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aula
DUPLA ARTICULAÇÃO DA LINGUAGEM
Meta

Apresentar referenciais teóricos que sustentam a


constituição da linguagem humana numa dupla
articulação, levando em consideração que é isto
que diferencia o homem do animal.
Objetivos

Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:

• identificar as duas articulações como compo-


nentes da linguagem humana;

• reconhecer as características da linguagem


humana e da comunicação animal.
AULA VII
DUPLA ARTICULAÇÃO DA LINGUAGEM

7
Aula
1 INTRODUÇÃO

Na aula passada, você viu que humanos e animais se


comunicam entre si e uns com ou outros, mas que a linguagem
é um faculdade exclusivamente humana. Vamos, nesta aula,
verticalizar um pouco a discussão, revisitando o conceito de
Èmile Benveniste sobre recursividade, bem como os estudos
sistematizados por André Martinet, funcionalista francês que
figura como principal referência no que se refere à dupla
articulação da linguagem. Também buscaremos Saussure e
Chomsky, novamente, para percebemos as relações imbricadas
entre as suas concepções e as de Martinet. Veremos alguns
exemplos que ilustrarão os pressupostos com o fito de torná-
los mais compreensíveis. Preparados? Então vamos!

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Introdução aos estudos linguísticos Dupla articulação da linguagem

2 A DUPLA ARTICULAÇÃO DA LINGUAGEM

Linguista francês e importante representante


U V
a F R do movimento funcionalista, André Martinet
K
C AM nasceu a 12 de abril de 1908, em Saint-Albans-
des-Villards (Savoie), e faleceu a 16 de julho de
SAIBA MAIS

1999, em Châtenay-Malabry. Em sua juventude,


teve intenso contato por correspondência com os
membros do Círculo Linguístico de Praga, o que
lhe permitiu conhecer o movimento estruturalista
e, com outros nomes de igual importância,
desenvolver mais tarde o funcionalismo. O
mestre distinguiu-se principalmente pelo
desenvolvimento do funcionalismo, na sequência
do estruturalismo, e por ter aplicado este
paradigma linguístico à fonologia, morfologia e
sintaxe do francês. André Martinet influenciou
também a linguística brasileira, principalmente
Figura 1 - André Martinet, principal referência
nos escritos do linguista brasileiro Joaquim
em dupla articulação da linguagem. Fonte:
Mattoso Camara Júnior. http://www.unc.edu/~melchert/martinet2.jpg.

André Martinet afirma que a linguagem é duplamente


articulada. Você sabe o que quer dizer isso? Antes, deverá
entender o que é articulação.
Originada do latim, a palavra articulus significa
“parte, subdivisão, membro”. Desta forma, quando se diz
que a linguagem é articulada, o que se deve entender é que
as unidades linguísticas são suscetíveis de ser divididas,
segmentadas, recortadas em unidades menores. Para Martinet,
todo enunciado da língua articula-se em dois planos.
Fonema é a menor
unidade de som de No primeiro, temos a divisão do enunciado linguístico em
uma língua, com valor unidades significativas mínimas, que são os monemas, unidade
distintivo, mas des-
provida de significado. constituída de significante e significado (Lembra do signo
Em português, disti- saussuriano?). Vale lembrá-lo que o significado dificilmente
guem-se entre si vocá-
bulos como bata e pata pode ser analisado em unidades menores. Entretanto, o aspecto
ou gata e cata pelo vocal ou significante é composto por unidades distintivas
traço fônico [sonoro ou
não-sonoro] contido mínimas, os fonemas, que constiuem a segunda articulação.
no primeiro fonema de Vamos entender o primeiro plano? A palavra “recontar”
cada um dos vocábulos
(Dicionário Aulete Di- pode ser decomposta em três monemas: “re”, “con”, e “tar”.
gital). Com esses três monemas, podemos criar outras palavras:

1. A partir do monema “re”, pode-se compor palavras


como: rever, relatar, retocar, reler, recomeçar
etc.

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2. A partir do monema “con”, pode-se compor:
contemporizar, concretizar, conversar, convergir,
concordar, condensar etc.
3. A partir do monema “tar”, pode-se derivar: contar,
estar, pintar etc.

