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Moda e Arte – atravessamentos, influências e rupturas

Charbelly Estrella

Apesar de muitos autores relacionarem diretamente, e, às vezes, exclusivamente o fenômeno


da moda ao vestuário, tomaremos como premissa que a moda é uma dinâmica moderna
de agenciamento da vida coletiva e de suas formas de figuração social, nas quais o vestuário
tornou-se a mais privilegiada delas. Neste sentido, a moda será abordada aqui como
um sistema de gerenciamento das formas coletivas de produção e consumo. Portanto,
só podemos entender a moda como fenômeno emergente de uma sociedade moderna
industrializada e urbana.

A idéia de um sistema da moda se torna material, social e economicamente possível a


partir de condições fomentadas no século XIX – a modernização das cidades européias, a
ampliação dos campos de uso da técnica e a emergência de uma sociedade de massa. Assim,
a concepção de uma vida administrada pela racionalidade produtiva está absolutamente
alinhada com a consolidação da chamada indústria da moda.

Em seu texto clássico Fashion, Georg Simmel (1971, p. 294) apresenta uma tessitura das
formas sociais expressa nas articulações da moda. O autor defende que a moda serviu a uma
busca pela distinção individual na sociedade moderna urbana, colaborando com a construção
de uma tipologia social. Da mesma maneira, o “sistema da moda” funcionou como uma
forma aplicada do racionalismo produtivo, produzindo e reproduzindo identidades e
hierarquias a partir da maneira pela qual o indivíduo, e grupos de indivíduos, agenciavam as
possibilidades de construir sua aparência, sua forma de apresentar-se publicamente, através
de códigos de vestimenta e dos adornos do corpo em geral.

Com essa abordagem sociológica, Simmel nos dá a pista central do problema que a moda
representaria na engrenagem moderna – o agenciamento social das formas do parecer, ou
seja, como cada indivíduo seria capaz de conjugar as suas possibilidades individuais de
apresentação pública com os padrões coletivos de organização social. Isso significa que os
indivíduos inseridos em diferentes classes sociais deveriam conhecer os códigos de distinção
social que eram articulados na aparência das pessoas.

Ao levantarmos essas questões, pode parecer que eliminamos a possibilidade de uma


relação mais íntima entre o universo da moda, que despontava na Europa em finais do
século XIX, e a Arte Moderna. Mas, ao contrário do que possa parecer, a Moda só pôde se
assumir como uma dinâmica de rupturas formais a partir de sua negociação com o campo
da arte. Em resposta à racionalidade produtiva dominante na sociedade industrial, surge
uma dinâmica cultural que agencia duas dimensões temporais conflitantes: por um lado,
um valor espiritual, atemporal, ligado tradicionalmente à arte; por outro lado, o agora,
difundido pelas técnicas de produção seriada e pela agenda do cotidiano urbano2. Ou seja,
o valor único e as técnicas de reprodução em massa. O gênio e o homem-médio.

É possível observar, por exemplo, como várias manifestações artísticas lançaram mão do
vestuário para fomentar seu espectro conceitual, desde as experimentações do Futurismo
ao movimento Punk londrino. É o caso de figurinos criados por alguns artistas, que podem
ser tomados como apresentação de um vocabulário visual passível de ser aplicado em
outros suportes, em outros meios. Este texto, portanto, tratará a dinâmica da moda sob
os dois aspectos aqui indicados: o primeiro é o que diz respeito à sua função social, sua
importância como dispositivo de controle e condicionamento da figuração pública, próprio
das sociedades disciplinares européias do século XIX e da primeira metade do século XX.

1 Para debate mais amplo sobre essas transformações, ver Richard Sennett (2002).
O segundo, que receberá maior ênfase, é o que diz respeito às especificidades formais do

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parecer, das técnicas de produção do vestuário, da aplicação de novos materiais e das relações
entre as novas formas de se vestir e a dinâmica da arte.

Para que se contemplem esses dois aspectos, este texto tratará primeiro da dinâmica da
moda numa sociedade urbano-industrial. Em seguida, será focalizada a influência definitiva
de alguns movimentos artísticos nas artes aplicadas, a partir da ampliação do campo da
arte promovida pelas correntes modernistas, conjugando um caráter formal à produção de
objetos de toda ordem, que passaram a invadir o cotidiano do cidadão comum.

