olhar de Dietrich Bonhoeffer, como uma
“igreja cristocêntrica” é fundamento e modelo para os cristãos que anseiam trans-
formar a sociedade, tanto em termos de persuasão quanto em serviço.
Nesta unidade, tratamos, ainda, das falhas de uma teologia sem espiritua-
lidade e de uma espiritualidade sem teologia. Entendemos que a deficiência de
uma afeta diretamente a qualidade da outra e vice-versa. Este “divórcio” pode
lançar a vida cristã a uma irrelevância pecaminosa.
Dando sequência a essa reflexão, seu raciocínio foi conduzido a um aprofun-
damento do conceito de “diaconia” a partir da leitura de textos neotestamentários
que evidenciam como a igreja era instrumento de Deus no serviço ao próximo,
seja com palavras, seja com ações. A intrínseca relação entre evangelização e ser-
viço (diaconia/ação social) são elementos indissociáveis do agir redentor de Deus.
E, por fim, você foi incluído no debate sobre o papel da defesa dos direitos
humanos, não como um tema exclusivo de não-cristãos ou de especialistas, mas
como assunto relevante que caminha historicamente ao lado da trajetória da igreja
inserida e encarnada no mundo. Vimos que o Cristianismo pode influenciar a
sociedade para melhor tratar e cuidar das pessoas, especialmente aquelas que
vivem à margem da sociedade ou, como diria Jesus, “como ovelhas sem pastor”.
Na próxima unidade, nossa atenção estará voltada para a igreja no cenário
concreto das chamadas políticas públicas, sinalizando o reino de Deus para toda
a sociedade a longo prazo.
Bom estudo!

ÉTICA: CONCEITO, FUNDAMENTOS E RESPONSABILIDADE SOCIAL


109

1. Ética é parte da Filosofia que aborda os fundamentos morais do comportamento


humano. Contudo, neste contexto filosófico, ética e moral possuem diferentes
significados. Qual a diferença entre esses dois objetos de estudos da filoso-
fia?
2. Para Dietrich Bonhoeffer, a estruturação da Igreja pela pessoa de Cristo é o ponto
de partida para a ética cristã. Como sua conceituação de Igreja revela elemen-
tos constituintes da ética cristã e suas consequências para o engajamento
social e cultural da Igreja?
3. Segundo Ricardo Barbosa, o divórcio entre a teologia e a espiritualidade tornou
possível estudar sobre Deus sem conhecê-lo de fato e, mais ainda, sem viver uma
espiritualidade plena e transformadora. Que elementos poderíamos destacar
para uma espiritualidade mais teológica?
4. Hoffmann nos mostra que Diaconia é uma palavra de origem grega (diaconia)
que significa serviço. Ela tem um sentido amplo em que se incluem todos aque-
les que servem na igreja, como o pastor, a diretoria, os professores, os assistentes
sociais e os membros em geral. Sendo assim, ele propõe que o significado do ter-
mo “diaconia” seja mais integrado ao do termo “evangelização”. Como Hoffmann
imagina que a igreja seria se isso acontecesse, de fato?
5. O tema dos direitos humanos, expresso de forma mais contundente na Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos, tem uma grande relevância quando fala-
mos de ética cristã nos dias atuais. Sabemos que há uma forte correlação entre
esse assunto e os princípios cristãos, e poderíamos até traçar um paralelo entre
os artigos da Declaração e as Escrituras. Discorra sobre a história e a relevância
da Declaração.
110

“Ó homem, ele te declarou o que é bom. dar-lhes o que é devido ou pertence por
Por acaso o Senhor exige de ti alguma coisa direito. Assim sendo, lemos: “Defenda os
além disto: que pratiques a justiça, ames a direitos dos pobres e dos necessitados” (Pv
misericórdia e andes em humildade com o 31.9, NVI). Mishpat é dar às pessoas o que
teu Deus?” (Miqueias 6.8). lhes é devido, seja punição, seja proteção
ou cuidado.
Miqueias 6.8 resume o modo de vida que
Deus quer que tenhamos. Andar em humil- É por isso que, se lermos todos os versí-
dade com Deus é conhecê-lo intimamente culos em que o termo aparece no Antigo
e estar atento ao que ele deseja e ama. E Testamento, observaremos que os mes-
o que está implícito nisso? O versículo nos mos grupos de pessoas sempre aparecem.
manda praticar a justiça e amar a miseri- Repetidas vezes, mishpat descreve cuidar
córdia, duas ações que, à primeira vista, da causa dos órfãos, das viúvas, dos estran-
parecem coisas diferentes, mas não são. O geiros e dos pobres – conhecidos como “o
termo hebraico para “misericórdia” é che- quarteto da vulnerabilidade”.
sedh, graça e compaixão incondicionais
de Deus. O termo hebraico para “justiça” é “Assim falou o Senhor dos Exércitos: Prati-
mishpat. Em Miquéias 6.8, “mishpat enfa- cai a justiça verdadeira, mostrai bondade e
tiza a ação, e chesedh, a atitude [ou motivo] compaixão, cada um para com o seu irmão;
por trás da ação”. Para andarmos com Deus, e não oprimais a viúva, o órfão, o estran-
então, temos de fazer justiça, com amor geiro e o pobre... (Zc 7.9-10).
misericordioso.
Nas sociedades agrárias pré-modernas,
O termo mishpat em suas várias formas esses quatro grupos não tinham poder
ocorre mais de duzentas vezes no Antigo social. Mal tinham o que comer e, se hou-
Testamento Hebraico. De acordo com vesse fome na terra, invasão ou até mesmo
seu significado mais básico, devemos tra- distúrbio social, morreriam em questão de
tar as pessoas com imparcialidade. Desse dias. Hoje esse quarteto abrangeria refugia-
modo, Levítico 24.22 adverte Israel a usar dos, trabalhadores imigrantes, os sem-teto,
“a mesma mishpat (regra da lei) tanto para e os muitos idosos e pais/mães que cuidam
o estrangeiro como para o natural”. Mishpat sozinhos dos filhos.
significa absolver ou punir cada pessoa
nos méritos do caso, independentemente Conforme a Bíblia, a mishpat, ou a justiça,
da raça ou posição social. As pessoas que de uma sociedade é avaliada de acordo
cometerem o mesmo erro devem receber com o tratamento dado a esses grupos.
a mesma punição. Contudo, mishpat sig- Qualquer negligência em relação às neces-
nifica mais do que punição justa pelo erro sidades de quem faz parte desse quarteto
cometido. Significa assegurar os direitos não é simplesmente falta de misericór-
de cada um. Deuteronômio 18 ordena que dia ou caridade, mas violação da justiça,
os sacerdotes do tabernáculo sejam sus- da mishpat. Deus ama e defende quem
tentados por uma porcentagem da renda tem menos poder econômico e social e
do povo. Esse sustento é descrito como devemos agir da mesma forma. É esse o
“mishpat dos sacerdotes”, que significa significado de “fazer justiça”.
Fonte: Keller (2013, p. 24-26).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Confesar & Compartir: declaraciones evangélicas sobre


desafíos contemporáneos (espanhol)
World Evangelical Fellowship
Editora: WEF
Sinopse: a Aliança Evangélica Mundial é a instituição de maior
representatividade entre os cristãos protestantes. Esse livro, em sua
versão em espanhol, reúne cinco declarações teológicas oficiais
da WEF sobre temas importantes: pluralismo, meio ambiente,
evangelização dos pobres e teologia da prosperidade. Como diz no
prefácio o teólogo peruano Pedro Arana, “umas das características
inerentes à natureza do amor é a sua centrifugacidade, se transborda,
se compartilha”. Esse livro é uma tentativa de não deixar as reflexões
ricas da igreja no território restrito dos teólogos de plantão, mas a toda
a igreja.

Para celebrar os 500 anos da Reforma Protestante, a Aliança Evangélica Brasileira tem realizado
uma série de debates pela internet sobre aspectos relacionados à igreja e à sociedade. É possível
ouvir todos os debates já realizados em uma página especial. Disponível em: <http://www.
aliancaevangelica.org.br/500anos/>.

Material Complementar
112
REFERÊNCIAS

AQUINO, J. Igreja e Direitos Humanos. Espiritualidade, Cidadania e Ética, Recife,


ano III, n. 3, dez., 2001.
BARBOSA, R. Espiritualidade e espiritualidades. Espiritualidade, Cidadania e Ética,
Recife, ano III, n. 3, dez., 2001.
BONHOEFFER, D. Ética. Trad. Helberto Michel. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
CAMARGO, M. L. Da possibilidade de ume ética cristã, e da impossibilidade de qual-
quer outra ética. In: CARVALHO, G. V. R. (Org.). Cosmovisão cristã e transformação.
Viçosa: Ultimato, 2006.
EVANGELIZAÇÃO E RESPONSABILIDADE SOCIAL. Relatório da Consulta Internacio-
nal em Grand Rapids sob a a presidência de John Stott. Comissão de Lausanne para
a Evangelização Mundial e World Evangelical Fellowship. São Paulo: ABU editora;
Visão Mundial, 2004.
HABERMAS, J. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2004.
HOFFMANN, W. Diaconia, Bíblia e Cidadania. Espiritualidade, Cidadania e Ética,
Recife, ano III, n. 3, dez., 2001.
KELLER, T. Justiça Generosa: a graça de Deus e a justiça social. São Paulo: Vida Nova,
2013.
OLIVEIRA, R. C. M. Evangelização e Cidadania. Espiritualidade, Cidadania e Ética,
Recife (PE), ano III, n. 3, dez., 2001.
PALLISTER, A. Ética cristã hoje. Vivendo um cristianismo coerente numa sociedade
em mudança rápida. Caldas da rainha: Núcleo, 2002.
PESKETTE, H.; RAMACHANDRA, V. A Mensagem da Missão: a glória de Cristo em
todo o tempo e espaço. São Paulo: ABU Editora, 2005.
REIMER, J. Abraçando o Mundo: teologia de implantação de igrejas relevantes para
a sociedade. Curitiba: Esperança, 2011.
VELASQUES FILHO, P. Uma ética para nossos dias. Origem e evolução do pensa-
mento ético de Dietrich Bonhoeffer. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista,
1977.

REFERÊNCIAS ON-LINE

1 Em: <https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#0>. Aces-


so em: 27 dez. 2017.
2 Em: <http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais>. Acesso em: 27 dez. 2017.
113
GABARITO

1. A ética está associada ao estudo fundamentado dos valores morais que orien-
tam o comportamento humano em sociedade, enquanto a moral são os costu-
mes, regras, tabus e convenções estabelecidas por cada sociedade. Os termos
possuem origem etimológica distinta. A palavra “ética” vem do grego ethos que
significa “modo de ser” ou “caráter”. Já a palavra “moral” tem origem no termo
latino Morales, que significa “relativo aos costumes”.
A moral, portanto, diz respeito ao conjunto de regras aplicadas no cotidiano e
usadas continuamente por cada cidadão. Essas regras orientam cada indivíduo,
norteando as suas ações e os seus julgamentos sobre o que é moral ou imoral,
certo ou errado, bom ou mau. No sentido prático, a finalidade da ética e da mo-
ral é muito semelhante. São ambas responsáveis por construir as bases que vão
guiar a conduta do homem, determinando o seu caráter, altruísmo e virtudes, e
por ensinar a melhor forma de agir e de se comportar em sociedade.
2. Para Bonhoeffer, viver em comunidade é muito mais do que viver com os ou-
tros, mas sem viver para os outros. Na comunidade, somos todos membros uns
dos outros. Para ele, a reflexão ética depende diretamente da compreensão da
ação estruturadora de Cristo na Igreja. Da mesma forma, Cristo estrutura o seu
discípulo, o que implica a renúncia de ser um super-homem e um semideus, e
colocar-se inteiramente submisso a Ele, simplesmente homem. Ser estruturado
por Cristo significa ser justificado e tornado nova criatura.
3. Podemos destacar vários elementos de uma espiritualidade mais teológica. Ela
deve ser centrada em Cristo e na Palavra de Deus, deve ter seu fundamento na
Trindade e manifestar-se na ação missionária. Porém, uma das dimensões mais
profundas diz respeito ao seu caráter comunitário. Segundo Barbosa (2001, p.
17), “a pessoa é o ser em comunhão, que se realiza nas relações de afeto e ami-
zade, é altruísta, concebe a liberdade em termos de entrega, obediência e amor
autodoado e abre para a revelação que se encontra fora de si mesmo. Essa nova
pessoa em Cristo recebe o outro da mesma forma como em Cristo é recebido”.
4. A ação evangelizadora, tendo Cristo como modelo e referência, deve ser ba-
seada na identificação com aqueles a quem servimos, no sacrifício e no amor.
Para Hoffmann, o grande desafio é traçar a relação destas duas ações da igreja
(diaconia e evangelização), visando o bem-estar do ser humano no exercício da
cidadania. Para Hoffmann (2001, p. 29), “o termo diaconia pode ser usado como
termo técnico para a obra de proclamar o evangelho. A igreja inteira passa a ser
um corpo para o serviço no mundo. É composta de membros – os servos – e fun-
ciona como preparativo para a volta do Senhor. É preciso lembrar que fé e obras
normalmente andam juntas. Não tem como separamos estas posições. Uma vez
que fomos amparados por Cristo Jesus é hora de arregaçar as mangas pela dia-
conia / evangelização”.
GABARITO

5. A Declaração Universal foi adotada pela Assembleia Geral no dia 10 de dezem-


bro de 1948, com 48 votos a favor, nenhum contra e oito abstenções. Em seu pre-
âmbulo, governos se comprometem, juntamente com seus povos, a tomarem
medidas contínuas para garantir o reconhecimento e efetivo cumprimento dos
direitos humanos, anunciados na Declaração. Ela está fundamentada em Princí-
pios de Dignidade, Igualdade, Liberdade, Segurança, Justiça e Paz, buscando as-
segurar a todos os homens acesso a esses princípios, partindo da compreensão
de sua dignidade intrínseca.
Seus princípios estão detalhados em tratados internacionais, tais como: Conven-
ção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Ra-
cial, Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra
a Mulher, Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, Convenção con-
tra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
entre muitos outros. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é amplamen-
te citada por governantes, acadêmicos, advogados e cortes constitucionais, bem
como por indivíduos que apelam a seus princípios para proteger seus direitos.
Professor Me. Mauricio José Silva Cunha

IV
IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS:

UNIDADE
SINALIZANDO O REINO DE
DEUS NA ESFERA PÚBLICA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Entender os princípios fundantes sobre a responsabilidade social
presentes no Antigo Testamento.
■■ Apresentar as implicações sociopolíticas no significado do Evangelho
e da prática missionária da igreja.
■■ Compreender o conceito de advocacy e sua importância como
plataforma para a atuação pública na defesa dos direitos humanos.
■■ Analisar o trabalho de Advocacy em seus diferentes níveis de atuação
e a atuação da igreja neste campo.
■■ Conhecer a experiência da igreja “Encontro com Deus” na defesa
dos direitos das crianças e dos adolescentes na região periférica de
Curitiba.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Antigo Testamento e Ordem Social
■■ O significado político do Evangelho
■■ Advocacy e Incidência em Políticas Públicas
■■ Advocacy: níveis, estratégias e princípios orientadores
■■ Estudo de caso: uma experiência de inserção em políticas públicas a
partir da igreja local: o caso da Associação Beneficente “Encontro com
Deus”, de Curitiba.
117

INTRODUÇÃO

Olá, caro(a) aluno(a)!


Nossa jornada continua e, nesta unidade, estudaremos o significado e a
importância da atuação sociopolítica em um país como o nosso: cheio de cor-
rupção e assolado pela desigualdade social. Algumas leis do Antigo Testamento
nos trazem princípios realmente essenciais para pensarmos a luta em favor de
uma sociedade mais justa e solidária.
A pergunta que sempre incomoda é: pode o cristão participar ativamente
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da esfera política sem “perder a alma”? Ou isso tem a ver com o “Evangelho”? A
relação entre a Igreja e a Política (aqui compreendida, de uma forma mais ampla,
como as relações de poder, ou seja, a “esfera de soberania” ou “domínio social”
relacionado com o exercício do poder e o Estado numa determinada sociedade)
é um tema controverso e, muitas vezes, mal compreendido, mas que precisamos
abordar se queremos de fato ser uma Igreja que exerce sua missão e seu papel de
manifestar os sinais do Reino de Deus aqui na Terra.
Você sabe o que significa o tempo em inglês (sem tradução para o portu-
guês) Advocacy? Neste capítulo, você vai aprender que o conceito tem a ver com
toda a ação política realizada individual ou coletivamente, com o intuito de gerar
mudanças em políticas públicas e sistemas de governo em prol de pessoas ou
grupos específicos.
Nesta unidade, você, ainda, terá uma boa base prática do que temos estu-
dado até aqui em termos de atuação na arena pública em favor da justiça social.
Isto é, conheceremos como aplicar a Advocacy e, ainda, conhecermos a fundo o
estudo de caso da Igreja Encontro com Deus que, em sua trajetória, mesmo que
recente, tem conseguido fazer diferença na vida de crianças e famílias, além de
atuar concretamente nas esferas públicas no monitoramento das políticas mais
justas no Paraná.
Em síntese, nesta unidade, você compreenderá melhor o embasamento
bíblico, teológico e histórico da participação da Igreja nas políticas públicas,
assim como conhecerá mais sobre as ferramentas de ação, seus conceitos-chave
e conhecer um estudo de caso real acerca dessa área.
Bons estudos!

Introdução
118 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ANTIGO TESTAMENTO E ORDEM SOCIAL

Uma das questões a serem superadas para que a Igreja seja relevante no compro-
metimento de sua responsabilidade social na arena da influência sobre as políticas
públicas diz respeito à compreensão da importância da participação social e cidadã
por parte dos cristãos, não apenas como um “adendo” à “real” missão da Igreja,
mas como cerne e essência do chamado de Deus para o seu povo. A militância
sociopolítica, longe de ser considerada uma atividade “mundana”, encontra-se per-
meada nas Escrituras como parte central à própria proposta de missão da Igreja.
Desde o Antigo Testamento, Deus estabelece uma ordem social a ser seguida
que, caso cumprida, traria prosperidade e justiça para todos em Israel. Essa ordem
social manifestava, entre outras coisas, a sinalização do Reinado de Deus na terra
e traduzia os elementos do seu caráter e das suas plenas intenções para a Criação.

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


119

O cumprimento das ordenanças de Deus em Israel fazia parte do ordena-


mento jurídico da Nação, como componente da lei mosaica e não era entendido
como “caridade” ou mera opção de comportamento. A não observância dos
preceitos estabelecidos por Deus no ordenamento jurídico e social de Israel
era considerada um caso de extrema gravidade. Vejam no caso do pecado de
Sodoma, relatado em Ezequiel 16:49: “eis que esta foi a iniquidade de Sodoma,
tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera tranquilidade teve ela e suas filhas;
mas nunca amparou o pobre e o necessitado”.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

“O mundo espera dos cristãos que elevem as suas vozes tão altas e tão clara-
mente..., que rejeitem as abstrações vagas e se coloquem firmemente diante
do rosto sangrento da história”.
(Albert Camus)

A seguir, vejamos alguns exemplos de textos do Antigo Testamento que apon-


tam princípios relacionados à Justiça do Reino de Deus. É importante ressaltar
que estes textos, oriundos de um contexto histórico e cultural muito diferentes
do nosso, não poderiam ser aplicados atualmente de forma literal, ao pé da letra,
mas devemos olhar para eles e buscar o “espírito da lei” ou o princípio fundante
que rege aquela lei.

