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TEORIAS DA

CRIATIVIDADE

Mônica Souza Neves-Pereira


Denise de Sousa Fleith

Abril/2019

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APRESENTAÇÃO DOS AUTORES

DANIELA VILARINHO-REZENDE

Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília (2009), mestrado em Ciências do


Comportamento pela Universidade de Brasília (2012) e doutorado em Processos de
Desenvolvimento Humano e Saúde (PGPDS) pela Universidade de Brasília. Realizou doutorado-
sanduíche no Giftedness, Creativity and Talent Development Graduate Program na University of
Connecticut, Estados Unidos. É especialista em Neuropsicologia Clínica pelo Instituto Brasileiro
de Neuropsicologia e Ciências Cognitivas (IBNeuro). É professora do Centro Universitário Padre
Anchieta e representante do Brasil no World Council for Gifted and Talented Children.

DENISE DE SOUZA FLEITH

Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília (1985), mestrado em Psicologia pela
Universidade de Brasília (1990), doutorado em Psicologia Educacional pela University of
Connecticut (1999). Realizou pós-doutorado no National Academy for Gifted and Talented Youth
(University of Warwick) (2005) e na Universidade do Minho (2014). Atualmente é professora
titular do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da
Universidade de Brasília. É orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-graduação
em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde. Foi professora visitante na University of
Connecticut, em 2009, e realizou estágio sênior na Universidade do Minho, em Portugal, nos anos
de 2009 e 2012. É membro do Executive Committee of the World Council for Gifted and Talented
Children, do Conselho Técnico-científico da Rede Ciência para Educação (CpE) e pesquisadora do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

EUNICE MARIA LIMA SORIANO DE ALENCAR

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1967), mestrado em
Psicologia - Purdue University (1970) e doutorado em Psicologia - Purdue University (1974). Foi
post-doctoral scholar no Gifted Education Resource institute, Estados Unidos. É professora emérita
da Universidade Brasília, cidadã honorária de Brasília, representante do Brasil no World Council
for Gifted and Talented Children e membro honorário do Conselho Brasileiro para Superdotação.

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Autora de numerosos publicações, incluindo livros, capítulos de livros e artigos em periódicos
especializados de diferentes países. Foi, entre outros: coordenadora do Comitê Assessor de
Psicologia do CNPq; representante do Brasil na Sociedade Interamericana de Psicologia; presidente
da Associação Brasileira para Superdotados (DF); membro da diretoria da Logos Foundation
(USA); professora da Faculdade de Medicina da UFMG e da Universidade Católica de Brasília;
secretária de publicação da revista Psicologia, Ciência e Profissão; editora da revista Psicologia:
Teoria e Pesquisa e editora convidada da Gifted Education International; vice-presidente da
Federação Ibero-Americana do Conselho Mundial para o Superdotado e Talentoso. Participa do
conselho editorial de periódicos científicos de distintos países

JANE FARIAS CHAGAS FERREIRA


Possui graduação em Pedagogia pela Faculdade CECAP (2010), Licenciatura em Música pela
Universidade de Brasília (1997) e Bacharelado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de
Brasília (1984). É psicopedagoga e especialista em Educação a Distância pelo CETEB/
Universidade Gama Filho (2009, 2010), Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília (2003)
e Doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília
(2008). Sócia-fundadora do Conselho Brasileiro para a Superdotação - CONBRASD, é membro
da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento - ABPD e representante do Brasil no
World Council of Gifted and Talented Children - WCGTC. É membro do GT de Psicologia Escolar
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia - ANPEPP e coordenadora
do Projeto de Ação Contínua "Programa de Desenvolvimento de Habilidades Sociais para Jovens
Talentosos. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.

MÔNICA SOUZA NEVES-PEREIRA

Possui graduação em Pedagogia (1982), mestrado (1996) e doutorado em Psicologia pela


Universidade de Brasília (2004). Realizou pós-doutorado na Universidade de Aalborg – Dinamarca
(2014 e 2017) e na Webster University – Genebra – Suíça (2017). É professora adjunta no Instituto
de Psicologia da Universidade de Brasília, no Departamento de Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano e Saúde -
PGPDS. Atua no ensino de graduação e pós-graduação e desenvolve pesquisas na área de
desenvolvimento humano, com foco nos processos criativos e desenvolvimento, cultura e

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educação. É membro da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento – ABPD e da
Rede ALAPSIDE – Rede Latino-americana de Psicologia do Desenvolvimento. Participa do
Laboratório de Psicologia Cultural - LABMIS, compondo um grupo de pesquisa do CNPq nesta
área. Desde 2014 vem colaborando como pesquisadora convidada no International Centre for the
Cultural Psychology of Creativity (ICCPC) e no Centre for Culture Psychology, ambos na
Universidade de Aalborg - Dinamarca. A partir de 2017 iniciou parceria de pesquisa com a Webster
University – Genebra – Suíça, junto ao professor Vlad Petre Glaveanu. É pesquisadora associada
no Webster Center for Creativity and Innovation (WCCI). Faz parte do GT Psicologia
Dialógica da ANPEPP.

PAULO SOUSA GOMES FILHO

Graduado em Psicologia, com formação clínica em Análise do Comportamento, Terapia


Cognitiva/Comportamental, e Terapias de Terceira Geração. Doutor em Informática na
Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou seu pós-doutorado na
Universidade de Paris - René Descartes sob supervisão do professor Todd Lubart. É
professor adjunto do curso de Psicologia e da Secretaria de Educação a Distância da
Universidade Federal do Rio Grande. Coordena atualmente o CePsiCo - Centro de
Psicologia Contextual. Também é coordenador do curso de especialização em Mídias na
Educação da SEAD/FURG. Tem interesse nas áreas de processos criativos, tecnologias
digitais (avaliação psicológica mediada por computador e Internet, educação a distância,
comunicação mediada por computador, terapia online, jogos eletrônicos e
desenvolvimento infantil, virtualidade e subjetividade, comunidades virtuais, redes
sociais mediadas por tecnologias digitais, serviços de saúde a distância), análise do
comportamento e terapias contextuais de terceira geração.

SOLANGE WECHSLER

Possui graduação em Psicologia (PUC-RJ), mestrado e doutorado pela University of Georgia


(EUA) e pós-doutorado pelo Torrance Center of Creative Studies. Foi a fundadora da Associação
Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), da Associação Brasileira de
Criatividade e Inovação (CRIABRASILIS) como também colaborou na fundação e presidiu o
Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP). Recebeu títulos honoríficos de Creative

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Scholar (Estados Unidos), Personalidad Destacada en las Artes y Ciencias (Venezuela),
Distinguished International Psychologist (Estados Unidos), Honra ao Mérito em Psicologia Escolar
e Menção de Honra em Avaliação Psicológica (Brasil) e Professora Honorária da Universidad
Nacional Federico Villareal (Peru). Participa na diretoria da International Testing Commission
como representante do países Ibero-Latinos. Exerceu o cargo de vice-presidente da Associação
Brasileira de Psicologia Positiva. Presidiu o I e o II Congresso de Criatividade e Inovação. É editora
chefe da revista Estudos de Psicologia (Campinas). Dirige o Laboratório de Avaliação e Medidas
Psicológicas na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

TATIANA NAKANO

Docente do curso de pós-graduação stricto sensu em Psicologia da PUC-Campinas, pesquisadora


da linha de Instrumentos e processos em avaliação psicológica. Pós-Doutorado na Universidade
São Francisco (2009) e Doutorado em Psicologia como Profissão e Ciência (2006) pela PUC-
Campinas, durante os quais a pesquisadora desenvolveu teste psicológico para avaliação da
criatividade figural de crianças (publicado sob o título “Teste de Criatividade Figural Infantil”). Atua
principalmente na área de Avaliação Psicológica, Criatividade, Altas Habilidades /Superdotação,
Inteligência, Habilidades Socioemocionais e Psicologia Positiva. Presidente da Associação
Brasileira de Criatividade e Inovação (2014-2017) e membro do grupo de trabalho Psicologia
Positiva e Criatividade na Anpepp.

VLAD PETRE GLAVEANU

Vlad Glaveanu é professor associado e chefe do Departamento de Psicologia da Webster


University, Genebra – Suíça. É formado em psicologia pela Universidade de Bucharest,
Mestre e Doutor em psicologia social pela London School of Economics and Political
Science, UK (2012). Foi professor associado por cinco anos no Departamento de
Comunicação e Psicologia na Universidade de Aalborg – Dinamarca, além de
pesquisador associado na SLATE, Bergen University – Noruega e LATI, Paris Descartes
University - França. Tem interesse na abordagem social e cultural da criatividade,
inovação e imaginação. Professor Glaveanu tem mais de 100 artigos e capítulos de livros
publicados em diversos periódicos internacionais. É autor de mais de 10 livros na área da

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criatividade e editor de três handbooks internacionais, a saber: (1) The Palgrave
Handbook of Creativity and Culture Research (editor, Palgrave, 2016); (2) the Oxford
Handbook of Imagination and Culture (Oxford University Press, 2017, co-editado com
Tania Zittoun), e (3) The Cambridge Handbook of Creativity Across Disciplines
(Cambridge University Press, 2017, coeditado com James C. Kaufman and John Baer).

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SUMÁRIO

Introdução
Mônica Souza Neves-Pereira e Denise de Sousa Fleith 7

Capítulo 1 - Dimensões da Criatividade segundo Paul Torrance


Solange Muglia Wechsler e Tatiana de Cássia Nakano 17

Capítulo 2 - O Modelo Componencial de Criatividade de Teresa Amabile


Denise de Souza Fleith, Daniela Vilarinho-Rezende & Eunice M. L. Soriano 47
de Alencar.

Capítulo 3 - A Teoria do Investimento em Criatividade de Robert


Sternberg e Todd Lubart
69
Paulo Sousa Gomes Filho

Capítulo 4 - O Modelo Sistêmico da Criatividade de Mihaly


Csikszentmihalyi
85
Mônica Souza Neves-Pereira e Denise de Souza Fleith

Capítulo 5 - O Modelo da Imaginação Criativa de Lev Vygotsky


Mônica Souza Neves-Pereira e Jane Farias Chagas-Ferreira 107

Capítulo 6 - A Psicologia Cultural da Criatividade


Vlad Petre Glăveanu e Mônica Souza Neves-Pereira 137

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INTRODUÇÃO

Criatividade é um tema da pesquisa psicológica que vem se desenvolvendo de

modo significativo nas últimas sete décadas. Desde o famoso discurso proferido por

Guilford (1950), ao tomar posse na presidência da APA em 1950, as investigações sobre

a criatividade receberam apoio institucional de peso que terminou por surtir efeitos

positivos disseminando estudos e construções teóricas em distintos contextos

socioculturais. Navegando nos ventos gerados pelo sopro de incentivo de Guilford, os

modelos teóricos sobre a criatividade começaram a emergir, distribuindo-se por vários

contextos culturais. Uma visão histórica da pesquisa em criatividade (Runco & Albert,

2010) sinaliza como foram criativos os esforços investidos na pesquisa e produção teórica

na área nos últimos tempos. O objeto de pesquisa motivou os sujeitos de ciência

transformando apoio em ações que consolidaram o campo da psicologia da criatividade.

Hoje, o cenário é diverso. Para além dos pioneiros, com suas pesquisas e propostas

teóricas que fundamentaram o caminho de desenvolvimento na área, encontramos novos

pesquisadores com ideias igualmente criativas e que se espalham, no presente, por todos

os continentes. Do Oriente ao Ocidente registra-se um crescimento quantitativo e

qualitativo das pesquisas e proposições teóricas sobre a criatividade (Neves-Pereira,

2018). Os livros e handbooks da área disseminam a diversidade de olhares sobre o

fenômeno criativo, com trabalhos elaborados por estudiosos de diversos países. Em sua

última edição (Glaveanu, 2016), o The Palgrave Handbook of Creativity and Culture

Research apresenta capítulos produzidos por pesquisadores da criatividade oriundos dos

EUA, Canadá, Itália, Dinamarca, Finlândia, França, Inglaterra, Suíça, Holanda, Polônia,

Antioquia, Turquia, Austrália, Índia e Singapura. Esse cenário tão diversificado reflete os

esforços iniciais da pesquisa em criatividade e mostra que a área tem potencial para se

desenvolver ilimitadamente.

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Ao consideramos os esforços dos pioneiros na área e as novas contribuições que

surgem em diferentes cenários, uma questão se coloca para os pesquisadores do fenômeno

criativo: a necessidade de organizar e contextualizar a produção teórica sobre criatividade

para que, no presente e no futuro, os interessados pela área possam compreender quais

foram os principais modelos que emergiram ao longo do tempo, quais as divergências e

convergências entre estes modelos, e, principalmente, qual o estado da arte das teorias

sobre a criatividade.

A palavra teoria tem origem dupla. Em sua versão grega, teoria (Theoreîn)

significa “olhar através de”. Aquele que olha é denominado Theorós (Dicionário

Etimológico). Já em sua origem latina, teoria (Theoria) é compreendida como concepção,

esquema mental, especulação, olhar para algo (Dicionário Etimológico). Não importa

qual a origem, a palavra teoria remete à ideia de alguém observando algo através de uma

determinada janela. Ao abrir-se uma janela para olhar determinado fenômeno, faz-se isso

a partir de posições particulares que permitem uma visão específica a partir deste local.

Se abrirmos outra janela em posição oposta à inicial, a visão será diferente. Essa segunda

perspectiva registrará outra faceta do fenômeno também observado na primeira janela,

que, certamente, será algo bem diferente. Nas ciências humanas, a multiplicidade teórica

é um ganho. Nosso objeto de estudo na psicologia, o homem em suas múltiplas expressões

ao longo de um curso de vida, não pode ser explicado apenas por um único olhar. Faz

tempo que se advoga uma psicologia plural, que se abra para as profundas diferenças

entre os homens, porém sem perder suas regularidades como espécie. Esse desafio se põe

também para a psicologia da criatividade que, como outras áreas da psicologia, vem

enfrentando as tensões, conflitos, aproximações e distanciamentos inerentes ao processo

de construção do conhecimento, que é orgânico, vivo e, por isso mesmo, intenso

(Valsiner, 2017).

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O livro Teorias da Criatividade objetiva apresentar, mesmo que em escala

reduzida, importantes teorias sobre a criatividade. Foram considerados tanto modelos

clássicos, como teorias emergentes. É um livro com uma proposta inédita em língua

portuguesa, uma vez que não temos, ainda, nenhum material impresso ou publicado com

essa finalidade. Vamos apresentar seis modelos teóricos sobre o fenômeno criativo que

representam muito bem a pesquisa na área. Esforços deste tipo já foram realizados em

outros idiomas. Runco (2014) produziu um livro muito interessante apresentando

diversos modelos teóricos sobre a criatividade a partir de temas relevantes para a

psicologia. Kozbelt, Beghetto e Runco (2010) discutem vários modelos teóricos sobre a

criatividade comparando-os a partir de categorias como: (a) teorias desenvolvimentais,

(b) psicométricas, (c) econômicas, (d) modelo de estágios e processos componenciais, (e)

cognitivas, (f) problem solving, (g) problem finding, (h) evolucionárias, (i) tipológicas e

(j) teorias de sistemas. Este capítulo aprofunda uma discussão comparativa e traz uma

grande contribuição àqueles que iniciam seus estudos sobre criatividade.

A apropriação das teorias sobre a criatividade é um passo inicial decisivo para

qualquer pessoa interessada em conhecer a área. Pensando em nossos alunos de

graduação, pós-graduação, alunos de pesquisa e demais interessados no fenômeno

criativo, decidimos escrever este livro que traz modelos relevantes e que vem orientando

as pesquisas sobre criatividade há bastante tempo. É nosso objetivo apresentar, em cada

capítulo, um modelo teórico a partir de sua contextualização histórica, passando pelas

definições de seus principais conceitos, enfatizando a descrição de suas dinâmicas, ou

seja, como cada modelo compreende o desenvolvimento da criatividade, dentre outros

aspectos peculiares a cada teoria. Uma teoria é sempre matizada pela história de quem a

produz. Há tempos sabemos que não há neutralidade na produção científica (Valsiner,

2017). De certa forma, sempre há traços autobiográficos dos autores em suas teorias,

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especialmente na psicologia. Dessa forma, destacamos, também, um pouco da história

dos criadores dos modelos apresentados, como forma de valorizar seus esforços e

contribuições ao conhecimento psicológico.

A organização do livro foi pensada a partir de alguns critérios. Nos primeiros

capítulos, apresentamos autores de modelos considerados clássicos e que marcaram a

psicologia da criatividade definitivamente. Torrance (1965, 2008), Sternberg e Lubart

(1991, 1992) e Amabile (1983, 1989) criaram teorias que influenciaram inúmeros

pesquisadores, orientaram múltiplas pesquisas e geraram publicações variadas de

relevância para os estudos sobre criatividade. Com a exceção de Torrance, já falecido, os

outros autores continuam na ativa, pesquisando, publicando livros e aprimorando seus

modelos. À medida que caminhamos pelos capítulos, vamos nos aproximando das teorias

sociais, com destaque para o modelo sistêmico de Csikszentmihalyi (2007), considerado

uma contribuição da maior relevância para o campo. Csikszentmihalyi aproxima a

investigação da criatividade da psicologia social, esforço iniciado por Amabile, propondo

um modelo em que a ação criativa sai da instância do sujeito e se direciona para a instância

social. Ao final, os modelos sociogenéticos da criatividade são apresentados, com suas

devidas contextualizações. Questões históricas, políticas e ideológicas impediram ao

Ocidente o acesso à obra de Vygotsky, por exemplo. Mesmo tendo desenvolvido suas

ideias sobre criatividade no início do século XX, Vygotsky (2009) teve seu trabalho

conhecido nos países ocidentais após os anos 60, quando Michael Cole e James Wertsch

tomaram o caminho de Moscou para realizarem estudos com Luria, parceiro de trabalho

de Vygotsky, e traduziram sua obra para o inglês. No Brasil, as ideias de Vygotsky sobre

criatividade chegaram apenas na década de 90. O último modelo, também sociogenético,

é o de história mais recente e vem sendo desenvolvido há oito anos por Glăveanu (2010,

10
2014), pesquisador romeno. Esse modelo tem como proposta uma mudança

epistemológica e paradigmática do fenômeno da criatividade.

Em cada capítulo é possível conhecer sobre a história da pesquisa em criatividade

a partir das contribuições dos teóricos. Ideias, conceitos, dinâmicas de desenvolvimento

da criatividade e contribuições das teorias também são apresentados, sempre com ênfase

em contribuições futuras para a pesquisa na área. Em uma linguagem didática, o Capítulo

1 traz a trajetória de Ellis Paul Torrance, considerado o pai da criatividade. Seus estudos

pioneiros deram visibilidade à criatividade como área científica de investigação e

estimularam pesquisas futuras sobre o fenômeno da criatividade. O trabalho de Torrance

pavimentou o caminho para uma melhor compreensão da criatividade. Destacam-se,

ainda no modelo desse autor, propostas de desenvolvimento das habilidades criativas, em

especial no contexto educacional, descontruindo o mito da criatividade como um dom

inato. Sua vasta obra envolve numerosas pesquisas, com destaque para os estudos

longitudinais e aqueles que envolveram elaboração e validação de instrumentos de

avaliação da criatividade. Os Testes Torrance de Pensamento Criativo continuam, até os

dias de hoje, sendo os instrumentos mais utilizados em pesquisas ao redor do mundo.

No capítulo 2, é apresentado o modelo de criatividade de Teresa Amabile que

introduz a perspectiva social na compreensão da criatividade. Nele é analisado como

fatores cognitivos, motivacionais, sociais e de personalidade influenciam no processo

criativo. Esse modelo inclui uma descrição tanto do processo criativo quanto de

elementos do indivíduo e do ambiente externo que têm influência na criatividade.

Amabile chama a atenção, em especial, para o papel da motivação na criatividade. Seu

trabalho é fruto de inúmeros estudos empíricos envolvendo indivíduos de várias faixas

etárias em distintos contextos. Destacam-se, ainda, suas publicações sobre criatividade

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dirigidas a pais e professores, contribuindo para a disseminação do conhecimento

científico para um público não especialista no assunto.

A Teoria do Investimento de Robert Sternberg e Todd Lubart é apresentada no

Capítulo 3. Os autores exploram metáforas da economia e do mundo das finanças para

apresentar a criatividade como fenômeno que pode ser promovido em diferentes

contextos. A criatividade surge como um diferencial, onde o sujeito criativo age como

um investidor: ele compra ações em baixa (pouco criativas), aprimora-as e as revende em

alta (muito criativas), gerando lucro e dividendos. O sujeito criativo valoriza sua ideia e

sabe vende-la nos mercados apropriados. Este processo de “valorização de uma ideia

criativa” é muito bem trabalhado pelos autores, uma vez que representa possibilidades de

fomento e desenvolvimento da criatividade e suas habilidades. Ao pensarem em um

modelo teórico multivariado, Sternberg e Lubart associam à criatividade vários outros

fenômenos, como: a inteligência, a motivação, os traços de personalidade do sujeito, os

estilos de pensamento e os contextos ambientais. O resultado é um modelo rico, que

apresenta a criatividade como um elemento humano passível de desenvolvimento e treino.

O Capítulo 4 traz a abordagem sistêmica de Csikszentmihalyi que gerou

mudanças importantes na visão da criatividade. Este autor deslocou a gênese do processo

criativo das instâncias psicológicas para a dimensão social. Ao apontar para a o contexto

social como o lócus de onde se origina a criação, Csikszentmihalyi consolida uma

vertente social da psicologia da criatividade já iniciada pelo trabalho de Amabile. Sua

obra impactou o campo e se desdobrou em influências nas ciências educacionais, na

psicologia organizacional, na psicologia dos esportes e, principalmente, na psicologia

positiva, outro modelo que Csikszentmihalyi ajudou a desenvolver. O conceito de flow

tornou-se rapidamente conhecido e vem influenciado a percepção dos atos criativos desde

então.

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Nos capítulos 5 e 6 são apresentadas duas abordagens sociogenéticas. O Capítulo

5 traz a contribuição de Vygotsky e sua visão particular acerca das origens das funções

psicológicas superiores. O pensamento de Vygotsky inaugura um modelo de

desenvolvimento provido de uma ontogenia em que a gênese do ser humano é

investigada, discutida e organizada em conceitos e dinâmicas diferenciadas que explicam

como o indivíduo se torna um sujeito de cultura, construtor de si mesmo, por meio de

interações e movimentos dialéticos com os contextos socioculturais. A criatividade é

contemplada por Vygotsky em sua curta vida. Para esse autor, a criatividade surge quando

a imaginação encontra a linha de desenvolvimento do pensamento e um sistema

denominado “imaginação criativa” emerge. Este sistema é regido pela capacidade de

significação semiótica do sujeito, pela brincadeira do faz de conta e pela chegada da

imaginação na vida da criança, potencializando as funções psicológicas como a atenção,

a memória, a formação de conceito, dentre outras vinculadas ao ato de criar. No Capítulo

6 temos o modelo da Psicologia Cultural da Criatividade, proposto por Glaveanu, que

também bebe das premissas vygotskyanas. Trata-se de um modelo sociogenético que

compreende a criatividade como originada nas interações sociais, por meio das ações do

sujeito no mundo. A criatividade se constitui junto à história do sujeito, onde cultura e

self se co-constroém em um processo semioticamente mediado, marcado pelo tempo

irreversível, com aspectos dialógicos e dialéticos e distribuído socialmente. Criatividade

só pode ser compreendida como fruto de instâncias em diálogos, como o ator, a audiência,

o artefato, as ações e as affordances (possibilidades sociais e culturais de ocorrência de

uma ação). Esse último modelo talvez seja o mais recente no escopo da psicologia da

criatividade e começa a ser discutido pelos interessados na área.

Ao abordar seis teorias, este livro busca construir um espaço de ampliação e

aprofundamento teórico sobre a criatividade, sua gênese, conceitos, modelos de

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desenvolvimento, impactos em outros campos do conhecimento e possibilidades para

investigações futuras. Teorias apresentadas em conjunto permitem estudos comparativos,

análises categoriais e apropriações críticas de seus conteúdos, o que, certamente,

enriquecerá os conhecimentos sobre a criatividade de qualquer pessoa que tenha acesso a

este material. Nosso desejo é oferecer elementos para o aprofundamento do estudo e do

debate sobre esta área tão fascinante. Esperamos alcançá-lo.

Mônica e Denise

Referências

Amabile, T. M. (1983). The social psychology of creativity. New York, NY: Springer.

Amabile, T. M. (1989). Growing up creative. Buffalo, NY: The Creative Education

Foundation Press.

Csikszentmihalyi, M. (2007). Creativity. Flow and the psychology of discovery and

invention. New York, NY: Harper Collins e-books.

Glăveanu, V. P. (2010). Principles for a cultural psychology of creativity. Culture &

Psychology, 16(2), 147-163.

Glăveanu, V. P. (2014). Distributed creativity: Thinking outside the box of the creative

individual. Cham, UK: Springer.

Glaveanu, V. P. (2016). (Edt.) The Palgrave handbook of creativity and culture research.

Palgrave Macmillan: London, UK.

Guilford, J. P. (1950). Creativity. American Psychologist, 5, 444-454.

Kozbelt, A., Beghetto, R. A., & Runco, M. A. (2010). Theories of creativity. In J. C.

Kaufman & R. J. Sternberg (Edits). The Cambridge handbook of creativity, (pp. 20-

47). Cambridge University Press: New York, NY.

Neves-Pereira, M. S. (2018). Posições conceituais em criatividade. Psicologia em Estudo,

14
v.23, p.1-15.

Runco, M. A. (Ed.). (2014). Theories and Themes: Research, Development, and Practice.

London, UK: Elsevier.

Runco, M. A., & Albert, R. S. (2010). Creativity research. A historical view. In J. C.

Kaufman & R. J. Sternberg (Edits). The Cambridge handbook of creativity, (pp.3-

19). New York, NY: Cambridge University Press.

Sternberg, R. J., & Lubart, T. (1991). An investment theory of creativity and its

development. Human Development, 34(1), 1-31.

Sternberg, R. J., & Lubart, T. (1992). Buy low and sell high: An investment approach to

creativity. Current Directions in Psychological Science, 1(1), 1-5.

Torrance, E. P. (1965). Rewarding creative behavior. Englewood Cliffs, NJ: Prentice

Hall.

Torrance, E. P. (2008). The Torrance Tests of Creative Thinking Norms-Technical

Manual Figural (Streamlined) Forms A and B. Bensenville, IL: Scholastic Testing

Service.

Valsiner, J. (2017). From methodology to methods in human psychology. Theoretical

Advances in Psychology. New York, NY: Springer.

Vygotsky, L. (2009). A imaginação e a arte na infância. Lisboa, Portugal: Relógio

D’Água Editores.

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DIMENSÕES DA CRIATIVIDADE SEGUNDO PAUL TORRANCE

Solange Muglia Wechsler


Tatiana de Cassia Nakano

Ellis Paul Torrance, pai da pesquisa em criatividade, como é conhecido, nasceu

em 8 de outubro de 1915 em Milledgeville, na Geórgia, Estados Unidos. Sua família era

composta pelos pais, Ellie e Jimmie Paul Torrance, e uma irmã (Ellen), quatro anos mais

nova que ele. Viviam em uma fazenda, e como ele relata ao seu biógrafo e colega Millar

(1995), quando seus pais observaram que ele não possuía habilidades para fazendeiro,

decidiram que ele deveria ir para a cidade e começar a estudar. Ressaltou-se bastante nos

estudos, principalmente na área dos ensaios literários. Formou-se em bacharelado em

Artes pela Mercer University em 1940, obtendo seu mestrado em Psicologia Educacional

pela University of Minnesota em 1944 e o doutorado pela University of Michigan, em

1951.

Torrance iniciou sua carreira em 1936 na Midway Vocational High School. Em

1945, já como psicólogo junto aos veteranos de guerra trabalhou sob a supervisão de

Alexander Wolf, com o qual aprendeu bastante sobre psicoterapia de grupo. Nesta

oportunidade ele realizou várias atividade de avaliação psicológica, familiarizando com

diversos tipos de testes, como o Rorschach e o Bender. Já em 1947, ficou fascinado com

o trabalho de psicodrama e terapia de grupo realizado por Jacob Moreno em Nova York,

para onde foi no intuito de realizar um treinamento intensivo. A influência de Moreno

pode ser observada nas suas publicações posteriores nas quais faz bastante uso da técnica

de sociodrama para resolução criativa de problemas (Torrance, Murdock, & Fletcher,

1996).

Em 1951, trabalhou junto a Força Aérea Americana, no Colorado, na qual exerceu

o cargo de diretor da Survival Research of the U.S. Air Force. Nesta oportunidade

16
desenvolveu vários materiais para sobrevivência na selva. Essa experiência foi decisiva

para sua vida, como relata, pois começou a se interessar pela criatividade em situações de

crise ou estresse. Uma grande influência nesse ponto de sua carreira foi Donald Super,

conhecido pelo seu trabalho na avaliação de interesses vocacionais, tendo recebido dele

uma grande ajuda para compreender as habilidades dos melhores pilotos de avião de

guerra. Tais fatos, como relatados por Torrance ao seu biógrafo Millar (1995),

demonstram a presença de vários mentores durante os seus primeiros anos de vida

profissional, os quais exerceram grande importância nas suas propostas posteriores para

a estimulação da criatividade.

Um grande evento em 1950 despertou em Torrance o desejo de conhecer mais

sobre a criatividade. Isso ocorreu no discurso de posse de J. P. Guilford como presidente

da American Psychological Association, no qual desafiou cientistas a investigar a

criatividade apontando a importância desse tema para o desenvolvimento da humanidade

e a falta de conhecimento a seu respeito (Guilford, 1950). Esse discurso gerou um

considerável impacto entre diversos psicólogos e educadores que decidiram então aceitar

o desafio de fazer da criatividade um construto a ser seriamente e cientificamente

estudado. Sem dúvida, esse fato gerou uma uma explosão de pesquisas sobre o tema nas

décadas de 1950 e 1960 (Beghetto, Plucker, & McKinster, 2001).

Outra grande contribuição de Guilford, que impactou os pesquisadores, foi a sua

apresentação de um modelo para representar a estrutura da inteligência, gerado

empiricamente pelo uso da análise fatorial (Guilford, 1968). Nesse modelo, visualizado

pela forma de um cubo, Guilford demonstrou que o funcionamento da inteligência poderia

ser compreendido em três dimensões: operações, conteúdo, produtos. Tais dimensões,

quando combinadas, por sua vez, gerariam 120 formas de pensar. A criatividade, segundo

esse modelo, estaria situada como uma operação de Pensamento Divergente (Guilford,

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1979), em contraste com as outras possíveis operações (Cognição, Memória, Pensamento

Convergente e Avaliação) A partir da distinção feita da criatividade como sinônimo de

pensamento divergente, Guilford (1986) propôs que ela poderia ser reconhecida pelos

seguintes elementos: Fluência (quantidade de ideias), Flexibilidade (diversidade no tipo

de ideias), Oiginalidade (ideias incomuns) e Elaboração (enriquecimento das ideias

geradas). A influência dessa concepção da criatividade como forma de pensamento

divergente predomina nas pesquisas até os dias de hoje (Mumford, 2001; Plucker, 2001).

