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SERMÃO DO MONTE

A Constituição do Reino de Deus

AS SEIS
TENTAÇÕES (Parte 2)

Aula 6

DIVÓRCIO – DESPREZO À ALIANÇA


DO CASAMENTO
“Também foi dito: Quem se divorciar de sua mulher,
dê-lhe documento de divórcio. Eu, porém, vos digo
que todo aquele que se divorciar de sua mulher, a
não ser por causa de infidelidade, torna-a adúltera;
e quem se casa com a divorciada comete adultério.”
(Mt 5.31,32 – A21)
A terceira antítese é uma sequência natural da segunda. Jesus es-
tava falando do adultério e, agora, passa a falar do divórcio. Muitos
teólogos e pregadores não gostam de falar sobre esse assunto por
ser complexo e polemizado. Falar sobre isso gera muito incômodo,
principalmente porque o divórcio se tornou algo comum em nossa
geração.
Houve uma grande mudança de valores em nossa sociedade e mui-
tos não se deram conta disso. Esta mudança ocorreu lentamente,
se desenvolvendo por um longo período de tempo. Hoje muitas
pessoas encaram o divórcio e o novo casamento como uma real-
idade normal da vida, quando na verdade é uma anormalidade –
algo realmente devastador. Não são poucas as pessoas que tiveram
ou ainda têm suas emoções afetadas por essa experiência tão neg-
ativa. Contudo, este foi um tema escolhido por nosso Senhor para
fazer parte do seu sermão. Se ele o mencionou, certamente é um
assunto relevante. E nós, como seus ministros, não podemos nos

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omitir em relação à sua palavra a este respeito.


Lloyd Jones fala que a melhor maneira de abordarmos este assunto
é estudá-lo de acordo com três divisões principais. Em primeiro lu-
gar, devemos saber claramente o que Moisés ensinava sobre essa
questão na lei veterotestamentária. Em seguida, precisamos saber
o que os escribas e fariseus ensinavam. E por último, precisamos
considerar o que o próprio Senhor Jesus ensinou¹. Assim teremos
uma compreensão mais clara de toda esta questão.

O QUE A LEI DE MOISÉS ENSINAVA SOBRE


DIVÓRCIO E NOVO CASAMENTO
A lei mosaica trata especificamente de divórcio no capítulo 24 de
Deuteronômio, dos versículos 1 a 4. Nesta passagem é dito que se
um homem se casar com uma mulher e encontrar nela alguma coi-
sa indecente ou vergonhosa, e a repudiar por isso, deverá lhe con-
ceder carta de divórcio. Com esta carta em mãos ela fica livre para
casar-se novamente. Mas se seu novo marido também a repudiar e
lhe der carta de divórcio ou se vier a morrer, o primeiro marido que
a despediu não poderá casar-se com ela novamente, pois foi con-
taminada. É interessante notar que no Antigo Testamento o divór-
cio não estava relacionado com adultério. Segundo a lei mosaica a
punição para o adultério era a morte². Com o adultério o casamen-
to chegava ao fim, não por um processo de divórcio, mas através
da execução da sentença de morte. Embora a legislação mosaica
permitisse o divórcio, ela foi dada à nação de Israel para limitar,
controlar e regularizar essa prática tão comum. Naquela época a
situação em relação às mulheres era muito caótica. Os homens
as tinham em pouquíssima consideração, por isso achavam-se no
direito de repudiar suas esposas e as mandarem embora de casa
por qualquer motivo frívolo. A lei mosaica limitava esses motivos e
regularizava a situação daquelas que foram repudiadas. Assim, a lei
serviu para evitar que as mulheres continuassem a sofrer injustiças
tão grosseiras. Ela foi dada com o objetivo de impor o mínimo de
ordem a uma situação de puro caos.
Há três considerações que precisamos fazer em relação à lei mosa-
ica, no que diz respeito ao divórcio:
Primeira – a lei limitava as causas do divórcio, eliminando todos os
motivos superficiais e injustos, restringindo-os a uma única questão.
¹Estudos no Sermão do Monte – Martyn Lloyd Jones (Editora Fiel) pg. 236. ²Levítico 20.10

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A partir da lei o divórcio foi limitado a causas de impureza ou imun-


dícia. Algumas versões trazem a expressão “coisa vergonhosa” ou
“coisa indecente”. Não sabemos ao certo o que isto significa exata-
mente, mas pode-se concluir que seja algum defeito grave (natural,
moral ou físico) descoberto na mulher após a noite de núpcias. An-
tes de obter o direito ao divórcio o homem teria que provar diante
de duas ou três testemunhas que tinha um motivo realmente espe-
cial para repudiar sua mulher.
Segunda – a lei regularizava o divórcio, obrigando ao homem que
se divorciou a dar para a sua ex-esposa uma carta de divórcio. Essa
carta era um certificado de que aquela mulher havia sido real-
mente casada e que foi repudiada por um determinado motivo. As-
sim, quando se casasse com outro homem não poderia ser acusada
de adultério e, consequentemente, se livrava de ser condenada à
morte (visto não ser mais uma mulher virgem). Desta forma, a lei
protegia a mulher de ser injustamente condenada.
Terceira – a lei proibia ao homem que se divorciou de sua esposa
a contrair segundas núpcias com a mesma, após ela ter se casado
com outro. O objetivo deste mandamento é mostrar o quão sério
é o casamento, e que as decisões que tomamos em relação a ele
são permanentes e irreversíveis. O casamento não pode ser trata-
do como uma aventura da qual entramos e saímos quando bem
queremos.

O QUE OS FARISEUS ENSINAVAM SOBRE


DIVÓRCIO E NOVO CASAMENTO
Os fariseus ensinavam que a lei de Moisés permitia e até mesmo
ordenava, em alguns casos, que o homem se divorciasse de sua
mulher por qualquer motivo. Para eles o homem tinha o direito de
fazer isso pelos mais variados motivos que se pudesse imaginar, a
única exigência era que lhe desse uma carta de divórcio. Eles inter-
pretavam a questão como justificável na lei; achar na mulher algu-
ma coisa indecente ou vergonhosa era algo insatisfatório aos olhos
do marido. Poderia ser qualquer coisa leviana e insignificante, mas
se o marido considerasse isso algo impróprio ou vergonhoso, então
estava valendo. Para os fariseus a causa do divórcio não tinha tanta
importância. Ensinavam que o cumprimento da lei consistia simples-
mente no fato de dar à mulher repudiada o certificado de divórcio.

