Você está na página 1de 10

~ ___ ~PENSA A EDUCAÇÃO

NIETZSCHE _ _ _ _ ___
--------··

A educação
e a· incultura moderna
Para Nietzsche,
as institúições devem
educar o corpo e o espírito _
do indivíduo, incentivando-o
a cultivar-s~ ~tornando-o capaz
· de abrigar ·e proteger aquilo
que é novo e extemporâneo

Por Rosa Maria Dias

Medida e desmedida da história

Toda a reflexão de Nietzsche sobre a educação tem como finali-


dade principal denunciar o fato de o saber ter se tornado um capital
improdutivo, com o qual nada se tem a fazer, e protestar contra a
formação histórica imposta à juventude na Alemanha de Bismarck.
Para ele, a educação que os jovens alemães recebem nas institui-
ções de ensino funda-se numa concepção de cultura histórica que,
ao privilegiar os acontecimentos e os personagens do passado, retira
do presente sua efetividade e desenraiza o futuro. Urna história e um
pensamento que não servem para engendrar vida e impor Uf!I novo
sentido às coisas só podem ser úteis aos que querem manter a ordem
estabelecida e o marasmo da vida cotidiana.
É pensando na juventude econfiando nela que Nietzsche grita: "Já
r...]
basta de cultura histórica De resto, abomino tudo aquilo que me
instruiu sem aumentar ou estimular imediatamente minha atividade". f
Com esta citação de Goethe, ele inicia sua Segunda Consideração
16. Extemporânea: "Da utilidade e desvantagem da história para a vida"
Tela Operários {1933),
de Tarsila do Amaral:
para o pensador, a "mod~
(1874) e dela tira a seguinte con- tórica. Por isso, a entdição alemã do rebanho", com
clusão: deve-se abominar o ensi- tomou-se uma espécie de saber homens escnndidos
atrás de ~stumes,
no que não vivifica e o saber que em torno da cultura, um saber é uma das tendências
esmorece a atividade. O homem falso e artificial. Falso e artificial que minam a educação

deve aprender a viver e só deve porque tolera a contradição en-


·- utilizar a história quando ela es- tre vida e cultura. A cultura, na
tiver a serviço da vida-.
Para Nietzsche, é preciso ser
jovem para compreender seu pro-
PARA NIETZSCHE, A CULTURA SÓ PODE
testo. Sua aversão à cultura e à
educação de sua época pode ser DESENVOLVER-sE A.PARTIR DA VIDA E DAS
mal interpretada. Pode ser consi- NECESSIDADES QUE A ELA SE IMPÕEM
derada absurda e indigna do po-
deroso movimento histórico do
século XIX (aqui ele se refere ao perspectiva de Nietzsche, só pode de história, a ruminação do pas-
hegelianismo), mas, seja como for, nascer, crescer, desenvolver-se a sado, a cultura da memória são
sente-se filho do seu tempo e ousa partir da vida e das necessidades essas as forças que separam a
descrever e tomar público um sen- que a ela se impõem. criltura da vida. Quando a histó-
timento incomum para sua época. Que forças fundam a cultura ria se põe a serviço da vida pas-
Os "espíritos históricos" con- artificial e operam a disjunção sada, alerta Nietzsche, torna-se
fundem cultura com cultura his- entre vida e cultura? O excesso "coveira do presente". Depaupe- 17
E~~
;. _:_: ___~PENSA A EDUCAÇÃO
. NIETZSCHE _ _ _ _ _ _. _ ________"______ "___ ""--"------------------""-- --------------"--"--·

tórico, mas de conter seu donúrüo,


O "FIL,STEU DA CULTURA" NADA MAIS E de conduzi-lo a uma justa medida.
DO QUE UM SER EMPANTURRADO DE MIL Absorvida em pequenas doses, éla
não envenena a vida nem a cultura,
IMPRESSÕES DE SEGUNDA MÃO
embora, em dose excessiva, mate
tudo o que quer nascer.
riZa e provoca a degenerescência o filósofo e o artista O artista, homem ativo por à-
da própria vida. Longe de ali- celência, não deixa que a massa
mentá-la, mumifica-a. Fossiliza Nas anotações feitas durante a do saber histórico o faça submer-
o próprio tempo. O excesso de primavera de 1873, um ano antes gir, porque sabe que ele retiraria
história conserva a vida, não sabe da publicação da Segwula Extem- de si o único poder que lhe cabe
fazê-la nascer, por isso, deprec!a porânea, Nietzsche define o filóso- na Terra: o da criação. Busca o
a vida em transformação. fo como "o médico da civilização". passado; porque tem necessidade
É preciso ficar claro que Nietz- Se a história faz parte da natureza de modelos que não consegue en-
sche não tem a ingenuidade de humana e seu excesso deixa o ho- contrar ao seu redor. Absorve esse
opor à história a ausência de sen- mem doente, então, trata-se de vê- passado e o transforma em san~

