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A Pedagogia da Alternância e a identidade do monitor: as

contribuições de Paulo Freire e Vygotsky

Jeferson Casale Tomazeli1; Professor Orientador: Diemerson Saquetto2


1Estudantedo Curso de Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Ensino Humanidades
do Instituto Federal do Espírito Santo - PPGEH - IFES; E-mail: jefftomazeli@gmail.com,
2Docente/pesquisador do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu de Ensino em Humanidades –

PPGEH – IFES. E-mail: saquettto@gmail.com.

RESUMO

Este trabalho pretende discutir alguns aspectos da Pedagogia da Alternância e as


especificidades do trabalho do professor que atua nesta perspectiva pedagógica,
denominado Monitor. Para isso, utilizaremos o embasamento de teóricos da PA e da
Educação do Campo para subsidiar nossos pressupostos. Faremos um diálogo com
as ideias de Paulo Freire, em suas obras mais conhecidas, a saber: Pedagogia do
oprimido e Pedagogia da autonomia, em estreita relação com os postulados de
Vygotsky, em sua abordagem da psicologia histórico-cultural. Os postulados de
ambos os pensadores estabelecem profunda relação com o trabalho desenvolvido na
EFA pelos monitores, lançando bases para uma discussão profícua.

PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia da Alternância; Monitor; Paulo Freire; Vygotsky

ABSTRACT

This work intends to discuss some aspects of the Pedagogy of Alternation and the
specificities of the work of the teacher who works in this pedagogical perspective, who
is called Monitor. For this, we will use the theoretical basis of PA and Rural Education
to support our assumptions. We will make a dialogue with the ideas of Paulo Freire, in
his best known works: Pedagogy of the Oppressed and Pedagogy of Autonomy, in
close relationship with Vygotsky's postulates, in his approach to cultural-historical
psychology. The postulates of both thinkers establish a deep relationship with the work
developed at EFA by the monitors, laying the foundations for a profitable discussion.

KEY WORDS: Pedagogy of Alternation; Monitor, Paulo Freire; Vigotsky


INTRODUÇÃO

Nosso objetivo com este trabalho é evidenciar as especificidades da Pedagogia da


Alternância, modelo pedagógico adotado pelas Escolas Famílias Agrícolas (EFAs),
instituições de ensino vinculadas ao MEPES – Movimento de Educação Promocional
do Espírito Santo e suas implicações na construção da identidade docente do monitor,
denominação dada ao professor que nela atua. Para isso, recorreremos à leitura de
Freire, em Pedagogia do oprimido e Padagogia da autonomia e a teoria de Vygotsky,
na qual o homem aprende em função de suas interações sociais e condições de vida.
Buscaremos aproximações entre a concepção de educação e educador destes
pensadores e os ideais da Educação do Campo.

As obras de Paulo Freire e Vygotsky têm sido reconhecidas, mundialmente, como


contribuições de grande valor ao pensamento pedagógico, recebendo merecido
destaque em debates na academia. As origens destes pensadores são muito
diferentes. Freire, brasileiro, nascido em Recife em 1921 e falecido em 1997;
Vygotsky, nascido na Bielo-Rússia, em 1986 e falecido em 1934. Contudo, ambos
propõem questões que se entrelaçam em direção de uma educação cidadã, popular.
Somos, então, apresentados a seguinte questão: como se dá a aproximação entre as
teorias de Freire e Vygotsky dentro do processo pedagógico? Ambos os pensadores
partem dos pressupostos da dialética, e um dos princípios básicos dos dois
pensadores é a educação como prática política. Faremos, então, neste trabalho,
aproximações entre estas duas vertentes de pensamento e a Educação do Campo,
sob a perspectiva da Pedagogia da Alternância.