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O QUE JESUS ENSINOU SOBRE DIVÓRCIO E


NOVO CASAMENTO
Era exatamente este pensamento errôneo dos fariseus que Jesus
estava combatendo. Ele disse: “Também foi dito: Quem se divor-
ciar de sua mulher, dê-lhe documento de divórcio. Eu, porém, vos
digo…” Para compreendermos melhor o ensinamento do Senhor so-
bre esse assunto, vamos analisá-lo à luz de Mateus 19.3-9, onde é
dado mais detalhes:

“Aproximaram-se dele alguns fariseus, que o colocar-


am à prova, perguntando: É permitido ao homem di-
vorciar-se de sua mulher por qualquer motivo? Jesus
respondeu: Não lestes que desde o princípio o Criador
os fez homem e mulher, e ordenou: Por isso o homem
deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher; e serão os
dois uma só carne? Assim, não são mais dois, mas uma
só carne. Portanto, o que Deus uniu o homem não
separe. Eles lhe responderam: Então, por que Moisés
mandou dar-lhe documento de divórcio e mandá-la
embora? Ele lhes disse: Foi por causa da dureza do
vosso coração que Moisés vos permitiu se divorciar
da vossa mulher; mas não foi assim desde o princípio.
Mas eu vos digo que aquele que se divorciar de sua
mulher, a não ser por causa de infidelidade, e se casar
com outra, comete adultério e quem casar com a di-
vorciada comete adultério”.
John Stott fala que a resposta do nosso Senhor a essa pergunta
foi dada em três partes. E, que em cada uma delas discordou dos
fariseus³. Podemos sumarizar essas diferenças conforme a tabela
abaixo:

O CONTRASTE ENTRE O PENSAMENTO DOS


FARISEUS E O DE JESUS
Os fariseus estavam interessa- Jesus estava interessado pela
dos pelos motivos para o divór- instituição divina do casamen-
cio. to.
Os fariseus consideravam a pro- Jesus considerava a provisão
visão Mosaica para o divórcio Mosaica para o divórcio como
como mandamento. uma concessão, por causa da
dureza dos corações humanos.

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Os fariseus tratavam o divórcio Jesus tratava o divórcio tão se-


com leviandade. riamente que, com uma única
exceção, chamou a todo novo
casamento de adultério.

Primeiro Jesus formulou a sua resposta voltando ao princípio básico


estabelecido por Deus na criação. Ele reafirmou o ponto de vista
original de Deus a respeito do homem e da mulher4, e da instituição
do casamento5. Segundo a palavra divina o casamento é exclusivo
(o homem e a sua mulher), permanente (se unirá), indissolúvel (os
dois se tornaram uma só carne), e sagrado (o que Deus uniu, não
separe o homem). O que Jesus estava enfatizando era que Deus
criou a mulher para o homem, e os uniu através do casamento. E a
vontade dele era que os dois permanecessem juntos para o resto
da vida.
Com a intenção de contrariar a resposta do Senhor, os fariseus lhe
retrucaram: “Então, por que Moisés mandou dar carta de divórcio e
repudiar?” Ao analisarmos esta pergunta podemos ver uma grande
deficiência na compreensão dos fariseus em relação à lei mosaica.
Aliás, isso era típico deles. O problema estava no fato de desconsid-
erarem as limitações mosaicas para o divórcio, e enfatizarem uni-
camente o dever de se dar a carta. E, pior, referiam-se a ambos (o
certificado e o divórcio) como mandamentos de Moisés.
Em resposta a essa segunda indagação, Jesus explicou que naquele
momento Deus fez uma concessão temporária, devido à dureza
dos corações humanos. Isto não significa que agora Deus estava
permitindo ou abrindo as portas para o divórcio. Craig Hill fala que
as pessoas se divorciavam, não porque estavam autorizadas a
fazê-lo. Mas, porque o coração delas estava tão duro que agiri-
am desta forma, e isso exigiu leis para dar condições de se lidar
com essa situação6. A humanidade após a queda tornou-se ex-
tremamente má, egocêntrica e endurecida. A lei mosaica foi dada
não com o objetivo de curar essa pecaminosidade do coração hu-
mano, mas para restringir e controlar os seus efeitos. Portanto, neste
caso, a lei mosaica foi dada para limitar as desculpas para o divórcio,
e controlar a situação caso ele acontecesse.
O que Jesus fez em relação ao divórcio foi restringir ainda mais as
desculpas que as pessoas davam para justificá-lo. Ele disse: “todo
aquele que se divorciar de sua mulher, a não ser por causa de
³A Mensagem do Sermão do Monte – Contracultura cristã – John Sttot (Editora ABU) Pg. 92.
4
Gênesis 1.27 / 5Gênesis 2.24
6
Aliança - Amor incondicional, Craig e Jan Hill (Universidade da Família, 2010). pg.58.

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infidelidade, torna-a adúltera; e quem se casa com a divorciada


comete adultério”. Qualquer segundo casamento, que não tenha
sido precedido por um divórcio causado por infidelidade sexual,
constitui-se em adultério. N. B. Stonehouse oferece-nos uma boa
paráfrase para esta antítese:

“Vocês ouviram a apelação dos mestres judeus sobre


Deuteronômio 24:1, com a intenção de consubstan-
ciar uma prática que permita aos maridos divorciar-se,
livremente e a seu bel-prazer, de suas esposas, for-
necendo-lhes simplesmente um estúpido documen-
to legal de transação. Mas eu digo a vocês, que tal
comportamento irresponsável da parte do marido
fará com que ele, sua esposa e os novos parceiros
tenham uniões que não constituem casamentos, mas
adultérios7”.
O adultério, assim como o divórcio, é a quebra de uma aliança feita
na presença de Deus. Não podemos tratar destes assuntos com
leviandade, pois Deus os considera muito seriamente. Deus odeia
o divórcio da mesma forma que odeia a infidelidade matrimonial,
pois ambos são quebra de aliança8. Um dos atributos divinos mais
evidenciados nas Escrituras é a fidelidade. Deus é sempre fiel à sua
aliança. Paulo fala que mesmo que sejamos infiéis, Deus permanece
fiel, pois não pode negar a si mesmo9. A sua fidelidade à aliança é
incondicional.O chamado de Jesus no sermão do monte é para nos
conformarmos a quem Deus é. Embora haja uma concessão para
o divórcio em caso de relação sexual ilícita, isto não significa que
é o que deve ser feito. É uma concessão por causa da dureza do
coração, e não um encorajamento ou mandamento. Crisóstomo,
um dos pais da Igreja do século IV, em uma de suas homilias comen-
tou esta passagem à luz das bem aventuranças:

