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Prática ortuguesa
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Prática Educativa da na Edu c

Prát ica Educat iva da Língua Port uguesa na Educação Infant il


Língua Portuguesa
na Educação Infantil

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-3078-1

Daniela Guimarães
Patrícia Corsino
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
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Daniela Guimarães
Patrícia Corsino

Prática Educativa da Língua


Portuguesa na Educação Infantil

Edição revisada

IESDE Brasil S.A.


Curitiba
2012

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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor
dos direitos autorais.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
__________________________________________________________________________________
G976p

Guimarães, Daniela, 1969-


Prática educativa da língua portuguesa na educação infantil / Daniela Guimarães, Patrí-
cia Corsino. - 1.ed.,rev. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012.
114p. : 28 cm

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-3078-1

1. Língua portuguesa - Estudo e ensino (Pré-escolar). 2. Alfabetização. I. Corsino,


Patrícia, 1956- II. Título.

12-6553. CDD: 469.07


CDU: 811.134.3(07)

10.09.12 24.09.12 038991


__________________________________________________________________________________

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: Shutterstock

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Sumário
Linguagem e interações humanas.........................................................................................7
O que é linguagem?..................................................................................................................................7
Linguagem: comunicação e expressividade.............................................................................................9
Linguagem: organizadora da realidade.....................................................................................................11
Linguagem e cotidiano na Educação Infantil ..........................................................................................13

A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança..................................................15


Entre gestos e palavras: o surgimento da linguagem................................................................................15
Relações entre linguagem e pensamento ao longo do desenvolvimento..................................................16
Fala egocêntrica: fala para si ou fala para o outro?..................................................................................18
Gestos, expressões corporais e palavras no cotidiano da Educação Infantil............................................20

A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita..........................23


A construção de significados na brincadeira.............................................................................................23
No brincar, regras e imaginação: espaço de autonomia e autoria.............................................................25
A construção de significados no desenho e na escrita..............................................................................27
Relações entre a brincadeira, o desenho e a escrita na Educação Infantil................................................28

Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil ................................33


Considerações iniciais..............................................................................................................................33
Linguagem como espaço de interação humana........................................................................................33
Gêneros do discurso..................................................................................................................................35
Educação Infantil: textos, suportes, contextos e práticas dos gêneros discursivos..................................37

Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica.....................41


Considerações iniciais..............................................................................................................................41
Letramento: o conceito e suas dimensões.................................................................................................43
Letramento e infância...............................................................................................................................46
Considerações finais.................................................................................................................................48

A Literatura Infantil e as crianças de zero a seis anos..........................................................51


Infância e produção cultural.....................................................................................................................52
Narrar é preciso, brincar também.............................................................................................................57
Contos de fadas: de mãos dadas com a narrativa.....................................................................................62

Literatura Infantil: da produção à recepção .........................................................................67


Literatura Infantil: que gênero é esse?......................................................................................................68
Linguagem literária e pertinência temática...............................................................................................74
Prosa e poesia...........................................................................................................................................75
Ilustração e projeto gráfico do livro destinado às crianças pequenas.......................................................77
Literatura Infantil e escolas; questões à guisa de considerações finais ...................................................77

Leitura e escrita: questões para a Educação Infantil.............................................................81


Alguns pontos de partida..........................................................................................................................82

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A Psicogênese de Ferreiro e Teberosky....................................................................................................84
Do gesto à linguagem escrita: Vygotsky e a pré-história da linguagem escrita........................................86
Aprender a ler e a escrever: o aprendizado de uma forma de interação verbal........................................88
Qual é o lugar da linguagem escrita na Educação Infantil?......................................................................90

O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática......................95


Ler e escrever como práticas socioculturais.............................................................................................96

O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática


(poesia e quadrinhos)............................................................................................................103

Referências............................................................................................................................109

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Apresentação

E
sta publicação tem como objetivo apresentar e aprofundar questões que envolvem a prática
educativa da Língua Portuguesa na Educação Infantil. Considerando que as crianças estão
mergulhadas na linguagem desde que nascem, é importante focalizarmos como se apropriam
das palavras e seus sentidos, comunicando-se e se organizando no mundo simbólico ao qual per-
tencem. Ao mesmo tempo, é importante focarmos qual o papel da prática educacional no campo da
linguagem, ou seja, como ela pode favorecer a experiência da criança com a língua.
Atualmente, no terreno da Educação Infantil, há um debate intenso a respeito das peculiari-
dades da Alfabetização: a Educação Infantil é espaço para alfabetizar as crianças? Por quê? Como?
Esse é um tema fundamental desta publicação. Vamos discorrer sobre a importância de considerar-
mos, no trabalho educacional, as várias formas de linguagem que compõem o nosso mundo social,
e não apenas a escrita. Além disso, vamos dar relevo às especificidades das práticas de leitura e
escrita como práticas socioculturais e não somente como codificação e decodificação da língua.
Aprender a ler e escrever é aprender a construir significados com a escrita, de modo semelhante ao
que a criança faz com outras formas de expressão (no desenho, na dramatização etc.).
Inicialmente, vamos apresentar o conceito de linguagem que vai atravessar todo o nosso tra-
balho. Nesse movimento, dialogaremos com os autores que nos acompanharão ao longo de todas as
aulas, particularmente o filósofo alemão Walter Benjamin, o filósofo da linguagem russo Mikhail
Bakhtin e o psicólogo russo Lev S. Vygotsky. Com eles, compreenderemos a linguagem como pro-
dução de sentidos. Para além da dimensão formal e arbitrária da língua, o que lhe confere vida é a
possibilidade de comunicar e construir significados.
Seguiremos explicitando como acontece a formação e o desenvolvimento da linguagem na
criança desde o nascimento, evidenciando o entrelaçamento dos gestos, expressões faciais e palavras
no desenvolvimento da expressividade. Na sequência, focalizaremos a brincadeira e o desenho como
importantes movimentos de construção de significados pelas crianças, abordando o que Vygotsky
define como a pré-história da linguagem escrita.
Trataremos, então, de alguns conceitos de Bakhtin, especialmente os conceitos de dialogismo
e gênero discursivo. Vamos enfocar a Educação Infantil como espaço de interação social mediada
pela linguagem em seus diversos suportes e gêneros. Nesse contexto, apresentaremos o conceito de
letramento como prática social com a língua e como prática escolar.
Ao longo de todo este material vamos discutir as controvérsias que envolvem as práticas de
letramento e alfabetização. Enfatizaremos a importância de construirmos um contato significativo
com a língua, mediado por textos e suportes presentes no mundo social mais amplo, sem deixarmos
de lado a reflexão sobre as intervenções do professor, constituídas no processo de interação com as
crianças.
O terreno da Literatura será apresentado como catalisador do contato criativo das crianças com
a linguagem. Temas tais como a pertinência temática dos livros de literatura infantil e a adequação
da ilustração e do projeto gráfico nesses livros serão abordados de modo aprofundado. Por fim, foca-

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lizaremos as poesias e as histórias em quadrinhos, analisando o que oferecem como recursos mobili-
zadores da produção no contexto educacional. Ao mesmo tempo em que é interessante apresentar às
crianças essas formas e conteúdos textuais existentes em nossa vida cultural, elas funcionam como
disparadoras da produção delas.
Ao longo de todo este material, pretendemos aproximar você, leitor, de questões práticas e
teóricas, trazendo exemplos, situações cotidianas com crianças, assim como um aprofundamento na
reflexão sobre elas. Estão presentes também em nossos textos algumas citações tanto de teóricos da
linguagem quanto de autores da nossa Literatura. Buscamos, na diversidade de recursos, uma forma
de aproximar você do prazer e da vivacidade da linguagem, tal como seria importante fazer com as
crianças. Esperamos que o estudo seja proveitoso!

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Linguagem
e interações humanas
Daniela Guimarães
Patrícia Corsino

N
o contexto das relações que estabelecemos nas nossas experiências coti-
dianas, especialmente no interior das escolas, é a presença da linguagem
que pode garantir a vida, a troca de experiências, construção de uma his-
tória coletiva, comunicação, criação de novos sentidos sobre as coisas e sobre o
mundo.
A linguagem não é simplesmente algo sobre o que nos debruçamos para
apreender suas regras; não é “meio de” contato social, como um veículo, estático e
instrumental. Ela é criada pelo homem, ao mesmo tempo em que o cria; modifica-
-se nas interações humanas, permite que o homem vá além do imediato e dado no
mundo, concretizando seu potencial criador de si mesmo e da realidade.
É com a linguagem que as crianças têm contato com a cultura do meio so-
cial a que pertencem, à medida que estabelecem contato com os adultos e com os
objetos culturais próprios desse universo (textos escritos, imagens, objetos, dan-
ças, músicas etc.). Interagir com os adultos e o mundo na linguagem implica que
ao lado desse contato haja espaço para que a criança possa criar novas formas de
interação, novos objetos culturais.

O que é linguagem?
Mas, afinal de contas: o que é a linguagem? A resposta pode seguir muitos
caminhos, percorrer inúmeras teorias, ciências e momentos históricos, mas, indepen-
dentemente do ponto de vista que se aborde, a linguagem, como capacidade de simbo-
lizar, de dizer o mundo, de se expressar e de se comunicar, é o que há de mais humano
no homem. A linguagem, seja verbal (pela palavra) ou não verbal (pelo corpo, imagem
etc.), encontra-se em todas as esferas da atividade humana, interiormente, em nosso Doutoranda em Educação
pela PUC-Rio. Mestra em
pensamento, na forma como nos organizamos no mundo por meio dos símbolos e ex- Educação pela PUC-Rio. Pro-
teriormente, em nossas relações com os outros, possibilitando a comunicação. fessora do curso de Especia-
lização em Educação Infantil
Pela sua diversidade de formas e manifestações e por pertencer ao domínio - Perspectivas de trabalho em
creches e pré-escola – PUC-
individual e social, tem um caráter multidisciplinar, sendo estudada por várias -Rio.
ciências como: a Semiologia, a Linguística, a Psicologia, a Antropologia, a Socio-
Doutora em Educação
logia, a Filosofia, entre outras e sob diferentes enfoques. pela PUC-Rio. Professora
da Faculdade de Educação
No diálogo com Benjamin (1993), Bakhtin (1992) e Vygotsky (1989), nos UFRJ. Professora do curso de
domínios da Filosofia, Filosofia da Linguagem e Psicologia, respectivamente, en- Especialização em Educação
Infantil - Perspectivas de tra-
tendemos a linguagem como capacidade propriamente humana de criação de sig- balho em creches e pré-escola
nificados, construção de uma história social, expressão de singularidade. – PUC-Rio.

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Linguagem e interações humanas

É possível delinear uma visão de linguagem no diálogo com os três porque


há expressivas recorrências disso em suas obras. Os três autores desenvolvem suas
teorias no início do século XX, contrapondo-se aos regimes políticos ditatoriais
e diluidores das singularidades em que viviam. Assim, apostavam em princípios
que pudessem restituir ao homem sua qualidade de sujeito transformador da his-
tória, ativo e criativo.
Nessa perspectiva, abordam a linguagem na sua dimensão expressiva e
histórica, trazem os múltiplos sentidos das palavras, têm o homem como sujeito
social, produtor de sentido e possibilitam o movimento de repensar o nosso tem-
po, entendendo a potencialidade da linguagem como a condição da historicidade
humana.
Segundo Kramer (1993), os três autores veem a linguagem como expressão,
fazem críticas ao formalismo, dão ênfase ao riso, às lágrimas, à imaginação cria-
dora, ao sentimento, percebendo a linguagem além do signo arbitrário, negando-a
enquanto meio e forma cristalizada. Buscam uma interação viva com a língua,
trazem a emoção, o movimento da linguagem na história, percebem a linguagem
como experiência criativa ininterrupta.
Bakhtin (1992) destaca a centralidade da linguagem na vida do homem.
Segundo ele, a palavra é o elemento privilegiado da comunicação na vida coti-
diana, e está presente em todos os atos de compreensão e de interpretação. Para
esse autor, a palavra tem sempre um sentido ideológico ou vivencial, se relaciona
totalmente com o contexto e carrega um conjunto de significados que socialmen-
te foram dados a ela. Ao ser pronunciada, cada palavra evoca um significado já
estabelecido na história. Ao mesmo tempo, abre-se à criação de novos sentidos a
partir do movimento dialógico que a coloca em cena. É no diálogo que a palavra
ganha vida.
Cada palavra é polissêmica, admite vários sentidos, e plural, uma presença
viva da história por conter todos os fios que a tecem, ou seja, os vários significados
possíveis construídos ao longo da história das interações humanas. Desse modo,
uma mesma palavra assume diferentes significados, dependendo diretamente do
contexto em que é enunciada e dos sentidos dados pelo sujeito. Bakhtin considera
a palavra a ponte entre o eu e o outro, pois procede de alguém e se dirige para
alguém.
Portanto, o produto do ato da fala, a enunciação, é de natureza social, e é
determinada pela situação mais imediata ou pelo meio social mais amplo. O que
torna a compreensão de uma palavra possível é também aquilo que é presumido
pelo ouvinte, porque toda palavra usada na fala real possui um acento de valor
ou apreciativo, transmitido por meio da entoação expressiva (gestos, expressões
faciais, tonalidades, entonações etc.). A compreensão de qualquer enunciação
é sempre ativa, orienta-se pelo contexto e já contém o germe de uma resposta.
Bakhtin articula que para cada palavra que estamos em processo de compreender,
fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. A
compreensão seria, então, uma forma de diálogo. Quando compreendemos, res-
pondemos com nossa palavra.

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Linguagem e interações humanas

Benjamin (1993) elabora uma instigante reflexão acerca da linguagem como


narrativa. Ele afirma que a arte de narrar está definhando em nossa vida, desde
o advento da Modernidade, pois a troca de experiências, o contar histórias, deu
lugar à informação. A narrativa, marcada por um tempo extenso, que possibilita
ouvir o outro, conservar a tradição e a memória coletiva, foi perdendo força à
medida que a informação ganhou espaço, veloz, fugaz, abreviada e marcada pela
força do individualismo. A quantidade de informações presente na vida contem-
porânea, leva-nos às questões: o que é importante de ser guardado? Como cultivar
e tecer a história coletiva, criando elos entre passado e presente?
Além disso, em seu ensaio Problemas de Sociologia na Linguagem, Benjamin
traz uma definição de linguagem como gesticulação de instrumentos linguísticos, con-
siderando o gesto anterior ao som. Afirma que o elemento fonético está baseado num
elemento mímico-gestual, concluindo que o som da linguagem não é necessariamente
uma onomatopeia (formação de uma palavra a partir da reprodução aproximada de
um som natural a ela associado), e sim um complemento audível ao gesto mímico
visível e totalmente expressivo por si. As palavras foram se “desgrudando” das coisas,
não eram mais uma representação delas mesmas ou de seus sons, mas representações
arbitrárias de seus significados. Aos poucos, todos os gestos foram acompanhados de
um som e como o som é mais econômico (embora menos expressivo), revelando-se
menos dispendioso e exigindo menos energia, passou a predominar.
Com esses argumentos, Benjamin defende uma teoria mimética da lingua-
gem num sentido lato – o instinto de um movimento expressivo mimético por
meio do corpo. A linguagem nasceu do corpo e aos poucos foi se tornando uma
representação arbitrária, ligada aos processos mentais, às ideias. Assim, o lado ex-
pressivo da linguagem é confirmado, e ela é vista não como um meio, mas como
uma manifestação, uma revelação da nossa essência mais íntima.
Vygotsky (1989) considera a linguagem um dos instrumentos básicos in-
ventados pelo homem, que tem duas funções fundamentais: a de intercâmbio so-
cial – é para se comunicar que o homem cria e utiliza sistemas de linguagem – e
de pensamento generalizante – é pela possibilidade da linguagem ordenar o real
agrupando uma mesma classe de objetos, eventos e situações, sob uma mesma ca-
tegoria, que se constrói os conceitos e os significados das palavras. A linguagem,
então, atua não só no nível interpsíquico (entre pessoas), mas também no intra-
psíquico, influindo diretamente na construção e alteração das funções mentais su-
periores (imaginação, memória, planejamento de ações, capacidade de solucionar
problemas, de fazer análises e sínteses, entre outras). Dessa forma, os sistemas de
signos produzidos culturalmente não só interferem na realidade, mas também na
consciência do indivíduo sobre esta.

