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FRACTAIS:

CONTRA
DIÁSPORAS
DA CIDADE
Aymée Godoy
Carolina Rodrigues
de Lima
Geovana Melo
Jean Carlos Azuos
Jorge Freire
Juliane Gamboa
Junior Negão
Letícia Puri
Lucas Magalhães
Marina Souza
Melissa Alves
Rosemeri Conceição Residência
Thamires Siqueira Territórios Curatoriais
Yuri Menezes 2023
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e
Secretaria Municipal de Cultura apresentam

FRACTAIS:
CONTRA DIÁSPORAS
DA CIDADE
Aymée Godoy
Carolina Rodrigues
de Lima
Geovana Melo
Jean Carlos Azuos
Jorge Freire
Juliane Gamboa
Junior Negão
Letícia Puri
Lucas Magalhães
Marina Souza
Melissa Alves
Rosemeri Conceição
Thamires Siqueira
Yuri Menezes

Residência
Territórios Curatoriais
Organização

Patrocínio

Patrocínio Estratégico

Patrocínio
A Prefeitura do Rio, por meio da Secretaria Municipal
de Cultura, cuida de um dos maiores patrimônios bra-
sileiros: a cultura carioca.
São mais de cinquenta equipamentos espalha-
dos por toda a cidade, entre teatros, arenas, museus,
bibliotecas, salas de leitura e centros culturais. Uma das
maiores redes municipais de equipamentos de cultura
da América Latina.
Investimos mais de R$ 200 milhões por ano
em cerca de 1.200 projetos pensados, produzidos e
estrelados pela cena cultural carioca. São milhares
de empregos gerados e um grande aporte financeiro
para a cidade.
Criada em 2013, a Lei Municipal de Incentivo
à Cultura da cidade do Rio de Janeiro (Lei do ISS) é o
maior mecanismo de incentivo municipal do país em
volume de recursos e busca estimular o encontro da
produção cultural com a população. Acreditamos que
a cultura é um vetor fundamental de desenvolvimento
econômico e social e de protagonismo da diversidade,
da democracia e da nossa identidade.

PREFEITURA DO RIO
Secretaria Municipal de Cultura
A Deloitte definiu uma estratégia global de responsa-
bilidade corporativa e sustentabilidade refletida no
conceito WorldImpact, que prevê impactar o mundo
a partir de quatro grandes programas — WorldClass,
WorldClimate, DE&I e Impact Every Day —, todos re-
plicáveis em cada firma-membro da organização e
hoje plenamente implementados no Brasil. Por meio
deles, a Deloitte busca se antecipar às demandas da
sociedade e promover impactos tangíveis. Ao fazer
isso, conecta-se também aos anseios dos talentos
da própria organização e do mercado.

Saiba mais em www.deloitte.com.br


A XP Inc. patrocina o projeto Territórios Curatoriais do
MAM Rio por acreditar que o incentivo à cultura e o acesso
à informação são pilares essenciais para a evolução da
sociedade. Projetos como este se conectam ao nosso
propósito de transformar o mercado financeiro e me-
lhorar a vida das pessoas e conversam diretamente
com um dos nossos principais valores: mente aberta.
Nós elevamos nosso conhecimento quando nos abrimos
para novas experiências e aprendizados, e isso só faz
sentido quando popularizado para todos.
Desde 2020, a disposição educativa do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, estabelecida desde sua
fundação, em 1948, passou a assumir também o forma-
to de residências pensadas para professores, jovens
estudantes, curadores, pesquisadores, pessoas com
deficiência e artistas. Em 2023, ano que marca os 75
anos do museu, com orgulho e alegria realizamos a
segunda edição do programa Territórios Curatoriais.
Onze residentes de regiões periféricas do
município e da região metropolitana do Rio de Janeiro,
de diferentes idades e trajetórias, com interesse em
participar de um processo formativo em curadoria,
atenderam a nossa convocação. Entre março a se-
tembro de 2023, o MAM Rio lhes ofereceu um curso,
um ciclo de palestras, encontros com as equipes do
museu e mentorias individuais e coletivas com a equipe
de Educação e profissionais convidados.
Nesta publicação, encontramos textos que
relatam a experiência da residência a partir de diferentes
perspectivas e que trazem reflexões sobre a relação
histórica que o MAM Rio tem estabelecido com a cidade
do Rio de Janeiro, revelando propostas cheias de frescor
e engajamento para com a instituição. Agradecemos a
este talentoso time por suas contribuições.
Com isso, o Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro reforça sua vocação de museu-escola e sua
crença na educação como elemento transformador
para o ambiente cultural e social do país.

PAULO ALBERT WEYLAND VIEIRA


Diretor executivo do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro
10
SUMÁRIO
CURADORIA DE CRIA: QUANDO O MUSEU
ESCUTA O TRÂNSITO DA CIDADE
Renata Sampaio, Lais Daflon e Shion L

19 DESVELAR O ATERRO, ACESSAR OS


SEDIMENTOS, RESTITUIR O TERRITÓRIO
Carolina Rodrigues
31 Território e arte visual no funk carioca
Jorge Freire
42 RODA – Rompendo silêncios: uma
reflexão sobre a ancestralidade
e a circularidade na arte e na
vida das mulheres negras
Juliane Gamboa
53 Curadoria além da passarela:
análise sobre as divergências
territoriais e socioculturais entre
a zona sul e a zona oeste
Thamires Siqueira
65 Tecer novos centros: territórios
criativos em movimento
Yuri Menezes
73 PRÁTICA E PENSAMENTO A CONTRAPELO
Jean Carlos Azuos
82 Enxergar as mulheres como o início de tudo
Aymée Godoy
90 Correspondência modular
Lucas Magalhães
98 O que querem as mulheres artistas: reflexões
sobre imagens e afetos na afrodiáspora1
Rosemeri Conceição

108 CURADORIA DE TERRITÓRIOS:


OS SUBÚRBIOS COMO ENSAIO,
MEMÓRIA E IDENTIDADE
Melissa Alves
117 De onde eu vim tem mais
Geovana Melo
129 A fúria e a curanderia: para além
das curadorias e, muito mais
potente e importante que tal
prática, a força do território
Junior Negão
144 Aqui já foi aldeia: a prática curatorial
como exercício de comunidade
Letícia Puri
153 Quem nos ensinou que nosso corpo
não cabe nos espaços de arte?
Marina Souza

162 RESIDÊNCIA 
TERRITÓRIOS CURATORIAIS
CURADORIA
DE CRIA: QUANDO
O MUSEU ESCUTA
O TRÂNSITO
DA CIDADE

Renata Sampaio
Lais Daflon
Shion L
Em 2023, ano em que o MAM Rio comemora 75 anos,
relembramos todos os museus que ele já foi e
perguntamos que museu queremos ser daqui para
a frente. O programa de residências da instituição
busca trazer a participação de diferentes públicos
nessa construção. Territórios Curatoriais aconte-
ceu entre 29 de março e 27 de setembro de 2023,
sob a coordenação da gerência de Educação e
Participação do museu, e foi constituída por onze
pessoas curadoras periféricas da cidade do Rio
de Janeiro. As pessoas residentes conversaram
com profissionais de diversas áreas do MAM Rio,
além de curadores independentes e vinculados
a outras instituições, ampliando seus repertórios
com diferentes formas de pensar e fazer curado-
ria, ao mesmo tempo em que aqueciam debates
importantes para a instituição nesse momento
de revisão.
A residência foi constituída em várias
etapas, começando com o curso online “Diálogos
sobre curadoria”, no qual convidamos pessoas
curadoras e articuladoras culturais com diversas
formações e atuações no campo das artes visuais
para encontros acerca de suas práticas, trazendo
conceitos e exemplos de curadorias desenvolvidas
por elas. Aliado ao curso, um ciclo de palestras
trouxe enfoque para as trajetórias de quatro
pessoas curadoras convidadas, em palestras
abertas também ao público — Igi Ayedun, Raphael
Fonseca, Bitú Cassundé e Walla Capelobo —, nas
quais cada uma pôde compartilhar seus diferentes
percursos na área, de maneira a exemplificar como
o ofício da curadoria é ainda muito sui generis, a 11
depender dos repertórios e contextos (históri-
cos, geográficos, pessoais etc.) do profissional
que conduz essas práticas. Durante o percurso
da residência, aconteceram também encontros
presenciais de caráter imersivo, exclusivos para
os residentes, com os seguintes setores e pro-
fissionais do MAM Rio: educação com Shion L e
Daniel Bruno, da equipe educadora; museologia
com a gerente Cátia Louredo e a coordenadora
de conservação Manuela Pereira; cinemateca
com o gerente Hernani Heffner; curadoria com
a curadora-chefe Beatriz Lemos; pesquisa e do-
cumentação com a coordenadora Aline Siqueira,
a pesquisadora Moema Bacelar e o bibliotecário
Reinaldo Alves; e produção e projetos com a ge-
rente Jusele Sá e o analista de projetos Ualace
Miliorini. Nesses encontros os residentes puderam
conhecer e acompanhar o trabalho das equipes
e aprender com as expertises da instituição.
Para contribuir com reflexões necessárias para
o desenvolvimento das pesquisas das pessoas
residentes e com a conceituação e produção do
evento de encerramento da residência, foram
feitas também mentorias individuais e coletivas.
A partir dessa reunião de referências,
além de suas próprias vivências e pesquisas em
curso, os residentes foram curadores do evento
que marcou o fim da residência, Fractais: contra
diásporas da cidade, com uma programação di-
versa no campo das linguagens artísticas e das
perspectivas sociais, raciais e de gênero. Um
exercício curatorial elaborado coletivamente, em
diálogo com os interesses de cada pesquisador. 12
Como resultado das discussões presentes no
curso, nas palestras, nos encontros imersivos e
mentorias, cada residente também nos apresenta
nesta publicação um texto que torna públicas
suas pesquisas e reflexões realizadas ao longo
desse período.
No processo de seleção das pessoas
residentes, priorizamos dois critérios: a aproxi-
mação com a prática curatorial em contextos não
hegemônicos e o compromisso com a seleção
de pessoas nascidas e atuantes em diferentes
territórios periféricos, com a intenção de gerar
pesquisas que pudessem contemplar a cidade
do Rio de Janeiro em parte significativa da sua
extensão. Partindo da premissa de que os mo-
radores dessas regiões, em sua maioria, não
fazem parte do público frequente do MAM Rio,
pensamos este diálogo como uma possibilidade
para perceber o que a cidade espera do museu,
e como as instituições culturais podem atuar na
integração de territórios, edificando novas visões
e compromissos.
Além da diversidade territorial, conside-
ramos necessário que os residentes estivessem
envolvidos em diferentes áreas e estágios de
desenvolvimento profissional, gerando assim um
espaço de convívio e formação mútua. Entre os
residentes, alguns apresentam uma trajetória
mais longa no circuito de artes, já tendo desen-
volvido projetos culturais independentes ou em
instituições, ao passo que outros encontram-se
num contato mais introdutório com o campo. Esta
variedade foi importante para que o programa 13
pudesse gerar espaços de contribuição entre
os residentes, de modo que a presença de pes-
quisadores mais experientes pudesse colaborar
com o repertório de quem está começando, e
os pesquisadores mais jovens pudessem trazer
frescor às reflexões e experiências mais maduras.
Assim, foram selecionados residentes das
áreas de curadoria, audiovisual, produção, música,
museologia e educação, com idade entre 18 e 56
anos, oriundos dos seguintes bairros do Rio de
Janeiro: Gamboa, Pavuna, Fazenda Botafogo, Vila
da Penha, Abolição, Irajá, Méier, Vila Isabel, Bangu
e Santa Cruz. Localidades que se multiplicam ao
considerarmos os trajetos percorridos por cada
residente em suas dinâmicas de deslocamento
na cidade, pensando que a palavra “trânsito” foi
unanimidade na residência como uma das prin-
cipais características que unem as pessoas dos
subúrbios cariocas.
Achamos importante também contar
com pessoas mentoras que compartilhassem
dessas percepções sobre a cidade e os sistemas
de arte. Profissionais da curadoria de origens
suburbanas que trazem em suas práticas reper-
tórios periféricos como indicadores conceituais
de suas pesquisas. Assim surgiu o convite para
Carolina Rodrigues, Jean Carlos Azuos e Melissa
Alves estarem conosco nessa empreitada. As
mentorias foram acompanhadas por nós, Renata
Sampaio, Lais Daflon e Shion L, contribuindo com
as discussões acerca da instituição.
A residência Territórios Curatoriais é
um projeto de curadoria com concepção da 14
gerência de Educação da instituição, portanto,
algumas indagações desde o princípio sulearam1
nossa atuação: Qual expertise precisa ter uma
pessoa para ser curadora? Qual é a formação
de uma pessoa curadora? Quais pessoas são
autorizadas a curar e o que as torna aptas para
isso? Embora, na atualidade, alguns avanços no
que diz respeito às discussões sobre diversida-
de de gênero, raça e território estejam sendo
negociados no campo da curadoria, a presença
masculina, branca e sudestina ainda se apresenta
como uma constante.
Ao longo da residência, tanto no curso
quanto no ciclo de palestras, convidamos profis-
sionais de diferentes áreas de conhecimento e
atuação, buscando propor interdisciplinaridades
entre os espaços de produção de pensamento
nas artes. Entre as premissas da concepção do 1. O verbo sulear
curso e na escolha dos intelectuais convidados, e o substantivo
suleamento têm
tomamos como critério a interseção da prática sido usados nos
curatorial com outros aspectos dos sistemas últimos anos como
de arte. Com isso, apresentamos ao grupo uma contrapontos
críticos ao caráter
inclinação à abordagem trabalhista do campo,
eurocêntrico dos
diálogos com pedagogias dissidentes, a curadoria vocábulos nortear
em espaços não hegemônicos e as dinâmicas e norteamento,
que sugerem
de institucionalidade, sem perder de vista, em
o norte global
função da heterogeneidade do público partici- como orientação
pante, um compromisso pedagógico e por vezes universal (N. da E.).

uma abordagem introdutória. Desde o princípio


prevíamos inscrições no curso de pessoas ex-
ternas à residência, mas em função da grande
adesão ao programa decidimos exibi-lo ao vivo
pelo YouTube, de maneira a torná-lo mais acessí- 15
vel aos públicos interessados nessas discussões
dentro e fora dos territórios do Rio de Janeiro.
Entre as profissionais convidadas, tivemos
pessoas interessadas na formação de coleções
institucionais e suas revisões identitárias, curado-
res com interesses mais históricos, bibliográficos
e/ou referentes a territórios específicos que
não são amplamente estudados, profissionais
que estão interessados na insurgência desses
espaços enquanto lugares produtores de arte,
pessoas educadoras que são curadoras porque
entendem a potência curativa da educação e
suas zonas de contato, e ativistas que entendem
a curadoria como um ato político. De profissionais
com pós-graduação aos que abandonaram a edu-
cação formal por opção. Profissionais do Sul ao
Nordeste do Brasil, porque região também muda
a noção de curadoria e os incentivos para fazê-la
Ao final desse processo, fica a experiência
da curadoria como um trabalho coletivo como op-
ção de caminho. Como unir onze ideias, pesquisas
e repertórios em um único evento? O desafio de
construir uma curadoria coletiva com um grupo
tão grande marcou boa parte dos encontros da
residência. Com propostas de exposição, rodas de
conversa, performance, sessão de filmes, show,
oficinas etc. foi necessário aprender a negociar,
defender e abrir mão. A curadoria, que muitas
vezes é um trabalho individual, tem se tornado
cada vez mais coletiva e, mesmo quando não é,
envolve os demais profissionais da instituição
para que o projeto seja realizado. O exercício de
construir algo juntos é essencial, principalmente 16
quando as instituições se propõem a ser diversas.
A curadoria, quase sempre vista por uma pers-
pectiva hierárquica como superior aos demais
setores, aprendendo com o subúrbio a assumir
um lugar colaborativo e horizontal.
As pesquisas apresentadas nesta publicação
são de autoria das seguintes pessoas residen-
tes: Aymée Godoy, Lucas Magalhães e Rosemeri
Conceição, com mentoria de Jean Carlos Azuos,
acompanhado por Lais Daflon; Geovana Melo, Junior
Negão, Letícia Puri e Marina Souza, cuja mentora
foi Melissa Alves, junto à Renata Sampaio; Jorge
Freire, Juliane Gamboa, Thamires Siqueira e Yuri
Menezes, que tiveram Carolina Rodrigues como
mentora, com acompanhamento de Shion L.

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Distribuição das pessoas


participantes pelo
território do Rio de Janeiro

1. Santa Cruz 6. Irajá 11. Maré


2. Bangu 7. Vila da Penha 12. Gamboa
3. Realengo 8. Abolição 13. MAM Rio
4. Pavuna 9. Méier
5. Fazenda Botafogo 10. Vila Isabel
DESVELAR
O ATERRO,
ACESSAR OS
SEDIMENTOS,
RESTITUIR O
TERRITÓRIO
Carolina Rodrigues
CAROLINA RODRIGUES
é curadora e pesquisadora da zona oeste do Rio de Ja-
neiro. Sua atuação tem foco nos territórios periféricos
da região metropolitana do Rio, articulando relações
étnico-raciais e gênero. É mestranda em artes visuais
e bacharel em história da arte pela Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em
2023, atuou como mentora na residência Territórios
Curatoriais do MAM Rio.
A luta por território se coloca como questão
central quando consideramos a situação da
diáspora africana e dos povos originários dos
países colonizados. Se existe uma dimensão que
realmente une as lutas negras e indígenas até os
dias atuais, é aquela que tangencia a territoria-
lidade. Essa abordagem suspende as fronteiras
entre passado, presente e futuro, uma vez que
é constantemente reelaborada na experiência
dessas coletividades com os espaços através
dos tempos.
É no território que se assentam as narra-
tivas, que comunidades se consolidam, que uma
complexa rede de relações se fundamenta com
a possibilidade das continuidades. A garantia da
permanência possibilita que os pés pisem com
segurança em terra firme, que saberes se so-
lidifiquem e que as referências pregressas não
se percam. Portanto, interromper relações com
os territórios significa negar a possibilidade da
construção de uma historicidade.
Se existe uma constância nessa lida com
o solo para as nossas comunidades até então,
é a da instabilidade, seja aquela resultante
das investidas diretas das ações humanas,
seja a das consequências que se revertem em
desastres que nos atingem. Em uma perspec-
tiva ampla, precisamos considerar as invasões
frequentes de terras sagradas com o objetivo
da destruição e da geração de lucro, o racismo
ambiental, a gentrificação e a marginalização
intencional das regiões para onde as pessoas
destituídas dos poderes políticos e econô- 21
micos vão sendo cada vez mais empurradas.
Problematizar território enquanto categoria
em disputa se torna quase um sinônimo de
pensar racialização.
Tenho pensado muito nas consequências
das frequentes interrupções das possibilidades de
fixar raízes para os remanescentes das diásporas
e como isso se torna mais emblemático no Rio de
Janeiro, cidade onde esses conflitos são levados
ao extremo. É muito sintomático que justamente
neste local, a partir de um Museu de Arte Moderna,
se elabore uma residência de curadoria artísti-
ca chamada Territórios Curatoriais, direcionada
principalmente para pessoas de regiões consi-
deradas periféricas e que, consequentemente,
são negras ou indígenas.
Enquanto mentora desta residência, levanto
esse debate provocada pelo título do conjunto de
ações que elaboramos muito mais por me sentir
contemplada por essas discussões em diferentes
dimensões da vida pessoal e profissional do que
por entendê-lo como um disparador conceitual
descompromissado. As provocações que farei,
a partir do nome que damos às coisas — e para
nós, nomes são de imensa importância por definir
identidades —, têm como objetivo traçar conexões
entre os sujeitos criadores que constituíram essa
residência e a instituição que os convidou, com
fluxos entre espaços e temporalidades.
Entendo, primeiramente, que a afirma-
ção de uma intelectualidade descorporificada e
desconectada da materialidade não nos contem-
pla. É justamente esse pensamento ocidental e 22
colonial que promove os atos de expropriação,
degradação e consumo que, além de desesta-
bilizar toda a experiência humana, faz com que
nos encaminhemos cada vez mais para o fim do
mundo. Ao me colocar na direção oposta, sinto a
necessidade de personalizar essa escrita, apon-
tando os deslocamentos espaciais que definiram
o lugar de onde falo.
Eu me localizo a partir das rupturas territo-
riais que posso mapear em minha história familiar
pregressa. Sou identificada profissionalmente,
diversas vezes, por habitar a zona oeste do Rio
de Janeiro, como uma curadora periférica. De
fato, se o objetivo é definir como periferia um
lugar de perdas e privações, no campo das artes,
faz sentido chamar assim um espaço que cobre
aproximadamente 70% da área geográfica da
cidade, mas cuja faixa mais extrema conta com
apenas 3% de seus museus, segundo a pesquisa
elaborada pelo artista e educador Lucas Almeida,
do bairro de Campo Grande. Os números expõem
uma falta de investimento que é proposital, uma
vez que deste modo são definidas as memórias
que devem ser preservadas, as visualidades que
devem ser contempladas.
A camada que não é acessada na catego-
rização que enfrento, no entanto, é justamente
aquela que está na historicidade que foi negada.
Viver onde vivo, longe dos principais investimentos
em artes visuais tanto do poder público quanto do
privado, é parte de um projeto de expropriação
territorial — que se desdobra em outras expro-
priações de caráter mais subjetivo. 23
Até onde consigo alcançar nas investi-
gações e vivências com minha família paterna,
encontro a Favela do Esqueleto, no Maracanã, por
um lado, e a aldeia caiçara do Saco de Mamanguá
em Paraty Mirim, por outro. A primeira destituição
do território ocorreu por volta de 1960, quando a
favela é destruída e sua população é empurrada
para a Vila Kennedy, obrigatoriamente afastando-
-se dos principais locais de trabalho. Hoje, longe
do trem e do metrô, essa população só conta
com a via da avenida Brasil, constantemente
engarrafada, podendo levar mais de duas horas
e trinta minutos para chegar até o Centro, ou ter
de pegar dois ou três meios de transporte para
tentar encurtar esse tempo.
A segunda retirada, que firma a destinação
da minha família aos espaços de precariedade, é
a gentrificação e o racismo ambiental que pre-
senciei na adolescência. Meu bisavô foi expulso
do território caiçara onde também cresci, sendo
coagido e ameaçado para vender sua terra por
um valor irrisório para a construção de empre-
endimentos turísticos milionários, eliminando
qualquer chance de retorno.
Perceber essas duas maneiras de deses-
truturação do tecido social na minha trajetória
familiar, a partir de diferentes roubos de terra que
impõem esse habitar que nomeiam periférico — e
que são reverberações da mesma violência co-
metida contra a ancestralidade mais pregressa —,
escancara a violência de um projeto de poder que
submete nossos corpos a uma experiência de
cidade cada vez mais massacrante. No entanto, 24
trago essa perspectiva não para levantar uma
narrativa de sofrimento, mas justamente para
devolver a discussão do território para onde ele
pode ser direcionado.
Como podemos perceber, de forma até
bem legítima, existe uma necessidade de loca-
lizar pelo nome de “território” as experiências
dos extremos, das periferias, entendendo que
a contribuição das pessoas que vivem nesses
espaços pode trazer um enriquecimento crítico
para as instituições por promover reflexões que
partam de perspectivas distintas. Mesmo assim,
podemos cair no mesmo risco de quando pauta-
mos a racialidade apenas pela via da existência
de pessoas negras e indígenas, sem levantar a
especificidade das vivências brancas enquanto
recorte racial. Devolvo, então, um olhar analítico
para aquilo que se denomina o Centro, o territó-
rio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
apontando como sua localização faz parte de um
projeto que impacta diretamente a experiência
das pessoas que ali retornam para estabelecer
trocas artísticas, poéticas e intelectuais.
O Rio de Janeiro é uma cidade que moldou
sua geografia a partir dos desejos de elites que
procuravam uma melhor experiência ao habitar,
almejando o ideal inatingível de uma civilização eu-
ropeia moderna. Falando especificamente de uma
região central em contato com a Baía de Guanabara,
podemos identificar facilmente a prática radical
de desmontes e aterramentos para modificar a
geografia da região. Elencamos, aqui, o Morro do
Castelo como um ícone desses processos que 25
aconteceram em vários locais e momentos na
história do Rio de Janeiro, sendo completamente
destruído no início da década de 1920 — a mesma da
Semana de Arte Moderna —, com seus sedimentos
utilizados para avançar a cidade sobre as águas. Esse
empreendimento em prol da modernidade expulsou
do Morro do Castelo, sem qualquer compensação,
mais de 5 mil moradores majoritariamente pobres
e racializados. Poucas décadas depois, no aterra-
mento que foi construído às custas da destruição
dos lares dessas pessoas, foi inaugurado o Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Os desmontes e aterramentos que se
colocam aqui enquanto estruturas geográficas
se tornam ainda mais paradigmáticos se consi-
derarmos o potencial simbólico dessas ações.
Uma modernidade que se estabelece a partir do
soterramento de identidades, saberes e formas de
coexistência nas áreas centrais de uma metrópole
que até então era a capital de um país construído
por mãos pretas e indígenas. O descarte ou des-
monte da contribuição efetiva desses setores da
sociedade ocorre paralelamente à folclorização
ou à exploração fetichista da imagem desses su-
jeitos em condição de subalternidade, que pode
ser facilmente identificada na produção artística
que se firma como modernista.
O MAM Rio, então, como a instituição que
algumas décadas depois se torna um monumento
para a consolidação desses ideais artísticos nos
traz algumas provocações enquanto edificação,
pela forma como se fixa no espaço. É instigante
perceber que se trata de uma territorialização 26
que ambiciona a abstração em diversos sentidos.
Primeiramente, por estar em um solo que não
existiria sem a imaginação humana, que apenas
teve a possibilidade de se constituir a partir dos
desmontes anteriormente citados. Um processo
que pode ser considerado vertiginoso e até ser
relacionado a uma visão artística, se ignorarmos
as desumanidades cometidas. Além disso, a
construção se coloca em suspenso em relação
a esse espaço idealizado. Em se tratando de
uma instituição onde são exibidas visualidades
também imaginadas, fruto de pensamentos que
confluem na instância máxima de legitimação do
desenvolvimentismo, essa falta de contato direto
entre o espaço expositivo principal e o solo pode
nos servir para algumas provocações.
Um dos conceitos mais ligados à moder-
nidade e à colonialidade enquanto projetos de
poder é a pretensão da universalidade: um saber
que se pretende descorporificado, atemporal e
deslocado da vida terrena, que propõe contemplar
todas as experiências humanas e atingir todos os
âmbitos e dimensões da estruturação das socie-
dades, manifestando-se até mesmo na produção
artística. O projeto arquitetônico da construção,
ainda que remeta também à relação com navios
e com o mar, traduz perfeitamente a ideologia
dominante do contexto em que foi elaborado. Essa
flutuação e a permanência nesse local inalcançá-
vel podem ser entendidas como uma suspensão
no tempo, uma desterritorialização, a afirmação
de uma intelectualidade descorporificada e que,
por si só, pode se afirmar universal. Assim, se 27
consolida o lugar de uma arte que aponta para
uma futuridade que não se enraíza nos saberes
construídos neste território tão identitário. Uma
arte que não toca nos sedimentos deixados por
uma geografia contaminada pelas experiências
da diáspora.
Atravessando temporalidades em que as
presenças de agentes diversos questionaram cons-
tantemente esse projeto de poder, subvertendo
o museu como templo de contemplação e reivin-
dicando as atividades educativas e participativas
como os eventos de maior inovação e projeção
da instituição na cidade, podemos constatar que
o projeto inicial não garantiu a impermeabilidade
desse ícone da modernidade.
O pensamento ocidental instituiu as obras
de arte visuais como objetos de culto silencio-
so, de contemplação profunda e individualizada,
como prova de uma intelectualidade que promo-
via a distinção de uma elite branca em relação à
ignorância atribuída às pessoas destituídas de
poderes políticos e econômicos. No entanto,
quando entendemos as artimanhas elaboradas
por esse projeto, que não passam de um teatro
armado para confundir nossos sentidos, entende-
mos que a verdadeira relação dos nossos povos
com as artes é muito mais profunda.
Acessando a importância dos saberes
ancestrais e aprimorando o olhar sobre nossos
cotidianos, percebemos que nossos objetos ar-
tísticos nunca foram estáticos, nunca estiveram
suspensos no tempo e no espaço, nunca foram
fetiches para a afirmação do ego de quem os 28
possui. Nossa experiência com a arte é coletiva,
relacional, nossas manifestações artísticas são
agenciadoras das relações e nos firmam no chão
que pisamos.
Nada mais interessante, nesse sentido,
do que uma residência de curadoria cujo produto
final é um evento de múltiplas linguagens e possi-
bilidades de interação, construído coletivamente
por onze pessoas de distintas idades, origens
territoriais, formações e relações com a produção
artística. Pessoas que carregam o compromisso
com suas trajetórias de vida e de deslocamento
na cidade, engajamento com construções mais
honestas e pautadas nas diversas possibilidades
de agenciar, por meio da arte, a elaboração de um
território onde os nossos possam respirar com
mais tranquilidade.
Diante da contextualização aqui exposta,
entendendo que as periferias são fruto de um pro-
jeto de poder e que nossa distância geográfica se
dá principalmente por processos de expropriação,
nossa presença nesse território onde uma parte
de nossa história foi aterrada é legítima. E que o
convite para retornar é um ato de reconhecimento
da responsabilidade da instituição em um projeto
de legitimação de memórias que excluiu nossa
contribuição artística e intelectual.
Se hoje conseguimos adentrar esse
espaço, modificar sua programação e trazer os
nossos para promover trocas férteis, é porque
outras de nós chegaram antes e investiram em
um projeto que promoveu a abertura dos nossos
caminhos. Um salve à equipe de Educação e Par- 29
ticipação constituída pelos nossos, que elaborou
estratégias como potencializar a permeabilidade
dessa instituição e possibilitar que os sedimentos
retornem à superfície e contaminem o templo da
contemplação artística.
Cada degrau que subimos em direção ao
interior dessas instalações, às suas engrenagens,
aos espaços mais inacessíveis, aos seus códigos
mais indecifráveis, só é possível se somos con-
vidados por quem também carrega um pouco
da experiência compartilhada das diásporas da
cidade. Não estamos aqui pela via do fetiche, mas
da agência. Não estamos disputando espaço,
mas marcando nossa presença nessa memória.
Seguimos e permanecemos acompanhados,
porque o terreno ainda pode ser instável para
quem pisa nele só.