tido histórico. O que discute é em la segundo uma perspectiva médi- gue próprio, para utilízá-lo em sua
que medida a história pode ser útil ~ca." É preciso saber até que ponto obra, mas sabe também que todo
à ~ida. A vida tem necessidade da o estudo da história é comandado ato criador nasce de uma atmosfe-
história, e a história é própria do pela vida e não por uma necessi- ra não-histórica, de um estado de
ser vivo. O excesso da história, no dade de conhecimento puro. O que ... esquecimento. Para realizar a sua
ehtanto, envenena a vida. Nietzsche propõe para a cultura his- obra, o artista, na compreensão de
tórica é uma questão de dosagem. Goethe, "esquece a maior parte
Não se trata de negar o sentido his- das coisas para realizar uma só; é
Para o pensador, deve-se
abominar o ensino que não injusto para com o que está atrás
vivifica e o saber que esmorece de si e só conhece um direito: o
direito daquilo que naquele mo-
mento vai passar a existir". Mas
o homem de cultura histórica, di-
ferentemente do artista, utiliza-se
da história para alijar o presente
de sua efetividade: por toda par-
te, arrasta consigo as "indigestas
pedras do saber''. Desconhece a
"força plástica" de que dispõe pa-
ra digerir a multiplicidade de co--
nhecimentos que pode armazenr.1r
sem perigo para o ~senvolvimen­
to hannonioso. Desconhece que
essa força transforma em sangue e
carne todo o alimento intelectual,
assim como todas as suas expe-
riências. Entretanto, orgulha-se de
sua cultura histórica, porque ~sta
0 coloca no fim da história.

z
------- ------------------ -- ---

Para Nietzsche, a cultuGl servidores Unia atividade passiva e .. no cânone que se poderia resumir
históríca padece da crença pa- receptiva; como pode fundár, en- nestes pontos: o jovem aprenderá
ralisante de uma representação tão, uma cultura autentica? - o que é a cultura e não o que ~ a
teológica, herdada d_a Idade vida, isto é, não poderá de modo
Média. Em outras palavr~s, so- Os filisteus da cultura algum fazer suas próprias expe-
fre do pensamento da proximi- riências; a cultura será insuflada
. dade do fim do mundo, do ter- Nietzsche descarta de ante- no jovem e por ele incorporada
ror do Juízo Final. Na origem mão a possibilidade de o educa- sob a forma de conhecimento his-
do abuso da história, está o pes- dor ser um ~'filisteu da cultura", tórico; seu cérebro será entulha-·
simismo cristão. Sob a máscara pois este nada mais é do que do de uma enorme quantidade de
da erudição, esconde-se uma um produto da cultura da me- noções tiradas do conhecimento.
"teologia camuflada". A cultu- mória. Por acreditar que a cul- indireto das culturas passadas e
ra histórica - o olhar para trás, tura existe para preencher suas de povos desaparecidos, e não da
o concluir, o procurar consolo
-
necessidades, sente-se digno re- experiência direta da vida. Se,
no que foi, por meio de recor- presentante da cultura de sua porventura, o jovem sentir neces-
_.dações -"prediz o fim da vida
na Terra e condena todos os se-
res vivos a viver o quinto ato da "QUE DEUS ME DEFENDA DE MIM,
tragédia". Tudo sobrevive sob
ISTO É, DA NATUREZA QUE
esta máscara: "é bom conhe-
cer iodo o acontecido, porque é
ME FOI INCULCADA"
tarde demais para se fazer algo
de melhor". época. O "filisteu da cultura" sidade de aprender alguma coisa
Esse sentimento de desespe- nada mais é do que um ser em- por si próprio e desenvolver um
. rança ensombrece toda a educação panturrado de mil impressões sistema vivo e completo de ex-
e a cultura superiores e impede de segunda mão, sempre dispos- periências pessoais, tal desejo
que o novo venha a existir. Con- to a discorrer sobre o Estado, a deverá ser abafado. Em compen-
tudo, para se ter uma cultura supe- Igreja, a Filosofia e a Arte. Ele sação, terá a possibilidade de,
rior, não basta despojar a cultura se transporta para o passado e em poucos anos, acumular em si
de sua crença no fim do mundo, de nele faz seu ninho: um gênio mesmo as experiências memorá-
seu verniz histórico, também é ne- que nunca saiu da garrafa. En- veis do tempo passado.
cessária uma tarefa educativa, um fim, uma criatura robusta, ami- Todo o sistema educacional
trabalho árduo, lento e penoso. ga das comodidades, dando ao sendo concebido como se o jo-
Já que os professores alemães poder estabelecido a certeza de- vem pudesse descobrir sua vida
utilizam-se da história para desen- que jamais lhe causará nenhum · nas técnicas passadas. Como se
raizar qualquer tipo de educação embaraço. Scarlett Marton, em a vida não fosse um ofício que é
· que não tenha por objetivo trans- Nietzsche (1983), define muito preciso aprender a fundo. Quem
formar os indivíduos em seres ap- bem o que significa Nietzsche quisesse pulverizar esse tipo de
tos a ganhar dinheiro e servir de ser um filisteu da cultura educação deveria, segundo Nietz-
maneira eficiente à cultura vigente, O exame da literatura escolar sche, ser o porta-voz da juven-
fica a questão: onde encontrar edu- e pedagógica levou Nietzsche a tude, iluminá-la com uma nova
cadores que possam b3Zer de novo constatar que, apesar das flutua- concepção de educação e cultura.
para a vida a ciência da história? A ções dos programas e da violên- Mas como atingir esse objetivo?
educação alemã tem como funda- cia dos debates, o projeto educa- Antes de tudo, acreditando
mento a utilidade e exige de seus tivo continua a repetir o monóto- em um outro tipo de educação, 1
.
~-~~