Linguagem: comunicação e expressividade


Tendo como base as ideias de Vygotsky (1989), podemos dizer que do ponto
de vista filogenético (na história da espécie humana) e ontogenético (na história de
cada ser humano), o nascimento da linguagem se dá no campo social.
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Linguagem e interações humanas

Trata-se de um processo “de fora para dentro”, ou seja, a organização externa


é internalizada pelo sujeito. Mas isso não significa que ele esteja exposto passiva-
mente às formas de linguagem de seu meio. À medida que mergulha no universo
sociocultural repleto de palavras e estilos diferentes de comunicação, cada sujeito
apropria-se dessas modalidades simbólicas. A combinação que cada um faz das
referências que recebe do mundo é sempre singular, própria e irrepetível.
Assim, ao expressar-se no mundo, o sujeito humano comunica sempre algo
particular, seja nas suas palavras, nos seus gestos ou no seu olhar, sempre em diá-
logo com as referências sociais e culturais que o envolvem.
O trabalho de Bakhtin (1992) esclarece o caráter dialógico e comunicativo
da linguagem. Para esse autor, como já adiantamos anteriormente, cada palavra
enunciada por um falante faz parte de um diálogo, é uma resposta a um enunciado
anterior e evoca uma resposta, outras palavras. Cada enunciado de uma criança
está ligado às palavras que já foram a ela comunicadas e faz parte do diálogo com
o contexto social no qual está mergulhada. Assim, não há enunciado isolado ou
palavras soltas puramente, pois todo enunciado pressupõe aqueles que o antecede-
rão e os que o sucederão. Um enunciado é sempre um elo numa cadeia, e só pode
ser compreendido no interior dela.
É importante acrescentar que as relações dialógicas são sempre relações de
sentido, quer seja entre dois participantes de um diálogo presente e real, quer seja
entre dois enunciados distantes no espaço e no tempo. No caso do diálogo e da
comunicação presente entre dois interlocutores, é preciso buscar nas palavras, nos
gestos e nas entonações, os sentidos negociados, partilhados e construídos.
Nessa perspectiva, é importante a crítica que Bakhtin elabora da linguística
formal, um modo de abordagem da linguagem numa perspectiva fria e objetiva,
ressaltando sua dimensão arbitrária, ou seja, as regras que a compõe, as relações
lógicas da língua. Essas relações são importantes e necessárias, mas não dão con-
ta da complexidade que as relações dialógicas impõem.
Para a compreensão dessa ideia, Jobim e Souza (1994) cita Lewis Carroll
(1982) propondo que observemos o seguinte diálogo de Alice e o seus companhei-
ros de aventura:
− Eu sempre digo o que penso – respondeu vivamente Alice – ou pelo menos, penso que
digo... É a mesma coisa, vocês sabem.
− Não é a mesma coisa, de modo nenhum – disse o Chapeleiro – se fosse assim, “vejo o
que como”, seria a mesma coisa que “como o que vejo”.
− Se fosse assim, “gosto de tudo o que tenho”, seria a mesma coisa que “tenho tudo o que
gosto” – disse a Lebre de Março.
− Se fosse assim – disse por sua vez o Rato Silvestre, com uma voz de quem está sonhando
alto – “respiro quando durmo” seria a mesma cisa que “durmo quando respiro”.
− Para você, é a mesma coisa sim. E a conversa morreu aí. (JOBIM E SOUZA, p. 66,
1994)

Fica bastante claro que o sentido ocupa o lugar principal em qualquer enun-
ciado, em qualquer diálogo. A análise da correção ortográfica, sintática e grama-
tical não dá conta da vida presente no enunciado humano. O humor, a emoção, o

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Linguagem e interações humanas

contexto da enunciação, os gestos e expressões que acompanham as palavras são


fundamentais na explicitação do sentido de cada enunciado e no valor de cada um,
que se estabelece nas interações entre as pessoas que os proferem.
Na verdade, trata-se de relacionar diálogo, linguagem e vida. Se analisar-
mos a língua somente em seu aspecto formal e lógico, ela perde a vida que se
caracteriza pelo potencial de variabilidade presente no tom emocional, contextual
e histórico das palavras em uso nas interações sociais.
A realidade, as coisas e o mundo são polifônicos, isto é, não possuem uma
única forma de serem vistos, conhecidos e interpretados. A realidade é plural.
Portanto, a pluralidade de sua expressão precisa garantir-se na linguagem. A uni-
dade do mundo, ou a construção de uma verdade, só é possível na interação entre
as diferentes vozes que compõem essa verdade ou unidade. É importante deixar
emergir a tensão entre as diferentes vozes que contribuem na composição de um
conhecimento, uma verdade, não deixando esmaecer seu caráter múltiplo e vivo.
É no diálogo, presente em nossas interações com as crianças nos espaços
educacionais, que a linguagem ganha vida e sentido. Nesses espaços, é funda-
mental atentarmos para os significados das palavras que variam de acordo com os
contextos de enunciação; e para a entonação e emotividade presentes nos enun-
ciados infantis.

Linguagem: organizadora da realidade


Vygotsky (2000) propõe que a linguagem tem como uma de suas funções
a organização do homem na realidade, o que ele chama de pensamento generali-
zante. Trata-se da orientação da linguagem “para dentro” de cada sujeito huma-
no, como instrumento psicológico, que modifica a capacidade de memorizar, por
exemplo. Para explicitar essa função da linguagem, é interessante perceber como
ela nasceu na história da humanidade, como uma conquista que permitiu ao ho-
mem avançar na comunicação e expansão no mundo.
A princípio, os humanos utilizaram-se de instrumentos físicos para modificar
a realidade concreta e externa. Inventaram o machado para cortar as árvores, reci-
pientes como vasos para carregar água, varas para alcançar alimentos distantes etc.
Com o estreitamento do contato entre eles, com a convivência em grupos, além des-
ses instrumentos, os homens passaram a utilizar também instrumentos psicológicos
– os signos –, facilitando a vida social, à medida que expandem a memória de cada
um, possibilitam o armazenamento da alimentação e atividades como comparar,
escolher, entre outras. Por exemplo, a invenção dos calendários, formas de marcar
a passagem do tempo; a invenção de formas de contagem, com auxílio de varas ou
traçados que facilitaram a organização dos animais que criavam etc.
O signo age como instrumento da atividade psicológica, de maneira similar
ao instrumento físico que atua sobre a realidade externa, só que o signo interfere
no funcionamento psíquico humano, controlando não as ações concretas, mas as
ações psicológicas como lembrar, ter atenção etc. O signo é uma marca externa

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Linguagem e interações humanas

que auxilia o homem em tarefas que exigem memória e atenção, principalmente.


O signo representa a realidade e permite ao homem ir além do imediato, de seus
recursos não mediados. Por exemplo, com o auxílio de marcas no mundo externo,
uma lista de palavras escritas (lista de compras), é possível organizar-se, não es-
quecer, não se perder.
Vygotsky (1989) propõe que ao longo da evolução da espécie humana e da
história de cada sujeito humano o uso de signos externos, a mediação da atividade
humana pela presença de signos, foi internalizada e desenvolvidos sistemas sim-
bólicos que organizam os signos em sistemas complexos.
Pouco a pouco, os signos (palavras, imagens etc.) que representam objetos,
pessoas, elementos do mundo real vão sendo internalizados e transformando-se
em imagens mentais. Os signos internalizados representam objetos, eventos, situ-
ações. Temos conteúdos mentais que tomam o lugar das situações do mundo real
(podemos falar deles, atualizá-los em nossa mente, mesmo quando ausentes de
nosso campo visual e presente). Essa capacidade de lidar com representações que
substituem de certa forma o mundo real permite ao homem fazer relações mentais
na ausência das coisas, imaginar, planejar etc.
Ao longo da história da espécie humana a utilização de signos é egrada nos
sistemas simbólicos dos grupos humanos, formando diferentes culturas, ou seja,
formas particulares de cada grupo organizar o real. Os signos são compartilhados
pelo conjunto dos membros do grupo social, permitindo comunicação e interação
entre esses participantes do grupo. Cada palavra/conceito aprendido por uma pes-
soa de um grupo remete a uma ideia de um objeto (a que se refere essa palavra);
esse significado está enraizado na história desse grupo social. É o grupo no qual
cada um está imerso que lhe fornece formas de perceber e organizar a realidade,
constituindo os instrumentos psicológicos que possibilitam a mediação entre este
sujeito e o mundo.
É Oliveira (1994) quem bem exemplifica que faz diferença para a formação
de cada sujeito: “se o bebê é colocado para dormir num berço, numa rede ou numa
esteira, se quem o alimenta é a mãe ou outro adulto [...] se o alimento sólido é
levado à boca com a mão, talheres ou palitos [...]” (p. 38). Essas, entre outras, são
situações socioculturais que interferem na forma como cada sujeito poderá ver-se
no mundo, organizando-se nele.
A experiência com as formas culturalmente organizadas, ou seja, com os sig-
nos fornecidos pela cultura, permite ao sujeito constituir seu sistema de signos que
funciona como um código ou filtro por meio do qual decifra o mundo. Entretanto, a
cultura não é compreendida como algo pronto, estático, ao qual cada sujeito huma-
no se submete, mas como um tipo de palco de negociações, em que os membros da
cultura constantemente estão recriando e reinterpretando significados. A vida social
é dinâmica e cada sujeito é ativo nela. Mundo cultural e mundo subjetivo interagem
e reorganizam-se mutuamente no curso desse processo.

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Linguagem e interações humanas

Vygotsky (1989) propõe que a realidade interpsíquica (o que ocorre entre os


sujeitos humanos, nas experiências culturais) torna-se intrapsíquica, torna-se de
cada um, por um processo não de absorção passiva, mas de apropriação, pelo qual
cada sujeito torna próprio e singular elementos do mundo mais amplo.

Linguagem e cotidiano na
Educação Infantil
As perspectivas acerca da linguagem sobre as quais discorremos possibili-
tam que pensemos a respeito da importância dos diálogos e da qualidade de sen-
tido que as palavras e movimentos assumem em nosso dia a dia com as crianças
no contexto da Educação Infantil.
Tanto nas falas das crianças como nos seus desenhos e dramatizações torna-
-se fundamental abrirmos espaço para a troca de experiências, a continuidade das
histórias e das propostas, a construção de sentidos por parte das crianças. Isso
caminha na contramão de um trabalho fragmentado, alienado, no qual a cada dia
fala-se de um assunto diferente e as crianças envolvem-se em sequências de ativi-
dades que não se relacionam umas com as outras.
Por exemplo, as rodas de conversa: podem ser oportunidades de as crianças
falarem de si ou partilharem suas impressões sobre algo vivido coletivamente, ou
tornam-se momentos burocráticos somente, excessivamente marcados por exigên-
cias tais como confecção do calendário, da chamada, da janela do tempo, nos quais só
constatamos o que todos já sabemos (como está o dia? quem veio e quem faltou?).
O espaço da narrativa pode ser potencializado com fotografias das experiências
particulares de cada um e das experiências do grupo, com imagens sobre as quais
podemos construir sentidos, com leituras sobre as quais podemos conversar etc.
As falas e as produções das crianças precisam ser entendidas como elos numa
cadeia discursiva mais ampla. Elas se referem a experiências já vividas por elas e
apontam possibilidades de futuro, inclusive possibilidades de transformação.
Os autores com quem dialogamos permitem-nos afirmar que as crianças são
produzidas na história e na cultura e, ao mesmo tempo, produzem história e cultu-
ra. Isso quer dizer que elas carregam marcas do contexto social que participam e,
paralelamente, podem transformá-lo, recriando-o com suas ações. Essa perspec-
tiva criadora é muito importante nas nossas práticas cotidianas com as crianças,
pois permite a aposta em cada uma delas como seres da expressão, da construção
do novo, da emancipação.

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Linguagem e interações humanas

1. Você pode trazer para seu grupo de estudos fotografias de alguma viagem ou evento de sua vida
pessoal, produzindo narrativas com as fotos, contando histórias a partir delas. Assim, perceberá
a produção de significados possível a partir de uma linguagem não verbal.

2. Pesquise diversos recursos simbólicos de sua cultura (calendários, placas etc.), analisando para
que servem e como mobilizam a vida social.

Sugiro a leitura do livro: Infância e Linguagem, de Solange Jobim e Souza.