Para isso, faz-se necessário compreender a proposta pedagógica da Pedagogia da


Alternância, bem como entender o que é a Educação do Campo. A PA constitui-se de
um método pedagógico surgido na França, em 1935, como resposta aos problemas
sociais enfrentados pelos agricultores da região à época. O desinteresse dos jovens
camponeses pela educação era crescente. Os filhos dos agricultores recusavam-se a
frequentar a escola, pois não se enxergavam nela. Este contexto de desconexão entre
sujeito e o ambiente educativo exigia um novo método de se fazer educação, um
método que fosse capaz de traduzir o modo de vida daquele grupo social.
Um novo modelo pedagógico surge, então, deste desequilíbrio entre o sujeito e o
objeto. Uma pedagogia empenhada em dar ao homem do campo e à sua identidade
papel central na escola e no processo educativo. Uma pedagogia pensada para
produzir a vida. Nas palavras de Gimonet (2007),

a Pedagogia da Alternância elaborou-se não através de teorias, mas, antes,


pela invenção e implementação de um instrumental pedagógico que traduzia,
nos seus atos, o sentido e os procedimentos da formação. Em outras
palavras, neste processo criativo, prevaleceu a ação, a experiência, o
sucesso no sentido de J. Piaget, isto é, um pensamento em ação. E só é
depois – talvez também um pouco ao mesmo tempo – que, sempre segundo
a lógica piagetiana, opera-se a abordagem da compreensão e que uma
teorização pode ser levada em frente. Uma teorização, não para si mesma,
mas como processo de compreensão, ao mesmo tempo para nutrir a
experiência, a ação do terreno, dar-lhes sentido. Deste jeito, para situar-se
no horizonte educativo, não estar só e isolado, mas em relação com os outros
e, às vezes, para municiar-se de argumentos a fim de se defender dos donos
do tradicionalismo ou dos poderes administrativos. (GIMONET, 2007, p. 23)

Os camponeses passam, então, a assumir papéis de atores responsáveis pelo


desenvolvimento pessoal e do meio em que viviam. Este movimento foi motivado
através de sua militância, de sua energia, de suas análises e reflexões, dos valores
que defendiam, de suas perspectivas e de suas esperanças. Líderes rurais
começaram a surgir, eram atores engajados no seu meio. Estavam impregnados da
preocupação pelo futuro de seus filhos, de sua profissão, da agricultura, da vida rural.
Logo, por se tratar de uma nova proposta pedagógica, surgem juntamente com ela,
novas exigências sobre aqueles que nela desempenharão papeis de construtores de
conhecimentos.

UMA BREVE SÍNTESE SOBRE A GÊNESE DA PEDADGOGIA DA ALTERNÂNCIA


NO BRASIL

A Pedagogia da Alternância surge no Brasil em 1968, ensaiando um novo tipo de


Escola para o meio rural capixaba, isto é, a Escola da Família Agrícola (EFA). O
interesse que suscita uma nova iniciativa educacional para o mundo rural decorre da
evidente crise do ensino do meio rural e, num sentido mais geral, da própria crise do
homem contemporâneo com relação à terra. Se a crise da escola é universalmente
proclamada, a crise da escola do meio rural é ainda mais evidente, embora suas
conotações específicas sejam menos claras. Em todo caso, o interesse para novas
alternativas educacionais, hoje, é muito forte.

A PA surge, no Brasil, dentro deste contexto de crise e com intenção de se tornar uma
alternativa ao ensino tradicional. A partir desta premissa é que nasce o MEPES –
Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo, com sua experiência
educacional representada pela Escola Família Agrícola.

Esta nova proposta não intenciona apenas solucionar problemas concretos da região
na qual está inserida, mas também pretende ressignificar, de maneira mais profunda,
a história e a organização social daqueles que dela fazem parte, constituindo-se como
válida alternativa a todo o sistema escolar tradicional.

O homem rural da década de 1960 no Brasil estava em crise. O êxodo rural era um
problema que se agravava a cada dia. A educação oferecida ao público camponês
não refletia o interesse daquela parcela da população, o que forçava os jovens a
buscar alternativas no meio rural. Sobre isso, Nosella (2012) afirma que

o campo desperta a atenção do homem contemporâneo, não apenas pelo


fenômeno regional do fracasso do ensino rural, e sim, talvez, por ele perceber
que sua própria crise fundamental é consequência de sua ruptura com a terra.
O homem das metrópoles parece reviver o significado do antigo mito grego:
enquanto o herói permanecia em contato com a terra-mãe, ele era invencível;
logo que perdeu esse contato, sua vulnerabilidade tornara-se fatal. É uma
crise que, em sua manifestação mais aguda, se expressa no desamor que o
próprio homem do campo, pressionado pela conjuntura de interesses
econômicos particulares e imediatos, tem para com sua terra, odiando-a e
fugindo dela. (NOSELLA, 2012, p. 35-6)