Antigo Testamento e Ordem Social


120 UNIDADE IV

O ano da remissão das dívidas:

Deus comunica a seu povo um princípio básico de equidade e justiça:


Ao fim de cada sete anos, farás remissão. Este, pois, é o modo da remis-
são: todo credor que emprestou ao seu próximo alguma coisa remitirá
o que havia emprestado; não o exigirá do seu próximo ou do seu irmão,
pois a remissão do Senhor é proclamada. Do estranho podes exigi-lo,
mas o que tiveres em poder do teu irmão, quitá-lo-ás; para que entre ti
não haja pobre; pois o senhor, teu Deus, te abençoará abundantemente
na terra que te dá por herança, para a possuíres, se apenas ouvires, atenta-

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mente, a voz do Senhor, teu Deus, para cuidares em cumprir todos estes
mandamentos que hoje te ordeno. Pois o Senhor, teu Deus, te abençoará,
como tem dito; assim, emprestarás a muitas nações, mas não tomarás
empréstimos; e dominarás muitas nações, porém elas não te dominarão.
Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas
cidades, na tua terra que o Senhor, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu
coração, nem fecharás as mãos ao teu irmão pobre; antes, lhe abrirás de
todo a mão e lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua ne-
cessidade. Guarda-te não haja pensamento vil no teu coração, nem digas:
Está próximo o sétimo ano, o ano da remissão, de sorte que os teus olhos
sejam malignos para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada, e ele cla-
me contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado. Livremente, lhe darás, e não
seja maligno o teu coração, quando lho deres; pois, por isso, te abençoará
o Senhor, teu Deus, em toda a tua obra e em tudo o que empreenderes.
Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te ordeno: livre-
mente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre
na tua terra (BÍBLIA, Deuteronômio 15.1-11).

Por meio do ano da remissão, uma injustiça histórica e inter-generacional era


corrigida, permitindo que houvesse uma recuperação daqueles que estavam
em desvantagem no sistema econômico. O objetivo final seria a erradicação da
pobreza, uma das marcas de Queda, e que não deveria fazer parte da realidade
do povo de Deus. Infelizmente, não há evidência histórica de que Israel tenha, de
fato, praticado o ano da remissão, razão pela qual a existência perene dos pobres
já nos é pré-anunciada no versículo 11.
O pousio (período geralmente de um ano em que as terras são deixadas sem
semeadura, para repousarem) da terra em favor dos pobres, revelando o cuidado
de Deus com os menos favorecidos:

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


121

Seis anos semearás a tua terra e recolherás os seus frutos; porém, no


sétimo ano, a deixarás descansar e não a cultivarás, para que os pobres
do teu povo achem o que comer, e do sobejo comam os animais do
campo. Assim farás com a tua vinha e com o teu olival (BÍBLIA, Êxodo
23:10-11).

Preocupações com as condições de vida do trabalhador, introduzindo ao povo


de Israel um importante elemento do direito e da justiça:
Não oprimirás o jornaleiro pobre e necessitado, seja ele teu irmão ou
estrangeiro que está na tua terra na tua cidade. No seu dia, lhe darás o
seu salário, antes do por-do-sol, porquanto é pobre, e disso depende a
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sua vida; para que não clame contra ti ao senhor, e haja em ti pecado
(BÍBLIA, Deuteronômio 24:14-15).

A justiça na sociedade incluía o salário adequado e pago de forma justa, proibindo


qualquer forma de opressão ou exploração do mais fraco pelo mais forte. Disposições
orientadas a proteger o consumidor, garantir medidas certas e preço justo:
Na tua bolsa, não terás pesos diversos, um grande e um pequeno. Na
tua casa, não terás duas sortes de efa, um grande e um pequeno. Terás
peso integral e justo, efa integral e justo; para que se prolonguem os
teus dias na terra que te dá o Senhor, teu Deus. Porque é abominação ao
Senhor, teu Deus, todo aquele que pratica tal injustiça (BÍBLIA, Deute-
ronômio 25:13-16).

Os princípios da lei incluíam relações sociais justas no que diz respeito às trocas eco-
nômicas e negociações, de modo que nenhuma das partes saísse prejudicada. O texto
é muito radical ao condenar os que se aproveitam das pessoas, tentando tirar vanta-
gens sobre elas. Esse princípio é fundamental para o estabelecimento de confiança
e justiça nas relações comerciais, bases para o desenvolvimento e a prosperidade.
O apoio aos pobres e a proibição da usura, apontando para uma sociedade
justa e solidária:

Se teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então, sustentá-


-lo-ás. Como estrangeiro e peregrino ele viverá contigo. Não receberás
dele juros nem ganho; teme, porém, ao teu Deus, para que teu irmão
viva contigo. Não lhe darás teu dinheiro com juros, nem lhe darás o teu
mantimento por causa de lucro. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos
tirei da terra do Egito, para vos dar a terra de Canaã e para ser o vosso
Deus (BÍBLIA, Levítico 25.35-38).

Antigo Testamento e Ordem Social


122 UNIDADE IV

Oliveiras, bagos de vinha e espigas em favor dos mais vulneráveis da terra: o


estrangeiro, o órfão e a viúva, mostrando ao povo de Deus o princípio da prio-
rização dos que estão em uma condição de maior vulnerabilidade:
Quando também segares a messe da tua terra, o canto do teu campo
não segarás totalmente, nem as espigar caídas colherás da tua messe.
Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha;
deixá-los ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o Senhor, vosso Deus
(BÍBLIA, Levítico 19: 9 -10).

Da mesma forma:
Quando no teu campo, segares a messe e, nele, esqueceres um feixe de

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espigas, não voltarás a tomá-lo; para o estrangeiro, para o órfão e para a
viúva será; para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em toda obra das tuas
mãos. Quando sacudires a tua oliveira, não voltarás a colher o fruto dos
ramos; para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será. Quando vin-
dimares a tua vinha, não tornarás a rebuscá-la, para o estrangeiro, para o
órfão e para a viúva será o restante (BÍBLIA, Deuteronômio 24: 19-21).

Os textos anteriores reforçam os princípios da lei mosaica de que o povo de


Deus deveria ter o coração e a mente treinados para a solidariedade, como um
dos componentes centrais da ordem social. Aqui, os públicos-alvo mencionados
(estrangeiro, órfão e viúva) representam exatamente os mais vulneráveis, aqueles
que, de fato, precisavam da ajuda e da solidariedade da sociedade mais abran-
gente. Em Israel, essas pessoas não haveriam de ficar desassistidas.
Vemos que os princípios fundamentais e fundantes da ordem social que
deveria ser implantada em Israel são afirmados e até radicalizados pelos profetas,
diante da não-obediência do povo judeu. Uma boa parte da denúncia profética,
do discurso e da prática dos homens levantados por Deus para alertar e repreen-
der Israel do seu erro, buscando trazer a Nação de volta para a vontade de Deus,
se referia justamente às questões da equidade e da justiça social.
Este componente da visão de mundo judaica, mais tarde, será reforçado por
João Batista (“quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem, e quem tiver
comida, faça o mesmo” Lucas 3:11) e pelo próprio Jesus (vide as parábolas do
bom samaritano e das ovelhas e dos bodes, por exemplo), influenciando a igreja
primitiva, como no caso da distribuição da comida às viúvas pobres (Atos 6: 1 –
6) e à recomendação apostólica do cuidado dos pobres (Gálatas 2:10).

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


123
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O SIGNIFICADO POLÍTICO DO EVANGELHO

O Evangelho, por sua vez, não anulou as implicações sociopolíticas do Reino de


Deus. Ao contrário, a própria palavra “Evangelho” (euangelion, no grego) traz
profundas conotações políticas, uma vez que se trata de um termo com alto sig-
nificado político, não sendo um termo religioso usado primeiramente pelos
primeiros seguidores de Cristo, mas uma palavra emprestada dos discursos de
generais e césares romanos.
O “evangelho”, na verdade, anunciava a vitória do imperador, a chegada do
“sóter”, o salvador, o realizador da Paz (neste sentido, da “Pax Romana”). Quando
os apóstolos e primeiros cristãos mantiveram o termo “Evangelho”, portanto,
estavam tomando emprestado da esfera política um termo que significava uma
nova ordem, não apenas “religiosa”, mas sociopolítica, ou seja, um novo projeto
civilizacional, o discipulado das nações diante do governo de um novo Rei, con-
forme anunciado pelo anjo a Maria (Lucas 1:31-33).

O Significado Político do Evangelho


124 UNIDADE IV

A novidade é que esse Reino girava em torno de uma figura da Galileia executada
pelo Império. A execução de Jesus mostrava a sua ameaça ao sistema dominante e
uma alternativa à lógica cultural imperial. O Evangelho de Cristo nasce, então, num
contexto de abuso de poder, como esperança, fé e plataforma de ação de uma comu-
nidade marginalizada que sofria os efeitos da opressão, anunciando um novo rei e
uma nova realidade espiritual e temporal. A Galileia de Jesus era uma região mar-
cada por sofrimento, opressão e resistência. Os galileus eram obrigados a oferecer
seu trabalho e o que mais tivessem para atender aos interesses do sistema político
e religioso que privilegiava as elites da época, aliançadas com o poder imperial.

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O ministério de Jesus, portanto, como o Senhor da Criação, tem amplitude total,
alcançando todos os domínios sociais, inclusive a arena da política.

Talvez alguém pergunte: os cristãos não deviam ficar longe da política? A


resposta é que isso depende do que se entende por política. A definição
estreita é que política é a ciência do governo, a estruturação de leis que re-
presentam as crenças e os valores da sociedade. A definição ampla, porém,
uma vez que polis significa cidade, é viver junto em comunidade. No sentido
estreito, a política é para os políticos. A vocação deles é desenvolver políti-
cas e programas para mudanças de leis. No sentido amplo, porém, a políti-
ca é para todos, uma vez que Jesus envia todos nós ao mundo para servir,
e todos nós somos chamados para sermos cidadãos responsáveis, exercer
nossos direitos democráticos, votar e procurar influenciar o voto de outras
pessoas, falar e escrever sobre questões atuais e nos envolver em protestos
públicos pacíficos e, assim, ser sal e luz para a sociedade.
Fonte: Stott (2013, p. 137).

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


125

Historicamente, temos três diferentes tradições protestantes no que diz respeito


à relação do Reino de Deus com a Política (CAVALCANTI, 2002):
1. Reino de Deus e domínio da política como antagônicos – como parte da
tradição purista, que tende a práticas de isolacionismo da Igreja, enfati-
zando o “céu” como objetivo último da igreja e dos cristãos, muitas vezes
orientada a partir do chamado “pessimismo cristão” (“o mundo jaz no
maligno e só tende a piorar mais e mais”).
2. Reino de Deus e domínio da política como dois reinos distintos, separa-
dos e justapostos – ambos são importantes, mas o primeiro diz respeito às
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coisas celestiais, e o segundo às coisas temporais. Há pouca ou nenhuma


relação entre eles.
3. Reino de Deus penetrando, influenciando e transformando o domínio
da política, como manifestação do senhorio cósmico de Cristo – esta é
a tradição reformada, responsável por um imenso avanço histórico na
formação das sociedades democráticas e por um maior engajamento da
Igreja nas questões de ordem sociopolítica.

Sabemos que culturas e países que receberam uma maior influência cristã his-
tórica reformada tendem a ter uma tradição de instituições mais solidamente
arraigadas nos princípios democráticos e num efetivo controle social. Isso não é
à toa. A visão cristã de mundo, com os seus valores de justiça, equidade, solida-
riedade e, especialmente, a distribuição de poder, considerando o mal inerente à
condição humana e a sua tendência para a corrupção, estabelece o fundamento
para a construção de sociedades mais participativas e com uma efetiva vigilân-
cia social sobre aqueles que exercem o poder, por meio de um sistema de pesos
e contrapesos que garanta fiscalização e controle sobre as pessoas investidas de
poder. Isto é, para a visão cristã de mundo, é necessário proteger a comunidade
dos poderosos.

O Significado Político do Evangelho


126 UNIDADE IV

A História registra a ação missionária da igreja e o seu agir transformador,


mudando realidades sociais, inclusive na relação com a política. É o caso, por
exemplo, da noção de educação universal – “toda criança na escola” - uma polí-
tica pública adotada por quase todas as sociedades civilizadas, mas que teve uma
imensa contribuição da visão cristã de mundo, a partir de um conceito de sacer-
dócio universal dos cristãos.
Se todo crente é um sacerdote, todos deveriam conhecer a Bíblia. Logo, todos
deveriam ser alfabetizados. A ideia de que a educação - antes relegada aos sacer-
dotes e aristocratas – é para todos, nasce desta visão cristã. Hoje, felizmente,

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vivenciamos no Brasil, em muitos ambientes, um reascender da visão missio-
nária da igreja - no sentido de envio de missionários vocacionados aos campos
mais negligenciados, especialmente ao campo transcultural.
Porém, é interessante notar que o chamado “pai de missões modernas”,
William Carey, um inglês chamado a servir na Índia do século XVIII, muito mais
do que “salvar almas” dos indianos hindus, também fez o que chamaríamos hoje
de incidência política. Graças a Carey, foram abertas escolas para cerca de 10.000
meninas, numa época em que a educação era praticamente restrita aos meninos,
e o “sati” (a morte das viúvas) foi considerada ilegal na Índia.
Talvez o exemplo clássico mais inspirador seja o de William Wilberforce, que,
graças à sua militância como político, orientada a partir da sua visão cristã de
mundo, conseguiu trabalhar pela abolição da escravatura no Império Britânico,
marcando um dos momentos cruciais na história da humanidade.
Em um país como o Brasil, onde ainda encontramos um enorme abismo
social e uma das maiores desigualdades do mundo, mas que, ao mesmo tempo,
impõe uma das mais altas cargas tributárias, torna-se vital para igrejas e organi-
zações cristãs que de fato almejam uma influência no campo da Reforma Social,
o exercício da participação cidadã e da relação crítica com a cultura, governos e
sociedade. No campo do Terceiro Setor, há muito devemos sair do mero modelo
assistencialista de “entrega de serviços” para a população socialmente vulnerável
e migrar para o modelo da defesa de direitos, empoderando a sociedade, espe-
cialmente os excluídos, rumo a uma participação cidadã efetiva que toque nas
estruturas de perpetuação das misérias e injustiças que ainda assolam o nosso

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


127

país. O arcabouço jurídico e institucional do Brasil, felizmente, nos permite esta


participação, fruto de uma luta histórica pelos direitos civis e pela defesa da
democracia. Resta-nos tomarmos o nosso lugar nessa jornada.
Segundo Freston (2006), já em 1932, foi publicado, no Brasil, o memo-
rial evangélico, que advogava uma influência cristã sobre o Estado em diversos
aspectos, entre eles:
■■ justiça popular, rápida e gratuita;
■■ completa laicidade do Estado e do ensino oficial;
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■■ absoluta liberdade de manifestação do pensamento;


■■ regime cooperativista, com participação dos operários nos lucros;
■■ o divórcio absoluto;
■■ educação popular obrigatória;
■■ instrução secundária, profissional e superior acessível às classes menos
favorecidas;
■■ promoção do pacifismo – redução do aparelhamento e despesas milita-
res ao mínimo possível.

A base do sistema democrático está na participação popular e no controle


social. Os espaços garantidos, como fóruns, conferências, conselhos, audi-
ências públicas, consultas abertas, são espaços legítimos de influência num
país democrático, onde os grupos podem militar por seu ideário e sua visão
de mundo, na busca maior pelo bem-estar da sociedade. Deste modo, a par-
ticipação cidadã deveria partir de um compromisso do povo de Deus com o
Reinado de Cristo, com a Justiça e com o próximo, e não apenas da defesa dos
interesses da própria igreja.
A luta por sociedades justas, livres, solidárias e prósperas é uma luta his-
tórica da Igreja e não constitui nenhuma novidade na sua prática missiológica.
Há inúmeros exemplos de cristãos que foram agentes de transformação e de
Reforma Social no seu contexto e na sua geração, nos mais variados aspectos e
dimensões da realidade social.

O Significado Político do Evangelho


128 UNIDADE IV

A relevância da igreja na participação cidadã na América Latina de hoje passa,


a meu ver, primeiramente por uma revisão da sua própria teologia. É necessá-
rio que abracemos uma teologia de fato integral – rompendo com os diversos
dualismos decorrentes da separação entre o “sagrado” e o “profano”. Este tipo de
pensamento, influência da cosmovisão grega e que assume novos contornos na
nossa eclesiologia e missiologia de forma muito contundente no século XX, faz
com que a militância sociopolítica seja relegada a um segundo plano, inferior,
quando muito tolerada pela igreja, constituindo, quando existente, uma prática
isolada de membros das igrejas desprovida de qualquer significado ligado à pró-

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pria essência da Missão. O rompimento desta dicotomia, que na verdade é mesma
dicotomia clero X laicato, fé X obras, evangelismo X ação social, é um aspecto
fundamental para uma ação qualificada e significativa. A compreensão da inte-
gralidade das intenções de Deus para a sua criação coloca o evangelismo e a ação
social (aqui compreendida como “ação na sociedade”, muito mais do que cui-
dado direto dos pobres) como aspectos indissociáveis do agir redentor de Deus.













IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


129
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ADVOCACY E INCIDÊNCIA EM POLÍTICAS PÚBLICAS

O “Advocacy” (sem tradução literal para a língua portuguesa) consiste em um


conjunto de ações que visam influenciar a formulação, aprovação e execução
de políticas públicas junto aos poderes constituídos e à sociedade, por meio
do trabalho em redes e a mobilização da mídia. Essa palavra também tem sido
utilizada para traduzir toda a ação política realizada individual ou coletiva-
mente com o intuito de gerar mudanças em políticas públicas e sistemas de
governo em prol de pessoas ou grupos específicos. Advocacy é uma ferramenta
essencial para defender e consolidar interesses públicos frente aos governos e
às pessoas investidas de poder.

Advocacy e Incidência em Políticas Públicas


130 UNIDADE IV

Vamos assumir o processo de incidência como aquele que busca “influenciar”,


“alterar rumos”, “gerar impactos no processo de tomada de decisão” com relação
à criação, ao desenvolvimento, à avaliação, à correção e ao monitoramento de
uma política pública. Por política pública, entendemos aquela que, muito além
da política partidária, responde a interesses públicos e que deve constituir-se
em política de Estado, de longo prazo, sintonizada e fundamentada pelo marco
legal, ultrapassando as políticas de governo de uma determinada gestão em exer-
cício, garantindo direitos para a população e que podem ser decorrentes ou não
da pressão/proposição de movimentos sociais e de outros setores organizados

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da sociedade. Este trabalho de incidência em políticas públicas poderá gerar a
criação, implementação ou monitoramento de uma política, o fortalecimento
de uma política já existente, ou mesmo o trabalho de barrar algum retrocesso
numa determinada questão já conquistada.
Há muitas definições possíveis de Advocacy. A compreensão do tema
varia de acordo com as experiências e visão de mundo das pessoas. Da
mesma forma, as definições podem variar segundo as ênfases específicas de
determinada organização ou movimento. Vejam algumas delas e seus con-
ceitos subjacentes:
Fazer Advocacy é advogar por uma causa social. Significa a incidência
na formulação e acompanhamento tanto de políticas públicas e legis-
lativas, como também nas articulações junto ao sistema de justiça, por
meio de agentes sociais interessados no fortalecimento da sociedade
democrática e da prevalência dos interesses coletivos, comuns e públi-
cos. Além de fomentar uma participação direta da sociedade civil nos
processos decisórios no Executivo, Legislativo e Judiciário, o Advocacy
é um direito de todos e um fundamental exercício de cidadania. Acre-
dita-se que quanto mais presença nos âmbitos decisórios do Estado,
maior a garantia de defesa dos direitos humanos, inclusive os direitos
da criança (INSTITUTO ALANA, 2016, on-line)1.