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A formação e o
desenvolvimento da
linguagem na criança
Daniela Guimarães

Entre gestos e palavras:


o surgimento da linguagem

P
rimeiramente, é fundamental que consideremos que as crianças constroem a linguagem na
interação com os adultos e com as outras crianças de seu meio social, e também na interação
com os objetos da cultura na qual elas estão imersas (livros, brinquedos, utensílios da vida
prática, imagens etc.). Linguagem é a apropriação e produção de significados que vão sendo social-
mente partilhados, possibilitando comunicação, organização da realidade e criação. Portanto, é no
coletivo que a linguagem se constitui na experiência da criança.
A princípio, o adulto produz sentido às expressões corporais e sonoras do bebê, constituindo
padrões relacionais. Então, o bebê vai experimentando suas possibilidades de afetar o outro agindo
com seu corpo no mundo e “observando” os resultados comunicativos de suas reações (como o
adulto nomeia o mundo para ele). É olhando o bebê no olho, respondendo às suas ações, povoando
seu universo com a nossa fala que incentivamos suas possibilidades de comunicar-se.
Bondioli e Mantovani (1998) desenvolvem pesquisas no interior das creches na Itália, des-
tacando comportamentos comunicativos dos bebês, tais como oferta de objetos, troca de sorrisos,
conversação frente a frente (o adulto fala e a criança responde com balbucios, olhares e expressões
faciais). Conforme o adulto vai atribuindo significado e intencionalidade às expressões infantis,
as crianças vão mergulhando num universo relacional, sendo pouco a pouco capazes de prever e
guiar o comportamento adulto por meio de suas reações corporais. Esse movimento permite que a
criança se experimente num lugar ativo e criador de possibilidades de interação.
Wallon (2005) propõe que as primeiras interações dos bebês com o universo social que os
rodeia são caracterizadas pelo que ele chama de um diálogo tônico, no qual a afetividade marca
os contatos dos bebês com os adultos que deles cuidam, construindo sentidos pelo tato, pelo olhar,
pela disponibilidade à escuta e interação.
Vygotsky (1989) expõe o processo de construção de significados sobre mundo nas interações
sociais, mostrando como se constitui o gesto de apontar na história da criança pequena. Primeira-
mente, a criança apresenta o gesto de pegar um objeto que está fora do seu alcance, estendendo o

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A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança

braço em direção a ele. É o adulto quem diz “você quer aquilo?”, nomeando
o objeto. Num momento posterior, provavelmente, a criança vai simplesmente
apontar para o objeto, olhando para o adulto. Surgiu o gesto de apontar na inte-
ração adulto-criança. É assim que muitas formas e significados relacionais são
produzidos.
As crianças mergulham no universo de significados que compõe nossa vida
coletiva, à medida que participam de relacionamentos significativos e afetivos que
vão permitindo-lhes compreender os sentidos da vida comum. A compreensão é
sempre ativa (não se trata de um processo passivo de absorção do meio), isto é,
supõe que as crianças respondam, coloquem-se, expondo suas apropriações desta
realidade, isto é, a forma como tornam seus os significados da cultura mais ampla.
As palavras do filósofo da linguagem Bakhtin (1992, p. 67) são elucidativas:
Tudo quanto a determina em primeiro lugar, a ela e a seu corpo, a criança o recebe da boca
da mãe e dos próximos. É nos lábios e no tom amoroso deles que a criança ouve e começa
a reconhecer seu nome, ouve denominar seu corpo, suas emoções, seus estados internos.
[...] A criança começa a ver-se, pela primeira vez, pelos olhos da mãe, é no seu tom que ela
começa também a falar de si mesma; assim ela emprega, para falar de sua vida, as palavras
que lhe vêm da mãe. [...] Sua forma parece ter a marca do abraço materno.

Contribuímos para a construção da linguagem na criança quando respon-


demos aos seus sinais (gestos, balbucios, palavras etc.), fazendo-as sentir que são
compreendidas; quando nomeamos suas ações e os objetos com os quais intera-
gem; conversamos com elas, lemos histórias para elas, brincamos com fantoches e
outros objetos que mobilizam o contato e a conversa entre nós, entre tantas outras
situações por meio das quais vamos significando a atuação da criança no mundo,
ajudando-a a compreendê-lo e a ser compreendida.
É Vygotsky (1989, p. 33) quem afirma:
Desde os primeiros dias do desenvolvimento das crianças suas atividades adquirem um
significado próprio num sistema de comportamento social e sendo dirigida a objetivos de-
finidos, são refratadas através do prisma do ambiente da criança [...] O caminho do objeto
até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa.

Relações entre linguagem e


pensamento ao longo do desenvolvimento
De fato, Vygotsky (2000) é o autor privilegiado com quem dialogaremos
para compreender como surge e se desenvolve a fala na criança; como a lingua-
gem (produção exterior) vai se relacionando com o pensamento (produção inte-
rior) ao longo do desenvolvimento.
De acordo com esse autor, pensamento e linguagem são dois fenômenos in-
timamente relacionados, um afetando o outro. Quando falamos, nosso pensamen-
to se modifica; quando concretizamos o pensamento nas palavras, a linguagem se
transforma, ganha novos contornos não planejados. Mas no início do desenvolvi-
mento da criança, pensamento e linguagem não estão conectados dessa maneira.
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A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança

Para Vygotsky (2000), quando nasce o bebê e ao longo do primeiro ano, há


um pensamento pré-verbal (expresso na atividade do corpo no espaço, por meio
da coordenação dos movimentos para atingir finalidades – empurrar, puxar, jogar
etc.). Por outro lado, há também uma linguagem pré-intelectual (presente nos bal-
bucios, choros, expressões faciais etc.). Por volta dos dois anos, o pensamento une-
-se à linguagem, ou seja, o pensamento torna-se verbal e a fala torna-se intelectu-
al, quando a criança começa a significar o mundo por meio da palavra, ao mesmo
tempo em que acompanha as ações com palavras que as orientam. É o significado
expresso na palavra que liga pensamento e linguagem.

Esse processo fica evidenciado no seguinte esquema:

Pensamento pré-verbal Linguagem pré-intelectual

Significado
(por volta dos dois anos)

Pensamento verbal Linguagem intelectual

De acordo com Vygotsky (1989), a expressão do significado na fala é ao


mesmo tempo um ato de pensamento e parte inalienável da palavra, pertencendo
tanto ao domínio do discurso quanto do pensamento.
É preciso esclarecer que a manifestação da linguagem pré-intelectual, ou
seja, a expressão da criança por intermédio dos balbucios, manifestações faciais
ou choros é comunicativa. A função comunicacional da linguagem é experimen-
tada quando a criança interage com o outro, tendo suas ações significadas pelos
pais e pelos companheiros mais próximos. Seu corpo é espaço de comunicação
desde o nascimento.
Quando a criança começa a significar o mundo por meio da palavra, o gesto
e o corpo não param de ser vividos como espaços também de construção de signi-
ficados. É importante entendermos o entrelaçamento entre corpo e palavra na ex-
pressão da criança pequena, no movimento de interiorizar os sentidos socialmente
compartilhados e expressar-se no mundo.
Ao mesmo tempo, as manifestações do pensamento pré-verbal – o que o
autor denomina inteligência prática (capacidade de a criança usar instrumentos
físicos para atingir suas finalidades, como usar um banco para pegar algo que
está no alto, um pano para puxar algo distante etc.) – apresentam-se como forma
de organização da experiência que será potencializada quando a criança começar
a falar. Com o desenvolvimento, são os símbolos, especialmente as palavras, os
instrumentos psicológicos que serão utilizados para organizar a criança no mun-
do, dando origem ao pensamento verbal. Trata-se de quando a criança começa
a controlar o ambiente por meio da fala, o que é uma forma de comportamento
caracteristicamente humano.
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A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança

O momento de maior significado no curso de desenvolvimento intelectual que dá origem


às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata acontece quando a fala e a
atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, con-
vergem [...] assim que a fala e o uso de signos são incorporados a qualquer ação, esta se trans-
forma e se organiza ao longo de linhas inteiramente novas. (VYGOTSKY, 1989, p. 29)

A fala possibilita que a criança controle a si mesma, também afetando o ou-


tro. Com ela, as crianças tornam-se sujeito e objeto de seu próprio comportamen-
to. À medida que o enunciam vão encontrando novas formas de atualizá-lo.

Fala egocêntrica:
fala para si ou fala para o outro?
Quando começam a falar, as crianças falam enquanto agem e agem enquan-
to falam. Se observarmos as crianças pequenas em suas tarefas práticas (empi-
lhando cubos, colocando objetos numa caixa, dando comidinha para um boneco
etc.) veremos que as suas ações são impulsionadas por palavras. Elas falam como
que para si mesmas. Vygotsky (1989) afirma que a fala funciona como um auxílio
para a ação. Trata-se da fala egocêntrica.
Esse fenômeno foi inicialmente observado por Piaget, que percebia as crian-
ças falando enquanto agiam. Esse autor propunha que a fala somente acompa-
nhava a ação e, com o desenvolvimento, desaparecia. Vygotsky, pelo contrário,
propunha que a fala egocêntrica ou o monólogo coletivo (várias crianças falando
ao mesmo tempo num ambiente coletivo, sem estarem necessariamente falando
umas com as outras) é um fenômeno social, fruto da indistinção entre fala para si e
fala para o outro. Com o desenvolvimento ela não desaparece, mas transforma-se
em pensamento (interiorizado).
Ao falarem, é como se as crianças buscassem ajuda para solucionar o que
estão resolvendo, é como se estivessem controlando o fazer com a palavra; mais
tarde, elas compreendem que não precisam falar para irem se organizando nas
suas experiências, o que gera o pensamento (fala interiorizada).
Vygotsky (1989) fez vários experimentos nos quais provocou nas crianças a
impressão de que não estavam sendo escutadas (colocando som alto, diminuindo a
presença de outras pessoas no ambiente). Nessas situações, o potencial de fala ego-
cêntrica diminuiu. De outro modo, quando ele intensificou a impressão de que eram
ouvidas, ou quando dificultou a tarefa a ser realizada, as crianças falavam mais en-
quanto agiam. Isso significa que a quantidade de fala egocêntrica relaciona-se com a
dificuldade das tarefas e com a impressão de que podem ser ajudadas.
Ao usarem as palavras, as crianças realizam um número maior de ativida-
des, utilizando como instrumentos não somente os objetos à mão, mas procurando
e preparando tais objetos de forma a torná-los úteis para a solução da questão e
para o planejamento de ações futuras. A palavra sofistica a ação.
Na perspectiva de Vygotsky (2000), ao longo do desenvolvimento, a palavra
vai assumindo funções diferentes à medida que se relaciona de modo diferente
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A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança

com a ação. Primeiro, ela acontece junto com a ação, organizando-a e controlan-
do-a, como o que foi descrito anteriormente; depois, desloca-se para o início da
ação, servindo para planejá-la. A função planejadora da fala vai se articulando
com a função comunicativa, permitindo que a fala não só modele a experiência,
mas também a transforme.
É importante acrescentar que Vygotsky (2000) propõe que a fala egocêntri-
ca concretiza a indistinção na criança pequena entre a fala para si e a fala para o
outro. Quando a criança se vê diante de uma tarefa difícil num ambiente onde há
a presença do adulto, ela fala como que se dirigindo a ele, mesmo sem que isso
fique explicitado. Se ele sai do ambiente, ela continua a falar, no sentido de buscar
auxílio/organização da sua ação com a fala. Com o desenvolvimento, essa fala
organizadora interioriza-se, transformando-se em pensamento.
A criança compreende com a experiência que a externalização ou vocaliza-
ção da fala é imprescindível à comunicação e que para se organizar ou controlar a
ação não precisa necessariamente verbalizar.

O seguinte esquema explicita essa construção:


Fala egocêntrica
(vocalizada, extensa, organizadora/comunicativa,
indistinção entre fala para si e para o outro)

Com o desenvolvimento:

Fala para si – pensamento Fala para outro – diálogos


(organizadora, internalizada, (comunicativa, extensa, vocalizada)
abreviada, gera o pensamento)

Quando começa a falar, a criança vive o entrelaçamento dessas duas fun-


ções da linguagem – a organização da realidade e a comunicação. Quando fala,
significa o mundo, negocia significados com os outros que participam da mesma
cena social, impulsiona suas próprias ações, expressando-se nesse mundo e cons-
tituindo a si mesma.
Geralmente, quando começam a falar, as crianças usam o que chamamos
de palavras soltas ou isoladas. É importante notar que cada palavra proferida é
intensa em significação; numa só palavra as crianças expressam muitos significa-
dos. Por exemplo, a palavra “mamãe” é usada para diversas situações diferentes:
fome, sono, alegria etc. Uma palavra generaliza um mundo de sentidos.
Com o desenvolvimento, a criança passa a “precisar” de mais palavras para
expressar uma ideia e diversas ideias passam a não caber numa palavra isolada.
Ao longo do desenvolvimento linguístico da criança, os dois planos da fala
– interior (semântico e significativo) e exterior (fonético) –, embora formem uma
unidade, seguem direções opostas em relação ao pensamento.
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A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança

No plano fonético, a criança começa a falar uma palavra, depois relaciona


duas, três palavras, forma frases simples, depois mais complexas e chega à fala
corrente, indo da parte para o todo. Porém, no plano semântico, vai do todo para
as partes, pois a primeira palavra pronunciada é uma frase completa que contém
o significado de um todo e só aos poucos é que a criança vai compreendendo o
significado das unidades menores.
A relação entre pensamento e palavra é um processo, um movimento con-
tínuo, um vaivém do pensamento para a palavra e vice-versa. Nesse processo, a
relação entre o pensamento e a palavra passa por transformações.
De acordo com Vygotsky (2000), o pensamento não é simplesmente expres-
so em palavras, mas é por meio delas que passa a existir. Quando se materializa
em palavra o pensamento ganha sempre nova forma.

Gestos, expressões corporais e palavras


no cotidiano da Educação Infantil
Em nosso dia a dia com as crianças no contexto da Educação Infantil, é
muito importante valorizarmos os movimentos e falas que compõem a expressão
das crianças. A cena de um grupo de crianças na Educação Infantil é sempre uma
cena repleta de sons, vocalizações, balbucios e palavras. A presença da fala das
crianças enquanto montam um jogo, fazem um desenho ou dramatizam é funda-
mental para a organização e sofisticação dessas experiências.
É comum percebermos que as crianças ficam em pé quando querem falar
algo significativo, gesticulando, mostrando com o corpo o que querem dizer. Esti-
cam-se se querem falar de algo grande, fazem uma bola com os braços se querem
falar de algo gordo, encolhem-se para significar o que é pequeno. É como se a pa-
lavra não bastasse e o corpo funcionasse como apoio na expressão e significados.
Possibilitar essa expressão é muito importante.
Alguns espaços escolares, voltados prioritariamente para o desenvolvimen-
to intelectual – no sentido da extrema atenção à racionalidade – desde a Educação
Infantil, têm muita dificuldade em lidar com a movimentação e a expressão cor-
poral da criança. Além de não cultivar a linguagem corporal e de ouvir pouco o
que cada corpo expressa, vão gradativamente formando corpos dóceis, restritos
aos gestos homogêneos das rotinas disciplinares. Quanto maiores as crianças vão
ficando, mais aprisionado é o corpo.
Mas a criança sempre encontra uma forma de romper e transgredir. É comum,
numa fila, por exemplo, vermos as crianças brincando entre elas, dando um petele-
co, mexendo no cabelo do outro etc. E é também a escola que, caminhando na con-
tramão do excesso de racionalidade, pode ser um lugar de expressão desse corpo,
propondo a troca de afeto, jogos e dramatizações, reorganizando espaços e tempos.
Ouvindo as vozes do corpo que fala, se cala, sente sabores e dissabores, mostra e
revela, buscamos o reencontro do gesto revelador da nossa essência mais íntima.

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A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança

Como vimos, aos poucos a fala desloca-se do curso da ação para o seu iní-
cio, planejando o que vai acontecer. Geralmente, a criança pequena vai falando
o que está desenhando e enquanto o faz, dá significado a um objeto enquanto o
explora, faz com o corpo o que quer representar. Somente com o desenvolvimento
é capaz de planejar o que vai desenhar, ou combinar papéis de um teatro antes
de dramatizá-lo. Em nossas interações cotidianas com as crianças, é importante
acompanharmos e desafiarmos as diferentes relações entre fala e ação. É fun-
damental que haja espaço tanto para a fala que organiza e planeja a experiência
(geralmente mais presente), quanto para a fala enquanto fazemos algo, que abre
espaço para a criação, para a diferença, para o não previamente elaborado.
À medida que entendemos a centralidade da significação na produção de
linguagem das crianças, é importante valorizarmos a expressão de significado
nos seus desenhos, falas e todas as expressões, dialogando com o que produzem,
escutando-as, perguntando e dando relevo ao que quiseram manifestar.
Ao mesmo tempo, é na participação em diálogos com seus pares e adultos
do seu contexto sociocultural que as crianças vão vivendo a função comunicativa
da linguagem. Portanto, é muito importante o envolvimento em conversas nas
quais se abra espaço para a colocação particular de cada criança em interação com
os sentidos socialmente partilhados.