O homem rural se constitui no relacionamento essencial com a terra. Ele se reconhece


enquanto habitante do meio rural, filho da terra. A própria história da humanidade tem
na simbologia da civilização a relação entre homem e terra como ponto central. O
abandono da terra não se dá sem grandes consequências para o homem.

Em suma, podemos dizer que a Escola Família Agrícola é uma experiência que
extrapola o campo educacional, alarga suas raízes em direção aos problemas do
homem contemporâneo. Ela se justifica ainda a partir da preocupação sobre os rumos
que estão sendo tomados pela sociedade, que abraçou os processos de urbanização
e industrialização como modelos a serem seguidos, dos quais não conseguem
escapar os homens, que parecem perder não só o controle de si mesmos como
também a própria capacidade de uma reflexão séria e profunda sobre a sociedade.

COMPREENDENDO A PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA POR MEIO DE SUAS


MEDIAÇÕES PEDAGÓGICAS: CONTRIBUIÇÕES DOS PENSAMENTOS DE
FREIRE E VYGOTSKY

É importante compreender com clareza o que é a Pedagogia da Alternância para que


possamos melhor entender como ela se propõe a oferecer uma pedagogia própria e
apropriada ao homem rural, com vistas a transformação social por meio do
desenvolvimento de uma visão crítica do mundo pelo jovem. Neste sentido, segundo
Nosella (2012, p. 29-30),

resumidamente, podemos dizer que a denominação “Pedagogia da


Alternância” se refere a uma forma de organizar o processo de ensino-
aprendizagem alternando dois espaços diferenciados: a propriedade familiar
e a escola. Liga-se, pois, tanto pela sua origem como pelo seu
desenvolvimento, à educação no meio rural.[...] A característica própria da
pedagogia da alternância reside na realização do processo ensino-
aprendizagem alternando o período de permanência na escola, geralmente
por uma semana e o período de permanência na vida familiar [...].

Tal pedagogia é embasada em três princípios básicos que, segundo o mesmo autor,
podem ser definidos da seguinte maneira:

1. responsabilidade dos pais e da comunidade local pela educação de seus


filhos;
2. articulação entre os conhecimentos adquiridos por meio do trabalho na
propriedade rural e aqueles adquiridos na escola;
3. alternância das etapas de formação entre o espaço escolar definido pelas
“Escolas Família Agrícola” e a vivência das relações sociais e de produção
na comunidade rural. (NOSELLA, 2012 p.30)

A práxis1 da PA é fundamentada em seus elementos pedagógicos próprios, que lhe


conferem um caráter diferenciado. Estes elementos são responsáveis por fazer com
que a PA seja uma pedagogia que problematiza a realidade do estudante, partindo do
seu dia a dia no processo de construção de conhecimento. Tais elementos são os

1
Entendemos, neste trabalho, práxis sob o viés freiriano, que a define como práticas visando à transformação da
realidade e à produção de história.
seguintes:
a. Plano de Estudo, constituído por questões elaboradas em conjunto por alunos e
professores-monitores;
b. Caderno da Realidade, que acompanha o aluno em toda sua vida escolar e serve
para ele registrar suas reflexões sobre a realidade a partir das questões constantes
do Plano de Estudo;
c. Viagem e Visita de Estudo;
d. Estágio;
e. Serões;
f. Visita às famílias;
A PA configura-se como um modelo de pedagogia muito mais complexo do que
mostraremos aqui. Contudo, para que entendamos o cerne de seu pensamento,
vamos elucidar aqui seus dois elementos mais básicos: o Tema Gerador e o Plano de
Estudo.