1. Indivíduo e sociedade: os extremos da Moda

A noção de moda relaciona-se diretamente com as possibilidades individuais de


apresentação pública e os padrões coletivos de organização social. Sendo assim, só podemos
pensar historicamente o conceito de moda quando pensamos no próprio conceito de
indivíduo e sociedade. Tais conceitos surgem no século XVIII, ao mesmo tempo em que
é possível perceber transformações profundas nos dispositivos de controle social. Norbert
Elias3 aponta para a consolidação do Estado Moderno e de como esse poder político,
burocrático e institucional contou com instrumentos valiosos na construção do indivíduo
moderno – os códigos de conduta, as regras de etiqueta como agenciadores e mediadores
de uma vida pública organizada.

Outro autor importante na análise desse processo é Michel Foucault. Ao cunhar o conceito
de sociedades disciplinares, Foucault (2002, p. 117) aponta que o conceito de indivíduo é
próprio de uma etapa histórica, os séculos XVIII e XIX, na qual os dispositivos de controle do
coletivo se estabelecem a partir da técnica de vigilância – o panóptico. Para o autor, o poder
deixa de ser repressivo para ser condicionante, ou seja, deixa de ser brutalmente punitivo
para se tornar vigilante. O indivíduo surge quando o sujeito não apenas se percebe como
alvo do poder, mas também internaliza a vigilância, própria de uma sociedade de produção
em massa. O indivíduo, para Foucault, é efeito de um tipo de poder, um poder internalizado
sob a forma de vigilância constante. Nesse sentido, a dicotomia indivíduo-massa é central
para a concepção da sociedade moderna e atravessa, da mesma forma, os debates sociais e
estéticos capitaneados pelos movimentos vanguardistas do início do século XX.

A moda é, em larga medida, conseqüência de uma sociedade disciplinar que credita nos
dispositivos de condicionamento do comportamento do indivíduo sua principal força para
fazer a grande máquina produtiva funcionar. Mas, como bem destaca Foucault, a grande
vantagem estratégica dessa forma de controle é ser positiva, ou seja, ela não promove
capturas forçadas, mas seduz, convoca a participação individual, ou seja, as disciplinas
induzem a fragmentação e a participação no coletivo como movimentos de uma mesma
dinâmica social. Mas o que isso tem a ver com o universo da moda? Podemos dizer que,
a priori, o grande papel social das roupas, ao final do século XIX, foi a figuração de um
condicionamento social de uma nova forma de poder econômico que se consolidava na
Europa – o capital industrial.


Norbert Elias aborda a formação do Estado Moderno e como isso interferiu diretamente sobre o comportamento dos
indivíduos nas obras O Processo Civilizador (1993; 1994) e Sociedade dos Indivíduos (1997).

Para Foucault as disciplinas são possíveis a partir do momento em que o corpo é reconhecido como alvo e objeto
de poder. O autor defende as disciplinas como dispositivos de docilização dos corpos, ou seja, numa sociedade capi-
talista industrial o poder é exercido a partir do estímulo ao corpo produtivo e ao esvaziamento de sua vontade política,
evitando assim a própria revolução. A preocupação com a aparência, operada pela moda, pode ser entendida como um
desses dispositivos na produção de “corpos dóceis”. Para este debate ver Foucault (2002, p. 117-192). 
De uma função elementar de proteção do corpo, as roupas passaram a servir, numa

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sociedade civilizada, sobretudo ao agenciamento social do indivíduo na coletividade.
Portanto, as roupas serviam para disciplinar os corpos e, assim, inseri-los no jogo social
do coletivo urbano e, acima de tudo, permitir as pequenas distinções sociais. Com isso, as
roupas se tornaram as principais aliadas da hierarquia social moderna a partir dos tipos de
tecidos, dos modelos únicos, dos discretos códigos de diferenciação – o nó das gravatas, a
forma de amarrar as botinas ou de fechar os botões das casacas.

A moda se estabelece como uma pedagogia do tempo, de um lado difunde maciçamente as


novas formas visuais e os novos elementos artísticos, por outro presta tributo ao próprio status
quo. A vigilância estabeleceu suas regras nos códigos de etiquetas que se multiplicaram por
todo o século XIX, uma espécie de academicismo das formas de convívio social. A idéia de
estetização da vida cotidiana fez surgir figuras alegóricas, como o dândi. Podemos entender
que a moda estabeleceu pontos decisivos de contato com o processo de modernização das
cidades européias, pois se configurou como elemento agenciador entre os corpos modernos
e seu novo espaço de ação – a cidade moderna.