1. Observe um bebê, antes de começar a falar. Como se manifesta a linguagem em suas interações
com os adultos ao redor dele (observe e registre as vocalizações, sorrisos, trocas não verbais, o
que Vygotsky denomina de linguagem pré-intelectual)?

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A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança

2. Observe uma criança entre dois e três anos enquanto brinca sozinha: ela fala enquanto faz isso?
Se fala, como se caracterizam essas expressões? Perceba a forma e a função da fala egocêntrica.

Sugiro a leitura de Vygotsky: Aprendizado e Desenvolvimento um Processo Sócio-Histórico, da


autora Marta Kohl Oliveira.

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A brincadeira e o desenho da
criança: a pré-história da
linguagem escrita
Daniela Guimarães

D
e início, ao refletirmos sobre a construção da linguagem escrita pela criança e sobre o ensino
da escrita, torna-se importante dizer que esse tipo de linguagem não se esgota no desenho de
letras. O ensino da linguagem escrita implica no ingresso por parte da criança em um universo
de códigos arbitrários (relação entre sons e grafias das letras; conquista de habilidades motoras etc.),
mas isso não configura o que é fundamental na formação da criança como escritora.
De acordo com Vygotsky, a escrita não é somente um conjunto complexo de técnicas que
devem ser impostas à criança, mas “um sistema particular de signos e símbolos cuja dominação
prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança” (1989, p. 120).
Portanto, é importante que a criança possa tomar contato com ela nessa dimensão simbólica,
ou seja, como uma forma possível de representação do mundo, de seus desejos, emoções e ideias. A
escrita é um ato cognitivo, um espaço de construção de significados, expressão e criação.
Vygotsky (1989) afirma que essa perspectiva simbólica da escrita acontece em íntima relação
com outras ações simbólicas que acompanham a vida da criança, como brincar e desenhar. É im-
portante, então, analisarmos a pré-história da linguagem escrita, ou seja, como a qualidade simbó-
lica e criativa que a constitui é prenunciada na brincadeira e no desenho da criança.

A construção de significados na brincadeira


A brincadeira na vida da criança é muito mais do que fonte de prazer. A brincadeira preenche
uma necessidade, entendida como tudo o que é motivo para a ação. Em diferentes momentos do
desenvolvimento, as necessidades são diferentes, ao mesmo tempo em que as ações sobre as coisas
também. Em certos momentos, o movimento é de explorar, descobrir; em outros, de imaginar e
fantasiar. Na brincadeira, a criança coloca-se ativamente na relação com a realidade, recriando-a,
construindo sentido sobre ela (VYGOTSKY, 1989).
As necessidades das crianças e seus motivos para a ação variam ao longo do desenvolvimen-
to, mas a intervenção ativa da criança explorando possibilidades de objetos e relacionamentos está
sempre presente no movimento de constituir significados sobre eles e com eles.
Assim, no início do desenvolvimento, a relação das crianças pequenas com o mundo é mar-
cada por certas restrições situacionais e suas ações sobre as coisas são pontuadas pelas funções das

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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

próprias coisas, pelas condições nas quais as atividades ocorrem, ou seja, uma
porta é para abrir, uma bola para jogar etc.
As necessidades imediatas e a inteligência prática (coordenação de meios
concretos para atingir certas finalidades) dominam a relação da criança pequena
com o mundo. A exploração física dos objetos permite-lhe “compreendê-los” por
meio do uso. O imediato marca a ação da criança.
Aos poucos, surgem tendências, necessidades e desejos não realizáveis de
forma imediata, o que gera o movimento de realizá-los de alguma forma (na brin-
cadeira). De acordo com Vygotsky (1989), quando aparecem as necessidades que
não podem ser realizadas de modo imediato e, ao mesmo tempo, a tendência a
realizá-las imediatamente, surge a brincadeira, como espaço imaginário de reali-
zação dos desejos. A criação de uma situação imaginária é um aspecto definidor
do que se pode chamar de brincadeira.
Na brincadeira, as crianças agem sobre os objetos numa “esfera cognitiva”
em vez de numa “esfera visual externa”, somente. Isso significa que em vez de os
objetos terem uma força motivadora e determinadora como no início do desenvolvi-
mento (uma escada é para subir, uma campainha para tocar etc.), eles perdem essa
força e a ação da criança passa a ser guiada pelo significado que ela dá aos objetos.
A criança vê um objeto mas age de maneira diferente em relação ao que vê. [...] A ação
numa situação imaginária ensina a criança a dirigir seu comportamento não somente pela
percepção imediata dos objetos ou pela situação que a afeta de imediato, mas pelo signifi-
cado dessa situação. (VYGOTSKY, 1989, p. 110)

Dessa forma, um pedaço de madeira pode se tornar um boneco, assim como


um cabo de vassoura pode se tornar um cavalo. A ação surge das ideias, das inten-
ções, da necessidade de dar sentido às coisas, de tornar presente algo ausente, de
realizar de modo imediato algo não possível de ser realizado na vida concreta.
A relação com a brincadeira é fundamental, pois possibilita que a criança
experiencie a operação com significados, a criação de sentidos possíveis sobre as
coisas. Na brincadeira, a criança lida principalmente com significados dos objetos,
desligados das funções que eles costumam assumir no cotidiano (por exemplo, uma
caneta que serve para escrever em nosso dia a dia pode transformar-se num avião).
Esse movimento promove a experiência da autoria e da autonomia. A partir
da interação com objetos da vida cotidiana, com usos marcados pelas regras so-
ciais, as crianças inventam novas possibilidades de ação sobre eles, fazendo com
que se submetam às suas vontades e necessidades.
É importante observar que nem todo objeto serve para significar qualquer
coisa para a criança pequena. Por exemplo, é preciso poder fazer o movimento de
um cavalo, ser montado e cavalgado, para um objeto ser transformado num cavalo.
Um cabo de vassoura serviria para essa finalidade mas, provavelmente, uma bola
não serviria. Somente pouco a pouco, com o desenvolvimento da criança, há certo
descolamento da estrutura do objeto ou da ação que se pode fazer com ele, na pro-
dução de seus possíveis significados.

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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

A brincadeira também abre espaço para a experiência da criança em papéis


diferentes do que ela ocupa na vida real, ampliando sua experiência sobre si mes-
ma e sobre o mundo, possibilitando outras visões da realidade que não a sua, pos-
sível em sua situação concreta. A brincadeira é um espaço de deslocamento de seu
lugar na vida cotidiana, para se colocar num lugar de outro. Distanciando-se de
seu papel concreto e real, ela experimenta outras formas de ser no mundo (quando
brinca de ser a professora, a princesa ou a bruxa, por exemplo): “o brinquedo cria
na criança uma nova forma de desejos; ensina-a a desejar, relacionando seus dese-
jos a um ‘eu’ fictício, ao seu papel no jogo” (VYGOTSKY, 1989, p. 114).

No brincar, regras e imaginação:


espaço de autonomia e autoria
Vygotsky (1989) afirma que a característica definidora da brincadeira da
criança é a criação de uma situação imaginária. O autor afirma que, mesmo nas
situações de regra, há um conteúdo imaginário subjacente.
Na verdade, para ele, as brincadeiras claramente imaginárias estão sempre
calcadas em situações reais, ou seja, baseadas em regras de comportamento. Por
exemplo, quando brincam de mãe e filha, de polícia e ladrão, ou de professora, as
regras de comportamento dessas figuras da vida real inspiram a atuação da crian-
ça na brincadeira. As crianças desempenham esses papéis buscando o referencial
social que possuem deles.
É interessante notar – tal como faz Vygotsky (1989) – o que acontece quando
duas irmãs na vida real brincam de ser irmãs (brincam do que é verdadeiro). Ao
brincar, a criança tenta ser o que ela pensa que uma irmã deveria ser aos olhos dos
outros (o que sempre é diferente do que ela é na realidade, quando envolvida no pa-
pel de irmã, de fato). Na vida real, a criança comporta-se sem pensar que é irmã de
sua irmã, sem buscar um olhar para o conceito de irmã. Na brincadeira, ela busca
regras de comportamento, aquilo que faz com que o outro reconheça as duas como
irmãs. Ou seja, “o que na vida real passa despercebido pela criança, torna-se uma
regra de comportamento no brinquedo” (VYGOTSKY, 1989, p. 108).
Na verdade, somente com o distanciamento é possível à criança perceber
de uma nova forma o lugar cotidiano que ocupa, por isso o valor de brincar dos
papéis sociais que realmente experimenta em sua vida.
É Bakhtin (1992) quem nos alerta a respeito da importância do distanciamento
para a produção de conhecimento. Ele se refere à produção do conhecimento sobre o
outro, mas se pensamos na criança que está se constituindo subjetivamente, discernin-
do quem é ela e quem é o outro, conhecendo a si mesma também, brincar de ser filha da
sua mãe, de ser irmã de sua irmã, ou amiga de suas amigas, permite-lhe distanciar-se do
que é na realidade, lidando com o “conceito” de filha, irmã ou amiga. Ao voltar à vida
diária, envolvida de fato nesses papéis, estará compreendendo-os de outra maneira.

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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

Por outro lado, as situações imaginárias são o espaço de reinvenção das


regras fundamentais da vida social, organizadoras do mundo compartilhado. As
situações imaginárias acabam funcionando como possibilidade de reflexão sobre
as regras e reorganização delas. Nas brincadeiras, é possível viver a experiência
da autoria (por isso as crianças “discutem” tanto, tentando negociar o que vale ou
não nas brincadeiras, em seus jogos de bola, tabuleiro etc.).
Nessa linha, Vygotsky (1989) também propõe que toda brincadeira media-
da por regra possui uma situação imaginária subjacente. Por exemplo, o jogo de
xadrez tem uma situação imaginária em sua base. Assim que somente uma possi-
bilidade se cria (uma forma determinada de mover o rei, o cavalo e a rainha, por
exemplo) várias outras são eliminadas. É como se o jogo de regras apresentasse
em sua raiz uma série de alternativas de ação (o que marca seu nascimento na
imaginação) e só uma tenha se cristalizado. Portanto, é possível pensar em uma
nova possibilidade de organização, em uma nova alternativa de regras.
Enfim, o autor afirma que o desenvolvimento da criança na brincadeira é
pontuado pela passagem de uma experiência marcada pelo imaginário às claras,
com regras ocultas, para outra na qual há uma situação de regras às claras e um
imaginário oculto.
Vale acrescentar que ao comportar-se no brinquedo tal qual outras pessoas
de seu convívio, baseando-se nas regras de comportamento convencionadas para
esses personagens, a criança é impulsionada em seu desenvolvimento. Vive na
brincadeira ações, posturas e situações mais sofisticadas do que as que possui na
realidade. Para Vygotsky (1989, p. 117), “no brinquedo é como se ela fosse maior
do que na realidade”. Esse é um aspecto muito relevante da brincadeira no coti-
diano com as crianças, pois podemos dizer que a brincadeira funciona tal como
a instrução ou um modelo que um adulto oferece para a criança. A imitação (re-
presentação do modelo buscada pela própria criança) não é simples reprodução ou
cópia, mas uma forma de apropriar-se das regras do mundo, tornando-as suas, de
uma forma particular, sempre. O que a criança faz hoje com o outro, referenciada
num modelo, amanhã fará sozinha. Assim, a brincadeira é entendida como um
espaço de aprendizagem.
Enfim, num texto no qual se dedica essencialmente a pensar a importância
da atividade imaginadora, Vygotsky (1987) afirma o quanto é importante a qua-
lidade das experiências reais, o acúmulo delas, no sentido de favorecer a imagi-
nação. Criar o novo significa recombinar o que existe em novas configurações.
Portanto, as experiências vividas e o universo conhecido são fundamentais como
“matérias-primas” por meio das quais a atividade combinadora poderá agir.
Assim, é fundamental entendermos o lugar criativo e potencializador de autono-
mia que tem o brincar na vida da criança, favorecendo as experiências nas quais elas
possam transformar-se em diversos personagens, modificar a função das coisas, criar
o novo a partir da sua relação com o que já existe, recriando significados cristalizados.
Também é muito importante abrirmos espaço para o contato com o que existe, as pro-
duções culturais dos nossos tempos, a partir das quais as crianças terão elementos para
criar as suas.

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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

Na brincadeira, há produção de significados, mais do que submissão às re-


gras. O objeto-brinquedo funciona como possibilidade representativa, modifican-
do-se pelo impacto do significado que a criança dá a ele, ganha função de signo
(inclusive, independentemente do movimento que é possível fazer sobre ele – aos
poucos, qualquer objeto torna-se qualquer coisa). É exatamente o desenvolvimen-
to do ato de significar que nos permite dizer que a brincadeira prenuncia a con-
quista da linguagem escrita. Assim como o ato de brincar, o ato de escrever é uma
possibilidade de criar sentidos sobre o mundo.