“Influenciar as decisões, políticas e práticas de quem tem poder de decisão,


visando combater as causas fundamentais da pobreza, trazer justiça e apoiar o
bom desenvolvimento” (TEARFUND, 2016 apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
“Exercer influência sobre decisores de forma organizada” (VIVA, 2016 apud
ROOT 1 e 2, 2015, on-line).

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


131

“A promoção de uma mensagem ou medida específica com o objetivo de


influenciar ou contribuir para a elaboração e aplicação de políticas públicas
que combatam as causas e consequências da pobreza” (OXFAM GB, 2016
apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
“O processo de influenciar os principais decisores e formadores de opinião
(pessoas físicas e jurídicas) a favor de mudanças nas políticas e práticas que favo-
reçam os empobrecidos” (ACTION AID, 2016 apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
“Um projeto, programa ou metodologia programática que visa tratar das
causas estruturais e sistêmicas da pobreza através de mudanças nas políticas, siste-
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mas, práticas e atitudes que perpetuam a desigualdade e negam direitos humanos


(WORLD VISION INTERNATIONAL, 2016 apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
Manifestar-se para influenciar as políticas, decisões, atitudes e compor-
tamentos de quem tem poder, atuando a favor e com a participação dos
empobrecidos e marginalizados, com o objetivo de promover transfor-
mações sociais, políticas e econômicas positivas e duradouras (UNI-
TED MISSION TO NEPAL, 2016 apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).

A seguir, elencamos definições de outros conceitos importantes para a completa


compreensão do tema:

■■ Incidência política: atuação no âmbito das políticas públicas, visando


transformações que garantam o cumprimento dos direitos às comunidades.
■■ Política pública: conjunto de programas, ações e atividades com finali-
dade pública que garante o acesso aos direitos.
■■ Marco regulatório: conjunto de leis que normatiza os diversos temas
operados pela organização (Ex.: tema da criança e adolescente – Estatuto
da Criança e Adolescente; Declaração Universal dos Direitos Humanos).
■■ Espaços de incidência política: conselhos (nacionais, estaduais e muni-
cipais), fóruns, redes e outros grupos organizados da sociedade civil que
executam o controle social das políticas públicas.
■■ Cobeligerância: atuar em parceria com outros atores sociais sem abrir
mão da identidade e convicção institucional, com vistas a um objetivo
comum de bem-estar social.

Advocacy e Incidência em Políticas Públicas


132 UNIDADE IV

■■ Lobby: atividade de pressão de um grupo organizado (de interesse, de


propaganda etc.) sobre políticos e poderes públicos, que visa exercer sobre
estes qualquer influência ao seu alcance, mas sem buscar o controle for-
mal do governo; campanha, lobismo.

As organizações baseadas na fé e igrejas locais que atuam há algum tempo no campo


do desenvolvimento social já perceberam que o modelo restrito de “entrega de ser-
viços” não é suficiente para gerar transformações e impactos duradouros. Há uma
iniquidade macroestrutural, relacionada às relações e ao exercício do Poder em uma
determinada sociedade, que constitui um componente essencial para justiça social.

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Por esta razão, o Advocacy é um tema de grande interesse para as Igrejas inte-
ressadas em provocar mudanças na sociedade a partir de políticas públicas nos
diversos domínios sociais na sua tarefa de discipulado da nação. Essas mudan-
ças passam efetivamente pela luta na defesa de direitos, que significa influenciar
pessoas, políticas, estruturas e sistemas, a fim de causar mudança, influenciando
as pessoas no poder para que ajam de maneira mais ética e igualitária.












IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


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ADVOCACY: NÍVEIS, ESTRATÉGIAS E PRINCÍPIOS


ORIENTADORES

Compreendido o conceito e a sua importância, podemos pensar agora no tra-


balho de Advocacy em dois níveis:
■■ “Nível estratégico”, em que a incidência ocorre diretamente nos espaços
privilegiados de exercício do poder, sobre os atores sociais investidos de
autoridade – Governos, Assembleias legislativas, Câmara dos deputados,
Senado federal, Câmara de vereadores etc. O objetivo seria a implemen-
tação de uma determinada política pública, a aprovação ou revogação
de uma lei, barrar um retrocesso, a efetiva implementação de uma lei já
aprovada etc. Também podemos incluir aqui a participação em Conselhos
setoriais das diversas políticas setoriais do Estado.
■■ “Nível de base comunitária”, em que a comunidade é mobilizada na defesa
dos seus direitos, na denúncia de alguma injustiça ou para que algum ser-
viço ou política pública funcionem efetivamente no seu território. Neste
caso, já há tecnologias sociais implantadas no Brasil, que trabalham, desde
a formação sociopolítica das comunidades, até o monitoramento de ser-
viços e políticas por parte delas.

Advocacy: Níveis, Estratégias e Princípios Orientadores


134 UNIDADE IV

Em ambos os níveis, é fundamental uma estratégia de comunicação eficaz,


que apoie os envolvidos em suas ações de pressão sobre governantes e pes-
soas investidas de poder. Também é de extrema importância que o Advocacy
estratégico seja orientado a partir das bases comunitárias, para que haja coe-
rência e simetria com a finalidade principal do processo, que é o benefício da
população em geral. Além disso, em ambos os níveis, podem ser utilizadas
campanhas de mobilização social, com alvos e prazos específicos. As diver-
sas abordagens são legítimas e podem ser utilizadas na busca da justiça e da
defesa de direitos.

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Para um Advocacy efetivo, é importante que sejam empreendidas ações
permanentes e sistemáticas na forma de estratégias, programas e projetos,
incluindo o monitoramento e a avaliação das ações, ou seja, é importante
sair do paradigma do “panelaço” e da mera ação político-partidária ou ideo-
lógica de disputa do poder, para um paradigma de resultados concretos em
prol da coletividade.
Da mesma forma, um nível excelente de atuação em Advocacy só pode ser
alcançado com parcerias relevantes e estratégicas, dentro do princípio da cobe-
ligerância. Na relação com o Poder Público (políticos e partidos), as ações de
Advocacy deverão ser operacionalizadas com transparência e integridade, ou
seja, as iniciativas não deverão ser utilizadas em nenhum processo de troca e/ou
solicitação de favores a políticos e partidos em nenhuma circunstância e hipó-
tese, sob pena da desqualificação de todo o trabalho.
Para uma ação efetiva da Igreja no campo das políticas públicas, precisare-
mos vencer diversos desafios, entre eles:

■■ o respeito às diferenças, considerando a multiplicidade e a pluralidade


da arena social;
■■ a necessidade de aprendermos a andar em alianças e coalizões por uma
causa comum, sem abrir mão das nossas convicções, dentro do princí-
pio da co-beligerância;
■■ o empoderamento de vocações para a ação extra-eclesiástica e o reconhe-
cimento desta como expressão legítima da sinalização do Reino de Deus;

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


135

■■ a ação qualificada dos cristãos, a partir de um conhecimento profundo da


realidade que se quer transformar, num contexto que exige muito mais
que “boas intenções”;
■■ a formação qualificada dos quadros das igrejas e OBFs (Organizações
Baseadas na Fé);
■■ definição de “causas” relacionadas com a Justiça do reino de Deus (e não
com os interesses de grupos eclesiásticos), a partir de uma visão cristã de
mundo, em discernimento da realidade contemporânea.

Da mesma forma, segundo Freston (2006), devemos evitar a todo custo proble-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mas históricos recorrentes da relação dos evangélicos com a política, entre eles:
■■ o messianismo - “o projeto de mudar o homem no poder, ao invés do con-
ceito reformado de pecadores se controlando uns aos outros num sistema
de fiscalização mútua”;
■■ o triunfalismo - a crença, absolutamente não comprovada historicamente,
de que a presença dos evangélicos na arena política automaticamente, de
uma forma mágica – e não pela via do exercício da ética cristã, gerará
bênçãos e transformações na sociedade;
■■ o corporativismo - a militância política apenas para defender os interesses
dos grupos evangélicos ou para impor a sua visão de mundo à sociedade
pela via do poder, e não da evangelização e do serviço. Nossa tarefa con-
siste, portanto, na aplicação da Verdade no domínio social das políticas
públicas, orientados pela cosmovisão e pela ética cristã, na busca pela
sinalização do oniabrangente Reino de Deus.

Além disso tudo, precisamos de competência no exercício da confessionalidade


sem ter agenda proselitista nas ações da arena política – toda a abordagem de
engajamento sociopolítico cristão não deve ser operada sob a ótica do “gancho
para o evangelismo”, nem para impor a moralidade cristã. A legitimidade de
nossa ação está na natureza da realização da Justiça - valor central do Reino de
Deus - e aplicação da Verdade do Evangelho na dimensão do acesso aos direitos.
O exercício dessa competência não abre mão da identidade cristã como moti-
vador da iniciativa, mas mantém a especificidade da ação, garantindo a entrega
legítima à sociedade, a saber, o direito realizado à população.

Advocacy: Níveis, Estratégias e Princípios Orientadores


136 UNIDADE IV

Para a realização de uma incidência política na perspectiva do Reino de Deus,


todas as dimensões de atuação na sociedade devem ser abordadas como esforço da
Igreja de Jesus Cristo em santificar todas as coisas. Para o propósito de redenção de
todas as coisas em Jesus, todas as esferas da criação estão sendo reconciliadas Nele
mesmo. Assim, a atuação em incidência política na perspectiva cristã admite essa
atividade como ação em determinada esfera da criação de Deus que, por sua vez,
tem levantado homens e mulheres para cooperarem com Ele na redenção desta
dimensão da vida.
O trabalho de incidência política da Igreja acontece a partir daquilo que

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
chamamos de “recuperação da sua dimensão profética”. Entendemos, aqui, o pro-
fético como a denúncia de injustiças, o inconformismo com tudo aquilo que fere
o caráter e os plenos desígnios de Deus em uma dada sociedade. A recuperação
dessa dimensão profética da Igreja no exercício da sua Missão está relacionada
com a busca da Justiça, entendida como a participação de Deus na vida humana.
Os profetas, aqueles que têm fome e sede de justiça, são aqueles que, segundo
White (1977, s/p.), “choram e oram em particular, e desafiam terra e inferno
em público”. Nesse sentido, vale a pena recuperarmos a frase de Martin Luther
King Jr (1963, s/p.):
[...] a igreja deve ser lembrada de que não é a mestra ou a serva do Esta-
do, mas sim a sua consciência… Ela deve ser a guia e a crítica do Estado,
nunca sua ferramenta. Se a igreja não recuperar seu fervor profético, ela se
tornará um clube social irrelevante, sem autoridade moral ou espiritual.

Concluímos, portanto, que faz parte da missão da igreja realizar a defesa de direi-
tos, falando contra a injustiça, defendendo a causa dos pobres, responsabilizando
as pessoas no poder e empoderando as pessoas para que falem por si próprias. Seu
objetivo último é trazer e demonstrar as boas novas da vinda do Reino de Deus.

“Há forças satânicas atuando no mundo, apoiando a maldade dos homens.


Há uma relação entre as potestades do mal e os poderes da terra: poderes
políticos, econômicos e culturais”.
(Robinson Cavalcanti)

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


137
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ESTUDO DE CASO: UMA EXPERIÊNCIA DE INSERÇÃO


EM POLÍTICAS PÚBLICAS A PARTIR DA IGREJA
LOCAL: O CASO DA ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE
“ENCONTRO COM DEUS”, DE CURITIBA

A seguir, como parte da coleta e sistematização de experiências exitosas em inci-


dência política, realizado por mim na assessoria de “Igreja e Políticas Públicas” da
Aliança Evangélica Brasileira, apresento um Estudo de Caso relativo à experiência
recente de uma pequena igreja de uma capital brasileira. Com isso, espero inspi-
rar e dar esperança para você, aluno(a), mostrando que o caminho da mudança
estrutural é possível, desde que já haja foco e direcionamento estratégico.

Estudo de Caso: uma Experiência de Inserção em Políticas Públicas a Partir da Igreja Local:
138 UNIDADE IV

INTRODUÇÃO E HISTÓRICO

Na década de 1980, nasceu, em Curitiba, a Igreja Evangélica Encontro com Deus


que, desde o início, tinha o alvo de trabalhar na área social por meio de projetos,
especialmente com crianças e mulheres em situação de vulnerabilidade social. A
partir da igreja local, em maio de 2000, nasceu a Associação Beneficente Encontro
com Deus de Curitiba, projeto social orientado ao acolhimento de moças oriun-
das de um antigo orfanato da cidade. O Pr. Patrick Reason pastoreia a igreja local
desde 1998, sendo, hoje, também o presidente da Associação.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A igreja local, que funciona no bairro Cajuru, em Curitiba, conta com 80
membros, possui vida própria (células, estudos bíblicos, 3 pastores), constituindo
uma igreja “normal”, como muitas outras em nosso país. Porém, o diferencial
desse grupo de cristãos é o serviço que têm feito na vida de mães vulneráveis e
seus filhos e, especialmente, a inserção em políticas públicas. Graças a ela, o pro-
jeto social cresceu nos últimos anos, alcançando, hoje, 18 funcionários.
A igreja e a associação constituem duas personalidades jurídicas diferen-
tes, sendo que, estatutariamente, a igreja evangélica consta como mantenedora
no projeto social. Embora juridicamente sejam independentes, a comunidade
externa enxerga tudo como uma coisa só, ou seja, uma expressão do serviço
e do testemunho cristão de forma integral. Internamente, permanece o desa-
fio recorrente de a igreja enxergar que o trabalho social é uma extensão do seu
ministério, ou seja, uma manifestação do reinado cósmico de Cristo. Segundo
o Pr. Patrick, há um distanciamento natural da igreja em relação ao projeto à
medida que o trabalho social se torna mais técnico. No entanto, há uma inte-
ração permanente entre igreja e projeto social e uma organicidade saudável no
desenvolvimento das atividades.
O componente “social” da obra realizada na comunidade, ou seja, o projeto
social, conta, hoje, com três frentes distintas:

1. Uma casa das mães adolescentes, que fica nos fundos da igreja, e
atende até 20 pessoas. O público-alvo são mães jovens com menos de
20 anos de idade e seus filhos. Para a manutenção do projeto, são fir-
mados convênios com as prefeituras de Curitiba, São José dos Pinhais
e Almirante Tamandaré.

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


139

2. Uma casa para mães adultas e seus filhos, as quais encontram-se em


situação de violação de direitos, quando há interesse de que a mãe seja
abrigada conjuntamente com a criança.
3. Um projeto comunitário, cujas atividades acontecem ao lado da igreja, e que
se divide em duas partes: serviços de convivência e fortalecimento de víncu-
los para crianças (antigo contraturno) e cursos de capacitação para adultos.

A Missão da Associação é: “Promover e fortalecer a família como base da socie-


dade, bem como prevenir a ruptura de seus vínculos, assegurar a garantia dos
Direitos Fundamentais e contribuir para a emancipação de famílias através de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ações preventivas e protetivas”.


A Visão da Associação é:
■■ “Ser referência no modelo de acolhimento institucional;
■■ Ser referência no trabalho de reinserção à sociedade e pós-acolhimento,
diminuindo os índices de reincidência;
■■ Ser reconhecida pelas famílias acolhidas como agente fundamental na mudança
para uma vida melhor, através dos serviços prestados pelos colaboradores;
■■ Tornar o Centro Comunitário uma referência para fortalecimento da
família”.

A declaração de Missão da Igreja é: “Nós da Igreja Evangélica Encontro com


Deus existimos para glorificar ao Senhor, conhecendo os princípios da Palavra
de Deus buscamos ser exemplo, influenciando a sociedade, servindo ao próximo,
vivendo em comunhão, levando as pessoas a Cristo”.

A INSERÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS

O trabalho da igreja, por meio da Associação “Encontro com Deus”, insere-se em


políticas públicas mediante um caminho histórico que foi estabelecido, principal-
mente, pela necessidade de qualificar o trabalho da Associação. Com a inserção
nas políticas públicas, o trabalho começou a fazer parte de um fluxo formal de
atendimento, compondo uma rede socioassistencial mais ampla, sendo, desta
forma, muito mais efetivo do que se agisse de forma isolada.

Estudo de Caso: uma Experiência de Inserção em Políticas Públicas a Partir da Igreja Local:
140 UNIDADE IV

Segundo o Pr. Patrick, essa inserção confere um espaço muito mais qua-
lificado para falar “de igual para igual” com o Poder Público. Outro fator
fundamental para uma maior qualificação da organização foi a participa-
ção na Rede Evangélica Paranaense de Ação Social (REPAS) e na Rede das
Instituições de Acolhimento (RIA), ajudando a criar e fortalecer um espaço
para as entidades se organizarem de forma muito mais efetiva. As redes con-
feriram à Associação uma forte base de representatividade para participar dos
Conselhos. Como evidência, a “Encontro com Deus” teve cerca de 70% dos
votos das entidades votantes na última eleição para o Conselho Municipal dos

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Direitos da Criança e do Adolescente (COMTIBA).
Hoje, a instituição está inserida em capacitações continuadas e espaços
de debates e de construção de políticas públicas, fazendo parte dos principais
espaços de controle social, que são os Conselhos. Ela é membro do COMTIBA
e do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente de Paraná (CEDCA)
e foi membro do Conselho Estadual de Assistência Social do Paraná. Além
disso, hoje, o Pr. Patrick coordena o Fórum Regional da Assistência Social de
Curitiba (FOREAS), Região Metropolitana e Vale do Ribeira, que se constitui
uma instância de articulação e ação política em nível de acompanhamento das
ações de Assistência Social, propondo serviços, programas, projetos e benefí-
cios às instâncias deliberativas.
A representação nestes espaços de incidência se dá pelo próprio Pr. Patrick,
apoiado pela equipe técnica do projeto. Na verdade, esse apoio, muito mais do que
meramente técnico, dá-se na própria representação institucional nos Conselhos.
Uma evidência disso é que uma técnica da Associação responde hoje pela coor-
denação local da rede de proteção à criança no nível do bairro. Esta é a única
rede do município cujo coordenador é uma pessoa da área não governamental,
das cerca de 90 redes do município de Curitiba.
Tanto no nível municipal quanto estadual, a organização tem escolhido atuar
em redes de organizações. Segundo o Pr. Patrick, desta forma, há uma articulação
e composição de forças entre as entidades, permitindo uma maior participação
das organizações e de pessoas no processo, uma flexibilidade na representação
nos Conselhos e um diálogo mais qualificado com o Estado.