30
TERRITÓRIO
E ARTE VISUAL
NO FUNK
CARIOCA
Jorge Freire
JORGE FREIRE
é produtor cultural há mais de dez anos. Tem expe-
riência em gestão de projetos e recentemente vem
se especializando na coordenação de equipamentos
culturais. Com foco em arte e cultura periféricas, tem
no horizonte a busca por entender suas complexida-
des e belezas. É pai da Bia, do Pedro e da Bethânia.
E suburbano apaixonado.
BANDEIRA NAÇÃO – O TEMA, O FUNK,
A CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Este texto nasce da tentativa de fazer um diálogo
entre as artes visuais e o movimento funk carioca
da década de 1990, revisto hoje no movimento
batizado de “funk da antiga”. O principal objeto de
análise deste trabalho, entre os muitos que o funk
tem, serão as bandeiras que identificam nações
e são utilizadas durante os bailes de galera.
O que despertou meu interesse na resi-
dência Territórios Curatoriais no MAM Rio foi poder
pensar quem tem direito ao acesso aos espaços
oficialmente dedicados às artes, ampliar a visi-
bilidade sobre um campo não institucionalizado,
periférico, mas que produz potentes espaços de
fruição artística, atentar para a capacidade pro-
dutiva das pessoas que estão à borda da cidade
e olhar o fazer artístico por meio de lógicas mais
democráticas e diversas. Com isso em mente, e
a partir das discussões e conceitos apreendidos
durante os encontros formativos, entendi que
era possível levar para o Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro o movimento funk, mais espe-
cificamente na potência de sua produção visual.
A década de 1990 marca a vida de mui-
tos jovens na periferia. Este trabalho passa pelo
olhar de uma pessoa que a viveu diretamente. Eu
fui um jovem funkeiro dos anos 1990, assim como
grande parte dos meus amigos e amigas. Este
texto é escrito a partir do olhar e da paixão de
um homem negro, oriundo da baixada fluminense,
atuante das artes e que sempre teve uma rela- 33
ção de muita proximidade com tudo que envolve
a cultura funk. Alguém que viveu intensamente a
maior manifestação cultural protagonizada por
jovens periféricos já vista.
O território aparece no funk não só nas
letras das músicas, mas em toda a produção visual
que envolve a realização de um baile. Aqui, buscarei
relacionar as artes visuais presentes nas bandei-
ras, que identificam as “galeras” ou “nações”, com
o desenvolvimento de uma ideia de território, a
construção de imaginários sobre ele e sua relação
com a cidade e todos os seus conflitos.
Os bailes “funk de corredor” nasceram na
década de 1990 no Rio de Janeiro e consistiram em
eventos em que grupos de diferentes favelas se
encontravam para curtir, conforme relata Ricardo
Índio, produtor de funk, em entrevista concedida
ao jornal Extra em 2020: “O baile era a parte boa,
o ruim era o caminho para chegar até lá porque
se tornou perigoso por conta das brigas do baile
de corredor. Como os grupos eram divididos, os
jovens que brigavam nos bailes não podiam marcar
bobeira em qualquer lugar”.
O produtor está se referindo às brigas que
aconteciam dentro dos bailes funks, durante os
“cinco minutinhos de alegria”, momento em que
as galeras se dividiam em lado A e lado B para se
enfrentar. O lado A e o lado B estavam diretamen-
te ligados aos territórios dos funkeiros, ou seja,
dependendo de onde você morava, você poderia
ser do lado A ou do B. E essa divisão limitava seu
direito de ir e vir dentro da cidade. Você não po-
deria curtir uma festa no lado que não fosse o 34
seu, porque, se fizesse isso, corria risco de morte.
Por isso as músicas exaltam tanto os territórios.
Cada galera tinha que se sentir represen-
tada durante o baile. Me recordo de um cantor
famoso que morava em uma comunidade que
não era mencionada na música “Nosso sonho”,
de Claudinho e Buchecha, que cita vários bairros
do Rio, lamentando que o bairro dele não era
nem citado na música. As comunidades já eram
invisíveis pelo Estado e, pelo menos nos bailes, os
moradores sentiam que seu território poderia ser
motivo de orgulho, pertencimento e identidade.
A violência era algo que o produtor Luís
Cláudio não gostava de ver dentro dos seus
eventos. Ele defendia que o fim da violência
nos bailes deveria ser alcançado pela música,
e não pela presença da polícia. O famoso jargão
“o baile foi feito para curtir e dançar”. Para pro-
mover a paz, ele distribuiu durante anos mais de
620 troféus para as galeras que frequentavam o
baile, segundo entrevista concedida ao Jornal
do Brasil em 1992.
Cláudio criou o evento chamado Matinê
Premiada, que promovia um concurso sema-
nal, aos finais de semana, onde centenas de
jovens de diferentes territórios disputavam
entre si em alguns quesitos: dança, tamanho
do grupo — popularmente chamado de bonde —
e o famoso grito da galera. Para que o grito da
galera ganhasse ainda mais força, os jovens in-
ventaram uma forma de se destacar no meio da
multidão. E assim surgiram as bandeiras dentro
do baile, que eram bem simples: uma faixa de 35
5 por 5 metros, com os nomes dos territórios
de determinada galera escritos, estendida em
dois paus de bambu.
A Furacão 2000 e outros grandes produ-
tores da década de 1990 também promoveram
concurso entre as galeras e campanhas pelo fim
das brigas e das mortes dentro dos bailes. E as
brigas poderiam até não acontecer mais dentro
dos eventos, porque a equipe de segurança ex-
pulsava os baderneiros, mas fora dos bailes, nas
ruas ao redor, a rivalidade e a violência perma-
neciam presentes.
A bandeira como elemento de identifica-
ção se organiza a partir dessa divisão fundamen-
tal. Mas essa divisão vai se consolidar depois no
Império Serrano, local que, para muitos, foi a
primeira vez que viram uma corda dividir o espa-
ço do baile e estabelecer concretamente aquilo
que já existia simbolicamente.

1. Célio José
BANDEIRA TERRITÓRIO – dos Santos, “A
PERTENCIMENTO, IDENTIDADE insurgência do
lugar em tempos
de globalização:
O território é o lugar em que desembo- uma análise a
cam todas as ações, todas as paixões, partir da cultura
hip-hop”, Caminhos
todos os poderes, todas as forças, todas
de Geografia,
as fraquezas, isto é, onde a história do Uberlândia, v. 16,
homem plenamente se realiza a partir n. 54, jun. 2015, p. 13.

das manifestações da sua existência.1

Entender sobre como acontecia o baile


de corredor, a dinâmica que dividia a galera em
lado A e lado B, as disputas do tráfico dentro dos 36
territórios, a perseguição e criminalização do funk
pelo Estado é fundamental para compreender e
decifrar o que está por trás da versão das novas
bandeiras surgidas nos encontros de “funk das
antigas” a partir dos anos 2010.
Digo novas versões das bandeiras porque
houve mudanças ao longo do tempo. Na década de
1990, as bandeiras eram mais simples: fundo bran-
co, com o nome das comunidades que formavam
aquele bonde e frases que incitavam a violência
ou a paz. A partir da retomada do funk atual, nos
bailes de funk das antigas percebo que há uma
necessidade de resgatar elementos que consti-
tuem a ideia de galera como era antigamente. Por
isso, as bandeiras hoje têm novos elementos que
dialogam com signos que conferem identidade
às galeras, como a mascote, as linhas de ônibus
que eram utilizadas para ir aos bailes ou o lado ao
qual aquela galera pertencia. Tudo isso compõe
um conjunto de escolhas ativas que visam traçar
um desenho que está intimamente ligado aos ele-
mentos que compõem o território nas dimensões
afetiva e física.
Toda a bandeira é um código cifrado. As
bandeiras que antes eram simplesmente uma
legenda se cobrem de elementos artísticos fun-
damentais como cor, diversos estilos de grafia,
narrativas sobre os territórios, entre outros.
Tudo isso constitui, segundo minha percepção,
um produto artístico de alta qualidade, porque
consegue aliar pertencimento, identidade e
conta uma história através das artes visuais.
Entender esse processo de construção é ter 37
a possibilidade de mapear e conectar-se a um
conjunto de realizadores artísticos que, muitas
vezes por conta de a sociedade não enquadrar
o funk como manifestação cultural, não se reco-
nhecem como tal.
Acho importante destacar que a bandei-
ra não é de uso exclusivo do funk. Ela pode ser
encontrada em outros espaços coletivos, como
em times de futebol. Mas essas bandeiras não
guardam elementos tão subjetivos quanto as
produzidas a partir da retomada do movimento
funk nos últimos anos.
Para nos ajudar a exemplificar essa
reflexão utilizarei a bandeira do complexo de
Manguinho, que reúne as favelas de Varginha,
Mandela, Amorim e Vila São João. Nessa bandeira
a gente pode ver a imagem da favela, da linha
de trem e da estação do metrô que cortam os
diversos territórios. Aparecem também a linha
de ônibus, chamada de bonde, que levava a
galera para o baile; o trecho de uma letra de
música do funk que exalta a potência da favela,
“moro num lugar que só mora sangue bom”; e a
designação do lado que revela que essa região
pertencia ao lado A. Tudo isso orbita na figu-
ra central de um personagem adotado como
mascote, o Taz-Mania, ícone do universo pop
infantojuvenil dos anos 1990, trazendo uma forte
conotação de força e violência atravessada
por uma ideia de lúdico e divertido. Mais uma
vez a gente percebe que a bandeira é utilizada
para demonstrar a força dos representantes
daquela comunidade e resgata principalmente 38
a memória daquela juventude que hoje tem por
volta de 50 anos.
Eles podem colocar o número do ôni-
bus que dava o bonde para irem ao baile, mas
nos encontros do baile das antigas eles vão em
carros particulares. E eles usam a mascote para
imprimir a força e a jovialidade que tinham na
década de 1990, de modo que a bandeira carrega
um conjunto de recordações sobre o território,
seus integrantes e o movimento funk. Importante
destacar que essa bandeira é produzida em pleno
lúdico motivacional da rotina da vida, ela é uma
espécie de forma de encantar a existência, já que
é construída no intervalo do trabalho, do biscate,
da batucada, do trem, do cotidiano ordinário de
cada um e cada uma. Formando assim um objeto
rico de reflexões e proliferação de sentidos. A
bandeira, elemento de 5 x 5 metros, hasteada no
meio do baile, é, portanto, um mar lotado de sig-
nificados. Podemos através dela chegar a lugares
inimagináveis, traçando um perfil da relação entre
cultura popular e seus lugares de pertencimento.

BANDEIRA DEMOCRACIA –
ARTE COMO DIREITO
[...] espaço invisível aos olhos da socie-
dade que, muitas vezes, despreza-o, na
tentativa de apagamento dos sujeitos e
de suas produções culturais marginaliza-
das, não porque encontradas à margem
geográfica do sistema, mas porque co-
locadas de lado pela produção calcada 39
no dinheiro, que volta sua atenção e seus
olhos para os sujeitos e as produções da
alta sociedade, sendo, esses, colocados
em local central de visibilidade e impor-
tância sociais.2

O que apresentei aqui está diretamente


atravessado pelas discussões contemporâneas
sobre artes e é um exercício de alargar o campo
de visão buscando causar rupturas, ou mesmo
estranhamentos, ao padrão repetido. Buscar uma
arte mais diversa, mais conectada aos fazeres e
modos de viver do homem periférico, e instru-
mentalizar um conjunto de pessoas, artistas ou
produtores de cultura, com o poder da visibilida-
de, entendendo que o direito de ser visível é um
disparador de outros muitos direitos.
A residência Territórios Curatoriais ten-
siona as questões do campo das artes a partir
dessa tentativa de “ruptura”. Questiona o cânone
trazendo outros corpos para discutir a ideia de 2. Luciane de Paula
arte e museu a partir de concepções mais diver- e Sandra Leila de
Paula, “No centro
sas. Coloca o poder de escolha do curador sob
da periferia,
suspeição, possibilitando que se possa pensar a periferia no
sobre ele, e faz isso convocando pessoas perifé- centro”, Ipotesi,
Juiz de Fora, v. 15,
ricas e não habituais nos espaços das artes para
n. 2 — Especial,
assumirem esse papel. pp. 107—121,
Enfim, a relação proposta entre o objetivo jul./dez. 2011.

desse trabalho e o que se quer na residência do


MAM é ampliar o conceito de arte, para que se
possa pensar nela como um instrumento da cons-
trução de uma cidade muito mais democrática.
40
Agradeço a Marcelo Gularte, maior pesquisador
da história do funk na atualidade, e Paulinho Nico,
organizador da Galera do São Vicente, Belford Roxo,
Baixada Fluminense — Lado B, pelas entrevistas
concedidas para este texto.

41
RODA – ROMPENDO
SILÊNCIOS: UMA
REFLEXÃO SOBRE A
ANCESTRALIDADE E A
CIRCULARIDADE NA
ARTE E NA VIDA DAS
MULHERES NEGRAS
Juliane Gamboa
JULIANE GAMBOA
é formada em história da arte pela UFRJ, musicista e
professora de musicalização e canto. Tem experiência
em produção de eventos, arte-educação e curadoria
artística e musical. Pesquisa artes e músicas negras,
interessada em abordagens transdisciplinares.
PERFORMANCE SONORA
A quem lê,

nesse exato momento, às 10h51 do dia


27 de setembro de 2023, considero já
finalizado este texto e volto ao início,
em um movimento circular, porque sinto
a necessidade de dizer quem eu sou, de
explicar de forma mais livre minhas inten-
ções e fazer algumas recomendações.

Meu nome é Juliane Gamboa, eu sou uma


mulher negra, nascida em Petrópolis, no
Rio de Janeiro, e moradora, há alguns
anos, da Gamboa, na Pequena África,
lugar onde encontrei pertencimento, o
bairro que carrego no meu sobrenome de
família. Sou cantora, musicista, historia-
dora da arte, arte-educadora e curadora
independente. Neste texto, trago as
vozes de outras mulheres negras para
responder junto comigo a uma pergunta:
o que acontece quando uma mulher negra
rompe o silêncio? As vozes são de Tatiana
Gomes da Costa (42 anos), Raquel Paixão
(32 anos), Ana Paula Teixeira da Cruz (43
anos), Solemni Solange Shakur (30 anos),
clique aqui e ouça
Ingra da Rosa (35 anos), Ana Neri Souza
a performance
da Costa (23 anos), Flávia Fernando Lima
Silva (45 anos), Erika Monteiro (39 anos)
e Cecília Marcos (32 anos).
44
Com as respostas que elas me deram
separadamente via áudio de WhatsApp,
criei uma roda de conversa virtual sobre
o rompimento do silêncio. Essa conver-
sa é enredada por algumas sessões de
improviso que eu mesma fiz em alguns
instrumentos: contrabaixo, piano, voz
e percussões. As sessões de improviso
são reações físicas, motoras, sensíveis e
espontâneas às vozes das minhas cole-
gas. Trata-se de uma áudioperformance
ou performance sonora que coexiste em
sentido com o texto a seguir. Ouçam e
leiam, na ordem que preferirem. Para a
audição, recomendo um ambiente silen-
cioso e solitário, além do uso de fones
de ouvido.

Romper silêncio. A mulher negra rompe o silên-


cio e diz sentir dor, solidão, medo e abandono.
A mulher negra rompe o silêncio e diz querer
liberdade, afeto, acesso. A mulher negra rompe o
silêncio e diz querer justiça, possibilidades, res-
peito, espaço. O que acontece quando a mulher
negra rompe o silêncio geracional instituído pela
sociedade colonizada?
Gosto de pensar que quando uma mulher
negra rompe o silêncio, ela se conecta com o que
vem antes da dor. Antes da colonização. Antes da
escravização. Quebrar o silêncio é resgatar o sonho.
Romper o silêncio é projetar o sonho ancestral.

45
No sonho que nos sonharam,
não havia o impossível.
Leda Maria Martins

Lorde falou sobre transformar o silêncio


que nos é imposto em linguagem e ação, e quanto
esse ato parece estar “carregado de perigo”.1 A
ruptura com o silêncio, embora libertadora, também
promove riscos. Ao mesmo tempo que libertar a voz
nos confere mais dignidade, também fere e ameaça
nossa existência. Por isso também sentimos medo.
Sentimos medo da potência que a projeção das
nossas vozes por hora engasgadas possa gerar
ao nosso redor. Qual é a consequência do nosso
reverberar? Volto a perguntar: o que acontece
quando uma mulher negra rompe com o silêncio?
Eu trago vozes de outras mulheres negras para me
ajudar a responder a essa pergunta.

Quando eu penso no rompimento do silên-


1. Audre Lorde,
cio, imageticamente cria um babado na Irmã Outsider, trad.
minha cabeça, né, várias imagens, e uma Stephanie Borges,
das primeiras coisas que eu imagino assim: Belo Horizonte:
Autêntica Editora,
é a máscara de flandres da Anastácia,
2019, p. 53.
com a mão dela assim, cheia de azeite de
2. Transcrição de
dendê, puxando e rasgando assim com
áudio da entrevista
toda força, e dando seu primeiro sorriso coletada para a
(Solemni Solange Shakur, 30 anos).2 audioperformance..

A máscara de flandres era um instrumento


de tortura e silenciamento composta de um pe-
daço de metal colocado no interior da boca do
sujeito negro, instalado entre a língua e o maxilar 46
e fixado por detrás da cabeça por duas cordas,
uma em torno do queixo e a outra em torno do
nariz e da testa.3 A máscara representa um regime
brutal e sádico de dominação e emudecimento
do projeto colonial europeu que vigorou por mais
de trezentos anos, e que reverbera até hoje na
psique de pessoas negras.
A ação que Solange visualiza e descreve
é uma imagem de dor. Arrancar a máscara do si-
lenciamento causa dor no sujeito que o faz, mas
ao mesmo tempo gera o sorriso de se ver liberta
sem ela. A alegria em poder falar e sorrir sem ne-
nhuma barreira, esse é o sonho ancestral. Faço
uma leitura do azeite de dendê descrito na fala 3. Grada Kilomba,
Memórias da
de Solange como essa tecnologia africana que
plantação:
vem sendo utilizada há mais de 5 mil anos como episódios de
um solvente desatador das amarras coloniais. racismo cotidiano,
trad. Jess Oliveira,
Eu penso que a ancestralidade é a chave para
Rio de Janeiro:
libertar nossas vozes e desorganizar o racismo. Cobogó, 2019, p. 33

4. Trecho da música
Os meus sonhos não são meus, mas dos “Quilomba”, da
meus ancestrais.4 cantora Azula.
Azula
5. Conceição
Evaristo, Poemas
A escritora Conceição Evaristo em seu da recordação
e outros
poema “Vozes-mulheres”5 descreve um proces-
movimentos, Rio
so geracional da tomada desse mesmo lugar de de Janeiro: Malê,
libertação. 2017, pp. 24—25.

Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó


ecoou criança 47
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha


recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem — o hoje — o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade. 48
A voz da bisavó que ecoou lamentos de
uma infância perdida, seguida pela voz de sua filha
que ecoou obediência aos colonizadores, que
gera uma outra mulher que ecoa revolta em sua
voz, que gera uma outra voz-mulher própria que
ecoa e escreve versos perplexos “com rimas de
sangue e fome”. A voz-mulher descrita por último 6. No texto
é a junção de todas as anteriores vozes — suas da curadoria,
dores, sonhos e desejos calados pelo colonialismo — explicamos: “Fractal
é tecnologia
e que se faz ouvir em ressonância, “o eco da
ancestral. É uma
vida-liberdade”. A voz emudecida da bisavó está figura geométrica
presente na voz da bisneta que conseguiu falar. produzida por
meio de equações
Esse poema de Conceição Evaristo descreve o
matemáticas, em
processo de uma revolução. que o todo forma
No dia 23 de setembro de 2023, aconteceu a parte e a parte
reflete o todo,
no terraço do Museu de Arte Moderna do Rio de
assim como o todo
Janeiro o evento de encerramento da residência traduz a parte.
Territórios Curatoriais, da qual fiz parte. Durante No continente
todo o processo, nós, as residentes, em maioria africano, está
no design dos
negras, dialogamos sobre a falta de pertencimento tecidos, esculturas,
e de escuta das instituições pelas quais passamos. máscaras e
Penso a curadoria, entre tantas definições, como cosmologias
religiosas; na
um potencial espaço de diálogo e de aprendizado
arquitetura
mútuo. No entanto, na maioria das vezes, ela se e urbanismo
imprime como um lugar de dominação, no qual cura- de aldeias e
montanhas de
dores, em sua maioria homens brancos cisgênero,
Camarões ou
definem o que deve ou não ser ouvido, o que deve Zâmbia. (continua
ou não ser lido, e por quem deve ser consumido. na próxima página)

Penso que toda nossa estratégia para


a criação do evento Fractais: contra diásporas
da cidade6 foi reunir dentro da instituição mu-
seu uma série de ações e espaços onde vozes
não hegemônicas pudessem falar e ser ouvidas. 49
Da sessão de filmes à exposição, da roda de con-
versa aos shows, vimos, ouvimos e experienciamos
múltiplas vozes que trazem em si seus repertórios,
suas vivências e, principalmente, seus territórios.
Na elaboração para a programação, fui
convidada por duas colegas residentes, Rose-
meri Conceição e Aymée Godoy, para abrir a roda
de conversa que elas iriam mediar juntas e ler o 6. (continuação)
poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, Na residência
citado acima. Uma coincidência. Rose não sabia Territórios
Curatoriais, o
que esse poema já reverberava há anos nas minhas
fractal é invocado
pesquisas e que, no final de 2022, eu havia feito pela curadoria
uma performance poético-musical7 do mesmo para refletir sobre
corpos dissidentes,
poema no Museu de Arte do Rio (MAR).
poéticas diversas,
O título da mesa era “Todo telhado tem uma violência e
sustentação — Diálogos sobre artes e mulherismos”, apagamentos
sociais”, disponível
baseado em uma fala da cantora e compositora
em https://mam.
Missy Elliot durante uma premiação pelo Museu rio/programacao/
Nacional de Música Afro-americana: “Nenhum fractais-contra-
telhado numa casa pode ficar sem sustentação. diasporas-da-
cidade/, acesso
Aqueles antes de mim, representam cada tijolo em 27 set. 2023.
necessário para mantê-la de pé”.
7. Registro da
Foram convidadas a integrar a discus-
performance
são a pesquisadora Juliana Pereira e as artistas disponível em
Azizi Cypriano, Azula e Tayná Uràz. As curadoras https://www.
instagram.com/
e mediadoras da roda, Aymée e Rosemeri, são
reel/CmUjHYIOXv6/,
mulheres negras e, respectivamente, as colegas acesso em 27
mais nova e mais velha da residência, Aymée com set. 2023.

19 e Rose com 56 anos.


Poucos minutos antes de a roda iniciar,
Rose veio até mim, junto de Aymée, indagando
sobre como havia sido a minha primeira apre-
sentação musical. Na ocasião, Aymée estava 50
muito nervosa, pois nunca havia ocupado o lugar
de mediadora. Rosemeri me buscou para tentar
tranquilizar nossa mais nova. Busquei lembrar
da sensação da minha primeira apresentação e
pensei quanto foi preciso coragem para romper
o silêncio e expor a minha voz através da música
na frente de uma plateia. Disse a Aymée que o
nervosismo era completamente normal, mas que
ela não estava ali na residência à toa, que suas
propostas e ideias eram lindas e importantes, e
que precisávamos dela para a discussão da mesa
chegar aonde precisava chegar.
Durante a roda de conversa, houve um
momento específico em que Aymée falava muito
baixo e ninguém conseguia ouvir. A intérprete
de libras e as outras mulheres negras presen-
tes na mesa interromperam sua fala e pediram
para que ela aumentasse o volume de sua voz,
e assim ela fez. Ouviu as mais velhas na roda,
levantou a postura e aumentou o volume de
sua voz. Foi o momento da presentificação do
poema de Conceição Evaristo que eu havia lido
na abertura da roda.
Gosto de pensar a roda, essa estrutura
circular de fala e escuta, como um conceito van-
guardista de arte e vida negras. A roda é uma orga-
nização geradora de desenvolvimento, de cura, de
beleza e de sentido. Diga-se: a capoeira, o jongo, o
samba, o Xirê, entre tantas outras manifestações
de artes negras, na roda é onde tudo começa.
Estando num Museu de Arte Moderna, que
representa historicamente diferentes vanguar-
das artísticas que pictórica ou filosoficamente 51
romperam com o passado ou com uma tradição
para alcançar novas ideias, as artes negras bus-
cam justamente na ancestralidade sua intuição
e seu entusiasmo, sua força. Esse movimento
nos faz lembrar que nossa história não começa
aqui: Sankofa.8

8. Um símbolo
que faz parte de
um conjunto
de ideogramas
chamados Adinkra,
representado por
um pássaro que
volta a cabeça à
cauda. O símbolo
é traduzido como
“retornar ao
passado para
ressignificar
o presente e
construir o futuro”.

52
CURADORIA ALÉM
DA PASSARELA:
ANÁLISE SOBRE
AS DIVERGÊNCIAS
TERRITORIAIS E
SOCIOCULTURAIS
ENTRE A ZONA SUL
E A ZONA OESTE
Thamires Siqueira
THAMIRES SIQUEIRA
tem 23 anos, é técnica em administração, graduada em
museologia e pós-graduada em arquivo e patrimônio.
Atualmente, coordena a área de patrimônio e assuntos
culturais no NOPH — Núcleo de Orientação e Pesquisa
Histórica de Santa Cruz. É especialista visitante em muse-
ologia na UFRRJ. Pesquisa museus, território e sociedade.
O Rio de Janeiro é considerado uma cidade diversa
devido à sua vasta extensão territorial e à sua
grande população, que se apresenta de diferentes
formas. Sabe-se que a identidade de uma socie-
dade se modifica de acordo com as influências e
características do território onde ela está inse-
rida, e isso se manifesta nas zonas que dividem
a cidade não só geograficamente, mas também
em estratos socioculturais. Ao analisar o trecho
da zona sul à zona oeste, é nítida a diferença em
diversos aspectos, principalmente no acesso a
direitos básicos como cultura, lazer, educação,
segurança, infraestrutura e transporte, que, por
sua vez, derivam do investimento do poder público
e não são distribuídos de maneira igualitária.
A zona oeste é a maior zona da cidade,
correspondendo a mais de 70% do Rio de Janeiro em
extensão territorial e com grande concentração
populacional. Mesmo assim, carece de investimentos,
que são mal distribuídos, prioritariamente aplicados
na zona sul e na região central, lugares que o poder
público enxerga com potencial cultural e turístico
e, por isso, concentra seu olhar. De acordo com
o Mapa da Desigualdade, isso colabora para que
a população com menos recursos financeiros se
reúna em bairros periféricos e tenha dificuldade
de acesso às fontes de cultura. Em 2020, entre
os 136 museus do município do Rio de Janeiro, 96
estavam na zona sul e no centro, e apenas 40 se
dividiram entre as outras zonas.
Santa Cruz, bairro da zona oeste onde
vivo, é um exemplo disso. Com mais de 450 anos
de história, foi palco para fatos de forte impor- 55
Fonte: Casa Fluminense, 2020.1

tância histórica nos períodos jesuítico e imperial.


Atualmente, é um dos maiores bairros da cidade,
tanto por sua extensão territorial de 125 km2, re-
presentando 10% da área total da cidade, como 1. Casa Fluminense,
por sua vasta população de 217.333 habitantes, Mapa da
desigualdade, Rio
segundo o Censo 2010. É considerado o terceiro de Janeiro, 2020,
bairro mais populoso do Rio de Janeiro, superado p. 41. Disponível
apenas por Campo Grande e Bangu. Mas, apesar em https://www.
casafluminense.
de tudo isso, se encontra à margem da sociedade
org.br/wp-content/
carioca, sendo o bairro periférico mais distante uploads/2020/07/
da região central, possuindo um dos mais baixos mapa-da-
desigualdade-2020-
índices de desenvolvimento humano da cidade e
final_compressed.
uma população majoritariamente de baixa renda. pdf, acesso em
Esses fatos contribuem para que hoje 26 out. 2023.

sua história não seja valorizada, o que não faz


dela menos importante. Precisamos incentivar
o reconhecimento dessa importância para que
os projetos consigam se manter, a história e os
patrimônios aqui presentes tenham seu potencial 56
cultural e turístico reconhecidos e saiam dessa
negação cultural e identitária em que vivemos,
realizando um resgate histórico-cultural em prol
da legitimação do território.
A negligência e o apagamento histórico
perante os bairros periféricos alcançam não só
Santa Cruz, mas diversas outras localidades. O
Rio de Janeiro é uma cidade dividida de maneira
geográfica e geopolítica. Diariamente precisamos
cruzar essas fronteiras para coexistir e habitar a
cidade que é nossa por direito, onde, independen-
temente de região e diferenças socioeconômicas,
encontramos fragmentos em comum que formam
um todo, que necessita de mudanças para que a
cidade funcione democrática e igualitariamente.
Esses reflexos sociais interferem na ma-
neira como a cultura se apresenta e é distribuída
nos espaços culturais, seja em museus, galerias,
praças, entre outros aparelhos culturais, que estão
concentrados majoritariamente na zona sul do Rio
de Janeiro. Ao acreditarem que parte da cidade
tem maior potencial turístico e não analisarem
o legado histórico-cultural das outras zonas, a
maioria dos estabelecimentos e investimentos
se concentram em uma só parte da cidade, a
zona sul e o centro, e as outras zonas são vistas
como não lugares.
Nos museus e galerias, ao observar quem
está representado nas obras e a equipe de traba-
lhadores que está por trás delas e faz este cenário
artístico funcionar, percebemos que a periferia
é quem produz, mas são os grandes centros que
coordenam. As comunidades são grandes potên- 57
cias de inovação e criatividade. Mas as pessoas
precisam sair de seus territórios para trabalhar
e executar suas funções, e isso muitas vezes faz
de seus lugares verdadeiros bairros dormitórios,
pois é preciso um deslocamento diário, e o retorno
à casa acontece somente para dormir. Assim, o
controle continua na mão dessas zonas “principais”,
o que é uma forma de manutenção de poder na
divisão social do trabalho; não podem perder o
posto que lhes foi atribuído, tornando a memória
e a cultura lugares de disputas sociais e políticas.
A curadoria perpassa essas dificuldades
ao tentar se inserir em outros territórios. Além das
lutas para conseguir investidores que enxerguem
o potencial e topem ter o risco de aplicar verba em
novos espaços, também é difícil para curadores
e artistas que vêm dessas regiões conseguirem
se consolidar e ser reconhecidos por seus traba-
lhos. É uma luta para tentar adentrar territórios
e grupos que se fecham entre si, negando o que
é novo, distante ou que traz outras perspectivas
que não sejam voltadas ao círculo social elitizado
desses polos. Isso sem mencionar os aspectos
raciais, de gênero e econômicos, os quais, para
pessoas como eu, mulheres pretas e pobres, se
tornam ainda mais difíceis ao tentar se estabe-
lecer no cenário de uma elite cultural.
O curador é visto como um papel de poder,
o dono do conhecimento e detentor da verdade.
A partir da sua visão moldam-se o olhar da expo-
sição e a história que será contada pelos objetos,
mantendo a hegemonia de determinado grupo
social e criando tendências a se seguir. Por isso, 58
a maior parte das grandes instituições ainda não
permite que novos curadores apresentem novas
visões e busquem colocar territórios diversos
como protagonistas nos espaços, furando a bolha
que lhes foi imposta durante tantos anos. Com a
maior porcentagem de curadores localizada nas
regiões centrais, eles têm medo de esse ciclo se
inverter, não querem perder o poder para enal-
tecer a periferia e vê-los no topo.
O que muitos não veem é o potencial que
lhes pode ser agregado ao inovar e trazer novas
experiências para esses espaços. As particulari-
dades vividas em cada território derivam em novas
formas de trabalhar, onde mesmo com poucos
recursos se constrói trabalhos incríveis que podem
contribuir para um novo viés curatorial. Podemos
aplicar os conhecimentos que aprendemos em
nossos espaços nos grandes museus, operando
a renovação de que necessitam para acompa-
nhar as mudanças da sociedade. Aproximando e
expandindo cada vez mais o público, tornando o
museu mais acessível e rompendo com o este-
reótipo elitista de um espaço sempre distante e
muito intelectual.
Outra dificuldade enfrentada pelos cura-
dores que buscam seguir um viés territorial é a
necessidade de cruzar toda a cidade em busca
de uma graduação para se especializar. Sou um
exemplo disso. A distância e as divergências en-
tre dois extremos, Santa Cruz e Urca, me fizeram
enfrentar diferenças sociais e acadêmicas em
busca de uma mudança social. Mas quando vol-
tamos, nem sempre conseguimos aplicar nossos 59
conhecimentos da forma como gostaríamos em
nossa localidade. Porque isso depende de outros
fatores, como políticas públicas que encarem
as dificuldades de trabalhar sem investimento
e estrutura para realizar atividades curatoriais.
As políticas públicas socioculturais são de
grande importância para equipamentos culturais,
instituições museais e de curadoria conseguirem
executar seu papel de maneira eficaz. Elas auxiliam
na implementação e manutenção dos direitos
culturais e de lazer que nos são garantidos pela
Constituição2, mas nem sempre aplicados de ma-
neira igualitária. Ao reconhecer e valorizar o legado
histórico-cultural essencial para a manutenção
da memória afetiva e coletiva de espaços, elas
permitem o acesso e a democratização da cultura
de maneira justa, a diminuição das desigualdades
e a ressignificação dos territórios considerados
como não lugares.
Nos subúrbios e periferias, as instituições 2. Ver o artigo 215
que resistem mesmo com dificuldades e lutam da Constituição
para conseguir realizar seus trabalhos educa- Federal de 1988,
disponível em
tivos e culturais para com a comunidade são
http://portal.
consideradas influenciadoras essenciais para iphan.gov.br/
o desenvolvimento local em diversos âmbitos. uploads/legislacao/
Constituicao_
Elas vão além da cultura e refletem em áreas
Federal_art_215.
como comércio, indústria e habitação, que se pdf, acesso em
mobilizam em prol da evolução e de benefícios 26 out. 2023.

para o território.
Ao analisar as vivências adquiridas durante
a residência Territórios Curatoriais, pudemos re-
pensar estes lugares, como se apresentam, quais
são suas dificuldades e seus atrativos. Conside- 60
ramos esses espaços — que foram delimitados
não só geográfica como politicamente — como
responsáveis pela criação de nossas comunida-
des, da identidade e da memória das pessoas que
os habitam e que merecem conhecer e executar
seu direito à cidade e aos seus espaços.
Ao vivenciar nossos percursos, seja pelo
transporte, para trabalho, estudo ou lazer, con-
seguimos observar as fronteiras que cruzamos
para conseguir adentrar e se estabelecer em
novos espaços. Podemos ver essas dificuldades
de deslocamentos como as diásporas da cidade,
como nomeamos no evento final da residência.
Elas representam a dispersão e a reinserção que
enfrentamos em uma cidade e em um país, tão
vastos e múltiplos, onde, mesmo com diferenças,
as comunidades conversam entre si, sendo fractais,
fragmentos semelhantes que complementam um
todo. Assim conseguimos nos reconhecer, identi-
ficar e se aproximar das vivências das trajetórias
de outras localidades.
Poder dar esta visibilidade e este protago-
nismo aos trabalhos comunitários é importante,
pois auxilia no autorreconhecimento de seu valor
através da educação patrimonial, essencial para
manter vivas a história e a memória dos territó-
rios. Ao trabalhar de maneira coletiva e afetiva,
todos criam um vínculo com a causa e reconhe-
cem a importância de passar esse legado entre
as gerações.
Observando as diferentes formas de
curadoria e sua aplicação nos espaços, pode-
mos analisar as mudanças ocorridas ao longo do 61
tempo, quebrando os paradigmas estabelecidos
pela sociedade e indo além em busca de nossos
objetivos. Com uma curadoria mais inclusiva,
igualitária e acessível a todos os públicos, en-
xergamos que, independentemente de nossas
trajetórias e territórios, mesmo distantes dessa
elite curatorial, todos temos potencialidades que
se complementam nessas funções. Seja no papel
de curador ou em outras áreas da cultura, devemos
pensar principalmente em quem queremos atingir
e na mensagem que queremos passar.
Com nossas influências, esperamos que
no futuro, após 75 anos de instituição, o MAM Rio
possa abrir seus horizontes, indo além da passa-
rela Paulo Bittencourt. E busque não só alcançar
novos territórios através de seus projetos e ex-
posições, mas também ser atrativo e acessível
para que pessoas, mesmo distantes social e
geograficamente, possam ocupar seus espaços,
seja buscando oportunidades de trabalho ou for-
mas de lazer. Esperamos que o museu permita às
pessoas que criem uma ponte que interligue de
maneira inclusiva uma ponta à outra da cidade, e
seja um espaço aberto a idas e vindas que formam
diferentes percursos territoriais.

62
REFERÊNCIAS
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na metrópole”, em BARBOSA, Jorge.
L. e outros, O novo carioca, Rio de
Janeiro: Mórula, 2012, pp. 151—163.

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políticas públicas de cultura no Rio de
Janeiro”, Revista Z. Cultural, 2015.

CANDAU, Joël, Memória e identidade,


São Paulo: Editora Contexto, 2021.

CARDOSO, Diego, Arquipélago sociomuseológico


regional: notas sobre a emergência de
um circuito de cultura e memória na
periferia carioca (tese), UFRJ, 2015a.

CARDOSO, Diego, “Espacialidades da museologia


e do turismo de base local na zona oeste
carioca (RJ): iniciativas, dinâmicas e desafios
de um movimento cultural emergente”,
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PAULINO, Osmar, Curar a metrópole,


Rio de Janeiro, 2020.

POLLICE, Fabio, “O papel da identidade territorial


nos processos de desenvolvimento local”,
Espaço & Cultura, n. 27, 2010, pp. 7—23.

SÁ, Teresa, “Lugares e não-lugares em

63
Marc Augé”, ARTITEXTOS, n. 3, 2006.
SAMPAIO, Alice; MENDONÇA, Elizabete,
“Democracia cultural, museu e patrimônio:
relações para a garantia dos direitos
culturais”, E-cadernos CES, n. 30, 2018.

SIQUEIRA, Thamires, Cultura para quem?


Reflexões sobre políticas públicas e direitos
culturais na zona oeste carioca (trabalho
de conclusão de curso), UNIRIO, 2021.

SOUSA, Sinvaldo do Nascimento,


“Potencialidades da zona oeste: projeto
sociocultural”, Anais do I Encontro Internacional
de Ecomuseus, Rio de Janeiro, 1992.

RODRIGUES, Carolina e outros (orgs), Festival


Margem Visual: performance periférica
na rede, Rio de Janeiro: Mó coletivo, 2021.
Disponível em https://issuu.com/mocoletivo/
docs/cat_logo, acesso em 26 out. 2023.

64
TECER NOVOS
CENTROS:
TERRITÓRIOS
CRIATIVOS EM
MOVIMENTO
Yuri Menezes
YURI MENEZES
é curador e pesquisador cultural. Cofundou o coletivo
SISC RUN e a Meio Fio Galeria. É formado no curso de
qualificação profissional em produção cultural pelo
Polo Educacional SESC. Desde 2015 desenvolve práticas
culturais no território da zona oeste carioca.
A criação de “novos centros” e a descentralização
dos espaços de arte e cultura na cidade do Rio
de Janeiro são impulsos que nascem em nossos
próprios territórios. É lá, nesses lugares, que as
histórias, as obras e os artistas ganham vida e,
por fim, convergem para o “centro”. Durante o pro-
cesso de construção do evento Fractais: contra
diásporas da cidade, os residentes não apenas
contribuem para a formação de narrativas, mas
também reafirmam suas origens, dando forma
aos espaços, promovendo o desenvolvimento e
fortalecendo o sentimento de pertencimento.
Este texto transcende a mera introdução,
é um manifesto de transformação. Ao mapearmos
com nossas ações um território que redefine o
papel do curador e do agente de mudança no
cenário das artes visuais, quebram-se os limites
impostos pelo mercado, pelas instituições e pelos
espaços artísticos tradicionais. Aqui, estamos
forjando um novo capítulo na história da curadoria.
No coração do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, onde fractais se entrelaçam com as nar-
rativas dos lugares que representam, emerge um
espaço de possibilidades, no qual os territórios
se conectam e as negociações entre passado e
presente engendram novas realidades.
Minha presença nesse espaço é um
capítulo contínuo na jornada das artes visuais
e da curadoria, originada nas periferias, muitas
vezes à margem do centro de poder da cidade,
em contraste com os espaços artísticos mais
convencionais. Trata-se de um ato de negociação
que transcende o espaço físico; é um convite 67
para expandir nossas perspectivas e reconhecer
a riqueza dos variados territórios culturais que
influenciam nossas experiências. É um chamado
para abraçar o que trouxemos de outras paragens
na construção do nosso próprio cenário artístico.
O conceito de curadoria de território é o
elemento central deste texto. Com ele, cada ação,
intervenção e obra simbolizam uma cuidadosa
negociação entre passado, presente e futuro
entre diversas experiências e perspectivas.
Durante os encontros da residência, tive a
oportunidade de conhecer um programa criado pelo
crítico e curador Frederico Morais em 1971. Naquela
época, ele ocupava a posição de coordenador de
cursos no MAM Rio e organizou seis edições dos
Domingos da Criação. Especificamente, o Domingo
do Tecido despertou meu interesse, levando-me
a investigar mais sobre essa terceira edição do
evento realizada nos jardins do museu. Naquele
encontro, foram disponibilizadas duas toneladas
de materiais doados por empresas têxteis, tais
como as Casas Pernambucanas, a Fábrica Bangu,
localizada em Bangu, bairro onde vivo há 31 anos,
e que carrega seu nome, e a Sudamtex.
Retalhos, sobras de seda, jérsei, malha,
brim, lã, telas e sacos de aniagem foram disponibi-
lizados ao público para que ele pudesse interagir
e criar livremente na área externa do museu. A
presença histórica da Fábrica de Tecidos Bangu
na trajetória do MAM Rio capturou minha atenção
e me impeliu a buscar uma compreensão mais
profunda do espaço criativo daquela época e nos
dias de hoje. Como curador de Bangu, atuando no 68
MAM Rio 50 anos após aquela atividade, senti a
necessidade de reexaminar a contribuição dos
territórios suburbanos cariocas, tantas vezes
empurrados à margem pelas dinâmicas de poder
estabelecidas.
Ao ultrapassar as barreiras que se erguem
na cidade e considerar a colaboração da Fábrica
de Tecidos Bangu, descobri uma conexão entre o
passado e o presente. Os rolos de tecido doados
para a atividade tornaram-se mais do que simples
materiais. Eles carregam as histórias de quem os
produziu, partes da cidade e vidas entrelaçadas.
Para a exposição Contracentro: cartogra-
fias do subúrbio, que integrou o evento Fractais:
contra diásporas da cidade, desenvolvi a ação/
obra Territórios de criação. Para além da simples
contemplação, a obra foi um instrumento para ex-
pressar como cada pedaço de território na cidade
possui o potencial de contribuir com habilidades
e trabalho na criação, construção e no debate em
torno da arte contemporânea, transcendendo os
limites dos subúrbios e periferias.
Ao trazer a referência histórica de Do-
mingo do Tecido para a residência Territórios
Curatoriais, desejo explorar a relação entre arte,
moda e territórios. Investigar como a presença
da antiga Fábrica de Tecidos Bangu influenciou a
identidade e a memória coletiva de sua região, e
como isso pode ser ressignificado artisticamente
nos dias de hoje. Com a ação/obra Territórios de
criação, pretendi estimular trocas entre os ar-
tistas convidados e o público, a fim de conhecer
melhor suas histórias e vivências relacionadas 69
ao pertencimento territorial. Minha intenção foi
criar uma obra/ação artística que não apenas
resgatasse a memória da fábrica, mas também
promovesse uma reflexão sobre o impacto social
dos espaços não formais de arte.
Territórios de criação consiste em uma
tela formada por fractais, camisas de algodão
brancas sobrepostas umas às outras, formando
um painel de dimensão 3,37 x 1,90 m em forma de
losango na cor vermelha, uma forma geométrica
encontrada na logomarca da fábrica. No interior
dessa forma, é reservado o espaço para convidar
artistas a intervir com sua técnica pictórica.
A obra foi originada na residência Territórios
Curatoriais, conectando a história do museu ao
longo dos seus 75 anos de existência ao território
onde está situado: a cidade do Rio de Janeiro. A
ação envolveu a geração de fractais em forma de
camisas, fragmentos da obra que foram doados ao
público. Ao trazer esses fractais para os espaços
do MAM Rio, além de moldar uma obra, buscamos
redefinir o próprio conceito de centro criativo.
Usar Territórios de criação como meca-
nismo e suporte de experimentação sugeriu uma
delimitação espacial e material para os artistas,
que eles poderiam ultrapassar apenas se neces-
sário. Com o setor de Educação e Participação do
museu que acompanhou onze curadores durante
a residência nas escutas e mediações com a
instituição, conseguimos a ocupação Fractais:
contra diásporas da cidade.
“Fractal é tecnologia ancestral. É uma fi-
gura geométrica produzida por meio de equações 70
matemáticas, nas quais o todo forma a parte e a
parte reflete o todo, assim como o todo traduz
a parte”, disse o curador residente JR Negão. As-
sim, abrimos espaço para mais de 24 artistas dos
mais variados segmentos das artes e da crítica na
cultura periférica contemporânea carioca. Além
de movimentar comércios locais, prestadores de
serviços e ateliês em nossos territórios.
Através de Territórios de criação, convidei
os e as artistas Cety Soledad, Mayra Karvalho e
Lolly a desenvolver e criar sobre esse suporte
obras construídas para contemplação, em uma
ação que se fragmentou, junto com as pessoas
que estiveram no salão de eventos no MAM Rio
no dia 23 de setembro de 2023.
A experiência de curadoria dessa obra/
ação nos permitiu vivenciar o cotidiano do ateliê
de Railda Maria. Além disso, revelou a vitalidade de
espaços como a Meio Fio Galeria, o Ghetto Colletive
e muitos outros espalhados pelo subúrbio carioca.
Esses locais abrigam a criação artística e servem
como pilares cruciais no desenvolvimento da cena
artística e do mercado fora do centro de poder da
cidade. Eles são os alicerces onde nossos pares
constroem novos espaços e oportunidades, ali-
mentando a riqueza das memórias e fomentando
uma infinidade de possibilidades.
Finalizo minha colaboração na residência
Territórios Curatoriais com agradecimentos à
mentora Carolina Rodrigues, aos meus pares Cesar
“The Cria” Oliveira, JR Negão, Gisele Nascimento,
Junior “IRA”, Paulo Oliveira, Cety Soledad, Mayra
Karvalho, Lolly, Vykthorya A. Barbosa, minha mãe 71
Andreia de A. Menezes e, em especial, ao meu avô
Alípio Menezes.
Pensamento positivo, energia criadora.