TEMA GERADOR

Importante ressaltar que o desenvolvimento de cada um dos elementos acima


elencados dentro da rotina dos estudantes se dá a partir dos Temas Geradores, que
variam de acordo com a série e a etapa de cada série. Como o desenvolvimento de
todos os elementos pedagógicos se dá a partir de um Tema Gerador, é importante
que se lance uma luz sobre o que são esses temas. Paulo Freire (1987) parte do
pressuposto de que

será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto


de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático
da situação ou da ação política, acrescentemos. O que temos de fazer, na
verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua
situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o
desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível
da ação. (FREIRE, 1987 p. 49)

Para o pensador, a educação deve ser construída a partir de moldes ou recortes que
vão ao encontro de interesses de uma parcela da sociedade, mas deve se dar de
maneira contextualizada. O processo educativo deve ser centrado nos anseios dos
educandos, oferecendo-lhes esperança. Caso contrário, a educação pode aumentar
a opressão sobre os estudantes. Segundo Freire (1987), o papel do educador
não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele,
mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa visão de mundo. Temos de estar
convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias
formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A
ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa
situação, sob pena de se fazer “bancária” ou de pregar no deserto. [...]É o
momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo
temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores. (FREIRE, 1987 p.
49-50)

Para Freire (1987), essa investigação deve elucidar a visão do homem sobre a
realidade que o cerca e os níveis de percepção sobre esta realidade. A partir desta
visão é que surgem os Temas Geradores. Vygotsky, principal expoente da psicologia
histórico-cultural, entende o sujeito socialmente inserido em um ambiente
historicamente construído. Para o pensador, por ser rico em cultura, o meio se
constitiu em uma potente fonte de conhecimento. Vygotsky busca entender como a
cultura torna-se parte integrante de cada ser humano.

Há, nesse ponto, um estreitamento entre a perspectiva interativa dos dois pensadores
se considerarmos o pressuposto básico de Freire como sendo a educação concebida
no viés da libertação como um processo de comunhão entre os homens e a concepção
vygotskyana da interação como ponto de partida para o desenvolvimento individual e
social. No pensamento de Paulo Freire, a relação sujeito-sujeito e sujeito-mundo são
indissociáveis. Como ele afirma (1987), ninguém educa ninguém, ninguém educa a si
mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Freire acrescenta
que

Ainda que esta postura – a de uma dúvida crítica – seja legítima, nos parece
que a constatação do “tema gerador”, como uma concretização, é algo a que
chegamos através, não só da própria experiência existencial, mas também
de uma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens,
implícitas nas primeiras. (FREIRE, 1987 p. 49-50)

Partindo, então, dos pressupostos freirianos, a Pedagogia da Alternância entende os


Temas Geradores como temas que servirão de ponto de partida para o trabalho de
docentes e educandos na Escola Família Agrícola. Neste sentido,segundo Freire
(1987), os Temas Geradores são responsáveis por garantir a interação profunda entre
o educando e sua realidade dentro do processo educativo. Além de potencializar o
aprendizado, os Temas Geradores servem, principalmente, como base de uma
metodologia conscientizadora, oferecendo aos homens uma maneira crítica de pensar
o mundo.

Os Temas Geradores (TG) adotados pelas EFAs são pensados para cada série de
estudos, buscando atender as necessidades dos educandos frente à realidade que os
cerca. A partir, então, do TG surgem as discussões em sala de aula, que culminam
na aplicação daquele elemento que é considerado o “carro-chefe” da Pedagogia da
Alternância, o Plano de Estudo.

Desta forma, as disciplinas deverão pautar seu planejamento a partir do TG e daquilo


que for exposto no Plano de Estudo, de forma a integrar, da maneira mais completa
possível, os conteúdos a serem abordados em aula com a vivência do estudante em
sua família.