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


141

EVIDÊNCIAS E RESULTADOS

Como dissemos anteriormente, a inserção em Políticas Públicas qualificou mais


o trabalho da Organização, tornando-o profissional e uma referência no serviço
de acolhimento institucional. Da mesma forma, ao tornar a voz da organização
mais ativa, houve uma melhoria da própria Política, beneficiando um grupo
muito maior de pessoas e organizações.
Ao falarmos em Política Pública, temos que nos referir a Conselho, Plano
e Fundo. A atuação da Associação “Encontro com Deus” gerou processos de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

incidência nessas três dimensões. Segundo o Pr. Patrick, os seguintes aspectos


podem ser apontados como resultados concretos na Política, especialmente por
meio da atuação nos Conselhos:
1. A fiscalização do gasto público e dos repasses para outras entidades por meio
do Fundo Estadual da Assistência tornou-se mais efetiva quando o Conselho
questionou a legitimidade dos convênios firmados. A partir de uma com-
preensão cristã da importância do direito e do valor do ser humano e um
zelo pelo bom uso de recurso público, o Ministério Público foi acionado e,
como resultado, foi instituída uma comissão de reordenamento do acolhi-
mento institucional para a questão da saúde mental e da assistência social,
um dos grandes vácuos das políticas públicas (a intersetorialidade entre as
políticas de saúde e assistência). A comissão fez revisão de procedimen-
tos, construiu documentos e fluxos para acolhimento institucional destas
pessoas (acolhimento de pessoas com deficiência mental), além da promo-
ção de encontros intersetoriais para discutir a interface entre as políticas.
2. Houve uma importante influência da Associação na redação final do
Plano Decenal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Estado do
Paraná – foi feito diagnóstico da situação da criança e o plano de ação.
A Associação “Encontro com Deus“ pôde contribuir no sentido de for-
çar a compreensão do valor do pré-diagnóstico antes do acolhimento,
abrangendo os motivos de acolhimento no sentido de proceder uma ava-
liação crítica dos motivos de entrada para tornar a política mais efetiva.
A contribuição inclui, também, a própria tipificação de alguns motivos
de acolhimento, o que ainda não acontece em certos casos. Segundo o Pr.
Patrick, a modalidade de acolhimento com a mãe, quando no interesse da
criança, é muito mais eficaz, pois é possível trabalhar a emancipação da
criança e da mãe de forma muito mais rápida do que somente a da criança.

Estudo de Caso: uma Experiência de Inserção em Políticas Públicas a Partir da Igreja Local:
142 UNIDADE IV

3. Por meio da Rede de Instituições de Acolhimento (RIA) de Curitiba e região


metropolitana, houve alterações nos procedimentos de financiamento da
política de acolhimento. Segundo o Pr. Patrick, embora a Constituição
afirme a prioridade absoluta da criança, a política de assistência social não
tem garantia de financiamento, assim como a educação e a saúde. Na época
de transição de gestão, houve um atraso de cinco meses de repasse por
parte do governo, fazendo com que três entidades de acolhimento fechas-
sem as portas. Foram trabalhadas pactuações para dar mais garantias para
o Estado e as instituições nas celebrações dos convênios. Um exemplo foi
em relação aos prazos para prestação de contas, aumentando para até três
meses, permitindo que as organizações tivessem mais tempo para se orga-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
nizarem quando da efetivação dos repasses públicos. Além disso, houve
diversas outras situações, tais como revisão de valor per capta, por exem-
plo. Ainda em relação à lógica do financiamento, a Associação atuou na
problematização da centralidade da criança no acolhimento institucional,
ampliando o financiamento de algumas ações para a proteção e apoio à
família, especialmente as mães, para o bem-estar da criança.

A Associação tem vários planos para o futuro. Um deles é o intuito de ver a tec-
nologia social de acolhimento institucional de mães e filhos ser reproduzida e
multiplicada. No âmbito da inserção em Políticas Públicas, “Encontro com Deus”
almeja atuar mais em espaços regionais e, se possível, no âmbito nacional, levantando
uma voz que é legítima em virtude do trabalho que é feito na base da sua atuação.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES IMPORTANTES

A experiência de inserção em políticas públicas por parte de uma organização


social baseada na igreja local tem trazido algumas reflexões importantes e que
podem apontar caminhos para outros atores sociais evangélicos que desejam
trilhar o mesmo caminho.
Uma delas é a necessidade de formação na área de incidência, especialmente
de conhecimento técnico específico relacionado à política que se deseja influenciar.
Esta é uma questão fundamental, ainda mais levando em consideração que recur-
sos públicos estão em jogo. Essa formação técnica pode acontecer como parte do
próprio processo de inserção política. São dezenas de capacitações promovidas pelo

IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


143

Estado e pela própria sociedade civil para as pessoas e organizações envolvidas. Para
o Pr. Patrick, uma intervenção não qualificada pode ser mais danosa que uma não
intervenção, e o melhor lugar para o trabalho de incidência em políticas públicas
ser feito são as Câmaras e Comissões dentro de cada Conselho, onde cada assunto
pode ser detalhadamente discutido e decisões qualificadas podem ser tomadas.
Segundo o Pr. Patrick, em um certo sentido, a Associação “Encontro com
Deus” nunca deixou de ter uma características de uma igreja local. A confes-
sionalidade da Associação não tem prejudicado a organização da relação com
o Estado. Ele ressalta a importância da participação dos evangélicos na inci-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dência política:
somos iguais aos cogumelos, brotamos em espaços de trevas, e ali cresce-
mos. Estamos presentes nos territórios onde as políticas públicas almejam
estar, nos movemos pela compaixão, por situações de sofrimento, cujas
demandas envolvem questões mais complexas e que se relacionam com as
políticas públicas. Os espaços democraticamente constituídos estão aber-
tos, o Poder Público quer a nossa participação, não adianta a igreja querer
influenciar depois das regras e procedimentos terem sido aprovados.

Para o Pr. Patrick, o discurso evangélico na área da família é muito frágil e redu-
zido, restringindo-se à questão do aborto, direitos sobre o corpo e casamento
homoafetivo. “Temos uma contribuição muito maior a dar nesta área, envol-
vendo, inclusive, o próprio conceito de família”. Historicamente, é inegável que
os cristãos tiveram uma participação na defesa dos direitos e nos avanços da
Humanidade. Para ele,
nunca houve um avivamento em que não houve influência social, por
isso temos que ser leais à nossa História como igreja. Se o Brasil passou
de fato por um movimento do Espírito Santo, não poderia ser agora a
primeira vez na história em que isso não aconteceria.

Para ele, há um diferencial na inserção cristã, não só em relação à ética, pois


todo cidadão deve ter uma conduta ética, mas por meio de um “engajamento
desinteressado” (não corporativista, mas visando o bem coletivo), assim como
por meio de uma inserção não hierarquizada, ou seja, a possibilidade de atuar-
mos em redes de cooperação. Para o pastor, havendo a qualificação necessária,
há espaço para todos os perfis; pessoas de diferentes vocações e características
pessoais podem atuar em espaços de incidência em políticas públicas.

Estudo de Caso: uma Experiência de Inserção em Políticas Públicas a Partir da Igreja Local:
144 UNIDADE IV

RESUMOS DAS PRINCIPAIS LIÇÕES APRENDIDAS

■■ No Brasil, há espaços amplamente abertos para a nossa inserção em


Políticas Públicas, inclusive para organizações confessionais, desde que
haja qualidade no serviço prestado. Esta é uma questão fundamental para
conquistarmos o respeito dos atores governamentais.
■■ A capacitação técnica é fundamental para uma incidência qualificada.
■■ O melhor espaço de incidência ainda são os Conselhos, especialmente,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
as comissões específicas dentro dos Conselhos.
■■ É fundamental a nossa atuação em redes no sentido de fortalecer o con-
trole social.
■■ Ao atuarmos na arena social, especialmente, na relação com Políticas
Públicas, o serviço deve ser incondicional, sem proselitismo religioso.
Isto é, devemos resistir à pressão de “ganhar almas” como indicador de
resultado do nosso trabalho.












IGREJA E POLÍTICAS PÚBLICAS: SINALIZANDO O REINO DE DEUS NA ESFERA PÚBLICA


145

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olá, caro(a) aluno(a)!


Estamos chegando ao final de mais uma etapa de nossa jornada. Nesta
unidade, caminhamos pelo importante tema das políticas públicas, com foco
na responsabilidade da igreja e nas inúmeras possibilidades de ser “sal e luz”
também na arena das decisões públicas e dos mecanismos democráticos da
justiça social.
Primeiramente, descobrimos que Deus se preocupa, sim, com política. O
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Antigo Testamento evidencia isso quando o Senhor determina uma “ordem


social” ao povo de Israel que proteja os menos favorecidos socialmente. É da
vontade de Deus que os seres humanos usem com justiça os recursos natu-
rais que ele nos deu.
Também nos deparamos com o significado político do Evangelho. Isto é,
com o fato de que o poder do Evangelho afeta nossas decisões mais abrangen-
tes como sociedade. As Boas Novas não fazem sentido apenas para indivíduos
isoladamente, mas para todos como nação, na medida em que Deus nos usa
para redimir culturas e relações sociais.
Nesta unidade, também aprendemos conceitos e aplicações mais técnicas
do que chamamos de Advocacy. A expressão ainda é pouco usada no Brasil,
fora da esfera mais especializada, mas é comum em outros países da Europa e
EUA. O Advocacy é um importante instrumento de atuação em favor da justiça
social em uma dimensão mais política. Os cristãos podem, sim, apropriar-se
deste recurso, fazendo de forma honesta e contundente.
E, por fim, aprendemos sobre a experiência da Igreja “Encontro com Deus”,
que começou como uma pequena igreja evangélica e, por causa do seu real
compromisso no cuidado das crianças mais vulneráveis, expandiu sua estru-
tura e criou, também, uma ONG. A Associação Beneficente “Encontro com
Deus” também participa de espaços de tomada de decisões nos âmbitos muni-
cipais, estaduais e nacionais, sem perder sua identidade cristã.
Como você pode ver, esta unidade não só foi rica em conceitos, mas tam-
bém em ferramentas e exemplos práticos para uma atuação consistente e
consciente nas esferas das políticas públicas.

Considerações Finais
146

1. A militância sociopolítica, longe de ser considerada uma atividade “mundana”,


encontra-se permeada nas Escrituras como parte central à própria proposta de
missão da Igreja. Desde o Antigo Testamento, Deus estabelece uma ordem social
a ser seguida que, caso cumprida, traria prosperidade e justiça para todos em
Israel. O que essa ordem social de origem divina evidenciaria ao povo de
Israel?
2. A palavra “Evangelho” (euangelion, no grego) traz profundas conotações políti-
cas, uma vez que se trata de um termo com alto significado político, não sendo
um termo religioso usado, primeiramente, pelos primeiros seguidores de Cris-
to, mas uma palavra emprestada dos discursos de generais e césares romanos.
Segundo Cavalcanti (2002), historicamente, há três diferentes tradições protes-
tantes no que diz respeito à relação do Reino de Deus com a Política. Quais são
elas?
3. A História registra a ação missionária da igreja e o seu agir transformador, mu-
dando realidades sociais, inclusive na relação com a política, contribuindo, as-
sim, para leis mais justas e bandeiras socialmente responsáveis. É possível citar
alguns exemplos concretos da influência política dos cristãos na transfor-
mação de realidades mais amplas? Liste três.
4. Há muitas definições possíveis para o conceito de Advocacy. A compreensão do
tema varia de acordo com as experiências e visão de mundo das pessoas. Da
mesma forma, as definições podem variar segundo as ênfases específicas de de-
terminada organização ou movimento. Cite algumas definições exemplifica-
das neste capítulo e pesquise outras definições não citadas.
5. Nesta unidade, conhecemos uma experiência de inserção em políticas públicas
a partir da igreja local: o caso da Igreja Encontro com Deus, que também gerou a
Associação Beneficente “Encontro com Deus”, de Curitiba (PR). Que lições práti-
cas podemos aprender a partir deste estudo de caso no envolvimento com
políticas públicas?
147

A mui santa participação política

Como cristãos, reformados, evangélicos, missão, tendendo ao isolacionismo, à alie-


nascidos de novo, afirmamos a centrali- nação, à adesão acrítica ao “status quo”.
dade da pessoa e da obra de Jesus Cristo,
como Senhor e Salvador, a autoridade das Entre os dois pólos, temos permanecido
Sagradas Escrituras, a busca da santidade nós, os “a-milenistas pós-tribulacionistas”,
e a ênfase na missão integral da Igreja, de herdeiros dos reformadores do século
evangelismo, ensino, comunhão, serviço 16 em nossa participação crítica rea-
e profetismo. lista, procurando levar a sério o ser “sal
e luz” e obedecer à oração sacerdotal —
Uma questão, porém, nos desafia: o que quando Jesus pede ao Pai que não nos
fazer com a nossa vida entre a conversão e tire do mundo, mas nos livre do mal —,
a morte/arrebatamento? O que fazer com o procurando seguir as pegadas de Jesus
exercício dos nossos dons para a edificação e encarnar o amor que é fruto do Espí-
do Corpo e com as nossas vocações para o rito Santo.
testemunho do reino de Deus e seus valo-
res, evidenciando a nossa fé pelas nossas Para tanto, contamos com as ferramentas
obras? Deveríamos ser — como alguém das ciências humanas para melhor enten-
afirmou — apenas “pré-cadáveres cantan- der a conjuntura e a estrutura, e melhor
tes”? Ou há um mandato cultural entregue nos posicionarmos e influenciarmos. Na
pelo Criador à humanidade e recuperado, história não temos aliados (mas co-be-
primeiro, por Israel e, depois, pela Igreja? ligerantes, como ensinava Schaeffer), e
nem sempre conseguimos o melhor, mas
Esse projeto de vida, para os cristãos e o menos ruim possível.
para as comunidades de fé, tem sido con-
dicionado pela corrente escatológica a Em 1822, o que faríamos, como cristãos,
que se filiam. com a independência: apoio, oposição ou
indiferença? E com a abolição, em 1888?
O “pós-milenismo a-tribulacionista”, pre- E com a República, em 1889? E com o
dominante no movimento missionário da sindicalismo, nos anos 1920? E com a legis-
segunda metade do século 19 e início do lação trabalhista, nos anos 1930? E, mais
século 20, tendia a um engajamento, uma recentemente, com a Constituinte e a rede-
participação nos movimentos sociais, com mocratização (1986-1989)?
certo otimismo quanto ao caráter civiliza-
tório da Igreja, culminando esse progresso A família, a vizinhança, o trabalho, os sindi-
com a volta de Cristo. O otimismo engajado catos ou os partidos são canais sociais do
dos “pós-milenistas”, a partir do início do nosso testemunho em favor do bem-co-
século 20 (principalmente na América do mum, que passa pela defesa dos interesses
Norte) deu lugar ao “pré-milenismo pré-tri- nacionais contra as potestades imperiais, da
bulacionista”, bastante pessimista quanto democracia contra o totalitarismo e o auto-
ao impacto sociocultural da Igreja em sua ritarismo (ditaduras, monarquias absolutas),
148

da liberdade responsável contra a opres- e instituições cristãs, levando em conta a


são ou a anarquia, da justiça social contra conjuntura, as estruturas, as necessidades,
a espoliação, a exclusão, os privilégios, a as possibilidades, os dons e as vocações.
marginalidade, a violência, as diferenças não- A ação política (cidadã) não deve se limi-
-naturais. Para tanto, devemos dar de comer tar ao partidário nem, muito menos, ao
aos que têm fome, dar condição de traba- eleitoral, mas a uma atitude de responsa-
lho e renda para quem não a tenha mais, e bilidade, sensibilidade, disponibilidade e
promover um sistema de leis que acolham intervenção no cotidiano, que é obediên-
a vontade geral e um modo econômico de cia e testemunho.
produção que resulte em frutos para todos.
Cremos que a direita totalitária, a esquerda
Pode-se pagar um preço por procurar que totalitária, a direita autoritária, a esquerda
a cidade dos homens reflita a cidade de autoritária (ideológica ou fisiológica), as
Deus e não a cidade do diabo. Calvino, sociedades altamente estratificadas dos
o reformador de Genebra, via o enga- poucos com muito e dos muitos com
jamento político (não necessariamente pouco, e os modos de produção que con-
partidário, mas cidadão) dos cristãos como centram propriedade, renda, poder e saber
uma “sacrossanta vocação”. não são consentâneos com os valores do
reino de Deus, que professamos, encarna-
O mundo nunca será perfeito antes da Nova mos e promovemos.
Jerusalém, mas pode estar muito pior em
razão da nossa omissão ou do nosso apoio A soberania nacional, a solidariedade inter-
aos mais egoístas por interesses próprios. nacional, o Estado Democrático Laico de
O engajamento obediente é um sinal de Direito, a igualdade perante a lei, o plura-
santidade ativa. lismo ideológico e partidário, a soberania
popular, a justiça social e a propriedade de
Há a participação docente, intercessória e e para todos são avanços possíveis con-
profética das igrejas como instituições, a tra os pecados sociais e estruturais. Assim,
dos cristãos individuais como cidadãos e também, tornamos o evangelho relevante
a participação orgânica dos movimentos à nossa geração!

Fonte: Cavalcanti (2008, p. 40-41).


MATERIAL COMPLEMENTAR

Os Evangélicos e a transformação social: Cultura cidadã e


democracia participativa
Daniel de Almeida e Souza Jr. (Org)
Editora: Aliança Cristã Evangélica Brasileira
Sinopse: existem muitas possibilidades para o engajamento piedoso da
Igreja. Essa cartilha pretende oferecer algum embasamento teórico, além
de sugerir a pesquisa, a avaliação e o envolvimento do povo de Deus na
promoção da liberdade e na luta pelo direito de todos.

Jornada pela Liberdade


Ano: 2006
Sinopse: nos anos 1700, William Wilberforce entra na política para defender
seus ideais. Juntamente com seu amigo, o primeiro-ministro William Pitt, ele
lidera o movimento para pôr fim à escravidão no Reino Unido. No entanto,
a ideia sofre resistência por parte de outros políticos. O título do filme em
inglês, Amazing Grace (Graça Maravilhosa), dá nome a uma das canções mais
conhecidas no mundo. Ela foi escrita pelo traficante de escravos John Newton.
Durante uma viagem em seu navio negreiro, uma forte tempestade ameaçou a vida de todos e
ele sentiu que a única salvação seria a graça de Deus. Desde então ele abandonou o tráfico, se
tornou cristão e defensor dos escravos.

Conheça a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS), que reúne dezenas de organizações
sociais evangélicas com objetivo de praticar a misericórdia e a compaixão ao próximo, mas sem
deixar de lutar por seus direitos na espera das políticas públicas. O site da RENAS tem um vasto
conteúdo de artigos e ferramentas para ajudar os cristãos a envolverem-se e atuarem nas ações
sociopolíticas no Brasil. Acesse: <www.renas.org.br>.