NIETZSCHE -----iÍIIIL
-~--- _------~ PEf\ISA A EDUCAÇ;-\0
-------·-······--·- ---------·-

últimas, sem sombra de ·dúvida,


A TAREFA DE UMA ESCOLA DEVE SER SEMPRE as mais numerosas. As pessoas
·A DE LEVAR O ESTUDANTE A COMPREENDER A submetem-se mais às convenções

IMPORTÂNCIA DE ESTUDAR SERIAMENTE A LÍNGUA do que às suas próprias convic-


ções. No primeiro parágrafo de
··schopenhauer como Edúcador"
ó qual não se nortearia pelos não tem por objetivo contrapor (1874), Nietzsche relata a seguin-
princípios que fundam a pseu- à mistura caótica de todos os es- te passagem: Perguntaram a um
docultura. A Alemanha do sécu- tilos uma cultura nacional; pelo viajante, que havia percor:ridÓ
lo XIX crê na verdade eterna de conrrário, critica o nacionalismo muitos países e conhecido vários
sua educação e no seu "estilo de exacerbado dos que confundem povos, qual a qualidade que mais
cultura", mas, na verdade, falta- cultura com as glórias militares encontrara entre os homens. ·Sua
lhe tal estilo, pois, como :Ie afir- dos exércitos prussianos. Quando resposta foi esta: urna propen-
ma em "David Strauss, o Devoro exorta a originalidade do_espírito são à preguiça. Por toda parte,
e o Escritor" ( 1874), "a cultura é alemão, dos seus filósofos e artis- encontrara homens entediados,
antes de tudo a unidade de estilo tas nacionais, é para lutar contra escondendo-se atrás dos costu-
artístico em todas as manifesta- a imitação superficial dos costu- mes e das opiniões alheias. Por
ções vitais de um povo". ~ mes, das artes e da filosofia de ou- preguiça e temor ao próximo,
' Por encontrarem sua marca tros povos e o conseqüente desen- homens se comportam de acor-
em toda parte, os "filisteus da cul- raizamento da cultura alemã. do com as convenções e seguem
tura" concluem que a cultura ale- a moda do rebanho. Que motivo
mã possui unidade de estilo. Tal Fantasmas da têm para adotar sempre as opi-
unidade de que se vangloriam na opinião pública niões e as apreciações de valor de
realidade não existe, já que pro- seu semelhante? Em uma palavra,
curam imitar modelos por toda Segundo Nietzsche, a Alema- o hábito. Desde a infância, convi-
parte, elevando o cosmopolitismo nha não possui uma cultura, nem vem com as apreciações de valor
à altura de uma instituição. pode tê-la, em virtude de seu sis- de toda uma tradição. São guia-
Quando Nietzsche denuncia tema educacionaL Com base no dos por esses juízos adquiridos e
o caráter imitativo dos alemães, reconhecimento dessa verdade, raramente pensam ser autores de
deveria ser educada a primeira sua aprendizagem. Desde crian-
geração dos que iriam construir ças são albergues abertos a tudo
Para Nietzsche, o uma cultura autêntica. Todavia, e, como todo mundo, acreditam
jornalista é "o mestre do
instante" que escreve sobre essa geração deveria antes edu- que a maior virtude é estar de
pensadores e artistas e
car-se a si mesma e contra si mes- acordo com as opiniões de todos.
toma o lugar deles
ma. Teria de formar novos háb~tos Mas para desprender-se e de-
~ e uma nova natureza, desfazer-se fender-se das virtudes do reba-
~ de sua primeira natureza, abando- nho é necessário que engulam
: : . nar seus primeiros hábitos, de tal a seguinte verdaôe, como remé-
~ modo que dissesse: "Que Deus dio amargo: a primeira virtude é
me defenda de mim, isto é, da na- ousar ser ele mesmo. É preciso
tureza que me foi inculcada". triunfar sobre si mesmo, sobre a
Isso porque todas as ações li- natureza que lhe foi inculcada e
gam-se a apreciações de valor, e o tornou inepto para a vida. Para
todas as apreciações de valor são Nietzsche, não há espetáçulo
ou pessoais ou adquiridas - estas mais hediondo do que ver um ho·-
_3
f ~---·------- ----------- --------------