Torrance encontrou-se com Guiford várias vezes, e trocaram correspondências. A

visão de Guilford sobre criatividade como pensamento divergente exerceu grande

fascinio sobre ele, como relatou ao seu biógrafo (Millar, 1995). Em 1966, Torrance se

tornou diretor do Bureau of Educational Research na University of Minessota na área de

psicologia educacional. Neste local, sob a influência do pensamento de Guilford, e

também de outros grandes estudiosos da criatividade, Frank Barron e Calvin Taylor,

foram desenvolvidas as primeiras medidas de criatividade por Torrance, denominadas

Minnesota Tests of Creative Thinking, que avaliavam as seguintes dimensões:

 Sensibilidade aos problemas: Definida pela habilidade de perceber

problemas. Fazer perguntas é essencial nessa habilidade.

 Fluência ideativa: Capacidade de gerar várias ideias ou hipoteses para

solucionar um problema

 Flexibilidade: Compreendida como a saída da inercia para pensamento para

buscar muitas alternativas para uma situação.

 Originalidade: Habilidade para produzir respostas incomuns ou não

convencionais.

A partir dessas definições, foram desenvolvidas atividades para medi-las, tanto na

área verbal quanto na área figural, que foram a base de seus futuros testes em criatividade.

18
A TRAJETÓRIA DE PESQUISA EM CRIATIVIDADE

Em 1984, Torrance mudou-se para a University of Georgia (Athens) afim de

trabalhar como professor pesquisador. Compôs o quadro diretor da University of Georgia

dentre os anos de 1966 a 1978 no Departamento de Psicologia Educacional e entre os

anos de 1978 a 1984 como professor. Nessa época, decidiu pesquisar mais sobre o seu

interesse, a criatividade e a superdotação

Casou-se em 1959 com Pansy Nigh, estudante de enfermagem e também sua

aluna, tendo assim encontrado a sua grande parceira. Com Pansy ele desenvolveu vários

projetos, tendo o seu grande destaque no programa de Future Problem Solving Bowl

realizado na University of Georgia, na qual se congregavam anualmente as crianças

representando suas escolas para discutir diferentes formas criativas de resolver os

problemas futuros. Esse programa foi depois estendido para uma participação

internacional pelos ex-estudantes de Paul Torrance

O programa de Resolução Criativa de Problemas Futuros (Future Problem

Solving, 2018) é fascinante, e envolve os alunos de uma maneira intensa e criativa (como

vivenciado pela primeira autora deste capítulo). As escolas que querem participar do

programa trabalham com seus alunos em diferentes fases: 1) identificar desafios ou

problemas que poderão ocorrer no futuro; 2) escolha de um problema para ataque; 3)

busca de leituras e informações sobre aquele problema; 4) produção de ideias para

solucionar o problema; 5) avaliação das ideias sugeridas; 6) desenvolvimento de um plano

de ação. Após um ano de trabalho, cada escola seleciona um grupo de alunos para

representá-la, em cada nível educacional. As ideias sugeridas são apresentadas em forma

de role-playing, em um concurso na University of Georgia, onde são avaliadas por um

juri da própria faixa etária da criança. Ao ao final todas as apresentações são premiadas

19
com certificados ou lembranças da universidade no sentido de encorajar o pensamento

criativo.

A PUBLICAÇÃO DOS TESTES DE CRIATIVIDADE

As pesquisas de Torrance para avaliação da criatividade o levaram a construir, em

1966, seus próprios testes, indo além da proposta de Guilford, sendo designada A

Torrance Tests of Creative Thinking – TTCT (verbal and figural forms). Para construir a

sua bateria, Torrance analisou os modos de pensamento de cientistas, artistas, escritores

e outros grupos de profissionais que primavam pela produção criativa. Depois, concebeu

tarefas (testes) cuja resolução implicaria no recurso aos processos cognitivos semelhantes

aos que são usados por essas pessoas.

A escolha das atividades que compuseram a bateria foi feita de modo a ajustá-las

a um amplo leque de idades, desde o pré-escolar ao adulto (Torrance, 2008), de modo que

as habilidades por ela avaliadas poderiam prever as realizações criativas, de forma mais

eficaz do que o desempenho escolar, nomeações por pares ou testes de inteligência

(Runco, Millar, Acar & Cramond, 2010). Para reduzir a percepção de que se trata de um

teste e evitar a ansiedade perante uma situação de avaliação, os itens são designados por

atividades e as instruções sempre realçam o “ser divertido” fazê-las. As instruções foram

elaboradas de maneira a motivar o respondente, incluindo direcionamento voltado

especificamente para a expressão das habilidades de fluência, originalidade e elaboração

(Kim, 2011).

Convém destacar que, desde a sua publicação, os testes de Torrance têm se

mostrado os mais pesquisados e utilizados para avaliação do potencial criativo (Lemons,

2011), tanto no contexto internacional (Baer, 1993; Eysenck, 1999; Kim, 2011; Silvia,

Winterstein, & Willse, 2008) quanto no nacional (Nakano, 2005; Nicolas, 1999;

20
Wechsler, 2004a, 2004b; Wechsler & Nakano, 2002; Zanella & Titon, 2005), tendo sido

traduzido para mais de 35 idiomas (Millar, 2002). O TTCT também são os instrumentos

mais utilizados no contexto educacional, principalmente em estudos voltados à avaliação

do impacto de programas de treinamento em criatividade (Kaufman, Plucker, & Russell,

2012), tendo sofrido cindo revisões na forma de cotação desde a sua publicação: 1966,

1974, 1990, 1998 e 2008 (Kim, 2011). Já em 1981, as publicações com seus testes, com

amostras norte-americanas ou internacionais, já totalizavam mais de 300 citações

(Torrance, Dogan & Horng, 1981). Importante destacar que nenhuma alteração foi feita

nos instrumentos desde a sua construção, somente nos procedimentos de correção.

Devido ao fato de ter se mostrado um instrumento apropriado para uso em todos

os níveis educacionais e em todas as idades, tais instrumentos têm sido considerados

apropriados para indivíduos de diversas culturas. Isso se deve à natureza dos estímulos,

bem gerais, que permitem ao indivíduo responder de acordo com seus conhecimentos

culturais (Torrance & Ball, 1990). Como vantagens, ainda podem ser citadas as enormes

amostras utilizadas em sua normatização, os extensivos estudos longitudinais e os

resultados das pesquisas que indicaram sua validade preditiva em diferentes grupos

etários (Chase, 1985; Torrance, 1969; Treffinger, 1985).

As atividades, três na forma figurativa e seis na forma verbal, pressupõem que

cada atividade envolve um tipo diferente de pensamento, contribuindo com uma faceta

para o conjunto da avaliação de modo a fornecer informações acerca da natureza dos

processos do pensamento criativo, das características dos produtos criativos e das

características das pessoas criativas. Torrance (1966) argumenta que as duas formas do

TTCT se completam, como uma bateria, de modo a medirem diferentes habilidades

cognitivas e, conjuntamente, fornecerem informações ampliadas acerca do potencial

21
criativo (Kim, 2011). No caso em que houver a necessidade de uma reaplicação do

instrumento, Torrance elaborou duas formas para cada teste (forma A e forma B).

Torrance inicialmente fez a distinção entre quatro medidas de pensamento

criativo, as quais ele chamou de “forças criativas” (Torrance & Safter, 1999), que são as

seguintes:

1. Fluência ou aptidão para produzir um grande número de ideias, sem que haja

a censura nas respostas que surgem. Avalia-se pela contagem do número de

respostas pertinentes ou aceitáveis, que atendam aos objetivos da tarefa.

2. Flexibilidade ou capacidade para produzir respostas muito variadas e

pertencentes a diferentes domínios. A pessoa criativa inova, redefine

problemas, quebra com os pré-conceitos e gera soluções pensando

diferentemente. Mede-se contando as diferentes categorias de resposta

(exemplo: animal, planta, utensílios domésticos, fenômenos naturais, etc).

3. Originalidade ou competência para produzir ideias que se afastam do senso

comum, do evidente ou do banal, envolve ir além do óbvio, quebrando o jeito

habitual de pensar, desenvolvendo possibilidades de soluções alternativas. É

estimada em função da raridade de resposta.

4. Elaboração ou capacidade de desenvolver, ampliar e implementar as suas

ideias. Calcula-se por meio da contagem do número de detalhes adicionais

que o sujeito acrescenta à ideia base, enriquecendo os seus desenhos, tanto

em relação ao que foi desenhado a partir do estímulo, quanto no espaço ao

redor.

Apesar de todo um conjunto de pesquisas realizadas por Torrance que

confirmaram a validade e precisão destes indicadores da criatividade, a partir de 1980, o

autor passou a demonstrar a sua insatisfação com a limitação dos conceitos utilizados

22
para avaliar a criatividade nos seus testes, uma vez que, devido ao fato de seguirem as

recomendações de Guilford, acabavam por reduzir a medida da criatividade somente ao

pensamento divergente. Um importante estudo longitudinal com intervalo de 22 anos

entre as testagens, permitiu que Torrance constatasse a existência de indicadores

emocionais da criatividade expressos nos desenhos que poderiam predizer realizações

criativas na vida adulta.

A partir desse estudo o autor decidiu publicar as mudanças que deveriam ser

consideradas na avaliação do teste figurativo, aumentando os indicadores da criatividade

figural para quatorze fatores, ao invés dos quatro propostos inicialmente. Com isso,

deixaram de ser avaliados somente os aspectos cognitivos da criatividade, passando a

serem avaliados também os aspectos emocionais (Torrance & Safter, 1999; Wechsler,

2004a, 2008).

O teste “Pensando Criativamente com Figuras” (Torrance, 1966, Torrance &

Ball, 1978) foi revisto para avaliar características cognitivas e emocionais da

criatividade. As características cognitivas (Fluência, Flexibilidade, Originalidade e

Elaboração) são avaliadas por tabelas comparativas de acordo com o nível educacional

da criança. Os indicadores emocionais, por sua vez, são avaliados por presença ou

ausência, no número máximo de 3 pontos para cada uma delas, que são as seguintes:

 Expressão de Emoção: as emoções têm sido vistas como facilitadoras dos

processos de iluminação e inspiração ao permitirem soluções criativas para os

problemas. Ela funcionaria como um efeito facilitador da criatividade, sendo

representada mediante a expressão de sentimentos tanto nos desenhos quanto

nos títulos.

 Fantasia: muitas das realizações criativas descrevem um grande uso da fantasia

e imaginação provindas dos contos de fadas, experiências infantis e inspiração

23
na literatura. Muitas das técnicas de solução criativa de problemas utilizam

deliberadamente a fantasia, medida por meio da presença de seres imaginários,

de contos de fada ou ficção científica.

 Movimento: o uso de movimentos nas respostas pode ser considerado como um

facilitador da criatividade e de um grande número de características essenciais

para o funcionamento criativo, tais como habilidade de fantasiar, controle dos

impulsos, liberdade de imaginação e atenção à dinâmica de funcionamento das

coisas, e não somente à mera percepção delas. Pode estar claramente expresso

nos desenhos ou considerado por meio de palavras que o indicam.

 Perspectiva Incomum: a habilidade de ver coisas em diferentes perspectivas e

olhá-las sob diferentes pontos de vista tem sido considerada como uma

importante característica das pessoas criativas, sendo uma das grandes

preditoras da realização criativa. No teste, é verificada por meio da inclusão de

personagens não presentes na cena ou pela visão de objetos ou pessoas

desenhadas sob ângulos não usuais.

 Perspectiva Interna: é definida como a habilidade de ver as coisas em uma

perspectiva de visualização do interior, já que as pessoas com alta criatividade

e produção tendem a estar abertas à visualização do interior e a prestarem

atenção ao interno, na dinâmica das coisas. No teste, essa característica é

considerada como sendo a visão interna de objetos sob a forma de

transparência, detalhes que usualmente não são visíveis.

 Uso de Contexto: atuaria como uma forma de permitir a compreensão do

problema dentro de um universo maior, mediante a inserção da solução dentro

de um contexto, estabelecendo uma conexão. No teste é avaliado de acordo com

a criação de um ambiente para o desenho.

24
 Combinações: é representada por meio da síntese de elementos a fim de formar

uma imagem coerente. Nas pessoas criativas ela aparece na percepção de que

duas ou mais figuras podem ser conectadas, permitindo usá-las com liberdade

de criar, sem deixar que as imposições pessoais ou inibição impeçam seu

trabalho. No teste, ela é medida por meio da junção ou síntese de estímulos.

 Extensão de Limites: umas das mais aceitas características da personalidade

criativa é a abertura psicológica. Frente a problemas incompletos ou sem

solução, geralmente as pessoas tendem a buscar a conclusão imediata, sendo

que geralmente esta solução é prematura. A pessoa criativa, antes de fazê-la,

tende a considerar os fatores importantes envolvidos no problema, e procurar

soluções melhores a fim de produzir resultados mais satisfatórios que aqueles

encontrados sob impulso, de forma a gerar a resistência ao fechamento do

estímulo.

 Títulos Expressivos: a pessoa criativa faz uso do título como forma de não se

limitar somente a passar a informação básica, ela tenta expressar a essência da

sua ideia, abstraindo e indo além da mera descrição. No teste figural, os títulos

considerados expressivos são aqueles que vão além da descrição básica da

figura desenhada, seja adicionando um adjetivo ou abstraindo a ideia.

O Teste “Pensando Criativamente com Palavras” foi elaborado ao mesmo tempo

do teste figurativo. Esse instrumento é composto por seis atividades, sendo que as três

primeiras são baseadas em uma mesma imagem. Na primeira atividade deve-se fazer

perguntas acerca da imagem. Na segunda deve-se adivinhar possíveis causas para explicar

a imagem, e na terceira atividade deve-se adivinhar as consequências a partir do desenho.

Na atividade quatro é apresentado um produto e deve-se acrescentar características para

25
melhorá-lo. A quinta atividade consiste em inventar usos diferentes para um objeto e na

última atividade deve-se fazer suposições a partir de uma dada cena.

Deve ser destacado que nos primeiros estudos de Torrance, o seu teste de

criatividade verbal somente era corrigido pelas características cognitiva de fluência,

flexibilidade e originalidade. A possibilidade de avaliar outras características nesse teste

foi percebida em nosso trabalho (Wechsler, 1982) sob sua orientação. Assim sendo,

observamos que algumas das características (elaboração, emoção, fantasia, perspectiva

incomum e analogias) também poderiam predizer a quantidade de produção criativa na

vida real de sujeitos norte-americanos. Posteriormente, confirmamos a validade dessas

características para adultos brasileiros (Wechsler, 1985).

Além da avaliação da criatividade por meio de figuras e palavras, Torrance tentou

avaliar a criatividade de duas outras formas: movimentos e sons. Assim sendo, elaborou

os testes Thinking Creatively in Actions and Movements (Torrance, 1986) e Thinking

Creatively with Sounds and Words (Torrance, Katena, & Cunnington, 1986). As

características da personalidade criativa também eram de seu interesse e com seu

colaborador, Khatena, elaborou dois inventários de criatividade: Something About Myself

e o What Kind of Person are You (Khatena & Torrance, 1976). Apesar desses testes serem

menos conhecidos, eles demonstraram a possibilidade não só de avaliar os fatores

cognitivos da criatividade (fluência, flexibilidade e originalidade) mas também as

características da pessoa criativa, demonstrando assim que era possível medir a

criatividade de forma objetiva, válida e precisa.

26
INFLUÊNCIA DOS TESTES DE TORRANCE NAS PUBLICAÇÕES

BRASILEIRAS

Os testes de criatividade figural e verbal de Torrance foram validados no Brasil.

As pesquisas feitas com adultos brasileiros demonstraram que as características

cognitivas e emocionais presentes nesses testes podiam predizer a quantidade de

realizações criativas na vida real (Wechsler, 2006). Também foram elaboradas tabelas

brasileiras para avaliação da criatividade de adolescentes e adultos (Wechsler, 2004a,

2004b). Com base no modelo de criatividade de Torrance, foi validado para crianças

brasileiras o Teste Figural de Criatividade Infantil (Nakano, Wechsler, & Primi, 2011).

Esses testes foram aprovados pelo Sistema de Avaliação dos Testes Psicológicos

(SATEPSI) do Conselho Federal de Psicologia).

Os testes de Torrance, figurativo e verbal, são os instrumentos mais utilizados para

avaliar a criatividade na realidade brasileira. Uma revisão das publicações em teses,

dissertações e artigos sobre criatividade, realizadas nas bases da CAPES e no Index-Psi

foi feita por Nakano e Wechsler (2007). Os resultados apontaram que no período de 1984

a 2006, os testes de Torrance foram os instrumentos utilizados por 46% das dissertações

e 51 das publicações cientificas. Outra análise das publicações durante 15 anos no

contexto educacional (1995-2009) foi feita por Silva e Nakano (2012) nas bases de teses

e dissertações da CAPES, como também em bases eletrônicas de periódicos da SCIELO

e PEPSIC. Novamente os resultados revelaram que os Testes de Pensamento Criativo de

Torrance eram os testes mais utilizados para avaliar a criatividade em diferentes níveis.

Portanto, pode-se verificar a relevância de suas medidas para identificar ou detectar

ganhos em criatividade decorrentes de diferentes tipos de programas ou intervenções.

27
APLICAÇÕES DO MODELO TEÓRICO NO CAMPO DA PSICOLOGIA E

DEMAIS CIÊNCIAS

Torrance focou seu interesse de estudo na psicologia educacional. Ainda que seus

testes tenham se tornado as mais importantes medidas de criatividade, eles não foram

desenvolvidos somente com esse propósito. O próprio autor sugeriu alguns usos mais

amplos para seus testes: entender a mente humana e seu funcionamento e

desenvolvimento, descobrir bases efetivas para o ensino individualizado, prover

informações para programas de remediação ou psicoterapêuticos, ficar consciente de suas

potencialidades latentes, bem como para avaliar os efeitos de programas educacionais,

materiais, currículo e procedimentos de ensino (Kim, 2006). Em outras palavras, ainda

que os testes venham sendo usados, mais frequentemente para a avaliação da criatividade,

Torrance inicialmente planejou que eles tivessem sua utilidade no sentido de fornecer

bases para o ensino individualizado, por meio da identificação das características bem

desenvolvidas e aquelas que precisariam de estimulação, sem que o escore total fosse

interpretado como uma medida estática da habilidade da pessoa.

Os TTCT podem ser utilizados em diversos domínios da investigação psicológica

e pedagógica (fundamental e aplicada) e com diferentes propósitos. Por exemplo, em

contexto pedagógico pode constituir um auxiliar importante como meio de avaliar os

efeitos de programas experimentais (novos materiais ou programas escolares, novos

métodos pedagógicos) ou como meio de planificar um currículo individual (Pereira,

2001). Do mesmo modo, tais testes têm sido utilizados na identificação de estudantes com

altas habilidades/superdotação. De acordo com Kim (2011), a adição de um instrumento

de avaliação da criatividade nesses processos tem gerado um aumento no número de

estudantes identificados, especialmente aqueles que não obtêm destaque nos testes de

inteligência.

28
Deve ser ressaltado que o TTCT parece ser boa medida, não somente para a

identificação e atendimento de individuos portadores de altas habilidades/superdotação,

mas também na descoberta e encorajamento da criatividade diária na população geral

(Kim, 2006). Segundo Primi et al. (2013), vários são os méritos desse instrumento, sejam

a diversidade e quantidade de informações que proporcionam, tanto para a educação como

para a investigação, e o fato de ser simultaneamente fácil e rápido de ser administrado

(Swartz, 1988). Acresce ainda a vantagem de apresentar uma validação longitudinal

relevante (Davis, 1998).

DEFINIÇÃO DE CRIATIVIDADE POR TORRANCE

A criatividade por Torrance é vista como um processo e não algo estático. Esse

tipo de compreensão da criatividade implica que ela pode ser mudada ou desenvolvida

durante a vida de um indivíduo, nos mais diferentes ambientes.

Torrance (1965) define a criatividade como

(...) o processo de tornar-se sensível a problemas, deficiências, lacunas, elementos

ausentes ou desarmonias; identificar as dificuldades ou os elementos faltantes nas

informações; formular hipóteses, fazendo adivinhações a respeito das deficiências

encontradas; testar e retestar essas hipóteses, possivelmente modificá-las e retestá-

las novamente; e, finalmente, comunicar os resultados encontrados. (p. 8)

Segundo sua compreensão, a criatividade poderia ser definida como um processo

que envolve diferentes etapas: a percepção de lacunas em algum tipo de informação, a

identificação de soluções para essas lacunas e a quebra de barreiras. Tais aspectos

envolvidos nesse processo serviriam de estímulo para a testagem e experimentação de

novas hipóteses, quebra dos padrões e promoção de mudanças (Torrance & Safter, 1999).

29
Tal definição parte da premissa de que quando uma pessoa criativa detecta um erro ou

não encontra a solução esperada, sente uma tensão e busca reduzi-la. Para isso, trata de

buscar diferentes formas que levem à resolução do problema (Pérez, 2005). A definição

de Torrance remete às posteriores concepções dos passos necessários para a resolução

criativa de problemas, desenvolvidas nos modelos de grandes estudiosos da criatividade,

como Parnes, Noller e Biondi (1977) na Creative Education Foundation em Buffalo, no

estado de Nova York.

A ORIGEM E O DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE SEGUNDO

TORRANCE

Torrance defendia a ideia de que todos os indivíduos possuem potencial criativo,

reconhecendo suas diferentes formas de expressão (verbal, figural, musical, corporal,

entre outras). Em seu modelo, importante papel é destinado à motivação, fator que

influenciaria, de forma direta, o desempenho criativo.

O autor formulou algumas hipóteses acerca da expressão criativa nas diferentes

fases de desenvolvimento humano. Para ele, na criança, três seriam os principais períodos

em que a criatividade parece ter um declínio (Torrance, 1968). O primeiro deles ocorreria

em torno da idade de 5 e 6 anos, devido a fatores ambientais, usualmente a entrada da

criança na escola. Nessa ocasião, a criança, ao ingressar no sistema educacional, passaria

a ser confrontada com um mundo estruturado, com numerosas regras que guiam a

aprendizagem (Lubart, 2007). Por tal motivo, não deveria ser surpresa o fato da

criatividade infantil ser afetada, visto que a criança passaria por uma fase de adaptação às

normas e rotina escolares, voltando-se à aprendizagem e regras da vida escolar, e

deixando de lado, temporariamente, sua expressão criativa.

30
O segundo período ocorreria entre 9 e 10 anos. Neste período, as escolas tendem

a enfatizar o pensamento lógico para a compreensão e memorização das informações, ao

invés do pensamento divergente, que abriria possiblidades de descobertas. Assim sendo,

observa-se que ao redor do 5o ano (antiga 4a série) do ensino fundamental já existe uma

queda no pensamento criativo das crianças, chamada por Torrance de Fourth Grade

Slump. Essa queda foi observada em vários estudos internacionais.

A terceira queda na criatividade ocorreria por volta dos 13 anos, ocasião em que

uma segunda baixa na criatividade é notada. Provocada por uma série de mudanças no

ciclo escolar (período que corresponde à finalização do ensino fundamental e preparação

para o ensino médio), aliado às adaptações necessárias na adolescência, o adolescente se

vê diante da necessidade de uma nova adaptação, sendo tal período marcado pela pressão

dos pares e do desenvolvimento de sua identidade (Lubart, 2007). Sem dúvida, como

salientou Torrance (1979), esse decréscimo pode existir ou não em diferentes níveis

educacionais, cabendo à escola e a família o papel fundamental de estimular os talentos

de crianças e jovens durante todo o percurso.

O MODELO DE INCUBAÇÃO PARA O ENSINO CRIATIVO

Como uma forma de contestação para o modelo tradicional de ensino, que

vigorava no Estados Unidos, com forte ênfase no pensamento lógico, Torrance

desenvolveu o Modelo de Incubação para Ensino (Incubation Model of Teaching), que se

baseia na intuição, imaginação e revelação, que transcede a lógica e favorece um estado

alterado de consciência (Torrance & Safter, 1999)

Segundo Torrance, o objetivo de uma aula criativa seria encontrar o Satori, termo

japonês que revela um estado excelência, melhoramento, aperfeiçoamento, ou ato

realização no mais auto grau que permite chegar ao “aha” da descoberta (Torrance, 1979).

31
É para a obtenção do estado de Satori que Torrance delineou o seu modelo, demonstrando

que o encontro criativo não será súbido, mas sim, acontecerá depois de estudo,

concentração e esforço (Wechsler, 2008).

No Modelo de Incubação para o Ensino existem três estágios que devem ser

trabalhados, cada um deles com atividades a ser desenvolvidas para atingir metas

específicas. O detalhamento das atividades para cada estágio, com a linguagem

metafórica de Torrance e as explicações dos seus significados, são apresentadas a seguir:

 Estágio 1- Aumentando a antecipação

Estratégias de ensino: Criando vontade de conhecer; Aumentando

expectativas; Chamando atenção; Elevando curiosidade; Estimulando a

imaginação; Mostrando finalidades.

 Estágio 2: Aprofundando expectativas

Estratégias de ensino: Entrando fundo ( diagnósticar dificuldades);

Olhando diversas vezes (obter informações); Ouvindo cheiros

(experimentar com sentidos); Corrigindo erros (fazer hipóteses); Fazendo

buracos para ver dentro (focalizar no essencial); Cortando beiradas (dar

saltos mentais); Entrando em águas profundas (arriscar-se mais);

Escapando de portas fechadas (tentar novos horizontes).

 Estágio 3: Conservando o entusiasmo

Estratégias de ensino: Cantando no próprio tom (dar significado pessoal);

Fazendo castelos de areia (construir sobre a fantasia); Ligando com o sol

(encontrar intensa energia); Apertando as mãos do amanhã (projetar o

futuro).

Torrance demonstrou como esses estágios podem fazer parte de um aula de

qualquer disciplina. A aplicação para a área de leitura mereceu um livro do autor sobre

32
maneiras de encorajar a criatividade na sala de aula (Torrance, 1970). Também no nosso

país, Bighetti (1995) demonstrou que as crianças aprendiam e se interessavam mais pela

leitura quando eram utilizadas essas estratégias de ensino criativas.

Tanto o programa internacional de resolução de problemas (Future Problem

Solving Program International) quanto o Modelo de Incubação de Currículo (Incubation

Curriculum Model), criados por Torrance, basearam-se na possibilidade de

desenvolvimento da criatividade por meio do domínio de certas técnicas e prática. Ambos

foram aplicados em mais de 250 mil estudantes, em todo o mundo, alicercados na

possibilidade de estimular o pensamento criativo e crítico, estender a percepção do mundo

real, encorajar os estudantes a desenvolver uma visão de futuro, integrar a resolução de

problemas ao curriculo tradicional, oferecer avaliação e preparar os estudantes para o

exercício da liderança (para maior informação, consultar https://geniusrevive.com/en/).

Torrance e Myers (1976) afirmaram que “em nosso próprio trabalho sempre

constatamos que os métodos orientados a ativar o pensamento criativo podem ser

ensinados desde os cursos pré-escolares até os cursos universitários. Quase sempre os

alunos melhoraram de forma notória e, algumas vezes, espetacular, sua habilidade para

dar soluções originais e úteis aos problemas” (p. 98). Esses resultados apontam, segundo

os autores, para a importância das estratégias criativas serem incentivadas nas escolas,

independentemente do nível educacional, a fim de que seja proporcionado um

crescimento significativo na criatividade desde os anos escolares iniciais.

TEMAS DE PESQUISA DE TORRANCE

A vastíssima produtividade de Torrance pode ser encontrada tanto na literatura

norte-americana quanto internacional. A sua contribuição para a psicologia educacional

é ampla e diversa, enfocando sempre o papel que o professor tem na estimulação da

33
criatividade na escola e questionando a visão tradicional do aluno ideal que impede ao

professor reconhecer talentos em sua sala da aula. Publicou vários artigos sobre o tema,

inclusive uma escala The ideal people checklist (Torrance, 1975), questionando as

preferências de professores por alunos bem-comportados, educados e bonzinhos.

Em suas publicações sobre as características das crianças criativas, Torrance

deteve-se nas questões relacionadas com a identificação da criatividade em crianças de

ambientes desfavorecidos. Propôs que as formas de identificar, e de educar as crianças,

deveriam basear-se nas suas características positivas, ou creative strengths, tais como:

expressão corporal, improvisação, humor, fantasia (Torrance, 1976).

A base neurobiológica da criatividade também lhe despertou interesse. Enfatizou

que o ensino criativo deveria ser baseado em estratégias direcionada para o hemisfério

direito cerebral, que trabalha com as informações de modo sensorial, intuitivo, global,

não-verbal. Entretanto, como observou, o ensino tradicional está baseado no hemisfério

esquerdo, que prioriza informações de modo lógico, racional, verbal, sequencial. Assim

sendo, propôs que existisse uma mudança no modo de ensinar, visando o

desenvolvimento do hemisfério direito, e que esta deveria ocorrer, principalmente,

quando se ensina crianças provenientes de ambientes desfavorecidos (Torrance &

Mourad, 1979). Desenvolveu também uma escala para avaliar o modo preferencial de

aprender pela hemisfério direito ou esquerdo Human Information Processing Survey

(Torrance, Taggart, & Taggart, 1984).

Certamente, as pesquisas mais importantes de Torrance foram aquelas que se

basearam nos seus estudos longitudinais iniciados com a amostra que ele coletou em

1950. Ele realizou o seguimento dessas pessoas após 7 anos e 22 anos, demostrando que

seus testes podiam predizer a quantidade e a qualidade da produção criativa na vida real

(Torrance, 1972a, 1972b, 1980). Após 30 anos, ele decidiu avaliar quais eram as

34
características das pessoas que se destacavam na sua amostra, denominadas The

Beyonders, “aqueles que vão além”. Desenvolveu também uma escala The Beyonder

Checklist (Torrance, 1995, 1999). As seguintes 10 características foram encontradas nos

Beyonders:

1) Ter prazer em pensar.

2) Tolerar erros.

3) Amar o trabalho.

4) Ter propósito de vida.

5) Ter prazer no que faz.

6) Sentir-se confortável mesmo estando sozinho.

7) Ser diferente.

8) Não ser todo certinho.

9) Ter um sentido de missão criativa.

10) Ter a coragem de ser criativo.

Torrance tem uma vastíssima publicação em criatividade no cenário nacional e

internacional. Segundo seu biógrafo, ele publicou cerca de 1.871 trabalhos, sendo 88

livros, 256 capítulos de livros, 538 manuais, testes e entrevistas, 162 artigos em revistas

científicas, 355 escritos sobre conferências e 64 prefácios. Recebeu diversas distinções

entre as quais o prêmio Arthut Lipper Award of the World Olympics of the Mind, Award

for Excellence as Teacher Educator, Distinguished Scholar from the National

Association for Gifted Children, Odysssey of the Mind Creative Award, Life Achievement

in Education and Creativity Researcher, e foi eleito membro da Who’s who in the World

e Who’s in the Frontier of Science an Technology. Tais reconhecimentos representam o

perfil de Paul Torrance, e conferem a sua autodescrição como “Aquele que vai além” - A

beyonder (Millar, 1995).

35
Quando aposentou, como Emeritus Professor, e como sugestão de seus ex-alunos,

decidiu organizar o Torrance Center of Creative Studies, em 1984, para guardar seu

enorme arquivo de pesquisas sobre criatividade nas mais diferentes áreas e faixas etárias.

Esse local, agora renomeado de Torrance Center for Creativity and Talent Development

(2018) funciona no College of Education, na University of Georgia (Athens), e tem como

missão investigar e implementar técnicas para avaliar e desenvolver o pensamento

criativo, assim como para dar suporte a organizações nacionais e internacionais que se

dedicam à criatividade. Torrance faleceu em 12 de junho de 2003, aos 87 anos.