Material Complementar
150
REFERÊNCIAS

ALIANÇA EVANGÉLICA BRASILEIRA. Como minha igreja pode influenciar as políti-


cas públicas no meu município? Disponível em: <www.aliançaevangelica.org.br>.
BARRETO, R. C. Implicações sociais e políticas do Evangelho. Salvador, 2010.
CADI BRASIL. Política Nacional de Advocacy. 2016. Disponível em: <http://cadi.
org.br/>. Acesso em: 28 dez. 2017.
CAVALCANTI, R. A mui santa participação política. Revista Ultimato, Viçosa ed. 313,
Jul-Ago, 2008. Disponível em: <http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/313/a-
-mui-santa-participacao-politica>. Acesso em: 10 set. 2017.
______. Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica. Viçosa: Ultimato,
2002.
______. A Igreja, o País e o Mundo: desafios a uma fé engajada. Ultimato: Viçosa,
2000.
FRESTON, P. Religião e Política, sim. Igreja e Estado, não. Os evangélicos e a parti-
cipação política. Viçosa: Ultimato, 2006.
REDE EVANGÉLICA PARANAENSE DE AÇÃO SOCIAL. Por Muitas Mãos. 2013. Dispo-
nível em: <http://tearfundbrasil.org/wp-content/uploads/Por-Muitas-M%C3%A-
3os-01.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2017.
ROOTS 1 e 2. Kit de Ferramentas de Advocacy – Fundamentos de Advocacy. O ‘quê”,
“onde” e “quem” do advocacy. Tearfund, 2015. Disponível em: <http://learn.tearfund.
org/~/media/Files/TILZ/Publications/ROOTS/Portuguese/Advocacy/Second_Edi-
tion/TearfundAdvocacytoolkitPA_The_what_where_and_who_of_advocacy.pd-
f?la=pt-PT>. Acesso em: 26 fev. 2018.
STOTT, J. A Igreja Autêntica. Viçosa: Ultimato, 2013.
WHITE, J. Lideres e siervos. Buenos Aires: certeza, 1977.

REFERÊNCIA ON-LINE

1 Em: <http://alana.org.br/>. Acesso em: 26 fev. 2018.


151
GABARITO

1. Desde o Antigo Testamento, Deus estabelece uma ordem social a ser seguida
que, caso cumprida, traria prosperidade e justiça para todos em Israel. Essa or-
dem social manifestava, entre outras coisas, a sinalização do Reinado de Deus na
terra e traduzia os elementos do seu caráter e das suas plenas intenções para a
Criação.
O cumprimento das ordenanças de Deus em Israel fazia parte do ordenamento
jurídico da Nação, como componente da lei mosaica, e não era entendido como
“caridade” ou mera opção de comportamento. A não observância dos precei-
tos estabelecidos por Deus no ordenamento jurídico e social de Israel era con-
siderada um caso de extrema gravidade. Vejam no caso do pecado de Sodoma,
relatado em Ezequiel 16:49: “eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã:
soberba, fartura de pão e próspera tranquilidade teve ela e suas filhas; mas nun-
ca amparou o pobre e o necessitado”.
2.
• Reino de Deus e domínio da política como antagônicos – como parte da tra-
dição purista, que tende a práticas de isolacionismo da Igreja, enfatizando o
“céu” como objetivo último da igreja e dos cristãos, muitas vezes orientada a
partir do chamado “pessimismo cristão” (“o mundo jaz no maligno e só tende
a piorar mais e mais”).
• Reino de Deus e domínio da política como dois reinos distintos, separados e
justapostos – ambos são importantes, mas o primeiro diz respeito às coisas
celestiais, e o segundo às coisas temporais. Há pouca ou nenhuma relação
entre eles.
• Reino de Deus penetrando, influenciando e transformando o domínio da po-
lítica, como manifestação do senhorio cósmico de Cristo – esta é a tradição
reformada, responsável por um imenso avanço histórico na formação das so-
ciedades democráticas e por um maior engajamento da Igreja nas questões
de ordem sociopolítica.
3. É o caso, por exemplo, da noção de educação universal – “toda criança na escola”
- uma política pública adotada por quase todas as sociedades civilizadas, mas
que teve uma imensa contribuição da visão cristã de mundo, a partir de um con-
ceito de sacerdócio universal dos cristãos. Se todo crente é um sacerdote, todos
deveriam conhecer a Bíblia. Logo, todos deveriam ser alfabetizados. A ideia de
que a educação - antes relegada aos sacerdotes e aristocratas – é para todos,
nasce dessa visão cristã.
Hoje, felizmente, vivenciamos no Brasil, em muitos ambientes, um reascender da
visão missionária da igreja - no sentido de envio de missionários vocacionados
aos campos mais negligenciados, especialmente ao campo transcultural. Porém,
é interessante notar que o chamado “pai de missões modernas”, William Carey,
um inglês chamado a servir na Índia do século XVIII, muito mais do que “salvar
GABARITO

almas” dos indianos hindus, também fez o que chamaríamos, hoje, de incidên-
cia política. Graças a Carey, foram abertas escolas para cerca de 10.000 meninas,
numa época em que a educação era praticamente restrita aos meninos, e o “sati”
(a morte das viúvas) foi considerada ilegal na Índia.
Talvez o exemplo clássico mais inspirador seja o de William Wilberforce que,
graças a sua militância como político, orientada a partir da sua visão cristã de
mundo, conseguiu trabalhar pela abolição da escravatura no Império Britânico,
marcando um dos momentos cruciais na história da humanidade.
4. “Fazer Advocacy é advogar por uma causa social. Significa a incidência na formu-
lação e acompanhamento tanto de políticas públicas e legislativas, como tam-
bém nas articulações junto ao sistema de justiça, por meio de agentes sociais
interessados no fortalecimento da sociedade democrática e da prevalência dos
interesses coletivos, comuns e públicos. Além de fomentar uma participação di-
reta da sociedade civil nos processos decisórios no Executivo, Legislativo e Ju-
diciário, o Advocacy é um direito de todos e um fundamental exercício de cida-
dania. Acredita-se que quanto mais presença nos âmbitos decisórios do Estado,
maior a garantia de defesa dos direitos humanos, inclusive os direitos da criança”
(INSTITUTO ALANA, 2016, on-line)1.
“Influenciar as decisões, políticas e práticas de quem tem poder de decisão, vi-
sando combater as causas fundamentais da pobreza, trazer justiça e apoiar o
bom desenvolvimento” (TEARFUND, 2016 apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
“Exercer influência sobre decisores de forma organizada” (VIVA, 2016, on-line).
“A promoção de uma mensagem ou medida específica com o objetivo de in-
fluenciar ou contribuir para a elaboração e aplicação de políticas públicas que
combatam as causas e consequências da pobreza” (OXFAM GB, 2016 apud ROOT
1 e 2, 2015, on-line).
“O processo de influenciar os principais decisores e formadores de opinião (pes-
soas físicas e jurídicas) a favor de mudanças nas políticas e práticas que favore-
çam os empobrecidos” (ACTION AID, 2016 apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
“Um projeto, programa ou metodologia programática que visa tratar das causas
estruturais e sistêmicas da pobreza através de mudanças nas políticas, sistemas,
práticas e atitudes que perpetuam a desigualdade e negam direitos humanos“
(WORLD VISION INTERNATIONAL, 2016 apud ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
Manifestar-se para influenciar as políticas, decisões, atitudes e comportamentos
de quem tem poder, atuando a favor e com a participação dos empobrecidos e
marginalizados, com o objetivo de promover transformações sociais, políticas
e econômicas positivas e duradouras (UNITED MISSION TO NEPAL, 2016 apud
ROOT 1 e 2, 2015, on-line).
153
GABARITO

5.
• No Brasil, há espaços amplamente abertos para a nossa inserção em Políticas
Públicas, inclusive para organizações confessionais, desde que haja qualidade
no serviço prestado. Esta é uma questão fundamental para conquistarmos o
respeito dos atores governamentais.
• A capacitação técnica é fundamental para uma incidência qualificada.
• O melhor espaço de incidência ainda são os Conselhos, especialmente as co-
missões específicas dentro dos Conselhos.
• É fundamental a nossa atuação em redes no sentido de fortalecer o controle
social.
• Ao atuarmos na arena social, especialmente na relação com Políticas Públicas,
o serviço deve ser incondicional, sem proselitismo religioso. Isto é, devemos
resistir à pressão de “ganhar almas” como indicador de resultado do nosso
trabalho.
Professor Me. Mauricio José Silva Cunha

V
PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS

UNIDADE
PARA O SERVIÇO SOCIAL E
COMUNITÁRIO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender o que é “intervenção social” e seus princípios básicos
■■ Aprender a realizar um “diagnóstico comunitário participativo”,
mapeando as necessidades e potencialidades da comunidade.
■■ Entender a efetuar um diagnóstico organizacional que aponte a
saúde interna da instituição.
■■ Elaborar um Programa de Intervenção Social com diretrizes
estratégicas da intervenção social.
■■ Avaliar atividades e resultados alcançados em um programa de
intervenção social.
■■ Mensurar qual a contribuição de um determinado projeto para
resolver um problema social.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Introdução e Princípios Orientadores nos Projetos de Intervenção
Social
■■ Diagnóstico Comunitário Participativo
■■ Diagnóstico Organizacional
■■ Programa de Intervenção Social
■■ Monitoramento e Avaliação
■■ Mensuração de Impacto
157

INTRODUÇÃO

Nas unidades anteriores, você pode aprender sobre os fundamentos bíblicos,


teológicos e filosóficos da responsabilidade social da Igreja, ou seja, você teve a
oportunidade de edificar uma plataforma teórica que servisse como fundamento
para a prática cristã e para a ação da Igreja na sociedade.
Vencida essa fase essencial, fica agora a pergunta: como fazer o trabalho?
Indo muito além da intuição, da paixão e das boas intenções, a Igreja pode, de
fato, ter uma ação relevante no mundo, trabalhando em prol da transformação
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e da justiça social como resultados da sua responsabilidade ética e do cumpri-


mento da sua missão?
O Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral - CADI - (organização
da qual sou presidente hoje e que atua na área da transformação social) desenvol-
veu, ao longo de mais de 20 anos de história, uma série de ferramentas práticas
para orientar as suas equipes, os empreendedores sociais cristãos e missionários
para o trabalho social. O conteúdo apresentado aqui é parte dessa construção,
realizada pela equipe técnica do CADI e o pessoal de campo.
É importante destacar que alguns dos princípios e ferramentas apresentados
nesta unidade estão mais relacionados com a intervenção social em comunidades
de vulnerabilidade, risco social e pobreza, ou seja, são específicos para orientar
os ministérios de desenvolvimento comunitário, por se tratar da experiência do
CADI e pela relevância desse tipo de intervenção num contexto como o brasileiro.
Contudo, como vimos na Unidade I, a responsabilidade social da Igreja e
o imenso campo de possibilidades da influência cristã na sociedade vai muito
além disso, envolvendo os diversos domínios sociais, como a arte, a educação, a
cultura, a política, o direito, a economia, a psicologia etc. Também é importante
destacar que o conteúdo é introdutório e não pretende esgotar tecnicamente a
formação necessária às equipes de campo e gestores sociais, pois, afinal, trata-
-se de um trabalho de longo prazo.
Bom estudo!

Introdução
158 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
PRINCÍPIOS ORIENTADORES
NA ATUAÇÃO SOCIAL

A área técnica de uma intervenção social, seja ela executada por meio de uma
iniciativa informal ou de uma organização formal juridicamente constituída, é
fundamental para o bom desempenho do trabalho e para o alcance dos resul-
tados. Nosso desafio sempre será ter uma área técnica de qualidade, sem cair
em um “tecnicismo” exagerado, preservando a paixão que originou a iniciativa.
Este desafio aumenta à medida que novas iniciativas vão surgindo, os recursos
vão tornando-se mais escassos, as pessoas vão profissionalizando-se e a sociedade
em geral, incluindo os próprios beneficiários de um projeto, vão aumentando
o nível de exigência dos projetos. Em se tratando de possíveis parcerias com o
Poder Público e outros organismos e fundações, ainda requer-se que as iniciati-
vas sejam amparadas por instrumentos que garantam sua a eficácia. Isto é, não
basta “querer fazer”, é preciso “saber fazer”.
Nesse sentido, é importante estabelecer critérios mínimos que garantam a qua-
lidade técnica dos projetos, no sentido de atender às expectativas dos stakeholders
(partes interessadas), incluindo a própria equipe de trabalho, os patrocinadores
e as comunidades assistidas, em todos os projetos executados.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


159

De um modo geral, entendemos por “intervenção social”, todas as ativi-


dades, projetos e programas que buscam gerar um impacto num determinado
público-alvo, objetivando resolver um problema ou alavancar uma oportu-
nidade. No caso de projetos de desenvolvimento comunitário, o elemento da
territorialidade é fundamental, ou seja, é necessário definir claramente um
território de atuação, que deve compreender determinados agrupamentos
humanos, geralmente, áreas de vulnerabilidade social que, de preferência,
tragam um forte componente antropológico de pertencimento para as pes-
soas que ali habitam.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Alguns dos princípios básicos a serem observados nos projetos de inter-


venção social são:
■■ Princípio da Autonomia Programática Local: as iniciativas devem ter
autonomia para definir a estratégia de intervenção social, à luz do seu
contexto, das oportunidades e da expertise das pessoas envolvidas. Os
projetos deverão seguir as recomendações e orientações do Diagnóstico,
elaborado a partir da comunidade e dos indicadores socioeconômicos do
território a ser impactado.
No caso de projetos executados por organizações previamente constitu-
ídas e consolidadas, no entanto, o princípio da autonomia programática
deve submeter-se à Visão, Missão e Valores da Organização, seja ela uma
Organização da Sociedade Civil ou uma Igreja.
■■ Princípio da subordinação da captação de recursos à orientação
programática: as necessidades de campo e as estratégias locais de
desenvolvimento devem orientar a estratégia de mobilização de recur-
sos para os projetos, e não o inverso. Em tratando-se de organizações
sociais já constituídas, em todos os processos de captação para projetos
de intervenção, as equipes de campo e representantes dos beneficiá-
rios devem ser consultados e, na medida do possível, envolvidos na
elaboração destes.
■■ Princípio da Participação: é imprescindível a participação comunitária
no planejamento, execução, monitoramento e avaliação dos projetos. Da
mesma forma, as iniciativas deverão buscar a formação e o empodera-
mento das lideranças locais em todas as suas ações e no seu planejamento
de longo prazo.

Princípios Orientadoresna Atuação Social


160 UNIDADE V

■■ Princípio da territorialidade: cabe a cada iniciativa de intervenção social


definir claramente os critérios de delimitação dos territórios a serem
impactados, evitando a dispersão de esforços. Os territórios delimitados
devem ser comunicados a todos os stakeholders. No caso de diferentes
projetos atuando em diferentes comunidades e áreas geográficas, deve-
-se planejar que os projetos atuem em áreas contíguas, maximizando o
impacto e diminuindo custos.
■■ Princípio da equidade: na escolha e priorização das áreas de interven-
ção, idealmente deve-se buscar a equidade, ou seja, o apoio preferencial
às comunidades, famílias e crianças mais vulneráveis dentro do territó-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
rio de atuação da iniciativa.
Recomendações e Orientações:
■■ Recomenda-se que as iniciativas, mesmo as mais complexas, tenham,
no máximo, de 4 a 5 projetos que, juntos, possam compor intencional-
mente um Programa de ações interligadas, maximizando o impacto da
intervenção social.
■■ As iniciativas de intervenção social devem registrar todos os relatórios
necessários (conforme as exigências do projeto e do financiador), a fim
de que a prestação de contas seja viabilizada, assim como o trabalho de
fidelização do doador, quando for o caso.
■■ Em todos os projetos, na medida do possível, deve buscar o componente
de gênero (a defesa dos direitos e a valorização da mulher como protago-
nista do desenvolvimento social), como tema transversal e essencial para
a transformação social. Além disso, da mesma forma, é recomendável
que, nos projetos e programas, o enfoque socioambiental seja garantido,
nos contextos apropriados, como forma de relacionar o enfrentamento à
pobreza, às questões ambientais e às mudanças climáticas.
■■ Da mesma forma, é fundamental que os projetos garantam o compo-
nente de compromisso cristão como tema transversal e essencial para a
transformação social.
■■ Trabalhando por uma relevância cada vez maior, as iniciativas sociais
devem buscar sempre a inovação programática e a criação de novas tecno-
logias sociais, priorizando a execução de projetos que possam apresentar
um maior diferencial para a sociedade, nas suas áreas de expertise.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


161

■■ No trabalho comunitário, é fundamental buscar intencionalmente o esta-


belecimento de alianças e coalizões estratégicas com parceiros locais para
aumentar o impacto da intervenção, dentro do princípio da co-belige-
rança (alianças com outros atores sociais para alcançar objetivos comuns
de bem-estar). Os parceiros estratégicos preferenciais no nível progra-
mático e comunitário são as igrejas locais, incluindo, ainda, as escolas,
unidades de saúde, associações comunitárias, prefeituras, outras ONGs etc.
■■ Como vimos na unidade anterior, é imprescindível que, em tratando-se de
projetos executados por organizações formalizadas, estas estejam registra-
das e participando nos Conselhos Municipais das políticas públicas em que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

atuam, especialmente o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) e


o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
Os projetos que tenham por público-alvo crianças e adolescentes deverão,
necessariamente, estar registrados no CMDCA. Quando apropriado, deve-
-se pleitear também a participação em Conselhos Estaduais.
■■ Os projetos de desenvolvimento comunitário que direcionem o seu foco
para a criança e o adolescente devem orientar seu planejamento e suas
ações dentro de uma visão familiar sistêmica, ou seja, o foco na criança
significa que são legítimos projetos voltados para a família, a comunidade
e o meio ambiente, com o objetivo de impactar a vida da criança como
público-alvo prioritário. Desta forma, o foco na criança distingue-se da
centralidade na criança, que é definida como “projetos voltados apenas
para as crianças e adolescentes como único público beneficiário direto”.
■■ Sempre que possível, as iniciativas de intervenção social deverão trabalhar
a área de gestão do conhecimento que, segundo Maximiano (1997, p. 33),
[...] é a área do conhecimento em gestão de projetos que trata do pla-
nejamento e implementação de atividades para compilar, organizar e
guardar o conhecimento gerado pelos projetos, bem como para prote-
ger o sigilo e a propriedade intelectual contida nesses conhecimentos.

Esta é uma área relativamente nova da gestão de projetos, que emergiu


da prática das organizações, mas que hoje, em uma sociedade plural que
requer respostas cada vez mais complexas, é fundamental para gerar a
expertise das iniciativas e garantir resultados de impacto. Para tanto, o
registro das melhores práticas e experiências exitosas deve ser um com-
ponente da gestão das iniciativas sociais.