“Pois aquele que é manso, pacificador, humilde de


espírito e misericordioso, como poderia repudiar sua
esposa? Aquele que está acostumado a reconciliar os
outros, como poderia não se reconciliar com a sua
própria carne?10”

7
The Witness of Matthew and Mark to Christ, N.B. Stonehouse (Tyndale Press, 1944; Segunda Edição 1958),
pg.203.
8
Malaquias 2.13-16 / 92 Timóteo 2.13
10
Homilies on the Gospel of St Matthew, Part I, de João Crisóstomo (sem data: traduzido por George Pre-
vost, Oxford, 1843).

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FALSIDADE NAS INTENÇÕES E PALAVRAS


“Ouvistes também que foi dito aos antigos: Não ju-
rarás com falsidade, mas cumprirás os teus juramentos
para com o Senhor. Eu, porém, vos digo: De maneira
nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de
Deus; nem pela terra, porque é o estrado de seus pés;
nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei;
nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar
branco nem preto um só fio de cabelo. Seja, porém, o
vosso falar sim, sim; não, não; pois o que passa disso
vem do Maligno11”. (Mt 5.33-37).

Nesta quarta antítese Jesus passa a falar sobre juramentos e ve-


racidade. Tanto na época de Moisés como na época de Jesus não
havia cartório nem assinatura de documentos no momento de se
assumir um compromisso social. Tudo era feito “oralmente”, com
base na palavra da pessoa. O juramento tinha como objetivo con-
firmar a veracidade de uma palavra. Bonhoeffer definiu juramento
como a invocação pública do nome de Deus como testemunha de
uma afirmação que faço a respeito de algo que ocorreu no passado
ou no presente ou que ocorrerá no futuro.

OS JURAMENTOS NO ANTIGO TESTAMENTO


Na lei mosaica todo juramento deveria ser feito em nome de
Deus12. Como Deus verdadeiro e onisciente sobre todas as coisas,
ele é o único que pode dar testemunho da verdade em questões
em que não há provas concretas. Por isso, em um juramento Deus
era invocado como testemunha. Ao fazê-lo, a pessoa estava pedin-
do que ele usasse o seu poder contra ela caso estivesse mentindo
em alguma declaração ou deixasse de cumprir algum voto. O ju-
ramento servia para pôr fim a toda desconfiança e contenda em
assuntos que dependiam unicamente da palavra.
Outra coisa importante era que o nome de Deus não poderia ser
usado de forma leviana. O terceiro mandamento do decálogo diz:
“Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão. Pois ele não
terá como inocente aquele que o fizer13”.
Se por um lado nenhum juramento poderia ser feito a não ser em
nome de Deus; por outro, o seu nome só poderia ser tomado de
Discipulado, Dietrich Bonhoeffer (Mundo Cristão, 2016), pg 104.
11

Deuteronômio 6.13; 10.20; Isaías 65.16 / 13Êxodo 20.7


12

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forma sagrada. Deus proibiu fazer uso do seu nome para tudo que
fosse falso, vazio e trivial. Usar o nome de Deus para coisas triviais é
o mesmo que diminuir a importância de sua pessoa, associando-a a
algo insignificante. Jurar falsamente em nome de Deus é o mesmo
que profaná-lo, associando-o a algo mentiroso14. Assim, um falso
juramento consistia tanto em pecado de perjúrio como de profa-
nação.
A finalidade destes preceitos era colocar freio à inclinação humana
para a mentira resultante da queda. O ser humano não é natural-
mente uma pessoa confiável. Assim, a garantia da punição divina
para um falso juramento em seu nome, impunha temor, e restringia
a prática do engano.

COMO OS FARISEUS LIDAVAM COM O


USO DOS JURAMENTOS
Com o passar do tempo os escribas e fariseus forjaram falsas inter-
pretações da lei dizendo que o nome de Deus não poderia ser us-
ado nem mesmo para prestar um juramento, alegando reverência
ao seu Santo nome. Com isso, eles foram criando outras formas de
juramentos, nos quais não se invocava o seu nome diretamente,
passando a substituí-lo por coisas pertencentes a ele como o céu,
a terra, Jerusalém etc. O problema disso foi que os juramentos
começaram a ser usados com muita frequência para as coisas sim-
ples do cotidiano. Qualquer afirmação não juramentada não possuía
crédito algum, devido a grande falta de confiabilidade das pessoas.
Aos poucos os juramentos foram perdendo o peso que possuíam e
deixaram de ser algo solene ou carregado de valor.
Outra coisa errada que os escribas e fariseus faziam e ensinavam é
que dependendo da fórmula usada em um juramento ele poderia
ser considerado inválido. Para isto, desenvolveram regras elabora-
das para julgar se um juramento era válido ou não. Um exemplo
dessa falácia farisaica pode ser encontrado em Mateus 23, quando
Jesus confronta a forma ridícula com que lidavam com a validade
dos juramentos. Ele disse:

“Ai de vós, guias cegos, que dizeis: Se alguém jurar


pelo santuário, isso nada vale; se alguém jurar pelo
ouro do santuário, fica obrigado a cumprir o que ju-
rou. Insensatos e cegos! Qual é o maior: o ouro, ou o
Levítico 19.12
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santuário que santifica o ouro? Também dizeis: Quem


jurar pelo altar, isso nada vale; mas quem jurar pela
oferta que está sobre o altar fica obrigado a cumprir o
que jurou. Cegos! Qual é o maior: a oferta, ou o altar
que santifica a oferta? Portanto, quem jurar pelo altar
jura por ele e por tudo que está sobre ele; e quem
jurar pelo santuário jura por ele e por aquele que nele
habita; e quem jurar pelo céu jura pelo trono de Deus
e por quem está assentado nele.” (Mt 23.16-22).