CRÍTICAS AO MODELO TEÓRICO

Considerando-se que o modelo teórico de criatividade proposto por Torrance se

encontra representado em seus testes, uma série de críticas a esses instrumentais podem

ser encontradas na literatura científica. Elas envolvem desde questões relacionadas aos

seus usos práticos, às suas evidências de validade (notadamente preditivas), bem como

em relação à complexidade do processo de correção. Cada uma dessas críticas será

detalhada a seguir.

A primeira crítica envolve os usos que têm sido feitos, tradicionalmente, dos

testes. Ainda que eles venham sendo usados, mais frequentemente para a avaliação da

criatividade, um dos problemas relacionados, segundo Kim (2006), refere-se à

interpretação equivocada de seus objetivos. Isso porque essa bateria costuma ter seus

testes identificados como uma medida de criatividade, ainda que os mesmos não tenham

sido projetados para apenas medir a criatividade, mas sim para servir como ferramenta

para valorização desse construto. Entretanto, esses instrumentos têm sido utilizados como

critério para se classificar o nível de criatividade individual. A ideia inicial de Torrance

era de que os dados resultantes dos instrumentos fornecessem bases para um ensino

36
individualizado. O próprio autor não recomendou que os índices criativos gerados pelo

instrumento fossem adotados como parâmetro para afirmar a presença ou não da

criatividade.

Esse tipo de preocupação não se restringe aos testes de Torrance, sendo

encontrada em relação aos testes de criatividade em geral. Zeng, Proctor e Salvendy

(2011) e Glaveanu (2010), por exemplo, questionam a capacidade preditiva que os testes

apresentam em relação à avaliação do potencial criativo na vida real. Os autores

apresentam alguns argumentos que enfraqueceriam as evidências de validade e precisão

desses instrumentos: (a) ênfase em aspectos como novidade e originalidade, os quais vêm

sendo destacados em detrimento da investigação da adequação, valor e aplicação prática

das ideias; (b) crença de que os instrumentos podem prever o potencial criativo nos mais

diversos domínios, contrariando a noção de criatividade como domínio específico; (c)

baixa correlação encontrada entre as habilidades criativas medidas pelos testes e as

realizações criativas na vida real (em torno de 0,20 e 0,30); (d) uso de tarefas que não

envolvem problemas da vida real, baseadas em contextos e tarefas artificiais, que pouco

ou nada se relacionam ao contexto cultural ou às questões da vida real e cuja capacidade

preditiva mostra-se bem menor do que aquelas que fazem uso deste tipo de problema

(média de 0,30 contra 0,49); e (e) problemas relacionados à validade discriminante das

medidas, notadamente as altas correlações encontradas entre as características avaliadas

nesses instrumentos (fluência, flexibilidade e originalidade),

De acordo com Glaveanu (2010), o próprio Torrance teria afirmado que um alto

resultado nas habilidades avaliadas em seus testes não garantiria à pessoa, por si só, a

manifestação de comportamentos criativos, dado o fato de que outras habilidades, tais

como motivação, seriam necessárias para que uma realização criativa na idade adulta. A

segunda crítica baseia-se em questionamentos acerca das evidências de validade do

37
instrumental, notadamente a preditiva. Runco, Millar, Acar e Cramond (2010) apontam

que o tipo de realização criativa avaliada pelos testes de Torrance limita-se à criatividade

pessoal, não estando relacionada à realização pública ou reconhecida.

Diante da complexidade do modelo criado por Torrance (1966) e do surgimento,

posterior, de métodos estatísticos de análise de dados mais complexos, importantes

lacunas têm sido apontadas pelos pesquisadores nos estudos sobre criatividade (Nakano

& Primi, 2014). Como exemplo podemos citar a importância de estudos que visem a

investigação da estrutura interna das medidas de criatividade, ressaltada por Kim,

Cramond e Bandalos (2006) e Clapham (1998). De acordo com os autores, devido ao

grande número de características avaliadas pelos instrumentos, torna-se necessário o

desenvolvimento de pesquisas que tenham como objetivo principal examinar como essas

características organizam-se para formar uma escala de forma a caracterizar os diferentes

níveis ou diferentes perfis do desempenho criativo.

PERSPECTIVAS FUTURAS DA TEORIA

Ainda que os testes de Torrance venham se mostrando, historicamente, os mais

investigados e pesquisados na área da criatividade, algumas lacunas e perspectivas de

pesquisas futuras podem ser apontadas. Especialmente em relação ao teste figural, o qual

é considerado livre da influência de fatores como gênero, linguagem, raça e cultura,

faltam estudos que comprovem suas evidências de validade e precisão em amostras

compostas por uma ampla variedade normativa (Kim, 2006). Do mesmo modo,

recomenda-se que os testes passem por uma revisão em relação à lista de respostas não

originais, uma vez que desde 1984 (quando foram revisadas pela última vez), uma série

de mudanças na frequência das diferentes respostas certamente ocorreu.

38
Outra importante lacuna refere-se a estudos que busquem investigar o modelo de

avaliação da criatividade proposto por Torrance fazendo uso de métodos psicométricos

mais atuais (tais como Teoria de Resposta ao Item - TRI, modelo de equações estruturais

ou ainda análise fatorial confirmatória), cuja utilização, em medidas relacionadas à

criatividade, ainda são escassas, conforme apontamento de Nusbaum e Silvia (2011) e

Silvia (2008a, 2008b), embora isso já venha ocorrendo internacionalmente,

principalmente na investigação da relação entre criatividade e inteligência.

Modelos atuais mais reconhecidos para avaliação da inteligência, como o de

Cattell-Horn-Carroll, por sua vez, definem a criatividade como fator de segundo estrato

(Schneider & McGrew, 2012), relacionada com a recuperação em longo prazo (Glr). Essa

proposta, sem dúvida, limita criatividade à concepção de associação entre ideias. Estudos

futuros poderiam ser realizados comparando as propostas de medidas de criatividade por

Torrance com este modelo, a fim de melhor definir as dimensões da criatividade.

Em conclusão, toda a biografia de Torrance comprova a sua dedicação, esforço e

competência como pesquisador para avaliar a criatividade e demonstrar formas de

desenvolvê-la. Coube a ele o reconhecimento internacional de que a criatividade é um

construto que pode ser observado, e avaliado, de forma válida e precisa. Dessa maneira,

conseguiu retirar o termo criatividade do limbo da subjetividade para demonstrar que era

possível identifica-la e encorajá-la. Sem dúvida cabe a ele o termo “Pai da Pesquisa em

Criatividade”.

Torrance foi mais que um pesquisador e professor. Sem dúvida foi um visionário

e um mentor muito querido por todos seus alunos (caso da primeira autora deste capítulo).

O seu grande talento não era apenas como pesquisador e educador, mas realmente um

amigo e um sábio ao seu lado. A sua influência e carinho ao lidar com alunos deixou uma

39
marca indelével em todos que puderam desfrutar os inestimáveis momentos de sua

companhia e orientação.

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46
O MODELO COMPONENCIAL DE CRIATIVIDADE DE TERESA AMABILE

Denise de Souza Fleith

Daniela Vilarinho-Rezende

Eunice Maria Lima Soriano de Alencar

Os primeiros estudos sobre criatividade conduzidos por Teresa M. Amabile

tiveram início na década de 70 e buscaram compreender o papel da motivação e de fatores

sociais no processo criativo. Nas últimas quatro décadas, Amabile realizou tanto

experimentos em laboratório quanto pesquisas envolvendo crianças da educação infantil

e ensino fundamental, estudantes universitários, escritores e cientistas, entre outros

profissionais, com dados coletados por meio de entrevistas e observação no ambiente

natural. Conduziu também numerosos estudos, em organizações, sobre fatores que

impactam a criatividade, facilitando-a ou inibindo-a. Segundo Amabile (1983), para

entender criatividade duas questões deveriam ser respondidas: Como o desempenho

criativo difere do desempenho comum? Que condições são mais favoráveis ao

desempenho criativo – quais habilidades e características pessoais e quais ambientes

sociais?

Portanto, compreender a criatividade sob uma perspectiva social e não apenas

individual foi, e continua sendo, o foco dessa pesquisadora norte-americana. As pesquisas

de D. K. Simonton (1975) sobre o desenvolvimento de uma psicologia social da

criatividade, já nos anos 70, trouxeram insight às suas ideias a respeito do fenômeno. Em

1983, Amabile publicou o livro The Social Psychology of Creativity, no qual apresenta o

seu modelo de criatividade, o Modelo Componencial da Criatividade, e estudos que

contribuíram para a formulação desse modelo.

47
Ela possui formação em química, no nível de graduação, e mestrado e doutorado

em psicologia pela Stanford University. Foi professora do Departamento de Psicologia da

Brandeis University e, desde 1995, é docente da Harvard University, na área de Business

and Administration, na qual atua em programa de mestrado em negócios e administração

(MBA), bem como em cursos sobre gerência da criatividade, liderança e ética. Seu foco

de pesquisa atualmente tem sido a psicologia do dia a dia do trabalho, em especial como

a experiência subjetiva influencia o desempenho no trabalho, criatividade e transições na

carreira.

De acordo com Amabile (1996a), “um produto ou resposta será julgado como

criativo na medida em que (a) é novo e apropriado, útil, correto ou de valor para a tarefa

em questão, e (b) a tarefa é heurística e não algorítmica” (p. 35). Essa definição enfatiza

a necessidade da tarefa ser do tipo aberta, que possibilite múltiplas respostas, ao invés

daquela que permite apenas uma solução. Além disso, a resposta ou produto é criativo na

medida em que é considerado criativo por pessoas familiarizadas com o domínio no qual

ele foi produzido (Amabile, 2012). Nesse sentido, o produto tem que ser tanto original

quanto útil.

No que concerne à caracterização das tarefas como algorítmicas ou heurísticas,

existem aquelas que podem ser tanto uma quanto outra, dependendo do contexto em que

se inserem, bem como aquelas que somente podem ser algorítmicas ou heurísticas. Por

exemplo, se a tarefa é montar um carro cujo modelo-planta já existe, trata-se de uma tarefa

algorítmica, ou seja, algo que já é conhecido. No entanto, se a tarefa consiste em

desenvolver um novo modelo-planta de um veículo, a tarefa é heurística, pois exige a

criação de algo novo.

Existe, no entanto, tarefas que somente podem ser caracterizadas como heurísticas

como, por exemplo, descobrir a cura para uma doença até então incurável, como, por
48
exemplo, a AIDS, ou reverter a situação de uma pessoa que ficou paraplégica em

decorrência de fratura em sua coluna vertebral. Da mesma forma, existem tarefas

exclusivamente algorítmicas tal como a realização de uma simples conta de adição.

A caracterização da tarefa como algorítmica ou heurística, do ponto de vista

individual, depende basicamente do nível de conhecimento que o indivíduo tem em

relação a ela. Assim, pode ser que a tarefa de resolver um problema complexo de

matemática avançada seja uma tarefa algorítmica para um estudante que já tem

conhecimento de como solucionar o problema e, ao mesmo tempo, uma tarefa heurística

para outro estudante que precisa desenvolver algoritmos para encontrar a solução. Dessa

forma, por definição, uma tarefa de criatividade não pode decorrer de algoritmos

plenamente conhecidos e, portanto, deve decorrer de uma tarefa heurística, ou seja,

resultante da criação de algo novo e ainda não conhecido.

Ao discorrer a respeito de sua definição de criatividade, Amabile (1995a) sinaliza

que:

Para a maioria dos leigos, e muitos pesquisadores, criatividade é uma qualidade

de pessoas, uma constelação de traços de personalidade, características cognitivas

e estilo pessoal. Se nós mudarmos essa perspectiva dispositiva para uma que

admita a possibilidade de fortes influências sociais na criatividade, nós devemos

abandonar a definição centrada na pessoa. Agora, criatividade torna-se uma

qualidade de ideias e produtos que é validada pelo julgamento social, e

explicações de criatividade podem englobar características da pessoa, fatores

situacionais, e a complexa interação entre eles. (p. 424).

O modelo proposto por Amabile (1983, 1988, 1989, 1996a) propõe explicar como

fatores cognitivos, motivacionais, sociais e de personalidade influenciam no processo

49
criativo. Essa autora ressalta constituir o seu modelo uma teoria compreensiva que inclui

uma descrição tanto do processo criativo quanto de elementos do indivíduo e do ambiente

externo que têm influência na criatividade (Amabile & Mueller, 2008). Grande ênfase,

porém, é dada ao papel da motivação e dos fatores sociais no desenvolvimento e

expressão da criatividade. O Modelo Componencial de Criatividade, idealizado por

Amabile, envolve três componentes que interagem entre si: (a) habilidades de domínio,

(b) processos criativos relevantes, e (c) motivação (Amabile & Pillemer, 2012; Collins &

Amabile, 1999; Conti, Coon, & Amabile, 1996). Segundo Amabile, esses componentes

são necessários e suficientes para a produção criativa em qualquer domínio. Embora o

seu modelo inclua predominantemente componentes intraindividuais, o ambiente social

exerce influência crucial sobre cada um deles em todas as etapas do processo criativo,

atuando como um quarto componente do modelo (Amabile & Mueller, 2008; Amabile &

Tighe, 1993).

O componente habilidades de domínio inclui vários elementos relacionados ao

nível de expertise em uma área, tais como talento em um domínio particular em que o

indivíduo esteja trabalhando, conhecimento, adquirido por meio de educação formal e

informal, experiência e habilidades técnicas na área. Embora alguns desses elementos

possam ser considerados inatos (como, por exemplo, boa memória auditiva para

reproduzir sons musicais), educação e experiência contribuem também para o seu

desenvolvimento (Amabile & Tighe, 1993). Contribuições criativas não ocorrem no

vácuo, mas estão alicerçadas em um amplo conhecimento da área em que se está atuando.

Conforme assinala Starko (1995), é necessário ter muito conhecimento sobre uma área de

modo a transformá-lo ou ampliá-lo, derivar implicações do mesmo e combiná-lo de

diferentes maneiras. O nível de operação desse componente é intermediário, o que sugere

que as tais habilidades são efetivas para o domínio de forma geral e não apenas para uma

50
tarefa específica.

O segundo componente é denominado de processos criativos relevantes e inclui

estilo de trabalho, estilo cognitivo que facilita a adoção de novas perspectivas a respeito

de uma questão ou problema, domínio de estratégias para a produção de novas ideias e

traços de personalidade. Tais elementos influenciam no uso que se faz das habilidades de

domínio. Por exemplo, analisar uma informação sob diferentes pontos de vista, ou

mediante metáforas, pode contribuir para melhor compreensão do domínio. Segundo

Amabile (1989), o estilo de trabalho criativo é caracterizado como habilidade de se

concentrar por longos períodos de tempo, dedicação ao trabalho, alto nível de energia,

persistência frente a dificuldades, busca da excelência e habilidade de abandonar ideias e

estratégias de busca improdutivas.

Exemplos de características de estilo cognitivo favorável à criatividade citados

por Amabile (1988, 1996a) são quebra de padrões usuais de pensamento, quebra de

hábitos, facilidade em compreender complexidades, produção de várias opções de

respostas para um problema, suspensão de julgamento no momento de geração de ideias,

transferência de conteúdos de um contexto para outro e armazenagem e recordação de

ideias. O domínio de estratégias que favorecem a produção de novas respostas está

alicerçado em princípios heurísticos tais como: (a) torne o familiar estranho, (b) gere

hipóteses, use analogias, investigue incidentes paradoxais, e (c) brinque com suas ideias.

Esse componente é influenciado por treinamentos realizados pelo indivíduo nos quais são

explicitados e fortalecidos os distintos elementos que caracterizam esse segundo

componente, pelas experiências pessoais em geração de ideias e traços personológicos,

além de operar em um nível mais geral, influenciando as respostas a qualquer domínio.

Segundo Amabile (1996a), traços de personalidade podem contribuir para o

desenvolvimento dos processos criativos relevantes. Dentre os traços de personalidade

51
que favorecem a produção criativa, ressaltam-se a autodisciplina, persistência,

independência, tolerância por ambiguidades, habilidade em adiar gratificações, não

conformismo, automotivação, lócus de controle interno e desejo de correr riscos. Para

Amabile, esses estilos e traços podem ser desenvolvidos ao longo do curso de vida.

Quanto ao terceiro componente da criatividade, a motivação, entende-se que é

crucial para determinar o nível de interesse do indivíduo em relação à tarefa

desempenhada, considerando mesmo a autora poder ser a motivação o componente mais

importante do modelo. Vai além, sinalizando que nenhum grau de habilidades de

domínio, por maior que seja, ou de processos criativos relevantes possa compensar

plenamente a falta de motivação apropriada para realizar uma atividade. E ainda que um

alto grau de motivação apropriada pode compensar uma dificuldade em um dos dois

outros componentes do modelo. Há pelo menos dois tipos básicos de motivação: a

intrínseca, em que a pessoa se engaja na tarefa por interesse, prazer, satisfação e desafios

positivos gerados pela natureza do trabalho em si; e a extrínseca, em que o indivíduo se

dedica a uma atividade pelas recompensas externas a ela relacionadas. De acordo com

Amabile (1989), “não existe tal coisa chamada ‘atividade intrinsecamente interessante’.

Uma atividade pode ser intrinsecamente interessante para uma pessoa em particular, em

um período de tempo específico” (p. 54).

Por alguns anos, a motivação extrínseca foi vista como deletéria à criatividade,

enquanto a intrínseca era a que favorecia seu desenvolvimento (Amabile, 1989).

Entretanto, resultados de pesquisas indicaram que a motivação intrínseca é um elemento

crucial para a criatividade e a motivação extrínseca pode combinar sinergicamente com a

intrínseca, favorecendo o processo criativo (Amabile, 1987, 1996a; Amabile & Pillemer,

2012; Collins & Amabile, 1999).

52
Duas formas de motivação extrínseca foram identificadas. A primeira é a

sinergética que envolve ter sua criação reconhecida, ser sensível à opinião de outros

acerca de seu trabalho, julgar o sucesso de sua produção comparando-a com o de outras

pessoas, e preferir trabalhar com objetivos e procedimentos claros. A segunda, a não

sinergética, pressupõe que o indivíduo se engaje pela recompensa monetária ou qualquer

outro ganho externo como notas, metas e salários. Essa última forma de motivação,

segundo Amabile (1996a), inibe o potencial criativo da pessoa. Esse componente é o que

apresenta maior especificidade, ou seja, a motivação varia de acordo com a tarefa

proposta, podendo ainda mudar ao longo tempo.

Ao discutir a motivação para a criatividade no trabalho, Amabile (1996b) sinaliza

que é muito raro a existência de atividades que sejam puramente intrinsecamente

motivadas. Propõe ser mais provável motivadores intrínsecos e extrínsecos estarem

presentes na grande maioria de tarefas que as pessoas realizam em sua atividade

profissional e ainda que algumas pessoas tendem a ser mais consistentemente focadas em

motivadores intrínsecos, ao passo que outras tendem a ser mais consistentemente fixadas

em motivadores extrínsecos.

Amabile (1996a) propõe seis princípios para predição da criatividade:

1. Os componentes combinam entre si multiplicando-se. Quanto maior os níveis

de cada um, mais criativo será o produto.

2. O nível das habilidades de domínio influencia a adequação e precisão da

resposta. Essas habilidades determinam o caminho inicial a ser percorrido

para a solução do problema, bem como para a validação das respostas

geradas.

3. As habilidades criativas relevantes são os principais responsáveis pelo nível

de originalidade/novidade da resposta.

53
4. O nível e o tipo de motivação não somente determina se o indivíduo irá se

engajar na tarefa, mas também influencia o nível de originalidade/novidade

da resposta da mesma forma que os processos criativos.

5. O processo de envolvimento com a tarefa é cíclico. Na ausência de fatores

extrínsecos inibidores, os determinantes do engajamento com a tarefa são o

nível inicial de motivação e o sucesso ou fracasso que corre ao longo do

processo.

6. O nível de motivação intrínseca inicial pode influenciar habilidades de

domínio e habilidades criativas relevantes.

Em síntese, os componentes de ordem individual devem ser compreendidos de

maneira integrada e inter-relacionada para que a criatividade se manifeste. O alto nível

de criatividade ocorre quando a área de justaposição entre os três elementos é maior, isto

é, o indivíduo possui uma grande bagagem de conhecimento em uma determinada área,

apresenta características cognitivas e estilos de trabalho que são importantes nessa área e

engaja-se nela com prazer e satisfação.

Entretanto, se os níveis de habilidades de domínio e processos criativos estão

altos, mas a motivação intrínseca baixa, o produto dificilmente se distinguirá pela

criatividade. Nesse caso, o indivíduo apresentará pouco interesse em tarefas futuras que

sejam parecidas com a atividade anterior, a não ser que incentivos exteriores (motivação

extrínseca) sejam reforçados. Quando os níveis das habilidades de domínio e motivação

são altos e os dos processos criativos relevantes baixos, o resultado não será original, mas

o conhecimento e o envolvimento com a atividade farão com que o sujeito, por meio de

treino e experiência, passe a apresentar produtos com maior nível de criatividade no

futuro. Já na situação em que os processos criativos e a motivação forem altos e as

54
habilidades de domínio forem baixas, o indivíduo apresentará pouco conhecimento e seus

resultados, em geral, serão considerados pouco adequados, bizarros ou excêntricos

(Amabile, 1996a; Santos, 2014).

É essencial salientar que o ambiente social é um fator de destaque no modelo

proposto por Amabile (1996a) Para a autora, os aspectos sociais têm um impacto

profundo sobre a criatividade. Com base em numerosas pesquisas em ambientes de

trabalho, Amabile (1995b, 1999) identificou fatores que estimulam a criatividade e que

deveriam ser incorporados como práticas gerenciais. São eles: autonomia ou liberdade no

que se refere a como fazer o trabalho, recursos suficientes em termos financeiros,

humanos e de tempo, reconhecimento e apoio às novas ideias, nível ótimo de desafio,

reconhecimento da competência dos membros de cada equipe responsável por um projeto,

recompensas que envolvem o interesse intrínseco pelo trabalho e estrutura suficiente para

realização da atividade. Por outro lado, os fatores negativos estão relacionados a

avaliações críticas que conotam a desqualificação do indivíduo, expectativa com relação

à avaliação e vigilância, restrição de liberdade de opiniões, crítica excessiva às novas

ideias, prazos arbritários e inalcançáveis e competição entre colegas.

Como apontado anteriormente, o Modelo Componencial da Criatividade inclui

tanto um detalhamento de elementos do indivíduo e do ambiente externo que têm

influência na criatividade, quanto uma descrição do processo criativo. Para Amabile

(1983, 1996a), esse processo inclui cinco estágios O primeiro estágio é denominado

identificação do problema ou da tarefa. Nesse estágio, o indivíduo identifica um problema

específico como tendo valor para ser solucionado (estímulo interno). O problema a ser

resolvido pode também ser apresentado por outra pessoa (estímulo externo). Caso o

indivíduo tenha um nível alto de motivação intrínseca pela tarefa, esse interesse será

suficiente para engajá-lo no processo. O segundo estágio envolve a preparação para a

55
produção de ideias, soluções ou produtos, momento em que o indivíduo constrói ou

reativa um estoque de informações relevantes para a solução do problema. Importante

nesse estágio é o desenvolvimento de habilidades de domínio. No terceiro estágio,

denominado geração de resposta, o nível de originalidade do produto ou resposta é

determinado. Nesse estágio, o indivíduo gera várias possibilidades de respostas, fazendo

uso das habilidades criativas relevantes e de sua motivação intrínseca. O nível de

flexibilidade na exploração de alternativas para solução do problema e a atenção dada a

aspectos específicos da tarefa são elementos preciosos nessa etapa.

No quarto estágio ocorre a comunicação e validação da resposta. Segundo

Amabile (1996a), uma ideia não pode permanecer apenas na mente do indivíduo que a

produziu, caso contrário, nenhum produto observável será gerado. É necessário que o

criador comunique sua ideia ou produto de alguma maneira. A ideia produzida deve ser

ainda testada. Neste sentido, o indivíduo faz uso de suas habilidades de domínio para

avaliar a extensão em que o produto ou resposta será criativa, útil, correta e de valor para

a sociedade de acordo com critérios estabelecidos pelo domínio.

O quinto e último estágio, denominado resultado, representa a tomada de decisão

com relação à resposta, com base na avaliação do estágio anterior. Caso a resposta ou

produto tenha solucionado o problema com sucesso, o processo termina. Da mesma

forma, caso a resposta gerada tenha sido considerada um fracasso total, o processo

também é finalizado. Por outro lado, se a resposta produzida é parcial, ou seja, representa

um progresso em direção à solução do problema, o processo retorna aos estágios

anteriores. De qualquer forma, o conhecimento adquirido nesse processo será incorporado

ao repertório de habilidades de domínio. Espera-se também que experiências prévias com

o problema ajudem a produzir respostas mais criativas em momentos posteriores de

envolvimento com a tarefa. Entretanto, no caso de resultados parciais ou de insucesso, é

56
essencial que o indivíduo se sinta motivado para dar continuidade ao trabalho ou reiniciá-

lo (Amabile, 1983, 1996a). Caso contrário, se a motivação diminuir, o processo será

finalizado. É importante ressaltar ainda que esses estágios não ocorrem, necessariamente,

em uma sequência lógica.

Collins e Amabile (1999) chamam a atenção para a importância de se cultivar as

habilidades de domínio, processos criativos relevantes e motivação, pois é na interseção

dessas três dimensões que a expressão criativa terá mais chances de florescer. Por isso, é

essencial que os indivíduos tenham oportunidades de identificar e desenvolver tais

habilidades nos diferentes contextos nos quais estão inseridos.

Neste sentido, Amabile (1983, 1989, 1996a) sugere alternativas de estimulação da

criatividade, algumas delas mais relacionadas ao ambiente escolar ou familiar, e outras

ao de trabalho:

 Dar ao indivíduo oportunidade de escolha, levando em consideração seus

interesses e habilidades. Crianças as quais foram dadas oportunidades para

escolher o material a serem usados em seus trabalhos apresentaram maior

nível de criatividade do que aquelas que não tiveram tais oportunidades. De

forma similar, liberdade para decidir como realizar o trabalho ou abordar um

problema específico é apontado por Amabile (1999) como uma prática

gerencial que favorece a expressão da criatividade em empresas.

 Encorajar a autonomia do indivíduo, evitando a dependência e o controle

excessivo, e respeitando a individualidade de cada um. Professores

extremamente controladores em sala de aula estimulam muito pouco a

motivação intrínseca dos alunos em comparação aos professores que

encorajam um alto nível de autodeterminação e autocontrole. A mesma

57
situação pode ser encontrada no ambiente de trabalho no caso de chefes que

exercem fortemente o seu controle sobre os funcionários.

 Enfatizar o prazer no ato de aprender/trabalhar. Segundo Amabile (1983),

enquanto os indivíduos não perceberem que estão realizando uma tarefa ou

atividade apenas para obter uma recompensa, esta pode ter um efeito positivo

na criatividade. Ademais, um envolvimento prazeroso com a tarefa contribui

para produzir níveis mais altos de criatividade.

 Evitar expor um aluno ou um funcionário a situações nas quais ele percebe

que está sendo observado enquanto realiza uma tarefa, pois tal procedimento

pode minar a criatividade.

 Apresentar pessoas criativas como modelos. Um exemplo: mentores

altamente criativos durante cursos de formação podem ter grande influência

no desenvolvimento da criatividade de seus alunos.

 Evitar situações de competição. Competição geralmente ocorre quando as

pessoas sentem que seu desempenho será avaliado em relação ao desempenho

de outros e que o melhor receberá uma recompensa. Segundo Amabile

(1989), embora isso seja um fato corriqueiro da vida, tais situações podem

minar a criatividade.

 Encorajar o uso da fantasia e da imaginação. O envolvimento de crianças em

atividades que estimulem a fantasia e imaginação antes da realização de

tarefas escolares pode contribuir para níveis mais altos de criatividade.

 Ressaltar as realizações ao invés de notas ou prêmios. Pais e professores

devem frequentemente mencionar os aspectos prazerosos e divertidos das

atividades escolares, a satisfação inerente ao envolvimento em tais atividades

e, sempre que possível, eliminar a dicotomia entre trabalho e diversão.

58
 Cultivar a autonomia e independência, enfatizando valores ao invés de regras.

Isso não significa dizer que os pais devam ser permissivos. Ao invés de regras,

sugere-se que eles apresentem um conjunto de valores referentes ao que é

certo e errado, exercitem esses valores a partir de suas ações e encorajem os

filhos a refletirem sobre que comportamentos exemplificam tais valores.

 Encorajar comportamentos de questionamento e curiosidade: permitir que os

estudantes apresentem diferentes opções para uma tarefa, utilizar diferentes

estratégias didáticas, como, por exemplo, solucionar um problema, optando

por ir do fim para o começo, usar expressões encorajadoras de

comportamento criativos, tais como “Vamos encontrar uma forma criativa de

fazer isso? ”, “De que outra forma podemos fazer isso? ”, “Vamos criar tantas

ideias quanto for possível”.

 Atuar como pais ativos e independentes. Os pais são um dos primeiros

modelos para seus filhos. Pais de criança criativas tendem a se sentir seguros

acerca de si mesmos, têm muitos interesses, não se preocupam com status

social e são relativamente imunes a demandas sociais.

 Usar feedback informativo. Ao invés de simplesmente dizer “Isso é muito

bom” ou “Péssimo trabalho”, opte por especificar exatamente os pontos

positivos e/ou os negativos. Ao invés de o pai ou a mãe dizer “se você tirar

10 em matemática”, você receberá R$ 10,00, apresente o bônus depois do fato

ocorrido: “Nós iremos hoje à noite a um restaurante de sua escolha para

celebrarmos a nota excelente que você tirou” (Amabile, 1989). Ou seja, ao

invés de ser vago na sua avaliação, seja específico, detalhe os pontos fortes

e/ou fracos.

59
 Oportunizar experiências especiais. Os alunos irão perceber que a criatividade

é valorizada em sala de aula se situações diferentes ocorrerem

frequentemente. Por exemplo, “Professor por um Dia” (o aluno torna-se o

professor e o professor, um dos alunos), Bônus de Sexta-feira (durante uma

hora da aula de 6a feira o aluno pode realizar a atividade que escolher).

Segundo Amabile (1989), um ambiente de sala de aula que encoraja e fortalece a

criatividade segue os seguintes princípios: (a) os alunos devem ser aprendizes ativos, e,

portanto, devem ser encorajados a expressarem seus interesses, experiências, ideias,

opiniões e materiais; (b) os alunos devem se sentir confortáveis e estimulados; tensão e

pressão devem estar ausentes; (c) professores são recursos, não são deuses e,

consequentemente, não são perfeitos; (d) os alunos devem se sentir à vontade para discutir

problemas abertamente com seu professor e colegas; (d) cooperação é sempre preferível

a competição; (e) os alunos devem desenvolver sentimentos de pertencimento de orgulho

em sala de aula; (f) os alunos são merecedores de respeito e afeto; e (g) experiências de

aprendizagem devem ser próximas possíveis do mundo real dos alunos.

Com relação ao ambiente de trabalho, Amabile (1998, 1999; Amabile &

Sensabauch, 1989) identificou, como sinalizado anteriormente, distintas práticas

gerenciais que promovem a criatividade. São elas: (a) desafio, (b) liberdade, (c) recursos,

(d) características do grupo de trabalho, (e) incentivo do supervisor ou gerente, e (f)

suporte organizacional. O quesito desafio foi identificado como o mais eficaz para

estimular a criatividade, sendo que o êxito neste quesito depende fundamentalmente de o

gerente ter conhecimento a respeito de distintas características do empregado, como suas

expertises, habilidades e anseios, podendo, assim, buscar o casamento ideal que combine

as pessoas adequadas com as atribuições certas. Ao fazer essa combinação de forma

60
eficaz, as pessoas potencializam suas experiências e suas habilidades de pensamento

criativo, e maximizam sua motivação intrínseca.