Princípios Orientadoresna Atuação Social


162 UNIDADE V

Antes de prosseguirmos com os diferentes componentes técnicos para a inter-


venção social, é importante que você se familiarize com algumas definições e
conceitos que serão tratados a seguir:
■■ Portfólio: conjunto de programas desenvolvidos por uma Organização.
■■ Programa: grupo de projetos relacionados, administrados de forma
coordenada, para obter benefícios e controle não disponíveis quando
são administrados individualmente. Um conjunto de projetos intencio-
nalmente integrados, articulados e coordenados com vistas ao alcance
de um impacto social.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
■■ Projeto: conjunto de atividades que encontra objetivos aceitos em um
período de tempo específico com um conjunto de recursos disponível.
■■ Dado primário: é o dado que não está disponível, sendo especialmente
usado nas situações em que as fontes secundárias não oferecem informa-
ções suficientes. Para obtê-lo, é necessário recorrer diretamente às fontes
(público-alvo, comunidade, beneficiários, atores sociais) com instrumen-
tos específicos de pesquisa.
■■ Dado secundário: a pesquisa de dados secundários diz respeito à coleta
de dados já existentes em diversas fontes (fontes oficiais, relatórios do
IBGE e da Prefeitura, estudos acadêmicos, ODSs, jornais, revistas, asso-
ciações de classe, entre outras).
■■ Pesquisa quantitativa: método de pesquisa que trabalha com indicado-
res numéricos e segue critérios estatísticos (SEBRAE).
■■ Pesquisa qualitativa: consiste em descrições detalhadas de situações,
conversas com grupos focais, entrevistas, comportamentos observados
e as citações diretas de pessoas sobre suas experiências, atitudes e cren-
ças. Vamos passar agora às ferramentas e componentes essenciais para a
intervenção social de base comunitária.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


163

O compromisso cristão é um tema transversal e essencial nos projetos so-


ciais que você conhece? O quanto eles, de fato, transformam as pessoas in-
tegralmente?
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

DIAGNÓSTICO COMUNITÁRIO PARTICIPATIVO

O Diagnóstico Comunitário Participativo diz respeito à análise e ao dimen-


sionamento das principais necessidades socioeconômicas da comunidade do
território-alvo, mapeando o seu capital social e as suas potencialidades. Trata-se
de um passo fundamental para qualquer iniciativa de transformação para que
possamos migrar do paradigma “nós fazendo para eles” para o “nós fazendo
com eles”. O diagnóstico comunitário é, por si só, uma ação transformadora,
pois leva a comunidade a participar e refletir sobre si mesma, a identificar seus
principais problemas e potenciais e a projetar e sonhar o futuro, criando uma
poderosa visão coletiva, componente essencial para a mudança.

Diagnóstico Comunitário Participativo


164 UNIDADE V

O diagnóstico comunitário não é, na verdade, um fim em si mesmo, mas uma etapa


intermediária para a construção de um Programa participativo de intervenção social.
Porém, ele é, muitas vezes, negligenciado, pois, em geral, as pessoas têm a tendên-
cia de achar que já conhecem os problemas, que já têm as soluções, ou que estas
podem ser generalizadas (deu certo em outro lugar, vai dar certo aqui também).
Projetos elaborados sem diagnósticos sociais são como tratamentos médi-
cos sem exames, e vão cair sempre na técnica da tentativa e erro, tendo muito
mais probabilidade em desperdiçar tempo e recursos; gerar frustração na equipe
e na comunidade; causar dependência, paternalismo, manipulação e acomo-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dação, além de cair em enfoques excessivamente normativos e divorciados da
realidade e anseios comunitários. O tempo, energia e recursos gastos na realiza-
ção do diagnóstico constitui, na verdade, um investimento, que acelerará mais
adiante os processos de transformação.
Os principais objetivos do Diagnóstico são:
■■ Conhecer as principais necessidades e potencialidades que a comunidade
do território atendido pela iniciativa social enfrenta, assim como as ações
desenvolvidas pela rede de serviços locais e municipais.
■■ Promover e fortalecer a participação comunitária no planejamento das
ações de intervenção.
■■ Recomendar ações de intervenção social no nível de Programa, no sentido
de otimizar o impacto, a partir do conhecimento adquirido no Diagnóstico.

METODOLOGIA

Existem muitas metodologias para elaboração de diagnósticos, algumas mais simples,


outras mais complexas, algumas utilizando-se exclusivamente de dados secundários,
outras privilegiando os dados coletados diretamente da comunidade. A metodologia
a ser adotada vai depender, também, da capacidade técnica das pessoas envolvidas,
do número de voluntários dispostos a ajudar, da profundidade desejada e do tipo
de parcerias envolvidas (se com o Poder Público, por exemplo, ou com o setor pri-
vado) e principalmente dos objetivos do projeto – se o foco será direcionado para
crianças e adolescentes, inclusão econômica, incidência política etc.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


165

A seguir, apresento uma metodologia desenvolvida pelo CADI a partir das


práticas de campo e do conhecimento adquirido com outras organizações de
referência. Essa metodologia já tem sido aplicada com sucesso em inúmeras
ocasiões, em diversas comunidades de todas as regiões do Brasil e até em outros
países, e é composta por diversos passos:
■■ Elaboração de Mapeamento Territorial da comunidade, contendo: equi-
pamentos públicos, associações comunitárias, igrejas e outras instituições
religiosas, ONGs, áreas de risco social e ambiental, setor produtivo (comér-
cio, indústria, prestação de serviços etc.).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

■■ Coleta de dados primários (dados que são adquiridos diretamente em


campo):
a. aplicação de pesquisa qualitativa por meio de questionários com perguntas
abertas para grupos focais, Secretaria de Assistência Social, CMDCA, CMAS,
lideranças locais, igrejas, comunidade e outros;
b. aplicação de pesquisa quantitativa por meio de questionários com perguntas
fechadas, por meio de amostragem (a amostragem da pesquisa quantitativa
deverá ser definida por metodologia que garanta a cientificidade da análise
dentro dos critérios estatísticos, de acordo com margem de erro desejada e
homogeneidade da população pesquisada), no público beneficiário e/ou em
grupos de especial interesse;
c. grupo de foco com lideranças comunitárias e grupos de especial interesse:

■■ Coleta de dados secundários (fontes oficiais, relatórios do IBGE e da


Prefeitura, estudos acadêmicos, ODMs etc.).
■■ Análise dos dados primários e secundários.

INSTRUMENTOS DE PESQUISA

Como já mencionamos, a metodologia e, consequentemente, os instrumentos de


pesquisa, vão variar grandemente em cada território pesquisado, principalmente em
função dos objetivos centrais do projeto. Alguns dos instrumentos utilizados são:

■■ Entrevistas semiestruturadas com perguntas abertas e/ou fechadas para


atores comunitários: órgãos públicos, CMDCA, Conselho Tutelar, CMAS,
outras ONGs, escolas, igrejas, líderes comunitários, comerciantes e par-
ceiros em geral.

Diagnóstico Comunitário Participativo


166 UNIDADE V

■■ Roteiro para aplicação em grupos de foco com lideranças comunitárias


e/ou grupos de especial interesse.
■■ Questionário de perguntas abertas e/ou fechadas, com amostragem pré-de-
finida, a ser aplicado no público beneficiário e/ou em grupos de especial
interesse.

PROCESSO E ENTREGA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Em geral, a realização de um Diagnóstico Comunitário prevê um amplo processo
de mobilização, que deve ser bem coordenado e ter a participação direta de ato-
res comunitários locais como parte da liderança e do planejamento das ações.
Após a definição dos instrumentos de pesquisa, o ideal é ter uma fase de pré-
-teste, em que os instrumentos são aplicados num número reduzido de pessoas.
Esse procedimento é importante para testar os instrumentos, verificando se fazem
sentido, se são inteligíveis para a comunidade, se as perguntas estão adequadas
e se trazem as respostas que vão dar subsídios para a elaboração do Programa.
A fase de coleta de dados é muito intensa e a sua duração pode variar muito
dependendo da complexidade, profundidade da pesquisa e da abrangência do ter-
ritório, mas, com organização, disciplina e uma equipe coordenada, é possível fazer
uma ampla coleta de dados em alguns dias de trabalho de campo. Depois dessa fase,
inicia-se a análise dos dados, que costuma durar muito mais, requerer o trabalho de
técnico especializado da área das ciências humanas ou, em alguns casos, de alguém
da própria comunidade sendo tutoreado por um profissional com mais experiência.
A entrega final do trabalho consiste no Relatório de Diagnóstico Comunitário,
com recomendações de ações de intervenção social, a nível de Programa, para os
interessados. Desde o início, é preciso que fique claro de quem será a responsabi-
lidade pela escrita do Relatório, pois esta costuma ser complexa, com diferentes
análises e recomendações propositivas.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


167

Idealmente, recomenda-se que o Relatório seja apresentado à comunidade


e aos stakeholders, em uma versão mais simples e visual, em uma reunião de
devolutiva, para todas as pessoas envolvidas no processo, inclusive as que par-
ticiparam na pesquisa e foram entrevistadas.
Esta é, também, uma ótima oportunidade para estabelecer ou fortalecer
uma ampla Rede de transformação, defesa de direitos e/ou proteção no territó-
rio pesquisado, além da oportunidade de envolver o Poder Público na discussão
dos problemas sociais e suas possíveis soluções por meio de políticas e serviços
públicos e de cooperação com a sociedade civil.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Na reunião de devolutiva do diagnóstico, a comunidade também pode vali-


dar os resultados, apontando as prioridades e até participando da elaboração do
Programa de intervenção social.

Ao ouvirmos as questões sobre as quais as pessoas têm sentimentos mais


fortes, é possível identificarmos as questões que elas mais querem que se-
jam solucionadas e os projetos nos quais elas mais provavelmente partici-
parão. Uma equipe de pessoas (agentes de desenvolvimento ou moradores
dos vilarejos) fazem perguntas para uma comunidade ou grupo para des-
cobrir o que os estão preocupando, entristecendo, alegrando, causando
medo, criando esperanças ou raiva. Estas perguntas devem ser abertas. É
importante ter uma ideia clara do que estamos procurando e, assim, possa-
mos fazer sentido das respostas.
Fonte: Blackman (2003, p. 15).

Diagnóstico Comunitário Participativo


168 UNIDADE V

DIAGNÓSTICO ORGANIZACIONAL

Em nossa experiência de mais de duas décadas


implantando projetos e apoiando empreen-
dedores sociais, constatamos que, muitas
vezes, as iniciativas se dão a partir de
pequenas e médias organizações sociais
e de base comunitária, ou de igrejas
locais, que desejam aumentar sua efetividade

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e impacto, saindo de um paradigma assistencialista
e intuitivo para um enfoque mais técnico e voltado
para resultados. Muitas vezes, isso se dá em organizações que querem cap-
tar recursos de uma forma mais profissional, celebrar parcerias com o Poder
Público e crescer em resultados e impacto.
Quando uma nova iniciativa almeja ser gerada nesses termos, ocorre uma
complexidade maior, pois a Organização já está atuando, já tem uma história, uma
equipe e é percebida de certa forma (muitas vezes, negativa) pela comunidade e
por seus stakeholders. Desta forma, recomenda-se que a nova iniciativa ou projeto
não seja implementada antes da realização de um Diagnóstico Organizacional,
que será fundamental para estabelecer um plano de ação no sentido de prepa-
rar a organização para uma intervenção social mais qualificada. Do contrário,
a tendência é que o novo projeto não se consolide e a organização “não tenha
pernas” para implementá-lo, causando ainda mais frustração na equipe e, mui-
tas vezes, nos próprios beneficiários.
O Diagnóstico Organizacional consiste no estudo avaliativo sobre a saúde de
Organizações do Terceiro Setor que atuam na área do desenvolvimento comuni-
tário, em que é possível identificar deficiências, fraquezas e potencialidades nos
diversos âmbitos de atuação e gestão. Ele é uma ampla pesquisa sobre os diversos
aspectos que devem compor uma organização para que ela seja efetiva e sustentá-
vel. Trata-se de uma excelente ferramenta de fortalecimento institucional, que não
deve ser negligenciada no processo de transformação. A maior beneficiada de uma
Organização efetiva, sustentável e saudável será a própria comunidade assistida.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


169

Os principais objetivos do diagnóstico organizacional são:


■■ Verificar o nível de efetividade das ações desenvolvidas pela organização,
a partir da coleta de dados.
■■ Compreender os elementos básicos do modelo de organização e gestão
da organização e suas implicações para o desenvolvimento social.
■■ Compreender a situação da relação da organização com os atores e orga-
nizações locais.
■■ Recomendar ações de mudanças organizacionais, a fim de otimizar o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

impacto e os resultados institucionais.

METODOLOGIA

Tal qual o diagnóstico comunitário, este estudo pode variar muito em profundi-
dade, dependendo dos objetivos organizacionais; mas, em determinadas situações,
é fundamental que seja realizado antes do início da implementação do Programa
de intervenção social. Os passos metodológicos essenciais são:
■■ No nível interno à organização, é aplicada uma pesquisa qualitativa,
por questionário de análise das áreas de governança, gestão, partici-
pação e proteção da criança e adolescente, espiritualidade, parcerias,
comunicação e marketing, captação de recursos, entre outros; os ques-
tionários são preenchidos pelos próprios colaboradores, voluntários,
funcionários, diretores etc. Idealmente, todos da organização devem
participar do processo.
■■ No nível externo à organização, é aplicada uma pesquisa quali-quanti-
tativa por meio de questionário semiestruturado sobre o desempenho e
impacto das ações organizacionais na população beneficiada. Podem ser
aplicados diversos instrumentos de coleta de dados junto a crianças, ado-
lescentes, jovens, familiares, lideranças da Organização, equipe executiva
e atores externos; além de grupos de foco com beneficiários.
■■ Análise de dados secundários (estatuto, atas, relatórios das atividades dos
últimos anos etc.).

Diagnóstico Organizacional
170 UNIDADE V

INSTRUMENTOS DE PESQUISA

■■ Entrevistas semiestruturadas com: liderança estatutária, liderança execu-


tiva, líderes de projetos, educadores e mantenedores.
■■ Entrevistas semiestruturadas com atores externos: prefeitura, CMDCA,
Conselho Tutelar, CMAS, outras ONGs, escolas e parceiros em geral.
■■ Roteiro para aplicação em grupos de foco com crianças e adolescentes
beneficiários, pais e familiares.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
PROCESSO E ENTREGA

Da mesma forma que o Diagnóstico Comunitário, é imprescindível que haja um


tempo considerável dedicado à coleta de dados para a pesquisa organizacional,
com a aplicação dos questionários e entrevistas, tanto no nível interno quanto
externo. Evidentemente, esse tempo vai variar muito, dependendo do tamanho
da equipe de entrevistadores e da complexidade da organização.
Em nossa experiência, a metodologia pode ser utilizada em grandes organi-
zações, com dezenas de funcionários e em pequenas entidades, com apenas um
funcionário remunerado, por exemplo. Em geral, é possível fazer toda a coleta
de dados em alguns dias, passando em seguida para as etapas de análise e de ela-
boração do produto final que é o Relatório de Diagnóstico Organizacional, com
recomendações para a liderança.
Neste caso, em geral, a devolutiva do relatório deve ser preferencialmente
direcionada para os líderes – em geral, diretoria estatutária ou conselho diretor
da organização, pois pode envolver questões sensíveis de relacionamento entre a
equipe, clima organizacional e orçamento. Dependendo do nível de maturidade
da equipe e da organização e do clima organizacional, os resultados podem ser
apresentados a todos, conjuntamente. Essa decisão requer sabedoria e discerni-
mento por parte do pesquisador e da liderança.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


171

A etapa seguinte à apresentação do relatório é a elaboração de um Plano de


Ação para o fortalecimento organizacional, incluindo os diversos componentes
da dinâmica e da estrutura organizacional. A ênfase do Plano vai variar muito, de
acordo com as fraquezas e forças da entidade pesquisada. Muitas vezes, no Plano
de Ação, são recomendadas ações, como: estabelecimento de um planejamento
estratégico que norteie todo o trabalho para os próximos 5 a 10 anos, criação de
uma área de comunicação e marketing, adoção de instrumentos de contratação e
gestão de pessoas, ações intencionais de captação de recursos, adoção de uma polí-
tica de proteção da criança e do adolescente, coaching de liderança, entre outras.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Independentemente das ações recomendadas e da ênfase do Plano de Ação, é


muito importante que a implementação dele seja monitorada, preferencialmente
por um ator externo (assessor, consultor ou coach), pois a tendência é de que, sozi-
nha, a organização não consiga avançar nos passos necessários para uma maior
efetividade e excelência, já que isso requer mudança de cultura organizacional,
muito foco e perseverança e capacidade de superação em desafios complexos.












Diagnóstico Organizacional
172 UNIDADE V

PROGRAMA DE INTERVENÇÃO SOCIAL

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
As pesquisas de diagnóstico mencionadas até aqui são consideradas etapas interme-
diárias para que tenhamos os insumos necessários para a elaboração do Programa de
Intervenção Social, que vai direcionar de fato o trabalho. A elaboração do Programa,
como já dissemos, é um componente essencial do processo de transformação que a
iniciativa deseja alavancar, pois promove o trabalho do nível meramente intuitivo
para um direcionamento estratégico, com objetivos e foco claramente definidos.
Conforme a definição dada no item 1, entende-se Programa como “um con-
junto de projetos intencionalmente integrados, articulados e coordenados com
vistas ao alcance de um impacto social”. Como, na maioria das vezes, as iniciativas
de desenvolvimento comunitário vão atuar em diferentes frentes (ex.: proteção
da infância, incidência em políticas públicas, geração de renda etc.), para que o
impacto seja maior e sustentável, preferimos utilizar o termo Programa, ao invés
de Projeto, tendo em vista que se trata de uma coleção de projetos integrados.
Porém, ambos os termos podem ser utilizados. Segundo Maximiano (1997, p.
5), projeto pode ser definido como:
[...] um empreendimento ou esforço planejado, que deve entregar um
resultado singular, orientado para uma mudança benéfica, definido por
objetivos de ordem quantitativa e qualitativa, realizado por recursos orga-
nizados de forma também singular, dentro de restrições de prazo e custo.

Projetos são, por definição, estratégias de mudança, constituindo uma atividade


temporária e inovadora, ou seja, que tem início e fim, e um orçamento especifi-
camente alocado para a execução dessa atividade.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


173

O objetivo da elaboração do Programa é documentar as diretrizes estra-


tégicas e operacionais para um maior impacto social, à luz do Diagnóstico,
por meio de ações estruturadas, com indicadores de resultados, otimizando
as oportunidades de mobilização de recursos por parte da Organização ou da
iniciativa social. Desta forma, essa fase prepara o trabalho para a clareza de
onde se quer chegar de fato.
Muitas iniciativas sociais são impulsionadas por líderes empreendedores, que
agregam voluntários, mas não são orientadas pelas reais necessidades das comu-
nidades. Sendo assim, as ações podem tornar-se dispersas, artificiais, sem foco
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e sem objetivos claros. A elaboração do projeto/programa e o gerenciamento da


iniciativa social por projetos, e não apenas por atividades rotineiras, são impor-
tantes para orientar as ações, entre várias outras vantagens:

■■ Maior probabilidade de cumprimento dos prazos – o gerenciamento por


projetos fornece ferramentas para antever, evitar ou minimizar atrasos
na execução.
■■ Responsabilização pelos resultados – os planos de projetos contêm a lista
das atividades e dos “entregáveis” (os produtos que serão realizados), com
os respectivos responsáveis pela execução e pelos resultados. Isso traz cla-
reza e garante que os gaps funcionais serão preenchidos.
■■ Flexibilidade – os planos de projetos podem ser alterados a qualquer
tempo, como resultado do trabalho de monitoramento constante.
■■ Percepção de valor por parte dos stakeholders – as expectativas dos inte-
ressados são alinhadas e gerenciadas, pois os resultados esperados estão
claramente definidos no planejamento do projeto.
■■ Antecipação de problemas e gestão dos riscos – aumento da eficácia da
iniciativa por meio da utilização das ferramentas de monitoramento e
da avaliação.
■■ Comunicação fluida e eficaz – bons projetos criam planos e fluxos de
comunicação aos stakeholders, aumentando a eficácia, a visibilidade, geren-
ciando as expectativas e aumentando o impacto das ações.