mcm despojado de seu gênio. de que trabalhar para o enfraqueci- escravo dos três M - o momento
4
seu ser criador e inventiva. Fal-· mento da cultura- a da ampliação presente, as maneiras de pensar e
ta-lhe medu"la. Só tem fachada. máxima da cultura e a da redu5ão a moda" passa com pressa e ligei-
Assemelha-se a um "fantasma da máxima. A primeira tendência, a ramente sobre as coisas. Escreve
opinião pública". da "ampliação máxima", tem a _sobre artistas e pensadores e vem
O fato de o homem ser .uma pretensão de julgar qye o direito à tomando o lugar deles; lançando
singularidade e, como todo caso cultura seja acessível a todos, to- por terra sua obra. Mas, enquan-
único, não se repetir. leva-o a ser davia é regulamentada pelo dogma to o jornalista vive do instante
encorajado a viver segundo sua da economia política, cuja fórmula e graças ao gênio de outros ho-
própria lei e medida. Ele tem de é mais ou menos a seguinte: "tan- mens, ~s grandes obras dos gran-
mostrar por que nasceu em de- to conhecimento e cultura quanto des artistas emanam do desejo de
terminada época e não em outra, possível, logo, tanta produção e permanecer e sobrepujam o tem-
pois só desse modo fará justiça a necessidade quanto possível, daí po pela força da criação.
seu próprio tempo. tanta felicidade quanto possívelz.'. Com o propósito de restaurar
A segunda tendência, a da "re- a cultura alemã, Nietzsche exa-
Tendências que dução da cultura", admite a pos- mina as instituições de ·ensino
minam a educação sibiliçlad~de que os indivíduos responsáveis pelas diferentes eta-
conságrem sua vida à defesa dos pas de formação dos adolescentes
Em suas conferências "Sobre interesses do Estado e exige que - Gymnasium (equivale à 8" série
o futuro de nossos estabelecimen- seus servidores procurem uma es- do ensino fundamental e às três
tos de ensino" ( 1872), Nietzsche pecialização, isto é, sejam "fiéis séries do ensino médio do currí-
examina as entranhas do sistema às pequenas coisas" e ao Estado. culo brasileiro), a escola técnica e
educacional de sua época. Perce- Na mesma direção dessas duas a universidade -, denuncia o mal
be que o Estado e os negociantes tendências, encontra-se a cultura que as envenena e indica remé-
são os primeiros grandes res- jornalística. Para o filósofo, ela dios para combatê-lo.
ponsáveis pela depauperação da é a confluência das duas tendên- Ele reconhece a necessidade de
cultura. Eles tomam impraticável cias anteriores, o lugar onde se um maior investimento na apren-
a· lenta maturação do indivíduo, encontram e dão as mãos. A cul- dizagem da língua materna e da
a paciente formação de si, que tura ampliada, a cultura especia- arte de escrever - tarefas das mais
deveria ser a finalidade de toda
cultura, exigindo uma formação
rápida, para terem a seu serviço "UMA BOCA QUE FALA, MUITOS OUVIDOS E
funcionários eficientes e estudan- .~ MENOS DA METADE DE MÃOS QUE ESCREVEM-
tes dóceis, q:.~e aprendam rapida-
EIS O APARELHO ACADÊMICO APARENTE"
mente a ganhar dinheiro. Mas isso
não é tudo. Tal pressa indecorosa
leva os estudantes, numa idade lizada e a cultura jornalística se essenciais do ensmo fundamen-
em ·que ainda não estão amadure- completam para formar uma só e taL A língua alemã encontrava-se
cidos, a se perguntarem qual pro- mesma incultura. naquele momento contaminada
fissão devem escolher e, então, a A cultura jornalística, segun·- pelo "pretenso estilo elegante" do
fazerem más escolhas. do Nietzsche, vai substituindo jornalismo. O acesso dos semile-
Isso leva o filósofo a reconhe- aos poucos a verdadeira cultura. trados ao poder tinha provocado
. cer a presença de duas tendências Nos "Fragmentos Póstumos", de uma drástica redução da riqueza
no sistema educacional de sua 1874, ele observa que o jorna- e dignidade da língua. A questão,
época, que nada mais fazem do lista, "o mestre do instante", "o no entanto, não era apenas de po- 21
_ _ _ _ _ _ PENSA A EDUCt'\CÃO
NIETZSCHE . . . ,