Ao fazerem distinção entre juramento e juramento, Jesus os acusou


de insensatez e desonestidade. Apesar de alegarem reverência ao
nome de Deus, não o mencionando nos seus juramentos, isso na
verdade consistia apenas em uma manobra bem elaborada para
fazerem o que bem quisessem, sem se preocupar com o castigo di-
vino. Seus corações eram corruptos, pensavam que por não terem
jurado por isso ou aquilo, estavam isentos de cumprir tal juramento.
No entanto, é um grave erro presumir que uma mentira não seja
pecado só porque não se jurou ou não o fez em nome de uma
determinada coisa. O erro deles consistia em pensar que o perjúrio
não era errado dependendo da fórmula usada.

O QUE JESUS ENSINOU SOBRE O VALOR


DAS PALAVRAS
Em resposta ao ensino farisaico, Jesus começou argumentando que
a fórmula utilizada para se fazer votos é totalmente irrelevante, vis-
to que para Deus qualquer juramento falso é pecado. O que ele
estava ressaltando é que as fórmulas usadas em um juramento não
era o ponto mais importante da lei, mas, sim, a sua veracidade.
O que os fariseus estavam tentando fazer era afastar Deus de seus
juramentos. Quanto menor a relação de Deus com aquilo por meio
do que juravam, menos se obrigavam a cumpri-lo. Quanto menor a
sacralidade da fórmula, menor o compromisso. Porém, Jesus deixou
claro que nenhum juramento está isento de cumprimento. Jurar por
qualquer coisa na criação, por menor que seja, equivale a jurar por
Deus, visto que o seu nome está em tudo que ele mesmo criou.
O céu é o seu trono, a terra o estrado dos seus pés, Jerusalém a
sua cidade, e até a nossa cabeça (vida) pertence a ele e está sob
o seu controle. Portanto, fazer tais juramentos é o mesmo que ju-
rar em seu nome, ou seja, têm o mesmo valor, peso e sacralidade.

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Nenhuma de nossas palavras deveria ser tratada com leviandade.


De modo que Jesus disse: “Deixai simplesmente que o vosso sim
signifique sim e que o vosso não signifique não”.
O que Jesus está esclarecendo é que qualquer coisa que falamos,
estamos falando diante de Deus, portanto, um simples sim ou não
já nos obriga diante dele15. A ênfase na santidade dos votos ocorria
devido à falsidade costumeira entre as pessoas em seus acordos
cotidianos. Mas não seria assim entre os discípulos. Jesus ensinou
que o cristão tem de ser autêntico e sincero em suas afirmações,
afastando-se assim de qualquer ambiguidade e falsidade. Ele ex-
plicou que a verdadeira implicação da lei é que devemos cumprir
as nossas promessas, e sermos pessoas de palavra. Stott fala que
assim como o divórcio é devido à dureza do coração humano, os
juramentos se fizeram necessários devido à falsidade humana.16
Ambos foram permitidos e regularizados pela lei, mas nenhum deles
foi por ela ordenado17. Portanto, não fosse à corrupção do coração
humano, nem mesmo seriam necessários.
“De modo nenhum jureis”, disse o Senhor. O discípulo deve ser al-
guém que não precisa usar de artifícios para mostrar-se verdadeiro
e confiável. Para ele não deve haver necessidade de juramentos,
pois cada palavra sua deve expressar a mais pura verdade. O que
Jesus enfatizou é que aquele que é honesto não precisa ficar recor-
rendo a juramentos para se mostrar verdadeiro. Contudo, isto não
significa que tal pessoa deva recusar-se a prestar algum juramento,
caso seja solicitado por alguma autoridade externa.
Tanto Cristo como os seus discípulos não necessitam estar sob o
juramento para falar a verdade, pois esta é o que caracteriza suas
vidas. O verdadeiro cristão não inventa “mentirinhas” para escapar
de complicações. Ele não manipula a verdade para se beneficiar
nem hesita em cumprir suas promessas, mesmo que isto lhe cause
grande prejuízo e desconforto. O que ele fala, ele cumpre!
A verdade faz parte da nossa nova natureza em Cristo. A comuni-
dade dos discípulos é exortada a não mais mentir e enganar uns aos
outros, pois aquele que nasceu de novo já se despiu de sua velha
natureza com as suas práticas perversas18. Nós devemos dizer exat-
amente o que pretendemos dizer. Nosso “sim” e “não” deve ser sem
adornos, mas o suficiente.
15
Tiago 5.12
16
A Mensagem do Sermão do Monte – Contracultura cristã – John Sttot (Editora ABU) Pg. 99.
17
Deuteronômio 23.21-23.
18
Colossenses 3.9; Efésios 4.21-25

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DESEJO DE VINGANÇA
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por den-
te. Eu, porém, vos digo: Não resistais ao homem mau;
mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-
lhe também a outra; e ao que quiser levar-te ao tribu-
nal, e tirar-te a túnica, deixa que leve também a capa;
e, se alguém te obrigar a caminhar mil passos, vai com
ele dois mil. Dá a quem te pedir e não voltes as costas
a quem te pedir emprestado.” (Mt 5.38-42)

Nesta quinta antítese Jesus trará luz sobre a famosa lei de talião19.
Este preceito referente à vingança possui o mesmo princípio básico
daqueles analisados anteriormente referentes ao divórcio e aos jur-
amentos. Ele, assim como os outros, foi dado para limitar e controlar
os excessos relacionados ao pecado. O seu intuito era restringir a
violência e a vingança injusta.

O INTUITO DA LEI DE TALIÃO NA


LEGISLAÇÃO MOSAICA
A lei previa que se dois homens brigassem e houvesse danos graves
e irreversíveis, então, dariam vida por vida, olho por olho, dente
por dente, ferimento por ferimento, etc. Esse preceito impunha cer-
to temor na hora de alguém iniciar uma briga, pois o mal que ele
causasse no outro seria causado nele. De maneira nenhuma sairia
impune do mal que cometeu contra o próximo.
Além de restringir a violência, esse preceito também limitava a
vingança a uma medida justa. O desejo de revidar o mal sofrido
faz parte do instinto natural do ser humano, contudo, o seu desejo
sempre é exceder à ofensa. Esta lei limitava a compensação da víti-
ma ao equivalente exato da ofensa sofrida, e não mais do que isto.
Segundo Barclay a vingança e a inimizade de sangue era uma das
características da sociedade tribal daqueles tempos. Se um mem-
bro de uma tribo matava um membro de outra tribo, a obrigação
dos homens desta tribo era vingar aquela morte matando todos os
homens da tribo a qual pertencia o assassino. A lei de talião foi dada
para limitar o alcance da vingança, estabelecendo que apenas o
responsável pela ferida deva ser castigado; e que seu castigo não

Gênesis 9.5,6; Êxodo 21.23-25; Levítico 24.19,20; Deuteronômio 19.20,21


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seja maior que a ferida que infligiu ao ofendido20.