72
PRÁTICA E
PENSAMENTO A
CONTRAPELO
Jean Carlos Azuos
JEAN CARLOS AZUOS
é curador, pesquisador e educador. Atualmente, atua
como curador na Escola Livre de Artes ELÃ (Galpão Bela
Maré, Rio de Janeiro) e como curador assistente no
Museu de Arte do Rio (MAR). Doutorando no programa
de pós-graduação em literatura, cultura e contempo-
raneidade da PUC Rio, desenvolve pesquisas e práticas
em curadoria e educação na perspectiva contracolo-
nial, refletindo sobre as presenças negras, indígenas,
LGBT+ na composição política de outras cenas na arte
contemporânea. Em 2023, atuou como mentor na resi-
dência Territórios Curatoriais do MAM Rio.
Eu não tento liberar esses documentos
do contexto em que foram coletados,
mas tento explorar a superfície dessas
considerações para propósitos e consi-
derar a forma de resistência assumida
em um determinado contexto. Minha
tentativa de ler a contrapelo é talvez
melhor entendida como uma combinação
de pilhagem e desfiguração.1
Saidiya Hartman

Este texto esboça articular o pensamento curatorial


em suas complexidades e delicadezas, balbuciando
a discussão historiográfica da arte no Brasil, que
é lacunar, bem como sua própria construção de
sentidos e adensamento. As ausências e os va-
zios são instrumentos de uma efetivação crítica,
bibliográfica e até mesmo epistemológica sobre
a história da arte brasileira, e evidenciam a fragi-
lidade do campo curatorial e de suas incidências
ao longo do tempo.
O problema tem seu lastro nos acervos,
nos programas museais e nas publicações, es-
1. Saidiya Hartman,
feras que interferem diretamente nos estudos Scenes of
curatoriais e em seus agentes, pesquisadores/as Subjection, Nova
York, Oxford: Oxford
e pessoas interessadas em processos e inten-
University Press,
cionalidades curatoriais, aqui, e que, apesar dele, 1997, tradução
sempre ousaram se inventar, mesmo assumindo do autor.

como referência imediata o norte global.


As angústias caminham junto aos nos-
sos processos de formação, que modulam
historicamente as pesquisas e as tecnologias
dos estudos curatoriais. E, entre essas con- 75
formações, somos mobilizados a questionar e
entender o lugar da academia para a definição
e para um encaminhamento possível, uma vez
que os debates contemporâneos apostam nas
mais vastas perspectivas de pensar curadoria,
seus sentidos e práticas.
Se em algum momento em nossa história
os desafios eram a compreensão da curadoria
como um campo possível e a organização de
agentes, ferramentas e tarefas, hoje as dis-
cussões amplificam os debates e repertórios
que compõem a curadoria como profissão, mas
também enquanto gesto, poética e performance.
Estes, muito vinculados a políticas e partilhas que
consideram essa formação e seu adensamento
transdisciplinar, múltiplo e poroso.

Da adversidade vivemos, diria Oiticica, e


é portanto através também de esforços
coletivos e práticas inovadoras que o 2. Felipe Scovino,
ensino, a formação e a prática curatorial “Ser curador hoje
podem ser constituídos. Essas práticas no Brasil”, REVISTA
POIÉSIS, v. 16,
podem se configurar através de coletivos,
n. 26, pp. 35—40,
como relatei, ou através de meios que 2018. Disponível
não sejam apenas mostras em museus em https://doi.
org/10.22409/
ou galerias.2
poiesis.1626.35-40,
acesso em 21 set.
O pensamento curatorial hoje precisa 2023, p. 39.

revisar as negociações históricas e, sobretudo,


despir-se de suas violências, de modo que o
presente seja a superfície de elaboração para
a construção de futuros contundentes e funda-
mentados. Deve refletir gestos elásticos e amplos 76
de prática e pesquisa, ao passo que assume as
generosidades ao que se apresenta como dis-
cussão e suas insurgências.
É cada vez mais necessário que os concei-
tos e as matrizes do fazer curatorial desmanchem
os modelos ocidentais e se desassociem das
academias, apontando para outras perspectivas
genealógicas do campo e para metodologias,
práticas e pensamentos que articulem outros
traquejos, referências e temporalidades.

A perspectiva leva em consideração o


ponto de vista e o lugar de fala de quem
sofre as violências e a invisibilidade, na
vida e nas relações de trabalho, do campo
da arte, espaços onde se disputam nar-
rativas visuais e construções de imagens
que nos definem no mundo.3

3. Diane Lima,
É imprescindível assentar a ideia de que “Não me aguarde
somos um país em diáspora, de rastro colonial na retina”,
e segregação, e que são muitos os fractais que SUR — Revista
Internacional de
compõem nossas identidades, heranças e ances-
Direitos Humanos,
tralidades. E, por isso, uma crítica à curadoria e São Paulo (Rede
sua possível reformulação precisa estar atenta Universitária de
Direitos Humanos),
às diferentes biografias, geopolíticas, intersec-
v. 15, n. 28,
cionalidades, dissidências e outras centralidades. pp. 245—257, dez.
2018, p. 248.

A primazia do movimento ancestral, fonte


de inspiração, matiza as curvas de uma
temporalidade espiralada, na qual os
eventos, desvestidos de uma cronologia
linear, estão em processo de uma perene 77
transformação. [...] Nas espirais do tempo,
tudo vai e tudo volta.4

Não trivialmente caminhamos para a


reversão desses paradigmas a partir das pre-
senças e suas territorialidades em contexto,
refletidas e negociadas em recusa à supremacia
branca, classista, masculina, cisgênera e binária,
que muito contribui para as ausências de novas
reconfigurações, leituras e composições nas
artes visuais e na cultura brasileira.
Sedimentar caminhos para uma curadoria 4. Leda Maria
não colonial significa compreender que a produ- Martins,
“Performances do
ção de conhecimento tem suas ligações com a
tempo espiralar”,
estrutura como a sociedade se estabelece, se em Graciela Ravetti,
forma, e como esses aspectos se perpetuam Performance,
exílio, fronteiras:
nos diversos territórios. Logo, as referências
errâncias
que evidenciam as heterogeneidades nos inte- territoriais e
ressam para que também tenhamos a conso- textuais, Belo
lidação de outras perspectivas e implicações Horizonte: EdUFMG,
2002, p. 84.
estéticas e políticas no circuito e no desenho
da arte brasileira. 5. Milton Santos,
Metamorfoses do
espaço habitado:
Podem as formas, durante muito tempo, fundamentos
permanecer as mesmas, mas como a teóricos e
metodológicos
sociedade está sempre em movimento, a
da Geografia, São
mesma paisagem, a mesma configuração Paulo: Hucitec,
territorial, nos oferecem, no transcurso 1996, p. 77.

histórico, espaços diferentes.5

A curadoria precisa apostar nos movi-


mentos, em novas construções de paisagens e
nas suas alterações. Pensar o território em suas 78
especificidades, como analisa Milton Santos. Fun-
damentar a curadoria como projeto de pesquisa
e revisão historiográfica, de modo que ela nos dê
a possibilidade de compreensão ampla de uma
linguagem aberta aos diálogos e contatos com
quilombos, aldeias, zonas rurais, favelas enquanto
territórios singulares, de infinitas descobertas e,
sobretudo, de valiosas manifestações estéticas.
Terrenos estes que dão a ver a real produ-
ção da arte brasileira, desvelada nos cotidianos
das ruas, feiras, dos quintais, nas performances e
sonoridades dos terreiros, igrejas e dos ritos dos
povos originários, que contornam de sentidos a
produção material e imaterial, que costuram no
tempo práticas e visualidades insistentes.
A pergunta em ritornelo então é:

(...) Onde estão? Na historiografia da


arte brasileira, onde estão? Que arte é 6. Igor Moraes
essa hifenizada que parece à margem Simões, Montagem
fílmica e exposição:
de um outro território. Ainda, se aquela vozes negras no
arte é afro-brasileira, toda a outra seria cubo branco da
o quê? Seria uma arte euro-brasileira? arte brasileira
(tese), UFRGS,
Na arte, nos espaços institucionais, nas
2019, p. 265.
curadorias, nas escritas da crítica e da
7. Dados do
história da arte: Onde Estão os Negros?6
Instituto Brasileiro
de Geografia e
Pensar o Brasil como um território em Estatística (IBGE).

contexto revela que estamos partilhando de um


território-nação no qual 56,1% de sua população é
negra.7 E qual é a relação histórica dessa maioria
no campo da arte e da cultura? E da curadoria?
Interrogações e ponderações pertinentes, uma 79
vez que reconhecemos as relações de poder
inerentes a estes campos.
A produção cultural, artística e intelec-
tual negra no Brasil é notória, apesar de nossos
corpos estarem a carregar o fardo e as marcas
do racismo estrutural e do epistemicídio. Assim, o
lugar do negro na arte sempre esteve em xeque,
questionado, preterido e até mesmo reduzido.
Atravessado por violências sistêmicas, nossos
caminhos precisam resistir às armadilhas, discursos
fascistas, cooptação e fetiches escancarada-
mente disfarçados de promessas de visibilização,
protagonismo ou destaque.
"Ou seja, nossa tarefa é promover, no
tempo, imagens e reflexões que a colonialidade
tentou desfazer, nas quais o sonho e a realidade
não sejam mais dicotomias", reflete Marcelo Cam-
pos.8 Sonhos e realidades em que negros, negras
e negres possam ser-estar artistas, curadores,
8. Marcelo Campos,
pesquisadores, e seguir dando continuidade às “‘O freio da Blazer’,
travessias e composições de quem veio antes, a ‘cara da dura’:
de modo a inspirar tantas outras no porvir, co- notas sobre
itinerários entre
reografando entre os fractais contemporâneos
a cidade, a arte,
o impossível. institucionalidades
e ascendências
afro-brasileiras”,
Se fomos forjados em um sistema vio-
Arte & Ensaios,
lento, que nossas práticas respondam v. 28, n. 43, jan.—jun.
à altura: apontando fissuras; abrindo 2022, pp. 328—329.

espaços de diálogos; criando fluxos e


pontes, chances de nos olharmos nus/
nuas e por outros ângulos; desafiando
o poder de quem/quens historicamente
esteve no poder de definir, de curar. E, 80
assim, forjando outros sentidos, mais ho-
nestos e diversos, que disputam com as
hierarquias do projeto moderno colonial
de saber, de poder e ser.9

Das respostas bonitas e desafiadoras


deste tempo, está o programa Territórios Curato-
riais do MAM Rio, que firma a possibilidade dessa
experiência, e a coragem de lançar novas palavras,
gestos e pensamentos sobre os debates institu-
cionais em torno da curadoria, e seus diálogos com
outros territórios, centralidades e presenças, a
compreender a arte e seus intermeios de modo
amplo e alargado de sentidos.
Programa de residência em curadoria
que oxigena e desloca, nos encontros e nas
provocações, novas possibilidades de projetar
coletivamente futuros porosos e férteis para a 9. I. S. da Silva e J.
curadoria, e isso se espelha nas insurgências ter- C. de S. dos Santos,
“Galpão Bela
ritoriais, no programa de formação e nos desejos Maré: sentidos e
e urgências de repensar horizontes e estratégias práticas curatoriais
para a arte e para a vida. urgentes”,
REVISTA POIÉSIS,
v. 21, n. 35, 2020,
p. 78. Disponível
em https://doi.
org/10.22409/
poiesis.v21i35.40411,
acesso em 5
ago. 2023.

81
ENXERGAR AS
MULHERES COMO
O INÍCIO DE TUDO
Aymée Godoy
AYMÉE GODOY
tem 18 anos e é moradora da Vila da Penha, zona norte
do Rio de Janeiro.
Quando me inscrevi para a residência Territórios
Curatoriais do MAM Rio, não imaginava que seria
uma experiência tão enriquecedora e refrescante
como foi! Eu tinha acabado de terminar o ensino
médio, estava procurando emprego ou uma fonte
de renda para movimentar minha vida, não tinha
conseguido passar na universidade, estava com
medo do meu futuro e extremamente desanimada
para começar algo novo. Naquele momento, es-
tava enquizilada, porque tinha a sensação de que
estava muito à deriva, sem saber direito para onde
ir ou o que fazer, como se eu fosse uma pequena
ilha no meio de um oceano imenso.
Eu entrei no MAM sem nem saber o que era
curadoria e, justamente por isso, achei que não
iria conseguir. Na minha cabeça, era muito distante
a ideia de eu, Aymée, uma garota de 18 anos, que
sabe tão pouca coisa da vida, entrar em um lugar
tão grande, com pessoas tão grandes, que estão
acostumadas a fazer e ver coisas tão grandes.
Tinha momentos até que eu me questionava, já lá
dentro: "Será mesmo que eu estou no lugar certo?
Para onde será que os Ọrişas me trouxeram? Eu não
entendo quase nada do que esse povo fala. Eles
falam difícil, com palavras que eu nem conheço".
Mas com o tempo percebi que estava exatamente
onde deveria estar, e que assim como as outras
pessoas, eu também tinha o que agregar no museu.
Sempre pensei nos museus como lugares
extremamente inacessíveis por causa da con-
centração no centro ou na zona sul, pelo preço
de alguns e pelas artes expostas que, muitas
vezes, não conversavam com os meus interesses, 84
minhas vivências e/ou meus repertórios. É que,
tipo, as exposições nas quais eu tive a oportu-
nidade de ir eram muito legais, interessantes e
enriquecedoras, mas, grande parte das vezes,
sentia que faltava o tchan, tá ligado? Algo que
realmente me interessasse, algo com que eu
me identificasse de fato. Às vezes, sinto que
as exposições seguem um padrão, que têm o
objetivo de atingir e agradar um único público: a
galera branca, mais velha, moradora da zona sul.
E mesmo quando a exposição é voltada para um
outro grupo de pessoas, a maioria delas acontece
em instituições que estão localizadas no centro
ou na zona sul. Então, se eu moro em Sepetiba
e tem uma exposição que me interessa no MAM
Rio, eu teria que fazer uma viagem demorada e
custosa para ir até lá.
Dito isso, eu entrei na residência com o
desejo de tentar deixar o museu mais amplo e demo-
crático, tá ligado? Óbvio que eu não tenho a capaci-
dade de mudar o museu de lugar, ou espalhá-lo pelo
Rio de Janeiro, mas gostaria de trazer exposições ou
eventos que tocassem pessoas com idades, vivência
e origens diferentes. E aí, pensei em abordar algo do
mundo da música, porque, para mim, a música tem o
poder de conversar com a alma de todas as pessoas
e sintonizá-las em uma única dança, independente-
mente de qualquer diferença entre elas. Mas além da
música, pensei em discutir o lugar da mulher preta
no processo de criação da sua arte, porque não faz
sentido, para mim, escrever um texto para um lugar
tão grande como o MAM sem botar a mulher preta
em evidência. 85
A figura da mulher preta sempre foi muito
presente na minha vida — e com "figura da mulher
preta" me refiro à minha mãe, que é a mulher que
ensinou tudo o que sei hoje, à minha iyalorixá,
minhas irmãs, minhas tias, minhas primas, minhas
amigas, minhas professoras, minha mãe Oyá, e até
ao meu cargo no candomblé, que é referente a
figuras femininas — e acredito que o ser feminino
é o início, o meio e a continuação futura de todas
as coisas.
Uma vez minha ìyá me ensinou que Oşun
criou a água com reflexo para que toda vez que
ela fosse se banhar, a primeira coisa que ela
visse fosse sua imagem, e assim passasse a se
enxergar como um ser sagrado, o ser capaz de
povoar o mundo. Por ter o dom da fertilidade, Oşun
nos ensina a enxergar as mulheres como o início
de tudo. E não tá errada. Assim, suas filhas e as
pessoas que cultuam sua energia carregam con-
sigo o poder da estratégia e a divindade feminina,
algo muito além desse tal "encanto" que o povo
do candomblé cisma em resumir Ọmọ's ty Oşun.
Quando recebi meu cargo no candomblé,
a ideia da divindade feminina se fortificou. No meu
cargo, eu lido com as Iyamis (não só com elas,
mas principalmente com elas), três entidades
femininas que guardam o segredo da criação do
mundo. E quando fui escolhida para exercer esse
cargo e lidar com elas, comecei a pensar de uma
maneira mais matricentral e aprendi que isso vai
além de ser mãe. Por exemplo: em África, há o
entendimento cultural de enxergar a ìyá (mãe)
em uma posição socialmente e espiritualmente 86
importante, e isso não se limita somente às mães
que geram uma criança, mas se estende, inclusive,
às mulheres que criam algo estético/cultural. Por
exemplo, em Igbeti, cidade na Nigéria, acontece
um festival anual para Ìyámàpó, divindade femini-
na responsável por moldar sua prole com beleza
e cuidado. Ìyámàpó é considerada a divindade
tutelar das artesãs, ceramistas e tintureiras, por-
que, assim como ela, as pessoas (principalmente
mulheres) que exercem essas profissões também
são vistas como ìyá (mãe), já que, de certa forma,
nasce algo lindo delas, suas artes.
Pensei que seria bom montar uma roda
de conversa com artistas mulheres para discutir
os diversos significados de mãe partindo do prin-
cípio yorubá. Perguntar se elas já conheciam esse
conceito, como se sentiam diante disso, como o
processo criativo delas se formava e de que maneira
era influenciado pelo território em que elas vivem.
A roda foi pensada e desenvolvida por Rosemeri
Conceição, que é graduada pela UERJ e mestre
pela USP em história, professora de artes visuais da
Escola de Artes Visuais do Parque Lage e pesquisa-
dora da vestimenta masculina dos homens pretos
do século XX, e por mim, Aymée Godoy, estudante
e, agora, curadora pelo Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro. As convidadas foram Azula, cantora,
ativista e pesquisadora da música negra; Tayná Uràz,
fotógrafa e artista visual, filmmaker e pesquisadora;
Azizi Cypriano, artista e pesquisadora licenciada
em artes; e Juliana da Conceição Pereira, que tem
graduação, mestrado e doutorado em história, é
uma das idealizadoras do podcast Atlântico Negro 87
e autora do livro A era do maxixe: a história social
de uma dança nacional (1870—1930).
Como filha de uma mulher de Oşun, sem-
pre aprendi com ela que sou capaz de conquis-
tar qualquer coisa com paciência e estratégia.
E isso me lembra muito o conceito de nakoada,
que aprendi em uma das palestras do MAM, com
Beatriz Lemos. Basicamente, nakoada é uma es-
tratégia de guerra do povo Baniwa que consiste
em observar e aprender os costumes do seu ad-
versário para assim achar formas de permanecer
no mundo. Legal, né? Descobrir a curadoria como
uma estratégia de educação também foi lindo.
Ver que a curadoria se desdobra em estratégias
de ensino, de mercado, de crítica, de inclusão, de
oportunidade e de pertencimento foi ótimo, um
divisor de águas para mim, porque, como disse,
entrei sem nada saber sobre curadoria.
O texto está chegando ao fim, e devo con-
fessar que o processo de criação dele não foi nada
fácil, mas eu juro que veio do coração e eu tentei
botar o máximo da minha essência aqui. Inclusive,
esse foi um dos motivos pelos quais eu optei por
escrever com uma linguagem mais simples, e fazen-
do uso de algumas (poucas) gírias. Queria que este
texto fosse absorvido de forma leve e por quem
quer que tenha acesso a ele. Outro motivo é que
durante o convívio com o pessoal da residência,
percebi que às vezes eles falavam de assuntos
simples usando palavras meio complicadas, tá li-
gado? E eu até conseguia compreender o assunto,
mas ficava meio desanimada para falar. Não sei se
era porque elas eram mais velhas e experientes do 88
que eu, ou mais acadêmicas, e por isso sentiam a
necessidade de passar um ar mais sério e profis-
sional, até mesmo por causa do ambiente. Ou talvez
era algo completamente natural adquirido com o
tempo, com a vivência e a convivência com seus
similares, assim como meu jeito de falar.
Obrigada, equipe do MAM, pela oportuni-
dade, pelo cuidado e carinho. Foi uma experiência
ótima e enriquecedora. Entrei nessa residência
muito de cabeça e me senti superacolhida e
amparada pelos mentores. Apesar de ser muito
introvertida, isso não me impediu de desfrutar o
máximo dessa experiência maravilhosa. Encerro
essa residência com uma visão de mundo mais
rica do que quando entrei, e sou grata por isso.

Até!
Àşé para todos!

89
CORRESPONDÊNCIA
MODULAR
Lucas Magalhães
LUCAS MAGALHÃES
26 anos, cursa licenciatura em artes visuais na Uni-
versidade Estadual do Rio de Janeiro. É formado em
direção de fotografia pela Academia Internacional
de Cinema e em direção cinematográfica pela Escola de
Cinema Darcy Ribeiro. Atua na área de fotografia e
vídeo, principalmente como diretor de fotografia em
videoartes, documentários e curtas-metragens, e é
cofundador da produtora audiovisual Três Marias Fil-
mes. Atualmente faz parte do grupo de extensão Arte
e Afro Brasilidade do Instituto de Artes da UERJ (IART),
coordenado pelo professor e curador Marcelo Campos.
01.
homens pretos em cavalos
meninos pretos em motos

05. Enquanto ainda é possível se locomover


pela cidade
deixo minha vida nas mãos de motoristas (ônibus-
-metrô-trem-BRT’s) e durmo no caminho enquanto
ainda é possível se locomover pela cidade me in-
filtro nos espaços e não me atraso não reclamo e
ainda concordo e enquanto ainda é possível faço
concessões seguindo a lógica de uma falsa equa-
ção de troca: + concessões x + deslocamentos
territoriais compulsórios = + trabalhos e inserções
no meio da arte e enquanto é possível me visto
bem para garantir boa impressão converso com
aquela com a qual não queria aposto no sorriso e
simpatia para que se torne sustentável ainda se
locomover um pouco mais pela cidade e apertar
a mão do curador-de/colecionador-de/ e sigo
enquanto ainda é possível fingir naturalidade e
costume ao visitar apartamentos e galerias na
zona sul

27. a câmera fotográfica teve sua origem em 12


de outubro de 14921
1. Isto é uma
proposição de
03. os fractais são objetos matemáticos que Ariella Azoulay.

descrevem formas irregulares infinitamente


complexas, mas que são invariantes por uma
transformação de escala.

92
04.
uma imagem não violenta é uma profecia.

08. e quando não for mais possível me locomover


e coreografar o não cansaço e a não ansiedade
serei enfim engolido pelo tempo?

09. a Sofia me disse que a Mari disse para ela que


toda vez que ela (Mari) se sente ansiosa, ela (Mari)
balança as duas mãos num gesto mágico que con-
verte ansiedade em alegria.

02. isso não é uma narrativa de superação.

00. paradoxal.

90. se nos perguntarmos sobre a possibilidade


de encontrarmos a plasticidade da memória
preta, iremos nos deparar com a impossibilida-
de da representação em totalidade de nossos
corpos e com essa impossibilidade se derruba
toda a construção da modernidade sobre nossa
subjetividade.

01. quintal de casa.