Entendeu? Veja outro exemplo: A frase Os meninos


brincavam pode ser segmentada nos seguintes monemas: o,
artigo definido; -s, monema de plural; menin-, radical que
conduz ao sentido de garoto/a; -o, monema de masculino; -s,
monema de plural; brinc-, radical do verbo brincar; -a, monema
que indica que o verbo pertence à primeira conjugação; -va,
monema modo-temporal que indica o pretérito imperfeito do
indicativo; -m, monema número-pessoal que indica a 3ª pessoa
do plural.
Da mesma forma como fizemos no exemplo anterior,
cada uma dessas unidades pode ser substituída por outra no
eixo paradigmático ou só combinar-se com outras no eixo
sintagmático (como você viu na Aula 5, quando estudou sobre
esses paradigmas). Com isso, podemos ter inúmeras frases,
inúmeras palavras... Lembra do que preconiza Chomsky? A
partir de um conjunto finito, pode-se elaborar um conjunto
infinito...
Agora vamos entender o segundo? Cada monema pode
segmentar-se em unidades menores, destituídas de sentido.

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Essas unidades, como você já sabe, são os fonemas. Por

Aula
exemplo, o monema brinc- se articula nos fonemas /b/, /r/, /i/,
/n/ e /c/. Nesse plano, as unidades têm apenas valor distintivo.
Deste modo, quando se substitui o /b/ do monema brinc- por
/t/ se produz um outro radical, trinc-, de trincar, por exemplo.
Você deve perceber que a dupla articulação da linguagem
é um mecanismo de economia linguística. Com poucas dezenas
de fonemas, cujas possibilidades de combinação estão longe
de ser todas exploradas em cada língua, formam-se milhares
de unidades de primeira articulação. Com alguns milhares
de unidades de primeira articulação, forma-se um número
ilimitado de enunciados. Assim, se precisássemos atribuir um
som diferente para cada coisa ou objeto, teríamos que produzir,
distinguir e memorizar milhões de sons diferentes, o que é
inviável diante da nossa capacidade fonatória, auditiva e da
memória.

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Introdução aos estudos linguísticos Dupla articulação da linguagem

Conforme Martinet, na primeira articulação, existem


as unidades significativas do plano da expressão, onde se
circunscrevem fonética, morfologia e sintaxe e, na segunda
articulação, as unidades fonológicas do plano do conteúdo,
compreendendo os campos de estudo da fonologia e da
semântica.
Entendeu? Para complementar a compreensão, observe
o seguinte diagrama:

DUPLA
ARTICULAÇÃO DA
LINGUAGEM

MONEMAS FONEMAS

Unidade mínima constituída de


significante e significado; pode Menor unidade de som de uma
vir a ser um radical (um lexema, língua, com valor distintivo mas
que muitas vezes coincide com desprovida de significado.
uma palavra)

PLANO DE PLANO DO
EXPRESSÃO CONTEÚDO

Fonética,
Fonologia e
morfologia e
Semântica
sintaxe

Assim podemos visualizar melhor a inventividade da dupla


articulação da linguagem. Na primeira, utilizamos unidades com
conteúdo semântico e expressão fônica – os monemas; a partir
disto, podemos construir uma quantidade infinita de diferentes
mensagens; na segunda, ocorre a expressão fonética dessas
mensagens, articuladas em unidades distintas, sucessivas e
destituídas de significados, os fonemas, que têm número fixo
em cada língua.

3 ARTICULAÇÃO ANIMAL X ARTICULAÇÃO HUMANA:


CARACTERÍSTICAS

Por experiência, sabemos que o homem reagirá a certos


estímulos do ambiente com respostas diferentes. Essa variação

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ocorre principalmente pela influência da
sua cultura, sua cadeia simbólica e o meio
em que vive. O homem aprende músicas,
piadas, poemas, palavrões, filmes etc. e
tem condições de adaptar os significados
às mais variadas situações. No extremo
oposto, estão os animais que, a cada
estímulo externo, respondem com uma
ação, sempre a mesma, que é determinada
por seu código genético: uma cadeia
instintiva e fechada. Um sistema de códigos.
E somente isto.
Essa oposição pretende ilustrar o que
você já estudou sobre a finitude X infinitude
da comunicação animal e linguagem
humana. Na aula anterior, você viu que a
linguagem simbólica é que torna o homem
diferente dos demais seres em termos de
comunicação. Vamos retomar brevemente
algumas ideias para solidificarmos o que
Figura 2 - Seres humanos possuem duas articulações e
está sendo discutido. animais possuem apenas uma articulação
Fonte: UAB/UESC
A linguagem simbólica e a dupla
articulação da linguagem possibilitam uma
disseminação de sentidos que é evidenciada por eminentes