No que diz respeito à liberdade, Amabile afirma que a chave para a criatividade é

que os profissionais tenham autonomia no que se refere ao processo – como fazer –

porém, não necessariamente aos fins (objetivos estratégicos), muito embora isso não

queira dizer que os subordinados não devam participar das discussões sobre definições

de metas e de agendas de trabalho. Quando as estratégias são de pleno conhecimento das

equipes e, tendo autonomia para decidir como executá-las, maiores são as probabilidades

de elevação da criatividade das pessoas. Tão importante quanto à clareza na definição dos

objetivos é a manutenção de uma estabilidade temporária desses objetivos, pois é difícil

as pessoas se manterem motivadas e, consequentemente, que haja sustentabilidade no

processo criativo, se os referidos objetivos forem constantemente alterados. A liberdade

de como executar os processos contribui para a criatividade porque as pessoas tendem a

agir como “donos do negócio”, vendo-se como atores e não meros expectadores, além de

poderem maximizar a utilização de suas experiências e de seus pensamentos criativos.

Quanto aos recursos, Amabile (1998, 1999) destacou os dois principais que afetam

a criatividade: tempo e dinheiro, sendo que um dos grandes desafios dos gerentes é

distribui-los de forma adequada e, do acerto nesta decisão, depende muito se os referidos

recursos irão apoiar ou prejudicar a criatividade. Relativamente ao tempo, por exemplo,

um prazo eventualmente exíguo para cumprir uma meta muito importante pode fazer com

que essa pressão seja encarada como um grande desafio e, por conseguinte, contribuir

para o aumento da motivação intrínseca e da criatividade, com o objetivo de se encontrar

uma solução inovadora. No entanto, se não existe um motivo claro ou justificável para o

estabelecimento de um prazo curto ou quando esse prazo é reconhecidamente inviável, o

efeito pode ser o contrário, ou seja, desmotivar as pessoas a lutarem pelo atingimento do

61
objetivo, quer resultante do descrédito nos gestores, quer em decorrência de estresse e

fadiga. Quanto à alocação de recursos financeiros necessários para a execução de um

projeto, tomar decisão a esse respeito também requer muita habilidade dos gestores, uma

vez que a liberação de recursos acima do necessário não aumenta a criatividade e, por

outro lado, se insuficientes pode diminui-la, uma vez que parte dos esforços das pessoas

estarão voltadas para fazer com que esses recursos sejam suficientes e, não muito

raramente, ajustarão os resultados do projeto aos recursos disponíveis.

Outro ponto que requer muita atenção e capacitação dos gerentes está relacionado

às características do grupo de trabalho. Caso se queira constituir um grupo criativo, é

imprescindível que entre seus componentes haja diversidade de perspectivas e de origens

e predominância de pessoas aptas a prestarem apoio mútuo. Isso porque, a existência de

conhecimentos, pensamento criativo e estilos de raciocínio diversificados intensificam o

debate e, frequentemente, contribuem para a geração de produtos e processos inovadores

e úteis.

Além da diversidade, os gerentes também devem ter discernimento para que as

equipes possuam outras três características: (a) os membros devem compartilhar

empolgação com os objetivos da equipe; (b) os membros precisam ter espírito de

cooperação e não de competição, estando dispostos e disponíveis para cooperar com os

demais quando alguns estiverem enfrentando dificuldades ou em eventuais contratempos;

(c) cada um dos membros da equipe deve reconhecer o conhecimento e as contribuições

dos demais membros. A conjugação desses fatores contribui não só para a melhoria da

motivação intrínseca, como também reforça os conhecimentos e as habilidades de

pensamento criativo. Para que seja possível montar uma equipe com essas características,

é imprescindível que o gerente tenha profundo conhecimento de seus liderados, sendo

capaz de avaliá-los nos mais diferentes aspectos, desde o conhecimento, passando pela

62
capacidade de relacionamento, nível de colaboração, competência para identificar e

resolver problemas, entre outros.

Relativo ao incentivo do gestor, Amabile (1998, 1999) alerta que, mesmo pessoas

altamente motivadas e que sentem prazer no que fazem, sentem necessidade de um

ambiente de trabalho acolhedor e, também, de saber que o produto de seus esforços é útil

e apreciado pela direção da empresa. Na ausência dessas condições, elas podem até se

manter motivadas intrinsecamente e criativas por um determinado período, porém, se a

sensação de falta de reconhecimento de seu trabalho perdurar por um longo período, a

tendência é que irão, gradativamente, perdendo a motivação e direcionando sua

capacidade criativa para outros segmentos, inclusive de caráter pessoal.

Gerentes e organizações que incentivam a criatividade normalmente lideram pelo

exemplo, sendo verdadeiros espelhos para seus liderados; fomentam e valorizam a

apresentação de ideias e sugestões; são transparentes quando uma ideia não agrega valor,

porém, mesmo nesses casos, não agem de forma a inibir que essa pessoa volte a dar novas

sugestões; buscam motivos para que as ideias apresentadas possam ser colocadas em

prática, em vez de procurar argumentos para justificar o porquê de as ideias não poderem

ser utilizadas.

A supervisão que favorece a criatividade deve ser exercida como uma espécie de

guia, agindo o supervisor como um mentor e não como um capataz controlador e punidor.

O gestor deve incentivar seus subordinados a correrem riscos, ver os erros cometidos

como um mecanismo de aprendizagem e não como atos merecedores de punições e,

também, evitar o modelo de recompensas como mecanismo de motivação para que as

pessoas se engajem nos projetos, mas sim, dar bônus pelo trabalho concluído com alta

qualidade e criatividade.

63
Por último, o suporte organizacional também impacta na questão da criatividade

e, muito embora os supervisores e chefias imediatas possam promover e incentivar a

criatividade, sua sustentabilidade no longo prazo depende, fundamentalmente, do apoio

explícito da alta cúpula da organização. Ou seja, os empregados precisam perceber

claramente que a opção pela inovação e criatividade é da empresa e não apenas de

algumas chefias.

A empresa pode estimular a criatividade adotando políticas de transparência nas

informações, fácil acesso às normas e diretrizes e, acima de tudo, implementando políticas

que incentivem o compartilhamento do conhecimento e das decisões tomadas.

Evidentemente, mais de uma pessoa pensando em uma determinada solução, além de

promover a troca de conhecimentos, tem maior chance de êxito ao encarar a questão sob

diferentes ângulos.

Um alerta importante feito por Amabile está relacionado às recompensas em

dinheiro que tenham por objetivo encorajar as pessoas a serem criativas. Na visão dela, o

efeito é quase sempre o contrário, pois as pessoas tendem a imaginar que estão sendo

controladas e direcionadas e, assim, inibem sua criatividade. No entanto, o

reconhecimento autêntico, por parte da empresa, ao bom trabalho realizado é vital para a

criatividade. Devem prevalecer os critérios de premiar a meritocracia, evitando decisões

de caráter político ou impor a autoridade pelo medo, pois estas são sem dúvidas, formas

eficazes de matar a criatividade.

Para Amabile (2001), educadores, gestores e gerentes, ao invés de privilegiarem

a busca por alunos ou funcionários mais brilhantes, devem criar oportunidades para

aprendizagem efetiva de habilidades de trabalho e ambientes que apoiem o envolvimento

ativo do indivíduo, bem como tarefas desafiadoras, uma vez que criatividade depende não

somente de brilhantismo, mas também de disciplina e paixão.


64
Após o amplo estudo sobre criatividade realizado por Amabile, que deu origem

ao livro The Social Psychology of Creativity e constituiu a base para a criação da

Psicologia Social da Criatividade, ela deu início a um novo trabalho de revisão e,

inclusive, sugerindo campos para ampliação ou realização de novas pesquisas (Amabile

& Pillemer, 2012; Amabile & Platt, 2016). Destaca-se, por exemplo, que existem poucos

estudos que tratem da relação entre progresso e criatividade ou trabalho significativo e

criatividade. Sugere-se também que, nas próximas pesquisas, seja dada maior ênfase ao

feedback que ocorre na etapa de avaliação de resultados do processo criativo, tendo por

objetivo investigar a forma mais adequada de implementar novas ações na sequência

desse processo, a fim de garantir a sua sutentabilidade. Da mesma forma, recomenda-se

a utilização de feedbacks para se identificar como proceder para que essas novas ações

sejam diferentes daquelas anteriormente praticadas, também com o objetivo de fazer com

que o processo inovador não desvie de foco e volte ao modelo antigo.

Embora em vários de seus estudos iniciais Amabile tenha tratado da influência do

ambiente de trabalho sobre a criatividade individual, ela reconhece que o fez em um nível

muito amplo e, por conseguinte, recomenda que novos estudos explorem o papel do

contexto institucional, das forças econômicas e socioculturais, como também o impacto

do posicionamento dos stakeholders, por exemplo, clientes e investidores, sobre o

comportamento inovador das empresas. Enfim, como essas pressões institucionais podem

influenciar tanto na criatividade individual quanto das equipes de trabalho. Nesta mesma

linha, recomenda que mais pesquisas poderiam ser realizadas no sentido de identificar as

influências e interações simultâneas entre a criatividade individual e a criatividade das

equipes de trabalho e os reflexos destas na postura de inovação organizacional.

Um grande desafio que se apresenta para as próximas pesquisas na área de

criatividade é como avaliar o impacto de tarefas repetitivas e enfadonhas na motivação

65
intrínseca e na criatividade pessoal. Uma possível explicação pode ser a visão de que as

referidas tarefas fazem parte de um todo e, portanto, são importantes para o êxito geral da

organização.

A respeito da função das emoções, mais precisamente ao fato de ora impactarem

positivamente ora negativamente no processo criativo, Amabile deixa em aberto um tema

importante para aprofundamento em futuras análises. O estado motivacional mais

adequado a um dos estágios do processo criativo está mais relacionado à fonte específica

que gera a motivação (intrínseca ou extrínseca) ou a estados cognitivo-emocionais

gerados pelos tipos de motivação? Ficam, portanto, algumas sugestões para estudos

futuros tendo como base o Modelo de Criatividade Componencial.

Leituras Recomendadas

Alencar, E. M. L. S. & Fleith, D. S. (2009). Criatividade: Múltiplas perspectivas. Brasília,

DF: EdUnB.

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68
A TEORIA DO INVESTIMENTO EM CRIATIVIDADE DE ROBERT

STERNBERG E TODD LUBART

Paulo Sousa Gomes Filho

Robert Sternberg e Todd Lubart, renomados psicólogos americanos, construíram

um modelo teórico multivariado da criatividade denominado Teoria do Investimento em

Criatividade (1992, 1995) inspirados no movimento das bolsas de valores. Os autores

utilizaram uma metáfora econômica para explicar o ato criativo. O sucesso do

investimento na bolsa de valores depende da compra na baixa e da venda na alta, ou seja,

o investidor deve assumir riscos e apresentar um comportamento diferente da maioria dos

outros investidores. Ao se comportar de forma ousada, ele assume perdas no curto prazo

apostando em “carteiras” que nenhum outro apostou, para em outro momento de alta,
passar adiante e recomeçar o ciclo.
Um conceito similar pode ser utilizado para descrever a atividade da pessoa

engajada em uma iniciativa criativa. Como uma mercadoria avaliada por baixo pelos

investidores, uma nova ideia produzida por uma pessoa criativa é, frequentemente,

subavaliada por outras pessoas. Quem produz a inovação, contudo, valoriza sua ideia, ou

seja, ‘investe’ naquela ideia ou produto. Já que a ideia não é valorizada por outros, o

investidor, ou o sujeito criativo, aproveita a baixa cotação da ideia para revende-la

posteriormente com outro padrão valorativo que é agregado pelo fator “criatividade”. É

importante enfatizar que, para Sternberg e Lubart (1995), a criatividade é, em grande

parte, uma decisão pessoal de comprar baixo e vender alto no mundo das ideias. Pessoas

criativas, como bons investidores, geram ideias que, naquele contexto, não são

valorizadas. Os indivíduos criativos estão metaforicamente “comprando em baixa”.

Então, uma vez que suas ideias tenham obtido alguma aceitação, os indivíduos criativos

“vendem-na em alta”, colhendo os lucros de sua boa ideia.

69
Para Sternberg e Lubart (1991, 1995), criatividade envolve a inter-relação entre a

inteligência, o conhecimento, estilos de pensamento, personalidade, motivação e

ambiente. Esta conjunção de recursos é passível de desenvolvimento por meio de técnicas

e programas apropriados. O modelo mostra as possibilidades de desenvolvimento de

estilos cognitivos diferenciados, dos traços de personalidade adequados e propícios ao ato

criativo, da motivação para a criação e de um ambiente adequado, favorável e estimulador

do pensamento criativo.

Com a configuração proposta, os autores desenvolvem sua definição de

criatividade da seguinte forma: “Nós descrevemos um produto como criativo quando ele

é (a) novo; e (b) apropriado. Esses dois elementos são necessários para a criatividade”

(Sternberg & Lubart, 1995, p. 11). Com relação ao primeiro aspecto, esses autores

esclarecem que:

Um novo produto é aquele que é estatisticamente incomum, é diferente dos

produtos que outras pessoas tendem a criar. Um produto pode ser novo em graus

diferentes. Alguns produtos envolvem um desvio menor do trabalho anterior,

enquanto outros envolvem um grande salto. O mais alto grau de criatividade

envolve um grande passo. A percepção de novidade de um produto também

depende da experiência anterior da audiência. (pp. 11-12)

Quanto ao elemento de apropriação, Sternberg e Lubart (1995) enfatizam que:

Um produto deve também ter uma função, deve ser uma resposta apropriada a

alguma questão, deve ser útil. Existe uma variação de adequação que vai do

minimamente satisfatório ao extremo oposto, que é o ótimo cumprimento de

restrições de problemas. Algo que é novo, mas não se encaixa nas restrições do

problema em questão, não é criativo, é apenas bizarro (e irrelevante). (p. 12)

70
Diferentemente de alguns autores que consideram o potencial para gerar produtos

criativos como evidência de criatividade, Sternberg e Lubart descrevem a pessoa criativa

como aquela que, efetivamente, gera produtos criativos. Para esses autores, possuir o

potencial para ser criativo é diferente de realizar esse potencial.

HABILIDADES INTELECTUAIS

De acordo com esse modelo, três habilidades cognitivas atuam conjuntamente no

comportamento criativo: (1) habilidade sintética, (2) habilidade analítica e (3) habilidade

prática.

Habilidade sintética é a parte da inteligência que permite redefinir problemas,

percebê-los sobre um novo ângulo, gerar ideias que são novas, de alta qualidade ou

apropriadas ao problema, podendo variar de acordo com a pessoa, a tarefa e também o

contexto em cada caso. Envolve planejar, monitorar e avaliar a realização criativa e é

responsável por redefinir problemas, distinguir a informação relevante da informação que

não é significativa, relacionar a informação nova com a antiga de uma nova maneira e

combinar elementos de informação relevante gerando algo novo. A habilidade analítica

pode ser verificada, em parte, por meio de testes de inteligência convencionais. Ela

permite a análise das limitações ou pontos fortes da ideia e sugere maneiras de melhorá-

la.

Gerar ideias é apenas um dos requisitos para a criatividade, mas reconhecer que

existe um problema, definir esse problema, alocar recursos para lidar com ele e avaliar o

valor das possíveis soluções, reconhecendo quais são as melhores e quais podem ser

descartadas são, também, aspectos importantes para esse processo. Para ser criativa, a

pessoa deve exibir um mínimo de habilidades analíticas.

71
Sternberg e Lubart (1995) elencam algumas competências analíticas que são

básicas para a solução de qualquer problema:

 Reconhecer e definir o problema - Muitos relacionamentos terminaram e

muitos negócios foram à falência por não terem sido detectados os sinais

de que havia problemas. Quando estes foram percebidos, o problema já se

mostrou fora de controle. Para além de detectar um problema e entender

sua natureza, defini-lo é fundamental, já que não se pode redefinir um

problema até que se tenha clareza do problema.

 Decidir como representar, mentalmente, informações sobre um problema

– essa competência afeta a forma como se resolverá um problema, ou

mesmo se é possível resolvê-lo. De acordo com Sternberg (1985), pessoas

mais inteligentes tendem a gastar mais tempo para planejar a longo prazo

enquanto pessoa menos inteligentes fazem o oposto, “atacam” o problema

sem muita reflexão. Para ser criativa, a pessoa deve se permitir gastar um

tempo maior refletindo sobre uma tarefa em busca de melhores soluções.

 Formular uma estratégia e alocar recursos para resolver um problema – O

próximo passo, após definir e representar um problema, é entender como

resolvê-lo.

 A terceira habilidade cognitiva envolvida no processo criativo é a

habilidade prática-contextual, que diz respeito à capacidade de persuadir

outras pessoas sobre o valor das próprias ideias. Em geral, essa é uma

habilidade negligenciada, pois muitas vezes espera-se que uma ideia

criativa se venda sozinha. Em essência, capacidade prática significa saber

como “vender” a ideia.

72
Sternberg e Lubart (1995) consideram uma série de fatores a fim de vender uma

ideia com sucesso: (a) fazer uma apresentação de alta qualidade da ideia; (b) desenvolver

uma network para localizar pessoas chaves que possam estar interessadas na ideia ou

ajudar de alguma maneira; (c) conhecer seu mercado, com vistas a avaliar como sua ideia

possa se ajustar e em que momento deverá ser apresentada; (d) apontar os benefícios de

sua ideia; e (e) perceber sua ideia do ponto de vista dos “compradores”, compreendendo

a imagem que você está projetando e o que sua ideia significa para o potencial comprador.

CONHECIMENTO

Conhecimento é diferente de inteligência, porque conhecimento é a matéria prima

sob o qual o processo intelectual opera. Para ser criativo em um determinado campo, é

necessário que a pessoa tenha conhecimento desse campo. Falta de conhecimento em uma

área pode levar a pessoa a reinventar a roda. É preciso saber o estado atual da área, o que

foi realizado, o será realizado. Mas quanto conhecimento deve ser adquirir até se estar

apto a criar em um determinado campo? De acordo com a Teoria de Investimento, o

conhecimento é uma faca de dois gumes: Por um lado, para avançar em uma área,

devemos aumentar nosso conhecimento sobre ela. Por outro lado, o conhecimento pode

impedir a criatividade, levando o indivíduo ao entrincheiramento de si mesmo em suas

próprias ideias. A pessoa pode se tornar tão acostumada a ver as coisas de uma certa

maneira que começa a ter problemas para realmente vê-las ou imaginá-las de outra

maneira diferente. Muitas vezes, pessoas que possuem o maior conhecimento em uma

área não são as que produzem os trabalhos mais criativos.

O conhecimento formal sobre uma determinada área é importante quando é

necessário ser criativo. O conhecimento informal, obtido em diferentes contextos de

nossa experiência, como família, trabalho, meios de comunicação, grupos de amigos,


73
também é relevante. Sternberg e Lubart (1995) afirmam que, para muitas decisões, o

conhecimento informal, como aquele que você adquire da convivência com a sua família,

do seu trabalho, por estar em um relacionamento, por assistir a filmes, conversar com

amigos, é mais importante que o conhecimento formal.

ESTILOS DE PENSAMENTO

Estilos de pensamento não representam uma habilidade intelectual, mas sim uma

forma particular de uso de nosso pensamento. Sternberg (1997) elenca três estilos

particularmente importantes para a criatividade: legislativo, executivo e judiciário.

O estilo legislativo é característico das pessoas que gostam de formular problemas

e criar suas próprias regras, fazer as coisas a sua maneira e estabelecer e definir seu

próprio curso. Preferem problemas não pré-estruturados ou pré-fabricados São mais

comuns entre empreendedores, cientistas, artistas, legisladores. O estilo executivo está

presente nas pessoas que gostam de implementar ideias com estruturas claras e definidas,

com papeis em que as instruções estão explícitas. Preferem seguir as instruções

detalhadamente ao resolverem um problema e participar de projetos em que os passos

para sua execução estejam claramente delineados. O estilo judiciário é comum em pessoas

que têm preferência por emitir julgamentos e avaliar pessoas, que se sentem confortáveis

em julgar e avaliar projetos de outras pessoas e que não se omitem em expressar suas

opiniões com relação aos outros. Pessoas com o estilo judiciário tem uma predileção

especial pelo pensamento crítico, o que as leva a desenvolver habilidades de avaliar,

comparar, analisar pessoas, períodos históricos, teorias etc. Quando adultos, ocupam

cargos como juiz, crítico de arte ou música, avaliador de programas, consultores, analistas

de sistemas etc.

74
PERSONALIDADE

Na perspectiva de Sternberg e Lubart (1995), as pessoas não têm uma

personalidade fixa e imutável definida no nascimento ou em seus primeiros anos. Em vez

disso, as disposições com as quais você pode nascer interagem com o ambiente para

produzir um conjunto de traços de personalidade mais ou menos estáveis.

Sternberg e Lubart (1995) descrevem seis atributos necessários à pessoa criativa.

O primeiro deles é a perseverança na presença de obstáculos. Um segundo atributo é a

disponibilidade para correr riscos. Para a pessoa produzir algo realmente criativo, algo

que faça diferença no mundo ou em seu contexto social, ou mesmo em um nível pessoal,

ela deve assumir riscos. Um terceiro atributo associado à criatividade é o desejo de

crescer, de avançar, de não se acomodar. Segundo Sternberg e Lubart, o indivíduo criativo

não se contenta com um único produto ou ideia de sucesso. Ele busca ir adiante apesar

das pressões externas e internas para ele permanecer como está. Tolerância à ambiguidade

refere-se à capacidade do sujeito em lidar com situações não estruturadas ou abertas e

configura o quarto atributo. Abertura à experiência, o quinto atributo, é o traço de

personalidade mais consistentemente associado à criatividade. A pessoa criativa busca

novas experiências, faz perguntas, é curiosa, é imaginativa e vive pensando acerca do

mundo. A crença em si mesmo e a coragem pelas próprias convicções constituem o sexto

atributo associado à criatividade destacado por Sternberg e Lubart (1995). Quando o

sujeito compra em baixa e vende em alta, pode haver momentos em que ninguém acredita

nele. Por isso, é essencial que ele tenha crença em si mesmo e tenha coragem para lutar

por aquilo que acredita. Isso pode de fato fazer a diferença no e com o trabalho criativo.

75
MOTIVAÇÃO

Sternberg e Lubart (1995) definem motivação como “a força motriz ou incentivo

que leva alguém à ação” (p. 236). Para os autores, tanto a motivação intrínseca quanto a

extrínseca são necessárias para a expressão da criatividade (1991). A motivação intrínseca

é mais importante no início de um projeto ou tarefa, na geração de ideias, enquanto a

motivação extrínseca se torna mais significativa em um momento final, em uma fase mais

trabalhosa, na qual o produto precisa ser polido.

AMBIENTE

Ninguém cria no vácuo. Estamos todos inseridos em um contexto social dotado

de regras e valores, sendo que alguns desses contextos fomentam a criatividade enquanto

outros a destroem. É da interação da pessoa com seu contexto envolvente que surge a

criatividade.

Ambiente criativo é definido como o ambiente físico, social, e cultural, no qual o

ato criativo ocorre (Sternberg & Grigorenko, 1997). Pode-se ter todos os recursos internos

necessários para pensar criativamente, entretanto, sem um ambiente que seja favorável e

recompensador de ideias criativas, a criatividade que um indivíduo possui dificilmente se

manifestará. Para Sternberg e Lubart (1991) o contexto afeta a criatividade de três

maneiras: (a) o grau em que favorece a geração de novas ideias, (b) a extensão com que

encoraja e dá o suporte necessário ao desenvolvimento das ideias criativas, e (c) a

avaliação que é feita do produto criativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sternberg e Lubart (1995) enfatizam que nem todos os elementos de cada um dos

atributos citados são relevantes para a criatividade, devendo cada um ser visto de forma

76
integrada com os demais e nunca de forma isolada. Embora existam limites para seu uso,

a metáfora do investimento no mercado financeiro não é exclusiva desse campo do

conhecimento, pois tem sido utilizada extensivamente nas mais diversas áreas, como no

investimento em relacionamentos amorosos, na carreira, afetivo entre outros. Entre esses

limites, evidencia-se o fato de que o investidor financeiro tem seus ganhos baseados no

sucesso da economia ou do negócio, enquanto a pessoa criativa deve fazer um

investimento de recursos pessoais em todas as fases do processo, da geração da ideia à

realização do produto final, inclusive no fomento da receptividade por parte do público.

Criatividade não é a soma da disponibilidade dos elementos descritos neste

capítulo. Existe uma complexa operação conjunta e, também, um nível apropriado e

necessário de cada recurso, sem o qual não é possível sermos verdadeiramente criativos.

O alto nível de um determinado recurso, por exemplo, pode compensar o baixo nível de

um outro A criatividade exige uma decisão deliberada de otimizar e utilizar esses recursos

em nossas vidas.

ENTREVISTA COM O PROFESSOR TODD LUBART

Todd Lubart é professor de psicologia no Instituto de Psicologia da Université

Paris Descartes – Sorbonne, Paris e Diretor do laboratório científico “LATI” (Laboratoire

Adaptations Travail-Individu). Vale mencionar que este Instituto tem um importante

valor histórico: é a instituição em que foi fundado, há mais de 100 anos, o primeiro

laboratório de psicologia experimental na França. Com Robert Sternberg, é o criador da

Teoria do Investimento da Criatividade. Lubart é um dos autores do instrumento de

criatividade intitulado The Evaluation of Potential Creativity (EPoC).

77
Como você começou a se interessar por criatividade?

Inicialmente, eu estava interessado nas artes gráficas e comecei atividades e

treinamento nesse domínio (desenho, pintura, etc.). Durante meus estudos de graduação,

tive a oportunidade de fazer uma introdução ao curso de psicologia e fiquei muito

interessado pelos tópicos que fiz para concluir um bacharelado em psicologia. No nível

de mestrado, havia uma oportunidade de realizar pesquisas sobre criatividade. Comecei

pesquisando a criatividade artística. Tenho trabalhado com criatividade, em geral, desde

essa época. Minha pesquisa tem examinado a criatividade em crianças e adultos em vários

domínios (artes gráficas, composição, design, música entre outros).

Qual é sua definição de criatividade?

Refere-se à capacidade de produzir um trabalho novo e original que tenha

significado no contexto.

Como surgiu a ideia sobre a Teoria do Investimento em Criatividade?

A teoria tem as características de uma teoria multivariada, inicialmente chamada

Teoria Componencial, na qual queríamos identificar os componentes. Era uma

abordagem teórica que já havia sido aplicada à inteligência em que Bob Sternberg estava

trabalhando. Então, a inteligência estava se concentrando em seus componentes

constituintes, de pequenas partes de habilidades cognitivas que levariam à inteligência e,

assim, quando começamos a trabalhar sobre criatividade havia, obviamente, mais do que

apenas cognição: havia também trocas de personalidade, trocas motivacionais, ambientais

e coisas assim. Mas foi um pouco inspirado na Teoria Componencial da Inteligência e,

assim, o trabalho inicial foi um pouco para descobrir quais seriam os componentes, que

78
tipo de componentes e como eles poderiam interagir juntos para produzir vários níveis de

diferenças criativas individuais na criatividade.

E então havia um grande debate acontecendo na época: a criatividade cotidiana é

a mesma coisa, o mesmo fenômeno de grandes níveis de criatividade como Charles

Darwin e assim por diante? Alguns afirmavam que era a mesma coisa, outros afirmavam

que era diferente, e percebemos que com a abordagem componencial e sua combinação

interativa, esse modelo levaria a níveis mais altos, porque seria uma combinação única de

componentes. No entanto, mais uma vez, a ideia era que esse modelo componencial, era

um pouco uma extensão, e havia outro trabalho também sendo realizado na criatividade

utilizando um modelo de componentes e percebemos que apenas fazer um modelo

componencial não era muito entusiasmante. Era preciso alguma espécie de cola para

mantê-lo unido, para torná-lo mais cativante, interessante e significativo. E então surgiu

a ideia do mundo dos investimentos, a metáfora do investimento, porque também a

metáfora é muitas vezes uma boa maneira de pensar sobre um fenômeno e trazer aspectos

nesse mundo, do mundo da metáfora para o tópico que você quer estudar. Então

exploramos variadas metáforas até, finalmente, se estabelecer essa metáfora de

investimento. Então, nós desenvolvemos juntos para ver as diferentes facetas do mundo

do investimento ou do mundo financeiro, e como elas podem mapear a criatividade para

dar insights e isso levou à chamada abordagem de investimento.

Quem deu a ideia de uma abordagem baseada em investimento?

Foi Bob Sternberg. Ele percebia o ser criativo como um ato, uma decisão, de forma

a colocar sua energia em um projeto e isso era, em si, um investimento pessoal. Essa foi

a ideia inicial e, em seguida, ao longo do tempo, fomos capazes de desenvolver suas

variadas nuances ou aspectos.

79
Quais são os pontos mais relevantes da Teoria do Investimento?

Eu acho que a Teoria do Investimento, em termos de seus constituintes, é um

conjunto de componentes maior do que várias outras teorias que tentam prever diferenças

individuais e desempenho. Eu acho que o que é novidade sobre isso é a extensão ao qual

tentamos focar nos dois (diferenças individuais e desempenho). Olhamos para efeitos de

interação que levam a componentes que interagem e que levam a um nível muito alto de

criatividade. Nós pensamos sobre essa questão e, meio que um pouco, da adaptação do

modelo para diversos setores. O modelo multivariado é, na verdade, uma espécie de

metaconceito, porque os modelos locais de um domínio em um setor têm provavelmente

uma conexão maior com a realidade cotidiana. Não que os outros não sejam

correlacionados, eles são, mas acho que nas salas de aula comuns quando você não pensa

especialmente sobre criatividade, ainda é interessante mensurá-la, porque é algo

espontâneo.

Qual foi a recepção à teoria quando apareceu pela primeira vez?

Eu acho que a recepção foi bastante positiva. Quando ele apareceu pela primeira

vez, não acho que tenha gerado tanto interesse, mas, na verdade, era um pouco semelhante

à teoria de Mark Runco, sobre criatividade, que também tinha o que chamamos de

perspectiva psicoeconômica. Assim, de fato, quando você olha para sua teoria ou para seu

teste, descobre que há alguns ingredientes, alguns recursos ou fatores, mas nem todos os

fatores ambientais que entram em jogo. Então, isso nos levou a fazer um trabalho mais

detalhado sobre como certas mudanças influenciam a criatividade.

80
Hoje em dia, adultos e crianças são mais ou menos criativos do que eram no

passado?

É difícil dizer se as pessoas são mais ou menos criativas em comparação às

gerações passadas. Isso se deve à falta de pontos de comparação ou instrumentos para

avaliar a criatividade. Além disso, agora a criatividade é um assunto mais popular, então

os educadores estão começando a olhar mais para o tópico. Eu acho que existem muitas

iniciativas para promover a criatividade nas escolas, mas estas continuam sendo tentativas

isoladas. Em geral, há uma grande oportunidade de educar para a criatividade.

Quais são os principais desafios que os pesquisadores que estudam criatividade

enfrentam atualmente?

Eu acho que um dos labirintos é descobrir quem é um bom juiz, se é um indivíduo,

se são grupos, são animais. Outro grande desafio é como lidar com o relacionamento que

as pessoas podem ter entre criatividade e mídia eletrônica, porque pode ser uma espécie

de relacionamento favorável como uma maneira de encontrar informações. Mas,

provavelmente, apenas leva as pessoas a pensar de uma certa maneira ou clicar nos

mesmos websites. Website número 1, website número 2 que leva as pessoas a clicarem

nele e assim, provavelmente, tem menos chances, menos solicitações ao pensamento

criativo, porque basta procurar na Internet por soluções.