breza vocabular- tratava-se tam- O çrescenre desprezo pela for- Nietzsche também não poupa
bém da má utilização dos recursos mação humanística e .o aum~n­ criticas ao ensino superior, em seu
oferecidos pela língua. to da tendência cienrificista nas ensaio sobre os estabelecimentos
-
A tarefa de uma escola de ai ta escolas, a instrução dirigida por de ensino: "Uma boca que fala,
qualidade deve ser- ~empre a de questões históricas e científi_cas muitos ouvidos e menos dil. meta-
l~var o estudante a compreender a e não por um. ensinamento prá- de de mãos que escrevem ·- ei.s o
importância de estudar seriamen- tico, o abahdono do ensino que aparelho acadêmico aparente, eis a
te a língua. Se ela entrar em declí- vise à formação de um senrido máquina de cultura da universidade
nio, perder sua força vital, a cul- artístico da língua, em favor de posta em atividade". O proféssor
tura, conseqüentemente, tenderá um duvidoso estilo jornalístico, a fala. O aluno escuta. ·'Liberdade
a se degenerar. Se o professor não ênfase dada à profissionalização, acadêmica" é o nome que se dá a
conseguir incutir nos jovens es- no intuito de criar pessoas aptas a esta dupla autonomia: de um lado,
tudantes uma aversão física por ganhar dinheiro, tudo isso impe- uma boca autônoma; de outro, ore-
determinadas palavras e expres- de que o sistema educacional se lhas autônomas. Atrás desses dois
sões com que os habituaram os volte para a cultura. grupos, a uma relativa distância,
jornalistas e os maus romancis- Deve ser ressaltado que Nietz- está o vigilante Estado, lembrando,
tas, é melhor, adverte Nietzsche, sche não vê com hostilidade a im- de tempo em tempo, que deve ser
rc:nunciar à cultura. Para isso, é . plantação e a proliferação na Ale- ele "o objetivo desses procedimen-
necessário analisar os clássicos, manha das escolas técnicas. Pelo tos de fala e de audição".
linha a linha, palavra por palavra contrário, ali os indivíduos apren- O estilo "acroamático" de ensi-
no que privilegia a exposição oral
do professor e a audição do alu-
AO INSTINTO DESENFREADO DA CIÊNCIA, no é, justamente, o oposto do que
QUE TUDO QUER CONHECER, QUE REVIRA Nietzsche entende que deva ser
A VIDA, NIETZSCHE OPÕE, ASSIM, A ÀRTE a educação na universidade. Alf,
onde se deveria exigir do aluno um
treinamento rigoroso, inventou-se
e estimular os alunos a procurar dem a calcular convenientemente, a a autonomia. Tal autonomia nada
exprimir o mesmo pensamento dominar a linguagem para a comu- mais é do que domesticação do
várias vezes e cada vez melhor. nicação e adquirem conhecimentos aluno. para tomá-lo uma criatura
A educação começa com hábi- naturais e geográficos. De certo dócil e submissa aos interesses do
to e obediência, isto é, disciplina. modo, elas cumprem, e, com reti- Estado e da burguesia.
Disciplinar lingüisticamente o jo- dão, seu objetivo, que é o de formar Assim, é necessário conter a
vem não significa acumulá-lo de negociantes, funcionários, oficiais, tendência histórico-científica e
conhecimentos históricos acerca agrônomos, médicos e técrucos. ·· profissionalizante na universi-
da língua, mas sim fazê-lo cons- Oque Nietzsche censura, entre~ dade, que exige da educação um
truir determinados princípios, a tanto, ao afumar que "a cultura não preparo mais rápido, aprofunda-
partir dos quais possa crescer por é serva do ganha-pão e da necessi- do apenas o bastante para trans-
si mesmo, interna e externamente. dade", é o fato de o Gymnasium e a formar os indivíduos em servi-
Significa tomá-lo senhor de seu universidade terem se voltado para dores eficientes e fazer com que
