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THIEME
Artigo de Revisão 139
1 Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Santa Casa de Misericórdia de Endereço para correspondência Fabrício Luz Cardoso, Av. Monte
Marília, Faculdade de Medicina de Marília, Marília, SP, Brasil Carmelo, 800 - Fragata, Marília, SP, Brasil. CEP: 17519-030
2 Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Faculdade de (e-mail: fabricioramalhense@gmail.com).
Medicina de Marília, Marília, SP, Brasil
3 Faculdade de Medicina, Universidade de Marília,, Marília, SP, Brasil
Resumo A paralisia obstétrica é classicamente definida como a lesão do plexo braquial decorrente da
distócia de ombros ou das manobras executadas no parto difícil. Nas 2 últimas décadas,
vários estudos comprovaram que metade dos casos de paralisia obstétrica não estão
associados à distócia de ombros e levantaram outras possíveis etiologias para a paralisia
obstétrica. O objetivo do presente trabalho é colher dados da literatura de revisão, artigos
clássicos, sentinelas e da medicina baseada em evidências para compreender melhor os
eventos envolvidos na ocorrência de paralisia obstétrica. Foi realizada uma revisão da
literatura no motor de busca da PubMed (MeSH - Medical Subject Headings) com as
seguintes palavras-chave: shoulder dystocia and obstetric palsy, completamente aberto, sem
limites de língua ou data. Posteriormente, definimos como critério de inclusão artigos de
revisão. Encontramos 21 artigos de revisão com associação dos temas descritos até 8 de
março de 2018. Frente às melhores evidências existentes até o momento, está bem
Palavras-chave
demonstrado que a paralisia obstétrica ocorre em partos não complicados e em partos
► paralisia obstétrica
cesáreos, e são múltiplos os fatores que podem causá-la, relativizando a responsabilidade
► ombro
de médicos obstetras, enfermeiras e parteiras. Procuramos, com o presente estudo,
► distocia
quebrar os paradigmas de que paralisia obstétrica se associa obrigatoriamente à distócia
► traumatismos do
de ombros e que a sua ocorrência necessariamente implica em negligência, imperícia ou
nascimento
imprudência da equipe envolvida.
Abstract Obstetric palsy is classically defined as the brachial plexus injury due to shoulder
dystocia or to maneuvers performed on difficult childbirths. In the last 2 decades,
several studies have shown that half of the cases of obstetric palsy are not associated
with shoulder dystocia and have raised other possible etiologies for obstetric palsy. The
purpose of the present study is to collect data from literature reviews, classic articles,
Trabalho desenvolvido na Faculdade de Medicina de Marília,
Marília, SP, Brasil.
sentries, and evidence-based medicine to better understand the events involved in the
occurrence of obstetric palsy. A literature review was conducted in the search engine
PubMed (MeSH - Medical Subject Headings) with the following keywords: shoulder
dystocia and obstetric palsy, completely open, boundless regarding language or date.
Later, the inclusion criterion was defined as revisions. A total of 21 review articles
associated with the themes described were found until March 8, 2018. Faced with the
Keywords best available evidence to date, it is well-demonstrated that obstetric palsy occurs in
► paralysis, obstetric uncomplicated deliveries and in cesarean deliveries, and there are multiple factors that
► shoulder can cause it, relativizing the responsibility of obstetricians, nurses, and midwives. The
► dystocia present study aims to break the paradigms that associate obstetric palsy compulsorily
► birth injuries with shoulder dystocia, and that its occurrence necessarily implies negligence,
malpractice or recklessness of the team involved.
Realizamos uma revisão manual da bibliografia dos 21 Na ►Tabela 2, encontram-se os dados referentes ao
artigos que originaram nossa revisão e adicionamos à nossa número de ordem, tipo de estudo, número de bibliografias
bibliografia os artigos que foram citados na maioria das utilizadas por cada artigo, pontos mais relevantes e conclu-
publicações e também os artigos considerados clássicos ou sões do estudo.
sentinela (nestes não foram considerados o ano de publica-
ção ou a língua). Com esse conceito, foram valorizados os
Discussão
artigos com cunho médico-legal.