Quais são os seus atuais interesses de pesquisa?

Estivemos trabalhando arduamente para mensurar o potencial criativo de crianças,

adolescentes e adultos. Eu estou trabalhando no desenvolvimento de duas ferramentas

que é a ferramenta EPOCH - Evaluation of Potential Creativity in Children, sendo que a

mesma ferramenta pode ser usada com adolescentes, embora as normas sejam diferentes.

81
Nós também trabalhamos o Creative Profile que nos permite medir o potencial criativo

em adultos para comparar com o trabalho, uma classificação na qual as pessoas podem

estar em um determinado trabalho que não corresponde a quem eles são.

Quais são, em sua opinião, as tendências futuras na criatividade?

Penso que existe, obviamente, uma tendência a estudar ou falar sobre a questão

generalidade do domínio vs. especificidade do domínio, e é bastante complicado. Eu

ainda não li nenhum artigo em que pudesse encontrar uma posição única e clara, então

acho que ainda está em debate. E outra coisa em que estamos trabalhando é sobre

vestígios do processo criativo. À medida que as pessoas trabalham, tentamos rastrear suas

diferentes atividades e ver o diagrama dessas atividades e, assim, obter algumas

implicações para a educação. Tentamos acompanhar isso e obter uma representação

estável para um determinado campo ou tarefa. Estamos ainda trabalhando na construção

de um ambiente virtual e, por isso, estamos no ponto em que poderemos em breve

configurar os ambientes de teste para que pessoas de diferentes países possam se conectar

em seu idioma.

Criatividade parece ser, claramente, um importante aspecto da cultura. Podemos

perceber isso observando a quantidade de vezes que a palavra criatividade é

enfatizada nas áreas da publicidade, da política, da educação entre outras. Porque

é tão difícil encontrar, no Brasil, cursos e/ou disciplinas nas universidades que

ensinam sobre criatividade para os futuros professores?

Essa é uma pergunta que muitas pessoas estão tentando descobrir a resposta. Os

professores tendem a se interessar pelo tópico, dizem que gostam de ensinar criatividade

ou ensinar as crianças a serem mais criativas, mas não temos um programa que possa

82
treinar professores, mesmo como uma forma de educação continuada. Quando estão nas

escolas, os professores, no geral, apresentam um viés conservador, se concentram em

manter a ordem na sala de aula. Não é só o Brasil. É realmente todo um mundo acadêmico

que tem seus limites no treinamento de pessoas para fazer coisas que são idiossincráticas.

Como podemos entender as diferenças entre potencial criativo, talento criativo e

superdotação criativa?

O potencial criativo refere-se a uma capacidade latente de produzir um trabalho

novo, original e contextualmente apropriado. Pode ser colocado em jogo ou permanecer

latente. O talento criativo refere-se à real realização do potencial criativo em obras da

vida real. Essas realizações criativas são o sinal do talento criativo. A superdotação

criativa é um alto nível de potencial criativo, pode ser definida por um corte, como dois

desvios padrão acima da norma da população para potencial criativo, ou definido por

outros pontos de corte, como os dez por cento superior do potencial criativo.

Olhando a Teoria do Investimento nos dias de hoje, o que você faria diferente?

Eu acho que a teoria ainda tem relevância, e nós ainda a usamos, como uma

estrutura que nos ajuda em pesquisas. Bem, em retrospecto, algumas das maneiras de

medir certas variáveis ou certos fatores poderiam ser otimizados, mas também não tenho

certeza se temos uma tendência a interagir com pessoas que são como neurocientistas

tentando medir a atividade cerebral, olhando uma imagem na parede. É uma pergunta

difícil.

83
Referências

Sternberg, R. J. (1985). Beyond IQ. A Triarchic Theory of Human Intelligence. New

York, NY: Cambridge University Press.

Sternberg, R. J. (1997). Successful intelligence. New York, NY: Plume.

Sternberg, R. J., & Grigorenko, E. (1997). Intelligence, heredity, environment. New York,

NY: Cambridge University Press.

Sternberg, R. J., & Lubart, T. (1991). An investment theory of creativity and its

development. Human Development, 34(1), 1-31.

Sternberg, R. J., & Lubart, T. (1992). Buy low and sell high: An investment approach to

creativity. Current Directions in Psychological Science, 1(1), 1-5.

Sternberg, R. J., & Lubart, T. (1995). Defying the crowd: Cultivating creativity in a

culture of conformity. New York, NY: Free Press.

84
O MODELO SISTÊMICO DA CRIATIVIDADE DE MIHALY
CSIKSZENTMIHALYI
Mônica Souza Neves-Pereira
Denise de Souza Fleith

O Modelo Sistêmico da Criatividade, proposto por Mihaly Csikszentmihalyi, foi

criado ao longo de sua trajetória de notório pesquisador e teórico da psicologia. A

motivação que o levou à produção de uma obra tão diversa foi, sem sombra de dúvida, a

questão do sofrimento humano e sua contrapartida: a felicidade. O desejo de conhecer as

razões do sofrimento e da felicidade humana surgiu ainda em sua juventude, quando

vivenciou os horrores da Segunda Guerra Mundial.

Csikszentmihalyi nasceu no dia 29 de setembro de 1934 na famosa cidade de

Fiume que, após a Segunda Guerra Mundial, foi anexada ao território Croata. De

nacionalidade húngara, viveu parte de sua vida na Itália em decorrência da profissão de

seu pai, que era diplomata. Ainda adolescente, Csikszentmihalyi experimentou o drama

de viver como um refugiado de guerra e iniciou seus questionamentos sobre a condição

humana. Ele comumente se perguntava como pessoas, aparentemente normais, podiam

ser tão cruéis em tempos de guerra? Essas e outras questões perturbaram sua primeira

década de vida. Sua família, originária da Hungria, foi praticamente destruída na guerra.

Seus dois irmãos mais velhos foram assassinados, assim com um avô e uma tia muito

querida. Seu pai teve que abandonar o país de origem da família por questões políticas.

Ele mesmo viveu por um tempo refugiado na Itália distante dos familiares que lhe

restaram. Esse contato tão precoce com a dor e o sofrimento causou impacto profundo

em sua vida e em sua obra, levando-o a questionar o que motivava seres humanos a

promoverem um horror como a guerra:

85
... (a minha) tinha sido uma infância típica de meio de século para aquela parte do

mundo (Europa): sem sentido, brutal e confusa. A guerra ainda não tinha

terminado, mas poucos questionavam: como foi que isso aconteceu? Como

podemos prevenir para que não aconteça novamente? (Csikszentmihalyi, 2014a,

p. 65)

Deve haver algo muito profundo, algo que ainda não compreendemos e que tenha

aberto as portas de comportamentos tão irracionais (como os que acontecem nas

guerras). (Csikszentmihalyi, 2014a, p. 72)

Neste mesmo período, por um acaso, caiu em suas mãos um livro de Jung

intitulado Trabalhos Completos. A leitura desse livro abriu a mente de Csikszentmihalyi

não só para a psicologia, algo que ele nem sabia que existia, mas para a possibilidade de

estudar e escrever sobre as emoções humanas. Sua mãe também exerceu papel importante

em sua vida intelectual. Ela o apresentou ao pensamento de Theilard de Chardin, um

jesuíta que primava por uma visão de homem originada nos diálogos entre ciência e

religião e que chegou a ser professor de um de seus irmãos, quando moravam na Itália.

Ao longo do exílio familiar, durante a guerra, sua mãe iniciou a tradução de um livro de

Goethe acrescentando ao texto suas percepções e crenças sobre a experiência humana e a

atitude cristã diante do sofrimento. De acordo com Csikszentmihalyi (2014a):

Estas experiências da infância – o açougue sem significado da Segunda Guerra

Mundial, as crenças da minha mãe de que a história sempre tem um sentido, a

visão evolucionária de Chardin e a psicologia contemporânea de Jung – todas elas

ajudaram a definir os escritos encontrados neste volume. (p. 102)

86
Deste ponto em diante, desenrola-se a história de um pesquisador criativo e

arrojado, que se destaca por uma excelente contribuição ao campo do pensamento

psicológico, com ênfase nos temas da criatividade, da felicidade e, mais recentemente, a

psicologia positiva (Csikszentmihalyi, 2014a, 2014b). Com 22 anos, Csikszentmihalyi

imigra para os EUA onde inicia seus estudos em psicologia, concluindo seu doutorado,

em 1965, na Universidade de Chicago, sob orientação de J. W. Getzels, reconhecido

pesquisador em criatividade, cujos estudos até hoje constam da literatura da área. A busca

por um objeto de estudo passou a ser o objetivo do recém doutor que se negou a atender

ao mainstream dos anos 50 e 60 e ousou investigar fenômenos e aspectos da psicologia

vinculados com a realização humana. As questões que o atordoaram ao longo de sua

infância e adolescência retornaram em sua vida adulta, direcionando seu trabalho para

temas relacionados não somente à psicologia, como um fim em si mesma, mas,

especialmente, como área do conhecimento capaz de oferecer respostas às questões do

tipo: como viver uma vida melhor? Vivenciando forte influência da psicologia humanista

dos anos 60, com foco nos processos de saúde, felicidade e autorealização humana,

Csikszentmihalyi constrói um sentido comum que atravessa sua produção de modo geral:

o compromisso com uma psicologia voltada para o bem-estar, criatividade, saúde e

felicidade do homem.

A criatividade surge muito cedo no rol de interesses de Csikszentmihalyi. Ela

aparece como um fenômeno legítimo e passível de investigação psicológica e que agrega

outras questões relevantes para o autor, como a felicidade, a autorealização e as emoções

e sentimentos positivos sobre si mesmo e sobre a existência. Segundo o autor, a

criatividade se relaciona com o que nos interessa, o que nos motiva e que vale à pena. O

estudo da criatividade nos conecta com o prazer, a alegria, a criação, a realização

(Csikszentmihalyi, 2014a). Aproveitando o grande incentivo oriundo do discurso de

87
Guilford, nos anos 50, que pedia por mais estudos na área da psicologia da criatividade,

Csikszentmihalyi inicia suas pesquisas se aproveitando de um tema que o seduziria de

forma irreversível ao longo de sua caminhada e chegando ao momento presente.

Fiel aos seus interesses e motivações da infância, Csikszentmihalyi inicia seus

estudos investigando o processo criativo. Essa decisão não foi aleatória. Ela surgiu de um

fato que, segundo o autor, facilitaria seu desempenho como pesquisador do tema: suas

habilidades como pintor. Quando jovem, Csikszentmihalyi chegou a produzir algumas

telas bem avaliadas por alguns pares, em seus tempos difíceis como sobrevivente de

guerra. Em sua vida adulta, como pesquisador de uma universidade americana, esta

experiência pessoal abriria as portas para sua primeira pesquisa que objetivava

compreender o processo criativo de alunos do curso de artes durante a realização de uma

obra plástica. Esse estudo, de natureza longitudinal, envolvendo centenas de artistas na

faixa dos 20 anos, buscou entender por que alguns deles produziram obras que ao longo

do tempo foram consideradas criativas ao passo que outros não. Partindo de um olhar

interpretativo, Csikszentmihalyi analisou, por meio de imagens das produções dos alunos

e, posteriormente, entrevistas, como a experiência de criar, com foco no processo,

aconteceu para os participantes do estudo. A dimensão da avaliação dos experts em

pintura acerca das obras produzidas foi introduzida neste estudo inicial, quase como um

prenúncio das futuras ideias que dariam origem ao modelo sistêmico da criatividade. Com

relação aos tipos de produção criativa, tanto os experts como os participantes

concordaram que as produções artísticas motivadas por questões pessoais, afetivas e

emocionais se destacaram como obras com melhor elaboração e avaliação pelos pares

(Csikszentmihalyi, 2014a). Contudo, no curso da investigação ficou claro que fatores

pessoais como personalidade, motivação intrínseca e valores, por exemplo, não eram

suficientes para explicar realizações criativas (Csikszentmihalyi, 1994).

88
Estava aberto o caminho para a construção do modelo sistêmico da criatividade,

assim como toda a obra de Csikszentmihalyi. Seus longos anos como professor da

Universidade de Chicago, onde lecionou nos cursos de psicologia, antropologia e

sociologia, consolidaram seu preparo pessoal e científico que lhe permitiram construir

linhas de pesquisa e modelos teóricos de grande relevância para o campo psicológico e

educacional. Atualmente, seu trabalho vem se desenvolvendo na Universidade de

Claremont, na Califórnia. Csikszentmihalyi publicou centenas de artigos e inúmeros

livros com tradução para o português, dentre eles: Aprender a Fluir, A Descoberta do

Fluxo e A Psicologia da Felicidade.

Para compreender criatividade, a partir do Modelo Sistêmico, é necessário

explorar algumas questões relativas ao tema antes de uma definição conceitual. Para

Csikszentmihalyi, criatividade sempre foi um assunto mobilizador. Sua motivação por

compreender os estados emotivos do ser humano fez com que, muito cedo, ele percebe-

se a criação como aspecto central da existência (Csikszentmihalyi, 2007, 2014a). Em suas

reflexões, criatividade estava sempre vinculada às coisas boas e interessantes que uma

pessoa pudesse vivenciar, como: inventar, inovar, fazer diferente, descobrir, gerar coisas

novas, originais ou mesmo geniais. Um outro aspecto que sempre tornou a criatividade

tão fascinante para Csikszentmihalyi era o estado que se experimentava ao criar. O

desafio, a busca de novos caminhos, de descoberta, a motivação, dentre outras vivências,

permitia uma sensação existencial única, repleta de prazer e bem-estar. Esta sensação foi

bem explorada pelo autor por meio do conceito de flow, que faz parte do processo criativo

e que será explorado adiante. Criatividade se relacionava aos estados emocionais que

Csikszentmihalyi (2014a) queria compreender, em contraponto ao sofrimento e a dor

causada pelo homem a si mesmo e aos seus semelhantes, situação que ele já tinha

89
experimentado em sua infância. O objeto de estudo encontrou a motivação do autor e o

resultado foi uma grande contribuição ao campo da psicologia da criatividade.

Csikszentmihalyi (1999a, 2014a) define criatividade como um fenômeno

sistêmico, que emerge das interações entre indivíduo, audiência e contexto social. A

utilização do conceito de sistema permite visualizar e compreender o fenômeno criativo

em sua origem, dinâmica e desenvolvimento. De acordo com Alves (2012): “Um sistema

é uma construção mental de uma organização contendo uma coleção de objetos inter-

relacionados em uma dada estrutura perfazendo um todo (uma unidade) com alguma

funcionalidade que o identifica como tal” (p. 96).

Csikszentmihalyi, ao utilizar a teoria sistêmica para descrever criatividade,

facilitou não só a visualização da gênese e desenvolvimento desse fenômeno, como

permitiu sua análise em dimensões ainda não exploradas na psicologia da criatividade. O

conceito de sistemas abriu as portas para uma análise estrutural e dinâmica do ato criativo,

agora visto de diferentes pontos de referência.

O que é criatividade para o autor? Criatividade consiste no processo de mudança

simbólica em um contexto social realizada por um agente humano e com a participação

de outras pessoas que vão avaliar o ato criativo, inserindo-o, ou não, na cultura. Ao situar

a criatividade em um sistema, Csikszentmihalyi (2014a) retira do sujeito a supremacia da

criação. O indivíduo genial, dotado de talentos não é mais o foco da expressão criativa.

Para que um sistema opere, garantindo sua funcionalidade, é necessário que as partes se

mantenham em equilíbrio. Para haver criatividade não basta haver um indivíduo, seja ele

genial ou não. É necessário que haja uma sinergia entre várias instâncias que ultrapassam

o sujeito (Csikszentmihalyi, 2007). Criatividade surge do encontro do sujeito com seu

contexto social e com o campo de expertises de uma área, que vão promover um

enfrentamento da produção criativa resultando em aceitação pelos pares, ou não. A


90
dimensão social é parte deste sistema e representa a instância de significação do ato

criativo. O sujeito que cria, de acordo com o Modelo Sistêmico, está submetido ao

sistema; ele depende de seus pares para ter seu trabalho reconhecido como criativo e

necessita do aval de seu contexto social para validar sua produção.

O conceito de flow surge no trabalho de Csikszentmihalyi (2007) como um estado

de encantamento e prazer que toma o sujeito em processo de criação. Essas sensações têm

a ver com a própria tradução da palavra para o português: flow significa fluidez, fluxo,

fluência. Vivenciar o estado de flow é sentir processos ideacionais fluindo, gerando

prazer. Flow inclui múltiplas experiências, como, por exemplo:

1. Percepção de que os próximos passos ou as metas a serem alcançadas, em uma

prática ou ação, já são conhecidas, porque o processo de fazer ou criar gera a sensação de

fluidez.

2. Percepção imediata dos resultados de nossas ações e a compreensão de que elas

estão de acordo com os propósitos delineados.

3. Emergência de um equilíbrio entre os desafios que uma tarefa exige e as nossas

habilidades em enfrentá-los. Em estado de flow, nós sabemos que somos capazes de fazer

o que estamos fazendo e, raramente, experimentamos frustração.

4. Ação e consciência da ação, ao experimentar flow, mesclam-se e ocorre a

experiência da concentração profunda, do contato real com o que estamos realizando.

5. Distrações são excluídas da experiência de flow. Vivenciar flow é estar

completamente concentrado naquilo que se faz, sem que ocorra qualquer tipo de

distração. Há semelhança entre flow e estados meditativos.

91
6. Medo de falhar não ocorre quando se experimenta flow. Isso acontece pela

profunda concentração na tarefa, pelo intenso envolvimento do sujeito com sua obra que

atua como um antídoto em relação ao medo do fracasso. Esse medo pode aparecer depois,

mas não no momento da experiência.

7. Consciência de si mesmo desaparece na experiência de flow. A pessoa está tão

envolvida em seu trabalho que se esquece da tarefa contínua de proteção ao ego que

realizamos o tempo todo. É comum ver pessoas emergindo da experiência de flow com

uma percepção de si mesmo muito favorável e positiva, como se esta vivência tivesse

ampliado sua autoestima.

8. Sentido de tempo também se perde. Dispende-se longas horas em uma atividade

sem se perceber.

9. Atividade em realização se torna autotélica, ou seja, não há uma razão para que

ela seja realizada, a não ser o simples fato de realiza-la pelo prazer que advém disso

(Csikszentmihalyi, 2007). O conceito de flow é elemento central na descrição da dinâmica

de desenvolvimento da criatividade no modelo sistêmico.

A configuração sistêmica da criatividade trouxe uma série de desafios para o

sujeito. Criar e obter reconhecimento sobre sua criação deixou de depender do talento,

genialidade ou mesmo sorte do sujeito. O ato criativo, na perspectiva sistêmica, percorre

múltiplos caminhos sem previsão de sucesso ou realização (Csikszentmihalyi, 2007).

Uma vez pronto, o resultado da criação, produto material ou simbólico, tem que

convencer uma audiência de experts que vão facilitar seu ingresso no domínio

sociocultural, ou não. Uma vez aceito pelo campo, esse produto pode não ser bem

assimilado pela instância sociocultural ou não provocar impacto como previsto ou

desejado pelo indivíduo que o criou. Muitas vezes, o momento histórico é desfavorável

92
para determinado tipo de produto criativo; por outras vezes, é o tempo cronológico que

vai impedir a assimilação da criação, que pode ter chegado atrasada para causar impacto

ou inovação. Há momentos em que os aspectos políticos e econômicos vão inviabilizar

boa parte dos esforços criativos. O cenário se torna bem mais complexo e múltiplas

variáveis são inseridas na análise da criatividade. Um olhar sistêmico sobre a criatividade

inclui grande complexidade analítica e desafios teóricos e metodológicos que surgem na

investigação do fenômeno. Por outro lado, amplia as possibilidades de observação,

análise e inferências sobre as dinâmicas interativas e de desenvolvimento da criatividade.

Csikszentmihalyi nos colocou diante de um modelo repleto de potencialidades, incluindo

aspectos instigantes e provocativos.

O Modelo Sistêmico de Csikszentmihalyi compreende a criatividade como um

fenômeno que não pode ser investigado, prioritariamente, a partir do sujeito que cria.

Questionar o que é criatividade, para o autor, é tão relevante quanto perguntar “onde está

esta criatividade” (Csikszentmihalyi, 2014a). Não há dúvidas de que a criatividade tem

um agente, que é o sujeito humano, mas também não há como ignorar que entre esse

sujeito, seus processos psicológicos internos e um produto criado há uma série de

interferências que são de ordem externa e que pertencem a outros cenários, como a

sociedade e a cultura. Para compreender um fenômeno de ocorrência distribuída, o autor

pensou no modelo de sistemas para investigá-lo.

Criatividade, como já dito, emerge de um sistema que opera por meio de três

grandes instâncias, a saber: (1) um campo; (2) um domínio e (3) o sujeito. Na figura

abaixo identificamos as instâncias constitutivas da criatividade.

93
Figura 1. Modelo Sistêmico da Criatividade (Csikszentmihalyi, 1999a, p. 315).

O campo representa a dimensão dos pares, em geral especialistas ou expertises em

algum domínio, que selecionam o que é produzido pelos sujeitos, em diferentes áreas do

saber e do fazer, preservando e inserindo estas obras nos grupos sociais

(Csikszentmihalyi, 1990, 2014a). O campo inclui todas as pessoas ou instituições que

podem afetar a estrutura do domínio. “Ele consiste de professores, juízes, instituições,

agências, prêmios que permitem ou minam o desenvolvimento de uma carreira e a

produção de trabalhos criativos” (Gardner & Wolf, 1994, p. 57). O campo pode ser

inicialmente identificado como a família, parentes e amigos, instituições educacionais, e,

posteriormente, colegas de trabalho, líderes, formadores de opinião etc. Isso significa

reconhecer que o indivíduo não trabalha no vácuo; cada ação deve ser julgada pelos pares

94
e o coletivo. O campo pode ser reativo e inibir a produção criativa ou ser pró-ativo e

estimulá-la (Vilarinho-Rezende, 2017).

O campo dá a chancela de criativo a um produto, seja ele material ou simbólico.

Uma vez formado por especialistas, o campo é a instância social que define o que é

criativo ou não, em uma determinada área. Há momentos, entretanto, em que o campo se

engana, cometendo erros notórios, como bem retrata a história de Van Gogh, que teve sua

obra ignorada por absoluta falta de condições do campo para compreendê-la em seu

tempo histórico. O domínio é a instância sociocultural que habitamos. É nesse contexto

que as mensagens culturais são criadas e canalizadas para os sujeitos por processos de

significação. O domínio cria, preserva, transmite, inspira e garante o legado do

conhecimento para as gerações. Estamos imersos no domínio e Csikszentmihalyi

percebeu seu papel constitutivo no ato criativo. Fechando o ciclo, temos o sujeito, ou a

pessoa, que é o agente do ato criativo. É a pessoa quem vai traduzir para o campo as

influências recebidas no domínio em forma de produtos novos. Esses produtos, uma vez

considerados criativos, tem força para modificar o sistema como um todo e gerar

transformações no campo e no domínio, no conhecimento especializado e na cultura

(Csikszentmihalyi, 2014a).

Por meio deste modelo, Csikszentmihalyi explica como surge a criatividade. Em

sua perspectiva, para que o ato criativo ocorra, uma série de práticas, crenças e valores

devem ser transmitidos do domínio para o indivíduo. O indivíduo pode, por meio da

significação dessas informações culturais, produzir algo novo a partir do domínio.

Entretanto, essa produção ou variação no domínio deve ser selecionada e aprovada pelo

campo, para que haja futura inclusão da novidade no domínio e, consequentemente,

transformação cultural. Portanto, estudar apenas o indivíduo não é suficiente para

compreender o processo criativo. Seu papel, embora relevante, é um elemento nessa

95
cadeia, uma etapa nesse processo (Csikszentmihalyi, 1996). Criatividade não ocorre

dentro da cabeça das pessoas, mas é fruto da interação entre os pensamentos do indivíduo

e o contexto sociocultural. É um fenômeno sistêmico ao invés de individual.

Como exemplo, Csikszentmihalyi (1996) comenta que atribuir a descoberta da

eletricidade a Thomas Edison ou a teoria da relatividade a Einstein

... é uma simplificação conveniente. Ela satisfaz nossa predileção antiga por

histórias que são fáceis de compreender e envolve heróis super-humanos. Mas as

descobertas de Edison e Einstein seriam inconcebíveis sem o conhecimento

prévio, sem a rede social e intelectual que estimulou seus pensamentos, e sem o

mecanismo social que reconheceu e divulgou suas inovações. (p. 7)

A contribuição da dimensão domínio para o desenvolvimento da criatividade se

manifesta na medida em que o conhecimento é organizado e a informação é de fácil

acesso. “Sempre que a informação é falsa, ilógica, superficial, redundante, desconexa,

confusa ou, especialmente, sem importância, as chances de ser assimilada pelos alunos

são pequenas, e é também remota a probabilidade de uma resposta criativa”

(Csikszentmihalyi, 1996, p. 341). Além disso, o potencial criativo é cultivado quando o

indivíduo tem acesso a muitas fontes de informação. Interesse e curiosidade podem ser

estimulados por meio de experiências positivas, de um ambiente que encoraje o indivíduo

e promova muitas oportunidades. Altas expectativas, seja por parte da família, da escola,

dos colegas, por exemplo, podem influenciar positivamente o desempenho do indivíduo.

Porém, expectativas irrealistas podem ter um papel oposto, o de prejudicar o

envolvimento da pessoa em um domínio ou em uma tarefa. Da mesma forma, a exposição

96
precoce e a oportunidade de se engajar em um domínio específico são fatores essenciais

ao desenvolvimento da criatividade.

Com respeito à influência do campo, há cinco aspectos que contribuem de forma

significativa para a produção criativa: formação, recursos, reconhecimento e recompensa.

Uma sociedade que efetivamente promove oportunidades de formação para crianças e

jovens contribui para o desenvolvimento de talentos criativos. Recursos materiais e

suporte psicológico são também indispensáveis para que a criatividade floresça. É

importante ainda que o potencial e interesse dos jovens sejam reconhecidos por um

membro mais velho do campo, que poderia atuar como um mentor. Seu papel seria o de

encorajar o jovem a continuar trabalhando em uma área do conhecimento ou domínio.

Recompensas intrínsecas e extrínsecas podem também contribuir para o desenvolvimento

da criatividade.

No contexto educacional, Csikszentmihalyi (2006) sugere que para promover

criatividade no sistema educacional é preciso ajudar os estudantes a encontrarem o que

eles realmente amam e a fazerem uma imersão nesse domínio. Para que isso aconteça, os

professores devem ser selecionados em função do amor deles pela aprendizagem e de

como eles podem “contaminar” seus alunos por esse sentimento; o currículo deve levar

em consideração o desejo do estudante de aprender de forma prazerosa; a pedagogia deve

focar no estímulo à imaginação e engajamento dos estudantes; e a instituição deve

reconhecer e reforçar o amor pela aprendizagem tanto de professores quanto de alunos.

À família também compete estabelecer uma tradição de respeito pela aprendizagem.

Quanto a se ter uma vida mais criativa, Csikszentmihalyi (1996) faz algumas

recomendações:

1. Cultive a curiosidade e os seus interesses.

97
2. Tente se surpreender por alguma coisa a cada dia.

3. Tente surpreender uma pessoa a cada dia.

4. Escreva o que surpreendeu você e como você surpreendeu outras pessoas.

Depois de algumas semanas, você será capaz de observar padrões de interesses

emergentes.

5. Ao acordar, estabeleça uma meta específica a ser alcançada.

6. Para manter seu interesse em uma tarefa, atividade ou área, aumente seu nível

de complexidade.

7. Assuma o controle de sua agenda.

8. Reserve tempo para reflexão e relaxamento.

9. Encontre uma maneira de expressar o que interessa a você.

10. Olhe os problemas sob diferentes pontos de vista.

11. Produza muitas ideias.

12. Tente pensar nas implicações de um problema a ser solucionado.

13. Pense em ideias diferentes.

14. Escolha um domínio que atenda aos seus interesses. Para isso é necessário

transitar por vários domínios.

Para Csikszentmihalyi (1996), “se você não aprender a ser criativo na sua vida

pessoal, as chances de contribuir [ou promover mudanças] para a cultura caem para

próximo a zero” (p. 372).

O modelo teórico de Csikszentmihalyi tem muito a contribuir com outras áreas

das ciências humanas e sociais e delas também demanda saberes complementares.

Quando pensamos e trabalhamos na construção do conhecimento psicológico,

compreendemos rapidamente sua natureza inter e multidisciplinar. Os fenômenos

estudados na psicologia necessitam do auxílio dos conhecimentos de outras ciências,

98
como a biologia, a sociologia, a antropologia, e vice-versa. Pessoas e contextos

socioculturais só podem ser compreendidos, de fato, a partir de abordagens plurais que se

deem ao trabalho do dialogar com as ciências afins e de proporem construções teóricas e

metodológicas de forma conjunta. Costuma-se dizer que a psicologia é uma ciência

biopsicossocial, portanto, constituída por olhares plurais. O conhecimento construído

sobre a criatividade não foge à regra. Os diferentes modelos teóricos que buscam

compreender o fenômeno criativo não só emprestam de outras ciências seus saberes e

influências como ofertam vasto campo de compreensão, pesquisa e aplicação a estas

outras áreas. Csikszentmihalyi, por exemplo, buscou em Ludwig von Bertalanffy, biólogo

austríaco que criou a Teoria Geral dos Sistemas (Alves, 2012), elementos para seu modelo

em discussão, neste capítulo. Da mesma forma, pesquisadores de diferentes áreas têm se

beneficiado do Modelo Sistêmico da Criatividade, a saber: (a) na área esportiva

encontramos trabalhos sobre as relações entre flow e a experiência no esporte (Jackson &

Csikszentmihalyi, 1995) e (b) no campo educacional, as ideias de Csikszentmihalyi

encontraram campo fértil para florescer (Berman & Davis-Berman, 2005; Custodero,

2002; Csikszentmihalyi, 2014b; Schiefele & Csikszentmihalyi, 1995; Seligman, Ernstb,

Gillhamc, Reivicha & Linkinsd, 2009).

No âmbito da ciência psicológica, o trabalho de Csikszentmihalyi vem

enfrentando temas como: (a) a felicidade, compreendida como experiência humana

significativa, porém pouco explorada na pesquisa psicológica, (Csikszentmihalyi, 1999b,

2002; Csikszentmihalyi & Hunter, 2003); (b) a motivação humana em suas várias nuances

(Abuhamdeh & Csikszentmihalyi, 2012); (c) as questões desenvolvimentais e as etapas

de vida (Gute, Gute, Nakamura & Csikszentmihalyi, 2008; Nakamura &

Csikszentmihalyi, 2003); (d) o universo do trabalho e das condições da produção criativa

nas organizações (Csikszentmihalyi & LeFevre, 1989) e (e) a criatividade

99
(Csikszentmihalyi & Getzels, 1973) como fenômeno humano intimamente relacionado

aos estados de bem-estar, felicidade e ações produtivas com potencial de benefício para

os contextos coletivos. Como um modelo teórico consolidado, a abordagem de

Csikszentmihalyi vem gestando contribuições ricas para a pesquisa em criatividade em

quase todos os continentes. No Brasil, encontramos pesquisadores (Alencar & Fleith,

2003; Fleith & Alencar, 2005, Neves-Pereira & Branco, 2015; Pinheiro & Cruz, 2009)

que vem se beneficiando do Modelo Sistêmico da criatividade em seus estudos e

produções teóricas.