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autores como Jorge Luis Borges, que, em sua sexta conferência

Aula
em Harvard, tenciona discutir a dimensão alusiva da linguagem:

Eu queria expressar tudo. Pensava, por exemplo,


que, se precisava de um pôr-do-sol, devia encontrar
a palavra exata para o pôr-do-sol – ou melhor, a mais
surpreendente metáfora. Agora cheguei à conclusão (e
essa conclusão talvez soe triste) de que não acredito
mais na expressão: acredito somente na alusão.
Afinal de contas, o que são as palavras? As palavras
são símbolos para memórias partilhadas. Se uso uma
palavra, então vocês devem ter alguma experiência
do que essa palavra representa. Senão a palavra não
significa nada para vocês. Acho que podemos apenas
aludir, podemos apenas tentar fazer o leitor imaginar. O
leitor, se for rápido o suficiente, pode ficar satisfeito com
nossa mera alusão a algo (BORGES, 2000, p. 122).

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Introdução aos estudos linguísticos Dupla articulação da linguagem

Perceberam que o poeta, tal como Peirce e outros,


define a palavra como símbolo? A peculiaridade da linguagem
humana baseia-se no seu referencial simbólico porque a
palavra exprime um conceito, e, como bem disse o poeta, faz
alusões. A situação de interação, a refacção da mensagem, a
competência para reorganizá-la e devolvê-la ao outro depois
de reprocessá-la constituem o que Benveniste definiu como
recursividade. E é disto que, em outras palavras, nos falou o
poeta.
Como já viu na aula anterior, o que difere a linguagem
humana da comunicação animal é o fato de o animal não
conhecer o símbolo, mas somente o índice. E o índice se
relaciona de forma fixa e única com a coisa a que se refere. O
adestramento de animais, por exemplo, é feito com base nas
repetições de frases ou gestos que indicam algo bem específico;
são, portanto, índices.
Outra característica que se pode apontar em relação
às duas articulações (animal e humana) é que a comunicação
animal dirige-se para a adaptação a uma situação concreta,
pois a inteligência dos animais ainda é concreta; enquanto a
linguagem humana pode intervir abstratamente, distanciando o
homem da experiência vivida, tornando-o capaz de reorganizá-
la num outro contexto e lhe impingir um novo sentido.
No que se refere ao tempo, é pela palavra que somos
capazes de nos situar; evocamos o passado e antecipamos o
futuro pelo pensamento. Já o animal vive sempre no presente.
Estas são, portanto, mais algumas características que
diferenciam a linguagem humana da comunicação animal.
Vamos agora fazer algumas atividades!

ATIVIDADE
1. A dupla articulação da linguagem é um importante princípio postulado por André
Martinet. A partir dos pressupostos apresentados, conceitue a dupla articulação.
Em seguida, cite cinco exemplos da primeira articulação, e, decompondo partes
destes mesmos exemplos, cite cinco da segunda.

2. Segmente a frase abaixo em monemas, e, depois, escolha três deles e faça


novas composições:

a) Os cachorros correram.

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3. Você é capaz de reconhecer as características (que foram abordadas nesta
aula) da linguagem humana e da comunicação animal? Para sedimentar as
informações, preencha o quadro abaixo:

LINGUAGEM HUMANA LINGUAGEM ANIMAL

Infinita Finita

4. Preencha a segunda coluna de acordo com as caratecterísticas dos seres


apresentados na primeira:

Coluna 1 Coluna 2
(a) Homem. ( ) Tem inteligência concreta.
(b) Animal. ( ) Reconhece somente índices.
( ) Tem inteligência abstrata.
( ) Re-contextualiza signos.
( ) Age por repetição, condicionamento.

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( ) Reage somente a ações codificadas.

Aula
( ) É capaz de estabelecer conexões conceituais.
( ) Reconhece e se comunica por símbolos.