A construção de significados
no desenho e na escrita
Na reflexão a respeito do que leva as crianças a escrever, é fundamental
pensarmos no papel do gesto. Nas palavras de Vygotsky: “os gestos são a escrita
no ar e signos escritos são gestos que foram fixados” (1989, p. 121).
Os gestos podem ser entendidos como origem dos signos escritos por várias
razões. Primeiramente, constatamos que as primeiras escritas pictográficas (ins-
crições gráficas dos homens primitivos no interior das cavernas) eram indicações
dos objetos ou movimentos a serem representados. Por exemplo, o desenho de um
dedo indicador em posição, para indicar o gesto de indicação. Além disso, como
já vimos, a utilização dos objetos como brinquedos, inicialmente, está ligada aos
gestos e movimentos que são possíveis com esses objetos (por exemplo, para
transformar algo em um bebê que será ninado, é importante que o objeto possa
ser colocado no colo e balançado, como uma trouxa de roupa ou uma almofada).
Por fim, é nos rabiscos das crianças que podemos observar uma importante
ligação entre os gestos, os movimentos corporais e os primeiros atos represen-
tativos no papel. As crianças pequenas marcam na superfície onde desenham os
movimentos que desejam representar. Geralmente, apoiam o lápis sobre o papel e
vão falando e fazendo com o corpo uma história que vai sendo ao mesmo tempo
marcada. Por exemplo, podem ir dizendo “a borboleta subiu, subiu” (enquanto fa-
zem linhas espirais em direção ao alto do papel) e “depois caiu lá do alto” (fazendo
um forte risco para baixo). O traço indica o movimento.
No desenho (da mesma maneira que no brinquedo, como já vimos), o sig-
nificado está colado no gesto, a princípio. Está ligado ao imediato, ao presente,
ao que se produz no curso de uma ação. O significado independente do gesto, só
acontece mais tarde, quando a criança diz o que vai desenhar, nomeia o que vai
fazer, e só depois desenha. Ela planeja e antecipa o que vai produzir. O desenho,
então, ganha status de representação. Esse momento é parecido com o que aconte-
ce com a escrita, na qual a criança vai pouco a pouco se deslocando da designação
das coisas para a representação da fala.
Quando desenha, a criança não representa o que vê, mas o que conhece do
mundo. Isso fica evidente na forma de raio X que seus desenhos apresentam. Se
quer desenhar alguém em um carro, a criança pode desenhá-lo com as pernas
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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

aparecendo dentro do veículo. Os desenhos das crianças designam o mundo mais


do que o representam de forma fidedigna.
Por outro lado, é importante notar que o desenho, enquanto uma lingua-
gem gráfica, surge tendo como base a linguagem verbal. Geralmente, a criança
movimenta-se, marca o movimento no papel e fala o que está fazendo, ao mesmo
tempo. Como já dissemos, o desenho ganha a qualidade de uma representação
quando a criança começa a dizer o que vai fazer antes de desenhar. A nomeação
independente da ação e da fala no curso da ação marca um salto no sentido da
possibilidade de representar o mundo no desenho.
No caso da escrita acontece um processo semelhante. Inicialmente, quando
as crianças escrevem espontaneamente, os traços que marcam no papel estão co-
lados nas coisas, na qualidade dos objetos. Para escrever o nome de algo grande,
provavelmente colocarão muitos traços (mesmo que ainda não grafem as letras
convencionais); para escrever o nome de algo pequeno, colocarão poucas letras ou
traços. Aos poucos, a criança percebe que a escrita relaciona-se com os sons da
fala e não com os objetos da vida real.
A conquista da escrita é o movimento de passagem do desenho das coisas
para o desenho das palavras. No entanto, pouco a pouco, as crianças deixam de
precisar pensar na correspondência entre som e grafia a cada palavra que vão es-
crever. Isso se torna “automático” e a dimensão significativa, a produção de um
conteúdo na escrita toma lugar central.
De qualquer maneira, mesmo quando as crianças estão descobrindo que as
letras representam os sons, é importante lidar com a escrita no cotidiano como ato
de significar. Essa é sua qualidade fundamental.
De acordo com Vygotsky (1989), o contato com a escrita deve ser vivido
como uma necessidade da criança e não como atividade mecânica. Trata-se de
abrir oportunidades para experiência da representação como construção de sig-
nificados no campo da escrita (escrever bilhetes, cartas, um livro, o nome num
trabalho, ou seja, uso da escrita em situações de necessidade real).
O autor propõe que
a escrita deve ter significado para as crianças, [...] uma necessidade intrínseca deve ser
despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para
a vida. Só então podemos estar certos de que ela se desenvolverá não como hábito de mãos
e dedos, mas como uma nova e complexa forma de linguagem [...] o que se deve fazer é
ensinar às crianças a linguagem escrita e não apenas a escrita das letras. (VYGOTSKY,
1989, p. 133)

Relações entre a brincadeira,


o desenho e a escrita na Educação Infantil
No cotidiano da Educação Infantil, presentifica-se a necessidade de lidar-
mos com a dimensão técnica da escrita, o que diz respeito à produção de formas
(das letras), mas, especialmente, é importante lidarmos com sua significação.
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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

Na verdade, trata-se de pensarmos na qualidade das experiências com a lin-


guagem que produzimos no dia a dia com as crianças, entendendo não só a escrita
como linguagem, mas o desenho e a brincadeira também. A princípio, é preciso
compreender a experiência com o desenho e com a brincadeira como produção de
significados que prenunciam o processo vivido no âmbito da linguagem escrita.
Geralmente, a brincadeira é vivida como o tempo livre da criança, sem a
presença e o olhar atento do professor. No entanto, se entendemos o brincar como
ato de significação e criação, torna-se necessário potencializá-lo. Por exemplo, se
percebemos que as crianças brincam de cachorro e dono (um assume a função de
dono e o outro de cachorro), podemos favorecer a presença de objetos que possam
ser as coleiras ou as comidas, ou podemos sugerir enredos (onde os cachorros vão
passear?), ou uma pesquisa que amplie o conhecimento das crianças (quais tipos
de cachorro existem?). Possibilitar a presença de objetos que possam se transfor-
mar em outras coisas é sempre uma perspectiva interessante para a prática. Obje-
tos tais como panos, almofadas, pedaços de madeira, caixas de papelão, quando
organizados de modo sugestivo, sugerem uma série de brincadeiras.
Do ponto de vista do trabalho com o desenho, é fundamental valorizá-lo na
sua força expressiva. Quando a criança faz e fala enquanto produz suas formas,
seu movimento produtivo intensifica-se se há interlocutores, outras pessoas que
escutem, mesmo que elas não falem diretamente para essas pessoas. Colocar-se
ao lado, mostrar interesse, observar o caminho dos “rabiscos” é uma postura in-
teressante do professor.
Por outro lado, quando a criança começa a nomear, antecipar e planejar o
que vai desenhar, é importante que haja espaço para contar o que fez depois de
acabado, ou para planejar com um amigo um desenho coletivo. Desenhar uma his-
tória contada antes, ou contar uma história que desenhamos permite que se possa
experimentar a relação entre linguagem verbal e linguagem gráfica. O desenho
condensa significados e ao mesmo tempo permite que sejam guardados e retoma-
dos posteriormente (funcionam como apoio à memória), de forma semelhante ao
que a escrita vai fazer também. Ao mesmo tempo, o desenho lida com símbolos
subjetivos, enquanto a escrita vai possibilitar a produção de significados na inte-
ração com símbolos arbitrários.
À medida que tem no seu dia a dia espaço garantido para a brincadeira, a possi-
bilidade de transformar objetos em brinquedos, além de espaço para o desenho como
produção de significados, memória coletiva, forma de contar histórias, registrar o vi-
vido, a criança vai podendo aproximar-se da escrita e experimentá-la também como
expressão de vida, outra forma de expor-se e marcar seus desejos e ideias no mundo.
Assim, pode aparecer a escrita no cotidiano na produção de um convite de
aniversário de alguém, na construção de uma carta para um amigo que viajou, na
produção de histórias (sempre tão adoradas!) e em tantas outras ocasiões em que
se torne de fato necessária e relevante.
Vejamos a poesia do educador italiano Loris Malaguzzi a respeito das possi-
bilidades da linguagem da criança e da operação de subtração que a escola produz
quando valoriza somente a escrita como fundamental:
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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

As cem existem!
Loris Malaguzzi
A criança é feita de cem.
A criança tem
cem mãos
cem pensamentos
cem modos de pensar
de jogar e de falar.
Cem sempre cem
modos de escutar,
as maravilhas de amar.
Cem alegrias
para cantar e compreender.
Cem mundos
para descobrir.
Cem mundos
para inventar.
Cem mundos
para sonhar.
A criança tem
cem linguagens
(e depois cem cem cem),
mas roubaram-lhe noventa e nove.
A escola e a cultura
lhe separam a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
De descobrir o mundo que já existe
E de cem
Roubaram-lhe noventa e nove
Dizem-lhe:
Que o jogo e o trabalho,
A realidade e a fantasia,
A ciência e a imaginação,
O céu e a terra,
A razão e o sonho,
são coisas
que não andam juntas.
Dizem-lhe que as cem não existem
A criança diz:
Ao contrário, as cem existem.

Assim, juntamente com o autor italiano, podemos dizer que é importante


valorizarmos a construção de significados pela criança, em todas as suas lingua-
gens, que são múltiplas e diversas: a modelagem, o desenho, a produção com su-
cata, a dramatização etc. A escola e a educação, quando valorizam sobremaneira a
escrita, acabam destituindo a criança de suas formas mais genuínas de expressão.
Aprender a ler e escrever é integrar mais recursos a todos os outros que já temos,
na busca de interpretar o mundo e recriá-lo!
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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

Observe e registre um grupo de crianças de quatro ou cinco anos, brincando e/ou desenhando,
procure responder à seguinte questão: qual a relação entre regra e imaginação nessas atividades
das crianças?

Sugiro a leitura do livro As Cem Linguagens da Criança, de Carolyn Edwards et al.

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A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita

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Linguagem e gêneros
discursivos: questões para a
Educação Infantil
Patrícia Corsino
A língua penetra na vida através dos enunciados
concretos que a realizam, e é também através dos
enunciados concretos que a vida penetra na língua.

Mikail Bakhtin

Considerações iniciais

E
ste texto parte da relação recíproca entre linguagem e vida anunciada por Bakhtin e das conse-
quências desse pressuposto para a ação pedagógica na Educação Infantil. Em outras palavras, a
compreensão da linguagem enquanto espaço de enunciação que se realiza numa situação comu-
nicativa concreta – portanto inserida num território comum de pessoas em interação, o qual engloba
os ditos e também os não ditos, o verbal e o extraverbal – tem consequências para o trabalho pedagó-
gico pelo entendimento de que qualquer atividade de e com a linguagem não pode ser descontextua-
lizada. Linguagem e vida se atravessam mutuamente. As esferas da vida são espaços de produção de
linguagem, e cada enunciação atualiza-se num determinado tempo e espaço em que a vida circula.
Inicialmente, discuto a concepção de linguagem e de gêneros do discurso a partir de algumas
questões levantadas pelo linguista e filósofo da linguagem Mikail Bakhtin (1992a, 1992b), e depois
trago algumas reflexões para se pensar a leitura e a escrita na Educação Infantil.

Linguagem como espaço de


interação humana
Bakhtin e seus colaboradores elaboraram uma teoria enunciativo-discursiva da linguagem. Para
o autor, o produto da fala – a enunciação – é de natureza social. A fala se dirige, isto é, parte de al-
guém, numa dada situação e tem como intenção chegar a um outro sujeito. Nesse processo é preciso
que locutor e ouvinte, falantes de uma mesma língua, estejam integrados a uma situação e com luga-
res sociais definidos, pois não há interlocutor abstrato. Nas palavras do autor:
Assim como, para observar o processo de combustão, convém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma
forma, para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeito – emissor e receptor do som –, bem
como o próprio som, no meio social em situações de troca social. Com efeito, é indispensável que locutor e
ouvinte pertençam à mesma comunidade linguística, a uma sociedade claramente organizada. E mais, é indis-

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Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil

pensável que esses dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação social
imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa para pessoa num terreno bem
definido. (BAKHTIN, 1992, p. 70)

A linguagem supõe uma situação de troca social. São sujeitos em interação


que produzem enunciados concretos que, por sua vez, são determinados pelas
condições reais de enunciação – a situação social mais imediata, incluindo os ges-
tos, a entoação, vontades, afetos, ditos e não ditos – e também o horizonte social
definido – o contexto social mais amplo responsável pela criação ideológica de um
grupo social, numa determinada época. O enunciado é de “natureza constitutiva-
mente social, histórica e, por isso, liga-se a enunciações anteriores e a enunciações
posteriores produzindo e fazendo circular discursos” (BRAIT, 2005, p. 68).
A linguagem também constitui a consciência porque permite pensar as
ações e a si própria e só é possível graças ao auditório social que existe dentro e
fora de cada um. Para Bakhtin, “o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo
têm um auditório social próprio bem estabelecido em cuja atmosfera se constroem
suas deduções interiores, suas motivações, apreciações etc.” (1992, p. 112).
São muitas as vozes que vão constituindo a consciência do sujeito. No proces-
so interativo, a palavra do outro vai sendo internalizada tornando-se, gradativamen-
te, a palavra própria do sujeito. Por sua vez, os enunciados se dirigem e os sujeitos
em interação podem falar de muitos lugares, assumindo vozes distintas. A lingua-
gem é polifônica porque se abre à possibilidade de diferentes vozes se colocarem
em relação mútua, e porque toda compreensão é uma réplica – na relação entre as
diferentes vozes se instaura o dialogismo. A linguagem é também dialógica.
A palavra, por sua vez, por ser um acontecimento que se atualiza em cada
enunciação, comporta muitos sentidos:
O sentido da palavra é totalmente determinado pelo seu contexto. Há tantas significações
possíveis quantos contextos possíveis. No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser una.
Ela não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se
inserir. (BAKHTIN, 1992, p. 106)

Para Bakhtin, a polissemia da palavra vai para além dos significados dicio-
narizáveis, que dão uma unicidade à palavra e permitem que falantes de uma mes-
ma língua partilhem uma comunidade linguística. São os contextos de enunciação
que abrem a palavra à produção de sentido. Uma mesma palavra pronunciada em
contextos diferentes ganha sentido diferente dependendo da situação, dos interlo-
cutores, do acento apreciativo, do tom de voz, do gestual etc.
Locutor e ouvinte articulam seus discursos conforme os desejos, as inten-
ções, o conteúdo, o interlocutor, as situações. As relações interativas produzem
discursos. Bakhtin, analisando a polifonia e o dialogismo no romance, dá uma
outra versão ao quadro tipológico das criações literárias introduzindo o conceito
de gênero discursivo que será abordado a seguir.

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Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil

Gêneros do discurso
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacio-
nadas com a utilização da língua. Não é de se surpreender que o caráter e os modos dessa
utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana. [...] Qualquer
enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denomina-
mos gêneros do discurso. [...]
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual
da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório
de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria
esfera se desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1992, p. 278-279)

Sujeitos em interação verbal, nas suas diferentes esferas de atividades pro-


duzem discursos também variados. Uma esfera caracteriza-se por ser um espa-
ço social de experiências partilhadas que definem tipos relativamente estáveis de
enunciados: os gêneros do discurso. Estes, por sua vez, se caracterizam pelo con-
teúdo temático, estilo da linguagem e construção composicional. No processo de
interação verbal, o sujeito escolhe um gênero – o possível entre os que ele conhece
– para atingir a sua intenção comunicativa. O sujeito não cria o gênero: eles são
dados pelo contexto social e são escolhidos e utilizados conforme as necessidades
da temática, o conjunto de participantes e as intenções comunicativas. O gênero é
prescritivo, o sujeito não o cria. Mesmo considerando o caráter criativo dos enun-
ciados, eles não são combinações inteiramente livres dos elementos da língua. O
gênero é organizador das enunciações porque já tem minimamente definidos o
tratamento do conteúdo; o tratamento comunicativo e o tratamento linguístico.
“Falamos em gêneros e aprender a falar é aprender a estruturar enunciados e a
pressentir o gênero na fala do outro, desde as primeiras falas ouvidas” (AMO-
RIM, 2001, p. 112).
No processo de socialização, as crianças vão ampliando progressivamente
as suas esferas sociais e, consequentemente, vão tendo a oportunidade de ir se
apropriando dos discursos que circulam em cada uma. Na medida em que fazem
uso dos diferentes gêneros, respondendo às demandas sociais, muitas ampliações
poderão se suceder. O maior ou menor grau de familiaridade com interlocutores e
com a temática, a maior ou menor contextualização, a complexidade da temática,
a extensão dos textos etc., tudo isso vai determinar as ampliações. Nesse sentido,
a escola, como esfera social na qual circula inúmeros textos, se constitui como um
importante lugar de produção, recepção e ampliação discursivas.
Cabe ressaltar que o conceito bakhtiniano de gênero discursivo permite uma
extensão às formações discursivas não restritas à palavra falada ou impressa, o
que abre essa compreensão a outras linguagens e codificações, à pluralidade de
sistemas de signos da cultura e também ao hibridismo de gêneros. É minha in-
tenção nesse texto, porém, abordar os gêneros produzidos em situações de uso da
linguagem oral e da linguagem escrita, como veremos a seguir.