É possível ver claramente a função social que a produção orientada de trajes assume a partir
da década de 1870, com o surgimento das casas de costura, o que em pouco tempo viria a se
tornar a chamada Alta Costura. Além da produção de modelos únicos, é nesse contexto que
começam a ser produzidos em larga escala utensílios para a toalete cotidiana, a proliferação
dos espelhos sem função decorativa, mas como instrumentos que auxiliavam a preparação
do indivíduo para a vida pública na cidade. Portanto, o chamado “sistema da moda” é
o enunciado da percepção de uma relação bastante complexa que aflorava entre corpo e
cidade moderna. A roupa deixa de ser apenas um bem utilitário e assume a insígnia de seu
tempo – a idéia de um figurino urbano.

No início do século XX, as Casas de Costura, que formavam a denominada Alta Costura,
eram o que de mais próximo existia do universo artístico moderno. O surgimento das casas
de Alta Costura e dos grandes costureiros, como Charles Frederic Worth, Paul Poiret, Jean
Patou e Coco Chanel, entre outros, acabou por conferir à produção das roupas e acessórios
o lugar privilegiado de criação artística. Era como se a chancela do gênio artístico chegasse
também às Casas de Costura. Pela primeira vez na história as roupas faziam parte de uma
orientação produtiva, de uma racionalidade produtiva, colocada em prática com vistas à
coletividade. Por outro lado, as Casas de Costura produziam modelos únicos e assinados
por seus criadores que, por sua vez, os apresentavam em salões vespertinos para aqueles que
ocupavam o ápice da pirâmide social.

Entretanto, para além do circuito da moda que se formava principalmente em Paris o que
efetivamente estava em foco na ascensão da importância das roupas e acessórios eram duas
questões fundamentais – as transformações produzidas pelo modernismo e a produção industrial
em larga escala para atender a uma massa de consumidores. O diálogo entre os “costureiros” do
início do século XX e o mundo da genialidade artística conferiu à produção de vestimentas e
acessórios a força criativa tão necessária para atribuir ao figurino urbano um valor estético.

As roupas são elementos fundamentais na definição da modernidade do fim de século XIX,


e passaram a determinar uma espécie de estilo cosmopolita, que pairava sobre as grandes
metrópoles do início do século XX, como auge da estetização da vida cotidiana. Alguns
dos cronistas mais importantes da vida moderna não deixam de sinalizar a importância dos
trajes na definição do universo psicológico de suas personagens. O maior deles foi Honoré
de Balzac, que com a descrição do plissado das saias das damas insinuava os relevos de


CORBAIN, Alain. Bastidores (apud PERROT, 1997, v. 4, cap. 4).

Para esse debate ver Lipovetsky (1991). 
caráter. Também importantes foram Charles Baudelaire (1993), que produziu o seu elogio

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à maquiagem, e Oscar Wilde (1972), que apresentou o dândi Dorian Gray como amante
e fiel seguidor das normas modernas do bem vestir. A crônica moderna está repleta de
personagens que têm sua moralidade exposta nas calças, nos botões das camisas ou no
tamanho das golas.

Junto com o psicologismo literário dos personagens, exposto através das roupas, um problema
fundamental surge – quais são os dispositivos que fomentam a criação das roupas? Quais são
os elementos que efetivamente promovem no mundo da moda mudanças e rupturas formais?
O sistema da moda já havia se consolidado a partir de uma sazonalidade industrializada, era
responsável por apresentar aos ávidos burgueses as novidades do momento. Mas de onde
vêm as novidades? Como são fomentadas e formalizadas?

Do final do século XIX até a primeira década do século XX, o elementos agenciadores
das mudanças nos trajes eram pequenos, sutis. E as roupas serviam como dispositivos de
diferenciação social. Portanto, toda vez que um detalhe se popularizava uma novidade
surgia em seu lugar, e assim se consolidava o par dicotômico novidade/obsolescência. Mas é
a partir da segunda década do século XX que mudanças profundas, estruturais, podem ser
percebidas nas roupas, especialmente nas femininas.