idioma, habilitando-o a construir a profissionalização e, apesar disso, a instituição se volte para os pro-
uma língua artística, com base continuarem a acreditar que são lu- blemas da cultura, ou seja, para
nos trabalhos que o precederam, gares destinados à cultura, quando as questões essenciais coloca-
único caminho para revitalizar a na verdade não se distinguem muito das pela condição humana. Des-
22 educação e a cultura alemãs. da escola técnica em seus objetivos. sa forma, Nietzsche propõe que
LA
se investigue como essas ques-
tões estão inseridas no conjunto
da arte e da filosofia, as únicas
disciplinas capazes de mode-
rar a feição histórico-civnrífica
que se espalha na universidade.
Porém a universidade não tem·
nenhum comportamento que in-
dique seu apreço pela arte. Isso
não quer dizer que em seu es-
paço não haja professores com
inclinação ou gosto pela arte.
O problema é que, apesàr de
existirem matérias que ensinem
história da arte, a universidade
não pode dar ao estudante uma
instrução artística. As atuais formas de educação
••
ed;_ cultura não poiiem abafar
E para que poderia servir a as iniciativas dos jovens
de desenvolverem
instrução artística para o jovem? experiências Individuais
modo a fazê-lo servir a uma
Em urnas poucas palavras, para a melhor forma de vida; tercei-
vida .. Urna instrução artística na ro, de devolver à vida as ilu-
universidade contrabalançaria os ça certos traços, defonna outros, sões que lhe foram confisca-
efeitos nefastos da compulsão de omite muitos outros, tudo em das; quarto, de restituir à arte
saber a qualquer preço e discipli- função da vida, da transfiguração o direito de continuar a cobrir
naria o instinto de conhecimen- do real. Em suma, a arte nos liber- a vida com os véus que a embe-
to e a própria ciência. Já que a ta, ao passo que a dura e cotidiana lezam. Todavia, a universidade
ciência, na maioria das vezes, ao experiência do real nos submete. alemã não soube dar um ensino
querer conhecer a vida, custe o artístico, nem teve interesse em
que custar, destrói as ilusões que As ilusões confiscadas conter, por meio da arte, as ten-
ajudam o homem "à viver. dências cientificistas.
Ao instinto desenfreado da Não se pode extrair da expo- Dessa forma, em vez de a
ciência, que tudo quer conhecer, sição de Nietzsche um projeto de arte servir como antídoto à con-
que revira a vida e a vasculha em instrução artística do jovem uni- taminação da cultura pela ciên-
seus mínimos detalhes, Nietzsche versitário, como foi feito em re- cia, o erudito serviu-se dos mé-
opõe, assim, a arte. Esta, ao con- lação ao ensino da língua. Mas, _todos científicos para investigar
trário da ciência, não se interessa embora não indique explicita- a arte. A música, diz ele, é obje-
por tudo o que é real, não quer mente corno deva ser realizada to de dissecação, corno se fosse
tudo ver, nem tudo reter - é an- uma tal instrução, ele deixa bem possível analisar com erudição
ticientífica. Mais importante ain- clara a sua finalidade. o êxtase. É desse modo que os
da: a arte, em lugar de dissecar a Por meio dessa educação professores universitários de-
vida, é fonte de dissimulação. para a arte, o jovem universi- monstram seu apreço pela arte
Numa época em que vida e tário seria capaz de, primeiro, -apresentando-se como seus pe-
cultura estão separadas, a arte tem contestar a pretensão científica ritos, quando na verdade gosta-
um papel fundamental: afirma de tudo conhecer; segundo, de riam de suprimi-la.
a vida em seu conjunto. Refor- conduzir o conheciment.o de Se a universidade não abre 23
________ . ,·. PENS!\ A EDUCACÃO
NIETZSCHE ,