5. Imagine que você esteja conversando com


uma pessoa leiga no assunto “linguagem
humana e comunicação animal”. Ela olha a
imagem ao lado e lhe pergunta: “Agora, que é
estudante de Letras, pode me explicar qual é a
diferença entre linguagem humana e animal?”
Que resposta daria a esta pessoa?

Figura 4 - Jovem com um cavalo.


Fonte: UAB/UESC.

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Introdução aos estudos linguísticos Dupla articulação da linguagem

RESUMINDO
4 RESUMO

Nesta aula, você viu que:

● André Martinet elaborou o estudo mais profundo acerca da


“dupla articulação da linguagem”, postulando que, na primeira
articulação, existem as unidades significativas do plano da
expressão, os monemas, onde se circunscrevem fonética,
morfologia e sintaxe.

● Na segunda articulação, as unidades fonológicas do plano do


conteúdo, compreendendo os campos de estudo da fonologia e
da semântica. Os fonemas são destituídos de significado, mas
têm valor diferencial; servem para diferenciar uma palavra de
outra.

● O homem possui características diferentes dos animais no que


se refere aos signos utilizados para comunicação. Enquanto o
homem usa os símbolos, os animais interagem pelo índice. O
homem pode voltar ao passado e antecipar o futuro; já o animal
vive no presente. A inteligência do homem é abstrata enquanto
a dos animais é concreta.
Para complementar esta aula, recomendo a leitura dos livros de LYONS, John. Linguagem

LEITURA RECOMENDADA
Para complementar esta aula, recomendo a leitura dos livros de LYONS, John. Linguagem e
Linguística: uma introdução. Trad. Marilda Winkler Averbug, Clarisse Sieckenius de Souza. Rio de
Janeiro: Padrão, 1995 e de MARTINET, A. Elementos de linguística geral. Trad. Jorge Morais-
Barbosa. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Na próxima aula... vamos continuar tratando do assunto “linguagem humana”,


complementando com Elementos da comunicação e Funções da linguagem. Até lá!

114 Módulo 1 I Volume 3 EAD


5 REFERÊNCIAS

BASILIO, M. O conceito de vocábulo na obra de Mattoso


Câmara. Revista de documentação de Estudos em
Linguística Teórica e aplicada – DELTA. v. 20, n. especial,
REFERÊNCIAS

2004, p. 71-84.

BATTISTI, E. ; VIEIRA, M. J. B. O sistema vocálico do


português. In: BISOL, Leda (Org.). Introdução a estudos
de fonologia do português brasileiro. 2. ed. Porto Alegre:
Edipucrs, 1999. p. 229-241.

BLOOMFIELD, L. Language. Boston: George Aleen & Unwin,


1979.

BORGES, J. L. Esse ofício do verso [This craft of verse].


Trad. de J. M. Macedo. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

CAMARA JR., J. M. Dicionário de lingüística e gramática.


16. ed. Petropólis: Vozes, 2001.

CAMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. 37.


ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

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CAMARA JR., J. M. Para o estudo da fonêmica portuguesa.
Rio de Janeiro: Padrão, 1977.

Aula
CAMARA JR., J. M. Problemas de lingüística descritiva.
17. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

CARVALHO, Castelar de. Para Compreender Saussure:


fundamentos e visão crítica. Petrópolis: Vozes, 2000.

FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Linguística I:


Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002.

HOFFMANN, W. Disponível em http://pepsic.bvs-psi.org.br/


scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010110620070002000
10&lng=pt&nrm=iso#3a. Acesso em: 15 jul. 2009.

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LYONS, John. Linguagem e Linguística: uma introdução.
Trad. de Marilda Winkler Averbug, Clarisse Sieckenius de Souza.
Rio de Janeiro: Padrão, 1995.

MARTINET, A. Elementos de lingüística geral. 8. ed. Trad.


de Jorge Morais-Barbosa. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. O que é Lingüística. São Paulo:


Brasiliense, 1999.

SILVA, Thaís Cristófaro. Fonética e Fonologia do Português.


São Paulo: Contexto, 2001.

WEEDWOOD, Bárbara. História Concisa da Lingüística.


Trad. de Marcos Bagno São Paulo: Parábola, 2002.

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display/0,5912,-21-99-846- 00.html. Acesso em: 17 ago.
2009.
Suas anotações
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