PLANO DE ESTUDO

A Pedagogia da Alternância se desenvolve através da aplicação de seus elementos


pedagógicos. São eles que norteiam a práxis pedagógica e o dia a dia nas EFAs. A
realização de todos os seus elementos está interligada, e todos eles surgem de um
ponto de partida em comum: o Plano de Estudo. Sem seus elementos pedagógicos,
a PA seria esvaziada de sentido e não conseguiria promover uma educação
diferenciada, libertadora e crítica. É possível perceber a importância dos elementos
pedagógicos na fala de Gimonet (2007) quando o estudioso diz que

sem instrumentos apropriados permitindo sua implementação, a alternância


permanece sendo uma bela ideia pedagógica, porém sem realidade efetiva.
Porque tudo se prende e a alternância, como outros métodos, funciona como
um sistema em que os diferentes componentes interagem. Sem projetos ou
sem rumos a dar o sentido, as técnicas e os instrumentos pedagógicos
podem ser percebidos como justaposições de atividades escolares e sua
implementação faltar-lhe alma e dimensão. A eficiência educativa e formativa
da alternância é ligada à coerência, existindo entre todos os componentes da
situação de formação e, notadamente, entre as finalidades, os objetivos e os
meios do dispositivo pedagógico. (GIMONET, 2007 p. 28)

A Pedagogia da Alternância se desenvolve em um constante caminhar entre a vida e


a escola. Sua práxis transita entre o saber empírico e o saber científico, voltando
novamente ao saber empírico, transformando-o e, consequentemente, transformando
a realidade daqueles envolvidos no processo. Tomando como referência o ambiente
cultural onde estão situados e se desenvolvem os sujeitos, a abordagem vygotskyana
entende que o processo de construção do conhecimento ocorre através da interação
do sujeito historicamente situado com o ambiente sociocultural onde vive. A educação
deve, nessa perspectiva, tomar como referência toda a experiência de vida própria do
sujeito. Segundo Gimonet (2007), a dinâmica da construção do conhecimento dentro
da PA se relaciona

• ao trabalho e ao mundo da produção e seus saberes, à vida social e


econômica, ambiental e culturaldos lugares onde vive,de um lado;
• a um lugar “escolar” com suas atividades, sua cultura e seus saberes, de
outro lado.
Disto decorrem três exigências:
• a experiência deve ser considerada, ao mesmo tempo, como suporte de
formação,reservatório de saberes e cadinho educativo;
• ela é o ponto de partida do processo para aprender segundo a lógica do
“praticar e compreender” e antecede, desta maneira, o tempo escolar;
• no ritmo de alternância, a duração da experiência é pelo menos igual, até
mesmo superior à duração da estadia na EFA. (GIMONET, 2007 p. 29)

Dessa forma, a PA intenciona fazer a ligação entre os dois espaços em que o


educando está inserido: família e escola. A proposta é criar uma educação contínua
mesmo dentro da descontinuidade de atividades escolares, de maneira coerente e
acolhedora. Visto a alternância entre esses dois diferentes espaços, a autonomia é
um fator de grande importância na PA. Os elementos pedagógicos, quando bem
aplicados, são responsáveis por ajudar o educando a alcançar a autonomia, que nas
palavras de Gimonet (2007),

lhe permite aprender mais e melhor. De fato, o que aprende fora do CEFFA
lhe confere, quando volta nele, o poder de um saber que nem os monitores e
nem os outros membros possuem. Por isso, os saberes dos alternantes do
grupo, colocados em comum e partilhados, constituem um suporte essencial
de aprendizagens. (GIMONET, 2007 p. 30-31)

É neste sentido que percebemos a importância do Plano de Estudo, que, segundo o


mesmo autor serve

como instrumento de pesquisa ou guia de trabalho, determina, em boa parte,


a motivação do alternante e dos adultos que o acompanham. Determina
também a qualidade do estudo realizado. Sua construção se reveste da maior
importância para atingir os efeitos formadores esperados. (GIMONET, 2007
p. 35)
Trata-se de um roteiro de pesquisa elaborado de maneira conjunta entre professores
e alunos acerca de um determinado assunto partindo do Tema Gerador. Esse roteiro
deve ser respondido pelo educando no momento da alternância, junto à família ou
outra pessoa a quem possa se destinar os questionamentos. Segundo Gimonet (2007,
p. 35), o PE é elaborado de maneira oral, animado e motivado pelos professores,
atividade que deve trazer à tona os pontos a serem investigados sobre o tema
proposto. Trata-se menos de fazer surgir perguntas do que permitir uma tomada de
consciência das questões que surgem. Ainda segundo o estudioso,

elaborar o conteúdo do plano de estudo é provocar o intercâmbio no meio do


grupo, deixar que as práticas sejam expressas, as experiências, os
conhecimentos,as interrogações dos alternantes a respeito do tema. É
convidá-los a procurar o “porquê e o como” das coisas, as circunstâncias das
ações e sua razão de ser. É ainda levá-los a avaliarem, a darem seu ponto
de vista como atores socioprofissionais. (GIMONET 2007, p. 35)

