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LEITURA COMPLEMENTAR

MÍNIMO EXISTENCIAL
Professor Felipe de Melo Fonte

1 Introdução
O denominado “mínimo existencial” é constituído pelas condições materiais básicas para a existência
do homem e corresponde a uma fração nuclear da dignidade da pessoa humana à qual se deve
reconhecer a eficácia jurídica positiva (BARCELLOS, 2011, p. 292).

A realidade brasileira nos permite afirmar que, a partir da Constituição de 1988, a dignidade da
pessoa humana tornou-se o princípio precursor da ordem jurídica e a finalidade principal do Estado.
Isso porque o Brasil vive uma situação de desigualdade social demasiadamente forte, o que afeta
diretamente a dignidade da pessoa humana, visto que “temos muitas humanidades vivendo tempos
diferentes no mesmo país” (ROCHA, 2009). Nas palavras da Ministra Carmen Lúcia (apud ROCHA,
2009):

[...] as diferenças sociais são tão estampadas que podem ser vistas, por exemplo, no
céu de São Paulo: muitos se deslocam de helicóptero, enquanto outros vão ao
trabalho a pé, muitas vezes andando quilômetros. Há, ainda, em se tratando de
Nordeste do Brasil, os que vão trabalhar montados no lombo de um jumento ou
crianças que, para estudar, são transportadas na carroceria de algum caminhão. E o
pior, quando chegam à escola, essas crianças não têm lugar para sentar, tal a
precariedade da instituição. Enquanto isso, outras crianças são alfabetizadas em
ótimos colégios que ensinam ainda duas ou três línguas estrangeiras. Ou seja, o
Brasil vive uma desigualdade social tão grande, que se torna difícil sua mensuração.
[...] A realidade e as necessidades são distintas e devem ser observadas.

O mínimo existencial carece de conteúdo específico, dado que abrange qualquer direito, ainda que
originalmente não fundamental, em razão da sua dimensão essencial e inalienável (TORRES, 1989, p.
29), como os direitos à alimentação, à saúde e à educação. Na tangente ao mínimo existencial, está a
reserva do possível, argumento ocasionalmente utilizado nas respostas do Estado às demandas
judiciais cujo objeto é o adimplemento de prestações previstas em normas que conferem aos cidadãos
algum direito fundamental social. Em suma, a reserva do possível objetiva adequar essas pretensões
às possibilidades financeiras do Estado, o que deve ser feito sem que o núcleo da dignidade da pessoa
humana, o mínimo para que o ser humano literalmente exista, seja violado.

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2 Mínimo existencial e princípio da dignidade da pessoa
humana – art. 1º, III, CRFB/88
Nas palavras de Ana Paula de Barcellos (2000, p. 159), “um dos poucos consensos teóricos do mundo
contemporâneo diz respeito ao valor essencial do ser humano.” Esse raciocínio nos permite atribuir à
Constituição a responsabilidade de garantir o mínimo de direitos aos indivíduos e colocá-los fora do
alcance da deliberação política das maiorias, uma vez que, diante da sua amplitude, o princípio da
dignidade da pessoa humana abrange dois campos: o do consenso mínimo e o da liberdade
democrática.

Entre os direitos que compõem o mínimo existencial estão o direito à liberdade, à igualdade, ao
trabalho, à moradia, ao lazer, à educação, à previdência, ao amparo e à assistência. O rol de direitos
incluídos no conceito de mínimo existencial não deve ser considerado taxativo, pois a Constituição
Federal de 1988 garante àqueles que carecem de condições dignas de existência o mínimo necessário,
sendo essa necessidade material, psicológica ou social.

Sobre o tema, o Ministro Luís Roberto Barroso (1998, p. 296.) deixou registrado, que “dignidade da
pessoa humana é uma locução tão vaga, tão metafísica, que embora carregue em si forte carga
espiritual, não tem qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relento, não conseguir emprego
são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana.”