A PO é classicamente definida como paralisia flácida parcial ou
total que acomete o membro superior decorrente da lesão do
Resultados
plexo braquial ocorrida no parto. Esse conceito está presente
Foram incluídos 87 artigos com base nos critérios de tanto nos livros-texto ortopédicos quanto obstétricos2,6,
inclusão referidos anteriormente, excluindo-se 66 que não porém a literatura das últimas 2 décadas tem mostrado que
tinham características de revisão ou eram publicações mais da metade dos casos não estão associados à DO.14,23,35
repetidas dos mesmos autores em outro periódico em Outras etiologias têm sido consideradas, como origem congê-
versão compacta. Efetivamente, foram utilizados como nita, intrauterina, e as causadas pelas forças endógenas do
base 21 artigos, 17 de língua inglesa, 2 de língua francesa parto, dentre outras.
e 2 de língua alemã. Atualmente, temos várias evidências de que muitos outros
Os resultados encontrados mostram que não há artigos fatores podem estar envolvidos na causa da PO, sem nenhuma
com níveis de evidência adequados, sendo sua maioria de relação com as manobras de parto executadas pelos obstetras.
revisão da literatura. Zaki et al,36 em estudo sobre lesão familiar congênita de
No tocante ao ano da publicação, houve distribuição paralisia do plexo braquial, apresentam um relatório de dois
variável de 2000 a 2016 (►Tabela 1).14,16–34 níveis sobre famílias egípcias afetadas ao nascimento, carac-
Todos os estudos principais foram de revisão de literatura, terizada como relativamente incomum e quase um transtorno
pois esta é uma das premissas do método, e o número de esporádico. Mollica et al37 descrevem uma família siciliana que
artigos da bibliografia dos mesmos variou entre 11 a 121 apresenta lesão congênita do plexo braquial severa e sugerem
artigos revisados. que o gene tem herança autossômica dominante com
Encontram-se descritos os dados referentes aos 21 artigos de revisão em ordem cronológica crescente, com autoria, nome do periódico, ano da
publicação, país de origem dos autores e língua da publicação.
Tabela 2 (Continued)
Abreviações: DO, distócia de ombros; FR, fatores de risco; NBPP, paralisia do plexo braquial neonatal; PO, paralisia obstétrica.
Dados referentes ao número de ordem, tipo de estudo, número de bibliografias consultadas no artigo, pontos mais relevantes e conclusão(ões) do estudo.
penetrância reduzida. Os autores relatam que herança ligada Em relação ao parto vaginal, podemos dividi-lo didatica-
ao X com expressão em mulheres heterozigóticas não pode ser mente em três fases: a primeira delas é a dilatação e
descartada. corresponde ao abaixamento do feto no eixo de encaixe na
As malformações uterinas e as forças propulsivas na pelve óssea. A segunda fase é a de expulsão, que dura entre 30
segunda fase do parto constituem os principais fatores minutos e 2 horas.
etiológicos para as lesões do plexo,16,18,25,35,38,39 principal- A segunda fase se subdivide em duas etapas: a primeira é a
mente nos casos sem DO. conclusão da descida e rotação da apresentação, e a segunda
Entre as causas uterinas, podemos destacar as malforma- é a descida propriamente dita, na qual a pressão abdominal
ções uterinas tais como miomas, septo intrauterino ou útero deve ser controlada e dirigida com as contrações uterinas
bicorno.25 A mal adaptação intrauterina (por exemplo, oli- para que haja a expulsão do feto.2 Na segunda etapa é que
godrâmnio) pode estar relacionada à diminuição da resis- pode ocorrer a DO e as lesões do plexo devido à compressão
tência dos feixes nervosos do plexo braquial ou estruturas da do ombro posterior contra o promontório sacral durante as
cintura escapular, levando à lesão do plexo.40 contrações uterinas. Segundo modelos matemáticos, as
forças expulsivas são quatro a nove vezes maiores que a médio pago por indenizações relacionadas à lesão do plexo
tração exercida pelo obstetra.25,35 braquial foi de US$301.000,00 (aproximadamente quatro
A terceira e última fase do parto começa ao nascimento e vezes mais que o valor médio pago devido à imperícia por
termina quando a placenta dequita. outras causas no período), num valor total de US$54 milhões.