Vista de uma perspectiva histórica esta lei não era selvagem ou
sanguinária, como consideram alguns comentaristas modernos. Pelo
contrário, é uma lei que estabelece, de fato, o que é justo. O seu
princípio repousa sobre as bases da igualdade e equidade. Se um
homem chegasse a cegar alguém, não deveria ser morto por isso,
antes seria olho por olho. O castigo era sempre equivalente à ofen-
sa, sem jamais excedê-la.
Outro ponto importante na lei mosaica em relação à vingança é
que ela sempre deveria ser julgada e aplicada por uma autoridade
civil, e não pela pessoa ofendida ou por parente da mesma21. Esta
lei nunca teve como propósito dar ao indivíduo, em particular, o
direito de vingar-se pessoalmente. Sempre se tratou de uma norma
destinada às autoridades. A lei também previa que, em alguns casos
de danos pessoais, a vingança poderia ser aplicada de forma não lit-
eral, podendo-se dar à vítima uma compensação em dinheiro pelos
prejuízos causados22. Segundo a tradição judaica, se alguém feriu
a outro é culpado por cinco motivos – pela ferida em si, pela dor
sofrida, pelo custo da cura, pela perda de tempo, e pela indignidade
sofrida. Todos esses prejuízos eram avaliados e a vítima recebia de
seu agressor uma compensação justa em dinheiro.
Há ainda uma coisa que devemos ressaltar, e que talvez seja o que
mais passa despercebido. A lei de talião não é, de maneira alguma,
toda a ética do Antigo Testamento. Em várias passagens o povo de
Israel era exortado a amar e ser misericordiosos uns com os outros,
até mesmo com aqueles que lhes ofendiam e lhes fazia o mal. Na
lei também era dito: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra
os irmão do teu povo, mas cada um ame o seu próximo como a
si mesmo23”; “Não diga: Vou me vingar desse mal, espere o Senhor
resolver a questão24”; e, “deem a outra face para os que os ferem e
aceitem os insultos de seus inimigos25”.

COMO OS FARISEUS LIDAVAM


COM A VINGANÇA
Lloyd Jones fala que a principal dificuldade dos escribas e fariseus
nesta questão da vingança, era que eles ignoravam totalmente o
fato de que ela se destinava exclusivamente às autoridades civis26.
20
Comentário Bíblico de Mateus, William Barclay, pg. 176
21
Deuteronômio 19.16-21 / 22Êxodo 21.12-27
23
Levítico 19.18 / 24Provérbios 20.22 / 25Lamentações 3.30
26
Estudos no Sermão do Monte – Martyn Lloyd Jones (Editora Fiel) pg. 254.

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Eles faziam da vingança uma questão de aplicação pessoal. Para


eles tratava-se mais de um direito sobre o qual deveriam insistir do
que algo que servia para restringir os excessos. Com isso comet-
eram dois erros: Primeiro, transformaram uma norma permissiva em
um mandamento positivo. E, segundo, eles mesmos julgavam e apli-
cavam a vingança às suas causas, algo que não lhes era lícito fazer.
Tentavam usar a lei para justificar a aplicação da vingança pessoal,
mas ignoravam o fato de que ela mesma, explicitamente, proibia
tal prática: “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do
teu povo27”. John Wenham fala que assim, este excelente, ainda
que severo princípio da retribuição judicial estava sendo utilizado
como desculpa exatamente para aquilo que deveria abolir, isto é,
a vingança pessoal28”

O QUE JESUS ENSINOU SOBRE A VINGANÇA


Stott fala que Jesus não contradisse o princípio da retribuição, pois
este é um princípio verdadeiro e justo. O que ele afirmou na antí-
tese era que embora este princípio pertença aos tribunais e ao juízo
de Deus, não é aplicável aos nossos relacionamentos pessoais29. Foi
à luz deste pano de fundo que ele disse: “Eu porém vos digo: Não
resistais ao perverso…”. O que o Senhor está falando é que não
devemos enfrentar ou competir com o homem mal, com aquele
que nos ofendeu. Não devemos lhe devolver a ofensa que nos fez.
Jesus não está falando contra a defesa pessoal em um momento de
agressão, ou para nos posicionarmos contra a punição dos crimes
que acontecem no mundo, não é nada disso. O que ele está di-
zendo é que não devemos ser pessoas vingativas. Jesus usa quatro
situações comuns no cotidiano de seus discípulos para exemplificar
o princípio que estava ensinando30. Todas essas ilustrações dizem
respeito a qual deve ser a reação do discípulo quando alguém lhe
faz algo insultuoso, injusto, desagradável ou indesejável.
Primeiro – ele fala qual deve ser a reação do discípulo quando insul-
tado por um tapa em sua face. Ele diz: “a qualquer que te bater na
face direita, oferece-lhe também a outra”. Entre os judeus na época
de Jesus, o ato de bater na face direita de alguém com as costas
da mão, era um insulto e uma provocação; não exatamente uma
agressão. O insultado poderia revidar ou ir ao tribunal pleitear uma
punição em dinheiro pela ofensa. Nesta situação Jesus nos exorta
27
Levítico 19.18
28
Christ and the Bible, John W. Wenham (Tyndale Press, 1972), pg. 35.
29
A Mensagem do Sermão do Monte – Contracultura cristã – John Sttot (Editora ABU) Pg. 103.
30
Segundo as notas da Bíblia King James Edição de Estudos