04. Contra as diásporas da cidade


… que o acontecimento da residência Territórios
Curatoriais no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro me fez ter acesso e conhecimento ao
funcionamento do sistema de arte contemporâ-
nea em grande escala. Que as palestras e aulas
que tive nesse período me abriram os olhos para 93
novos entendimentos. Que os colegas e amigos
que encontrei nesse período me marcaram de
formas variadas e ricas. Que a percepção de que
corpos pretos e periféricos unidos podem mover
e desbalancear a máquina de produção da arte
me faz ter força para continuar a me locomover
incansavelmente. Que, por mais que os nossos
passos pareçam pequenos, eles são enormes.
Que os nossos saberes são incontáveis. Que a
nossa forma de construir e produzir com poucos
recursos nos mantém estratégicos. Que a nossa
urgência em construir e produzir faz com que nos-
sa construção e produção nunca seja mediana…

83. meninos pretos em suas motos reencenam


imagens além-do-tempo.

20. Cesar Bahia esculpindo orixás em seu ateliê e


fugindo pra mata quando tentam convencê-lo de
ir à abertura de sua própria exposição é o que eu
chamaria de pensamento negro radical.

10. inúmeras negações decisivas?

51. o sistema de arte (como o conhecemos) teve


sua origem em 12 de outubro de 14922
2. Isto é uma
06. cada parte de um fractal é semelhante ao seu proposição minha.

todo. Suas equações são utilizadas para descrever


fenômenos que, apesar de parecerem aleatórios,
obedecem a certas regras — como o fluxo dos rios
e a violência policial.
94
53. um curador e uma grife de roupa deveriam ser
coisas diametralmente opostas.

10. “A questão é: e o que você vai fazer quando


chegar lá? Quais pessoas estarão do seu lado
quando você chegar lá?”3

77. diversos fios narrativos que se recusam a se


encontrar e/ou resultar em alguma espécie de
conclusão e/ou associação. E, aqui, não falo sobre
antinarrativa ou sobre modernidade.

50. que grande parte do que compõe o sistema de


arte segue uma lógica de especulação e escassez.

30. se eu olhar para o passado posso anotar e


esquecer.
3. Questionamento
proposto por
31. ULTRAVIOLÊNCIA Shion durante
alguns de nossos
encontros. “Lá” se
07. fome de mundo. refere ao não lugar
promovido pela
03. isso é uma narrativa de revingânça. institucionalização
e cooptação
de corpos
07. Autoficção dissidentes pelo
Pessoas brancas que constituem A Norma (isto sistema de arte
contemporâneo.
é um termo de Jota)4 e garantem a manutenção
dessa mesma Norma nos olham com um olhar 4. Jota Mombaça.

viciado em ficções predatórias, nos colocando


a partir da visão delas em lugares ficcionais pré-
-concebidos de violência e raiva. Se sou visto o
tempo todo como um corpo-violento, o que me
resta além de assumir essa violência e abraçá-la, 95
vestir o corpo ficcional que me foi criado? O
completo oposto?
O paradoxo reside no fato de que a desobediência
e a renúncia total de um lugar pré-concebido de
violência e raiva são justamente a anulação total
da mesma violência e raiva que nos capacitam
potenciais de ação e reação. Uma armadilha que
nos enquadra no lugar da violência ao mesmo
tempo que nos tira todo potencial de ação que
essa mesma violência poderia trazer para nós.

26. O Jazz preto é o constructo mais sofisticado


da história da arte e com ele é possível realizar
movências através do tempo.

27. viagens no tempo existem e podem ser realiza-


das através do Jazz preto/da literatura de ficção
especulativa feita por mulheres pretas/do barulho
de movimento dos navios/do cinema.

29. a fotografia é um caminho para falar de vida

31. todo filme autoral é uma carta.

01. os debates de transparência/opacidade são


resolvidos ao olharmos demoradamente qualquer
pintura de Arorá.

00. belo é tudo aquilo que se olha demoradamente

01. toda carta é um segredo

-00. arte e cura são coisas distintas 96


01. todo segredo é uma imagem

00. busco aqui aos poucos rascunhar/desenhar


e, por fim, declarar uma encruzilhada no texto. Me
cabe lembrar, como bem sabe, que encruzilhadas
nunca são binárias. Justamente por isso, não me
sinto no dever de apresentar e cantar aos ventos
lugares-possíveis, pois isso iria cooperar (nova-
mente, como bem nos ensina Jota) em criações
de desejos projetivos. E estes são facilmente
cooptados pelos mesmos que sempre dominaram
a arte da cooptação. O roubo sistemático de me-
mória e de sonho faz parte de um design-global
colonial violento e paradoxalmente antiviolência.

Talvez seja mais sábio projetar futuros apenas


em orações e cantos baixos

escrevo aqui em sussurro.

01.
homens pretos em cavalos
meninos pretos em motos

97
O QUE QUEREM AS
MULHERES ARTISTAS:
REFLEXÕES SOBRE
IMAGENS E AFETOS
NA AFRODIÁSPORA 1
Rosemeri Conceição
ROSEMERI CONCEIÇÃO
é doutoranda do programa de pós-graduação em artes
visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mes-
tre em história social pela Universidade de São Paulo
e graduada em história pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Investiga o protagonismo negro, o
racismo e as representações negras com ênfase nas
tramas entre artes visuais, cultura e identidades negras
na diáspora africana. Foi curadora residente da Escola
de Artes Visuais do Parque Lage.
Há alguns meses adquiri mais um livro de Beatriz
Nascimento. Devorei O negro visto por ele mesmo
(2022) como se fosse quadrinhos. Transformei em
curso, palestra e, agora, enquanto escrevo este
1. Agradeço
texto, visito-o novamente. Dessa vez, quero contar
imensamente aos
uma história que abre para mim novos caminhos mentores Lais
de interpretação. Daflon e Jean
Carlos Azuos pela
Durante uma longa entrevista transcrita
troca sensível,
no livro,2 Beatriz Nascimento conta que, quando cuja escuta e
pequena, usava o cabelo bem rentinho à cabeça indicações foram
e, por conta disso, a molecada da rua a chamava fundamentais
para a conclusão
de João. As provocações aconteciam todas as
deste texto.
vezes que ia à escola ou saía pela região para fazer
2. Beatriz
algo que lhe fora solicitado. Em um desses dias,
Nascimento, O
uns rapazes e homens já feitos jogavam bola e, negro visto por ele
quando ela passou, a puseram numa roda e levan- mesmo: ensaios,
entrevistas
taram sua saia, segundo eles, para ver se ela era
e prosa, São
menina ou menino. O episódio ocorrido em 1954 Paulo: Ubu, 2022,
foi recuperado em sua memória quase trinta anos pp. 136—137.
depois com facilidade e narrado com expressões 3. bell hooks,
como “era uma tortura” e “era um horror”. “Vivendo de
O relato da pensadora está em confluência amor”, trad. Maísa
Mendonça, em
com um conjunto de testemunhos semelhantes
Portal Geledés,
que povoam a infância de mulheres negras em disponível em
diferentes partes das Américas e que, mais recen- https://www.
geledes.org.
temente, vêm sendo cuidadosamente analisados.
br/vivendo-de-
Todos e todas devem lembrar da história amor/, acesso
resgatada por bell hooks,3 em que a pequena em 29 set. 2023.

Kesho Scott, na escola, teve sua cabeça enfiada


em um vaso sanitário pelas garotas brancas que
se sentiram afrontadas. O importante a frisar
nessas situações é o peso que as vítimas, no
caso as meninas, conferem à resposta dada 100
pelos seus responsáveis: Beatriz Nascimento
pôde contar com a ação de um pai que saiu pela
rua enfurecido e “colocou todos os garotos para
correr”; a pequena Kesho Scott não recebeu nem
um abraço de sua mãe.
Com esses exemplos, fica mais do que insinu-
ado uma possível abordagem que desloca a atenção
do campo da violência e do trauma para localizá-la
nas cumplicidades e afetos que deles decorrem.

O AMOR, OS HUMANOS E OS OUTROS


A primeira vez que empreendemos uma leitura
mais complexa sobre o lugar destinado ao amor
entre as pessoas escravizadas foi nesse texto
citado de bell hooks, “Vivendo de amor”. Em pou-
cas páginas, ela visita personagens da literatura,
memórias de infância e imposições históricas para
levantar hipóteses sobre a repressão das emoções
como uma importante chave para a sobrevivência.
Depois, reflete sobre o impacto dessa repressão
na percepção das mulheres negras como seres
merecedores de amor. Passeia ainda pelas confli-
tuosas relações familiares, muitas delas constru-
ídas a partir de um espelhamento das violências
sofridas no cotidiano.
Sobre o processo de escravização ela afirma:

Nossas dificuldades coletivas com a arte


e o ato de amar começaram a partir do
contexto escravocrata. Isso não deveria
nos surpreender, já que nossos ances-
trais testemunharam seus filhos sendo 101
4. bell hooks,
vendidos; seus amantes, companheiros,
“Vivendo de
amigos apanhando sem razão. Pessoas amor”, trad. Maísa
que viveram em extrema pobreza e foram Mendonça, em Portal
Geledés, disponível
obrigadas a se separar de suas famílias
em https://www.
e comunidades, não poderiam ter saído geledes.org.
desse contexto entendendo essa coisa br/vivendo-de-
amor/, acesso
que a gente chama de amor. Elas sabiam,
em 29 set. 2023.
por experiência própria, que na condição
de escravas seria difícil experimentar ou 5. Patricia Hill
Collins, Pensamento
manter uma relação de amor.4
feminista negro:
conhecimento,
O que a autora descreve está em total consciência e
a política do
acordo com o projeto colonial que, durante a
empoderamento,
escravização, se impôs através de um cons- trad. Jamille
tante subjugo do corpo e do apagamento da Pinheiro Dias, São
Paulo: Boitempo,
humanidade do escravizado. E, séculos depois,
2019, disponível em
ainda buscou manter-se intacto na passagem https://edisciplinas.
e/ou na criação de signos que transmitem para usp.br/pluginfile.
o corpo negro. php/7502851/
mod_resource/
A partir dessa perspectiva, pesquisas content/0/COLLINS_
como a de Patricia Collins5 localizam imagens de Pensamento%20
controle utilizadas para definir os locais sociais feminista%20
negro%20
usuais para as mulheres negras. Um conjunto de
conhecimento%2C
arquétipos, entre eles, o da mulher negra cheia de %20consciência%20
filhos, que sobrevive à custa da ajuda do governo; e%20a%20
política%20do%20
a mulher-forte e infalível que carrega a família
empoderamento.
nas costas; a jezebel, muitas vezes um modelo de pdf, acesso em
mulher inconsequente. No Brasil, este último foi 6 out. 2023.

associado às mulheres negras de pele mais clara


que construíram carreira como dançarinas. Por
último, a mãe preta, símbolo das antigas amas
de leite, um elemento de sustentação familiar e,
algumas vezes, símbolo de passividade. 102
Contudo, o cruzamento de tais leituras
permite outras aproximações. Ao identificar
no amor uma hipótese de trabalho, bell hooks
subverte um importante paradigma colonial que
estabeleceu na racionalidade uma de suas bases
de sustentação e impôs para a vida acadêmica o
afastamento entre o pesquisador e seu objeto.
Por conseguinte, a proposta da autora
também abre novas possibilidades metodológicas
que investigam o impacto da presença e retomada
da afetividade por meio da elucubração artística.
Recentemente chegou às livrarias brasi-
leiras o livro A arte dos mundos negros, da histo-
riadora da arte Anne Lafont.6 No texto ela localiza
um potente conjunto de práticas artísticas como
o elemento que, criado a partir do continente
africano e de suas ramificações afrodiaspóricas,
foi capaz de impedir que as pessoas escravizadas
fossem totalmente desumanizadas.
Os meses de residência no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro acrescentaram
a estas observações teóricas outros questiona-
mentos. Chama atenção a maneira como homens
e mulheres artistas se comportam com o poder
de refletir sobre a prática artística e, principal- 6. Anne Lafont, A
arte dos mundos
mente, frente à possibilidade de ocupar lugares
negros, Rio de
sociais e criativos que antes lhes eram interditos. Janeiro: Bazar do
O relato de pessoas que também questionam o Tempo, 2023.

locus enunciativo eurocêntrico ampliou minhas


percepções sobre as estratégias diferenciadas
que diferentes grupos têm utilizado nesses es-
paços para se contrapor ao projeto colonial de
desumanização e aniquilamento. 103
Defendo que um grupo cada vez mais ex-
pressivo de artistas brasileiras das artes visuais
contemporâneas tem empreendido dois movimentos
fundamentais. De um lado, ratificam e retomam
a posse de seus corpos para invocar sua huma-
nidade: corpos de mulheres negras, marcados
pela brutalidade e ingerência coloniais. De outro,
tomam para si o direito de falar7 para enfatizar e
reivindicar, através dele, a performatividade de
sua fragilidade, sensibilidades, amores e afetos.
Indo além, sugiro que esse segundo movimento
possa ser visto como um importante matiz da
recente produção artística afrodecolonial. 7. Gayatri C. Spivak,
Pode o subalterno
falar?, trad. Sandra
AS POÉTICAS Regina Goulart
Almeida e outros,
Belo Horizonte:
Para respeitar os limites desse espaço, vou analisar
UFMG, 2010.
com mais vagar poucos casos, mas que poderiam
ser ampliados a muitos outros, uns mais antigos, 8. Beá Lima,
“Gente, fauna e
outros recentes, todos dispersos no imenso flora costuradas
território nacional. Em ordem cronológica, para nas obras de
aguçar como essa temática tem estado presente, Rosana Paulino”,
El País, disponível
recorro a duas reivindicações históricas de amor
em https://brasil.
e humanidade, encontradas em Rosana Paulino e elpais.com/
Renata Felinto. brasil/2018/12/04/
politica/1543935616
Voltemos ao ano de 2018. Com um sorriso
_350093.html,
amplo no rosto, a artista Rosana Paulino concede acesso em 22
entrevista ao El País para falar sobre suas obras em set. 2023.

exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo.8


Dos 25 anos de carreira, sobressaem inquirições
que através das artes questionam as falácias das
pseudociências, a escravização e o conjunto de
representações dali advindo. Entre estas, está 104
Assentamento, instalação realizada por meio de
impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo,
costura, bordado, madeira e paper clay.
Segundo Paulino, a obra se concentra na
reflexão do sequestro da cultura de africanos e
africanas que, apesar disso, conseguiram recons-
truir-se, mas seguiram com marcas. Sobre uma
fotografia de Louis Agassiz (1807—1873), temos a
sobreposição de um coração e um útero, na cor
vermelha incandescente.
No ano anterior, Renata Felinto também
havia retomado o amor como tema. Desta vez para
referir-se a uma das antigas imagens de controle,
utilizadas para ferir e coisificar: as amas de leite.
A performance Axexê da negra ou o descanso
de todas as pretas que mereciam ser amadas
se constitui como uma crítica mordaz à maneira
como a arte do Brasil está construída. Um convite
a revermos as noções de objeto e sujeito que
dividem as representações na história da arte
brasileira. O leite negro, como era chamado pela
literatura, é a fronteira mais cruel de utilização
dos corpos, pois permite a quebra do que o pró-
prio cristianismo define como sagrado: ágape, o
amor supremo que liga mães e filhos. As imagens
textuais da performance podem ser lidas a seguir:

A performance enterra as negras re-


gistradas em fotografias e imagens nas
quais repousam instantâneos de vida
que, assim como “A Negra” [de Tarcila
do Amaral], possuem olhares perdidos
no vazio, vidas raptadas e violentadas 105
das mais brutais maneiras possíveis de
se imaginar. Enterramos essas mulheres
que mereciam ser amadas em corpos/
almas, juntamente com os estereótipos
9. Renata Felinto,
construídos/fortalecidos a partir do uso
“Axexê da negra
das imagens do/a/s negro/a/s, como ele- ou o descanso de
mentos decorativos nas casas das famílias todas as pretas
que mereciam
tradicionais brasileiras detentoras da
ser amadas”, em
riqueza/dinheiro deste país. Enterramos o portal do CCSP,
modernismo enquanto o mais importante s.d., disponível
momento das artes visuais no Brasil. Num em https://
centrocultural.
movimento antropofágico, devolvemos à
sp.gov.br/axexe-
terra simbolicamente essas imagens, terra da-negra-ou-o-
na qual pisamos e que nos devolve vitali- descanso-de-
todas-as-pretas-
dade, energia e crença na continuidade.9
que-mereciam-ser-
amadas/, acesso
Também trabalhando com imagens canôni- em 6 out. 2023.

cas temos Silvana Mendes. A artista do Maranhão 10. Monica Cardim,


construiu intervenções sobre as fotografias pro- Identidade branca
duzidas nos diversos ateliês de Alberto Henschel e diferença negra:
Alberto Henschel
(1827—1882). Coube a este empresário alemão a e a representação
construção de grandioso acervo de represen- do negro no Brasil
tações para atender a uma procura por imagens do século XIX
(dissertação), USP,
tipificadoras, adequadas ao colecionismo de
2012, disponível
caráter etnoantropológico, ferramenta de viés em https://doi.
imperialista que teve lugar na Europa.10 org/10.11606/
D.93.2012.tde-
Esse conjunto de imagens, agora mediado
01072014-123956,
por colagens digitais, novas fotografias e lambes, acesso em 6
é redimensionado pela ótica do embelezamento out. 2023.

e do afeto. O resultado é uma série de imagens


em que o afeto e o carinho se fazem presentes
desde a descrição, dada pela artista, de “afe-
tocolagens”, construindo narrativas visuais de
negros na fotografia colonial.11 106
As tessituras poéticas do amor entre as
mulheres negras são o tema principal da artista,
aquarelista, educadora e ilustradora baiana Ani
Ganzala,12 cujas obras, expressas em desenhos,
aquarelas e grafites, têm sido grafadas através
de expressões como resistência pelo amor, pelo
afeto e pelo coletivo. Em entrevista ela indicou
que percebe a existência de um sistema forjado
para nos afastar do autoamor, lido como auto-
valorização, e consequentemente do afeto ao
outro, sejam eles nossas companheiras e nossos
companheiros. Esta é a temática da aquarela
sobre papel de algodão, Afroindígena, de 2014.

CONCLUSÃO
11. “Silvana
Como concluir um trabalho que ainda está alicer-
Mendes”, site
çado em perguntas? Talvez seja melhor afirmar da galeria Vilas
que esse é apenas o primeiro passo no sentido de Secas, disponível
trazer indagações sobre o mar de transformações em https://www.
portasvilaseca.
que vem sendo conduzido pela presença potente com.br/br/
que cosmogonias, poéticas, estranhamentos e artistas/silvana-
fabulações têm operado no universo das artes mendes/, acesso
em 6 out. 2023.
contemporâneas. Um viés importante das estru-
turas afrodecoloniais que talvez sirva de escopo 12. Para ver o
trabalho de Ani
para abordagens supranacionais.
Ganzala, acessar:
Seja como for, é um oceano de possibi- http://www.
lidades teóricas que nunca mais permitirá que aniganzala.com/.

o campo das artes retorne ao lugar epistemo-


logicamente restrito que antes ocupava. Dona
Beatriz Nascimento ficaria contente de ver o que
está sendo feito!
107
CURADORIA DE
TERRITÓRIOS: OS
SUBÚRBIOS COMO
ENSAIO, MEMÓRIA
E IDENTIDADE
Melissa Alves
MELISSA ALVES
é arquiteta e urbanista formada pela UFRJ e curadora
com formação no Parque Lage, no Instituto Moreira
Salles do Rio de Janeiro e em suas vivências. Do su-
búrbio carioca ao cerrado goiano, atua com foco em
patrimônio histórico-cultural, ancestralidades urbanas
e arte-educação, e busca tecer conexões e pesquisas
que conjugam corporeidades, oralidades e territoria-
lidades. Em 2023, atuou como mentora na residência
Territórios Curatoriais do MAM Rio.
À continuidade do meu subúrbio carioca
dedico este texto, na esperança de que
o espelho nunca se quebre.

Como escutar a voz de quem fala a mesma língua


no meio de um estádio lotado e barulhento do
outro lado do mundo e, finalmente, se encontrar.
Não como o mais esperado ou como seria
de praxe, saí de Goiânia em uma segunda-feira
chuvosa, depois da minha mais recente emprei-
tada de residir no Centro-Oeste do país, com o
objetivo de me encaminhar rumo à residência
Territórios Curatoriais no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro. Do contrário do trajeto que
fiz por anos a fio como cria da Vila da Penha, no
qual eu comumente atravessaria a cidade sobre
os trilhos do metrô e do VLT, sobrevoei estados e
caminhei pela orla do Aterro do Flamengo, onde
o azul da Baía de Guanabara tomou conta dos
meus olhos, com o reconhecimento de território
despontando no horizonte.
Desde o início dessa viagem, foi possível
notar os diferentes detalhes de cada cidade,
desde os sons característicos até as persona-
lidades de cada pessoa que me cruzou o cami-
nho. Apesar de iniciar de um ponto de partida
diferente do que comumente faria, pude sentir
igualmente a dinâmica e ruidosa mudança de
cheiros, relevos, sons e pessoas que sempre
senti quando andava de zona a zona no meu
dia a dia na “cidade maravilhosa”. Note-se que
falar sobre as experiências do trajeto é falar
sobre a residência e sobre as possibilidades 110
de inscrever, no campo das artes, territórios
pouco visibilizados.
Fato é que a diferença, desta vez, não
estava somente no ponto de partida, mas também
no que encontrei no meu destino. Ao chegar ao
MAM Rio e me deparar com a assinatura de Af-
fonso Eduardo Reidy nos pórticos da construção,
vejo não só um lugar belo e distante. Vejo sujeitos
que não são do meu lugar, mas que me remetem a
lembranças da rua do meu bairro de origem, com
arquiteturas assinadas por autoconstrução de
lajes. Pessoas com gestos enérgicos, sotaques e
gírias familiares. Cheguei, falei minha língua e me
encontrei no outro. Finalmente em casa.
Se, por um lado, o subúrbio carioca é
plural em toda a sua dicotomia, por outro, as par-
ticularidades presentes em cada lugar, da zona
norte à zona oeste da cidade, fazem com que nos
identifiquemos, através de mínimos detalhes, com
pares que nem sempre dividiram a mesma rua
ou o mesmo bairro conosco, mas que partiram
de vivências ancestrais semelhantes. Apesar de
não conhecer boa parte do grupo de residentes
que estava à minha frente, avistei, de imediato,
reflexos de mim mesma ali, assim como em um
espelho segmentado em que se contempla cada
trecho de uma vez.
Enxerguei também diversas facetas do
subúrbio em cada um deles que mostrava, de
diferentes formas, as manifestações artísticas,
corporais e verbais existentes no seu respectivo
lugar. Cada residente buscava se aprofundar em
sua escrevivência coletiva e/ou individual, partindo 111
dos seus olhares para e com o espaço em que vive,
assim como certa vez também fiz, percorrendo a
estrada da arte-educação. Esse foco se justifica
pelas evidências de que, apesar de o subúrbio ser
um lugar rico em expressões artísticas da cultura
índigena-afro-brasileira, suas memórias, fazeres
e saberes em sua maioria são estereotipados ou
invisibilizados pelo sistema hegemônico da arte.
Assim, entendendo que os residentes evocam
uma ideia de Nação, ainda que em uma escala
bairrista, me identifico ainda mais com eles, visto
que seriam — e já o são — curadores de territórios.
A curadoria de territórios é um conceito
que conjuro levando em consideração as autoins-
crições realizadas ao longo da vida dentro dos
subúrbios, que aliadas a pesquisas artísticas e a
formações — formais ou não — permitem a exis-
tência de articulações entre pesquisas de arte,
educação, cultura, bairros e cidades, entendendo
a territorialidade como uma das maiores potências
curatoriais. A territorialidade afetiva está para
além da cartografia convencional e, neste caso,
atua como pilar de heranças orais, espaciais e
corporais que se desdobram em arte.
Este movimento nasce com o intuito de
correlacionar os territórios por meio da justaposi-
ção, contradição ou assimilação existentes neles,
buscando um aprofundamento em questões que
vão além do material e que se entrelaçam com
o dia a dia desses curadores. Do contrário da
academia e do sistema das artes, que em geral
desbravavam os subúrbios, favelas e periferias
para observar esses espaços como laborató- 112
rios de experimentos socioculturais, enquanto
curadores de territórios múltiplos, estes agentes
vivem no lugar e falam a partir dele de maneira
profunda, mesmo que não diretamente, ainda
que espontaneamente. O encontro entre o que
é vivenciado e o que é transmitido apresenta-se
como uma personificação dos lugares.
Nossa herança é muito mais oral e corporal
do que escrita. A gente chega nos espaços com o
corpo e com a voz, levando o encantamento das
ruas em nossos gestos, gingas, falas e pesquisas.
Nesse ínterim, ao atravessar e ser atravessada
pelas experiências dos mentorandos dos quais
estava mais próxima ao longo dos meses, notei
que a missão deles, ainda que de formas variadas,
é a de transitar com a cultura de seus territórios
encantados de maneira ativa: da Abolição ao
Méier, de Pavuna a Santa Cruz. Com seus feitos
de ouvir os mais velhos e sentir a perpetuação da
memória da cidade, de compreender os conflitos
socioculturais que permeiam as relações do co-
tidiano, de dialogar em busca de democratização
do acesso do espectador não somente às artes,
mas também a novas narrativas e percepções
geográficas e, finalmente, de confrontar o merca-
do da arte e hackear o sistema, estes curadores
de territórios abrem caminhos para a expansão
dos pensamentos.
Hoje, corpos suburbanos e muitas vezes
subalternizados estão criando e visibilizando toda a
sua potência a partir de seus lugares. Pouco tempo
atrás, tínhamos uma identidade nacional forjada,
visto que a história era contada a partir de quem 113
estava no poder. Felizmente, nos últimos tempos,
a curadoria de territórios vem protagonizando e
produzindo, em grandes espaços expositivos, refe-
rências inéditas ou pouco faladas sobre as potentes
visualidades que encontramos. As proposições
coletivas são destacadas e, ao mesmo tempo, as
singularidades fincam-se aos lugares, de forma a
permitir que se contemplem as partes de um todo.
A história e a geografia únicas não existiram aqui.
Cartografar novas imagens e sentidos de
cidade-nação do Rio de Janeiro se faz necessário
não apenas para subverter o passado-presente
dos territórios em disputa, mas também para
fabular desdobramentos a partir de diálogos cru-
zados que operam na direção de novos sentidos
de centralidade, que não mais partam de apenas
um lugar, mas dos atravessamentos existentes
na cidade. Como em uma encruzilhada — onde
quatro ou mais retas se entrelaçam no desenho
urbano e possibilitam encontros de diferentes
tipos de edificações, modos de habitar o espaço
e múltiplos saberes, além de todas as possíveis
camadas simbólicas desses atravessamentos —,
o espaço do MAM Rio atuou como um dos muitos
pontos de cruzamento cultural entre os partici-
1. Arlindo Cruz,
pantes. Por meio de encontros e desencontros,
“Meu lugar”,
eles foram capazes de se identificar nos lugares Rio de Janeiro:
de pertença dos colegas, de buscar a salvaguarda DeckDisc, 2007.

de temáticas tão caras que partilharam durante


meses e ao longo da vida, mesmo sem conhece-
rem diretamente um ao outro.
Ao entoarmos o hino “Meu lugar”,1 per-
cebemos que o autor certamente não estava 114
falando de mera geografia cartográfica. O que
ele nos trouxe é o que pode ser traduzido aqui
como territorialidade afetiva, ilustrando estrofe
por estrofe que é quase impossível falar sobre
arte sem falar das afetações que o espaço causa
aos sujeitos. Com esse afeto, esta publicação
se coloca no mundo, servindo, principalmente,
como uma referência para o futuro. A curadoria
de territórios elaborada por esses novos agentes
das artes possibilita a continuidade de temáticas
como dança, música, religiosidade, cinema e afins,
a partir da ótica de pessoas que respiram e se
inspiram nesses lugares.
À vista desse horizonte, fica evidente que
o sistema não se propõe a produzir dessa forma,
e tampouco, ainda que fosse o caso, conseguiria
se esgotar em uma produção individual, pois a
oralidade, a corporeidade e a ancestralidade vão
além da matéria.
Agradeço à equipe de educação do MAM
Rio e aos residentes, que me acolheram de forma
genuína com o convite para ser curadora-mentora
da residência e oportunizaram a união de referên-
cias distintas e complementares nesse ponto de
partida, além de desdobramentos e trocas tão
singulares e repentinas, tais quais as de novos
amigos que se conhecem, estando lado a lado em
uma mesa de bar. O subúrbio sempre se encontra.