Programa de Intervenção Social


174 UNIDADE V

METODOLOGIA

A metodologia para elaboração do Programa também inclui uma fase de coleta


de dados, incluindo dois componentes principais:
■■ Recomendações do Relatório Final de Diagnóstico Comunitário e/ou
Organizacional.
■■ Reuniões com os stakeholders para coleta de dados primários, por ocasião
da devolutiva do Diagnóstico e após a validação do Relatório.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Geralmente, um bom relatório de diagnóstico apontará diversas problemáticas
que devem ser enfrentadas para alavancar processos de transformação. Não é
recomendado que se haja em muitas frentes distintas, sob pena de aumentar o
risco e diluir o impacto, por isso, uma boa opção é aproveitar a devolutiva do
diagnóstico comunitário para, em conjunto com a comunidade e demais atores
sociais, eleger prioridades e iniciar a construção do programa.
Esse processo participativo é muito importante para gerar empoderamento,
pertencimento e apropriação do projeto por parte da comunidade, o que, por
definição, é essencial para o desenvolvimento. Ainda que seja desejável que um
consultor especializado ou uma pessoa com experiência seja responsável pela
entrega final do documento do Programa, recomenda-se que haja um comitê
para auxiliar no desenho do projeto, com representantes da comunidade bene-
ficiária. Estes stakeholders, incluindo potenciais financiadores e os líderes da
iniciativa, vão apontar os resultados que se esperam obter, mas é fundamental
que haja um responsável técnico pela elaboração do documento.

PROCESSO E ENTREGA

Cumpridas as etapas da metodologia de construção do Programa, o respon-


sável técnico deve entregar para o comitê e/ou para os líderes da iniciativa o
Documento de Programa de Intervenção Social, que poderá ser utilizado na
estratégia de mobilização de recursos da organização ou da iniciativa social.
Dentro do Programa, são discriminados os diferentes projetos que irão compô-lo.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


175

Há inúmeras metodologias e formatos de construção de projetos, desde os


mais simples até os mais complexos. Muitas organizações, por exemplo, utilizam
o marco lógico ou matriz lógica na elaboração dos seus projetos. Evidentemente,
nosso objetivo aqui não é esgotar esse assunto, pois a elaboração e gestão de pro-
jetos é um campo vasto do conhecimento que requer capacitação e experiência.
Muitas vezes, em se tratando de organizações consolidadas que acessam
recursos de editais e do Poder Público, os projetos são adaptados às exigências
de cada edital e dos financiadores. No entanto, considerando as melhores práticas
e recomendações para elaboração de projetos, sugere-se um roteiro preliminar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

básico, contendo os componentes mínimos de um projeto:


1. Objetivo Geral.
2. Objetivos específicos.
3. Ações.
4. Resultados Esperados.
5. Indicadores.
6. Meios de Verificação.
7. Equipe de trabalho.
8. Cronograma.
9. Orçamento.

Programa de Intervenção Social


176 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO

Conforme mencionamos anteriormente, uma das grandes vantagens do gerencia-


mento por projetos é o esforço de monitoramento e avaliação que é empreendido,
assegurando que os resultados sejam alcançados ou que as mudanças necessárias
sejam feitas, de uma maneira muito mais eficaz do que no mero gerenciamento
por atividades rotineiras.
O Monitoramento consiste na verificação da execução das atividades e dos
resultados esperados do Programa, de forma constante e durante o seu ciclo de
vida, no sentido de garantir que a implementação esteja progredindo conforme
o planejado. Já a Avaliação do programa/projeto é a verificação se os benefícios
esperados foram entregues, ao final do prazo definido. Isto é, enquanto o moni-
toramento se dá durante a fase de execução, interferindo no replanejamento e
na gestão dos riscos, a avaliação acontece depois que o projeto é encerrado ou
quando está em fase de encerramento ou transição para um novo desenho.
O Monitoramento de um projeto ou programa é uma atividade muitas vezes negli-
genciada, mas fundamental para o alcance dos objetivos, especialmente se tratando da
área social, onde há muitas variáveis imprevisíveis. Os seus principais objetivos são:

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


177

■■ manter as atividades do projeto dentro do cronograma;


■■ identificar problemas e achar soluções;
■■ medir o progresso em comparação com os resultados;
■■ auxiliar na tomada de decisões sobre recursos humanos, financeiros e
materiais.

Para que o processo de monitoramento seja efetivado, são feitas análises de docu-
mentos (relatórios de atividades, meios de verificação dos indicadores, execução
orçamentária etc.) e, preferencialmente, devem ser realizadas visitas a campo,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

onde se recomenda a utilização de grupos de foco com beneficiários do projeto,


para que se tenha uma ideia do impacto que a iniciativa está gerando na comu-
nidade. Para isso, os instrumentos de pesquisa utilizados podem ser:

■■ roteiro de visita de campo;


■■ roteiro estruturado para aplicação em grupos de foco;
■■ relatórios de atividades, meios de verificação dos indicadores, relatório
de execução orçamentária etc.

A entrega ou produto final é o relatório de monitoramento, contendo a análise


situacional de itens essenciais do projeto, como: atividades, indicadores de resul-
tado e execução orçamentária, assim como recomendações para que o objetivo
principal de transformação seja alcançado. Esta é a hora de corrigir as rotas,
alterar o orçamento, fazer alterações na equipe ou na forma como ela se orga-
niza, gerenciar algum risco ou, até mesmo, sugerir aos stakeholders alterações
no escopo do projeto, se for o caso.
No caso da Avaliação, realizada após o encerramento do projeto, os princi-
pais objetivos são:
■■ medir a eficácia do projeto (análise custo X benefício, execução orça-
mentária etc.);
■■ determinar se os resultados foram alcançados;
■■ aprender lições para melhorias futuras (gestão do conhecimento);
■■ verificar a qualidade das entregas do programa/projeto.

Monitoramento e Avaliação
178 UNIDADE V

Da mesma forma que no monitoramento, a metodologia deve incluir visitas a


campo e a realização de grupos de foco com beneficiários e entrevistas semies-
truturadas com os stakeholders. Para esta atividade, é importante utilizar roteiros
pré-elaborados de visitas de campo, roteiros estruturados para aplicação em gru-
pos de foco e questionário com perguntas fechadas e/ou abertas, a ser aplicado
junto aos beneficiários diretos, liderança da iniciativa, gerência do projeto, cola-
boradores, financiadores, parceiros etc. Na Avaliação, é importante, também, a
análise dos relatórios de atividades, meios de verificação dos indicadores, exe-
cução orçamentária etc.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A entrega final é o relatório de avaliação do projeto, contendo:
■■ análise dos dados;
■■ relatos de beneficiários;
■■ conclusões;
■■ lições aprendidas;
■■ considerações finais.

Dependendo da complexidade do projeto, o monitoramento e a avaliação poderão


ser executados por uma pessoa ou equipe da própria iniciativa social/organiza-
ção ou em caso de projetos mais complexos e estruturados, por atores externos,
garantindo mais isenção e profissionalismo.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


179
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

MENSURAÇÃO DE IMPACTO

Uma área de fundamental importância no que diz respeito à qualidade técnica


e à gestão de projetos de intervenção social refere-se à mensuração do impacto.
Esta costuma ser uma área ainda pouco explorada pelas iniciativas sociais, pois
estima-se que apenas 15% das organizações já possuem um processo formal de
mensuração de impacto como parte do seu modus operandi.
Os conceitos de mensuração de impacto podem ser aplicados tanto em ini-
ciativas pontuais e simples quanto em projetos complexos. A pergunta principal
da mensuração de impacto é: qual a contribuição de determinado projeto para
resolver um problema social?
Para compreendermos melhor, é importante exemplificarmos a diferença
entre simplesmente medir atividades e medir impacto. Por exemplo, em um
projeto de erradicação do trabalho infantil, podemos fazer diversas oficinas de
capacitação dos professores da rede pública e das escolas para realizar busca ativa
das crianças em situação de evasão escolar. Geralmente, as iniciativas e organi-
zações sociais informam aos seus stakeholders: foram realizadas xxxx oficinas de
formação de professores e gestores escolares, alcançando yyyy pessoas.

Mensuração de Impacto
180 UNIDADE V

No entanto, a realização das oficinas, por si só, não garante que, de fato, o
trabalho infantil irá diminuir ou será erradicado. A mensuração de impacto será
capaz de afirmar que zzzz crianças saíram da situação de trabalho infantil, ou
o número de crianças em situação de trabalho infantil diminuiu x%, em fun-
ção do projeto. O foco está no resultado e não apenas nas atividades realizadas.
Entendemos impacto como o efeito de uma ação ou o resultado de uma
atividade. Ele agrega determinado valor para aquelas pessoas que receberam a
ação, podendo ser entendido em curto, médio ou longo prazos. O impacto está
relacionado diretamente à transformação, ou seja, significa mudar de uma situ-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ação A (atual) para uma situação B (desejada). O Impacto social diz respeito,
portanto, ao resultado de uma solução aplicada no campo social, e a mensura-
ção do impacto é o processo para conhecer o impacto causado.
A primeira etapa para se trabalhar a avaliação de impacto é conhecer a Teoria
da Mudança. Não esgotaremos esse tema aqui, mas podemos ter uma ideia de
como uma iniciativa social deve ser entendida e analisada na figura a seguir:

• Que impacto você gera no longo prazo (na


Impacto vida das pessoas, na sociedade, no mundo)

• Qual objetivo você alcança (a solução do


Objetivo problema, com foco no público alvo)

• Que resultado você alcança quando seu


Resultados cliente/beneficiário utiliza sua solução

• Que atividade sua empresa realiza para


Atividades solucionar o problema - o produto/serviço
que você oferece

Figura 1 - Teoria da mudança


Fonte: adaptado de Social Good Brasil, (2017, on-line).

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


181

A Teoria da Mudança nos ajuda a compreender exatamente qual é a finali-


dade da intervenção ou do projeto social. Qual é o objetivo? Em segundo plano,
já caminhando para o nível operacional, precisamos pensar: como fazer isso?
E, em terceiro lugar, compreender até onde vamos na busca da solução daquele
problema, qual a nossa contribuição e o nosso papel?
Seguindo a Figura da Teoria da Mudança, definidas as Atividades que vão
nos levar a alcançar os objetivos, precisamos pensar nos Produtos diretos da
ação (outputs). Este é o resultado imediato das ações do projeto. Exemplo: em
um projeto de erradicação do trabalho infantil e diminuição da evasão escolar,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

um produto seria as oficinas de capacitação de gestores das escolas para realizar


busca ativa de crianças que deixassem de comparecer à escola.
Contudo, o processo não acaba aí: em seguida, vêm os Resultados (outcomes).
Neste caso, os resultados dependem também, em parte dos beneficiários e não ape-
nas dos projetos em si. Por exemplo, em um programa de capacitação para geração
de renda, podemos ensinar a um grupo de pessoas alguma profissão, mas se isso de
fato vai permitir que alguém gere renda para si e sua família, não dependerá apenas
dos esforços do projeto, mas em grande parte dos próprios alunos. Nesta dimen-
são da Teoria da Mudança é que residem os objetivos de fato finalísticos do projeto.
O nível seguinte, mais profundo, depois de Produtos e Resultados, é o nível do
Impacto, que corresponde ao resultado ecossistêmico, ou seja, o quanto que essa
ação vai mudar a realidade social em geral. Nos exemplos anteriores, o Impacto
será: melhoria dos indicadores sociais, aumento do Índice de Desenvolvimento
Humano etc.
Resumindo de uma maneira simples, os produtos são os resultados diretos
das atividades, os resultados são o impacto nas vidas das pessoas beneficiárias
do projeto e o impacto corresponde à mudança abrangente, a nível da sociedade.
Para ficar mais claro, outra maneira de se pensar em mensuração de impacto
é fazer um encadeamento de perguntas “para que”? Entre cada um dos níveis de
teoria da mudança:
Atividades geram os produtos.
Produtos Para que? geram os resultados.
Resultados geram o impacto.

Mensuração de Impacto
182 UNIDADE V

Impacto

Os níveis de mensuração variam de organização para organização ou de inicia-


tiva para iniciativa. A área mínima de medição é até o nível dos produtos, ou
seja, toda iniciativa deve ser capaz de medir ao menos o que faz diretamente.
Nem todas as iniciativas, no entanto, necessariamente, precisarão medir o nível
dos resultados. Isso vai depender dos objetivos do projeto, mas é fundamental
que cada iniciativa construa a sua teoria da mudança, a fim de que seja possível
planejar, mensurar, traduzir e comunicar o impacto para os stakeholders.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A figura exemplifica as fases de mensuração:

Divulgação e Teoria da
monitoramento mudança 1

5
AVALIAÇÃO
Análise e Apresentar
mensuração DE IMPACTO objetivos
SOCIAL
2

4 Plano de Método
medição de avaliação

3
Figura 2 - Avaliação de Impacto Social
Fonte: adaptado de Paulo Cruz Filho ([2017], on-line)¹.

Os passos para a mensuração de impacto são:


1. Construir a Teoria da Mudança.
2. Definir os objetivos da mensuração de impacto – por que queremos ava-
liar nosso impacto? Pode ser para prestar contas para algum parceiro ou
financiador, usar como ferramenta de gestão para a organização, ou para
avaliar a performance dos produtos e serviços oferecidos, ou a combina-
ção de todos esses fatores. Todos são importantes e legítimos.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


183

3. Definir para quem será destinada a avaliação do impacto. Este passo é


fundamental entendermos a expectativa das pessoas a que será destinado
o resultado da mensuração de impacto, pois os instrumentos e métodos
podem variar de acordo com essa definição.
4. Decidir até qual dos níveis da teoria da mudança que vamos avaliar (pro-
duto, resultado ou impacto).
5. Definir quais indicadores vamos avaliar (exemplo: quantidade de pessoas
capacitadas). Pode ser utilizada também uma abordagem mais qualita-
tiva, estudando casos reais, contando histórias de sucesso, por exemplo.
Para isso, é importante definir qual o nível de profundidade que vamos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

utilizar na mensuração.
6. Escolher qual a metodologia de mensuração de impacto que vamos utili-
zar. Existe várias metodologias disponíveis. Neste ponto, há vários níveis
de profundidade possíveis, desde o mais simples até o mais complexo:
a. Avaliação direta: antes versus depois.
b. Comparação e complementariedade – comparar o impacto da iniciativa com
o de outras organizações que fazem algo parecido, ou que trabalham com o
mesmo público.
c. Adicionalidade – avaliar a contribuição específica da iniciativa para o pro-
cesso de mudança. Isso é possível por meio do estabelecimento de grupos de
controle e aleatorização. A pergunta orientadora é: será que o impacto que
eu causei já não ia acontecer se eu não existisse? Em outros termos, qual a
minha contribuição peculiar para a transformação que está acontecendo? Se eu
trabalho com uma comunidade e eu ajudei a aumentar a riqueza desta comu-
nidade em 1%, e o PIB do Brasil aumentou 2 % no mesmo período, será que
o meu resultado não foi causado pela conjuntura maior? Na adicionalidade,
por meio de comparação com dados macro conjunturais e do estabelecimento
de grupos e controle, é possível fazer essa relação.
d. Monetização – corresponde ao último nível, mais complexo, que consiste em
atribuir valor financeiro àquilo que é realizado e ao resultado alcançado. Exem-
plo: quanto custa tirar uma pessoa da rua? Quanto isso reduz de custos para o
governo e para a sociedade civil? Algumas metodologias complexas nesta área
costumam até monetizar valores intangíveis, como autoestima, por exemplo.
Podemos utilizar ferramentas específicas com bancos de indicadores pré-es-
tabelecidos, que podem orientar a nossa ação de mensuração de impacto. Há
diversas ferramentas de apoio que podem auxiliar o gestor e a equipe nesta tarefa.

7. O último passo é o desenho do Plano de Mensuração de Impacto para a


iniciativa. Esse plano deve conter, ao menos, as seguintes informações:

Mensuração de Impacto
184 UNIDADE V

■■ indicadores - quais indicadores serão utilizados para cada etapa da teoria da


mudança;
■■ responsável – quem fica responsável por realizar a mensuração e avaliar os
resultados - poderá ser um ator interno ou externo à organização;
■■ amostragem – definir a amostra em que será medido o impacto, utilizan-
do-se metodologias de pesquisa que garantam a cientificidade do resultado;
■■ fontes (instrumentos de coleta) - dentro as várias possibilidades (dados secun-
dários, questionários, entrevistas, grupo de foco, histórias etc.), definir quais
serão as fontes de coleta de dados para a mensuração do impacto;
■■ orçamento - o custo dos processos de mensuração de impacto. O custo do
processo não poderá ser maior que o benefício gerado.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Após a Aplicação do Plano de Ação Mensuração e a Análise dos dados, a decisão
estratégica é acerca da divulgação e compartilhamento de resultados, de acordo
com as expectativas do stakeholders. A comunicação poderá ser feita com empre-
sas, parceiros, financiadores, público interno etc., dependendo dos objetivos.
Uma observação importante: a mensuração de impacto não deve tornar-se um
“peso” ou um “fim em si mesmo” para a organização ou iniciativa social, nem deve
distrair a equipe do cumprimento das metas do programa em si. O trabalho de
mensuração de impacto deve ser analisado em função do benefício que trará para a
organização, pois pode ser um diferencial positivo de melhoria na gestão dos projetos.
No caso de organizações consolidadas, é função da alta administração (fundadores,
diretores, conselhos), da liderança de participarem ativamente e apoiarem o trabalho
de mensuração, principalmente nas fases do planejamento e da análise do processo.

GLOSSÁRIO

AÇÕES – são as tarefas atuais a serem feitas para alcançar os resultados


desejados.
CMAS – Conselho Municipal de Assistência Social.
CMDCA – Conselho Municipal de Direitos das Crianças e Adolescentes.
DEFESA DE DIREITOS – significa falar com e em favor do pobre para
abordar as causas fundamentais da pobreza, trazer justiça e apoiar o desenvol-
vimento pela influência de políticas e práticas dos mais fortes.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


185

IMPACTO – significa mudanças sustentáveis a longo prazo – positivas ou


negativas, esperadas ou inesperadas que ocorrem no contexto no qual o pro-
grama opera.
INDICADORES – são formas de medição de progresso em relação à meta.
São alvos ou padrões a serem alcançados em cada etapa, podendo ser quantita-
tivos ou qualitativos.
MARCO LÓGICO – matriz que é elaborada sucessivamente num processo
de estruturação daqueles elementos considerados os mais importantes de um pro-
jeto e que permitem a sua apresentação sistemática, lógica e sucinta (PFFEIFER,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

2000, p. 82).
MEIOS DE VERIFICAÇÃO – são métodos para coletar informações (dados)
requeridas para avaliar o progresso em relação aos indicadores.
MONITORAMENTO – significa um processo estruturado e contínuo de
medição de progresso em relação aos objetivos.
ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – os 193 países-mem-
bros das Nações unidas adotaram oficialmente a nova agenda de desenvolvimento
sustentável, intitulada “Transformando o nosso mundo: a agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável”. A agenda contém 17 objetivos e 169 metas.
PARCEIRO – significa a organização pública ou privada que estabelece uma
cooperação com o CADI Brasil e que será responsável pela implementação direta
das atividades do programa.
PARTICIPAÇÃO – é usada para se referir especificamente a processos nos
quais as partes interessadas tomam parte no planejamento e tomada de decisão,
implementação, aprendizado e avaliação.
RECURSOS – significa aquilo que é necessário para implementar as ativida-
des (por exemplo, pessoal, tijolos, veículos, materiais de instrução, alimentação,
dinheiro).
RESULTADOS – serviços que resultam das ações do programa/projeto, que
incluem produtos, bens, serviços e mudanças que agregam e contribuem para
atingir os objetivos.
RISCO é o potencial de eventos ou consequências indesejadas. Quando
esses eventos ou consequências ocorrem podem resultar na eficácia reduzida e
menor impacto nas vidas dos beneficiários.