Desde o processo de modernização das cidades européias, de meados do século XIX à


metade do século XX, a noção de mobilidade é a força motriz da experiência moderna. A
construção das primeiras avenidas, os novos transportes coletivos, os bondes, os trens e, mais
tarde, os sistemas de comunicação conjugavam a experiência de mobilidade à nova noção de
velocidade, despertada pela técnica automotiva, pela nova dinâmica produtiva alavancada
pelas máquinas. É nesse ambiente moderno que o indivíduo urbano agora se desloca, ou seja,
esse é seu novo meio. Esse meio exige, essencialmente, um novo padrão de deslocamento,
de relação com o espaço da cidade modernizada, que se funda nesse princípio moderno de
mobilidade. Ocupar socialmente novos espaços coletivos demandava agenciar com destreza
o arsenal das aparências: roupas, penteados e outros acessórios que configuravam a imagem
pública dos indivíduos. Ser móvel era estar em dia com o espírito moderno.

Assim como é possível perceber as transformações urbanas de toda ordem ganharem


suas representações no universo da moda, em franca ascensão, é possível perceber como o
processo de criação, que se estabeleceu nas Casas de Costura, também se influenciou pelas
transformações no campo da arte. O que veremos a seguir é como a Moda estabeleceu seus
pontos de contato com o mundo da arte e como a própria arte interferiu nos processos de
produção, na estrutura das roupas e na utilização de novos materiais.

2. Moda e Modernismo: a ascensão das artes aplicadas

Segundo Giulio Carlo Argan (2002), o Modernismo subsume diversas correntes artísticas,
da última década do século XIX e início do século XX, que se propõem a interpretar, apoiar
e acompanhar o esforço progressista, econômico-tecnológico da civilização industrial. O
historiador da arte identifica cinco premissas como tendências modernistas:

1) a deliberação de fazer uma arte em conformidade com sua época e a renúncia à invocação de modelos clássicos, tanto
na temática como no estilo; 2) o desejo de diminuir a distância entre as artes maiores (arquitetura, pintura e escultura)
e as “aplicações” aos diversos campos da produção econômica (construção civil corrente, decoração, vestuário etc.); 3) a
busca de uma funcionalidade decorativa; 4) a aspiração a um estilo ou linguagem internacional ou européia; 5) o esforço
em interpretar a espiritualidade que se dizia (com um pouco de ingenuidade e um pouco de hipocrisia) inspirar e redimir
o industrialismo.


Argan (2002, p.185). 
É a partir dessas premissas que podemos analisar os pontos de contato entre a Moda e a

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Arte. Em primeiro lugar, podemos observar que é a relação que a arte estabelece com o
“industrialismo” moderno e suas vertentes que permite o surgimento das chamadas artes
aplicadas. Esse novo “lugar” de diálogo possibilita que algumas formas de produção, antes
relegadas a uma lógica de criação de segunda categoria, ascendessem a um lugar de destaque
e, assim, passassem a constituir também problemas que requeriam soluções artísticas.
Podemos citar, como exemplos, a preocupação com a padronagem dos tecidos, a produção
de acessórios de toda ordem e a influência definitiva do desenho industrial.

O vestuário e a produção de figurino para cinema, teatro e balé tornam-se exemplos das artes
aplicadas “beneficiadas” pela dinâmica das correntes modernistas. Portanto, os problemas
centrais para a Arte Moderna refletem-se diretamente nesses novos campos de produção.
Isso quer dizer que as questões das quais se ocupa a arte moderna também influenciaram as
artes aplicadas, configurando a chamada ampliação do campo da arte.

Assim, as primeiras décadas do século XX estabelecem um novo paradigma para a Arte


e, por conseguinte, para a Moda – os movimentos artísticos chamados de vanguardas.
As transformações sociopolíticas, que fervilhavam na Europa, traziam novos problemas
a serem amplamente discutidos e redirecionados no campo da arte. O surgimento de
novos materiais e novas técnicas de produção, a ascensão política das classes operárias e os
movimentos de vanguarda assumiam a responsabilidade de promover uma transformação
social profunda. Um pouco mais tarde, um outro elemento soma-se a esse universo de
transformações – o movimento feminista. A libertação feminina do espaço fechado do lar
e de sua condição doméstica de ação faz emergir uma nova personagem feminina que, por
sua vez, demanda um novo figurino.