Como toda abordagem teórica, o Modelo Sistêmico da Criatividade apresenta

limitações. Csikszentmihalyi privilegiou a investigação da criatividade mobilizadora de

mudanças e transformações sociais. Como diria Kaufman e Beghetto (2009), o foco do

Modelo Sistêmico é a criatividade “Big C”, aquela que modifica a existência humana,

mesmo que em diferentes escalas. Criatividade, para Csikszentmihalyi, ter que gerar

impacto cultural. A opção por esta orientação justifica a existência do Campo, instância

que organiza a dimensão do julgamento dos pares, do aceite da criatividade, da seleção

de obras e produtos a serem inseridos nos contextos socioculturais. Ao decidir por essa

conceituação de criatividade, Csikszentmihalyi deixou de lado expressões significativas

do potencial criativo, especialmente quando falamos de criatividade na infância,

adolescência ou mesmo na vida cotidiana, momentos de vida que justificaram a criação

da abordagem sobre criatividade de Vygotsky (2009), denominado “Modelo da

Imaginação Criativa”. Vygotsky (2009) estava convencido de que o adulto era bem mais

criativo do que a criança, ainda desprovida de pensamento conceitual e capacidade

simbólica. Entretanto, a criança de Vygotsky tem um enorme potencial criativo a

desenvolver, o que significa olhar para esta etapa de vida com atenção. Já na perspectiva

de Csikszentmihalyi (1996) não é possível ser criativo na infância, como dito a seguir:

100
Crianças podem se mostrar bastante talentosas, mas elas não podem ser criativas

porque criatividade envolve modificar as formas de se realizar ou fazer coisas,

mudar modos de pensar, o que, por sua vez, demanda expertise sobre os antigos

modos ou caminhos do fazer e do pensar. (p.155)

Csikszentmihalyi defende essa premissa, o que o situa em uma posição

epistemológica peculiar. Negar a criatividade na infância é, de alguma forma, um modo

de eliminar o grande impacto do início da vida na expressão criativa do sujeito adulto

(Sawyer et al., 2003; Vygotsky, 2009). Ser criativo na infância, na perspectiva do Modelo

Sistêmico, é um mito, uma idealização da criança construída por nossa sociedade que

compreende a infância como um momento lúdico, fantasioso e dominado pela imaginação

e ilusão. Para o autor, criatividade só existe no momento em que começa a modificar

domínios, campos e pessoas, ou seja, quando começa a modificar a cultura. É a sociedade

que dá origem à criatividade. O sujeito é agente desse processo sistêmico. Continuando

nessa linha de pensamento, não é possível dizer que crianças tenham produções e/ou

ações criativas que impactem um contexto social ou o campo (Sawyer et al., 2003),

portanto, crianças não são criativas. Porém, nenhum pesquisador que trabalhe com

criatividade ignora a importância da infância e da adolescência para que a expressão

criativa aflore com vigor na vida adulta. Isso pressupõe, ou mesmo deixa pistas, de que

há traços de criatividade na infância que, se preservados ou trabalhados adequadamente,

podem mudar a história desta criança e de seus contextos.

Há uma outra posição conceitual da criatividade que não encontra respaldo no

Modelo Sistêmico: a das teorias sociogenéticas (Glaveanu, 2010; Neves-Pereira, no prelo;

Vygotsky, 2009). Os autores dessas teorias apostam na importância social e cultural da

criatividade ordinária, aquela que vivenciamos no dia a dia, que não modifica cenários
101
históricos, mas, na maioria dos casos, permite aos sujeitos (crianças, jovens, adultos e

idosos) um desenho de vida mais satisfatório e saudável. A criatividade “mini c”

(Kaufman & Beghetto, 2009) é de extrema importância para a vida humana. Ela impacta

muitos mais sujeitos do que as grandes descobertas da humanidade, muitas vezes

desconhecidas na teoria e na prática por inúmeros grupos culturais que habitam nosso

planeta. Como diz Neves-Pereira (2018):

O modelo de Csikszentmihalyi deixou a criatividade ordinária de lado. Como

avaliar a criatividade cotidiana e infantil, por exemplo, na ausência de domínios

de expertises? O modelo avança, ao ampliar a compreensão da criatividade em

suas diversas instâncias, mas desconsidera aspectos centrais para uma visão da

criatividade que agregue suas múltiplas expressões. (p. 14)

O Modelo Sistêmico representa um grande ganho para a psicologia da

criatividade. Ao retirar a ação criativa de uma perspectiva individualizada e distribuí-la

em instâncias que operam sistemicamente, Csikszentmihalyi (2014a) promoveu uma

mudança epistemológica conceitual e estrutural do fenômeno criativo. Como ele mesmo

argumenta, seu trabalho mudou o paradigma da criatividade de uma visão Ptolomaica

(com o sujeito no centro do processo da criação) para uma perspectiva Copérnica (onde

o sujeito é parte do processo de criação e vive em interação com outras dimensões

participantes). Criatividade passa a ter origem nos contextos sociais e deles depende para

existir, sobreviver e modificar o mundo. Sai de cena a figura do sujeito genial e entra a

figura do agente da criatividade, que atua tanto individualmente como em grupo e que

não se destaca, em importância, nas origens da criatividade.

102
Leituras Recomendadas

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106
O MODELO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA DE LEV VYGOTSKY

Mônica Souza Neves-Pereira

Jane Farias Chagas-Ferreira

Todo inventor, até mesmo um gênio, sempre é


consequência de seu tempo e ambiente. Sua
criatividade deriva das necessidades que foram
criadas antes dele e baseia-se nas
possibilidades que, uma vez mais, existem fora
dele. É por isso que observamos uma
continuidade rigorosa no desenvolvimento
histórico da tecnologia e da ciência. Nenhuma
invenção ou descoberta científica aparece antes
de serem criadas as condições materiais e
psicológicas necessárias para o seu surgimento.
A criatividade é um processo historicamente
contínuo em que cada forma seguinte é
determinada pelas precedentes.
Vygotsky (citado em Van der Veer & Valsiner,
1999, p.11)

A psicologia de Vygotsky mudou a compreensão da gênese e desenvolvimento

das funções psicológicas humanas criando solo fértil para que inúmeras teorias

sociogenéticas emergissem. A influência é tamanha que se torna difícil mensurar os

impactos gerados, na psicologia e na educação, por suas ideias de cunho social e histórico.

As ciências sociais, a neurologia, as artes, a pedagogia e a psicologia foram desafiadas e

fortalecidas pela psicologia vygotskyana. A criatividade também foi beneficiada ao ser

pensada como uma função psicológica que se desenvolve por meio de um sistema que

agrega a imaginação, a brincadeira e os processos de significação vivenciados pelos

sujeitos em seus cursos de vida (Neves-Pereira, 2018; Smolka, 2010; Vygotsky, 2009).

Antes de Vygotsky, não há registro de uma proposta sociogenética do fenômeno criativo

107
na qual o sujeito, a cultura e os contextos de desenvolvimento passam a coconstituir a

criatividade como função psicológica, eliminando a lógica de uma dimensão social e

cultural atuando como pano de fundo nos processos de desenvolvimento humano. Após

Vygotsky, novos modelos sociogenéticos sobre a criatividade emergiram (Connery, John-

Steiner, & Marjabovic-Shane, 2010; Glăveanu, 2014, 2015; Sawyer, 1995; Sawyer, John-

Steiner, Moran, Sternberg, Feldman, Nakamura, & Csikszentmihalyi, 2003), alguns

ampliando suas ideias, outros trabalhando diretamente com seu legado. Sem Vygotsky,

entretanto, este olhar sobre a criatividade, que começa a se fortalecer, não poderia existir.

Seu legado é da maior importância para os estudiosos da área.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A psicologia de Vygotsky guarda profunda vinculação com a sua história, sua

família, o país onde nasceu, as influências ideológicas, filosóficas e científicas

vivenciadas por ele, e por seus pares, na Rússia no início do século XX. Lev Semyonovich

Vygodsky, que teve o sobrenome posteriormente mudado para Vygotsky, nasceu no dia

5 de novembro de 1896 em Orsha, uma pequena cidade perto de Minsk, capital da

Bielarus. Oriundo de uma família judia, culta e dotada de posses materiais, Vygotsky e

sua família viveram em Gomel grande parte de sua vida, incluindo a infância e

adolescência. Ele e seus irmãos foram instruídos por preceptores e iniciados no letramento

e conhecimentos gerais, além de receberem instrução religiosa, embora a família não

fosse praticante de sua tradição. Vygotsky foi uma criança precoce intelectualmente. Há

registros de familiares comentando sobre seu interesse em discutir a filosofia de Hegel,

ainda muito jovem, sempre com amigos mais velhos do que ele (Van der Veer & Valsiner,

1999).

108
A Revolução Russa de 1917 alcança Vygotsky, com 21 anos, já tuberculoso e

engajado em seus estudos e projetos intelectuais. Nesse mesmo ano, ele se forma em

Direito, na Universidade de Moscou, uma opção profissional bastante adequada às suas

origens religiosas. Ao longo de sua vida, Vygotsky teve que lidar com situações de

preconceito em relação aos judeus por parte da sociedade russa. Eles não podiam ser

servidores públicos, muito menos ocupar os melhores cargos de trabalho. Ser advogado

permitia, a Vygotsky, não só alcançar ascensão social como permissão para morar em

qualquer lugar do seu país, já que os judeus também sofriam retaliações com relação aos

espaços de moradia. Para além dessa primeira formação, Vygotsky realizou profundas

investigações nas áreas da história, filosofia, artes, estética, literatura, psicologia e

neurologia (Oliveira, 1995). Entusiasta da vida intelectual, aprendeu a falar vários

idiomas, dentre eles o Esperanto, o que lhe permitiu ler boa parte da produção científica

disponível no início do século XX.

Conhecido por seu carisma como orador, Vygotsky retornou a Gomel, após sua

formatura em Direito, onde lecionou em diversas instituições de ensino, promovendo

encontros e eventos científicos e artísticos que o destacaram como pessoa relevante para

a vida cultural e intelectual da cidade. Ele mesmo proferiu inúmeras palestras, cativando

um grande público encantado com o brilhantismo de suas ideias sobre a arte, a estética, a

educação e a psicologia. Dessa época, há registros de várias publicações realizadas por

ele (Van der Veer & Valsiner, 1999), incluindo os textos iniciais do livro Psicologia

Pedagógica, publicado posteriormente (Vygotsky, 1926/2003). Com a guerra civil

acontecendo em seu país e diante de dificuldades extremas, como a tuberculose

descoberta aos 20 anos em uma crise severa que quase lhe custou a vida, Vygotsky ainda

levou algum tempo para mudar-se para a capital e dar início a uma nova etapa de sua vida

109
profissional. Seu casamento com Roza Smekhhova, em 1924, marca sua ida para Moscou

onde seu trabalho encontra solo para frutificar (Van der Veer & Valsiner, 1999).

Moscou, no início do século XX, já contava com áreas científicas consolidadas na

qual a psicologia não detinha, ainda, espaço privilegiado. Sua trajetória, como área

científica, só começaria a partir da Revolução de Outubro 1917. Como argumentou

Faraco (2017, p. 27):

Como sabemos, os anos imediatamente posteriores à Revolução de Outubro foram

marcados não só por grandes mudanças políticas, sociais e econômicas na Rússia,

mas também por intensa atividade cultural, seja na esfera da criação artística, seja

na esfera do debate das ideias. A conjuntura política levava os intelectuais a se

envolverem na construção de formulações teóricas de inspiração marxista que

pudessem se contrapor aos quadros teóricos tradicionais, especialmente os

vigentes nas humanidades e nas ciências sociais.

Nesta época, a filosofia, a pedagogia e a fisiologia tinham mais expressão

institucional e acadêmica do que a psicologia, conquistando espaços de privilégios e

reconhecimentos que tiveram seu ápice com o Prêmio Nobel recebido por Pavlov, em

1904 (Rey, 2013). As ideias psicológicas começaram a ser trabalhadas, no cenário russo,

por meio de pesquisadores que introduziram temas pontuais no contexto das ciências

dominantes, como: (1) a discussão sobre o papel da atividade em psicologia, realizada

por Sechenov, ainda no final do século 19; (2) a criação do primeiro laboratório de

psicologia experimental, na Rússia, em 1885, por Bechterev, discípulo de Sechenov (esse

laboratório investigava enfermidades espirituais e nervosas, em contexto clínico a partir

de bases teóricas positivistas) e (3) Pavlov, que, com seu prestígio científico e político,

110
disseminou crenças de que a psicologia científica só poderia se sustentar a partir de

abordagens experimentais das atividades nervosas superiores, tornando suas ideias sobre

a fisiologia em verdadeiros dogmas que atrelaram o conhecimento psicológico a uma

perspectiva reflexológica (Rey, 2013). A filosofia e a pedagogia também assumiram forte

influência no surgimento da psicologia russa e, posteriormente, na soviética. Como áreas

de maior prestígio social e político, tanto filósofos como pedagogos discutiam, à época,

questões como as relações entre educação e cultura, a indissociabilidade entre educação

e vida social e a dimensão idealista da filosofia, o que estabelecia oposição vigorosa às

ideias mecanicistas das ciências biológicas e médicas.

Ainda discutindo o zeitgeist da época, observou-se a forte influência da psicologia

alemã sobre a psicologia russa incipiente, especialmente ao consideramos as ideias de

Wundt. Um nome se destaca neste momento: Georgy Chelpanov (1862-1936). Chelpanov

era um filósofo com forte interesse nos estudos sobre a consciência, fenômeno impossível

de se investigar sob a ótica reducionista da reflexologia positivista. Em suas viagens pela

Alemanha, Chelpanov passou algum tempo em Leipzig, com Wundt, alimentando-se de

novos saberes. As ideias estruturalistas e a Volkerpsychologie de Wundt causaram forte

impacto em Chelpanov que, ao retornar a Moscou, deu início a uma nova perspectiva de

investigação dos fenômenos psicológicos, germinando as ideias que originariam a

psicologia russa e, posteriormente, a soviética. Dentre suas ações relevantes destaca-se a

criação de um instituto de psicologia, na Universidade de Moscou, em 1914, estruturado

a partir dos modelos alemães e americanos, que representavam o que havia de melhor em

laboratórios de investigações psicológicas à época (Rey, 2013).

Chelpanov foi diretor do instituto de psicologia de Moscou até 1923 quando

Kornilov tomou seu lugar. Kornilov (1879-1957) era um psicólogo soviético, discípulo

de Chelpanov e de Wundt, e criador da reactologia, uma área de investigação que

111
objetivava compreender os sistemas de reações que constituem o comportamento

humano. O convite feito a Kornilov para dirigir o instituto, que passou a se chamar

“Instituto de Psicologia Experimental de Moscou”, surgiu após inúmeras críticas

recebidas por Chelpanov, por parte do governo soviético, que o considerava muito

idealista e pouco prático (Van der Veer & Valsiner, 1999). Kornilov, ao tomar o lugar de

seu mestre, inicia uma profunda reforma na instituição, trazendo vários psicólogos para

fazerem parte do grupo. Luria foi convidado no ano de 1923. Vygotsky seria convidado

mais tarde. Foi no porão desse instituto que Vygotsky foi morar com Roza e sua primeira

filha, assim que chegou definitivamente a Moscou.

A PSICOLOGIA DE VYGOTSKY

Para compreender o pensamento de Vygotsky sobre a criatividade é importante

desvelar não somente o seu contexto de vida na Rússia do início do século XX, mas é

igualmente necessário conhecer o seu modelo teórico. Na concepção de Vygotsky, o salto

qualitativo dado pelo homem em sua trajetória ontogenética tem sua origem no fenômeno

denominado cultura (Vygotsky & Luria, 1996). No momento em que se organizaram os

primeiros grupos humanos, nos quais sujeitos passaram a conviver, trabalhando,

cooperando, descobrindo formas de subsistência e construindo estruturas de linguagem

com significados e sentidos partilhados pelos grupos, todo o processo de desenvolvimento

da nossa espécie foi catapultado para um nível superior, inigualável na escala filogenética.

Vygotsky, motivado por sua constante curiosidade, procurou esboçar os modos

como o homem tornou-se cultural ao tentar lidar com a experiência vivida e com o caos

que a natureza nos presenteia a todo instante: por meio da criação de instrumentos

culturais, como ferramentas e signos. O homem cultural surge como resposta à

112
inexorabilidade e imprevisibilidade da experiência da vida, em que recursos semióticos

são requeridos para a explicação de si mesmo e para a organização do mundo à sua volta

(Van der Veer & Valsiner, 1999).

A abordagem histórico-cultural de Vygotsky pratica sua própria conceituação de

cultura, que representa um construto central na formulação desse modelo teórico. Para

Vygotsky (1998), a cultura representa todo e qualquer objeto/ideia/produto/ significado

construído pelo homem, seja por meio da utilização de ferramentas ou do uso de signos.

O conceito relaciona-se diretamente com esses elementos (signos, instrumentos e seus

significados) que constituem a dinâmica do processo de internalização, em que se define,

justamente, o trânsito entre o que é da ordem do externo (interpsicológico) para o que é

da ordem do interno (intrapsicológico). Segundo Valsiner (1989), o termo “cultural”

dentro da perspectiva vygotskyana, significa o que é instrumentalmente criado, tudo que

é produzido por meio do uso de signos e instrumentos.

Por ser uma leitura sociogenética do desenvolvimento humano, a abordagem

desenvolvimental de Vygotsky também assume o palco cultural como o tecido que

origina a constituição do sujeito humano. O atributo de humanidade não é uma herança

herdada pela espécie homo sapiens, mas sim um processo construído no encontro entre

sujeito, natureza e dimensão social, no cenário histórico-cultural destacado por Vygotsky.

O homem se diferenciou das outras espécies animais em seu trajeto ontogenético porque

começou a se relacionar com o mundo de forma mediada por instrumentos e símbolos.

De acordo com Oliveira (1995): “o ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação

com o outro social. A cultura torna-se parte da natureza humana num processo histórico

que, ao longo do desenvolvimento da espécie e do indivíduo, molda o funcionamento

psicológico do homem” (p. 24).

113
Vygotsky compreendia que o homem, em sua longa jornada de desenvolvimento,

construiu, como espécie, uma ontogênese particular quando comparada com outros seres

vivos (Vygotsky & Luria, 1996). Ao diferenciar-se das outras espécies animais e construir

rotas específicas de desenvolvimento, o sujeito humano também diversificou seus

processos de funcionamento interno, complexificando seu comportamento e constituindo

novas categorias psicológicas inéditas, até então, no cenário natural. A este repertório

singular de estruturas mentais Vygotsky denominou funções psicológicas superiores.

Essa trajetória, porém, não surgiu do nada. No reino animal, existe funcionamento mental

em vários níveis. Leontiev (1978) discute esse tema e apresenta argumentos consistentes

que apoiam a tese de que características de pensamento estão presentes no mundo animal,

por meio de um extenso processo de desenvolvimento de múltiplas estruturas, ao longo

da filogênese. Em seus estudos, encontramos o termo “pré-história do pensamento

humano” que é utilizado quando se analisa o processo de desenvolvimento do psiquismo

animal.

Com relação ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores do homem,

surge um domínio que lhe é específico e exclusivo, representado pela consciência. Ao

longo do desenvolvimento da consciência, o homem tornou-se o único ser vivo capaz de

distinguir a realidade objetiva e subjetiva e de refletir sobre si mesmo. No momento em

que o sujeito humano passa a atuar instrumentalmente sobre a natureza, mediado por suas

relações com os seus semelhantes e em contextos de coletividade, originam-se as funções

psicológicas superiores que representam ações tipicamente humanas, como: pensamento,

linguagem, imaginação, memória, atenção voluntária, criatividade, raciocínio lógico e

formal, entre outras. Tal repertório de ações é qualitativamente superior aos processos

psicológicos básicos apresentados pelos animais, ao longo do percurso filogenético. Ao

114
inserir-se no mundo da cultura e das relações, o antropoide ascendeu ao patamar humano,

promovendo um nível de desenvolvimento até hoje inigualável na história natural.

O modelo teórico desenvolvido por Vygotsky deu origem a produtivos e

inovadores conceitos, entre os quais destacaremos aqueles que nos parecem fundamentais

para a compreensão das funções psicológicas superiores mais relacionadas ao

desenvolvimento da criatividade. São eles os conceitos de Mediação, Zona de

Desenvolvimento Proximal (ZDP) e Perejivanie.

A mediação, no modelo teórico de Vygotsky (Martins & Moser, 2012; Vygotsky,

2003) exerce um papel preponderante para a compreensão do desenvolvimento das

funções psicológicas superiores. Seu argumento central é o de que toda a ação humana é

mediada. A mediação é o processo que caracteriza a relação do homem com mundo - com

os outros seres humanos, com os objetos e os símbolos. Essa mediação é sempre

complexa, dialética, dialógica e dinâmica. Pensamento e linguagem, por exemplo, são

funções que se desenvolvem por meio de processos semióticos de mediação, mesmo

necessitando de bases biológicas como as interconexões neuronais. A biologia, por si só,

não nos outorga o atributo de humanidade, embora seja indispensável. São necessários,

além da mediação, as motivações e os afetos, recursos propulsores de desenvolvimento

humano, para que nos tornemos “humanos”. Neste sentido, a mediação é uma experiência

vivida pelo homem em sua imersão no mundo da cultura concomitante com sua atuação

nesse mesmo mundo, sempre em interação e em alteridade.

Para compreender a relação entre desenvolvimento e aprendizagem, Vygostky

(1998) elaborou o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). A ZDP revela

o estado dinâmico do desenvolvimento humano, como um processo de maturação

constante, um continuum que movimenta vários processos que são fundamentalmente

atrelados à cultura. A ZDP foi concebida a partir de um processo relacional, que se

115
manifesta na interação com o outro por meio de uma atividade colaborativa em dois

níveis: real e potencial. A zona de desenvolvimento real tem um caráter retrospectivo,

uma vez que leva em consideração o que o sujeito já consolidou e sabe fazer sem ajuda

como “resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados” (Vygotsky, 1998,

p. 111). A Zona de Desenvolvimento Potencial ou Proximal tem um caráter prospectivo,

sendo inferida a partir do que a pessoa poderia fazer ou aprender a partir da

mediação/colaboração de outro mais capaz.

Vygotsky (1998) considera o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal

importante para repensar os processos educativos, a avaliação psicológica e o papel da

imitação na aprendizagem. Para além de suas hipóteses iniciais, podemos inferir que os

processos criativos agem no sentido de alargar a zona de desenvolvimento proximal,

levando o sujeito a vivenciar, com a ajuda da sua imaginação ou do relato de outra pessoa,

o que não se viu e não se experimentou de maneira direta. A imaginação criativa, nesta

direção, expande as fronteiras da experiência histórica e social do sujeito, atuando sobre

as potencialidades de seu desenvolvimento. Sendo assim, a imaginação criativa criaria

novas zonas de desenvolvimento mediadas pela incubação dos elementos da realidade e

pela experiência anterior da pessoa, que vai do insight até a sua expressão no ato ou

produção criativa.

O conceito de Perejivanie está associado à experiência humana que é tanto

objetiva quanto subjetiva, racional e consciente quanto afetiva e inconsciente. Vygotsky

(Liberali & Fuga, 2018; Moran & John-Steiner, 2003; Vygotsky, 1999) defende que cada

pessoa vivencia a realidade como uma experiência única e particular. Ao mesmo tempo

em que essa experiência é afetada pelo meio social que circunda a pessoa, a pessoa

transmuta-se em agente de transformação e também vai constituindo-se a si mesma. Para

Vygotsky (1999), a situação social e as especificidades do ser humano formam uma

116
unidade. Desta forma, perejivanie é como um prisma refratário do coletivo que afeta a

maneira como o sujeito percebe, sente e vivencia o social e se transforma por meio dele.

Essa experiência visceral é a base do desenvolvimento intrapessoal e da imaginação

criativa.

Ou seja, o ambiente não existe em absoluto; para compreender e estudar o

desenvolvimento humano, é preciso conhecer o ambiente na sua relação com as

especificidades de cada indivíduo. Não existe ambiente social sem o indivíduo

que o perceba e o interprete. O ambiente social é uma realidade que envolve o

ambiente e a pessoa, é o entre. (Prestes & Tunes, 2012, p.7)

A partir desse conceito depreende-se que a ação criativa envolve um processo no

qual os elementos emocionais, motivacionais e intelectuais são organizados e

reorganizados de forma interdependente e dialética. Há uma circularidade entre a maneira

como enquadramos e interpretamos as nossas experiências e a mobilização da nossa

imaginação e fantasia. Nesse sentido, a perejivanie é tanto a experiência única que move

o sujeito criativo em um processo de flow ou de suplício (Csikszentmihalyi, 1996; Moran

& John-Steiner, 2003; Vygotsky, 2009) como também a reação estética que sua obra

movimenta em sua audiência de maneira única e particular.

Assim, todas as nossas vivências fantásticas e irreais transcorrem no fundo, numa

base emocional absolutamente real. Deste modo, vemos que o sentimento e a

fantasia não são dois processos separados entre si, mas, essencialmente, o mesmo

processo, estamos autorizados a considerar a fantasia como a expressão central da

reação emocional. (Vygotsky, 1999, p. 264)

117
DEFINIÇÃO DE CRIATIVIDADE

Vygotsky e seus colaboradores assumem que as funções mentais superiores do

homem, nas quais se inclui a criatividade, são originadas no palco sócio-histórico, a partir

das interações sujeito-ambiente-cultural. As relações entre criatividade e cultura

assumem, nessa perspectiva, uma dinâmica desenvolvimental diferenciada. Os dois

conceitos tornam-se diretamente vinculados, o segundo passando a ter um papel

fundamental na geração do primeiro e contribuindo para a determinação de suas

características básicas. O domínio sócio-histórico-cultural passa a ser o palco de onde do

qual surge a criatividade, a partir da interação entre o sujeito e a cultura, proporcionada

pelas linhas do desenvolvimento e da aprendizagem.

Vygotsky (Ayman-Nolley, 1992; Smolucha, 1992a, 1992b; Vygotsky, 1990,

2009) não nos legou um modelo teórico consistente sobre o desenvolvimento da

criatividade e imaginação, pelos mesmos motivos que o impediram também de construir,

de modo mais amplo e sistemático, uma abordagem sobre o desenvolvimento humano.

Sua saúde precária o avisava, de modo intermitente, que seu tempo produtivo tinha sido

reduzido. Entretanto, a partir de alguns textos relacionados ao tema, podemos inferir

algumas posturas teóricas de Vygotsky sobre o fenômeno criativo, que muito podem

contribuir para o entendimento dessa função tão complexa e tipicamente humana.

Começar pela conceituação do fenômeno criativo parece um passo indispensável

para a compreensão do tema. Como visto anteriormente, Vygotsky assume criatividade

como função psicológica superior, construída nas interações entre homem e cultura,

mediada por outros elementos sociais, mas com algumas características próprias. Para

entender a dimensão do fenômeno, parece interessante recorrer a uma analogia construída

por Vygotsky, ao tentar compreender a criatividade e sua magnitude. Em Neves-Pereira

(2007) encontramos uma síntese dessa ideia do autor:


118
Percebemos que a eletricidade está presente em eventos de diferentes magnitudes.

Existe em grande quantidade nas grandes tempestades, com seus raios e trovões,

mas ocorre também na pequenina lâmpada, quando ligamos o interruptor. A

eletricidade é a mesma, o fenômeno o mesmo, só que expresso com intensidade

diferente. A criatividade se processa da mesma forma. Todos somos portadores

dessa energia criativa. Alguns vão apresentá-la de forma magnânima, gigantesca;

outros vão irradiar a mesma energia só que de maneira suave, discreta. A energia

é a mesma, a capacidade também, apenas distribuída de forma diferenciada. (pp.

71-72)

É importante destacar que Vygotsky não defendia a criatividade como uma

aptidão inata do ser humano ou sua relação com dons ou talentos criativos. Em uma leitura

sociogenética do desenvolvimento humano, fica explícito que toda e qualquer função

psicológica humana se desenvolve a partir de um dado contexto histórico-cultural no qual

o sujeito está inserido. O homem nasce com um repertório orgânico e estrutural para o

desenvolvimento de seus processos psicológicos, mas isso só acontecerá mediante sua

inserção no domínio social. Possuir um potencial não significa o desenvolvimento do

mesmo. Nascemos com um cérebro dotado de inúmeras potencialidades, construímos

processos orgânicos que serão indispensáveis para nosso desenvolvimento futuro, mas

essa herança não garante nossa adaptação e sobrevivência na natureza. Sem modelos

culturais e processos de aprendizagem mediados por outras pessoas, não conseguiríamos

nos desenvolver e construir novos artefatos e estratégias de sobrevivência.

Articulando as noções de desenvolvimento, cultura e criatividade, podemos

sintetizá-las numa ideia que retrata a posição vygotskyana: o processo de

desenvolvimento da criatividade é delimitado pelo contexto cultural ao qual pertence o

119
sujeito agente do ato criativo. Sua expressão criativa individual reflete a influência do

coletivo, da dimensão social, na qual ele, como agente, apenas exteriorizou o desejo,

necessidade ou pensamento oriundo e emergente da cultura (Vygotsky, 1990, 2009).

Vygotsky valoriza o contexto sócio-histórico-cultural de forma única e particular.

Nessa perspectiva, buscar compreender a criatividade no indivíduo ou nos seus produtos

torna-se uma opção sem sentido. A criatividade não está somente nessas instâncias, não

pertence apenas ao sujeito ou se expressa somente em seus produtos e obras. Os múltiplos

contextos de desenvolvimento do sujeito passam a ter caráter determinante, uma vez que

a criação passa a ser vista como resultado de interações complexas entre os elementos

internos e externos ao sujeito que cria.

O fenômeno criativo é ampliado e, segundo Vygotsky (1987), se liberta da

concepção vulgar que julga a criatividade como atributo de alguns poucos iluminados,

desconsiderando a capacidade criativa presente no homem comum. O foco da teoria

sócio-histórica não está na criatividade genial, embora Vygotsky reconheça grandes

nomes da história como altamente criativos. Os contextos históricos e sociais de

desenvolvimento do sujeito, aqui compreendido como múltiplos e variados, é que dará as

nuances do desenvolvimento e expressão da criatividade e, numa perspectiva maior, do

próprio desenvolvimento do sujeito humano.

A criatividade surge, então, do domínio histórico-cultural, como produto da

interação do sujeito com seu ambiente, impulsionado nesse percurso pelos processos de

desenvolvimento e aprendizagem. Uma vez determinada pela cultura, passa a ser

elemento formador dessa mesma cultura. Surge como uma via de mão-dupla em que se

“cria” e na qual se passa a “criar”. Segundo Vygotsky (1987, p. 9): “é precisamente a

atividade criadora do homem que faz dele um ser projetado para o futuro; um ser que

contribui com a criação e que modifica seu presente”.


120
A ORIGEM E O DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE

Ao falar sobre criatividade, Vygotsky (Smolucha, 1992a) não dissociou esse

fenômeno de outras funções psicológicas, especialmente a imaginação. Em seus

trabalhos, encontraremos os construtos criatividade e imaginação compondo um pequeno

sistema que ele denominou de “imaginação criativa”. Há, entretanto, discussões que

apontam para uma visão de criatividade mais diversificada, especialmente por parte dos

pesquisadores pós-Vygotsky que deram continuidade aos seus estudos (Neves-Pereira,

2018).