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SERMÃO DO MONTE
A Constituição do Reino de Deus

a “oferecermos a outra face”, em sinal de paz. Não revidar o insulto


é o mesmo que não satisfazer o próprio ego através da vingança.
Segundo – ele fala qual deve ser a reação do discípulo quando tiver
seus pertences mais necessários exigidos por um credor. Ele diz: “e
ao que quiser levar-te ao tribunal, e tirar-te a túnica, deixa que leve
também a capa”. Um credor tinha o direito de exigir a túnica do
devedor por uma dívida ainda a ser paga. Quando não a recebia
por bem ele tinha o direito de exigi-la por meio de um processo
jurídico. Mas de acordo com Dt 24.10-13, deveria ceder a roupa ao
dono, conforme as suas necessidades diárias de uso. Diante dessas
questões jurídicas mesquinhas, Jesus exorta os discípulos a serem
altruístas – se credores devem desistir do penhor; se devedores de-
vem dar além do devido – entregando também a capa que era
vestida sobre a túnica.
Terceiro – ele fala qual deve ser a reação do discípulo quando for
recrutado forçadamente a prestar um serviço a alguém. Ele disse:
“se alguém te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois mil”.
No império romano quando alguém estava a cargo do governo,
principalmente na incumbência de fazer um transporte, tal pessoa
poderia recrutar quem quisesse para ir com ela uma milha para lhe
ajudar com a carga. Foi isso que os soldados romanos fizeram com
Simão, o cirineu, obrigando-o a carregar a cruz de Jesus por uma
determinada distância31. Os fariseus recusavam se submeter a esta
imposição romana, alegando que só poderiam andar na compan-
hiade outro fariseu e não com um “incrédulo” qualquer.
Jesus, entretanto, falou que se algum de seus discípulos for solicit-
ado a andar uma milha, não deve tentar resistir ou se opor àquele
que lhe está obrigando. Antes, deve demonstrar disposição de ir
com ele até mais do que lhe fora solicitado, mesmo que esta im-
posição seja algo ultrajante.
Quarto – ele fala qual deve ser a reação do discípulo quando for
surpreendido por alguém em necessidade, mesmo que seja seu in-
imigo. Ele disse “Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem
te pedir emprestado”. Mais uma vez aqui, Jesus põe em pauta a
negação do próprio “eu”. É natural do ser humano agarrar-se firme-
mente à própria dignidade pessoal e aos bens que possui. Por isso
é tão difícil não se vingar quando a nossa dignidade é ferida. Igual-
mente difícil é abrir mão de algum bem que possuímos para suprir
a necessidade daquele que nos pede ajuda, especialmente alguém
Mateus 27.32
31

76
SERMÃO DO MONTE
A Constituição do Reino de Deus

que nunca nos beneficiou. A tendência do ser humano é sempre


reter para si o que possui. Por isso faz parte do evangelho dar a
quem nos pedir. Se alguém está passando alguma necessidade real,
o discípulo tem o dever de ajudar, mesmo que seja alguém que o
magoou ou feriu. Mais tarde João colocou isso nas seguintes pala-
vras: “Se alguém tem recursos suficientes para viver bem e vê um
irmão em necessidade, mas não mostra compaixão, como pode
estar nele o amor de Deus? Filhinhos, não nos limitemos a dizer
que amamos uns aos outros; demonstremos a verdade por meio de
nossas ações32”.

ÓDIO CONTRA OS INIMIGOS


“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás
o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos in-
imigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos
torneis filhos do vosso Pai que está no céu; porque ele
faz nascer o sol sobre maus e bons e faz chover sobre
justos e injustos. Pois, se amardes quem vos ama, que
recompensa tereis? Os publicanos também não fazem
o mesmo? E, se cumprimentardes somente os vossos
compatriotas, que fazeis de especial? Os gentios tam-
bém não fazem o mesmo? Sede, pois, perfeitos, assim
como perfeito é o vosso Pai celestial”. (Mt 5.43-48).
Esta última antítese é uma continuação imediata da anterior. As duas
últimas revelam uma progressão. A primeira é uma ordem negativa:
“Não resistais ao perverso”. A segunda é uma ordem positiva: “Amai
os vossos inimigos”. A primeira é um chamado para a não retribuição
da ofensa pessoal, e a segunda para o amor ativo. Agostinho fala
que “muitos têm aprendido a oferecer a outra face, mas não sabem
como amar a pessoa que os esbofeteou” . Essa antítese final é sem
dúvida o ponto mais alto do sermão do monte a respeito de nossas
relações pessoais. Nenhum outro ponto é mais desafiador que este,
pois é nele que a contracultura cristã é vista com maior nitidez.

O AMOR AO PRÓXIMO NA LEI E NA


COMPREENSÃO DOS FARISEUS
O mandamento para amar o próximo é encontrado em Levítico
19.18. Em nenhum lugar das Escrituras é dito: “odiarás o teu inimi-
1 João 3.17,18
32