Mensuração de Impacto
186 UNIDADE V

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olá, caro(a) aluno(a)!


Chegamos ao final da nossa jornada. Nesta última unidade, dedicamos nosso
estudo a um conteúdo mais prático, que possa ajudar cada cristão a planejar,
desenvolver, monitorar e avaliar um projeto social - ou vários projetos juntos
que formam um programa de intervenção social.
Obviamente, há várias perguntas ainda a serem respondidas, pois cada pro-
jeto deve estar inserido em um contexto local específico. Cada cultura tem suas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
peculiaridades que, então, exigem sensibilidade, criatividade e pró-atividade no
desafio de transformar realidades.
Ao mesmo tempo, isso não invalida a necessidade de termos, em qualquer
lugar e contexto, metodologias eficientes que, testadas e experimentadas, ajudam
a traduzir em ação as boas intenções de justiça e solidariedade. Comprovou-se
que as melhores metodologias assim funcionam porque conseguem envolver ati-
vamente as comunidades beneficiadas, o que torna ainda mais importante um
planejamento inclusivo.
Gostaria de ressaltar, ainda, que a compaixão cristã é o combustível para a
ação social inspirada na fé em Cristo. É bom deixar claro que, sem ela, mesmo os
projetos mais bem planejados não se sustentam em termos de profundidade e a
longo prazo. Isso porque são os de corações compassivos que conseguem “cho-
rar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram”.
O estabelecimento de vínculos realmente sinceros é o que todo ser humano
procura, especialmente os mais pobres, que têm suas relações fragilizadas, mesmo
que só consigamos ver suas necessidades externas.
Nosso grande desafio como cristãos é exatamente este: reunir emoções, teoria
e prática nas iniciativas organizadas de intervenção social. Este capítulo é quase
que um manual que serve como base para se iniciar um planejamento cristão
eficiente e compassivo. Aproveite esta oportunidade e coloque a “mão na massa”.

PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS PARA O SERVIÇO SOCIAL E COMUNITÁRIO


187

1. A área técnica de uma intervenção social, seja ela executada por meio de uma
iniciativa informal, ou de uma organização formal juridicamente constituída, é
fundamental para o bom desempenho do trabalho e para o alcance dos resulta-
dos. Que princípios básicos devem ser observados por quem deseja iniciar
um programa social?
2. Um grupo de projetos relacionados, administrados de forma coordenada, para
obter benefícios e controle não disponíveis quando são administrados individu-
almente, é um:
a) Projeto ( ).
b) Portfólio ( ).
c) Pesquisa qualitativa ( ).
d) Programa ( ).
e) Dado secundário ( ).
3. O Diagnóstico Comunitário Participativo é um passo fundamental para qualquer
iniciativa de transformação. Assinale a seguir a única afirmação correta a res-
peito do Diagnóstico Comunitário Participativo:
a) O diagnóstico comunitário é, na verdade, um fim em si mesmo, que já sinte-
tiza tudo o que precisa ser feito em uma comunidade.
b) O diagnóstico comunitário é uma mudança de paradigma do “nós fazendo
com eles” para o “nós fazendo para eles”.
c) Promover ações de marketing social é um dos principais objetivos de um
diagnóstico comunitário participativo.
d) Projetos elaborados sem diagnósticos sociais são como tratamentos médicos
sem exames e vão cair sempre na técnica da tentativa e erro, tendo muito
mais probabilidade em desperdiçar tempo e recursos; gerar frustração na
equipe e na comunidade; causar dependência, paternalismo, manipulação e
acomodação, além de cair em enfoques excessivamente normativos e divor-
ciados da realidade e anseios comunitários.
e) Nenhuma das opções.
4. Uma das grandes vantagens do gerenciamento por projetos é o esforço de mo-
nitoramento e avaliação que é empreendido, assegurando que os resultados se-
jam alcançados, ou que as mudanças necessárias sejam feitas, de uma maneira
muito mais eficaz do que no mero gerenciamento por atividades rotineiras. Qual
a diferença entre monitoramento e avaliação dentro de um projeto social?
188

5. A Teoria da Mudança nos ajuda a compreender exatamente qual é a finalidade


da intervenção ou do projeto social. Qual é o objetivo? Em segundo plano, já
caminhando para o nível operacional, precisamos pensar: como fazer isso? E, em
terceiro lugar, compreender até onde vamos na busca da solução daquele pro-
blema, qual a nossa contribuição e o nosso papel. Resuma, de maneira clara,
quais os passos que devem ser tomados na execução da Teoria da Mudança.
189

Filho de Gueixa

Embora haja pessoas extremamente ricas donada de seu pai em Awa, onde passou
no Japão, os pobres constituem uma toda a sua infância, triste, solitário, despro-
pequena minoria. Quase toda a popula- vido de carinho e maltratado. Depois foi
ção pertence à classe média. De acordo estudar em Tokushima, não muito longe
com as últimas estatísticas, 92% das famílias de Kobe, onde aos 15 anos, veio a se con-
estão asseguradas quanto ao futuro; trata- verter ao cristianismo por influência de um
mento médico, internações em hospitais, professor japonês e dois missionários. Não
acidentes de trânsito, velhice e morte. A demorou muito a se matricular no Seminá-
expectativa de vida é a mais alta do mundo: rio Presbiteriano de Kobe.
75,5 para homens e 81,3 para mulheres. Os
idosos são tratados com a maior considera- No Natal de 1909, Kagawa colocou os seus
ção possível. O Governo proporciona uma pertences num carrinho de mão, atravessou
ajuda mensal de cinco mil ienes para cada a ponte que separa Kobe da cidade vizi-
criança nascida a partir do terceiro filho, nha de Shinkawa, onde havia uma grande
até a idade de 18 anos, desde que a renda e miserável favela, e foi morar num case-
familiar esteja abaixo do necessário. Não bre, cujas paredes estavam ainda sujas de
há analfabetos e a matrícula na escola é de sangue, como resultado de um crime ali
100%. Mais de 90% termina o segundo grau perpetuado algum tempo antes. O rapaz
(12 anos de estudo). E, para concluir esta contava apenas 21 anos quando resolveu
lista de conquistas sociais, é preciso lembrar morar entre os pobres para pregar-lhes o
que o Japão tem um dos mais baixos índi- evangelho de forma objetiva. Viveu ali por
ces de criminalidade do Mundo. Enquanto 14 anos e oito meses. Tornou-se igual aos
em 1978 houve 989 casas de latrocínio por pobres e lutou desesperadamente por eles.
100 mil habitantes em Nova Iorque e 479 Condenou a inércia e a indiferença para
em Paris, em Tóquio o índice foi de ape- com os pobres, bombardeou a imprensa
nas quatro. com artigos que descreviam o sofrimento
deles, relacionou a miséria moral das fave-
Atrás destas impecáveis reformas sociais las com o pecado social da nação, propôs
há, entre outros, um nome que deve ser amplas reformas para impedir o fluxo de
lembrado: Toyohiko Kagawa. pobres para as cidades, fez campanhas para
impedir o fluxo de pobres para as cidades,
Nascido em Kobe, o principal centro de fez campanhas evangelísticas por todo o
exportação e importação do Japão, em país, pregou para líderes políticos e para o
1888, Kagawa era filho ilegítimo de um dos próprio imperador, deu força aos sindica-
homens mais poderosos do império, um tos de trabalhadores, e ajudou a formar alei
dos artífices da Era Meiji, que transformou o que abolia as favelas do Japão.
país de um estado feudal em uma potência
industrial e militar. Sua mãe era uma gueixa. Aos 35 anos, tornou-se um dos homens-
Órfão de pai e mãe aos quatro anos, Kagawa -chave na reconstrução de Tóquio e
foi entregue aos cuidados da esposa aban- Yokohama, por ocasião do terremoto de
190

1923, que, juntamente com os incêndios e de completar 50 anos, o talvez mais famoso
a ressaca marinha, matou 143 mil habitan- filho ilegítimo da aristocracia japonesa já
tes. Foi também um líder na reconstrução havia escrito 50 livros, um deles — Before
do Japão após a derrota imposta pelas for- the Dawn —, escrito em 1925, atingiu 250
ças aliadas em 1945, a esta altura já com mil exemplares.
57 anos.
Toyohiko Kagawa, que também passou
Tido como reformador social, evangelista pelo famoso Seminário de Princeton, nos
e escritor, Kagawa contribuiu para a salva- EUA, esteve preso várias vezes. Mas acabou
ção de 100 mil pobres, a emancipação de sendo ouvido e respeitado pelo governo,
9.430.000 trabalhadores e a libertação de que pôs um fim nas favelas do Japão. Mor-
20 milhões de agricultores sem-terra. Antes reu em 1960, aos 72 anos.

Fonte: Ultimato (2017, on-line).


MATERIAL COMPLEMENTAR

Gestão de Ciclos de Projetos


Rachel Blackman
Editora: Tearfund
Sinopse: gestão do ciclo de projetos (GCP) é o termo dado ao processo
de planejamento e gestão de projetos, programas e organizações. Ele
é amplamente usado no setor de negócios e está cada vez mais sendo
usado pelas organizações de desenvolvimento. Às vezes, os projetos de
desenvolvimento fracassam porque são mal planejados e não levam
em conta alguns fatores importantes, especialmente as necessidades
e as opiniões dos atores interessados. GCP é baseada em torno do
ciclo de um projeto, o que garante que todos os aspectos dos projetos
sejam considerados. Uma qualidade importante do método GCP é que
os aspectos do projeto são reconsiderados durante todo o seu ciclo e, assim, ele garante que
quaisquer mudanças ocorridas sejam incluídas na sua montagem. Como resultado disto, os
projetos passam a ter uma maior probabilidade de êxito e sustentabilidade.
Esse manual tem como objetivo ensinar essa metodologia de planejamento, bem como fazer
paralelos práticos com a atuação dos cristãos.

Nascidos em Bordéis
Ano: 2004
Sinopse: a fotógrafa Zana Briski e o cineasta Ross Kauffman foram a
uma das regiões mais marginalizadas e pobres da Índia para quebrar
tabus. Na cidade de Calcutá, funciona a zona de prostituição Sonagachi,
onde a fotógrafa iniciou um workshop com os filhos das garotas de
programa da região. Logo, meninos e meninas acostumados com a
exclusão provaram do poder transformador da arte.
Comentáio: esse filme sensível e emocionante mostra como é possível
mudar a vida de grupos altamente vulneráveis, como as crianças
que nasceram em bordéis na Índia, por meio de ações simples, mas
persistentes.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

APM GROUP. Guia para o PMD Pro1: Gerenciamento de projetos para profissionais
de desenvolvimento. PM4NGOS, 2012.
BLACKMAN, R. Gestão de Ciclos de Projetos. Teddington: Tearfund, 2003. Disponí-
vel em: <http://learn.tearfund.org/~/media/Files/TILZ/Publications/ROOTS/Portu-
guese/PCM/PCM_P.pdf>. Acesso em: 19 set. 2017.
CADI BRASIL. Política de Qualidade Técnica (Documento interno). 2014.
CRUZ JUNIOR, P. Webinar sobre mensuração de impacto. Programa Impulso, jul.
2017.
MAXIMIANO, A. C. A. Administração de projetos: como transformar ideias em re-
sultados. São Paulo: Atlas, 1997.
PFEIFFER, P. O Quadro Lógico: um método para planejar e gerenciar mudanças. Re-
vista de Serviço Público, Brasília, ENAP, 2000.
PNUD. As perguntas mais frequentes sobre os objetivos do desenvolvimento
sustentável (ODS). ONU, 2017.
SEBRAE-MG. Como elaborar uma pesquisa de mercado. 2007. Disponível em:
<https://www.sebraemg.com.br/atendimento/bibliotecadigital/documento/Carti-
lha-Manual-ou-Livro/Como-elaborar-uma-Pesquisa-de-Mercado>. Acesso em: 21
set. 2017.
SOCIAL GOOD BRASIL. 6 passos para uma Teoria de Mudança e mais impacto
social em seu projeto. 2017. Disponível em: <http://socialgoodbrasil.org.br/lab/
6-passos-para-uma-teoria-de-mudanca-e-mais-impacto-social-em-seu-projeto/>.
Acesso em: 21 set. 2017.
ULTIMATO. Filho De Gueixa. 2005. Disponível em: <http://www.ultimato.com.br/
revista/artigos/295/filho-de-gueixa>. Acesso em: 21 set. 2017.

Referências On-line

¹Em: <http://fae.academia.edu/PauloCruzFilho>. Acesso em: 21 set. 2017.


193
GABARITO

1.
• Princípio da Autonomia Programática Local: as iniciativas devem ter autono-
mia para definir a estratégia de intervenção social, à luz do seu contexto, das
oportunidades e da expertise das pessoas envolvidas. Os projetos deverão se-
guir as recomendações e orientações do Diagnóstico elaborado a partir da co-
munidade e dos indicadores socioeconômicos do território a ser impactado.
No caso de projetos executados por organizações previamente constituídas
e consolidadas, no entanto, o princípio da autonomia programática deve
submeter-se à Visão, Missão e Valores da Organização, seja ela uma Organi-
zação da Sociedade Civil ou uma Igreja.
• Princípio da subordinação da captação de recursos à orientação programáti-
ca: as necessidades de campo e as estratégias locais de desenvolvimento de-
vem orientar a estratégia de mobilização de recursos para os projetos, e não
o inverso. Em se tratando de organizações sociais já constituídas, em todos
os processos de captação para projetos de intervenção, as equipes de campo
e representantes dos beneficiários ser consultados e, na medida do possível,
envolvidos na elaboração destes.
• Princípio da Participação: é imprescindível a participação comunitária no pla-
nejamento, execução, monitoramento e avaliação dos projetos. Da mesma
forma, as iniciativas deverão buscar a formação e o empoderamento das lide-
ranças locais em todas as suas ações e no seu planejamento de longo prazo.
• Princípio da territorialidade: cabe a cada iniciativa de intervenção social defi-
nir claramente os critérios de delimitação dos territórios a serem impactados,
evitando a dispersão de esforços. Os territórios delimitados devem ser comu-
nicados a todos os stakeholders. No caso de diferentes projetos atuando em
diferentes comunidades e áreas geográficas, deve-se planejar que os proje-
tos atuem em áreas contíguas, maximizando o impacto e diminuindo custos.
• Princípio da equidade: na escolha e priorização das áreas de intervenção, ideal-
mente deve-se buscar a equidade, ou seja, o apoio preferencial às comunidades,
famílias e crianças mais vulneráveis dentro do território de atuação da iniciativa.
2. Alternativa D.
3. Alternativa D.
4. O Monitoramento consiste na verificação da execução das atividades e dos re-
sultados esperados do Programa, de forma constante e durante o seu ciclo de
vida, no sentido de garantir que a implementação esteja progredindo conforme
o planejado. Já a Avaliação do programa/projeto é a verificação se os benefícios
esperados foram entregues, ao final do prazo definido. Isto é, enquanto o mo-
nitoramento se dá durante a fase de execução, interferindo no replanejamento
e na gestão dos riscos, a avaliação acontece depois que o projeto é encerrado,
ou quando está em fase de encerramento ou transição para um novo desenho.
CONCLUSÃO

5. Seguindo a Figura da Teoria da Mudança, definidas as Atividades que vão nos le-
var a alcançar os objetivos, precisamos pensar nos Produtos diretos da ação (ou-
tputs). Este é o resultado imediato das ações do projeto. Exemplo: num projeto
de erradicação do trabalho infantil e diminuição da evasão escolar, um produto
seria as oficinas de capacitação de gestores das escolas para realizar busca ativa
de crianças que deixassem de comparecer à escola.
Porém, o processo não acaba aí: em seguida, vêm os Resultados (outcomes).
Neste caso, os resultados dependem também, em parte dos beneficiários, e não
apenas dos projetos em si. Por exemplo, em um programa de capacitação para
geração de renda, podemos ensinar a um grupo de pessoas alguma profissão,
mas se isso de fato vai permitir que alguém gere renda para si e sua família, não
dependerá apenas dos esforços do projeto, mas em grande parte dos próprios
alunos. Nesta dimensão da Teoria da Mudança é que residem os objetivos de
fato finalísticos do projeto.
O nível seguinte, mais profundo, depois de Produtos e Resultados, é o nível do
Impacto, que corresponde ao resultado ecossistêmico, ou seja, o quanto que
essa ação vai mudar a realidade social em geral.
Resumindo, de uma maneira simples, os produtos são os resultados diretos das
atividades, os resultados são o impacto nas vidas das pessoas beneficiárias do
projeto, e o impacto corresponde à mudança abrangente, a nível da sociedade.
Para ficar mais claro, outra maneira de se pensar em mensuração de impacto é
fazer um encadeamento de perguntas “para que”? Entre cada um dos níveis de
teoria da mudança:
Atividades - Para que? – geram os produtos;
Produtos – Para que? – geram os resultados;
Resultados – Para que? – geram o impacto.
195
CONCLUSÃO

Olá, caro(a) aluno(a)!


Chegamos, finalmente, ao fim da nossa jornada. A leitura de cada página deste livro
não foi apenas uma obrigação acadêmica, mas fundamentalmente uma experiência
de expansão dos nossos olhares para a riqueza e a responsabilidade da fé em Cristo.
Espero ter conseguido ajudá-lo(a) a enxergar melhor e mais amplamente todo o
potencial que Deus deu a sua igreja para ela fazer diferença no mundo desde o
passado até hoje.
Você começou aprendendo sobre a dimensão integral da missão de Deus. Seguiu
entendendo o que é uma cosmovisão e como o Cristianismo cumpre muito bem o
papel de enxergar e dar respostas concretas a todos os aspectos da sociedade.
Conversamos, também, sobre o que é ética social e como a Igreja de Cristo não pode
deixar de assumir seu papel protagonista na transformação social, seja no âmbito
da diaconia local quanto na arena das políticas públicas.
No final, você pode adquirir ferramentas para transformar boas intenções em proje-
tos consistentes de intervenção social em qualquer lugar e circunstância.
Ao longo do livro, você teve a oportunidade de aprofundar-se nos temas por meio
de conteúdos extras e dicas de livros, filmes e sites na internet. Isso é só o começo.
Continue pesquisando e refletindo, junto com outros, sobre o papel da Igreja na
sociedade. Desafie a si mesmo a entender e viver uma fé cristã que não caia num
subjetivismo oco, nem tão pouco assuma um ativismo social sem fundamento cris-
tão. Este livro é um passo importante para ajudá-lo a seguir em frente, de forma
sábia e proativa.
Esperamos que esta leitura o tenha ajudado a entender as raízes do nosso com-
promisso social para que, sem demora, a semente cresça e dê frutos, restaurando,
inclusive, os galhos secos e transformando-os em copas verdejantes, onde os passa-
rinhos possam vir e fazer ninhos nos seus ramos (ver Mateus 13:31, 32).
Um abraço,
Maurício Cunha.
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