Para explicar a dinâmica de desenvolvimento do sistema de Imaginação Criativa,

Vygotsky (1999, 2009) lança mão de conceitos chaves de sua psicologia, como

imaginação, pensamento, linguagem, construção de conceitos e processos de

significação. O sistema da Imaginação Criativa tem início quando as funções pensamento

e imaginação se encontram, em suas linhas de desenvolvimento, de modo interdependente

e dialeticamente relacionadas. Para ele, a imaginação também atua como função

psicológica relacionada às emoções. Desta forma, a arte representa, para Vygotsky

(1999), uma atividade muito próxima da brincadeira do faz de conta infantil, que encerra

situações de absurdos, nonsense, inversões e substituições.

A arte opera como uma técnica social da emoção porque, por meio da imaginação,

toca na emoção individual e coletiva, traduzindo essas emoções em produtos com

significados culturais, que vão imergir em uma dada cultura e modificar seus sistemas de

significações. A imaginação é a expressão central da emoção, fazendo emergir

interpretações diferenciadas da realidade de forma dialética e estrutural. Desse modo,

tanto o artista quanto a sua audiência cria suas próprias interpretações, vivenciando uma

experiência estética única e dinâmica que se modifica ao longo do tempo. Sendo assim, a

arte, a imaginação e a criatividade representam funções humanas individuais e coletivas,


121
ao mesmo tempo, originárias da cultura e devolvidas à cultura, com propostas de

transformação humana e do mundo. Por isso, não existe uma oposição entre imaginação

e realidade, ambas se complementam e retroalimentam (Lindqvist, 2003; Vygotsky,

1999).

Vygotsky (Lindqvist, 2003; Smolucha, 1992a, 1992b; Vygotsky, 2009)

argumenta que a criatividade é privilégio dos homens, mesmo a despeito de alguns se

destacarem significativamente quando comparados a outros. Ele considera, também, que

a criatividade define a existência da arte, da ciência e da tecnologia. Criatividade, em

grande ou pequena escala, é oriunda do homem e sua cultura, é função psicológica

partilhada por todos, sem distinção, em todos os momentos desenvolvimentais

experienciados pelos sujeitos. A habilidade criativa surge da imaginação. Nessa função

reside a origem da criatividade. Segundo Vygotsky (citado em Lindqvist, 2003):

Se a atividade humana se limitasse à reprodução do passado, o homem poderia ser

uma criatura totalmente focada no passado, somente capaz de ajustar o futuro se

este fosse uma reprodução do passado. A atividade criativa é, assim, o que faz a

criatura humana focar-se no futuro e ser capaz de formar e transformar situações

correntes. (p. 249)

Vygotsky (Lindqvist, 2003; Smolucha, 1992a, 1992b) entendia a imaginação

como atividade mental totalmente compatível com a realidade. Os conteúdos que

constituem a imaginação são retirados da realidade e, posteriormente, transformados e/ou

recombinados pela função imaginativa, construindo novas realidades. Sendo assim, a

atividade criativa, originária da função da imaginação, é uma ação relacionada com a

122
interpretação da realidade feita pelos sujeitos e depende, diretamente, das experiências do

homem em contato com sua realidade cultural objetiva e subjetiva.

A imaginação está ligada à emoção. Ela retira fragmentos da realidade e, por meio

de novas significações desses fragmentos, devolve à cultura leituras renovadas desta

mesma realidade. Essa é a essência do processo criativo na concepção de Vygotsky. A

imaginação é, ao mesmo tempo, intelectual e emocional, e é o que gera a criatividade

(Lindqvist, 2003; Vygotsky, 2009).

Para Vygotsky (2009), a imaginação criativa caracteriza-se por quatro aspectos

principais, a saber: (1) a imaginação se desenvolve a partir da brincadeira de faz de conta

da criança; (2) a imaginação torna-se uma função psicológica superior quando se associa

aos processos de pensamento; (3) na adolescência, a imaginação criativa é caracterizada

pela colaboração entre imaginação e pensamento conceitual; e (4) a colaboração entre

imaginação e pensamento conceitual torna-se madura na produção artística e científica

do homem adulto (Smolucha, 1992a; Vygotsky, 2009). Considerando a imaginação como

função psicológica tipicamente humana, pois não se evidencia esse fenômeno no mundo

animal, Vygotsky procurou discutir seu processo de desenvolvimento até alcançar o status

de “imaginação criativa”, também concebida como função psicológica superior, porém

com uma estrutura mais complexa que a simples imaginação. É relevante, para

compreender este processo, examinar como a imaginação se desenvolve da infância até a

vida adulta na concepção de Vygotsky.

A criança apresenta comportamentos criativos e imaginativos desde tenra idade.

Em seus primeiros anos de vida, quando a brincadeira do faz de conta domina seu

universo lúdico, observamos a expressão criativa a partir das interações com outras

crianças, mediadas por brinquedos, por elementos simbólicos e pelo próprio ato de

brincar. Ao brincar com carrinhos e bonecas, a criança demonstra sua síntese criativa de
123
situações reais, porém transformadas de acordo com seus desejos e necessidades internas.

O brincar funciona como uma Zona de Desenvolvimento Proximal, segundo Vygotsky

(2009), pois em situações lúdicas, as crianças operam em níveis cognitivos superiores

quando comparadas em situações de não-brincadeira. Parece que o brinquedo assume esta

função: criar um espaço ou promover condições para uma compreensão antecipada de

alguns significados impossíveis de serem apreendidos pelas crianças através da lógica

formal inexistente no princípio de seus processos mentais (Vygotsky, 2009).

Dois construtos organizam o sistema da Imaginação Criativa. São eles:

imaginação reprodutiva e imaginação combinatória. A imaginação reprodutiva está

diretamente vinculada aos processos de memória e consiste na reprodução, por parte do

indivíduo, de situações passadas, objetos ou elementos apreendidos, dados de

experiências afetivas, entre outros fatores. Já a imaginação combinatória corresponde à

criação de novos elementos, não vivenciados pelo sujeito, por meio da união e/ou fusão

de ideias, experiências concretas ou subjetivas anteriores, dando origem a novas formas,

comportamentos, produtos. Assim sendo, é uma ação eminentemente de origem social,

pois corresponde aos anseios humanos de projeção no futuro, buscando soluções para

situações do presente ou atendendo a desejos pessoais. Dessa forma, todo ato criativo

nasce da imaginação que se origina no contexto histórico-cultural. A imaginação torna-

se, então a base estrutural que permitirá a expressão criativa do sujeito, caracterizando-se

por ser função psicológica superior, conectada com a realidade histórico-cultural do

indivíduo (Vygotsky, 2009).

Os processos que permitem à imaginação galgar novos patamares, constituindo-

se como função psicológica superior, relacionam-se com o encontro das linhas de

desenvolvimento da imaginação com a linha do pensamento, que parecem distintas em

suas trajetórias. Especificamente, segundo Vygotsky (Smolucha, 1992a, Vygotsky,

124
2009), a fala interna é que funcionará como mecanismo de elevação da imaginação ao

status de função superior no psiquismo humano. Do mesmo modo que regula as funções

mentais humanas, a fala interna vai regular a expressão da imaginação, colaborando nas

interações que ocorrerão entre imaginação e pensamento conceitual, lógico e formal. A

fala assume papel relevante neste processo, como destaca Vygotsky (Smolucha, 1992a):

Pesquisas demonstraram que cada passo dos processos de desenvolvimento da

imaginação infantil, assim como os processos de desenvolvimento das outras

funções mentais superiores, ocorre através de formas existentes e conectadas com

a fala da criança, como base psicológica de sua comunicação com o meio que a

circunda, isto é, com as formas básicas da atividade coletiva da consciência

infantil. (p. 52)

As relações estabelecidas por Vygotsky entre a fala, o brincar e a imaginação

pressupõem a origem sociogenética da imaginação criativa ou da criatividade. Assim,

torna-se difícil compreender os processos de imaginação desvinculados das ações das

crianças no mundo. No senso comum, a imaginação é relacionada a devaneios, fantasias,

fruto de um exercício mental lúdico, não necessariamente comprometido com a realidade.

Também no senso comum se credita à criança o livre exercício da imaginação,

considerando-se que esse é o momento ideal para se fantasiar sobre a vida. Encontramos,

como consenso, o fato de que é na infância que a imaginação ocorre com maior

intensidade na vida do sujeito humano. Ao crescer, esse mesmo sujeito terá que abrir mão

desse prazer, pois necessitará lidar com situações concretas e práticas, que lhe exigirão

estratégias de pensamento formal e lógico na resolução de problemas.

Vygotsky (Smolucha, 1992a, Vygotsky, 2009) vai propor uma reavaliação desse

conceito, afirmando que a imaginação está mais vinculada à realidade concreta do que se

125
pensa. Tal vínculo ocorre a partir de dois modos específicos: (1) a imaginação se constrói

a partir de elementos da realidade do sujeito e (2) a imaginação é um componente

essencial da atividade criativa, que tem como uma de suas funções tornar o indivíduo apto

a se adaptar ao contexto histórico em que vive. De fato, parece óbvio que qualquer

imagem ou produto da imaginação só poderá se constituir a partir do conhecimento de

elementos da realidade. É impossível imaginar alguma coisa partindo-se do nada. A

experiência do sujeito, que se dá no mundo concreto e no mundo subjetivo, representa a

matéria prima de construção dos produtos imaginativos. Com relação ao segundo ponto,

a imaginação parece, também, corresponder ao ponto de partida de qualquer ato criativo

e, portanto, ponto de partida para a construção de estratégias e/ou produtos que vêm

garantindo a permanência da espécie humana no planeta. Todo e qualquer produto novo

não passa de fruto vivo e tenro de um processo imaginativo. Se esses produtos também

têm origem na imaginação, são também obras coletivas, pois o sujeito que cria não

constrói sua obra sozinho, mas sim a partir das interações que vivencia em sua

coletividade, combinando elementos da realidade de modo original e inovador.

Sendo assim, na infância, os processos de imaginação serão bem mais precários,

imprecisos e desprovidos de riqueza do que na etapa adulta. A criança apresenta interesses

e curiosidades com relação ao mundo real de modo bem mais simplificado do que o

adulto. Sua relação com o mundo ainda não adquiriu a complexidade que caracteriza as

relações adultas, em decorrência do seu grau de conhecimento limitado acerca desta

mesma realidade. Suas questões existenciais são primárias, suas dúvidas básicas são

relativamente simples, até mesmo porque seu processo de desenvolvimento cognitivo está

em pleno andamento nessa etapa de sua vida, não permitindo ainda formulações

intrincadas sobre o mundo. Por essas razões, a imaginação infantil é pouco favorecida

126
quando comparada à do adulto, contrariando o senso comum que credita a esse momento

infantil uma riqueza não existente.

Assumindo a ação criativa como fruto de um contexto coletivo, Vygotsky (2009)

destaca o sujeito que cria como uma planta dotada de potencial, que poderá crescer se um

contexto social e um tempo histórico for favorável ao seu desenvolvimento. Esse sujeito

vai dar vida aos seus processos imaginativos, vai cristalizar sua imaginação por meio de

sua obra, mas esse fenômeno não é mérito exclusivo dele. Em cada etapa do seu processo

criativo encontraremos inúmeros coautores que atuam como participantes ativos da nova

produção, só que de modo silencioso e discreto. Mesmo na obra dos grandes gênios e

talentos da humanidade podemos identificar o mesmo processo. Einstein só conseguiu

construir a Teoria da Relatividade porque antes dele Newton construiu as regras

fundamentais da física mecânica e, antes de Newton, outros pensadores apresentaram

ideias semelhantes.

Retomando o processo de desenvolvimento da imaginação, observaremos

modificações significativas nessa função no momento em que a criança transita para a

adolescência. Ao chegar a essa etapa de seu desenvolvimento, o sujeito passa a construir

processos imaginativos mais ricos e complexos, com fantasias mais vinculadas à

realidade. O grande diferencial, nesse momento, corresponde ao encontro das linhas de

desenvolvimento da imaginação e do pensamento conceitual, que será acrescido aos

processos imaginativos, complexificando-os e tornando-os repletos de possibilidades. A

partir desse encontro, observa-se, na concepção de Vygotsky, dois momentos distintos

que definirão caminhos opostos com relação ao desenvolvimento do potencial criativo do

homem.

Na adolescência, portanto, a imaginação vai ser alçada ao posto de função

psicológica superior em decorrência de seu encontro e entrelaçamento com outras


127
funções, no caso a fala interna e o pensamento conceitual. Esse encontro de funções

caracterizará um sistema psicológico integrado que permitirá o surgimento da Imaginação

Criativa. A utilização do termo sistema psicológico relaciona-se com o caráter integrado,

complexo, interfuncional e inter-relacional que caracterizam as funções psicológicas

humanas. A criatividade do adolescente é mais intensa e se desvincula gradualmente dos

objetos concretos que davam suporte ao jogo infantil, dando lugar à imagens e

representações visuais que em conjunto com o pensamento abstrato e as emoções ganham

novas nuances e dão origem à fantasia. A fantasia no adolescente é voltada para a esfera

íntima de sua experiência, serve às suas necessidades, humores e sentimentos, tem um

caráter mais subjetivo. Por meio da fantasia, ele vive outras realidades, mas também

esclarece para si mesmo suas emoções e impulsos. As fantasias criativas do adolescente

transcendem ao jogo infantil, adquirindo a mesma função da obra de arte para o produto.

A criatividade se transforma em obra de arte para si mesmo (Vygotsky, 1991).

Enquanto Vygotsky (1990, 1991) descreve as diferenças no processo de

desenvolvimento da criatividade na infância e adolescência, ele sinaliza suas ideias sobre

a criatividade na adultez. Para ele, é na fase adulta que a criatividade vai operar mais

plenamente. O adulto possui padrões comunicativos mais complexos, sistema de

conceitos já formalizados, tem acesso a uma gama variada de conhecimento em domínios

de atuação humana e destreza no uso de artefatos culturais. Essa experiência incrementada

ao longo da infância e adolescência mobiliza associações mais ricas frente aos problemas

da vida, ensejando uma produção objetiva e subjetiva que não somente responde ao

presente, mas que extrapola para o futuro. Isso se deve à complexidade do pensamento

abstrato, da razão que se encontra com a imaginação, tornando ainda mais fértil as

possibilidades de interconexões inovadoras em função da diversidade dos elementos

disponíveis para o ato criativo (Moran & John-Steiner, 2003). Para Vygotsky (1991), o

128
adulto é capaz de superar seus próprios sentimentos e extrapolar suas experiências de

forma a expressar-se para além de si em suas produções artísticas, enquanto na infância

e na adolescência esse produto estaria mais conectado ao jogo e as fantasias.

Em resumo, a criatividade, na perspectiva de Vygotsky, só pode ser compreendida

a partir da dimensão histórico-cultural. Sua visão desses conceitos e a proposta de uma

relação dialética entre os mesmos descerram novas possibilidades de estudos e pesquisas

que ousam extrapolar de forma produtiva a conceituação tradicional vigente na psicologia

da criatividade, que permanece ainda centrada no sujeito criativo, seus processos e seus

produtos. Essa possibilidade de expansão teórica abre portas para uma abordagem

multidisciplinar, que utiliza recursos e conhecimentos de outras áreas como a

antropologia, a sociologia e a biologia, na investigação do fenômeno criativo.

Do mesmo modo que a criatividade não é um atributo de alguns sujeitos

abençoados, seu estudo não deve se restringir a uma visão reducionista nem a uma única

área do conhecimento. A abordagem histórico-cultural enriquece o entendimento do

fenômeno criativo quando o situa em sua dimensão de função mental superior, fruto da

interação homem & cultura, sem privilégios para ninguém, pois sendo universal é, por

“direito natural”, propriedade de todos. Desta forma, as associações e dissociações dos

elementos da realidade, as transformações e distorções possíveis demonstram a natureza

dinâmica dos processos internos, estimulados por nossa plasticidade neural, mas que

também são impressões da realidade externa, que vão mudar ativamente a qualidade da

imaginação e do ato criativo.

CRÍTICAS AO MODELO TEÓRICO

As críticas ao modelo teórico de Vygotsky são fortemente ensejadas por questões

de natureza política (Toassa, 2016). Parte dessa crítica parece ter sido forjada durante a

129
“Grande Quebra” stalinista (1929-1932), levando Vygotsky e seus colaboradores a

conviverem com uma persistente ameaça de investigação por comissões estatais. Como

assinala Toassa (2016), boa parte dessas acusações eram injustas e equivocadas e

sustentadas na premissa de que Vygotsky e seus colaboradores não conheciam o

marxismo e nem o método do materialismo dialético.

Vygotsky teve a sua psicologia cultural duramente criticada e seus escritos

proibidos durante aproximadamente 20 anos (1936 a 1956), em função de não se

qualificarem como uma psicologia marxista-leninista autêntica, livre de contaminações

ocidentais que eram vistas como ecletismo, contrarrevolução ou fascismo. Para os seus

críticos, conforme Toassa (2016), os textos de Vygotsky simplificavam os fenômenos

mentais, eram tendenciosos ao reducionismo fisiológico e descreviam de maneira

inadequada a consciência humana. Em síntese, essas acusações estavam firmadas em

interpretações equivocadas de seus textos e estavam relacionadas a: (a) uma suposta

posição acrítica de Vygotsky frente à psicologia burguesa ou ocidental; (b) uma defesa

de períodos ótimos para aprendizagem, de crises de desenvolvimento e da invariabilidade

do ambiente que levariam à compreensão inexata de determinismo do ambiente e da

hereditariedade no desenvolvimento humano; e (d) as práticas pedológicas desenvolvidas

por Vygotsky, que envolviam, entre outros fatores, a seleção de crianças com desempenho

abaixo ou acima da média para escolas especiais, que foram duramente combatidas por

ignorarem o ambiente histórico e a posição de classe das crianças e jovens (Toassa,

2016).

As condições sócio-histórico-culturais, nas quais o pensamento criativo e

inovador de Vygotsky emergiu, tiveram profundo impacto na maneira como o

pesquisador construiu sua trajetória, como processou as críticas recebidas e encaminhou

sua autocrítica. Esse pano de fundo contribuiu para o encolhimento da psicologia

130
histórico-cultural de Vygotsky à época, não propiciando o continuum de suas ideias nas

ciências e na psicologia em particular, como argumenta Toassa (2016). No entanto, apesar

desses percalços, Vygotsky é reconhecido por sua grande contribuição à psicologia

contemporânea, como um pensador que esteve muito à frente de seu tempo e que

revolucionou a maneira como a psicologia lida com temas fundamentais sobre o

desenvolvimento humano. Como assinalam alguns autores (Prestes, 2014; Toassa, 2016),

há uma retomada dos escritos de Vygotsky e de seus colaboradores nos últimos anos,

como uma forma de fomentar o continuum interrompido de sua obra e propor uma

psicologia histórico-cultural comprometida com a emancipação do ser humano.

PERSPECTIVAS FUTURAS DA TEORIA E A EDUCAÇÃO PARA A

CRIATIVIDADE

A maneira como Vygotsky concebe a psicologia e postula as bases do

desenvolvimento humano, especialmente das funções psicológicas superiores, têm

profundo impacto na maneira como devemos estudar esses fenômenos (Smolucha,

1992a). Com isso, e em virtude, de seu tempo de vida tão curto, há muitas pistas deixadas

para o avanço de pressupostos que nos sevem como desafios para pensar o

desenvolvimento da criatividade em seus aspectos teóricos, metodológicos e práticos.

Com relação aos aspectos teóricos, parece que o nexo que torna possível descrever

o fluxo criativo ao longo do curso de vida são as emoções, que ora se deslocam em um

continuum do jogo infantil à fantasia do adolescente, em forma de arte de si, até chegar à

obra de arte que é uma extrapolação do sujeito e da cultura. Esse processo que,

qualitativamente se constitui de forma tão peculiar ao longo do tempo, é a força motriz

que possibilita o surgimento do novo, do inusitado, do futuro. Nesse sentido, a emoção

transmutada em arte, é a mais importante concentração de todos os processos biológicos

131
e sociais do indivíduo na sociedade, que é um meio de equilibrar o homem com o mundo

nos momentos mais críticos e responsáveis da vida. “Sem a nova arte, não haverá o novo

homem! ” (Vygotsky, 1999, pp. 328-329).

Nesse sentido, seria possível pensar em perejivanie como um ato criativo de si,

como experiência permeada por flow ou suplício, que se constitui no limiar do ser e vir a

ser como ato criativo de si, dos símbolos e dos objetos que vão constituir a própria

cultura? Como esse processo criativo modificaria a zona de desenvolvimento proximal?

Seria possível expandir esse conceito para as experiências vicárias ou para os

transbordamentos e extrapolações que a emergência do novo produz?

Do ponto de vista prático, queremos enfatizar a importância da escola para o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para Vygostky, a escola é um

espaço de mediação relevante para o desenvolvimento humano. É o contexto social no

qual os processos de desenvolvimento dão lugar a “maestria artificial”, é onde o potencial

e a capacidade encontram maneiras de se constituírem de maneira mais integrada na

relação com o outro, com os símbolos e artefatos culturais. Os processos que acontecem

na escola devem ser orientados para o futuro e organizados de forma a ampliar as

experiências das crianças por meio de mediações intencionais, que fujam da reprodução

da realidade e que tornem a imaginação criativa mais produtiva.

Nesse tempo tão hiperconectado de fluxos dinâmicos que desterritorializam os

saberes e os seres no mundo, o desenvolvimento da criatividade é apontado como um

fator importante para a solução dos riscos iminentes de viver na contemporaneidade.

Desta forma, olhar o mundo por meio da lente da psicologia histórico-cultural ajuda-nos

a vislumbrar novas maneira de pensar a vida em transformação, as potencialidades que

emergem da experiência cotidiana de ser e estar e apreender o mundo, como uma obra de

arte de si e como ato criativo que flui embebido do e para o social.


132
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136
PSICOLOGIA CULTURAL DA CRIATIVIDADE

Vlad Petre Glăveanu

Mônica Souza Neves-Pereira

A psicologia cultural da criatividade talvez seja a mais recente novidade no campo

dos estudos da criatividade. Como proposta teórica, ela surge dos esforços de

pesquisadores que vem olhando para o fenômeno criativo de posições, até então, pouco

experimentadas. Tal ousadia se reflete no árduo exercício que tem sido feito nos últimos

oito anos, no sentido de construir modelos teóricos e caminhos metodológicos que

consolidem essa nova referência teórica e resultem em ganhos originais e significativos

para o campo. Dentre os pesquisadores que vêm se dedicando a esse tema, destacamos

Vlad Petre Glăveanu, Alex Gillespie e Jaan Valsiner. Todos são professores em diferentes

universidades europeias e já começam a colher os primeiros frutos dessa empreitada que,

certamente, terá longa duração na história da psicologia da criatividade. Apesar de ainda

viver sua infância, a psicologia cultural da criatividade já conta com handbooks e

periódicos dedicados a publicações na área, tanto na Europa como nos Estados Unidos.

Suas ideias começam, agora, a espalhar-se por outros continentes (Glăveanu, Branco, &

Neves-Pereira, 2016; Neves-Pereira, 2018; Neves-Pereira e Branco, 2015).

Considerando-se o frescor desse campo do conhecimento, talvez seja incorreto

falarmos de uma única psicologia cultural da criatividade. Ao invés disso, o que estamos

buscando desenvolver cada vez mais são abordagens psicológicas culturais sobre a

criatividade, cada uma delas baseadas em teorias socioculturais (como por exemplo, o

pragmatismo, a dialogicidade, as representações sociais, a psicologia cultural e histórica,

a teoria da atividade ou a psicologia ecológica), usando seus conceitos centrais para

redefinir o vocabulário da criatividade e suas principais questões teóricas, como: posições


137
e perspectivas, dialogicidade, wonder e affordances1 A abordagem, aqui apresentada,

engloba uma série de princípios (Glăveanu, 2010a, Glăveanu et al., 2019), a saber:

1) A criatividade é um processo fundamentalmente social e colaborativo. Ao

invés de uma visão usual de criatividade como fenômeno que ocorre na mente

ou no cérebro, as abordagens socioculturais posicionam a criatividade como

originada nas interações entre as pessoas em distintas relações e em contextos

variados. Nesse sentido, criar significa sempre engajar-se em uma cocriação.

2) A criatividade também é um processo material. Criatividade não acontece

apenas a partir de ações colaborativas entre pessoas. As pessoas que criam

também dependem de objetos, lugares e instituições que conferem ao ato

criativo sua materialidade. A abordagem sociocultural se interessa menos

pelo estudo das ideias criativas em si. O seu enfoque recai sobre as maneiras

como as ideias surgem e contribuem, por sua vez, para as práticas

sociomateriais.

3) A criatividade também é um processo simbólico. Ela utiliza signos e símbolos

para significar e, mais importante, ressignificar a realidade, abrindo novas

perspectivas para indivíduos, grupos ou comunidades mais amplas. Em outras

palavras, há sempre um elemento de produção de sentido em uma expressão

criativa.

4) As ações criativas são, sempre, marcadamente situacionais e/ou contextuais.

O que se depreende dos três primeiros princípios é que o processo criativo é

1
O conceito de Wonder pode ser compreendido como uma vivência particular de encantamento em que a
pessoa se percebe, subitamente (ou não) diante de um campo expandido de possibilidades passíveis de
engajamento ou ação por parte da pessoa. Wonder vincula o sujeito à ação criativa a partir das
possibilidades que surgem e são percebida. Funciona como um gatilho que emerge favorecendo o ato
criativo. Affordance diz respeito às relações entre cultura, significados e apropriação destes significados
pelos sujeitos. Surge das interações entre sujeitos, objetos culturais, crenças e valores sociais, na linha do
tempo cronológico, e que definem ou impedem caminhos para a criatividade. Criar, em certa medida, é
romper affordances.

138
melhor compreendido como uma forma ou qualidade da ação, e que essa ação

está sempre impregnada por um contexto específico. Por isso, os

pesquisadores socioculturais consideram a criatividade mais vinculada ao

domínio específico do que a um domínio geral.

5) A criatividade é processo em desenvolvimento. Essa premissa pode ser

compreendida de duas maneiras. Em primeiro lugar, a criatividade

desenvolve-se no decorrer do tempo (a) histórico, como por exemplo, na

evolução das ideias em uma sociedade; (b) ontológico, com o florescer da

criatividade ao longo da vida do sujeito; e (c) microgenético, com as

transformações das práticas criativas por meio das interações em curso. Em

segundo lugar, a criatividade é um fator de importância central no

desenvolvimento humano, uma vez que constantemente adiciona novos

elementos ao nosso repertório de conhecimentos e ações.

6) A criatividade é parte de nossas vidas cotidianas. Se por um lado, uma boa

parte das pesquisas explora a criatividade dos gênios e as criações

revolucionárias, por outro, os pesquisadores socioculturais enfocam os atos

cotidianos da criatividade. A psicologia cultural da criatividade considera que

existe um continuum, e não uma ruptura, entre a criatividade eminente e a

criatividade cotidiana. O que une esses dois pólos é precisamente o fato de

que ambos estão, de diferentes maneiras, impregnados de cultura e da vida

cotidiana. O gênio e o sujeito criativo no dia a dia habitam cenários

socioculturais e por eles são coconstituídos mutuamente. Como cada um vai

significar sua experiência existencial e como vai agir no mundo representam

os fatores promotores das diferenças com relação à criatividade.

139
7) A criatividade contribui para com a sociedade e sua transformação. Por

último, a ação criativa não pode estar desconectada do seu impacto no mundo.

A criatividade é necessária para resolver problemas pessoais, grupais e

sociais, e esse tipo de impacto precisa ser entendido e aproveitado pelos

pesquisadores e agentes criativos.

Tendo em vista esses princípios orientadores, examinaremos neste capítulo a

abordagem (ou as abordagens) da psicologia cultural da criatividade em termos de:

contexto histórico, definição de criatividade, desenvolvimento da ação criativa,

modelagem teórica, aplicações na psicologia e em outras áreas como a educação,

limitações, e perspectivas para o futuro. Ao discutirmos o momento atual desse modelo,

esperamos não apenas apresentá-lo a um público mais amplo, mas também destacar o que

ele tem a oferecer em termos teóricos, metodológicos e práticos. Somos ambos

colaboradores ativos nessa área de pesquisa e, para além do nosso compromisso com os

sete princípios já delineados, queremos dar aos leitores uma oportunidade de refletir a

respeito dessa abordagem a partir de outras visões, que às vezes competem com ela, e, às

vezes, corroboram-na. O presente livro, do qual faz parte este capítulo, tem a grande

vantagem de colocar diferentes perspectivas teóricas lado a lado, e, em última análise,

tentar promover a comunicação de umas com as outras – um objetivo salutar, porém raro

na literatura.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO MODELO

Parafraseando Ebbinghaus (1908), podemos dizer que a psicologia cultural da

criatividade tem um passado longo e uma história curta. Ela tem um longo passado

quando consideramos o fato de que os seres humanos sempre tiveram um fascínio pelos

atos criativos, uma enorme curiosidade sobre suas origens, os motivos que tornam

140
algumas pessoas mais criativas do que outras, de onde vem a inspiração, entre outras

coisas. Na Antiguidade, as primeiras respostas para as origens da criatividade apontaram

para elementos externos ao indivíduo, em particular, a intervenção de deuses e musas

(Weiner, 2000). A visão da criatividade gerada pela inspiração divina predominou

durante a Idade Média. Ela foi questionada no Renascimento, quando o homem

(infelizmente, não a mulher) reivindicou para si o poder criativo de Deus. Essa

individualização da criatividade continuou nos períodos do Iluminismo e do Romantismo

e definiu o que chamamos hoje de “modernidade”. As abordagens socioculturais

ressurgiram na pós-modernidade, quando perspectivas contextuais ou relacionais

passaram a desafiar discursos individualistas, oportunizando o início de novas formas de

se pensar o homem. A breve história da psicologia cultural da criatividade, que possui

diferentes raízes em três diferentes períodos dos séculos XX e XXI, tem origem nesse

momento histórico.

A primeira geração de pensadores socioculturais que considerou o fenômeno da

criatividade viveu e produziu durante a primeira metade do século XX, mesmo não se

percebendo ou se autodefinindo como investigadores da área. Essa primeira onda inclui

nomes eminentes como Sigmund Freud, John Dewey, George Herbert Mead, Lev

Vygotsky e Mikhail Bakhtin. Na visão de Freud (1908/1970), há uma continuidade entre

as ações criativas das crianças e as dos adultos. Em ambos os casos, a criatividade surge

da brincadeira e da fantasia, processos que são viabilizados pelas interações sociais e

pelos recursos da cultura. John Dewey (1934) enfocou as condições materiais da

criatividade e, em particular, os movimentos circulares do fazer e do vivenciar a

experiência que são próprios da expressão artística. Outro grande autor pragmatista, Mead

(1934), concebeu a criatividade como um ato social ao apontar para o fato de que, ao

criarmos, utilizamos a experiência social adquirida a partir dos diferentes papéis que

141
ocupamos na sociedade. Lev Vygotsky (1930/2004) é frequentemente apontado como o

fundador das abordagens socioculturais para a criatividade. Sua abordagem sobre a

criatividade e a imaginação consideram-nas como fenômenos culturalmente mediados,

que surgem das interações com os outros, por meio de signos e ferramentas disponíveis

nos diferentes contextos que um indivíduo habita. Por fim, Mikhail Bakhtin (1929/1984),

embora pouco citado na literatura da área, legou uma importante contribuição ao

introduzir as noções de heteroglossia e polifonia para captar a diversidade de vozes que

participam da ação criativa. Com a exceção de Vygotsky e, em alguma medida, Dewey,

todos esses autores são raramente mencionados na literatura sobre criatividade.