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Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil

Gêneros primários e gêneros secundários


Bakhtin distingue gêneros primários – que “se constituíram em circuns-
tâncias de uma comunicação verbal espontânea” – e gêneros secundários – que
“aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e re-
lativamente mais evoluída, principalmente escrita artística, científica, sociopolíti-
ca“ (1992, p. 281). No seu processo e formação, os gêneros secundários absorvem
e transmutam os gêneros primários que, por sua vez, ao se tornarem componentes
dos gêneros secundários, transformam-se também.
Vejamos a seguir um trecho da história da Branca de Neve, dos irmãos
Grimm como exemplo dessa transmutação:
Há muito tempo, num reino distante, viviam um rei, uma rainha e sua filhinha, a princesa
Branca de Neve. Sua pele era branca como a neve, os lábios vermelhos como o sangue e
os cabelos pretos como o ébano.
Um dia, a rainha ficou muito doente e morreu. O rei, sentindo-se muito sozinho, casou-se
novamente. O que ninguém sabia é que a nova rainha era uma feiticeira cruel, invejosa e
muito vaidosa. Ela possuía um espelho mágico para o qual perguntava todos os dias:
– Espelho, espelho meu! Há no mundo alguém mais bela do que eu?
– És a mais bela de todas as mulheres, minha rainha! – respondia ele.

Nesse pequeno trecho é possível observar, por exemplo, a forma condensada


como o relato escrito enumera os personagens e suas características, como ocor-
re o emprego dos pronomes (sentindo-se, para o qual), como a fala do narrador
se sucede à do personagem e, especialmente, como o diálogo das personagens é
bem distinto de uma conversa do cotidiano. O discurso direto nessa história não é
uma transcrição de um diálogo, ele é uma elaboração da linguagem escrita, com a
presença de rima (meu-eu) tratamento literário dado ao vocativo (espelho, espelho
meu!), entre outros.
Um outro exemplo são as cenas do filme Central do Brasil, de Walter Salles,
em que os adultos analfabetos ditam cartas para a personagem Dora escrever. Ao
ditarem, aquelas pessoas fazem uso de estrutura textual típica do gênero epistolar.
Para ditar as cartas, o locutor elabora o seu discurso para ser escrito: as cartas
apresentam uma saudação ao remetente, logo após anunciam as intenções do lo-
cutor, as informações e notícias que querem dar ao leitor e fazem perguntas ao
interlocutor com a mesma intenção comunicativa, depois fecham com a despedida
e a assinatura. Algumas chegam a usar expressões só empregadas na escrita como
venho por meio desta. O fato das cartas serem oralizadas não destitui os textos das
transmutações feitas aos diálogos cotidianos para se tornarem uma comunicação
escrita.
Para Bakhtin, não se pode entender a natureza dos enunciados sem se levar
em conta as inter-relações entre os gêneros primário e o secundário. Numa socie-
dade letrada, os gêneros secundários perpassam a oralidade e vice-versa; há uma
influência recíproca pela circularidade entre as diferentes manifestações culturais
e discursivas. Textos escritos são oralizados e textos tipicamente orais são trans-
postos para a escrita. Oralidade e escrita se inter-relacionam e são até mesmo in-
dissociáveis na sociedade grafocêntrica. Embora gêneros primários e secundários

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Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil

sofram influências mútuas, podemos pensar em características de cada um e fazer


comparações entre eles. Vejamos algumas:

Características dos gêneros


Gêneros primários Gêneros secundários
Controlados diretamente pela Mantém uma certa autonomia em relação
situação. ao contexto imediato.
O contexto é linguisticamente criado pelo
texto exigindo a criação de instrumentos
A regulação se dá na e pela
linguísticos reguladores – regras conven-
própria ação de linguagem.
cionadas – que garantam a coerência inter-
na do texto.

Acontecem no nível real com


Acontecem no nível linguístico. Exigem
o qual a criança é confrontada
um maior ou menor grau de explicitação, de
nas múltiplas práticas de
formalidade, de planejamento do discurso.
linguagem cotidiana.

São formações complexas porque são ela-


Acontecem na comunicação borações da comunicação cultural organi-
verbal espontânea. zada em sistemas específicos, como a arte,
a filosofia, a ciência, a política.

Cabe sempre lembrar que os gêneros discursivos estão vinculados a enuncia-


dos concretos que se manifestam nas interações sociais. São as possibilidades de
uso da língua – seja oral ou escrita – que vai permitir a diferenciação e a apropriação
dos diferentes gêneros. Ou seja, é no interior das práticas sociais, contextualizados e
exercendo funções enunciativas, que os diferentes gêneros se colocam aos sujeitos.
Na medida em que as esferas sociais se alargam, também aumentam a demanda por
produção e recepção de discursos. Nesse processo há diferenças entre as possibili-
dades de circulação das crianças, seja pelos limites e possibilidades de cada faixa
etária, seja pelo acesso às diferentes manifestações culturais e seu grau de elabora-
ção, bem como das práticas discursivas que as acompanham.

Educação Infantil: textos, suportes,


contextos e práticas dos gêneros discursivos
Os enunciados das crianças (orais e escritos) são formas concretas de reali-
zação da língua e, simultaneamente, a vida que atravessa a língua. As condições,
situações, práticas, usos, funções e significações da linguagem escrita são con-
textuais, se modificam historicamente e se colocam de forma diferente para cada
sujeito e seu grupo.

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Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil

As interações com enunciados de discursos de diferentes naturezas possibi-


litam apropriações também diversas. É a participação da criança em situações de
utilização da língua que vai permitir a apropriação e o uso. É no contato da crian-
ça com a língua escrita que elas vão estabelecendo relações e observando que as
diferenças entre as línguas oral e escrita dizem respeito às condições de produção
do discurso como, por exemplo, de que a comunicação oral acontece no imediato
e local enquanto a escrita permanece no tempo, ganha outros espaços e tem regras
convencionadas, o contexto da enunciação determina o grau de explicitação tex-
tual mas, por sua vez, o nível de formalidade vai exigir um maior ou menor plane-
jamento do que se diz etc. Mesmo estando imersas na cultura letrada, o domínio
da escrita – um sistema cultural complexo – depende dos processos de interação e
da mediação de outros indivíduos, o que incluiu a própria intervenção pedagógica.
As crianças levantam inúmeras hipóteses sobre esse elemento da cultura e é na
troca com pessoas mais experientes e que detêm maior conhecimento do que elas
sobre a língua escrita que vão podendo obter informações, questionar suas hipóte-
ses, reformulá-las, buscar soluções, entender e usar regras e convenções etc.
Cabem então algumas questões para se pensar um trabalho de leitura e es-
crita em Educação Infantil: em quais esferas sociais as crianças circulam? Que
gêneros discursivos primários e secundários estão presentes nessas esferas? Quais
os que não fazem parte, mas que podem passar a fazer? Que situações comunica-
tivas reais podem favorecer a apropriação de diferentes gêneros discursivos? Que
textos interessam as crianças? Como eles se tornam espaços de interação verbal?
Além dessas questões é importante que desde a Educação Infantil haja uma
reflexão sobre o lugar da escola no processo de produção, recepção e apropriação
de gêneros discursivos. Pois na escola os textos não têm apenas a função enun-
ciativa, mas são também objetos de aprendizagem. Além dos gêneros produzidos
na esfera escolar – listas de materiais e de atividades, enunciados de atividades,
definições, textos de diferentes áreas de conhecimento, livro didático, boletins e
outros documentos escolares (ocorrências, bilhetes aos pais, por exemplo), quadro
de avisos, dicionário, enciclopédia etc., – no processo educativo os textos tornam-
-se objetos de ensino e aprendizagem tanto da forma quanto do conteúdo. Um dos
desafios da escola nesse processo de ampliação das possibilidades discursivas das
crianças é de como garantir a manutenção da função comunicativa dos textos.
Como fazer com que o processo de análise e reflexão dos textos amplie as possi-
bilidades enunciativas do sujeito e não torne o texto um mero objeto destituído de
suas funções? O desafio, por sua vez, impõe algumas questões para a Educação
Infantil em particular: quais seriam as dimensões ensináveis de cada gênero para
as crianças da Educação Infantil? É possível ensiná-las no contexto das práticas
sociais? Em primeiro lugar, cabe reafirmar que na Educação Infantil o mais im-
portante de ser desenvolvido com as crianças é a possibilidade de elas agirem no
mundo, viverem e experimentarem situações. A formalização e a sistematização
de conceitos são consequências das ações e são elaborações que precisam passar
primeiro pela expressão oral, pela representação corporal, pelo desenho etc. As
respostas a essas perguntas estão nas ações das crianças e podem ser obtidas,
principalmente, nos espaços e tempos do brincar. As crianças aprendem brincan-
do e quando brincam revelam suas aprendizagens. Na brincadeira, nas diferentes
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Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil

situações em que recriam o cotidiano, é possível observar as interações que esta-


belecem e os discursos que articulam para se comunicar. Brincando de ser mãe,
pai, bebê, vovó, médico, polícia, repórter, artista, palhaço, vendedor, professora,
prefeito ou qualquer outra pessoa, a criança se coloca no lugar desses persona-
gens, entrando pelo imaginário nas esferas sociais em que cada um deles circula,
reproduzindo ações, gestos e também discursos. Como ser repórter sem usar a
linguagem jornalística, como fazer uma propaganda sem tentar convencer o outro
do seu produto?
Nesse sentido, observar as crianças brincando é uma importante fonte de
informação sobre as suas produções discursivas. Propor brincadeiras e dramatiza-
ções em que exerçam diferentes papéis é também uma forma de instigá-las a fazer
uso de diferentes gêneros de discursos. Disponibilizar portadores de textos na
casinha de boneca, como jornal, caderninho de anotações perto do telefone etc.,
criando condições de contextualização, é abrir espaço na brincadeira para a lei-
tura e a escrita. Brincar de ler e de escrever, brincar com os portadores de texto e
seus usos não é uma mera simulação de leitura ou de escrita porque muitos conhe-
cimentos entram no jogo. Cantar canções, recitar versos, brincar com as palavras,
se encantar com os seus efeitos sonoros e jogos de significados; ouvir histórias e se
deixar levar pelo texto, tudo isso é vida atravessando a língua e vice-versa.

Observe, durante alguns dias, os diferentes discursos, orais e escritos, que circulam nas esfe-
ras sociais em que você participa: família, escola, faculdade etc., levando em consideração as
seguintes questões: quem se dirige a quem? O que ou sobre o quê falam? Com qual finalidade?
Como se dirige, ou seja, quais recursos linguísticos utilizam para chegar aos objetivos ou inten-
ções comunicativas? Não se esqueça de observar não só as palavras como também o contexto
da enunciação (situação e clima do que estava acontecendo), os gestos, as entonações, as expres-
sões faciais, os olhares etc. Anote e procure agrupar o que observou em categorias. A mesma
atividade anterior pode ser feita, especificamente, em relação às crianças. Isto é, observá-las em
diferentes situações e espaços da escola. Propor situações em que as crianças tenham que fazer
uso de discursos, orais e escritos, de diferentes naturezas e para fins também diversos: expor
um trabalho em público (ficar em pé em frete da turma para falar), contar uma piada, relatar um
fato que aconteceu de verdade, inventar uma situação colocando-se no lugar de um determinado
personagem, entre muitas outras. Ditar diferentes tipos de textos para o professor escrever – re-
lato de uma visita, história inventada, nota sobre uma observação etc.

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Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil

Sugiro a leitura das obras: Estética da Criação Verbal, de Mikhail Bakhtin e do artigo.
Gêneros Discursivos, de Irena Machado, que faz parte da obra Bakhtin: Conceitos-Chave, or-
ganizada por Beth Brait.

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Letramento na Educação
Infantil: questões para pensar
a prática pedagógica
Patrícia Corsino
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo
vou procurá-la.

Carlos Drummond de Andrade

Considerações iniciais

A
linguagem como manifestação, presente em todas as esferas da atividade humana, apresenta-
-se de muitas formas e, entre elas, a linguagem escrita tem ocupado um lugar relevante no
mundo contemporâneo. Saber ler e escrever é condição básica de inserção social. Além de
apresentar uma grande diversidade de gêneros do discurso, ter diversos usos e exercer várias funções
na sociedade, a linguagem escrita é uma ferramenta simbólica que permite uma série de ações sobre
ela mesma e do próprio pensamento do sujeito.
Todo processo de escolarização das crianças, desde a modernidade, teve como objetivo central
a alfabetização. Entrar para a escola significava aprender a ler e a escrever, ou seja, ser introduzido
ao mundo letrado. Atualmente, porém, esse pressuposto perde a sua força. Primeiro, pelas discus-
sões que se colocam hoje sobre o processo de apropriação de conhecimento das crianças que, por
participarem ativamente da cultura em que estão imersas, estabelecem desde muito cedo inúmeras
relações com tudo que está a sua volta, o que inclui os textos presentes no seu cotidiano, iniciando o
seu processo de inserção no mundo letrado informalmente. Segundo, porque a educação das crianças
em espaços institucionalizados pode ter início desde os primeiros meses de vida e a sua entrada na
Educação Infantil não tem como objetivo inicial aprender a ler e a escrever.
Por outro lado, as questões que envolvem os processos individuais e sociais de construção da
linguagem escrita pela criança, bem como as práticas de leitura e de escrita que acontecem nas cre-
ches e pré-escolas, há muito tempo suscitam indagações para a Educação Infantil como: quais textos
precisam fazer parte desses espaços? Como possibilitar o acesso das crianças aos textos escritos? O
que as crianças podem ler e escrever? A partir de que idade elas podem aprender a ler e a escrever?