77
SERMÃO DO MONTE
A Constituição do Reino de Deus

inimigo”. Esta foi uma pressuposição equivocada que os judeus fiz-


eram da ordenança mosaica. Os escribas e fariseus alegavam que
o “próximo” referia-se somente ao povo judeu. Para eles tratava-se
de uma instrução de como os israelitas deveriam tratar seus pais,
amigos e irmãos ou aqueles que faziam parte da sua raça e re-
ligião. Uma vez que a lei mandava amar o próximo, erroneamente
interpretam que poderiam odiar a qualquer um que não fosse por
eles considerado “o próximo”. Os fariseus ensinavam que os judeus
deveriam se amar entre eles. Por outro lado deveriam considerar
a qualquer um que não pertencesse ao seu povo ou religião, não
somente como estrangeiro, mas como inimigo. E ainda, reserva-lhes
o direito de odiá-los.
Eles tinham uma compreensão limitada acerca de quem é o próx-
imo o qual Deus ordena amar. Na parábola do bom samaritano
Jesus explicou que o nosso próximo não é necessariamente um
membro da nossa própria raça, classe social ou religião. É qualquer
outro ser humano com o qual nos deparamos34. No mandamento
de amar o próximo está incluso o estrangeiro que nem mesmo con-
hecemos, e ainda o nosso inimigo, aquela pessoa que nos fez mal.
O problema dos fariseus era que além de tentarem se justificar
apoiavam-se em algumas particularidades descritas no Antigo Tes-
ta mento, mas que não constituíam mandamentos gerais. Por ex-
emplo, quando Deus ordenou matar a todos os povos inimigos na
conquista da terra prometida35, e nos salmos imprecatórios36. Eles
se fazem de cegos para mandamentos explícitos na lei, como es-
tes: “Não se aproveitem dos estrangeiros que vivem entre vocês na
terra. Tratem-nos como se fossem israelitas de nascimento e am-
em-nos como a si mesmos”37. “Se encontrares perdido o boi do seu
inimigo, leve-o de volta a ele. E, se o vir caído sob o peso de sua
carga, não o abandone, mas procure ajudá-lo”38; “Não se alegre
quando seu inimigo cair, não exulte quando ele tropeçar”39; “Se o
seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer, se tiver sede dê-lhe de be-
ber. Você amontoará brasas vivas sobre a cabeça deles, e o Senhor
te recompensará”40. Neste ponto, Stott fala que os homens deveri-
am constituir o objetivo do nosso amor e do nosso “ódio” ao mesmo
tempo, pois são, simultaneamente, objetos do amor e do ódio de
33
Our Lord’s Sermon on the Mount, uma exposição feita por Agostinho de Hipona. Início do século V.
Tradução de Wiliam Frindlay na serie Library of Nicene and Post-Nicene Fathers, Vol. VI, editada por Philip
Schaff, 1887. (Eerdmans, 1974), I.58.
34
Lucas 10.29-37 / 35Números 33.51-56; Deuteronômio 20.16,17
36
Os salmos imprecatórios são aqueles em que o salmista pede para que Deus traga castigo contra os seus
inimigos, como, por exemplo, os Salmos 7, 12, 35, 58, 59, 69, 70, 83, 109, 137, 140. Em última análise estes
salmos tinham a ver com um forte zelo pela glória de Deus, e não com meras ofensas pessoais.
37
Levítico 19.33,34 / 38Êxodo 23.4,5 / 39Provérbios 24.17 / 40Provérbios 25.21,22

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SERMÃO DO MONTE
A Constituição do Reino de Deus

tempo, pois são, simultaneamente, objetos do amor e do ódio de


Deus. Assim, amá-los é desejar ardentemente que se arrependam
e creiam para serem salvos. E, “odiá-los” é desejar, com idêntico
ardor, que incorram no juízo divino se, obstinadamente, recusarem
a arrepender-se e crer41.-

O AMOR CRISTÃO ENSINADO POR JESUS


O amor cristão não tem necessariamente a ver com sentimentalis-
mos, mas sim com ações práticas. Não precisamos gostar de uma
pessoa para amá-la. Jesus disse que devemos amar uma pessoa,
mesmo não gostando dela ou das coisas que ela faz. Lucas em seu
evangelho, ao escrever sobre essa porção do Sermão do Monte,
coloca de uma forma ainda mais específica quais são essas ações
práticas do amor. Ele diz: “Mas digo a vós, que ouvis: Amai os vossos
inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos
amaldiçoam e orai pelos que vos maltratam”42.
Primeiro – o amor é expresso por nossos atos. Se os nossos inimigos
estão preocupados e empenhados em nos fazer o mal, nós temos
que nos preocupar e nos empenhar em lhes fazer o bem. Foi assim
que Deus nos tratou quando éramos seus inimigos43. O Pai deu seu
Filho para morrer por nós e nos reconciliar com ele, como prova do
do seu amor. Ele nos fez o bem quando ainda éramos seus inimigos.
Segundo – o amor é expresso por nossas palavras. Se os nossos in-
imigos nos insultam e maldizem, devemos lhes bendizer. Jesus não
está dizendo para negarmos o fato de que eles são maus. Não está
dizendo para pensarmos que eles não merecem o castigo por suas
ações. Ele não está pedindo para que neguemos a realidade, e não
consideremos errado e injusto o que eles fazem. O que ele está fa-
lando é que não devemos amaldiçoar essas pessoas. Pelo contrário,
devemos abençoá-las com nossas palavras. Bendizer não é tentar
justificar os pecados das pessoas. Nesse contexto tem o sentido de
expressar que o nosso desejo é o bem delas e não o mal. Mesmo
que nos desejem o mal e invoquem maldições sobre nós, as nossos
palavras para com elas devem ser para abençoar e não para amal-
diçoar. É necessário que saibam que, mesmo nos odiando e mal-
dizendo, nós invocamos sobre elas a graça e a misericórdia divina.
Devemos responder as suas más palavras com nossas boas palavras;
aos seus maus desejos com os nossos bons desejos. O maior amor é
A Mensagem do Sermão do Monte – Contracultura cristã – John Sttot (Editora ABU) Pg. 117.
41

Lucas 6.27,28 / 43Romanos 5.8-10


42

79
SERMÃO DO MONTE
A Constituição do Reino de Deus

desejar o bem da pessoa, e não há bem maior do que a salvação. Se


Deus nos revelou a sua palavra graciosa quando ainda éramos seus
inimigos, as nossas palavras para com os nossos inimigos devem ser
igualmente graciosas.
Terceiro – o amor é expresso por nossas orações. Não podemos
jamais esquecer que em todas as coisas e em qualquer circun-
stância, estamos debaixo de Deus e diante dele. Na oração nos
aproximamos do nosso inimigo, colocamo-nos ao lado dele e por
ele intercedemos a Deus para que da mesma forma que fomos
alcançados por sua maravilhosa e irresistível graça, ele também o
seja. Se ele, por sua cegueira e ignorância não pode fazer isso soz-
inho, então, façamos em seu lugar. Devemos começar a orar por
nossos inimigos antes mesmo de tomarmos consciência de que os
amamos. A oração fará com que esse amor realmente brote em
nosso coração e amadureça. Não devemos esperar ter algum bom
sentimento para que só depois comecemos a orar. O amor virá à
medida que abrimos o nosso coração e nossos lábios para Deus.
A oração conecta o nosso coração de uma forma mais íntima ao
coração de Deus. A oração nos conforta e nos enche de amor,
pois ela nos faz contemplar a cruz de Cristo. Na cruz, Jesus orou
por seus inimigos. Enquanto eles furavam seus pés e mãos sobre
o madeiro, o nosso Senhor, por eles intercedia, dizendo: “Pai, per-
doa-lhes, pois pois não sabem o que fazem”44. Semelhantemente,
Estevão, um homem comonós, o primeiro mártir da história da Ig-
reja, enquanto apedrejado por seus inimigos, contemplou a glória
de Deus e intercedeu por aqueles que o matava, dizendo: “Senhor,
não lhes condene por este pecado”45. Somos confrontados ao nos
expor à realidade da cruz de Cristo. Stott indaga: “Se a cruel tortura
da crucificação não pôde silenciar a oração do nosso Senhor por
seus inimigos, que dor, orgulho, preconceito ou preguiça poderia
justificar o nosso silêncio?”46. Crisóstomo viu essa responsabilidade
de orar por nossos inimigos como o ápice do “domínio próprio”, ou
seja, o clímax da mortificação do “eu”.
Essas duas últimas antíteses nos ensina como podemos nos tornar
perfeitos em amor. Na primeira, somos ensinados sobre o que o
amor não faz, e na segunda, o que o amor faz.