É nesse período histórico que Arte e Moda consolidam um movimento de sucessivas rupturas
formais, garimpando novos materiais, acatando novos dispositivos técnicos em suas produções
e assumindo definitivamente seus respectivos papéis sociais na sociedade do novo século.

Mas quais foram, então, as efetivas transformações formais que esse novo cenário social,
político, técnico e artístico provocou nas roupas? No século XIX era comum observarmos que
a moda pouco se estendia às classes operárias. Enquanto os burgueses e a aristocracia vestiam
roupas volumosas, com cinturas marcadas, corpetes apertados e chapéus ostensivamente
pesados, as classes populares tinham acesso às roupas produzidas artesanalmente – nas
costureiras de bairro ou feitas pelas próprias mulheres, através de modelos copiados dos
semanários –, ou aos primeiros modelos padronizados, disponíveis nas lojas de departamentos
que começavam a surgir. Mas, em geral, as roupas forçavam uma estrutura rígida para o
corpo, o que podia também ser percebido, embora em menor escala, nas roupas masculinas.
As cores sóbrias serviam como insígnias de uma moralidade de vestir.

Com a explosão dos movimentos de vanguarda e a intervenção pontual das novas técnicas
e materiais de produção, uma outra forma de vestir se apresenta. As roupas femininas
começam a abandonar os trajes “enclausurantes”, e embora acima da cintura a forma
triangular ainda continue, da cintura para baixo os tecidos utilizados apresentam maior
maleabilidade, ou seja, sugerem maior movimento e leveza. Podemos identificar essa noção
de leveza no clássico suprematista de Kasimir Malevich, Branco sobre Branco, de 1918.
Nessa obra, Malevich sobrepõe delicadamente duas formas geométricas em branco. No
branco sobre o branco, a princípio difícil de imaginar, reside a intensidade da própria
fluidez do branco, o branco propõe uma espécie de volatilidade à forma geométrica,
sugerindo uma espécie de movimento dispersivo. É essa sensação de leveza que é perseguida
pelos estilistas na produção dos trajes. Segundo James Laver, a partir de 1913 há uma

Laver (1996, p. 225-229). 
mudança surpreendente: os vestidos passam a admitir o decote em V e os chapéus não se

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apresentam mais como gigantescos adornos, difíceis de equilibrar, mas se tornam menores
e mais ajustados à cabeça, portanto visualmente mais leves e mais condizentes com a nova
mobilidade da mulher moderna. O corpo deixa de ser um suporte para as criações dos
“gênios da costura” e passa a ser a condição das produções.

É nesse momento que podemos perceber a forte influência das premissas do cubismo e
do futurismo italiano. A linhas horizontais e verticais apresentam-se como técnicas de
corte, e a própria lógica do corte industrial, o corte reto, assume o lugar das sinuosidades
extravagantes. Neste sentido, as roupas são feitas para permitir a mobilidade do corpo e para
abarcar o sentido da velocidade técnica e a própria ação social que as vanguardas apontam
como estratégia de transformação social, o que pode ser exemplificado com a obra de Luigi
Rossolo, Dinamismo de um automóvel, de 1912-13. As camadas triangulares não deixam
dúvida quanto à motivação criadora do movimento.

Na década de 1920, a primeira grande estilista, Gabrielle Coco Chanel, revolucionou as


roupas e a forma de vestir das mulheres. Consolidou o fim dos modelos pouco confortáveis
do século XIX e assumiu os cortes retos, os modelos básicos agendados com a vida
contemporânea de um tipo social que despontava: a mulher européia do primeiro pós-
guerra. Chanel inseriu elementos de segunda categoria, como bijouterias, na composição
do vestuário feminino, de modo que os materiais da indústria começaram a ser utilizados
nos trajes da alta costura. A estilista foi responsável pela criação de uma das peças mais
elementares da história da moda, o clássico vestido de corte reto preto, o conhecido “pretinho
básico”. O conceito de básico surge exatamente das peças elaboradas por Chanel. A estilista
trouxe ao vocabulário da moda as formas retas, funcionais, que permitem o movimento do
corpo e guardam semelhanças com as linhas da própria produção industrial.