De forma análoga entendeu Ana Paula de Barcellos (2000, p. 179): “não há quem possa, com
seriedade intelectual, afirmar, por exemplo, que uma pessoa tem sua dignidade respeitada se não
tiver o que comer ou o que vestir, se não tiver oportunidade de ser alfabetizada, se não dispuser de
alguma forma de abrigo.”

Na visão do professor Ricardo Lobo Torres, o mínimo existencial representa um conjunto de condições
iniciais para o exercício da liberdade. “Sem o mínimo necessário à existência, cessa a possibilidade de
sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as
condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo” (TORRES, 1995, p.
129).

Substancialmente, a doutrina reconhece aos princípios duas modalidades de eficácia: a interpretativa


e a negativa. A primeira sinaliza que os princípios constitucionais vão orientar a interpretação das
regras em geral, de modo que o intérprete da norma a execute da forma que melhor atenda ao efeito
pretendido pelo princípio. Já a eficácia negativa “associa ao princípio a consequência pela qual são
considerados inválidos todos os atos ou normas que lhe contravenham” (TORRES, 1995, p. 129).

Quanto aos efeitos, destaca-se que o princípio da dignidade da pessoa humana compreende dois
pontos:
 um núcleo mínimo (mínimo existencial), consenso público transformado em norma jurídica,
decisão fundamental do constituinte originário e
 o aspecto que será desenvolvido na esfera política, mediante deliberações específicas, de
acordo com as opções da população.

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Em suma, “o mínimo existencial é direito protegido negativamente contra a intervenção do Estado e,
ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais. Diz-se, pois, que é direito de
status negativus e de status positivus, sendo certo que não raro se convertem uma na outra ou se co-
implicam mutuamente a proteção constitucional positiva e a negativa” (TORRES, 1989, p. 35).

2 Mínimo existencial e processo democrático: legislação,


administração e jurisdição
Como se sabe, os direitos fundamentais prescindem de lei ordinária que os garanta. Os status
negativus, termo utilizado por Ricardo Lobo Torres, decorre das próprias normas constitucionais. Já o
status positivus, em relação às prestações jurisdicionais e de segurança do mínimo existencial, bem
como as prestações positivas de bens e serviços, independe de regulamentação do sistema legislativo
infraconstitucional, pois se vincula à própria organização estatal, sendo as despesas respectivas
cobertas com a arrecadação dos impostos. “A lei ordinária pode explicitar ou aprofundar o discurso
sobre os direitos fundamentais, pela proximidade entre liberdade e normatividade, mas não os cria”
(TORRES, 1989, p. 35).

No que concerne à administração, cumpre ressaltar que o mínimo existencial, enquanto direito
subjetivo, lhe é oponível, gerando para esta a obrigação de entregar a prestação de serviço público
independentemente do pagamento de qualquer tributo ou contraprestação financeira.

A garantia do mínimo existencial pode ser efetivada por meio de processo administrativo e da
eficiência dos órgãos da administração pública. Em outras palavras, a celeridade do processo
administrativo, a eficácia da administração financeira, a existência de hospitais e escolas de qualidade,
e a implementação de políticas públicas destinadas à erradicação da pobreza são capazes de
assegurar o mínimo existencial e promover a igualdade.

Como visto, o Estado é obrigado a garantir o mínimo existencial. Caso não o faça, o cidadão pode
contar com diversos instrumentos judiciais para assegurar a garantia do seu direito. O judiciário é
apto a conceder ao indivíduo meios que concretizem a garantia constitucional que lhe é devida. De
acordo com a sistemática da Constituição Federal de 1988, cabe exigir, perante o Poder Judiciário,
todos os direitos que garantem a dignidade da pessoa humana e que não estão sendo assegurados
pelo poder público, violando frontalmente o princípio.