115
REFERÊNCIAS
EVARISTO, Conceição, Becos da memória,
Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

MARTINS, Leda Maria, “Performances da


oralitura: corpo, lugar da memória”, Letras
(Santa Maria), v. 25, 2003, pp. 55—71.

PEREIRA, Gabriela Leandro, Corpo, discurso


e território: a cidade em disputa nas dobras
da narrativa de Carolina Maria de Jesus,
São Paulo: ANPUR e PPGAU-UFBA, 2019.

SANTOS, Milton, “O retorno do território”,


em Santos, Milton e outros (orgs.),
Território — globalização e fragmentação,
São Paulo: Hucitec/Anpur, 1994.

SIMAS, Luiz Antonio, O corpo encantado das


ruas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

116
DE ONDE EU VIM
TEM MAIS
Geovana Melo
GEOVANA MELO
é bacharel e licenciada em ciências sociais pela Univer-
sidade Federal Fluminense e mestranda em sociologia
na mesma universidade. Pesquisadora de relações
étnico-raciais, territorialidades e sociologia urbana. É
educadora popular, curadora e moradora da zona oeste
do Rio de Janeiro.
De onde venho chamam isso de SORTE.
Onde estou, chamam de OPORTUNIDADE.
Para mim, um não existe sem o outro.
Eliane Firmino

Eu estava no meu segundo período da faculdade,


havia aproximadamente um ano que eu tinha
saído da casa da minha mãe na zona oeste do
Rio de Janeiro para morar em Niterói no intuito
de estudar ciências sociais na Universidade
Federal Fluminense. Tudo estava bem difícil
financeiramente, eu tinha a constante sensa-
ção de que a qualquer momento eu teria que
largar tudo e voltar para casa. Até que surgiu a
oportunidade de trabalhar como pesquisadora
bolsista no processo de atualização do conte-
údo de uma exposição e como mediadora dela
também. Minha entrada no mundo das artes
e da cultura foi motivada, inicialmente, pela
necessidade de encontrar emprego e renda. É
importante começar por esse ponto, pois, em
um primeiro momento, minha escolha não foi
idealista ou apaixonada, mas sim uma resposta
às circunstâncias.
O museu precisava de mão de obra es-
pecializada e qualificada capaz de elaborar um
novo conteúdo para a exposição e desenvolver
uma boa mediação para os diferentes públicos
que chegavam até nós — em sua maioria, alunos
negros de escolas públicas de favelas da região
metropolitana do Rio de Janeiro —, e eu só preci-
sava de um emprego, preferencialmente na minha
área de formação. 119
Os processos que me tornaram uma
trabalhadora da cultura vinculada à educação e
à ciência são o fio condutor entre a vida que eu
desenhei, acadêmica e pesquisadora, e as pos-
sibilidades que essa escolha me trouxe. Ter uma
oportunidade me deu possibilidades de escolha
em um mundo que eu não conhecia. E eu não sabia
que desejaria tanto.
Este texto nada mais é do que um ensaio
reflexivo sobre a possibilidade de escolha a partir
das oportunidades que chegam até nós. Não vou
seguir uma perspectiva liberal, na qual se entende
que é possível criar as próprias oportunidades,
porque não acredito nisso. Também não pretendo
discorrer sobre as potencialidades e talento in-
dividuais dos sujeitos, sobretudo as minhas, visto
que escrevo em primeira pessoa e relaciono esse
ensaio à minha vida pessoal. Falo exclusivamente
sobre oportunidades que apresentam novos pa-
radigmas de vida e nos permitem fazer escolhas.
Ser filha da minha mãe, Michele Costa,
e neta das minhas avós, Vera Lúcia, Julieta San-
tos Costa e Maria Isabel, diz muito sobre quem
eu sou. Ser de Urucânia, Santa Cruz, zona oeste
do Rio de Janeiro, situa-me espacialmente no
território e fala muito de onde eu vim. Ter uma
família que me acolhe e me apoia incondicional-
mente em todas as minhas escolhas e caminhos
percorridos também faz grande diferença. Tudo
isso junto a tantos outros fatores, internos e
externos, marca de fato as possibilidades que
me aproximaram de algumas oportunidades. Em
outras palavras, sua criação, o território que 120
você habita, suas predisposições individuais, as
pessoas com quem você se relaciona, a classe
social, a sorte e vários outros fatores marcam as
oportunidades e acessos que você terá.
Ser uma mulher preta de 23 anos, que
foi forjada pela universidade pública, antes
na graduação e agora no mestrado, e ocupar
posições relevantes no mercado de trabalho
não é fruto de mera fantasia meritocrática do
“ser correria” ou mera determinação. Há muita
pavimentação para eu fazer o que eu faço e ser
quem consigo ser hoje, há muitas razões para
que eu desponte enquanto a exceção. Adentro
o universo institucional da arte e da cultura a
partir de uma oportunidade de trabalho, mas
arte e cultura compõem quem eu sou desde a
infância. É a paixão da minha vó pela escola de
samba Mocidade Independente de Padre Miguel e
a do meu falecido avô pela Mangueira, é meu pai
tricolor e minha mãe vascaína, são minhas tias
extremamente fãs de Katinguelê, Pixote, Soweto
e tudo quanto é grupo preto de pagode dos anos
1990 que constroem em mim o que compreendo
como cultura. Mas é a oportunidade de juntar
teorias socioantropológicas e políticas, cosmo-
visões, literaturas e toda sorte de recursos com
os quais tive contato ao longo dos anos que me
constroem como sujeito e profissional.
Durante a residência Territórios Curatoriais
tive a oportunidade de conviver e aprender com
outras exceções ou, simplesmente, sujeitos ex-
cepcionais: pessoas extremamente competentes,
criativas, inteligentes e capazes de desenvolver 121
coisas realmente revolucionárias que tiveram a
mínima oportunidade para desenvolver suas poten-
cialidades. Durante estes últimos seis meses tive
a honra de analisar pessoalmente como existem
tantos talentos que só precisam de oportunida-
des para colocar para fora tudo o que vem sendo
gestado ao longo da vida e, ainda, como determi-
nados territórios vêm nutrindo a juventude para
fazer verdadeiras revoluções, sejam elas na arte,
na cultura, na educação e/ou na ciência.
Pensar na importância das oportunida-
des é necessariamente pensar no tanto que
deixamos de ganhar pelo simples fato de que
um mesmo perfil de pessoas está sempre sendo
escolhido. Não me parece fazer sentido buscar
respostas diferentes permitindo que única
e exclusivamente os mesmos sujeitos façam
as perguntas. E não é possível desejar novos
contornos — ou, como eu pessoalmente desejo,
uma verdadeira revolução no mundo da arte e
da cultura — se a inserção e o reconhecimento
de negros, indígenas, pessoas trans e tantos
outros sujeitos “marginalizados” socialmente
ainda são tão limitados. A pesquisa da curadora
Luciara Ribeiro, que busca mapear os curado-
res negros e indígenas no Brasil, ilustra essa
realidade. Apenas 96 curadores foram identifi-
cados, estando todos predominantemente na
região sudeste do país. Luciara vai dizer que
não é possível repensar as artes, seus espaços
e autorias sem entender quem são os sujeitos
por trás das produções expositivas, uma vez
que elas não são neutras. 122
Nesse sentido, Lélia Gonzalez1 vai afir-
mar que quando há uma competição para o
preenchimento de posições que implicam re-
compensas materiais ou simbólicas, mesmo
que negros possuam a mesma capacitação, o
resultado sempre é favorável aos brancos. Com
isso a autora já norteia os dados apresentados
por Luciara: ainda somos poucos nos espaços
decisivos, mesmo que desenvolvendo trabalhos
extremamente relevantes e de qualidade ímpar,
como os 96 curadores mapeados por ela vêm
bravamente fazendo.
Em 1981, a historiadora e escritora Beatriz
Nascimento2 vai elaborar uma crítica acerca da
primeira versão do filme Xica da Silva. A autora vai
dizer que, em um momento em que a juventude 1. Lélia Gonzalez,
Por um feminismo
negra estava produtiva e em busca de uma iden-
afro-latino-
tidade racial positiva, uma obra cinematográfica -americano,
como aquela se apresentava como um “banho de Rio de Janeiro:
água fria”, porque trazia representações externas Zahar, 2020.

pautadas em uma memória escravista e colonial 2. Maria Beatriz


que iam na direção oposta à da contracultura Nascimento, Beatriz
Nascimento,
daquele momento. A autora é enfática ao dizer
quilombola e
que basta de racistas e aproveitadores de nossa intelectual.
imagem — logo, de nossa identidade —, e é ainda Possibilidades
nos dias da
mais dura ao dizer que não cabia mais usar a nossa
destruição, São
imagem como mercadoria no que ela chama de Paulo: Editora Filhos
“novo Valongo”. Nesta crítica, Beatriz Nascimento da África, 2018.

está falando essencialmente sobre a importância


de nos apropriarmos das representações e pro-
duções que falem sobre nossa própria cultura e
identidade social, fugindo assim de construções
que ocorrem sem nossa participação e que por 123
vezes tendem a reproduzir concepções estigma-
tizadas sobre o que é ser negro.
A professora Nilma Lino Gomes discorre
sobre como os movimentos sociais e negro vêm ao
longo dos anos forjando e fortalecendo saberes
múltiplos, incluindo saberes estéticos-corpóreos.
Estes saberes representam espaços de expressão
identitária, de transgressão e de emancipação.
Com isso, aprofundamos o que Beatriz diz sobre
a necessidade de termos sujeitos outros, com-
prometidos com novas formas de representação
e construção de saberes.
Os saberes produzidos pela comunidade
negra, indígena, transexual, periférica e favelada
apresentam-se, segundo Nilma, como uma forma
de conhecer o mundo marcada pela vivência. Signi-
ficam para a autora, e aqui assumo pessoalmente
a mesma compreensão, “uma intervenção social,
cultural e política de forma intencional dos negros
ao longo da história, na vida em sociedade, nos
processos de produção e reprodução da existência.
Ou seja, não se trata de ações intuitivas, mas de 3. Nilma Lino
Gomes, O
criação, recriação, produção e potência”. Poder
3
movimento negro
fazer curadoria junto a outros jovens negros no educador: saberes
MAM Rio ressoou ainda mais em mim o potencial construídos
nas lutas por
criativo e de expansão de si e da arte que nós,
emancipação,
juventude negra, temos. É um potencial que vem Petrópolis: Vozes,
sendo nutrido coletiva e socialmente ao longo de 2017, p. 67.

toda nossa existência.

A continuidade de vida, o ato de criar um


momento feliz, mesmo quando o inimigo
é poderoso, e mesmo quando o inimigo 124
quer matar você. Possibilidade nos dias
da destruição.
Maria Beatriz Nascimento

Ao fazer a curadoria da exposição Con-


tracentro: cartografias do subúrbio, que compôs
o evento de encerramento da residência, tive a
sorte, junto com meus companheiros de curado-
ria, de desenvolver algo extremamente poderoso
e lindo, algo de que de fato nos orgulhamos. Em
um passado não muito distante, seria impossível
pensar em quatro curadores, sendo três jovens
negros e uma indígena, ambos das margens do
Centro do Rio, podendo levar de forma remunerada
sete artistas extremamente talentosos, mas sem
muita visibilidade para o salão de eventos de um
dos maiores e mais relevantes museus do país e
do mundo. Isso não começa em mim ou nos meus
companheiros, começa quando o museu compreende
que há a necessidade de uma diversificação de
seus quadros e entram pessoas negras, indígenas,
travestis e transexuais, pessoas comprometidas
com a construção de novos paradigmas nas artes
e na educação. Tudo parte de oportunidades que
começam bem antes de nós, mas que começam
a atingir os nossos.
Lélia Gonzalez vai escrever, ainda no século
20, sobre uma juventude negra “entregue à própria
sorte; sem a menor perspectiva de vida”, sem
oportunidade para vislumbrar um futuro longe do
desemprego ou da morte. A autora reforça o con-
ceito de divisão racial do trabalho, denotando o fato
de que os trabalhos mais precarizados e instáveis 125
estariam sendo ocupados por corpos racializados,
negros e indígenas. Aqui ouso aprofundar e dizer
que há uma divisão racial das oportunidades, divisão
essa que afasta sistematicamente dos espaços
de formação e trabalho jovens impetuosos e com
grande potencial construtivo.
Revisitar a memória e estar perto dos meus
foi e é um exercício necessário para desejar e
escolher continuar no mundo da cultura, da arte
e da educação. Eu me fortaleço quando trago a
memória de outras mulheres negras que trilharam
caminhos pelos quais também desejo percorrer. Eu
me fortaleço quando resgato a memória de Lélia
Gonzalez, professora, filósofa e antropóloga que
desempenhou um papel fundamental na cultura
brasileira, especialmente no que diz respeito à
promoção da cultura afro-brasileira, à luta contra
o racismo e à defesa dos direitos das mulheres.
Lélia, que também foi professora na Escola de
Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, é uma das
fundadoras do programa de pós-graduação em
comunicação e cultura da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Eu me fortaleço quando
tenho a possibilidade de trabalhar com Letícia
Puri, Marina Souza e Melissa Alves, uma curadora
indígena e duas negras. Mulheres extremamente
competentes e criativas, que reforçam em mim,
a partir da residência, potencialidades nesse
universo tão familiar para elas, mas em fase inicial
para mim. Trazer Lélia, Letícia, Melissa, Marina,
Elizabeth, Juliana, Ayodeli, Daniele, Vanessa, Cris-
tiane, Caroline, Isabelle e tantas outras para cá
também é falar sobre oportunidades. Sobretudo 126
pela oportunidade de nos autorreferenciar e ter
em nós os elementos necessários para o fortale-
cimento de nossas próprias teorias, paradigmas
e representações.
Os últimos meses no museu, junto com
meus pares, foi importante para ressoar mais
uma vez quanto estamos avançando e preparados
para encabeçar verdadeiras revoluções, tanto nas
artes como na cultura, na educação, em nossos
territórios, em nossas famílias, na ciência e na
política. Existe uma juventude atenta, preparada
e em movimento, criando as próprias oportunida-
des e se apropriando de todas as outras que vêm
surgindo, pois de onde eu vim tem mais.

(In)felizmente a exceção,
(Geovana M.)

127
REFERÊNCIAS
GONZALEZ, Lélia, Por um feminismo afro-latino-
-americano, Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

GOMES, Nilma Lino, O movimento negro


educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação, Petrópolis: RJ, Vozes, 2017.

NASCIMENTO, Maria Beatriz, Beatriz


Nascimento, quilombola e intelectual.
Possibilidades nos dias da destruição,
São Paulo: Editora Filhos da África, 2018.

128
A FÚRIA E A
CURANDERIA:
PARA ALÉM DAS
CURADORIAS E, MUITO
MAIS POTENTE E
IMPORTANTE QUE TAL
PRÁTICA, A FORÇA
DO TERRITÓRIO
Junior Negão
JUNIOR NEGÃO
é fundador do Movimento Ghetto Run Crew e do HUB
Criativo Ghetto Colletiv. Um dos principais conectores
da Cultura da Rua do Eixo Rio-SP, prioriza conduzir o
processo de curanderia com o olhar para os subúrbios
entre pretes e não pretes, principalmente os pretes.
Como especialista em movimento urbano suburbano
no campo do esporte, desenvolvimento de potências,
arte e cultura, seu estudo está para a Insurgência
Suburbana, suas Encruzilhadas e os Novos Rebeldes.
FÚRIA
substantivo feminino | ímpeto de cólera, ira
Etimologia: do latim, emoção, loucura e raiva

CURANDERIA
Não foi encontrada uma explicação plausí-
vel para a origem da palavra como tantas
palavras que explicam várias práticas e
memórias dos povos originários. Segundo
o site InfoEscola: “O curandeirismo é uma
prática comum à humanidade, também
denominada como ‘medicina popular’.
Suas raízes estão gravadas na cultura oral
de um povo. É a prática de ministrar ou
aplicar substâncias sem conhecimento
técnico ou científico. O objetivo é a cura
de diversas enfermidades”.

O SILÊNCIO QUE PRECEDE


O ESPORRO
Interessante observar a explicação rasa anexa-
da ao termo e à prática do curandeirismo, que
por consequência também busca desconstruir
um pensamento milenar a partir de uma cadeia
acadêmica eurocentrista. É muito importante
lembrar que o chazinho pra dormir, o banho con-
tra reumatismo ou a garrafada que se bebe no
boteco são práticas curandeiras. Não se trata
de ser melhor ou pior, se trata de ser outra coisa
que a academia não tem saberes nem práticas
para validar. Então gosto de pensar que meu 131
trabalho é de curanderia, pois meus saberes
estão bem longe dos muros, apesar de transitar
livremente por espaços confinados. Meu trabalho
é tido como algo que está sendo aplicado sem
conhecimento técnico, científico e acadêmico,
mas produz resultados coletivos primorosos a
partir da potência da Rua.
“A fúria e a curanderia” trata de um indi-
víduo que se torna milhares e milhões, bem-vin-
dos e bem-vindas à leitura, meu nome é Junior
Negão aka JN aka Fúria e é assim que deve ser.
Espero ávido e concomitante pela melhor forma
dentro de mil camadas da sociedade moderna.
Para este fim, me coloco a questionar as artes
confinadas no mercado, quem cuida e se diz
entendedor de práticas que conduzem “sabe-
res” e o poder do verbo que fabrica gigantes e
esmaga memórias.

ABRE-ALAS
Agradeço infinitamente em qualquer tempo, em
qualquer escrita ou memória, à imensa capacidade
de Gi Nascimento de estar lado a lado no claro e
no escuro e por me permitir conviver com uma
pessoa magnífica. Lutamos juntos, vencemos
juntos, tacamos fogo na Babilônia juntos.
Acima de tudo sou um educador e sonha-
dor, então agradeço e parabenizo o grupo que
esteve conosco propondo e provocando nosso
melhor nessa jornada: Renata Sampaio, Melissa
Alves, Shion L, Lais Daflon, Carolina Rodrigues e
meu amigo Jean Carlos Azuos. 132
Em pleno 2023, as práticas tradicionais
das grandes potências do mercado tendem a
silenciar mulheres pretas, instituições desde-
nham do poder da oralidade e jovens se intitulam
trem da arte e da curadoria sem saber pregar um
prego na parede.
Agradeço à Keyna Eleison, minha amiga,
parceira de trabalho, ícone suburbano e aproveito
para citar suas felizes linhas:

(...) Parem.
Simplesmente parem de romantizar a
resistência. O que somos, o que temos e
o que criamos não é um objeto. É inteli-
gência. Temos que entender, todas nós,
que toda potência, toda alegria e toda
capacidade que temos de resistir, criar,
desenvolver, vem de uma INTELIGÊNCIA, de
uma intelectualidade, e por conta disso
não podemos ser objetos de estudo, e sim
estar à frente dos centros de pesquisa
e de decisão, porque só assim vamos
desenvolver novas saídas para proble-
mas criados por conta da romantização
desses fatos e de nossos corpos.

O PAR DE TÊNIS
NO FIO
Diversos “entendedores” de cidades e culturas
urbanas tentam explicar esse fenômeno, só quem
viveu e/ou vive o subúrbio poderá explicar com
propriedade. Fato é: um tênis no fio é um aviso 133
e um chamado, em diversas camadas. Meu flow,
meu ritmo e linhas também.
Da chapa quente ao puro suco, das brusas
de times aos Nike doze molas, a malandragem
sustenta o Subúrbio da Central. Nada relacionado
à criminalidade, estamos falando de economia
colaborativa, criativa, HUBs criativos, termos
intangíveis que replicam uma forma de viver e
avançar presentes desde a Pequena África e do
Morro da Providência até hoje. A pandemia nos
colocou num momento de desespero contempo-
râneo que nos fez lembrar o que significa e qual
função tinha o Cemitério de Pretos Novos. E, mais
uma vez, nos reerguemos, resistimos, e jovens se
lançaram, se descobriram e se mantiveram vivos
ao retratar através da arte possibilidades incríveis
que nunca nos são dadas.
Atentar para a falta, e não para o excesso,
é o caminho que precisamos estabelecer. Verdade
que a arte é um mercado criado, mas também é
verdade que ela parte de um lugar ancestral. Ora,
então é necessário que apareçam estudiosos
e estudiosas que vêm da Rua, das experiências
viscerais, pretos e pretas suburbanos com a
capacidade de criticar obras, desenvolver uma
cadeia de produção e colecionar obras. E que
nasça um novo tipo de representação artística
mais alinhada com a realidade do que fazemos e
construímos. Há uma lacuna bem grande nesse
aspecto e estamos atentos não só a novos artistas
oriundos de subúrbio e favelas, mas também em
onde estão as pessoas que podem produzir e con-
tar essas histórias de forma fidedigna e não com 134
suposições de quem nunca pegou um ônibus para
atravessar a cidade. A contribuição da curanderia —
para além de uma forma menos mercadológica e
mais histórica de propor trabalhadores da arte —
é olhar o humano, sua capacidade de criar e suas
experiências de vida, não para a reprodução que
tem jogado tantas potências numa mesmice de
composição artística. A curanderia tem a respon-
sa de, lado a lado com os novos rebeldes, propor
outro olhar para as produções suburbanas pretas
e indígenas: o livre caminho, não apenas produzir
pautas de racialidade e representatividade para
alimentar o mercado. Que se pinte o que quiser, que
se construa o que quiser, somos corpos políticos e
não precisamos vomitar isso em tudo que fazemos!
A cura para as mazelas de anos de apagamento, a
proposta de um novo olhar, de resgate, de repa-
ração histórica e da visceralidade do construir a
partir das experiências.
Acredito muito em residências, em vi-
vências de produção e troca de saberes, mas em
residências que englobam a cadeia produtiva e
outros saberes. Propor a um curador pensar só a
curadoria não vai trazer uma outra proposta em que
o salto alto da academia se torne os pés no chão.
Trazer um pintor ou uma escultora para criticar o
caminho que eles constroem é redundante. Propor
os saberes para além do que se constrói é urgente
para que o respeito a toda cadeia, e principalmente
a quem tá na parte da produção e da educação,
seja cotidiano e, claro, para que surjam pessoas
diferentes que não olhem a estrutura vertical e seus
dogmas comportamentais como bote salva-vidas. 135
O comportamento higienizado da academia
pode até ser algo, pode até ser um ponto da his-
tória, mas o que tenho eu a ver com quem pintava
meu povo num olhar totalmente equivocado ou
com produções europeias cheias de quiquiqui?
O lazer de viver com os crias é o que nos alimen-
ta e sempre alimentou os crias do passado, do
presente e alimentará os do futuro.
Imagina eu ficar tolhido para trocar com
quem eu admiro das formas menos formais pos-
síveis por conta do status cor ou, “ainda”, que eu
seja tão eloquente a ponto de não saber produzir
um evento? Sei lá, imaginar que toda regra tem
uma exceção e que a exceção das instituições
e academias são o furto e a maquiagem entre o
que é verdade histórica e o que os livros dizem.
Prefiro imaginar a exceção da Rua, que também
é excesso de força e troca de vontade de potên-
cia, para o bem e para o mal, que é justamente
a experiência de vida. Ter a opção de competir
menos e aquilombar mais.