Podemos perceber nas criações de Chanel a definição de dois termos característicos do


sistema de moda do século XX, que são bastante usados até hoje nos editoriais de moda pelos
próprios estilistas e críticos de estilo: conceito e tendência. No mundo da moda, o conceito
se refere à condição abrangente que promove uma transformação estrutural na forma, na
orientação dos materiais e das técnicas utilizadas. O conhecido pretinho básico de Chanel é
um conceito em moda e figura como modelo na moda do século XX. É a idéia de uma peça
básica, de corte reto, que possibilite mais movimento, mais ação, mas que ao mesmo tempo
não abra mão de características como sensualidade e sobriedade. O corte “básico” se alicerça
na própria condição geométrica do corpo feminino, e dele extrai as condições formais de seu
modelo. Por outro lado, a tendência é a dimensão temporal, sazonal do conceito, ou seja, é
o agenciamento dos novos materiais, dos tipos de cortes, tecidos para determinada coleção.
Um exemplo seria o que assistimos nos espetaculares desfiles de moda contemporâneos: o
que os estilistas exibem nas passarelas são as tendências daquela determinada estação ou
coleção, ou seja, como eles tratarão determinado conceito.

Mas quais são as questões da arte moderna que fornecem os elementos estruturais para os
trajes de Chanel? Não é difícil perceber as pistas que Chanel nos dá quanto à influência
do construtivismo russo e do próprio suprematismo de Malevich. As transformações que
estavam ocorrendo na Rússia, desde a revolução de 1917, anunciavam o despojamento das
formas ostensivas e especialmente o abandono da figuração. Em primeiro lugar, como já
dissemos, os modelos retos beneficiam o movimento do corpo e buscam na base geométrica
a real condição da mobilidade, da sensualidade. O que o corte básico fornece é a característica
essencial da função social de um traje, no caso feminino.

Durante muito tempo, os trajes se encheram de elementos e adornos que impediam que
a relação entre corpo e roupa se tornasse menos mediada pelo excesso de tecidos e cortes

sobrepostos. Esses modelos impediam, é claro, a reprodução em larga escala, devido ao

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excesso de detalhes pomposos. Era necessária uma simplificação e a utilização de outros
tecidos, mais simples e baratos. A concepção do básico preto elimina essas fronteiras. Seu
modelo é uma matriz para reprodução em massa, não exige nenhuma modificação, pois já
é em si uma forma elementar. Percebe-se, assim, a influência que os princípios difundidos
pelas vanguardas russas tiveram sobre as mudanças introduzidas por Chanel na moda,
especialmente a busca por formas puras que caracterizou o suprematismo de Malevich.

Dessa maneira, e de muitas outras, os movimentos modernistas do século XX, a exemplo


das vanguardas, forneceram o eixo conceitual para a produção do vestuário moderno. Os
próprios artistas reconheceram outros espaços para ação artística que privilegiavam relações
inovadoras com a vestimenta: a criação para o teatro, a dança e a cenografia.

Ao observarmos o figurino futurista criado por Giácomo Balla e a dinâmica geométrica de


Oskar Schlemmer para o Balé Triádico, entre tantos outros exemplos, o que está em questão
é perceber como o figurino e a cenografia tornaram-se campos de experimentação plástica
para a arte moderna. No figurino do Balé Triádico é possível notar como as linhas horizontais
e verticais promovem e estendem a concepção modernista de movimento. Os movimentos
dos bailarinos se formam a partir de eixos horizontais e verticais. As extensões do corpo são
o próprio figurino, que é peça-chave na constituição de uma geometria cênica de repetição.

A coreografia da repetição, por sua vez, faz uma referência clara ao trabalho dos operários
nas fábricas, suavizado pelo próprio movimento do balé. De fato, o industrialismo assumiu
força total sob a pedagogia bauhausiana em que Schlemmer fundamentou as suas opções
estéticas. Assim, podemos perceber que o diálogo entre o banal e o artístico é realizado
através da inserção do design industrial na produção de objetos que passaram a invadir o
cotidiano dos cidadãos, forjando um conceito de usabilidade a partir dos princípios da arte.
O design industrial estabeleceu, desde a sua origem, um pacto definitivo com o vestuário e
com os acessórios da moda.

É preciso lembrar que ao final da década de 1940, mais precisamente em 1949, surge o
chamado prêt-à-porter. A idéia seria a apresentação de um conceito de coleção que estivesse
“pronta” para vestir, ou seja, pronta para venda em massa nas lojas das grandes grifes.
Assim, o “pronto para vestir” pode ser considerado o ápice da conjugação entre design e
industrialismo na Moda. A principal conseqüência dessas novas condições de produção de
roupas é que a Alta Costura entra em franco declínio no período após a II Grande Guerra.
Chanel fecha seu ateliê sob a alegação de que os europeus não queriam mais saber da grande
moda, e Balenciaga afirma que não há mais pessoas para vestir. A partir desse momento, as
grandes Casas de Costura se transformam em “indústrias do prêt-à-porter”.