3 Princípio da reserva do possível


A reserva do possível é um argumento ocasionalmente utilizado nas respostas do Estado às demandas
judiciais cujo objeto é o adimplemento de prestações previstas em normas que conferem aos cidadãos
algum direito fundamental social e tem como finalidade adequar essas pretensões às possibilidades
financeiras do Estado. Não há consenso na doutrina e na jurisprudência acerca da natureza da reserva
do possível, ou seja, não se sabe se consiste em um princípio, cláusula, postulado ou condição de
realidade.

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Como mencionado anteriormente, as posições doutrinárias acerca do mínimo existencial apresentam
relação com as prestações materiais que asseguram condições mínimas de sobrevivência, conforme
previsto na Constituição Federal. No entanto, a reserva do possível encontra limitações no princípio da
proporcionalidade, que exigirá que a justificativa apresentada pelo Estado para restringir o direito
social seja legítima e materialmente constitucional. Isto é, o bem jurídico a que o Estado visa proteger
ao recorrer à reserva do possível deverá ser mais relevante do que a parcela do direito que sofrerá a
restrição.

A proporcionalidade exigirá a proteção do mínimo existencial, sendo esse requisito denominado


“proteção da insuficiência” (MATSUDA; PEREIRA, 2011). Sendo assim, o poder público estará agindo
com certa discricionariedade quando, após suscitar as limitações relacionadas à reserva do possível,
deixar de implementar, integralmente, determinado direito social em favor de um indivíduo. Tal
discricionariedade, no entanto, é limitada pelo princípio da proporcionalidade. É possível, por meio da
garantia do mínimo existencial, compatibilizar a efetividade dos direitos sociais com a teoria da
reserva do possível. Dessa forma, a porção de cada direito fundamental social imprescindível à
dignidade da pessoa humana não sofrerá condicionamentos.

Em contrapartida, há parcelas desses direitos que, embora contribuam para a melhoria da qualidade
de vida do indivíduo, não são imprescindíveis à sua dignidade, não compondo, portanto, o que a
doutrina denominou como mínimo existencial. Sendo assim, aos direitos que não integram o conceito
de mínimo existencial é possível a aplicação da reserva do possível, de modo que a sua exigibilidade
será condicionada à existência dos recursos financeiros públicos necessários à sua efetivação.

Nesse ponto, é interessante expor o entendimento de Luís Fernando Sgarbossa, que menciona a
distinção entre o “mínimo vital/fisiológico” (condições imprescindíveis para a manutenção da vida em
termos biológicos) e o “mínimo sociocultural” (condições que propiciam a inserção do indivíduo na
vida social). Segundo o autor, o conceito de mínimo existencial não se pode resumir ao mínimo vital,
mas deve abranger os dois aspectos, visto que a existência da vida biológica por si só não garante ao
indivíduo uma existência digna (SGARBOSSA, 2010, p. 308).

5 Conclusão
O mínimo existencial convive, portanto, com o princípio da reserva do possível. Por sua vez, a reserva
do possível não pode anular as conquistas do indivíduo, tampouco impedir que o Estado aja de acordo
com as diretrizes do seu orçamento.

Finalmente, o mínimo existencial abrange o conjunto de prestações materiais necessárias e


absolutamente essenciais para que todo ser humano tenha uma vida digna. Diante da sua
importância, a doutrina o compreende como o núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana,
previsto no artigo 1º, III, da CF.

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Referências bibliográficas

BARCELLOS, Ana Paula de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana
na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 221, p. 159-179, 2000.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 292.

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998. p. 296.

MATSUDA, Juliana; PEREIRA, Helida. SOUZA, Luciana. O mínimo existencial como limite à aplicação
da reserva do possível aos direitos fundamentais sociais. Revista Virtual da AGU, Brasília, ano 16, n.
116, set. 2011.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 252, 2009.

SGARBOSSA, Luís Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos. v. 1. Reserva do possível. Porto
Alegre: S.A. Fabris, 2010. p. 308.

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito


Administrativo, Rio de Janeiro, n. 177, p. 29-35, 1989.

TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. Rio de Janeiro:
Renovar, 1995. p. 129.

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