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Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica

Existem requisitos para que se aprenda essas coisas? Se existem, quais são? Como
a Educação Infantil pode favorecer o processo de alfabetização?
Se até por volta das décadas de 1960 e 1970 a Educação Infantil era concebida
como um espaço de cuidados e recreação, não visando à aquisição da escrita, pois
se entendia que esse processo deveria ter início com a entrada da criança na escola
aos sete anos, a partir de então a Educação Infantil passou a ser pensada de forma
a contribuir para a redução do fracasso escolar, devendo compensar carências e
déficits linguísticos, perceptivos, motores etc. das crianças “despreparadas”. Além
da utilização de exercícios gráficos chamados de prontidão, que eram aplicados
antes de a criança iniciar-se na alfabetização, algumas pré-escolas tinham como
objetivo um progressivo contato dos alunos com as letras e seus traçados. Assim,
propunham exercícios psicomotores corporais, seguidos da identificação oral das
letras e, posteriormente, da cópia repetitiva. Como o próprio nome – pré-escola –
indica, a função desse espaço era preparar as crianças para o Ensino Fundamental,
basicamente para serem alfabetizadas. Não havia a preocupação intencional com
as situações reais de letramento das crianças dentro e fora da escola.
Nesse momento em que, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal (LDB) de 1996, creches e pré-escolas tornam-se instituições educativas e que,
portanto, estão sendo impelidas a pensar a sua função educativa que nem sempre
está clara – já que, historicamente, essa função, especialmente para as crianças
entre quatro e seis anos, se identificou à função preparatória1 – as questões relati-
vas à leitura e à escrita na Educação Infantil continuam em pauta. Embora o texto
legal traga como finalidade da Educação Infantil o desenvolvimento integral da
criança, em seus aspectos físicos, psicológicos, intelectuais e sociais, e proponha
a integração entre as atividades educativas e os cuidados necessários a essa faixa
etária, buscando objetivos mais específicos para esse nível de ensino, nenhum
desses pressupostos excluem, necessariamente, a ideia de “preparo”. Essa ideia
permeia as concepções de infância, de desenvolvimento infantil e de linguagem,
ganhando nuances e contornos conforme o ponto de vista que se adote. É no tra-
balho diário, nas práticas educativas e nas relações entre adultos e crianças que se
pode observar se a criança é ou não vista e tratada pela óptica da falta, da carência,
do que precisa ser suprido etc.
Paulo Freire (1996) considera que a educação é simultaneamente uma certa
teoria do conhecimento entrando na prática, um ato político e um ato estético, em
que há simultâneos momentos entre teoria e prática, arte e política. Essa forma de
pensar a educação deixa claro que separar esses momentos é desconsiderar como
se dá a própria ação educativa. Mesmo que o professor desconheça a teoria que
está fundamentando a sua prática, suas ações a explicitam. Na prática, a estética
dos espaços, dos materiais, dos gestos e das vozes dá visibilidade ao que e como
1 Para as crianças de clas-
ses populares ao preparo se propõe à criança e, ainda, do que o adulto pensa sobre ela e sobre a educação
se somou a ideia de uma edu-
cação compensatória.
que se dirige a ela. O político permeia tudo isso pelas vozes que podem ser ouvi-
das ou caladas, ou seja, pela possibilidade dos sujeitos da linguagem se dizerem.

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Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica

No que diz respeito às indagações sobre a presença da linguagem escrita


nos espaços de Educação Infantil, Vygotsky (1991), em 1929, escrevendo sobre
a pré-história da linguagem escrita e trazendo o percurso de apropriação dessa
linguagem pela criança, discutia o papel fundamental que a escrita desempenha
no desenvolvimento cultural infantil e chamava a atenção para o lugar estreito
que ela estava ocupando na prática escolar pela ênfase dada à mecânica de ler que
acabava obscurecendo a linguagem escrita. Concluiu o seu trabalho dizendo:
A escrita deve ter significado para as crianças, uma necessidade intrínseca deve ser desper-
tada nelas e a escrita dever ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida.
Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como um hábito de mão e
dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem. (VYGOTSKY, 1991, p. 133)

O significado é parte inalienável da palavra e de qualquer enunciação. Os


textos são enunciações: partem de alguém e se dirigem para alguém. É fundamen-
tal que os textos escritos oferecidos às crianças façam sentido para elas e que ler
e escrever seja relevante e necessário para as suas vidas. Sendo assim, pergunto:
que textos interessam às crianças da Educação Infantil? Que situações de leitura
e de escrita vivenciam no seu cotidiano? Que textos circulam no seu meio social?
Para que elas precisam ler e escrever? Que “tarefas”, relevantes para as crianças,
necessitam da linguagem escrita? Sem conhecer tanto as práticas sociais de leitura
e de escrita que as crianças vivenciam quanto os seus interesses, como é possível
tornar a leitura e a escrita significativas para elas?
As indagações postas pelo psicólogo russo não são diferentes das de Paulo Freire
que, desde a década de 1950, tem pensado a educação como prática de liberdade,
a ação pedagógica enquanto ação cultural, contra a opressão, como condição para
a autonomia do sujeito e um desenvolvimento humano pleno. O tema não é novo
no cenário educacional brasileiro. As discussões sobre a alfabetização e letramento,
nas últimas décadas, têm se apresentado sob diferentes enfoques e áreas de estudos.
Meu objetivo, neste texto, é discutir questões do letramento na Educação Infantil. Ini- 2 Angela Kleiman (1995, p.
17) informa que o termo
“letramento” foi cunhado
cialmente, trago o histórico do conceito de letramento e algumas interpretações. Em por Mary Kato em 1986 e, a
seguida, abordo as várias facetas desse conceito, tipos e formas, e termino indicando partir de então, passou a ser
usado por diversos pesquisa-
alguns desdobramentos pedagógicos, especialmente para a Educação Infantil. dores. É uma tradução de li-
teracy que, na língua inglesa,
se refere tanto ao processo
formal e escolar de aquisição

Letramento: o conceito e suas dimensões


da leitura e escrita (a alfabe-
tização no sentido estrito),
quanto ao processo sócio-
histórico de aquisição e difu-
O letramento2 é um conceito multidimensional que, entendido como um es- são de práticas culturais ba-
seadas na escrita (TFOURI,
tado ou uma condição, refere-se a um conjunto de comportamentos variados e de 1989). Durante muito tempo,
as traduções para o portu-
diferentes níveis de complexidade, abrindo-se a uma infinidade de perspectivas guês foram feitas sem levar
de abordagem. Soares discute esse conceito trazendo duas grandes dimensões, a em conta essas diferenças.
Pouco antes da publicação
individual e a social: de Kleiman, Silva (1990, p.
64), ao traduzir textos que
Quando o foco é posto na dimensão individual, o letramento é visto como um atributo tratavam a segunda acepção
da palavra literacy, optou por
pessoal [...]. Quando o foco se desloca para a dimensão social, o letramento é visto como “alfabetismo”, palavra que
um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita, consta no nosso vernáculo.
Letramento é um neologismo
e de exigências sociais de uso da língua escrita. Na maioria das definições atuais de letra- que se firmou especialmente
mento, uma ou outra dessas duas dimensões é priorizada: põe-se ênfase ou nas habilida- após a publicação, em 1998,
des individuais de ler e escrever, ou nos usos, funções e propósitos da língua escrita no do livro de Magda Soares,
Letramento: um tema em três
contexto social. (SOARES 1998, p. 66-67) gêneros.

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Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica

A dimensão social, por sua vez, também comporta duas interpretações: a


liberal, que seria uma versão fraca do letramento, pela forma reducionista e prag-
mática com que aborda as habilidades de leitura e de escrita necessárias para um
indivíduo funcionar no seu contexto social, e a versão forte ou revolucionária, que
concebe o letramento como um conjunto de práticas socialmente construídas, que
envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais amplos, responsáveis
por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder
presentes no contextos sociais (SOARES, 1998, p. 74).
O letramento é um conceito que tem sido usado para designar o estado, a
condição ou a qualidade de um indivíduo ou grupo que cultiva e exerce práticas
sociais de leitura e de escrita. Como um processo sócio-histórico que entrelaça
língua escrita e cultura, o letramento está diretamente relacionado às práticas de
leitura e escrita do grupo em que o indivíduo está inserido, suas intenções e fun-
ção enunciativas, bem como sua difusão e seu valor social.
Kleiman (1995) afirma que a escola tem se pautado no modelo autônomo de
letramento, que o associa quase que casualmente com o progresso, a civilização,
a mobilidade social, reforçando o que Graff (1990, p. 30-64) chamou de mito do
alfabetismo, que seria um conjunto de crenças, expectativas e teorias que super-
valorizam o papel do letramento na vida do sujeito e na sociedade, identificando-o
como a característica mais importante de um homem civilizado e de uma socieda-
de civilizada. O autor denomina mito porque nem tudo o que se afirma e se espera
do letramento é efetivamente verdadeiro e alcançável.
Não é meu objetivo neste texto discutir o mito do alfabetismo. Porém, se por
um lado o modelo autônomo de letramento tem superestimado o lugar da escola
como difusora da cultura letrada e supervalorizado as práticas escolares de letra-
mento – desconsiderando as diferenças culturais e linguísticas dos alunos e o pró-
prio meio sociocultural mais amplo, com suas multiplicidade de textos, práticas,
apropriações e valores – por outro, é inegável o lugar da escola na difusão do letra-
mento. E é justamente nessa tensão entre as práticas sociais e as práticas escolares
de leitura e de escrita que se situa a possibilidade de ruptura desse modelo autônomo
de letramento que tem se instaurado na escola desde a Educação Infantil.
Pensar o letramento de forma crítica implica numa contextualização dos
gêneros discursivos que cada indivíduo e seu grupo dispõem nas suas esferas de
atividade. Um ponto de partida é indagar: quais são os textos orais e escritos que
as crianças dispõem? Quais são as demandas e necessidades de temas, conteúdos,
estilos, grau de formalidade, intenções comunicativas etc. que os indivíduos preci-
sam dispor nas suas práticas enunciativas? Pergunta que inclui as práticas sociais
e também as escolares, porque é num contexto e nas inter-relações sociais que a
língua é falada, vivida, lida, pensada, difundida e construída.
Por sua vez, olhar o contexto e a própria escola traz à tona as diferenças
entre pessoas e grupos e traz também as desigualdades sociais, já que a distri-
buição e o acesso ao acervo cultural coletivo construído ao longo da história,
com sua infinidade de gêneros discursivos, segue quase que linearmente a mes-
ma lógica da distribuição dos bens materiais. Nessa mirada não há como a esco-

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Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica

la não se ver e pensar no seu lugar frente ao compromisso de ampliar o universo


cultural das crianças.
Na sociedade moderna, urbana e letrada, a língua escrita está presente em
quase todos os lugares, tem inumeráveis usos, exerce muitas funções e se articula
de muitas maneiras. Por isso, podemos dizer que existem vários tipos de letra-
mento e também níveis, já que cada tipo pode variar em complexidade. Assim, o
termo letramento passou a significar a apropriação de diferentes tipos de textos
e participação em práticas de leitura e de escrita. Para melhor especificá-lo ou
delimitá-lo alguns adjetivos começam a aparecer, como é o caso, por exemplo, do
letramento escolar e do letramento literário.
O primeiro se relaciona à apropriação de práticas de leitura e de escrita tipi-
camente escolares. Além de gêneros discursivos escolares por excelência, como é
o caso dos textos didático-informativos, redações escolares, enunciados de exer-
cícios e provas etc.; na escola, os gêneros discursivos não são apenas espaço de
enunciação e interação verbal, mas objeto de estudo e de aprendizagem do próprio
texto. O texto é estudado e analisado, para se conhecer o conteúdo que veicula
e também a sua estrutura sintática, morfológica, gramatical etc. Na escola, mas
não apenas nela, aprende-se a operar com o texto, lendo, estudando, analisando,
resumindo, deduzindo, inferindo, produzindo etc. Procedimentos, vocabulário e
uso adequado de todos esses conhecimentos e operações com os textos fazem
parte do letramento escolar. O letramento literário, por sua vez, se refere à leitura
e à escrita de textos literários, não só à análise e à reflexão sobre a elaboração
artística da linguagem, como também a fruição e a experiência estética do sujeito
e a possibilidade de transitar no ficcional. Quanto mais experiências de leitura
literária, percorrendo a diversidade de estilos de poesia e de prosa, maior nível de
letramento literário terá o sujeito.
Há também o letramento prático, do cotidiano que sem o qual o sujeito
não circula com autonomia no espaço urbano, que inclui toda sorte de suportes
textuais como folhetos, cartazes, placas, embalagens, encartes, jornais, revistas,
letreiros, cartões etc. Cada um deles com diferentes tipos de textos, com funções
e intenções enunciativas distintas.
O letramento e sua difusão, segundo Tolchinsky (1990), têm comportado três
componentes: o prático, o científico e o literário. De acordo com o enfoque que se
escolha, as perspectivas e as ações pedagógicas mudam em relação ao ensino da
língua e as práticas de leitura e de escrita na escola. Conforme a autora, a primeira
dimensão, que concebe a língua escrita no seu nível prático, considera que os indi-
víduos alfabetizados/letrados são aqueles que possuem as habilidades básicas para
adaptar-se à vida moderna, urbana, de classe média. A ênfase dada ao ensino da
língua está nos seus usos práticos e funcionais. Os materiais de leitura são selecio-
nados para atender às necessidades do cotidiano de uma comunidade alfabetizada.
Na segunda, de caráter científico, a língua escrita é vista como fonte de informa-
ções, poder e dominação, acesso aos melhores trabalhos e também à inteligência e
à racionalidade. O saber é uma promessa de poder em sua dupla função: de contro-
lar o meio físico e o social. Trabalha-se amplamente a leitura do texto informativo,
priorizando os conteúdos das diferentes áreas. A terceira, relativa ao nível literário,
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Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica

às funções poéticas e estéticas da língua, volta-se para a apreciação dos gêneros


literários. A escola reconhece no letrado um traço estético.
Tolchinsky, ainda nesse trabalho, acrescenta que todas essas formas de abor-
dar o letramento fazem parte das representações culturais e têm dirigido a apro-
priação, a difusão e a significação da leitura e da escrita desde os seus primórdios.
Ao revelar a parcialidade com que tem sido focado o letramento, sua difusão e,
consequentemente, as práticas escolares, a autora faz pensar sobre a amplitude de
possibilidades dessas práticas e as consequências de qualquer reducionismo. Cada
enfoque supõe um conceito de leitura e de leitor, bem como o seu valor social.
Ler para seguir instruções, comandos, apelos de consumo; ler para conhecer e se
informar sobre o mundo real e ler para caminhar pelos bosques da imaginação
(ECO, 1994) e da linguagem expressiva, buscando diferentes sentidos; são ações
muito distintas entre si. A eleição de umas e não de outras para serem apropriadas
pelos leitores, como tem sido sua difusão, historicamente, e para os diferentes
grupos sociais, é uma questão que envolve as relações entre língua escrita e poder.
É um ato político que tem servido à exclusão e à manutenção do poder das classes
dominantes.
Além da parcialidade na promoção e ampliação do letramento, a escola tam-
bém o faz de forma fragmentada. Pois, mesmo enfocando uma ou mais dimen-
sões, suas práticas de leitura e de escrita têm sido basicamente restritas aos usos
e funções escolares e seus textos – pelo tratamento didático que recebem – são,
geralmente, parte de obras; no caso da literatura, parte de conhecimentos; no caso
dos textos informativos e científicos, parte da diversidade textual que circula no
cotidiano de cada grupo e parte do próprio universo da linguagem escrita, já que a
língua é tomada basicamente na sua dimensão instrumental e funcional, deixando
pouco espaço para a dimensão expressiva e sensível.
Cada dimensão do letramento, apontada por Tolchinsky, comporta uma
enorme diversidade de textos, de diferentes graus de complexidade, níveis de
competência de leitura e diferentes condições de acesso aos textos escritos e ao
conteúdo que veiculam (BRITO, 1998, p. 70). Podemos dizer que cada pessoa e
cada grupo possuem suas próprias práticas, níveis e conteúdos de letramento. E
ainda que, de acordo com a demanda individual e social de leitura e de escrita, o
processo de letramento tende a se tornar contínuo e em constante ampliação.