Entretanto, o ápice da vida industrial chega com a introdução dos materiais sintéticos nas
roupas. Esses materiais industrializados já estavam presentes na visualidade do século XX e,
pelo menos desde seu uso nas colagens cubistas e no ready-made de Marcel Duchamp na
década de 1910, haviam se tornado uma questão específica para a história da Arte Moderna.
Mas é entre as décadas de 1950 e 60, especialmente nos Estados Unidos, que os materiais
de valor menor, como plástico, metais baratos e papéis, passam a servir para a produção
de roupas. Em finais da década de 1960, o estilista espanhol Paco Rabanne cria modelos
completamente sintéticos e, além disso, é o primeiro estilista a levar para a passarela a idéia
de performance das manequins.

As questões enunciadas nessas transformações da estrutura do universo da moda podem


ser associadas às próprias questões levantadas pela Pop Art. Ao produzir uma crítica aguda

ao sistema da arte, Andy Warhol formaliza problemas pontuais da vida contemporânea.

Moda e Arte
A presença das técnicas de reprodução no processo de criação, a realidade de segunda
categoria difundida pelos meios de comunicação de massa, que passam a mediar a relação
do indivíduo com a realidade, a transformação da obra de arte em mercadoria: esses
são alguns dos elementos que nos permitem compreender as próprias transformações
internas do circuito da Moda.

Portanto, o tipo de desfile criado por Rabanne é a consolidação de uma transformação de


dupla proporção: por um lado, a inclusão de materiais sintéticos em desfiles demonstra as
próprias condições de criação da vida contemporânea – a invasão dos sintéticos em todos os
setores da vida cotidiana. Por outro lado, as manequins ganham destaque e passam a dividir,
na condição de celebridades, o espaço que os estilistas e os próprios artistas tinham no circuito
criativo. A fama se torna o combustível de todo e qualquer acontecimento de destaque.

Podemos perceber um debate mais apurado sobre a idéia de uma vida que se artificializa,
uma vida de plástico, através das produções da Pop Art. A expansão do uso do plástico
em todos os tipos de produtos já havia sido amplamente ironizada nas esculturas gigantes
de Claes Oldenburg. Essas esculturas não apresentam qualquer rigidez, e parecem formas
“desfalecidas”. As propostas de monumentos públicos realizadas por Oldenburg trazem
elementos banais, da vida banal cotidiana – batons e bolas de basquete – para escalas
gigantes. Assim, esses “monumentos” apontam para uma realidade de segunda categoria,
reproduzida artificialmente para as massas. O “bazar” criado pelo artista também apresenta
uma variedade de objetos da vida de plástico que invadia os Estados Unidos na década de
1950, assim como as geringonças eletrodomésticas e os gadgets.

A utilização de objetos do cotidiano, reaproveitados no processo de produção artística,


alegava o “banal” como palavra de ordem. A pintura feita por Roy Lichtenstein de histórias
em quadrinhos, a reprodução indiscriminada da imagem de celebridades como Marilyn
Monroe, demonstrada por Warhol, e o uso de recursos da publicidade na arte refletiam o
triunfo da cultura de massa ocidental.

O surgimento da moda juvenil traz a categoria unissex como o novo conceito de vida
contemporânea. Desde a década de 1960 até os dias de hoje o tênis, a t-shirt, a calça jeans e
o estilo rock-n-roll compõem o visual da juventude urbana e tornaram-se signos máximos
do despojamento e da rebeldia. Entretanto, entre as décadas de 1960 e 70 explode o
movimento Punk nos bairros operários ingleses. Esse movimento cultural e ideológico
formalizou sua estética pelo uso de roupas em couro, coturnos, cabelos espetados e rostos
pintados de preto, fazendo uma referência direta à situação do proletariado inglês. O
cenário cultural que se desenha a partir dessa época é uma ruptura estética com os padrões
modernos até então válidos. A produção em larga escala de commodities e a consolidação
de um star-system, povoado de celebridades efêmeras e alimentado pela cinematografia
americana, a indústria hollywoodiana, fornece a nova estética de consumo correspondente
ao capitalismo pós-industrial.