suas porras para a arte, também dor dos valores em curso, funcio- e ·dizer: 'como se algÚma vez
l}àO as abre para a filosbfia. A nário da história que .se mascara . algo de grande e puro pudesse
esse ·respeito, a tese principal de com a filosofia para sobreviver. permanecer e firmar-se nesta
Nierzsche é a seguinte: o ensi- Se a natureza lançá os filóso- Terra, sem fazer concessão à
no universitário da filosofia não fos como uma flecha para at~ngir baixeza humana'".
_prepara o estudaçte para pen- um alvo, deveria ser dever do Es- Esse comprorrússo com o_ Es-
sar, agir e viver filosoficamente; tado ajudar a natureza nesse pro- tado coloca em perigo o futuro
pelo contrário, o "instinto na- cesso, interferindo na cultura e na da filos()fia. Primeiro, porque é o
tural filosófico" é imobilizado organização sociaL Mas acontece Estado quem escolhe seus ser-vido-
pela cultura histórica. justamente o contrário. Quem im- res filosóficos, na exata proporção
As questões históricas intro- pede a produção e perpetuação de sua necessidade de preencher
duziram-se de tal modo na fi- dos filósofos são os próprios filó- os quadros das instituições; 'além
losofia universitária que esta sofos universitários. disso, outorga-se a competência
se resume em perguntas como: Quando o Estado -promove de escolher quem são os bons e os
o que pensa tal ou qual filó- a filosofia, favorece um certo maus filósofos; segundo, porque ..
sofo? Merecerá tal lição ser número de homens que podem obriga os professores a permane-
realmente aprendida? É ela,_ viver de sua filosofia, transfor- cerem nos seus postos e instruírem
realmente, um estudo de filo- · mando-a num ganha-pão. Ora, todo jovem que deseja seus sen'Í-
sofia? Essa maneira de tratar como se acredita que quem vive ços, e isso em um horário fixado de
a matéria desenraizou a filoso- de algum ofício também dele antemão. Nietzsche pergunta, no
fia universitária de todos os entenda, os professores se com- mesmo artigo: "pode propriamente
problemas fundamentais. Em portam diante de um público um filósofo, com boa consciência,
lugar de levar os estudantes a como mestres do assunto, espe- comprometer-se a ter diariamente
levantarem questões sobre a cialistas em filosofia, e, portan- algo para ensinar? E a ensiná-lo
existência, preocupa-se com as to, verdadeiros filósofos, que diante de qualquer um que quei-
minúcias da história da filoso- podem escolher e ensinar o que ra ouvir? Ele não tem de se dar a
aparência de saber mais do que
sabe? Não tem de falar, diante de
A UNIVERSIDADE NÃO ESTÁ VOLTADA um auditório desconhecido, sobre
PARA A EDUCAÇÃO FILOSÓFICA, coisas que somente com o amigo
MAS PARA A PROVA DE FILOSOFIA mais próximo poderia falar sem
perigo? E, em geral, não se des-
poja de sua esplêndida liberdade,
fia. Do mesmo modo que a fi- julgam ser digno da atenção de a de seguir seu gênio, quando este
lologia está interessada apenas suas audiências. chama e para onde este chama
nas etimologias, e não em um Mas será que os filósofos· se -por estar comprometido a pensar
trabalho com a palavra viva, a deram conta dos compromissos publicamente, em horas determi-
filosofia restringe-se a estudar e restrições que teriam de su- nadas, sobre algo predeternúnado?
o pensamento morto, que não portar ao se submeterem a essa E isto diante de jovens! Um tal
mais serve à vida. situação? Nietzsche nota, em pensar não está de antemão como
Assim como Schopenhauer, "Schopenhauer como Educador", que emasculado? E se ele sentisse
Nietzsche acha que não existem fi- que em alguns professores essa um dia: hoje não consigo pensar
lósofos universitários, mas apenas pergunta terá o efeito de uma di- em nada, não me ocorre nada que
professores de filosofia. Para ele, o namite, mas "a maioria se con- preste e, apesar disso, tivesse que
24 filósofo universitário é coleciona- tentará com sacudir os ombros se apresentar e parecer pensar!".
:c
Para .Nietzsche, o esquema abstrato, neutro, desvinculado da no voltadas para a cultura. Elas