Lucas 23.34 / 45Atos 7.55-60


44

A Mensagem do Sermão do Monte – Contracultura cristã – John Sttot (Editora ABU) Pg. 119.
46

80
SERMÃO DO MONTE
A Constituição do Reino de Deus

O APERFEIÇOAMENTO DO AMOR CRISTÃO

COMO NÃO RESISTIR AO COMO AMAR O INIMIGO


PERVERSO (O que amor faz)
(O que o amor não faz)
1. Não revide a ofensa do seu 5. Faze o bem àquele que lhe
ofensor faz o mal
2. Não se limite em dar so- 6. Bendize àquele que lhe mal-
mente o que lhe é exigido por diz
seu credor
3. Não se limite a ir somente 7. Ore por aquele que lhe
até onde lhe é imposto por seu persegue e maltrata
superior

TORNANDO-SE SEMELHANTE AO PAI


Jesus disse que ao agirmos assim nos tornaremos verdadeiros filhos
do nosso Pai que está no céu. Pois ele dá a luz do sol tanto a maus
como a bons e faz chover tanto sobre justos como injustos. O amor
de Deus não é demonstrado somente para os bons. Os maus tam-
bém vivem e se beneficiam com a bondade divina. Os teólogos
chamam isso de “graça comum”. Essa graça não se trata daquela
concedida aos eleitos para a salvação, trata-se da graça de Deus
para com a sua criação de forma geral, a qual ele sustenta e faz
o bem, simplesmente, porque ele é bom. Essa graça é igual para
todos, tanto para os crentes quanto para os incrédulos, tanto para
tanto para justos quanto para injustos.
O chamado para se viver a vida cristã é para se viver a virtude da
graça divina. Se o discípulo ama apenas aqueles que o ama, que
recompensa espera receber? Até os cobradores de impostos fazem
o mesmo. E, se faz o bem apenas para seus amigos, o que estará
fazendo de mais? Até os gentios fazem isso. Jesus está ensinando
como exceder em justiça no que diz respeito às nossas relações
pessoais. Há uma grande recompensa para a justiça do discípulo,
contudo, ela deve exceder não somente a dos publicanos e gen-
tios47, mas também a dos escribas e fariseus. Estes se achavam mais
santos e perfeitos que aqueles, mas em nada se diferenciavam de-
47
Publicano era o judeu que trabalhava para o império romano coletando os impostos do povo. Era con-
siderado pelos judeus como traidor, ladrão e imundo (pois estava sempre em contato com os seus chefes
gentios). Gentio era qualquer um que não pertence ao povo judeu. Era considerado como pagão imundo.
Ambos eram considerados como inimigos pelos judeus e principalmente pelos escribas e fariseus, que nem
sequer os cumprimentava.

81
SERMÃO DO MONTE
A Constituição do Reino de Deus

les, a não ser na hipocrisia de seus próprios corações obstinados. A


diferença do amor cristão para o amor do homem natural é que ele
é divino. Plummer fala que “retribuir o bem com o mal é demonía-
co, retribuir o bem com o bem é humano, mas retribuir o mal com
o bem é divino”48. Portanto, devemos ser perfeitos, como perfeito é
o nosso Pai celestial.

CONFORMANDO-SE À CRUZ DE CRISTO


Com toda essa exposição Jesus está contrastando a cultura secular
com a cultura cristã. Amar o inimigo é um choque para o ser huma-
no, é algo que contraria a sua natureza. Mas foi esse amor que Jesus
veio demonstrar por nós. A cruz é o que há de exclusivo e excepcio-
nal no amor cristão. É o que possibilita aos cristãos transcenderam
em justiça e amor. O amor só se torna invencível quando o discípulo
não questiona sobre o que o inimigo lhe faz, mas somente sobre o
que Jesus fez. Bonhoeffer escreveu que o amor ao inimigo conduz
o discípulo ao caminho da cruz e à comunhão com o crucificado49.
Quanto mais trilhar este caminho, mais forte será o seu amor, e mais
vencerá o ódio do inimigo. Pois não se trata do nosso próprio amor,
não amamos com um amor simplesmente humano, natural; ama-
mos com o amor de Cristo, que por seus inimigos foi à cruz e nela
intercedeu por eles. A glória do amor cristão consiste em amarmos
não somente quem nos ama e nos faz o bem, mas também quem
nos odeia e maltrata. Isto não apenas foi ensinado por Jesus, mas
vivido por ele. Mais tarde Pedro escreveu: “Pois digno de louvor é o
fato de alguém suportar tristezas, sofrendo injustamente, por causa
da consciência para com Deus. Pois que mérito há em ter de su-
portar sofrimento se cometeis pecado e sois esbofeteados por isso?
Mas se suportais sofrimento quando fazeis o bem, isso é digno de
louvor diante de Deus. Para isso fostes chamados, pois Cristo tam-
bém sofreu por vós, deixando-vos exemplo, para que sigais os seus
passos. Ele não cometeu pecado, nem engano algum foi achado
na sua boca; ao ser insultado, não retribuía o insulto, quando sofria,
não ameaçava, mas entregava-se àquele que julga com justiça”50.

48
An exegetical commentary on the Gospel according to St Mattew, Alfred Plummer (Alliot Stock, 1910),
pg. 89.
49
Discipulado, Dietrich Bonhoeffer (Mundo Cristão, 2016), pg 116.
50
1 Pedro 2.18-23

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