O produto dessa elaboração deve ser um questionário que não seja uma lista de
perguntas a serem respondidas, construídas pelos professores, mas um produto do
próprio jovem, onde seus anseios acerca do assunto sejam traduzidos. Trata-se,
portanto, de um questionário personalizado, de um questionamento aberto, que
coloque o educando em movimento e desperte nele a curiosidade e a busca pelo
conhecimento.

Ao retornar à EFA, os estudantes têm o momento de Colocação em Comum, no qual


todos os alunos relatam e discutem sobre as respostas obtidas em seus Planos de
Estudos. É neste momento em que a PA atinge seu clímax, pois é aí que os
conhecimentos de vida dos educandos e de sua família são trabalhados de maneira
prática na escola. É exatamente nesse momento que o conhecimento científico é
construído a partir da vivência do estudante, fazendo com que a atividade educativa
ganhe novos significados, a medida em que o aluno se reconhece como parte central
deste processo, e não um mero expectador. Após a Colocação em Comum, o Plano
de Estudo irá reger as atividades desenvolvidas em todas as disciplinas da EFA, que
devem dialogar constantemente com o assunto abordado na pesquisa.

Para Vygotsky, a construção do conhecimento se dá a partir de uma ação partilhada,


que incorre em um processo de mediação entre os sujeitos. Dessa forma, a interação
social é algo imprescindível para a aprendizagem. As diferenças entre os sujeitos que
se relacionam enriquece o diálogo, promovendo cooperação e informação, o que
promove a ampliação das capacidades individuais. Na perspectiva da Pedagogia da
Alternância, o processo de construção de conhecimento se dá majoritariamente por
meio da interação entre os educandos, o meio e os professores. O conhecimento
passa por diversos momentos de transformação até ser internalizado pelos sujeitos.
Vygotsky (1991) evidencia o processo de internalização, que consiste em várias
transformações:

a)Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é


reconstruída e começa a ocorrer internamente. (...) b) Um processo
interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Todas as funções no
desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social,
e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e,
depois, no interior da criança (intrapsicológica). (...) c) A transformação de um
processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa
série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento. (VYGOTSKY, 1991,
p. 64)

Freire propõe a educação como ato dialógico, e Vygotsky traz a linguagem como
principal elemento de mediação no processo educativo. Ambos têm em comum o
diálogo como ponto central na ação pedagógica. Os postulados de ambos convergem
para o ponto central da Pedagogia da Alternância: a educação como ato histórico e
também dialógico.

O PAPEL DOCENTE NA PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: RECONHECENDO O


PAPEL DO MONITOR EM PAULO FREIRE E VYGOTSKY

Embora não tenhamos em Paulo Freire uma teoria da aprendizagem sistematizada


como em outros pensadores, suas contribuições à educação no Brasil são
fundamentais, principalmente quando falamos de Educação do Campo. Uma de suas
principais contribuições é a sua crítica à educação tradicional, como vemos em
Pedagogia do Oprimido (1987), onde o autor traz o conceito de educação bancária.
Segundo Freire, o sujeito que está aprendendo na educação bancária é tratado como
um lugar onde se deposita verdades, e isso não seria um processo de aprendizagem
uma vez que não há diálogo.

Para Freire (1987), o aprendizado era o principal meio de se fazer humano. O


educador entendia que se aprende na relação com o outro, no diálogo com outro, na
aproximação dele com o conhecimento do outro. Esse aprender coletivo tem a ver
com o conhecimento sistematizado pelas outras pessoas. Saber que você precisa
escutar e aprender com o outro é fundamental para romper com uma lógica de
educação tradicional.