O movimento Punk produz, através de seu visual áspero e de sua música desestruturada e
ruidosa, uma crítica ao status quo forçado por essa nova sociedade de consumo. Os estilos
juvenis e suas respectivas trilhas sonoras passam então a ser a nova fonte de inspiração
para os novos estilistas, a exemplo de Vivienne Westwood. Considerada “mãe” da moda
punk, Westwood transforma em commodities os signos de protesto do Punk, assim como
a indústria fonográfica já havia feito com o próprio punk-rock. Uma vez transformado
em produto da cultura de massa, considerado um estilo, o movimento Punk assume
sua inevitável decadência e fim. Mas as peças sobreviveram nas linhas de produção, e os
penteados pontiagudos resistiram por alguns anos.

O que a Moda produz a partir de então é uma sucessão de negociações com os diversos

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campos da cultura de massa. Municiada pela indústria fonográfica, desemboca numa
sucessão de estilos que atravessam as décadas posteriores: a psicodelia das décadas de 1960
e 70; o disco dos anos 1970; o yuppie da década de 1980; a androginia e o grunge dos anos
1990. O interesse pela criação de figurinos de balé é, em grande parte, substituído pelo
destaque dado aos figurinos dos espetáculos de música. O estilista Jean-Paul Gaultier, por
exemplo, produz o figurino de vários shows da popstar Madonna.

Diante da profusão de estilos e possibilidades, a ampliação do sistema da moda chega ao


gerenciamento absoluto dos estilos de vida. Os elementos estéticos podem ser capturados
na cultura de rua e nos guetos, como no caso das peças oversized dos astros do Hip-Hop
conjugadas às jóias ostensivas, casacos de pele, bonés e tênis desamarrados.

A estratégia contemporânea é a citação, a remodelação de peças utilizadas em outras


épocas sob a perspectiva dos materiais e design contemporâneos e a influência do último
videoclipe. Com essa dinâmica de criação e produção das coleções amplia-se a proposta
“pós-modernosa” do “tudo-ao-mesmo-tempo-agora”. Assim, é possível assistir a Semanas de
Moda que conjuguem coleções que fazem referências a toda ordem de coisas. A mobilidade
permanece, mas agora não se refere mais aos sistemas de transporte, ao espaço físico e
geográfico da cidade, mas a uma idéia de comunicabilidade. Ser móvel já não se refere
ao trânsito do corpo pela cidade, mas à conectividade do indivíduo contemporâneo. É
a informação imediata que, de certa forma, “comanda o show”, as coleções e o próprio
discurso sobre a moda na atualidade.

No cenário brasileiro de moda, dois grandes eventos ganham força: a São Paulo Fashion
Week e a Rio de Janeiro Fashion. O elemento “juventude” permanece reelaborado pela
citação da literatura brasileira, do desenho animado americano das décadas anteriores ou do
mangá contemporâneo, até das divas do cinema das décadas de 1940 e 50 e, principalmente,
da cultura popular. No caso do Brasil, a temática “natureza” aparece numa referência direta
à fauna e à flora nacionais – a Amazônia, o Pantanal e a Mata Atlântica são argumentos de
estilo, utilizados em estampas e no recurso aos materiais orgânicos. Um jogo de marketing
social promove a substituição das peles originais por sintéticos politicamente corretos.

O que está em questão na Moda contemporânea? A ruptura estética promovida pela ascensão
da cultura de massa nas décadas de 1950 e 60, como nova fonte de elementos visuais,
permitiu amplamente uma descontinuidade ofegante de estilos. Agora, um sistema de
produtos da sociedade pós-industrial é capaz de reproduzir e disseminar, incessantemente,
imagens sampleadas dos modelos anteriores. Uma espécie de recorte/cole, pedaços copiados
e detalhes relidos, embora não façam qualquer referência a uma possibilidade de todo. Ou
seja, não são capazes de, uma vez reunidos, promover uma perspectiva de conjunto. Esses
retalhos são uma espécie de hipertexto, uma lógica aberta continuamente alimentada pelos
resíduos informativos da vida contemporânea.


Para melhor visualização da cronologia dos estilos contemporâneos, ver: Les Grands Moments de la Mode (1997).

3. Referências

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