acadêmico foi tão bem montà- vida e das forças vitais. E a ver- não e.'<istem ainda, mas devem
do que não permite ao professor dade que os filósofos julgar~) ser ser criadas. Não devem ter por
sofrer com a falta do que dizer, a origem_cl.e todas as suas buscas objetivo cnar o pequeno-bur-
pois nem o professor nell} o alu- não passa de uma verdade a ser- guês, qu~ aspira a um posto-de
no pef!sam por si mesmos. A cu!- viço dos valores correntes e da funcionário ou a um ganha-pão
tura histórica e científica foram . ordem estabelecída. qualquer; ao contrário, precisam
planejadas pelo sistema univer- voltar-se para a criação de indi-
sitário para preencher qualquer Um outro ideal víduos realmente cultos, forma-
lacuna. Há mesmo quem acre- de formação dos q partir da necessidade in-
dite que o filósofo universitário terna da fusão entre vida e cul-
não precisa ser um pensador, Em "Schopenhauercomo Edu- tura e capazes de exercer toda a
constituindo, no máximo, "um cador", Nietzsche -propõe a ins-- potencialidade de seu espírito.
repensador e um pós-pensador", tauração de um tribunal superior Essas instituições devem ainda
um conhecedor erudito de todos que vigie e julgue a cultura que ajudar a natureza na criação do
os pensadores, com os quais a universidade desenvolve e di- filósofo e do artista e protegê-
poderá contar para poder dizer vulga. A filosofia poderia ser esse lo da "conspiração do silêncio"
algo aos seus alunos. tribunal. Sem poderes conferidos com que sua época o exclui.
Esta é, segundo Nietzsche, pelo Estado e sem honras, pode- Com todos esses argumentos,
a concessão mais perigosa que ria prestar seu serviço livre do Nietzsche deixa claro que é ne-
os filósofos fazem. Ao empregar espírito do tempo e do temor ins- cessário cnar instituições para
todo o seu tempo em conhecer pirado pelo tempo. educar o corpo e o espírito do
apenas sistemas que a história O pior perigo que o filósofo indivíduo, incentivando-o a cul-
apresenta como sendo dignos corre numa sociedade enferma tivar-se e tornando-o capaz de
da atenção de todos, veneram é ter o destino de um viajante abrigar e proteger aquilo que é
o·· passado e devotam à morte solitário, forçado a abrir cami- novo e extemporâneo. Isso signi-
as novas idéias que não recebe- nho num ambiente hostil, furti- ficará um enorme esforço para os
ram o selo da consagração. Em vamente ou aos empurrões e de que se propõem a trabalhar para
vez de educar o estudante para punhos cerrados. Tem contra si a cultura, pois terão de substi-
pensar e viver filosoficamente, o espírito gregário organizado, tuir um sistema educacional que
o ensino universitário acaba por que teme ver abalado tudo o que tem suas raízes na Idade Média
desencorajá-lo a ter opiniões pró- o mantém vivo. por um outro ideal de formação.
prias, em função da massa de Na civilização grega, o filó- Contudo, deverão iniciar a tarefa
conhecimentos históricos que é sofo tinha o poder de denunciar sem demora, já que dela depende
obrigado a assimilar. A univer- o perigo que a sociedade corria to_da uma geração futura.
sidade não está voltada para a e de encontrar belas possibili-
educação filosófica, mas para a dades de vida. O filósofo era Rosa Maria Dias é professora doutora
prova de filosofia. Assim, ao in- um centro de forças imensas, da Universidade do Estado do Rio de
vés de atrair pessoas para a ati- que modificava todo "o sistema Janeiro (UERJ) e autora de Nietzsche
vidade de pensar, afasta-as. das preocupações humanas" e Educador (Scipione, 1991), Nietzsche e
A filosofia universitária tor- punha em perigo o que queria a Música (!mago, 1994), e As Paixões
nou-se, nas mãos de uma mul- se manter gregário. Tristes: Lupicínio e a Dor-de-cotovelo (Le-
tidão de pensadores puros, uma A vida precisa de uma cul- viatã, 1994 ). É co-roterista e pesqui-
ciência pura - isto é, um pensa- tura sadia, e, para isso, são im- sadora do filme Dias de Nietzsche em
m~nto concebido como universal, prescindíveis instituições de ensi- Turim, de Julio Bressane 25

Você também pode gostar