Outro ponto fundamental na obra freiriana é a ideia de que o conhecimento serve para
a transformação da realidade. Para Freire (1987), nesse aspecto, é fundamental a
consciência crítica e de sujeito histórico. Nesta perspectiva, a Educação do Campo,
por meio da Pedagogia da Alternância vem desenvolvendo nas EFAs do MEPES um
trabalho de resistência, buscando empoderar o sujeito para que ele possa perceber
as contradições que fazem parte de sua realidade e possa agir no sentido de
transformá-la.

Esse é exatamente o modus operandi adotado pela PA, levado à ação prática nas
EFAs. A PA assume sua posição crítica frente aos conhecimentos trabalhados na
escola, propondo aos alunos uma nova abordagem do conhecimento. Este
posicionamento vai ao encontro dos ideais de Freire (1996), quando o pensador
defende que

uma das tarefas essenciais da escola, como centro de produção sistemática


de conhecimento, é trabalhar criticamente a inteligibilidade das coisas e dos
fatos e a sua comunicabilidade. É imprescindível portanto que a escola
instigue constantemente a curiosidade do educando em vez de “amaciá-la”
ou “domesticá-la”. É preciso mostrar ao educando que o uso ingênuo da
curiosidade altera a sua capacidade de achar e obstaculiza a exatidão do
achado. É preciso por outro lado e, sobretudo, que o educando vá assumindo
o papel de sujeito da produção de sua inteligência do mundo e não apenas o
de recebedor da que lhe seja transferida pelo professor. (FREIRE, 1996, p.47)

Para Freire (1987), o processo de aprendizagem se dá à medida que o aluno acessa


o conhecimento sistematizado e seja capaz de problematizar aquilo que é dito,
buscando compreender para além do que está aparente. Justamente esse é o papel
do professor na Pedagogia da Alternância. Levar o aluno a compreender sua realidade
de maneira integral. Na concepção vygotskyana cabe aos professores serem o
organizador do meio social, que é considerado por ele o único fator educativo.

Exige-se deles que deixe inteiramente a condição de estojo e desenvolva


todos os aspectos que respiram dinamismo e vida. Em todo trabalho docente
do velho tipo formavam se forçosamente um certo bolor e ranço, como em
água parada e estagnada. E aqui de nada servia a costumeira doutrina
segundo a qual o mestre tem uma missão sagrada e consciência de seus
objetivos ideais (VYGOTSKY, 2001, p.449).

Os professores das EFAs na Pedagogia da Alternância são nomeados de Monitores.


Na proposta de formação por Alternância, o monitor assume responsabilidade e
funções que vão muito além daquelas desempenhadas por um professor de uma
escola regular, em um modelo pedagógico tradicional. A gestão do trabalho
pedagógica se dá, necessariamente, de maneira democrática, com a participação de
todos os atores da EFA. A PA exige do monitor dedicação quase que exclusiva para
as ações da EFA, pois suas funções são próprias de um profissional que atua em um
processo educativo mais complexo. Segundo Gimonet (2007),

o “contexto educativo favorável” pressupõe a organização do espaço de


acolhida aos estudantes para favorecer a imersão nos estudos durante o
tempo de permanência na escola, uma vez que se trata de formação em
tempo integral com o suporte do internato. A organização da vida de grupo
na moradia, durante a Sessão Escolar, demanda organicidade dos
estudantes, a responsabilização por cuidados com a convivência, com o
ambiente, envolvendo trabalhos domésticos, serviços de manutenção de
animais e plantas, entre outros, em uma rotina denominada de Auto-
organização. (GIMONET, 2007, p. 49)

A Pedagogia da Alternância, segundo Begnami (2019), por natureza entrelaça as


ações dos tempos e espaços escolares dentro e fora da EFA. Ela pluraliza,
multidimensiona e põe em interação outros tempos de aprender, outros espaços
educativos, outros sujeitos formativos. Ela potencializa o diálogo de saberes escolares
com os saberes populares, a relação teoria e prática, sendo a realidade dos
estudantes o ponto de partida do processo da problematização, reflexão e proposição
de ações de intervenção, numa perspectiva da práxis crítica, transformadora. Dessa
forma, a função do Monitor mostra-se com uma gama de responsabilidades que vão
muito além da sala de aula. Segundo Begnami (2019),