Devido a esses novos conhecimentos, Gherman et al,39 já Os valores indenizatórios foram maiores para médicos assis-
em 1998, em sua revisão, afirmavam que evidências indiretas tentes de instituições de ensino.38
estabeleciam as forças propulsoras maternas como a causa Para evitar essas situações litigiosas, Noble41 orienta reali-
mais provável da paralisia de Erb, tanto nos casos com DO zar registros precisos e detalhados para que haja uma defesa
associada quanto nos casos sem esta, pois as técnicas de bem-sucedida. Porém, o fundamental continua sendo a relação
manipulação fetal direta para a resolução da DO não médico-paciente. Hickson et al42 demonstraram em seu
se associavam a maiores taxas de lesão do plexo, fraturas estudo que 70% das mães que processaram os obstetras devido
de úmero ou clavícula. Sandmire et al,16 em 2002, Gherman a lesões perinatais em seus recém-nascidos queixaram-se que
et al,18 em 2006, Doumouchtsis et al,25 em 2010, e Abzug esses profissionais não as informaram adequadamente acerca
et al,27 em 2014, respectivamente, evidenciaram esses das possíveis lesões permanentes no desenvolvimento neu-
conhecimentos em suas revisões, dando informações sufi- ropsicomotor de seus filhos. Informar os riscos inerentes ao
cientes para concluir-se que a recente ênfase dada à MBE parto, como o fato de que lesões do plexo braquial não são
abalou muitos dos mitos e equívocos em torno da DO. necessariamente decorrentes de tocotraumatismo, e tentar
Portanto, o peso imputado ao médico assistente no parto entender os medos e anseios da paciente são essenciais para
devido a uma lesão do plexo braquial necessita ser revisto. minimizar as questões médico-legais.36
Os principais fatores de risco para lesão do plexo braquial A capacitação da equipe cirúrgica quanto à compreensão
são: macrossomia fetal (peso fetal > 4.000 g), apresentação completa da anatomia pélvica e fetal, bem como dos meca-
pélvica e DO.2,6,11,12,19,21,26,35 A obesidade materna, diabetes nismos, algoritmos e manobras através dos quais a distócia
materno ou gestacional, aumento excessivo de peso durante pode ser resolvida, o conhecimento epidemiológico da inci-
a gravidez, sexo masculino do feto, prematuridade, história dência, prevalência e alterações temporais da paralisia do
pregressa de macrossomia fetal, partos distócicos anteriores, plexo braquial neonatal, são de fundamental importância
multiparidade, instrumentação com fórceps, idade materna para o bom gerenciamento de um centro obstétrico.19,29,32–34
avançada e nascimento pós-termo são considerados fatores Legendre et al,31 defendem em seu estudo o treinamento
de risco secundários.18,21,39,40 Ouzounian30 defende que a prático inicial e contínuo dos vários atores na sala de nasci-
cesariana reduz, mas não elimina completamente o risco de mento usando manequins, que segundo os autores está asso-
lesão do plexo braquial. ciado a melhorias na administração de distócia do ombro do
Apesar das múltiplas análises de fatores de risco na que ao treinamento usando o tutorial em vídeo.
literatura, DO não pode ser prevista ou evitada, pois os
métodos precisos para identificar quais os fetos que irão
Considerações finais
experimentar essa complicação não existem. Os dados
encontrados no pré-natal e pré-parto têm baixo valor pre- Acreditamos que com a presente revisão da literatura pode-
ditivo.18,22,24,26 O exame ultrassonográfico realizado tardia- mos sem sombra de dúvidas auxiliar a quebrar o paradigma
mente na gestação também apresenta baixa sensibilidade, estabelecido desde a antiguidade de que essa lesão seria
com pouca precisão sobre a estimativa do peso ao nasci- causada única e exclusivamente por imperícia médica. A
mento – há uma tendência geral a superestimá-lo. Devemos literatura está mudando sua direção, demonstrando que há
salientar ainda que a DO ocorre mais comumente em outras múltiplas causas ou co-causas para a ocorrência de
pacientes sem fatores de risco.26 paralisia obstétrica, em algumas delas sem nenhum envolvi-
Como o risco de DO é diretamente proporcional ao mento da equipe médica.
aumento do peso do feto,39 tem-se proposto a cesariana Portanto, sobre de quem é a responsabilidade da PO, no
profilática em casos selecionados.32,33 Segundo a Sociedade momento há evidências indiretas que estabelecem que as
Americana de Ginecologia e Obstetrícia (ACOG, na sigla em forças propulsoras maternas (endógenas) podem ser a causa
inglês) e Schmitz,32 devemos considerá-la em fetos de mães mais provável da paralisia do plexo braquial no nascimento,
diabéticas com estimativa de peso > 4.500 g ou fetos de mães nos partos sem DO e crianças com peso < 4.000g. A PO pode
sem fatores de risco com > 5.000 g. Outros autores, como ter origem intraútero, genética, ou postural, sendo impor-
Hankins et al19 recomendam em fetos de mães diabéticas tante para a proteção médico-legal a complementação de
com estimativas de peso entre 4.000 e 4.250 g ou > 4.000 g relatórios do prontuário médico, como também a realização
nas gestações de mulheres não diabéticas. de exame de ENMG até 21 dias após o nascimento para
Uma melhor compreensão das causas da PO se faz neces- definir se esta ocorreu intraútero ou no nascimento. Há ainda
sária, uma vez que as demandas médico-legais têm aumen- a necessidade de novas publicações bem embasadas e pros-
tado em todo o mundo, e, na maioria das vezes em que há pectivas com MBE para melhor definir qual o real ou os reais
perda permanente da função do membro superior, o médico responsáveis pela ocorrência de PO.
assistente é obrigado a indenizar a família da criança por
imperícia. Segundo a Associação de Seguros Médicos da Conflito de Interesses
América, de janeiro de 1985 a dezembro de 2001, o valor Os autores declaram não haver conflito de interesses.