A segunda onda, aqui definida como a geração das teorias sociais, está

frequentemente associada ao trabalho realizado nas décadas de 1970, 1980 e 1990 pelos

primeiros estudiosos da criatividade que desafiaram os modelos individualistas de

criatividade resultantes da revolução cognitiva, como: Teresa Amabile, Dean Keith

Simonton, Mihaly Csikszentmihalyi, Howard Gardner, Howard Gruber e Vera John-

Steiner. Amabile (1983) desenvolveu uma psicologia social da criatividade na qual o

ambiente tem um impacto sobre a motivação de criar. Simonton (1975) realizou

cuidadosos estudos historiométricos examinando o impacto do contexto histórico na

produção criativa. Csikszentmihalyi (1988) é amplamente conhecido pelo seu modelo

sistêmico de criatividade que contempla o indivíduo (a pessoa criativa), o campo (a

sociedade) e o domínio (a cultura). Gardner (1994) considerou a criatividade como

fenômeno plural, tanto quanto a inteligência, e investigou o contexto de vida de diversos

criadores eminentes. Gruber (1998) trouxe uma perspectiva de desenvolvimento aos

modelos sistêmicos, ao considerar a evolução do trabalho criativo ao longo do tempo. Por

fim, John-Steiner (1992) investigou as colaborações criativas em ambientes naturalistas,

indo além dos habituais estudos de laboratório com díades e grupos.

142
Ainda que cada um desses autores tenha expandido a nossa compreensão acerca

da criatividade, pode-se questionar se eles devem ser realmente vistos como pensadores

“culturais” ou “socioculturais”, no sentido de compartilharem os princípios delineados no

início deste capítulo. Enquanto John-Steiner adotou uma perspectiva claramente

sociocultural e vygotskiana, os outros autores contradisseram algumas das suas premissas

básicas ao promoverem estudos exclusivamente quantitativos a respeito do trabalho

criativo (Simonton), ou descrevendo o contexto social como algo externo à pessoa

(Amabile), ou focando suas pesquisas nos criadores eminentes, também chamados “Big

Cs” (Csikszentmihalyi, Gruber, Gardner). Enquanto a primeira onda caracterizou-se por

sua heterogeneidade, com seus colaboradores pertencendo a diferentes escolas teóricas

(psicanálise, pragmatismo, teoria histórica cultural, e dialogismo), a segunda onda assume

um caráter mais social do que cultural. A perspectiva de uma dimensão social como algo

externo à pessoa é facilmente verificada nos modelos acima citados. A instância social,

nessas abordagens, ora ocupa o centro da experiência do sujeito e/ou hora situa-se na

retaguarda deste mesmo sujeito, como em uma relação figura-fundo. O social influencia,

afeta, mas situa-se à parte do sujeito. Nesse desenho, não há uma dinâmica de constituição

mútua sujeito e cultura defendida nos modelos sociogenéticos.

A psicologia cultural da criatividade representa a terceira onda neste movimento

de emergência de conhecimentos acerca da criatividade e teve início a partir de trabalhos

realizados nas duas últimas décadas. A primeira menção a uma psicologia cultural da

criatividade foi feita por Glăveanu no artigo “Principles for a cultural psychology of

creativity” (2010a) e, no mesmo ano, em “Paradigms in the study of creativity:

Introducing the perspective of cultural psychology” (2010b). Esses dois textos

ofereceram um quadro tetrádico para o estudo da criatividade, que transcendeu o habitual

foco nas pessoas e produtos isoladamente: surge o conceito de self, o outro e os artefatos

143
como elementos impregnados de cultura. Essa abordagem se desenvolveu com base no

trabalho realizado um século antes por Vygotsky e Dewey, e, mais recentemente, no

trabalho realizado por Keith Sawyer (1995) e Alfonso Montuori (2003) que enfatizaram

a importância da improvisação para a criatividade. Outra publicação é o livro Rethinking

creativity: Perspectives from cultural psychology, editado em 2015 por Glăveanu,

Gillespie e Valsiner. Esse livro reuniu diversas contribuições conceituais e teóricas

relativas a tópicos anteriormente ignorados pelos estudiosos da criatividade, como os

conceitos de (a) diferenças: (b) affordances; (c) estilos; (d) criatividade de vida, entre

outros. Mais recentemente, o Palgrave Handbook of Creativity and Culture Research

(Glăveanu, 2016) buscou criar um diálogo entre distintas maneiras de entender e estudar

a cultura na psicologia da criatividade, destacando temas como: abordagem cultural,

transcultural, criatividade na população indígena, estudos multidisciplinares, e assim por

diante. O que as teorias socioculturais da terceira onda têm em comum é: (a) um

reconhecimento da criatividade como um fenômeno distribuído e ao mesmo tempo

psicológico, social, material, temporal e cultural; (b) a ênfase na interdependência entre a

cultura e a criatividade; e (c) uma agenda explícita de desenvolvimento, que retrata a

criatividade como um recurso central para a transformação e o crescimento pessoal e

coletivo.

DEFINIÇÃO DE CRIATIVIDADE

Essa radical mudança na abordagem da criatividade envolve necessariamente uma

reavaliação da própria definição de criatividade. Antes de discutirmos sobre como a

psicologia cultural define a criatividade, é importante apontar para a importância especial

atribuída dentro da psicologia cultural à questão das definições. Dentro de uma matriz

sociocultural, as concepções e práticas se reforçam e se retroalimentam. Em outras

144
palavras, definir um fenômeno, de certa maneira, significa ter um impacto direto sobre a

possibilidade de atuar sobre ou com esse fenômeno. Ao mesmo tempo, a acumulação de

certas práticas termina desafiando ou transformando a nossa concepção de diferentes

fenômenos. Em ambos os casos, a concepção e a definição, bem como a ação ou prática,

não são estáticas. Elas são não apenas dinâmicas, mas também evoluem conjuntamente.

Quando tratamos da criatividade, uma definição científica tanto surge a partir de

certos tipos de práticas, como também as reforça. A definição “padrão” de criatividade

na psicologia concentra sua atenção nos produtos criativos e suas qualidades. Isso é bem

relevante para a perspectiva sociocultural, uma vez que, desde o início, essa definição

habitual reduz processos dinâmicos aos seus resultados estáticos. Em segundo lugar, a

definição “padrão” considera que os produtos criativos são novos e originais, além de

valiosos ou apropriados para a tarefa a ser executada (Runco & Jaeger, 2012). Mas o que

significa associar a criatividade à inovação e à originalidade? Por um lado, significa

celebrar todas as práticas humanas que tipicamente conduzem a novos resultados, a

exemplo das artes, e, em especial, as criações radicais ou revolucionárias. Por outro,

significa considerar menos, ou considerar como não criativo, tudo o que for mais

convencional, ou que não for suficientemente “novo”, categoria que inclui a maior parte

de nossa existência. Somos seres que se apropriam da cultura e das tradições,

transformando-as pouco a pouco. O que significa associar criatividade à utilidade ou ao

valor? Por um lado, significa reconhecer a criatividade envolvida nas ciências, nas

invenções e na resolução de problemas. Por outro, significa excluir uma série de

manifestações cotidianas, tais como as brincadeiras das crianças, da esfera da criatividade

tomada no sentido estrito (Csikszentmihalyi in Sawyer et al., 2003; Neves-Pereira, 2018).

O fato de que as definições visam incluir algumas instâncias e a excluir outras não é a

questão em si. O que mais importa, para a perspectiva sociocultural, é que: o que estamos

145
excluindo, (as expressões cotidianas da criatividade) é, na verdade, algo essencial para o

fenômeno que queremos investigar.

Há muitas coisas sobre as quais a definição padrão de criatividade não se

pronuncia. Entre elas, como percebeu Stein (1953) desde o início, está o fato de que o

significado da criatividade é construído com referência a determinados grupos e

momentos marcados por um determinado tempo. De fato, algo considerado criativo hoje

pode não ser visto como tal no futuro, ou pode não ter sido considerado criativo nas

décadas anteriores. Da mesma forma, algo criativo na Europa pode não ser rotulado como

tal no Brasil, ou vice-versa. Quando reduzimos a definição de criatividade a qualidades

supostamente quantificáveis, como raridade ou utilidade (veja, por exemplo, Neves-

Pereira, no prelo), estamos agindo sob a ilusão de que tais qualidades são interpretadas

da mesma maneira em escala universal. Esse é o primeiro questionamento que a

psicologia cultural faz à definição padrão: o sentido da criatividade, tanto na ciência como

para o senso comum, é social e culturalmente construído, e, por isso, depende do seu

contexto2. Generalizações conceituais se mostram mais perigosas do que abrangentes,

criando ciladas interpretativas e de compreensão de um fenômeno tão complexo e plural

como a criatividade.

O segundo questionamento é mais profundo e está ligado às qualidades efetivas

que associamos às pessoas ou produtos criativos. A inovação, a originalidade e a

utilidade, entre outros atributos, só podem se referir a pessoas ou coisas, mas não a

processos. A psicologia cultural da criatividade baseia-se em processos, o que nos leva a

pensar sobre: o que significaria considerar a criatividade como a qualidade dinâmica da

2
Para a psicologia cultural, o conceito de contexto tem suas peculiaridades. Contexto diz respeito a um
lócus de desenvolvimento do qual o sujeito participa em uma experiência única. Cada contexto é fonte de
desenvolvimento, porém marcado por especificidades materiais, simbólicas, socioculturais e pelo tempo
irreversível. Um contexto surge diante dos processos de significação de um sujeito diante da experiência e
configuram experiência única para este sujeito, mesmo quando compartilhado com outros (Valsiner,
2014).

146
nossa relação com o mundo? Como algo que surge a partir do “encontro” entre um sujeito

(self), os outros e a cultura? Esse tipo de entendimento pede um novo tipo de definição,

que, de forma preliminar, apresentamos da seguinte maneira: “criar significa agir no e

sobre o mundo de maneiras a gerar novidades significativas que possam transformar a

pessoa que as cria e o seu contexto de formas que são apreciadas como criativas pelos

envolvidos”.

A psicologia cultural da criatividade, apesar de ainda trabalhar com noções

previamente estabelecidas de criatividade (isto é, produção de inovações significativas)

desloca (1) o foco dos produtos para os processos (ação), (2) do indivíduo para as relações

(o indivíduo e o mundo) e (3) de avaliações universais para avaliações contextuais da

criatividade. A apreciação de que algo é “criativo” continua sendo relevante, mesmo que

todos os envolvidos não compartilhem desta concepção, ou mesmo se essa avaliação se

modificar ao longo do tempo.

MODELO TEÓRICO

A definição de criatividade, assim como seus modelos teóricos, é distinta no

escopo da psicologia cultural da criatividade, especialmente quando consideramos que a

maioria das abordagens é explicitamente individualista e predominantemente

psicogenéticas. Criados, principalmente a partir da década de 1950, a maioria dos

modelos teóricos praticados na atualidade pressupõe que a criatividade está

profundamente ligada a processos de pensamento: pensamento divergente (Guilford,

1950); pensamento lateral (DeBono, 1970) e pensamento combinatório (Ward, 2001).

Nesse sentido, uma das abordagens teóricas mais populares – a abordagem da cognição

criativa (Finke, Ward, & Smith, 1992) – concebe o processo criativo como uma

alternância entre a geração e a exploração de ideias. Sua ênfase é colocada na descoberta

147
dos processos cognitivos relevantes que contribuem para cada uma dessas fases.

Premissas semelhantes são compartilhadas por outros modelos bem conhecidos, como o

modelo de variação cega e retenção seletiva (veja Simonton, 2011). Em ambos os casos,

a criatividade acontece em primeiro lugar na mente ou na cabeça, e apenas em um

momento seguinte, ela se torna material e social, em outras palavras, ela é expressa e

transformada em objetos ou ações, por sua vez abertos ao julgamento dos outros.

O modelo teórico proposto pela psicologia cultural difere radicalmente das

perspectivas mentalistas ou psicogenéticas. Para psicólogos socioculturais, a criatividade

começa não no pensamento e sim na ação (veja também a teoria do desenvolvimento de

Piaget, 1950), partindo não de mentes isoladas e sim das relações e interações (veja a

teoria do desenvolvimento de Vygotsky, 1978). Basicamente, para os psicólogos

culturais, a criatividade é acima de tudo uma forma de fazer ou realizar, e uma forma de

se relacionar com o mundo. Isso não nega a importância do pensamento, das ideias

criativas e do papel dos agentes (vistos como mentes individuais); apenas insere esses

elementos em um contexto mais amplo de ações e interações, dentro de uma rede cultural

de atores e relações. Ao questionar a dualidade cartesiana entre mente e corpo, ou

indivíduo e ambiente, a psicologia cultural é capaz de conceber a mente humana

realizando o ato de criar como uma extensão dentro do mundo. A criatividade se torna,

assim, um fenômeno distribuído (Glăveanu, 2014), acontecendo entre pessoas, objetos e

lugares no decorrer do tempo. Essa concepção não é anti-individual, e sim anti-

individualismo; ela se contrapõe aos modelos essencialistas da criatividade (que buscam

a “essência” da criatividade no cérebro ou na mente, na personalidade, cognição ou

motivação do indivíduo). Ela não se opõe aos produtos, mas defende um entendimento

dinâmico desses produtos como objetos em contínua criação e interligados com os seus

processos criativos, como por exemplo: a constante reinterpretação que atribui uma

148
qualidade emergente à criatividade e que só é possível a partir da existência dos produtos

criativos, sejam materiais ou não.

Essas observações perturbam o engenhoso arranjo proposto por Rhodes (1961) na

forma dos quatro P’s da criatividade: pessoa, processo, produto e ambiente (no termo

original em inglês, press). Em primeiro lugar, esses elementos estão inter-relacionados e

constituem-se mutuamente. Em segundo lugar, o ambiente representa muito mais que um

fator externo de ‘pressão’ para a criatividade, pois ele a provê de recursos e integra os

seus resultados de maneira contínua e cíclica. Em terceiro lugar, os quatro P’s não podem

ser estudados isoladamente, apesar de nas décadas subsequentes e até mesmo nos dias

atuais, existirem pesquisadores que afirmam estudar exclusivamente a pessoa criativa, o

processo criativo, e assim por diante. E qual é a alternativa sociocultural? Com o objetivo

de reescrever o vocabulário individualista e desarticulado que comumente se usa para a

discussão sobre a criatividade, Glăveanu (2013) propôs o modelo dos cinco A’s, incluindo

(1) os atores; (2) a audiência; (3) as ações criativas; (4) os artefatos e (5) as affordances.

Esse modelo tem alguns objetivos em mente, a saber:

1. Ele reconhece a natureza social e cultural da criatividade, considerando os

criadores não apenas como pessoas, mas também como atores ou agentes

necessariamente inseridos em um campo social. Assim, pode-se ir além da

referência neutra atribuída aos produtos e considerar os resultados criativos

como artefatos – como parte da cultura (mesmo quando se trata da

microcultura de uma família, uma sala de aula, um local de trabalho, etc.).

Por meio do conceito de audiência, essa perspectiva enfatiza que as ações

criativas são realizadas com, para e com vistas a outras pessoas.

2. Ele traz, para o primeiro plano, a natureza material da criatividade. O

conceito de produto (press) destacado por Rhodes e os autores que seguiram

149
a sua tipologia, principalmente em termos sociais, não reconhecem o fato de

que a ação criativa gera transformações concretas do mundo. Essa dinâmica

material faz uso das affordances disponíveis no ambiente – o que Gibson

(1986) apontou como as propriedades dos objetos físicos que facilitam

algumas ações ou usos, ao invés de outros. A ação criativa não apenas utiliza

as affordances que antes não eram percebidas ou aproveitadas, mas também

gera ferramentas materiais com novas propriedades materiais e novas

affordances.

3. Ele aponta para a ligação intrínseca entre os cinco elementos. É impossível

usar esse modelo em relação aos atores criativos sem se perguntar acerca de

suas relações com múltiplos públicos; ou estudar a ação criativa isoladamente

das affordances que a viabilizaram; ou conceber os artefatos criativos de

forma separada da cultura e das relações sociais.

4. Ele considera essa dinâmica de conexão. Por fim, mas não menos importante,

a abordagem dos cinco A’s deve ser entendida à medida que evolui no tempo.

Os atores também são parte da audiência da criatividade dos outros, e a

audiência contém o ator criativo por direito próprio. As ações que ligam os

atores, a audiência e os artefatos resultantes ocorrem todas no fluxo de um

tempo irreversível (Valsiner, 2007). As affordances que impedem alguma

forma de ação em um momento terminam sendo superadas, dando lugar a

novas limitações materiais, que pedem novos tipos de ação criativa.

O que é importante perceber, a partir dessa descrição, é que o modelo teórico, ou

os modelos teóricos com os quais a psicologia cultural da criatividade trabalha mantêm o

diálogo com as formas convencionais de pensar esse fenômeno, mas ousam ir além. O

150
modelo dos cinco A’s transforma os quatro P’s, mas também abre novos espaços para a

teoria e a pesquisa, que antes não eram percebidos. Por exemplo, o modelo é formado não

apenas por elementos, e sim, primariamente, por relações. É a natureza da ação e das

interações estabelecidas entre os diferentes A’s que importa mais para um psicólogo

cultural. Com esse novo foco, surge uma questão teórica ligada às diferenças incorporadas

a esse modelo. Existem, de fato, múltiplos tipos de diferenças entre os cinco A’s, tais

como as diferenças entre a individualidade (self) e os outros (atores e audiência), ou entre

artefatos novos e antigos, ou existentes. Essas diferenças são um campo fértil para a

criatividade, uma vez que nenhuma ação criativa seria possível, por exemplo, se não

houvesse diferenças entre o conhecimento, a experiência e as expectativas dos atores e

públicos. Em casos hipotéticos como esses, nada de novo poderia surgir, uma vez que

tudo já seria conhecido (e compartilhado) antecipadamente (para mais detalhes veja

Glăveanu & Gillespie, 2015).

Como a diferença é utilizada de forma produtiva na criatividade? Em primeiro

lugar, é preciso perceber que a existência de diferenças é uma condição necessária, mas

não suficiente para que a criatividade ocorra. Por exemplo, a análise de um sujeito (e seu

self) em relação com o outro (com suas diferenças), com suas habilidades e visões de

mundo bastante diferentes não garantirá que eles alcancem uma realização criativa. Isso

se deve ao fato de que as diferenças precisam ser respeitadas, mas também transpostas

em meio à ação criativa. No caso das duas pessoas bastante diferentes, elas precisam estar

em condições de colaborar uma com a outra, o que significa que precisam entender,

respeitar e pôr em prática seus diferentes acervos experienciais. Para que isso aconteça,

cada uma delas deve ter condições de enxergar pela perspectiva da outra (a demanda pela

alteridade), buscando entender o mundo ou a situação concreta a partir dessa visão

diferente. O fato de que todos ocupamos diferentes posições sociais, físicas, psicológicas

151
no mundo, cada uma delas associada a algumas perspectivas ou possibilidades de ação, é

crucial para a criatividade. Entretanto, isto é apenas uma premissa. O que torna esta

premissa em um fato real é a capacidade do sujeito de se comunicar, intercambiar

posições e adotar outras perspectivas de maneira significativa e construtiva.

Por tantas razões já expostas, a psicologia cultural da criatividade justifica seu

foco na tomada de perspectiva como processo criativo essencial, ao mesmo tempo social,

psicológico e cultural. O modelo perspectivista da criatividade (Glăveanu, 2015) parte de

dois pensadores de destaque da “primeira onda” da teoria sociocultural, já citados: George

Herbert Mead e Mikhail Bakhtin. Mead adota uma visão do mundo como algo

intrinsecamente perspectivista. De fato, sempre há outras perspectivas disponíveis quanto

à realidade e é isso que torna as vidas humanas complexas, por vezes difíceis, mas sempre

abertas à inovação e à criatividade. Bakhtin entende que as outras perspectivas são,

sempre, as perspectivas de outrem. Mais do que isso, para assimilá-las, precisamos estar

em constante diálogo com as visões e os posicionamentos dos outros. Essa é uma forma

social fundamental de pensar a criatividade e o processo criativo, que vai além das noções

puramente cognitivas de combinação, associação, divergência e avaliação, entre outras, a

caminho de um diálogo entre diferentes. A psicologia cultural da criatividade propõe um

novo vocabulário social e cultural para o processo criativo, nos termos de:

reposicionamento, assimilação de novas perspectivas e reflexividade. Essas noções

implicam assimilar a posição e a perspectiva dos outros em meio à ação criativa,

intercambiando ou movimentando-se entre diferentes perspectivas, e estando em

condições de refletir a respeito dessas mudanças (isto é, de ver a própria posição a partir

das posições de outras pessoas, e de entender a própria perspectiva assim como o faria

outra pessoa).

152
Como os modelos socioculturais descrevem a origem e o desenvolvimento da

criatividade? Em primeiro lugar, todos eles identificam a origem da criatividade em meio

às interações sociais e aos primeiros usos dos símbolos pela criança, em meio às instâncias

lúdicas simbólicas (Winnicott, 1971). Se entendermos que a capacidade de se

reposicionar e adotar outra perspectiva, bem como a reflexividade, são elementos de

importância crucial para que a criatividade aconteça, então precisamos considerar quando

e como esses elementos surgem em meio aos processos de desenvolvimento dos

indivíduos. A resposta oferecida por Mead e os estudiosos ‘neo-Meadeanos’ (a exemplo

de Gillespie & Martin, 2014) é que as brincadeiras e os jogos oferecem as primeiras

oportunidades de desenvolvimento para que as crianças experimentem diferentes papéis

e posições, usem e aprendam suas perspectivas e, notadamente, intercambiem-nas

constantemente entre si. O ‘esconde-esconde’ e outras brincadeiras infantis, por exemplo,

têm como premissa a possibilidade de movimentar-se entre diferentes papéis – no caso,

o papel de esconder-se e o de procurar quem está escondido. Em termos de

desenvolvimento, isso implica que quanto mais interagirmos com outras pessoas,

utilizarmos os recursos culturais e adotarmos múltiplas perspectivas a respeito da

realidade, mais se expandirá o potencial de ação criativa. Para Vygotsky (1930/2004),

essa é uma das leis do desenvolvimento da imaginação criativa e é essencial que as

crianças – e, mais adiante, os adultos – vivenciem tanto quanto possível a sua cultura e as

diversas oportunidades de aprendizado colaborativo que ela oferece. As relações e

interações com o outro, nos múltiplos contextos socioculturais, é a base do modelo

psicológico cultural da criatividade, que também inclui:

 A existência de redes interativas.

 O papel das ações e interações.

 A realidade da cocriação pela interação com as outras pessoas.

153
 A assimilação de suas posições.

 A compreensão de suas singulares perspectivas do mundo.

COMO ESTA TEORIA TRABALHA COM O DESENVOLVIMENTO DA

CRIATIVIDADE

A psicologia cultural da criatividade, fiel às suas origens sociogenéticas,

considera a criatividade como fenômeno humano, distribuído em diferentes instâncias

socioculturais e ocorrente no palco relacional dos sujeitos em seus múltiplos contextos de

desenvolvimento. Se desejamos investigar as origens e o desenvolvimento da

criatividade, na história humana, temos que lançar nosso foco para os processos de

desenvolvimento dos sujeitos. Investigar processos significa ir em busca de ações,

fazeres, práticas, processos de significação que vão surgir na e da história do sujeito.

Processos são eventos em movimento, transformação e mudança. Demandam novas

abordagens teóricas e metodológicas para sua análise, compreensão e teorização. Como

argumenta Neves-Pereira (2018):

Modelos teóricos são (e assim devem ser compreendidos) sistemas abertos em

permanente troca com o ambiente, destinados ao desenvolvimento, estagnação ou

mesmo extinção. Cada teoria possui seu corpus, instância que agrega histórias,

pessoas, tomadas de decisões, interferências sociais, culturais, econômicas e

políticas no caminho dos conhecimentos que produz. Uma teoria é mais do que

uma janela que se abre para olhar um fenômeno. Ela é, especialmente, o resultado

de decisões que foram tomadas ao longo de sua história e que a coloca em um

lugar epistemológico particular. Estes lugares, ou posições, emergem do trabalho

dos pesquisadores, em espaços e tempos diferenciados, sob múltiplas influências.

(p. 3)

154
O lugar epistemológico da psicologia cultural da criatividade compreende a

emergência do fenômeno criativo a partir da diferença entre sujeitos que se encontram

em interações sociais nos mais distintos cenários socioculturais (Glăveanu & Gillespie,

2015). O desenvolvimento da criatividade pode ser compreendido como um processo que

envolve as instâncias do modelo dos Cinco A’s (Glăveanu, 2013) acrescido das marcas

do tempo irreversível e das distintas posições que os sujeitos adotam em suas práticas e

atos de criação. É por meio dessa dança dialética e dialógica que o agente se depara com

affordances que o levam a ações específicas que, por sua vez, geram artefatos múltiplos

que são aceitos ou rejeitados por vários núcleos de audiências. O que torna esse modelo

diferenciado da proposta sistêmica de Csikszentmihalyi (1988), por exemplo, é

justamente os modos como as cinco instâncias se encontram e atuam em uma linha de

tempo irreversível e fortemente marcada por aspectos históricos, sociais e culturais, com

os agentes da criatividade olhando, percebendo e agindo de diferentes posições, com

possibilidades de construção de diálogos com o outro, assim como construindo relações

de alteridade, ou não (Glăveanu, 2015). A emergência da criatividade, mesmo

considerando-se um cenário bastante favorável (em que os elementos aqui descritos

encontram-se disponíveis e agrupados, por exemplo) é sempre um processo tenso,

permeado por conflitos, justamente por ser um processo humano. Os artefatos podem

surgir, ideias podem ser geradas, agentes podem se deparar com affordances favoráveis,

audiências podem colaborar, mas, mesmo assim, é necessário que esse conjunto de fatores

se alinhe em direção ao que se considera criativo nesta perspectiva. Esse alinhamento,

por carregar uma forte carga de imprevisibilidade, se reveste, muitas vezes, de pouca

clareza quanto aos seus processos. Como, exatamente, se desenvolve a criatividade é

pergunta que só pode ser respondida ao analisarmos cada indivíduo em seus processos

155
criativos. É possível encontra regularidades dinâmicas e estruturais na emergência da

criatividade, mas o desenvolvimento da ação criativa é único para cada agente.

CRÍTICAS AO MODELO TEÓRICO

Assim como qualquer outra abordagem teórica, a psicologia cultural da

criatividade também tem suas limitações. É importante reconhecê-las a fim de oportunizar

futuras contribuições conceituais e novas integrações multidisciplinares.

Em primeiro lugar, a principal tendência dos modelos e estudos apresentados neste

capítulo é a de complexificar a criatividade ao reconhecer o seu contexto e a sua natureza

sistêmica. Se isso respeita, por um lado, a complexidade da ação criativa, por outro,

também nos leva a sérios desafios, inclusive metodológicos. Algumas questões surgem:

1. Como podemos estudar a criatividade como um fenômeno distribuído?

2. Como devemos articular o modelo dos Cinco A’s e as relações entre suas

instâncias?

3. Como decidir, em meio à multiplicidade de posições e perspectivas

disponíveis, quais são as mais favoráveis para a criatividade?

4. Existem posições favoráveis para a criatividade ou o ato criativo se constrói

no momento da experiência única do sujeito em desenvolvimento?

As investigações correntes, na psicologia da criatividade, contam com muitas

ferramentas metodológicas, a exemplo dos testes psicométricos, que buscam medir a

criatividade e outras variáveis supostamente ligadas a ela. A psicologia cultural não se

opõe a mensurações, mas vê com ceticismo as ferramentas de mensuração estáticas ou

com pretensões universalizantes. Como apontado no início deste capítulo, a avaliação da

criatividade com base apenas na qualidade dos produtos criativos é uma tentativa

reducionista e até mesmo enganosa. Precisamos encontrar novas metodologias criativas,

156
capazes de examinar não só as pessoas ou os produtos, mas também as interações e

relações, os posicionamentos dos agentes criativos, a dialogicidade e os processos de

alteridade envolvidos na criatividade, por exemplo.

Até o presente, os métodos qualitativos e estudos de caso têm sido amplamente

utilizados por psicólogos culturais interessados na criatividade como um processo

(Zittoun & de Saint-Laurent, 2015; Ness & Søreide, 2014; Neves-Pereira & Branco,

2015). Precisamos diversificar nosso repertório metodológico, a fim de nos valermos da

quantificação quando for necessário e, sobretudo, significativo. Por exemplo, em um

estudo recente de criatividade em indivíduos e duplas, Glăveanu, Gillespie e Karwowski

(no prelo) utilizaram diversas ferramentas analíticas para avaliar tanto a quantidade como

a qualidade de ideias criativas. Insatisfeitos com a avaliação tradicional de ideias em

termos de fluência, flexibilidade e originalidade, entre outras características, eles

introduziram análises temporais para considerar, por exemplo, como a qualidade criativa

das ideias muda ao longo do tempo no trabalho com outras pessoas. Mais do que isso,

analisaram as interações que efetivamente aconteceram em duplas e a natureza das

respostas dos outros diante do surgimento de uma nova ideia. Essa complexa metodologia

lhes permitiu ir além da constatação comum de que quando se trata de criatividade, os

indivíduos são melhores em duplas ou em grupos; de fato, em uma situação social,

geramos ideias criativas de um tipo diferente, mais inclinadas à utilidade prática do que

à inovação radical. As descobertas desse estudo apontam para um novo caminho

metodológico: o uso da triangulação em pesquisas, tanto em relação à coleta quanto à

análise dos dados.

157
PERSPECTIVAS FUTURAS DA TEORIA

O uso da triangulação é apenas uma das perspectivas futuras possíveis para a

psicologia cultural da criatividade. Outra perspectiva central está ligada à criação de

diálogos verdadeiramente multidisciplinares e à integração de descobertas disciplinares

na pesquisa de criatividade. Até o presente, a colaboração entre psicólogos e

pesquisadores de outras disciplinas tem sido rara, o que é um contrassenso ao

compreendermos a psicologia cultural como um modelo teórico intrinsecamente

multidisciplinar (Valsiner e Rosa, 2007). O que os sociólogos e antropólogos podem

adicionar à nossa compreensão da criatividade? E os economistas e cientistas políticos?

Acima de tudo, a psicologia cultural da criatividade não pode parar de teorizar a

respeito do seu fenômeno de estudo. Por vocação, ela deve gerar conhecimentos úteis,

capazes de fazer a diferença no mundo real – a arena onde a criatividade é efetivamente

manifestada, promovida, questionada e, por vezes, proibida. Para alcançar esse objetivo,

os psicólogos culturais não precisam se tornar praticantes, nem converter sua disciplina

em psicologia aplicada. O que se faz necessário é uma consciência pragmática do fato de

que o conhecimento científico que produzimos a respeito da criatividade nunca está

desconectado da própria prática da criatividade. A diferença entre os Quatro P’s e os

Cinco A’s, por exemplo, é muito maior do que uma diferença de vocabulário; ela é uma

mudança que deve nos tornar mais capazes de entender o mundo e nele atuar. Em outras

palavras, ela deve nos ajudar a transformar a realidade, ao invés de estudá-la de forma

distanciada (Freire, 1970/2017).

Esta, em essência, é a mensagem da abordagem cultural. Conhecimento e prática

(concepções e ações) estão intimamente ligados. Somos todos (criativos) atores no campo

da criatividade, a construir ativamente o seu significado e a moldar a sua prática, seja

expandindo ou restringindo as suas fronteiras, com a inclusão de algumas e, ao mesmo

158
tempo, a exclusão de outras. Estamos construindo teorias, métodos e práticas que

incentivam a participação criativa na produção desses conhecimentos? Eis aqui a

pergunta crucial da psicologia cultural para o presente e para o futuro.

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