Monitor é um termo com referência histórica no movimento CEFFA por


significar aquilo que se espera para uma escola com Alternância. Ou seja, um
educador na escola, para além do ato de ensinar conteúdos disciplinares,
deve mediar as relações de alternância; animar o processo formativo dos
estudantes; coordenar a vida de grupo; acompanhar o estudante nas famílias
e comunidade; animar as famílias em sua tarefa educativa e na participação
no processo autogestionário do centro educativo; relacionar com os parceiros
da escola. (BEGNAMI, 2019, p. 126).
As especificidades do trabalho do Monitor/professor exigem uma formação
diferenciada. O MEPES desenvolve, neste sentido, um trabalho de qualificação de
seus profissionais realizado no Centro de Formação e Reflexão. Trata-se de um
percurso formativo que visa preparar os profissionais que ingressam no movimento
para o trabalho com a Pedagogia da Alternância. Frente todas as questões que
perpassam o trabalho docente na EFA, percebemos que deve haver uma maior
valorização do trabalho do Monitor.

Na prática, o termo “Monitor” não consta no contrato de trabalho dos profissionais, por
uma questão de não reconhecimento desse cargo como uma função profissional.
Prevalece o termo “professor”. Entendemos, então, que há uma necessidade de luta
por um maior reconhecimento da função de Monitor na Pedagogia da Alternância. Não
se trata da garantia do perfil profissional somente por causa de uma nomenclatura,
mas uma luta por melhores condições de trabalho e valorização da Pedagogia da
Alternância.

CONCLUSÃO

Diante da complexidade da Pedagogia da Alternância e da potência de sua proposta


educativa, concluímos que as relações dos postulados de Paulo Freire e Vygotsky
trazem importantes contribuições para o embasamento teórico das práxis desta
modalidade pedagógica, visto se tratar de uma pedagogia que nasce e se desenvolve
em um contexto de luta popular por uma educação de qualidade, de cunho crítico-
reflexivo. A teoria crítica de Freire (1996) encontra-se difundida não só em suas obras,
mas também nas produções de autores e autoras diversos(as), em um amplo acervo
teórico que proporciona reflexão e ação sobre o processo educativo: “Ensinar exige
compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 1996,
p. 110).

A proposta de educação bancária denunciada por Freire é fortemente combatida na


Pedagogia da Alternância. O trabalho do Monitor nas EFAs é de resistência no
constante combate da dicotomia entre o professor depositante de conteúdos e
transmissor de valores, comportamentos e conhecimentos e os alunos como
depositórios, que recebem passivamente o conhecimento transmitido.
Os pensamentos de Paulo Freire e Vygotsky convergem no sentido de validar o
movimento de ruptura com o velho modelo educacional estabelecido, que privilegia
uma parcela da sociedade em detrimento de outras, sistematizando a exclusão.
Aceitar e praticar suas ideias significa posicionar-se criticamente frente às dicotomias
que se apresentam no campo educacional. Dessa forma, a leitura do mundo e o
compartilhamento dessa leitura, como ato de resistência e reconstrução do saber
consituem-se em ato de libertação, confirmando o caráter político do ato de educar.
São pressupostos que pertencem tanto a Freire quanto a Vigotsky.

Embora ainda haja muito a ser feito para que o papel do Monitor seja reconhecido e
valorizado como diferenciado, a Educação do Campo continua a trabalhar para que
educadores e educandos continuem, na perspectiva de Freire a educarem-se
mutuamente, transformando o mundo.

REFERÊNCIAS

BEGNAMI, João Batista. Formação por Alternância na Licenciatura em Educação


do Campo: possibilidades e limites do diálogo com a Pedagogia da Alternância. 2019.
403p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da Autonomia. 25.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

GIMONET, Jean-Claude. Participar e compreender a Pedagogia da Alternância


dos CEFFAs. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

NOSELLA, Paolo. Origens da Pedagogia da Alternância no Brasil. Vitória:


EDUFES, 2012.

VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,
1991.

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