NÃO ESTAMOS CONTRA,


ESTAMOS PARALELOS
A minha pesquisa é visual, gestual, verbal, ancestral
e se apresenta como textos e registros desde 2012
talvez. Uma pena que para mim a importância da
memória chegou tarde. A antropologia e a filosofia
que vêm do ancestral, da cosmovisão e da mis-
turança que somos em todo poder heterogêneo
que vem de fractais suburbanos — como defende
Yuri Menezes em suas práticas — são confrontadas 136
pela academia o tempo todo, como numa guerra
entre quem criou e quem copia.
A antropóloga americana Margaret Mead
dizia que uma fratura grave num humano exige
um outro humano ao seu lado para ajudá-lo a
superar a dificuldade até cicatrizar o osso que-
brado, e que o primeiro traço da civilização está
nessa cicatriz… De fato, essa observação vem a
partir dos povos originários que fundaram a vida
em sociedade. Ou seja, quando penso da mema
forma que meu ancestral — aquilombar é a ferra-
menta mais poderosa contra a verticalização e o
domínio —, também reflito que levar a academia
como o único fator de resposta ou estudo para
relevâncias diversas é um comportamento es-
cravocrata e separatista.
Se pensarmos em Agnaldo Manuel dos
Santos, Maria Carolina de Jesus, Mussum, Heitor
dos Prazeres, e depois nos estudos esdrúxulos
sobre o que essas pessoas produziam, a devo-
lutiva sempre carregada de interjeições para
justificar que essas pessoas ficassem ricas e de
vida larga com suas produções. Mais importante,
se pensarmos que quem contou suas memórias
não foram seus pares, e sim pessoas sem prática
e saberes, sentadas em lugares frescos e longe
dos perigos noturnos, em suas casas abastadas
olhando com binóculos para o lado da cidade que
produz fielmente o que é o Brasil. Se pensarmos
em tudo isso, também pensamos no que está
acontecendo aqui e agora: uma grande corrida
onde galerias e marchands contam um eldorado
para pessoas reais vindas do subúrbio, da favela, 137
sem oferecer estruturas tangíveis, criando um
caminho tão difícil que se reflete até no preço
de suas produções e em como um colecionador
vai olhar o futuro desses trabalhadores.
Até Baskiat e sua memória foram tiradas
de contexto para que coubessem em lugares
higienizados como produto e proposta de mer-
cado. Quando olhamos inclusive para a memória
de vida de revolucionários retintos, os registros
muitas vezes são rasos e não contam a vida e
morte dessas personalidades da forma correta.
Mas se pensamos nos imperadores de tão, tão
distante época, temos até o mínimo detalhe
de comportamento ou de enfermidades que os
acometeram. O Cemitério dos Pretos Novos não
existe mais fisicamente, mas metaforicamente ele
segue empilhando memórias materiais e imate-
riais, refletindo no mercado, nas possibilidades de
avanço de produções dos outros lados da cidade,
uma verdadeira sub-representação mascarada
para alimentar apenas um caminho.
Somos paralelos, somos outra coisa e
é impossível que pessoas que não vivem essa
realidade tomem conta do curso dessas histórias.
Naïf é a academia que só leva a galera pra
Madureira para dançar no baile charme, sendo
que Madureira é muito mais que isso, por exemplo.
Noix é sobrevivente de guerra tipo esses manos
que se cultuam aí como o tal do Matisse, a dife-
rença é que pra natureza-morta dele teve palco.
Ruim é o “diabo”, que nos coopta para
lugares de falsa sensação de poder , sem o po-
der de escolher o que queremos, que confunde 138
dignidade e o blasé do verbo que não alimenta,
sendo que noix qué o que é de direito, dinheiro e
lugar na mesa!

PRÁTICAS DO CORRE
E DA CORRERIA
Tudo tem conexão com a Rua/Tudo tem conexão
com Esù: Favela, lugar de moradia e de desenvolvi-
mento do povo que sofre sistematicamente para
não crescer em saberes, memo assim seguimos.
Subúrbio da Central e toda a falta de tantas coisas
que freiam a cultura suburbana de ser oficialmen-
te o que ela sempre foi: um marco. Diferentes
microSubúrbios pelo mundo que formam toda
uma cadeia de criação e produção. Moda, terri-
tório, dialeto, comportamento. O funk é o estilo
musical mais ouvido pelos rappers americanos e
londrinos, mas segue marginalizado e enlatado
por afro-convenientes. O samba, que teve sua
tentativa de apagamento pela lei e depois pela
bossa nova, a cultura de bate-bolas que é memória
viva ancestral, de produções e saberes, perde
espaço para Flávio de Carvalho e suas epifanias.
As práticas do corre e da correria suge-
rem a potencialização real do nosso território;
em formas gerais, temos:
• representação descentralizada
• novos colecionadores
• novos rebeldes
• caminhos para o sucesso olhando para
cada humano
• a inspiração da pintura vem do cotidiano, 139
mas lembrando que precisamos ter as
necessidades básicas atendidas/não
cooptação mais colaboração
• como vc vai atingir seu melhor
• potencializar o artista e o ser humano
que produz
• acompanhar as ferramentas de facili-
dade/tecnologia sem perder o humano
• que o humano possa transitar e escolher
• os artistas não cederem à produção em
massa de obras
• desenvolvimento de potência com base
no autoconhecimento

O AQUILOMBAMENTO CONTRA TODA


VERTICALIZAÇÃO EUROCENTRISTA
Escrevo aqui sobre o campo das artes, mas não
por ele apenas, uma vez que arte não é algo que
está em outras estruturas quando se pensa no
passado. Não obstante também assumo que o
capital é ótimo e é importante a opção de ter
ou não ter estar nas minhas mãos e dos meus
pares, já que o caminho do capital sempre foi o
da escassez e do furto de ideias, como explica
o livro Roube como um artista. Ora, se a verti-
calização eurocentrista ditou um novo mundo
capital chamado artes plásticas, que também
contribuiu e contribui para o sistema de apaga-
mento, que possamos nos aquilombar, resgatar
nossas memórias e ter nosso espaço que é por
direito, reparação e caminho para uma sociedade
mais equilibrada. 140
Se pensarmos nos direitos da força de
trabalho que naturalmente vem do subúrbio, va-
mos observar um sistema de 500 anos de sufoco.
Somos cooptados do subúrbio para trabalhar,
para estudar, para supostamente se conectar
ao mundo, caso queiramos expandir nossas
possibilidades para além da malha truculenta
do Estado.
Há um reconhecimento precário de quem
faz a sociedade permanecer saudável cultural e
economicamente, de quem dita a cultura, a culi-
nária, o esporte, a arte e a música. Essas pessoas
sofrem com as paredes metafóricas que cercam,
mais que uma prisão, todo um estilo de vida, sen-
do absorvidas e copiadas, o que contribui com
o processo de morte por apagamento — Ayrson
Heráclito fala sobre isso.
O educativo é extremamente desvalori-
zado, professores da rede pública não têm um
preparo etnográfico, antirracista e anticapacitista
para lidar com as rotinas cotidianas das escolas,
que são construídas como presídios, com cores,
arquitetura e grades que remetem a prisões, com
um sistema de ensino extremamente arcaico e
colonizador. Se olharmos para o educativo que
sustenta o sistema que rege o campo das artes,
podemos lembrar da carta do Coletivo Autônomo
de Mediadores direcionada à 9ª Bienal do Mercosul,
em dezembro de 2013, reforçada com relevante
indignação com a inércia do evento na 13ª Bienal
do Mercosul, em 20 de novembro de 2022, pela
sua equipe de mediadores e supervisores. A carta
versa sobre a forma como curadores e institui- 141
ções — e aqui incluo mecenas, colecionadores
e toda a estrutura — tratam o corpo educativo
responsável por garantir o sucesso do principal
objetivo de exposições: que a cultura e a arte
sejam luz para uma sociedade mais equilibrada
a partir da informação.

A FÚRIA DA DÉCADA DE 1990 E A


CURANDERIA DOS ANOS 2000
O presente é revolução se pensarmos o passado,
mas as práticas de estudos, pesquisas e me-
mórias de quem somos e o que somos precisam
seguir impávidas. Me coloco como ferramenta
de registro, de amor, quando se fala de amor e
de questionamento, quando se fala em guerra.
As práticas da escrita, do registro, da contação
de histórias que vêm do passado me fazem um
corpo a serviço da arte e da cultura. Não visitar
artistas quando se quer algo, mas estabelecer
uma relação profunda e uma troca honesta com
cada um dos que tecem comigo essa jornada.
Os pontos de fricção aqui estabelecidos
são questionamentos em busca da visibilização
de personalidades diretamente relevantes para
a arte. A manifestação artística é um feito que
necessita do humano. Ora, temos a arte e te-
mos o mercado, o último deve estar a serviço do
primeiro, não o contrário. Queremos vislumbrar
nosso próprio futuro como pretos, resistindo e
redescobrindo a ancestralidade que ainda nos
resta, tendo que correr dez vezes mais para
chegar a algum lugar e tendo dez vezes menos 142
chances de chegar à idade adulta, e como tudo
isso tece e retroalimenta o mercado da música,
da arte, da cultura, dos esportes — vejo que não
estamos contra, corremos em paralelo.
Esse é o poder paralelo de hackear in-
formações, decodificar e discodificar gerando
novos códigos para que nossos pares entendam,
se sintam representados e preparados para ge-
rar uma economia potente e criativa, assim nos
observa Andreia Mendes.
“A fúria e a curanderia” são norte e ali-
mentos para novos tempos, a Academia arde em
chamas, rói com o tempo, o Subúrbio enverga,
mas não quebra.
Esse é o resumo, num olhar geral do
caminho que estudo há décadas e que pus em
prática há dez anos. Num olhar generalista, mas
que concorda que em alguma coisa temos de ser
muito bons, deixo um até logo, sobre os caminhos
da curandeira.
Nos vemos por aí, ou não, mas nossas
práticas são realidade, batendo em portas de
madeiras especiais, em interfones de mansões,
no jornal do bairro, nas paredes, estantes e livros,
já somos agora, a força do querer e a revolução.
Rajada de Fé, Laroyê.

Zona norte, Rio de Janeiro,


27 de setembro de 2023.

Um salve às crianças!
O futuro do mundo!
143
AQUI JÁ FOI
ALDEIA: A PRÁTICA
CURATORIAL
COMO EXERCÍCIO
DE COMUNIDADE
Letícia Puri
LETÍCIA PURI
(Letícia da Paz Maia) é historiadora, pesquisadora e
curadora com atuação nos cruzamentos entre arte,
cultura e educação, especialmente sob o prisma das
práticas anticoloniais e perspectivas originárias.
Minha família não sabia o que era curadoria.
Quando os convidei para a abertura da exposi-
ção da qual fui uma das curadoras, no evento
de encerramento da residência Territórios
Curatoriais, me questionaram: “Mas o que é que
você faz?”, “O que é ser curadora?” e até mes-
mo “Nunca tinha ouvido falar disso”. As minhas
contínuas tentativas de explicação, bem como
o apoio dessas pessoas que não entendiam o
que significava aquilo, me fizeram refletir sobre
quais eram as probabilidades históricas de eu ser
curadora de uma exposição no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro. Tal pensamento me
levou à conclusão de que isso jamais seria uma
possibilidade dentro da realidade do mundo do
qual faço parte. Logo, o que eu estou vivendo e
escrevendo aqui parte da premissa do impossível.
Coincidentemente, a 35ª Bienal de São
Paulo, que ocorreu neste ano de 2023, teve o
título Coreografias do impossível, e ainda que
eu não tenha participado da Bienal, senti que a
experiência da residência foi um ensaio para co-
reografias desse tipo, e as dançamos no fim. Um
fim que, na verdade, é um meio para um começo.
De alguma forma, percebo que nosso tempo
opera com desafios da ordem do inimaginável,
dos absurdos e dos limites que envolvem nossa
própria sobrevivência física e subjetiva. Como é
possível viver e nutrir subjetividade enquanto o
céu cai sobre nossas cabeças, como anunciou
Davi Kopenawa? Como podemos contar mais uma
história para adiar o fim do mundo, como sugere
Ailton Krenak? Vejo como urgente romper com 146
as estruturas ocidentais que impõem extinções
e fins, que não existem na ordem de pensamento
dos povos tradicionais que, nas palavras de Nêgo
Bispo, há milênios se organizam dentro do cíclico
começo-meio-começo. Um tempo espiralar e não
hierárquico em que a terra é a memória do mundo.
Nesse encontro de tempos, relembro
quando visitei, mais de uma vez, as exposições
Nakoada: estratégias para a arte moderna e Aqui
estamos, em 2022, no MAM Rio. Ambas foram con-
duzidas por perspectivas indígenas não somente
na curadoria, nas obras ou na temática, mas na 1. Nas palavras de
Denilson Baniwa:
forma de propor entendimentos do presente e de
“Nakoada é um
futuros voltados para a ancestralidade e para o gesto de retorno.
enraizamento, em um movimento de voltar para si Seria o momento
em que as pessoas
para pensar o mundo. Enquanto via e me via nas
que foram alvos
obras, refletia sobre as feridas coloniais que doem de ações externas
em nós, indígenas, que vivemos nas cidades, que entendem o poder
enfrentamos há séculos os fins, os discursos de opressor do outro
e agora procuram
desaparecimento e a negação de identidade. Dói, uma possibilidade
principalmente porque um pensamento constante de retornar à sua
me persegue em qualquer lugar que vou: aqui já própria autonomia”.
Disponível em
foi aldeia. Ao mesmo tempo, a experiência de ver
https://mam.rio/
um painel com vários rostos de indígenas urbanos, programacao/
diferentes uns dos outros, de diversos lugares do nakoada-
estrategias-para-
Brasil, na exposição de Uýra, me fez sentir próxima
a-arte-moderna/,
àqueles parentes, um lugar de respiro em que ali acesso em 27
era possível ser e estar junto, assim como utilizar set. 2023.

a estratégia nakoada1 para subverter o mundo


colonial. O museu se fez aldeia. Ainda assim, não
poderia imaginar que um ano depois eu retornaria
àquele lugar, junto dos meus parentes e amigos,
celebrando a conclusão de um ciclo de formação 147
e minha primeira experiência como curadora nessa
vida. Um impossível que ensaiou estratégias de
ser e se materializou naquele momento.
Ao ver minha mãe entrar na exposição
Contracentro: cartografias do subúrbio, ideia
gestada e trabalhada em conjunto com Geovana
Melo, Marina Souza e Junior Negão, sob mentoria
de Melissa Alves e Renata Sampaio, fiquei emocio-
nada e com o coração acelerado. A visita dela era
a mais importante para mim. Uma mulher que teve
pouco acesso à educação, viveu para trabalhar e
dedicou todo o tempo e esforços para que suas
duas filhas pudessem ter melhores oportunidades
e, possivelmente, conseguirem uma qualidade
de vida básica da qual ela mesma nunca usu-
fruiu. O momento em que a primeira pessoa que
me perguntou o que era curadoria me vê sendo
curadora no MAM Rio e me abraça com orgulho
foi um retorno a mim e à minha própria história.
Só estava ali por conta do suor e do amor que ela
havia me dedicado ao longo de 25 anos, celebrando
cada passo dado, degrau alcançado e pequena
conquista. Olho para trás e vejo que ela só pôde
ter essa possibilidade devido à resistência de
minha avó, que a criou com tantas dificuldades,
força que herdou de sua mãe, filha de uma mulher
que enfrentou com firmeza violências de todas
as ordens. Todas elas me compõem, assim como
minha avó paterna, que cuidava de mim enquanto
minha mãe trabalhava arduamente todos os dias.
Mulheres indígenas e negras, pobres, periféricas
e suburbanas gestaram um futuro possível para
que uma jovem indígena, nascida e criada nas 148
margens da cidade, pudesse propor ideias, expo-
sições, programações e perspectivas de mundo
como um ser que pensa, sente e tem coisas a
dizer, direitos historicamente negados a elas e à
gente como a gente.
Existe uma história do meu povo que
conta que, ao longo das invasões e genocídio
em nossos territórios tradicionais, o sangue
dos Puri que escorreu na terra formou sob sua
superfície uma serpente, xamun, que um dia irá
emergir e nos vingar da violência colonial. Fomos
assassinados, desterritorializados, dispersados e
impedidos de praticar nossa cultura e língua e até
hoje enfrentamos o discurso da desaparição e o
trauma. Nos últimos anos temos nos organizado,
em retomada, pelas nossas terras, identidades e
direitos, em um movimento de reelaboração de
mundos a que se atribuíram fins. Uma vingança
contracolonial que surge da memória da terra,
como xamun, para recuperar o que nos foi tomado.
Aqui já foi aldeia.
Nesse sentido, penso como o fazer curato-
rial tem a capacidade de ser um lugar poderoso de
enunciação e construção de imaginários, podendo
ser comprometido ou não com a agenda colonial.
É sabido que, historicamente, o lugar das cura-
dorias institucionais operou, e ainda opera com
bastante frequência, a lógica ocidental e branca,
determinada a partir de padrões europeus, e que
esse modus operandi está estrangulado pelas
violências que reverbera. Ainda assim, ele impera
dentro da lógica mercadológica e capitalista que
rege as estruturas sociais e que também faz de 149
refém o meio artístico e a construção de subje-
tividades. O questionamento que me inquieta é:
até quando?
Na ocasião em que tive de responder
aos meus familiares o que era curadoria acabei
por elaborar uma resposta curta: é um ofício em
que pesquisamos e trabalhamos para dar vida
a ideias. Partindo disso, podemos pensar quais
ideias queremos fazer acontecer. A curadora das
duas exposições supracitadas que me marcaram,
Beatriz Lemos, disse em uma das oficinas que
tivemos na residência que “o poder da curadoria
era o poder de fazer”. Penso, então, como esse
poder de fazer pode ser mobilizado para uma
prática curatorial como exercício de comunidade
circular, não hierárquica, e como estratégia que
subverta a colonialidade.
É evidente que não podemos ser ingênuas
e achar que essa perspectiva será facilmente
aceita ou até mesmo viável diante das forças
econômicas e sociopolíticas que sustentam as
instituições e o mercado artístico, entretanto,
como é possível compor estrategicamente com
esse cenário e ensaiar outros caminhos? Afinal,
aqui já foi aldeia. Durante milhares de anos e até
hoje, os povos originários nunca se viram sepa-
rados do meio, somos o território que pisamos,
ele nos faz e nutre. A arte nunca foi um campo
dissociado da vida cotidiana, não existe fazer
individual, compomos com todas as forças, ainda
que adversas. Quantas vezes se pensa a curadoria
como um fazer comunitário, e não como prestígio
individual? A prática curatorial é um lugar que tem 150
poder de provocar subjetividades e, até mesmo,
transformá-las, com a capacidade de ser propo-
sitiva. O que invoco, aqui, é que esse artifício seja
dialógico e compartilhado com a comunidade, que
dela se faça e se reconheça e para ela retorne.
Curadorias que se proponham enquanto trabalho
de rede e que assumam um honesto compromisso
anticolonial. E que vá além disso. Desfabular um
mundo colonial é fundamental, entretanto não
me interessa ficar refém de subentendê-lo para
dar vida às ideias, podemos criar novas coisas.
Voltar-se para si enquanto eu-coletivo
e para a memória da terra enquanto organismo
vivo nos permite costurar tecidos de vida mais
generosos e respiráveis. Esse exercício perpassa
reconhecer que o que não é objetivo ou material
também é essencial para a sobrevivência. Em
algum momento histórico, ficcionalizaram uma
identidade brasileira e o que seria uma socieda-
de desenvolvida, roubaram territórios de suas
pessoas, sensibilidades e dinâmicas singulares
interdependentes. De fato, a ordem vigente
seria o afastamento e a partir dela pensou-se o
progresso através do des-envolvimento. Como
podemos, na nossa vez, imaginar e fazer acon-
tecer novos envolvimentos e vínculos ancestrais
eu-comunidade-subjetividade-mundo?
Território foi o fio condutor da residência
e, por meio dele, tive a oportunidade de conhecer,
partilhar e criar em coletivo com pessoas que vie-
ram das margens como eu, cada uma de um lugar
diferente do Rio de Janeiro, com vivências únicas
e, ao mesmo tempo, familiares. Idealizamos juntos, 151
a partir dos nossos códigos de entendimento de
vida, que aprendemos com nossas comunidades,
o evento Fractais: contra diásporas da cidade,
com múltiplas linguagens artísticas e espaços
de debate sobre o mundo que temos e o que
queremos construir. Celebramos nossos corres,
colocamos o dedo na ferida e propusemos uma
nova maneira de fazer curadoria: um exercício
de comunidade.
Cito parte do texto curatorial da exposição
que compôs o evento: “Mais do que enunciar a
criação de outros centros além dos hegemônicos,
invocamos um movimento-ação contracentro
como prática anticolonial, pois, onde existe centro,
existe margem”. Sob essa perspectiva, enuncia-
-se um convite para imaginações outras que não
estão dadas, que ainda não existem. Somos nosso
território e nossa gente, que sejamos capazes de
fazer o caminho da volta para ensaiar futuros no
agora. Aqui já foi aldeia e iremos retomar.
Krim xamun kandu axe.2

2. “Serpente de
sangue incendeia
a terra” em
kwaytikindo,
língua puri.

152
QUEM NOS
ENSINOU QUE
NOSSO CORPO
NÃO CABE
NOS ESPAÇOS
DE ARTE?
Marina Souza
MARINA SOUZA
é artista visual, produtora e mediadora cultural. De-
senvolve pesquisa sobre ancestralidade e memória a
partir de fotografias de família. Possui experiência em
desenvolvimento de projetos artístico-culturais, produ-
ção e direção de arte. Seus conhecimentos englobam
as áreas de arte contemporânea, música e cultura ori-
ginária, com foco em perspectivas identitárias negras.
Umbigo: depressão cutânea localizada no centro
do abdômen, formada a partir da cicatriz do corte
do cordão umbilical. O meu, particularmente, sal-
tado um pouco para fora por conter uma hérnia. A
obra Umbilical, do artista William Araujo, me trouxe
provocações imediatas. A imagem de um umbigo
preto pixelado fincado por um prego na parede de
um espaço de arte diz tanto sobre tantas coisas:
corpo, travessia, território, conexão, deslocamen-
to, diáspora, movimento, pertencimento. Como
seria ter o meu próprio umbigo como centro? Se
a branquitude se estruturou por tanto tempo ten-
do a noção de universalidade partindo de si para
falar do todo, tendo o outro como Outro, por que
eu não posso partir de mim para falar de tudo?
Meu umbigo preto, favelado, na parede
do MAM! É assim que traduzo a experiência de
compor a segunda turma de residentes de Terri-
tórios Curatoriais. A residência foi proposta pela
equipe de Educação e Participação, representada
por Renata Sampaio, Shion L e Lais Daflon, contou
com três jovens curadores pretos convidados para
acompanhar o processo com mentorias, Carolina
Rodrigues, Jean Carlos Azuos e Melissa Alves, e
com uma turma de onze pessoas racializadas,
oriundas de territórios fora do circuito artístico
(centro-zona sul). As trocas com a turma geraram
em mim uma noção de reconhecimento e per-
tencimento. Estar durante seis meses no museu
em contato com vivências e pesquisas diversas
e ao mesmo tempo semelhantes às minhas, por
se alinharem ao passarem por corpos negros em
deslocamento, vivendo a diáspora na cidade do Rio 155
de Janeiro, foi enriquecedor para esse processo
de cura em um espaço onde já desenvolvo uma
relação há anos.
Em 2019, ingressei ao corpo de orienta-
dores de público do Museu de Arte Moderna do
Rio. Com muito fascínio em compor a equipe de
uma instituição tão importante para a história da
arte brasileira, a possibilidade de interagir com
as obras e o público me fascinava. Mas esperava
alguma formação para que essa mediação acon-
tecesse sob a proposta do museu. Por estar em
um espaço de arte, minha presença era movida
pela possibilidade de encontrar formas para que
as pessoas como eu que frequentam o museu se
deixassem tocar pelas obras, principalmente as
contemporâneas, que são mais passíveis de serem
deslegitimadas pelo grande público. Eu ainda não
sabia muito sobre o papel da arte-educação, mas
era o que me atraía.
Mas como pensar em acolhimento ao
público em um espaço de arte como o MAM Rio,
onde a arquitetura já impõe certo distanciamento
e evidencia a pequenez das pessoas diante de
tamanha imensidão e grandiosidade? Com o aces-
so prejudicado por não fazer parte dos espaços
centrais de arte e por manter certo isolamento
em relação a outras instituições e percursos de
arte? Como fazer as pessoas se sentirem parte
desse espaço que é — ou deveria ser — para to-
des? Quais estratégias assumir para que esse
espaço majestoso e imponente se atente às
questões atreladas à pequenez de seus visitantes,
principalmente visitantes de outras regiões que 156
passam por ali sem saber do que se trata, mas
que acessam os arredores e consequentemente
adentram o museu?
Para além de todas essas questões impos-
tas, como ser um corpo negro que se apresenta
nesse espaço sem ligar para o desconforto de
outros corpos semelhantes ao meu que se sen-
tem enrijecer ao passar pela porta de entrada?
Como não ser instrumento de opressão quando
minha função se resume apenas em apontar as
placas de sinalização e cuidar para não usarem
flash ao fotografar as imagens que os tocam?
Por que não interagir mais abertamente com o
público, trocando informações sobre as obras,
o espaço, tornando a visita um pouco mais in-
teressante com informações que agreguem e
facilitem o entendimento?
Passei pela fase de me sentir encantada
com a instituição, depois desanimada e, por fim,
frustrada por saber que, na época em que estive
trabalhando nela, outras pessoas com formação
e possibilidade de atuação no contato direto com
o público eram desperdiçadas por um modo de
trabalho que não compreendia a importância do
papel da mediação.
Acredito que os espaços de arte pre-
cisam estar atentos às questões levantadas
pela sociedade e pelo público e se deixar serem
afetados por outras vivências, camadas e clas-
ses sociais. A arte-educação como ferramenta
possível de transformação social possibilita um
ambiente acolhedor, de escuta ativa e atenta
às proposições, promovendo um espaço menos 157
desigual onde os saberes são possibilitados e
cultivados, e não cerceados. Hoje, após diversas
experiências profissionais, minha atuação se
estrutura na arte-educação. Apenas a educação
encontra respostas a diversas inquietações e,
mesmo quando não as encontra, acolhe e incentiva
a descoberta coletivamente, aguçando o olhar,
instigando a curiosidade e apontando possíveis
caminhos. É o fio que tece as relações, as chegadas
e cheganças, que estrutura o olhar, o acesso, as
condições de permanecer e confrontar o espaço.
Não esqueço de uma visita escolar mediada
por Lais Daflon e Shion L que pude acompanhar
enquanto orientadora, para dar suporte ao edu-
cativo, na qual a proposta era ver a exposição por
outra perspectiva e todas as crianças deitaram
no chão.
Somente a educação pode criar espaços
de trocas com tanta liberdade, deixar o público
fluir em liberdade, estimulando a autonomia, ainda
que com acordos firmados e supervisionamento,
tendo o cuidado de entender que muitas vezes é
o primeiro contato do público com um espaço de
arte, que o corpo nasce livre e nós o adestramos.
Quem nos ensinou a andar com os braços para
trás em uma exposição? Quem nos ensinou a
não correr? A fazer gestos tão milimetricamente
controlados ou a prender a respiração ou boce-
jar/tossir baixinho para não atravessar a aura de
silêncio imposta? Quem nos ensinou que nosso
corpo não cabe nos espaços de arte?
Permitir que a espontaneidade se apre-
sente num lugar tão engessado quanto pode 158
ser um museu é um ato transgressor. Por isso
é imprescindível que a equipe seja composta
de pessoas diversas, que estejam atentas às
inúmeras possibilidades de existências, para
transformar esse espaço verdadeiramente em
um lugar para todes.
A possibilidade de reconstrução dessa
relação MAM------eu só foi possível por ver e me
sentir representada e acolhida por alguém que
se parece comigo, ter um grupo de pessoas com
vivências parecidas com as minhas, comparti-
lhando os prazeres e perrengues de morar em
territórios descentralizados, dividir os incômodos
físicos ao atravessar a entrada das instituições
e saber que eles não são particulares apenas da
minha vivência.
Através da residência foi possível rees-
tabelecer um vínculo com o museu, entrar nas
exposições e ressignificar cada espaço, criar
relações mais interessadas, conhecer as es-
truturas que possibilitam o dia a dia de um lugar
tão importante como o MAM, visitar o acervo e
entender as complexidades entre o fazer possí-
vel e o ideal. Me sentir parte, enquanto pessoa
pesquisadora interessada em saber mais desse
lugar que foi mais minha casa do que meu próprio
lar por bastante tempo.
Saio desse ciclo com o título de curado-
ra, com a honra de ter curado uma exposição no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com
sete artistas pretes e indígenas de territórios
descentralizados, ao lado de três curadores in-
críveis, Geovana Melo, Junior Negão e Letícia Puri. 159
E com a sensação de ter realizado um trabalho
importantíssimo na vida de cada pessoa envolvida
e na história da própria instituição, vivenciando
o que pude e o que minha autossabotagem me
permitiu viver, mas com a leveza de conseguir
firmar meus pés nesse chão.
Esse processo me possibilitou viver o que
há tempos busco encontrar: ser legitimada en-
quanto pesquisadora, curadora e artista no mesmo
espaço que já foi palco para desconstrução da
autoconfiança acerca de tudo isso.
Por muito tempo pensei ser errado me
colocar como ponto de partida e centro das
coisas, como se fosse possível ver com outro
olhar, pensar por outro ponto de vista, ter outra
perspectiva, mas isso tudo constitui quem eu sou.
Olhar para o meu próprio umbigo e entender que
dele parte a complexidade do universo, envolto
pela circularidade, conexão materna ancestral.
Se em algum momento este museu foi
palco para modernistas se apropriarem de cultu-
ras originárias para definirem o que é brasilidade,
hoje eu, Marina Souza, filha de dona Rosa e João
Batista, finco aqui o meu umbigo como forma de
me apoderar desse espaço, estabelecer novos
centros e esperançar novos futuros.

MAM, estou comendo você!

160
RESIDÊNCIA
TERRITÓRIOS
CURATORIAIS
A residência Territórios Curatoriais é um programa
voltado para pessoas a partir de 16 anos, moradoras
de regiões periféricas do município ou da região
metropolitana do Rio de Janeiro, interessadas
nas áreas de curadoria, crítica de arte, história da
arte, escrita e outros profissionais que se sintam
convocados a pensar curadoria. Em sua segun-
da edição, foi constituída de encontros online e
presenciais, coletivos e individuais, que reuniram
processos formativos em curadoria. Entre março e
setembro de 2023, onze residentes acompanharam
palestras e um curso, receberam mentorias indivi-
duais e coletivas e, por fim, realizaram a curadoria
e a produção do evento Fractais: contra diásporas
da cidade.

RESIDENTES
Aymée Godoy Lucas Magalhães
Geovana Melo Marina Souza
Jorge Freire Rosemeri Conceição
Juliane Gamboa Thamires Siqueira
Junior Negão Yuri Menezes
Letícia Puri

MENTORIA
Carolina Rodrigues de Lima
Jean Carlos Azuos
Melissa Alves

163
PROGRAMAÇÃO
CICLO DE PALESTRAS 31 de junho
ONLINE PALESTRA COM BITU CASSUNDÉ
Em quatro palestras, profissio- Gerente de patrimônio e memória
nais da curadoria e da pesquisa do Centro Cultural do Cariri (Crato/
apresentaram suas trajetórias e CE). Foi curador do Museu de Arte
diferentes experiências. Contemporânea do Ceará de 2013
a 2020 e coordenou o Laboratório
12 de junho de Artes Visuais do Porto Iracema
PALESTRA COM IGI LOLA AYEDUN da Artes de 2013 a 2018.
Artista autodidata, diretora e
fundadora da galeria/residência 21 de agosto
HOA. Trabalha com pintura, dese- PALESTRA COM WALLA CAPELOBO
nho, texto, vídeo, imagens em 3D, Transfeminista e anticolonial,
fotografia e som. pesquisadora e artista que cria
na espiral do tempo, na busca
10 de junho de ser semente crioula capaz de
PALESTRA COM RAPHAEL FONSECA regenerar terras invadidas.
Doutor em história da arte pela
UERJ e pesquisador nas áreas
de história da arte, curadoria e
educação. Curador de arte latino-
-americana moderna e contem-
porânea no Denver Art Museum,
nos Estados Unidos. Trabalhou
como curador do MAC Niterói
entre 2017 e 2020.

164
CURSO ONLINE: DIÁLOGOS Aula 4 | 17 de maio
SOBRE CURADORIA DIÁLOGOS ENTRE
O curso refletiu sobre o conceito CURADORIA E TERRITÓRIO
de curadoria a partir de falas de Com Ana Paula Lopes e João Paulo
profissionais da área, da pesquisa Ovídio
e da história da arte de diferen-
tes contextos, a fim de ampliar a Aula 5 | 22 de maio
noção de prática curatorial para ESPAÇOS INSURGENTES
além dos limites historicamente E SUAS PROPOSTAS
construídos. Com Alan Weber e Lorraine Mendes

Aula 1 | 8 de maio Aula 6 | 24 de maio


O QUE É CURADORIA? EDUCAÇÃO COMO
Com Pablo Lafuente e Igor Simões PRÁTICA CURATORIAL
Com Clarissa Diniz e Mônica Hoff
Aula 2 | 10 de maio
MUSEUS E SUAS COLEÇÕES: Aula 7 | 29 de maio
COMO SE FORMAM OS ACERVOS? CURADORIA COMO ATO
Com Horrana Santos e o projeto POLÍTICO INSTITUCIONAL
de pesquisa Mulheres nos Acervos Com Edson Kayapó e Luciara Ribeiro
(Cristina Barros, Mel Ferrari e Nina
Sanmartin) Aula 8 | 31 de maio
TROCA DE EXPERIÊNCIAS
Aula 3 | 15 de maio ENTRE RESIDENTES
PRÁTICAS DE PESQUISA NA
CONTEMPORANEIDADE
Com Nathalia Grilo e Raquel Barreto

165
EVENTO DE ENCERRAMENTO
FRACTAIS: CONTRA
DIÁSPORAS DA CIDADE
23 SET. 2023 | 10H — 18H

Fractal é tecnologia ancestral. PROGRAMAÇÃO


É uma figura geométrica produ- DO EVENTO
zida por meio de equações ma-
temáticas, em que o todo forma CONTRACENTRO:
a parte e a parte reflete o todo, CARTOGRAFIAS DO SUBÚRBIO
assim como o todo traduz a parte. Exposição | Salão de eventos do
No continente africano, está no MAM Rio | 10h — 18h
design dos tecidos, esculturas, A exposição apresentou os ter-
máscaras e cosmologias religio- ritórios físicos e simbólicos da
sas; na arquitetura e urbanismo, cidade. Por meio da fotografia,
em aldeias e montanhas de Ca- os artistas Rapha Sancho, Visão
marões ou Zâmbia. Na residência de Cria, Tayná Uràz, Nayane Silva,
Territórios Curatoriais, o fractal Bárbara Copque, Patrick Marinho e
é invocado pela curadoria para Emanuely Potyguara expressaram de
refletir sobre corpos dissiden- maneiras múltiplas os significados,
tes, poéticas diversas, violência questionamentos, críticas e cele-
e apagamentos sociais. Como brações presentes nos subúrbios
resultado da residência, Fractais: cariocas. Por meio da representação
contra diásporas da cidade é um e da representatividade, é possí-
evento com curadoria e produção vel reivindicar novos imaginários
dos residentes. para o que é contra-hegemônico,
descentralizando o pensamento
e trazendo o protagonismo para
espaços e pessoas.

166
TERRITÓRIOS DE CRIAÇÃO apresentaram diferentes formas
Obra com performance de ativa- de ocupação desses espaços e
ção | Salão de eventos do MAM sua importância. Após a exibição,
Rio | 10h — 18h houve uma roda de conversa sobre
Obra e ação artística que res- direito à cidade, história local,
gata a memória da Fábrica de patrimônio histórico e produção
Tecidos Bangu — que, em 1971, artística sob um viés territorial,
doou tecidos para uma edição do divergente dos grandes centros.
programa Domingos da Criação, A conversa com Rossandra Leo-
criado por Frederico de Morais ne, Bruno Ribeiro, Sandra Maria,
no MAM Rio — enquanto promove Ynara Noronha e Giulia Maria Reis
uma reflexão sobre o impacto foi mediada por Lucas Magalhães
social e os espaços não formais e Thamires Siqueira.
de arte. Em uma tela formada
por fractais de camisas de algo- • Pipa o ano todo, de Rossandra
dão brancas sobrepostas umas Leone. Brasil, 2022. 16’41”.
às outras formando um painel, • BR3, de Bruno Ribeiro. Brasil,
os artistas Cety Soledad, Mayra 2018. 22’45”.
Carvalho e Lolly intervieram com • Memória não se remove: museus
técnica pictórica. das remoções, de Lia Peixinho.
Brasil, 2022. 12’54”.
PERCURSOS TERRITORIAIS • Crônicas de Santa Cruz, de Ynara
Sessão de filmes e debate | Noronha. Brasil, 2023. 15’.
Auditório da Cinemateca do • Km/h, de Giulia Maria Reis. Brasil,
MAM | 10h — 12h 2023. 6’.
Trajetórias formadas por diferen-
tes percursos se cruzam em meio Programação acessível com le-
ao território do Rio de Janeiro, gendas e intérpretes de libras.
em caminhos interligados em um
mesmo objetivo: coexistir e habitar
na cidade. Seja na arte, cultura,
lazer ou infraestrutura, os curtas
do programa Percursos Territoriais 167
CONVERSA COM A CURADORIA A pesquisadora Juliana
Salão de eventos do MAM Rio | Pereira e as artistas Azizi Cypriano,
14h — 15h Azula e Tayná Uràz foram con-
Conversa com curadoras e cura- vidadas para um encontro em
dores da programação, mediada que se ouviu e festejou as vozes
por Geovana Melo e Marina Souza. e as artes das muitas mulheres,
Programação acessível com in- indagando sobre apagamentos,
térpretes de libras. limites, estratégias e porvir. Me-
diação: Rosemeri Conceição e
TODO TELHADO TEM UMA Aymée Godoy.
SUSTENTAÇÃO: DIÁLOGOS A roda de conversa foi
SOBRE ARTES E MULHERISMOS iniciada com a performance de
Roda de conversa | Salão de Juliane Gamboa, lendo o poema
eventos do MAM Rio | 15h — 17h “Vozes-mulheres”, de Conceição
Em junho de 2023, ao ser premiada Evaristo.
pelo Museu Nacional de Música
Afro-americana, a artista Missy Programação acessível com in-
Elliott agradeceu a todas que a térpretes de libras.
precederam e afirmou: “Nenhum
telhado numa casa pode ficar
sem sustentação. Aqueles antes
de mim representam cada tijolo
necessário para mantê-la de pé”.
Tomando o Atlântico como
elemento de coesão das múltiplas
artes em diáspora, vamos em
busca das trajetórias e presen-
ças de mulheres artistas que,
em solo brasileiro, funcionaram
como início e fim, parte e todo,
parede e telhado de um mesmo
processo criativo.
168
AZULA E ELOÁ PURI
Pocket show | Salão de eventos
do MAM Rio | 17h — 18h
Azula Eloá Puri
Cantora e compositora. Sua arte Cantora e compositora. Suas
é travesti. Seu primeiro EP relata composições são marcadas pela
questões relacionadas aos trau- musicalidade indígena e pela re-
mas das populações negras e presentação da paisagem sonora
LGBTQIAPNB+, bem como as suas da natureza. As entidades naturais
reelaborações e possibilidades podem ser contempladas em
de superação. Nascida na zona narrativas como o assobio dos
oeste do Rio de Janeiro, começou sacis, o trovão, a cachoeira, o
sua trajetória na música ainda vento. O show ah lekah txori traz
criança nos coros de igreja, e uma mensagem de retomada: é
aos 22 anos iniciou uma vivência preciso saber quem se é e de onde
de corporeidade trans negra em vem para honrar os ancestrais,
que a música aparece como forma em que nada é realizado fora da
de expressar suas inquietações. ótica da coletividade.

169
BENFEITORES Nara Roesler
Gilberto Chateaubriand (in memoriam) Oskar Metsavaht
Joaquim Paiva Ricardo Steinbruch
Luiz Carlos Barreto Rogerio Pessoa
Tanit Galdeano
ASSOCIADOS
PATRONOS
Associados seniores |
Conselho consultivo Alessandra Ragazzo D’Aloia,
Marcia Cristina Correa Fortes e
Armando Strozenberg
Alexandre Monteiro Gabriel
Carlos Alberto Gouvêa Chateaubriand
Francisco Antunes Maciel Mussnich
Eugênio Pacelli de Oliveira
Claudia Moreira Salles
Pires dos Santos
Leonardo Orsini de Castro Amarante
Gustavo Martins de Almeida
Martha e Sergio Scodro
Heitor Reis
Raphael Manhães Martins
Helio Portocarrero
Simone Coscarelli Parma
Henrique Luz
João Maurício de Araújo Pinho CONSELHO
João Maurício de Araújo Pinho Filho
Conselho de administração
Luís Antônio de Almeida Braga
Carlos Alberto Gouvêa
Luiz Guilherme Schymura de Oliveira Chateaubriand Presidente
Luiz Roberto Sampaio Paulo Albert Weyland Vieira
Nelson Eizirik Vice-Presidente
Paulo Albert Weyland Vieira Armando Strozenberg
Ronaldo Cezar Coelho Eugênio Pacelli de Oliveira
Pires dos Santos
Associados plenos
Fernando Marques Oliveira
Full Associates
João Maurício de Araújo Pinho Filho
Alessandro Horta
Luis Paulo Montenegro
Armínio Fraga
Luiz Roberto Sampaio
Claudia Moreira Salles
Nelson Eizirik
Elena Landau
Eliane Aleixo Lustosa de Andrade Conselho fiscal
Fernando Marques Oliveira Cesar do Monte Pires
Fred Gelli Edson Cordeiro da Silva
João Marcello Dantas Leite Ricardo Lopes Cardoso
Joaquim Paiva Comitê de investimentos
José Francisco Gouvêa Vieira Edmar Bacha
Livia de Sá Baião Helio Portocarrero
Luiz Carlos Barreto Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho
Marcos Falcão Luiz Roberto Sampaio
Max Perlingeiro Pedro Luiz Bodin de Moraes
EQUIPE Operadores cinematográficos
Edson Gomes
DIRETORIA Sidney de Mattos
Recepcionista
Diretoria executiva
Bernardo Camara
Paulo Albert Weyland Vieira
Diretoria de planejamento, EDUCAÇÃO E PARTICIPAÇÃO
administração e finanças
Gerente
Pedro José Rodrigues
Renata Sampaio
Diretoria artística
Coordenadoras
Pablo Lafuente
Shion L
CURADORIA Stephanie Santana

Curadora-chefe Assistente administrativa


Beatriz Lemos Negra Maria Gomes

MUSEOLOGIA PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO

Gerente Coordenadora de pesquisa


Cátia Louredo e documentação
Aline Siqueira
Coordenadora de museologia
Camila Pinho Pesquisadora
Moema Bacelar
Coordenadora de conservação
Manuela Pereira Arquivista
Cláudio Barbosa
Museóloga
Ana Beatriz Cascardo Museólogo
Maurício Sales
Montadores
José Marcelo Peçanha Bibliotecário
Reinaldo Alves
Noan Moreira
Auxiliar de biblioteca
CINEMATECA
Flávio Augusto
Gerente Jovem aprendiz
Hernani Heffner Maria Victória Viana
Coordenador de cinema
PRODUÇÃO
José Quental
Gerente
Coordenador de
documentação de cinema Jusele Sá
Fábio Vellozo Coordenador de produção
Pesquisador de cinema Alexandre Silva
Carlos Eduardo Pereira Produtoras
Assessor audiovisual Keith Soares
Tiago Ferreira Julliana Santos
COMUNICAÇÃO E DESIGN Assistentes de bilheteria
Brena Araújo
Gerente
Luma Anunciação
Erika Palomino
Assessora de diretoria
Coordenadora de design
Leticia Nunes
Amanda Lianza
Designer OPERAÇÕES E TI
Nathalia Matsuda
Coordenadora de operações
Editor de conteúdo digital Marayza Almeida
Danilo Satou
Analista de operações e manutenção
Audiovisual Karolaine Lisboa
Matheus Freitas
Eletricistas
Fotógrafo Edmilson Fernandes Carvalho
Fabio Souza João Elias de Almeida
Assessoria de imprensa Mecânicos de refrigeração
Mônica Villela Reginaldo Pessanha dos Santos
Roberto Monteiro Leocadio
RELAÇÕES INSTITUCIONAIS
Operador de ar-condicionado
Gerente
Marcelo Antonio de Almeida
Paula Correia
Auxiliares de manutenção
Analistas
Antonio Marcos Araújo
Caroline Bellomo
Elvis de Oliveira Rodrigues
Juliana Torres
Josias da Conceição Madeira
Estagiária
Supervisora do salão de exposição
Jessica Nunes
Ana Paula Pinheiro
ADMINISTRAÇÃO E FINANÇAS Auxiliar do salão de exposição
Joice Jessica Fernandes
Superintendência financeira
Carlos Mineiro Orientadores de público
Diego Emanuel Fonseca
Analista de recursos humanos
Giselle Lima Glayton Araújo Lisboa
Raquel Accacio
Analista administrativo financeira
Vinicius Lima
Juliana Orsolon
Recepcionista
Analista de projetos
Fabiana Lima
Ualace Miliorini
Atendente de loja
Analista de compras
Thamires Santos
Eduarda Seixas
Auxiliar de escritório
Leticia Tereza
Prestadoras de serviços PUBLICAÇÃO
Air Service Ar-condicionado Eireli
Best Force Geradores Eireli EPP Gerência de educação e participação
Brasil Forte Vigilância e Segurança Ltda. Renata Sampaio

Elevadores Salta Coordenação de mediação


FLEC Tecnologia Lais Daflon
Fraga, Bekierman e Cristiano Advogados Gerência de comunicação e design
Lacus Tratamento de Água e Erika Palomino
Serviços Químicos Eireli
Coordenação de design
Leal Cotrim Jansen Advogados Amanda Lianza
Vértice MultiServiços
Coordenação editorial
Olivieri & Associados —
Juliana Travassos
Consultoria Jurídica
Palma e Guedes Advogados Revisão
Red Safety Segurança Daniela Uemura
Contra Incêndio Ltda. Projeto gráfico
Estúdio Daó (Giovani Castelucci
e Guilherme Vieira)
Patrocinadores estratégicos
Instituto Cultural Vale e Ternium por meio da Lei Federal
de Incentivo à Cultura e Petrobras por meio da Lei
Estadual de Incentivo à Cultura — Lei do ICMS RJ.

Patrocinadores
Mattos Filho Advogados, BMA Advogados, Redecard, Sergio
Bermudes Advogados, Gávea Investimentos, Eneva e
Granado por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
Vivo por meio da Lei Estadual de Incentivo
à Cultura — Lei do ICMS RJ.
Deloitte, XP Inc., Adam Capital, Concremat, Globo, Guelt
Investimentos, Icatu, JSL e Multiterminais por meio da
Lei Municipal de Incentivo à Cultura — Lei do ISS RJ.

Agradecimentos
Ministério da Cultura.
Governo do Estado do Rio de Janeiro e Secretaria de
Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro.
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria
Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.
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e os autores.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M986
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Fractais: contra diásporas da cidade / Aymée Godoy ;
Carolina Rodrigues de Lima ; Geovana Melo ; Jean Carlos
Azuos ; Jorge Freire ; Juliane Gamboa ; Junior Negão ; Lais
Daflon ; Letícia Puri ; Lucas Magalhães ; Marina Souza ; Melissa
Alves ; Renata Sampaio ; Rosemeri Conceição ; Shion L ;
Thamires Siqueira ; Yuri Menezes — Rio de Janeiro : Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2024.
177 p. : il. color.
6,2 MB. ; PDF.
ISBN 978-65-88670-26-2 (recurso eletrônico)
Residência realizada entre 29 mar. 2023 — 29 set. 2023
1. Residência. 2. Curadoria. 3. História da arte. 4. Museologia.
5. Educação. I. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
II. Autor. III. Título.
CDD: 069.51

Bibliotecário: Reinaldo Bruno Batista Alves - CRB 6649/2014

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro


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Parque do Flamengo
20021-140 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Tel. 55 21 3883-5600
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Esta publicação foi composta com as fontes


Epilogue, da Etcetera Type Co, Plus Jakarta Sans,
da Tokotype e Queering, de Adam Naccarato.

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