Letramento e infância
O letramento é um processo que tem início nos primeiros contatos da crian-
ça com a cultura letrada e tende a se estender ao longo da vida. Muito antes de
levantar hipóteses sobre como se escreve, ao participar de eventos de letramento,
interagindo com diferentes textos, a criança começa a entender o que, por que,
para que se escreve.
Crianças de meios letrados vivenciam situações de letramento de uma for-
ma mais ativa e intensa (ROJO, 1995). Desde os primeiros anos de vida, os pais
leem livros de histórias, conversam sobre os personagens, comentam uma notícia
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de jornal, chamam atenção para um convite etc. Os modos de participação nesses


eventos e as práticas discursivas orais em que essas atividades ganham sentidos
são fundamentais para que a criança estabeleça uma relação com a escrita en-
quanto prática discursiva e enquanto objeto (LEMOS, 1988, p. 11). Tal prática
discursiva é capaz de provocar emoções, transportar para um mundo imaginário,
informar, comunicar, instruir, ajudar nas mais variadas situações, é parte inte-
grante da interação verbal diária. Como objeto, a escrita se apresenta com muitas
grafias, está presente em coisas familiares, que circulam pelo espaço em que essas
crianças vivem; para elas, a linguagem escrita faz parte da corrente da comuni-
cação verbal.
E as crianças de meios ditos iletrados, como penetram nessa corrente? Não
basta ter o texto exibido e mudo, o artefato em si não é penetrado. Para elas, a
escola poderia ser um agente de letramento por excelência. É lá que o texto, um
objeto meramente visual, pode vir a “falar”.
O letramento inclui duas faces: a capacidade de ler e de produzir os diferen-
tes textos que circulam. A formação do leitor se inicia nas suas primeira leituras
de mundo, na prática de ouvir histórias narradas oralmente ou a partir da leitura
de textos escritos, na elaboração de significados a partir dos textos ouvidos e na
descoberta de que as marcas impressas produzem linguagem. O produtor de texto
tem início nas marcas que imprime com o corpo, nos gestos indicativos, nas ex-
pressões corporais e dramatizações, no traçado dos desenhos, no trabalho com as
artes plásticas – pinturas, colagens e modelagens –, na criação de textos orais a
partir de imagens e situações vividas, observadas ou imaginadas e na possibilida-
de de ditar esses textos, buscando a melhor forma de articular o discurso que tem
a intenção de proferir, para um escriba transcrever. O leitor ouvinte conhece usos
e convenções da escrita e pode produzir textos oralmente. O leitor potencial, por
ser convidado a ler sem ainda ter o domínio da leitura, pode interpretar os sinais
gráficos, observar as inúmeras possibilidades de combinações das letras, anteci-
par sentidos, refletir sobre a língua escrita, levantar hipóteses sobre ela, observar
os textos que estão à sua volta e descobrir possibilidades de relações. A criança
acostumada a narrar, a dramatizar, a desenhar, a ilustrar a vida usando diferentes
recursos e materiais, pode se arriscar a escrever espontaneamente, descobrindo
que se desenha também a fala.
Leitura e escrita são processos complementares, porém distintos, pois exi-
gem competências e habilidades diferentes. É possível saber ler e não saber escre-
ver. Ser um leitor competente não significa, necessariamente, ser um bom produtor
de textos. Mas quem escreve deve ser capaz de ler o que escreveu, caso contrário,
teria feito uma cópia ou um traçado de letras e não uma produção de autoria. A
leitura se sobrepõe à escrita, já que um texto se realiza, além da sua materialidade,
quando é lido. Ler e escrever se aprende, se cultiva e se exerce no cotidiano das
práticas sociais.
Quando, na história individual, a leitura autorizada e legitimada é o reco-
nhecimento termo a termo de cada fonema e seu grafema, o caminho para a pro-
dução de sentido torna-se mais longo e sinuoso. Quando os textos oferecidos são
restritos e sua interpretação predeterminada, não se abre espaço para o sujeito
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Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica

interagir e trocar, colocando-o fora do processo discursivo. Presa na univocidade,


essa leitura dificilmente possibilita o surgimento do leitor.
Quando, na história de um grupo, a leitura é algo distante, privilégio de al-
guns, demarca-se uma fronteira entre os que podem e os que não podem tê-la. Se
esse privilégio é poder, por que dividi-lo?
De acordo com as práticas sociais, vão se construindo historicamente os
sentidos da leitura para cada sujeito e para cada grupo social. E é entre mitos,
desejos e necessidades que esses sentidos vão sendo produzidos desde a pequena
infância.

Considerações finais
Ao trazer as diferentes dimensões do letramento, foi meu objetivo traçar
um panorama das possibilidades de inserção das crianças, desde muito pequenas,
no mundo letrado. Trabalhar na Educação Infantil na perspectiva do letramento
é mais do que levar alguns tipos de textos para serem lidos para as crianças na
rodinha ou expor outros na parede. É envolvê-las em práticas discursivas em que
o texto lido tenha de fato uma função enunciativa.
A curiosidade das crianças pelos elementos e fatos da natureza e da socie-
dade, por exemplo, pode ser respondida ouvindo a leitura de textos informativos,
folheando enciclopédias, vendo imagens e documentários, fazendo visitas, entre-
vistas e passeios. Tudo isso registrado com dramatizações, desenhos para compor
cartazes, folhetos, livros, álbuns de fotografia legendados, relatórios ditados para
a professora escriba e tantas outras formas de dizer o que foi visto e aprendido. A
linguagem escrita, integrada à própria inserção cultural.
O imaginário infantil pode ser embalado por cantigas, cirandas, versos e
parlendas que acompanham brincadeiras e muitas histórias contadas com fanto-
ches, objetos, com o próprio corpo, e também lidas após uma seleção criteriosa
da professora. Histórias que provocam outras, que fazem rir e chorar, que apare-
cem em diferentes versões de textos falados e escritos, em ilustrações, imagens e
filmes. Histórias que participam de brincadeiras. Brincadeiras que narram outras
histórias vividas e imaginadas.
Por exemplo, em uma casinha de boneca, quantas possibilidades de circula-
ção de textos podem suscitar? Teclado de computador, livros, jornal, caderninho
de telefone, bloquinho de anotações, embalagens de alimentos na cozinha, de lim-
peza num armário, dinheiro “de mentirinha” numa carteira de verdade, livro de
receita na cozinha, bilhete na porta da geladeira, aparelho de som na sala, enfim,
portadores variados de muitos textos que participam das brincadeiras sem pedir
licença.
Os espaços de Educação Infantil são sobretudo ambientes de relações em
que as crianças devem ser o centro. Cabe aos professores mediar as relações e
ampliar as possibilidades das crianças, desencantando as palavras que moram em
muitos livros. É a senha da vida, a senha do mundo, vou procurá-la.
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Letramento na Educação Infantil: questões para pensar a prática pedagógica

1. Desde que você acordou hoje quantas coisas já leu? Procure se lembrar de cada tipo de texto que
passou pelos seus olhos e registre na tabela a seguir, como no exemplo:

Onde estava Em que situação você Como você leu? Com que objetivo você
Tipo de texto. impresso? leu? (postura, gestos, leu?
portador/suporte (contexto) práticas) (finalidade, intenção)

Quando fui pegar uma Para saber as propriedades


Rótulo de Na caixa da pasta de Em pé, em silêncio e
pasta nova para escovar e composição do produto,
embalagem. dente. rapidamente. entre outras informações.
os dentes.

2. Discutir os registros individuais no coletivo da turma e analisar os diferentes tipos, suportes,


contexto de leitura, práticas – gestos que acompanham/guiam a leitura –, finalidade, intenção.

3. Refletir sobre: que tipos de textos circulam na escola? Quais os que as crianças da Educação In-
fantil têm acesso? Quais os que podem ter a partir de situações reais e significativas para elas?

4. As reflexões podem ser antecedidas da tarefa de observar e registrar as práticas de leitura e de


escrita que uma criança na faixa etária da Educação Infantil participa no seu cotidiano – dentro
e fora da escola –, durante um determinado período.

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Sugiro a leitura de Os Significados do Letramento, organizado por Angela Kleiman, e Letra-


mento: um Tema em Três Gêneros, de Magda B. Soares.

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A Literatura Infantil e as
crianças de zero a seis anos
Patrícia Corsino
“O que queres que eu te leia querido? As Fadas?”
Perguntei incrédulo: “as fadas estão aí dentro?” [...]

Anne-Marie fez-me sentar diante dela, em minha


cadeirinha, inclinou-se, baixou as pálpebras,
adormeceu. Desse rosto de estátua saiu uma voz
de gesso. Fiquei tonto: quem contava a história?
O quê? E a quem? Minha mãe estava ausente:
nem um sorriso, nem um sinal de conivência, eu
estava exilado. Além disso, eu não reconhecia a
sua linguagem. De onde ela tirava toda aquela
firmeza? Após um instante eu compreendi: era o
livro que falava. Dele saíam frases que me davam
medo: eram verdadeiras centopeias, que expeliam
desordenadamente sílabas e letras, esticavam
ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas...
Quanto à história, é claro fora endomingada: o
lenhador, sua mulher e suas filhas, a fada, todas
essas criaturas, nossos semelhantes, tinham ganhado
majestade, falava-se de seus farrapos com grandeza,
as palavras transmitiam cor às coisas, transformando
ações em ritos e os acontecimentos, em cerimônias.
[...] Quando parou de ler, retomei vivamente os livros
e saí com eles debaixo do braço sem dizer obrigado.

Jean-Paul Sartre

F
oi com surpresa que o menino Jean-Paul descobriu que as fadas – conhecidas das histórias conta-
das oralmente pela mãe – estavam nos livros. Foi observando a mãe emprestando sua voz ao texto
que ele não reconheceu mais a sua linguagem e compreendeu que o livro falava. E foi no processo
de ouvir o livro que o menino se deixou seduzir pelo texto literário, que tem como uma de suas caracte-
rísticas reapresentar as coisas e os fatos corriqueiros de forma inusitada. Todo esse universo de encanta-
mento pelo texto literário levou o menino à leitura. Ele aprendeu a ler querendo descobrir a história que
estava por trás das marcas impressas.
A descoberta de que as marcas impressas produzem linguagem é o primeiro passo na trajetória
de leitura de qualquer leitor. Mas todos que desenvolvem não são o desejo de tomar para si os livros e

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querer penetrar no texto impresso para encontrar algo que possa saciar a curiosi-
dade ou dar asas à imaginação, isto é, o gosto pela leitura literária.
Esse texto tem como objetivo discutir a literatura infantil e as crianças de
zero a seis anos de idade. Inicialmente, vamos discutir questões que dizem respei-
to ao livro destinado ao público infantil, da sua produção à recepção da criança.
Vamos abordar a qualidade do livro e pensar em critérios para a escolha do que
oferecer às crianças. Depois vamos pensar a narrativa enquanto possibilidade de
intercambiar experiências e de estabelecer elos de coletividade e os contos de fa-
das como os primeiros narradores da infância, como afirma o filósofo e crítico da
modernidade Walter Benjamin (1993).

Infância e produção cultural


Nos últimos anos, assim como os brinquedos e os materiais de artes, os
livros já começam a fazer parte de muitos espaços de Educação Infantil, mesmo
que em quantidade reduzida. O mercado editorial brasileiro, destinado a esse pú-
blico, tem se expandido de maneira espantosa, oferecendo tanto obras de autores
brasileiros como estrangeiros, consagrados ou iniciantes. Pais e professores são
unânimes quanto à importância do livro para a formação das crianças, desde os
seus primeiros anos de vida. Mas qualquer livro é importante? O que tem chegado
até as crianças? Da produção à recepção pela criança, há um longo caminho a ser
percorrido. Entre o autor, a obra e o leitor, como afirma Roger Chartier (1990), há
toda uma tensão que envolve questões de muitas ordens.
O livro infantil tem ganhado um tratamento editorial cada vez mais elaborado
e sofisticado, com ilustrações, formato, tamanho, textura, materiais, cores, tipos de
letras, relação de tudo isso com o texto etc. Alguns livros destinados às crianças
bem pequenas podem ir ao banho, pois são feitos de plástico; outros podem ser
amassados, se feitos de pano; podem ser manipulados à vontade; e também podem
conter surpresas que vão do som ao cheiro; do jogo aos elementos que saem das
páginas e se mexem. Os destinados às crianças maiores ganham também cores e
ilustrações que, em diálogo com o texto, podem provocar novas leituras.
Livros, revistas e álbuns, brinquedos, peças de teatro, músicas, programas
de televisão, desenhos animados, filmes, entre outros, fazem parte da indústria
cultural infantil. Esses produtos para infância são cada vez mais bem elaborados
e bem construídos. Há toda uma articulação do mercado para criar o gosto por
eles, para serem tomados como referência, para terem seus discursos e valores
inculcados, e assim serem cada vez mais desejados e consumidos. Num processo
de disseminação de uma cultura da infância uniformizada, mundializada, grandes
produções como, por exemplo, dos estúdios Disney, têm suas histórias e imagens
expostas maciçamente em diferentes produtos – objetos, enfeites, materiais es-
colares, brinquedos e roupas – para entrarem na vida dos pequenos por todos os
lados. A infância tornou-se um grande nicho do mercado e o fetichismo da mer-
cadoria a atinge diretamente.
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Desde muito nova, a criança deseja e escolhe o que lhe é oferecido. Mas
cabe aos adultos que lidam com ela um olhar mais apurado sobre essas produções
culturais para que possam não só perceber os alcances e os limites da colonização
da criança por essa cultura de massa restrita, como também oferecer opções al-
ternativas capazes de ampliar o universo cultural infantil. É importante ressaltar
que essa indústria cultural, embora tenha a mídia como veículo e as massas como
alvo, é dirigida às classes favorecidas (média e alta, e urbana) que têm condições
de consumir. Num país como o Brasil, de grandes contrastes e concentração de
riquezas, essas produções acabam sendo também elementos de estigmatização e
exclusão, já que provocam uma cisão entre os que podem e os que não podem, os
que têm e os que não têm acesso a elas.
Pesquisas revelam que a expansão do mercado editorial brasileiro não sig-
nifica, necessariamente, um aumento do número de leitores, porque o livro é um
produto caro e de difícil distribuição. Dos quase 6 mil municípios brasileiros, ape-
nas 600 possuem livrarias, que hoje somam 1 200 lojas. Considerando a recomen-
dação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura
(Unesco) de se ter uma livraria para cada 10 mil pessoas, esses números deixam
descobertos 90% do território nacional, já que somos cerca de 170 milhões de bra-
sileiros. Portanto, mesmo os que poderiam consumir têm dificuldades de acesso
a alguns títulos1. A restrição de acesso ao livro (e aos outros produtos culturais)
se agrava na medida em que no Brasil não há políticas culturais amplas e demo-
cráticas. As bibliotecas escolares e públicas são escassas e as que existem têm um
acervo pouco diversificado e renovado. Creches e pré-escolas dificilmente têm
bibliotecas e os livros nem sempre estão organizados em estantes de fácil acesso
aos professores e às crianças. A dispersão do acervo dificulta a troca e o controle.
Como fazer chegar o livro até as crianças se pais e professores têm dificuldades
de toda ordem para obtê-lo?
Em segundo lugar, temos a questão da qualidade dessas produções cultu-
rais. Infelizmente, o que chega mais facilmente à criança é fruto dessa cultura de
massa, muitas vezes de qualidade duvidosa. Temos excelentes escritores e ilustra-
dores de livros infantojuvenis, nacionais e internacionais, mas o mercado também
produz o descartável que, por ser mais barato e acessível, é mais facilmente con-
sumível. Pais e professores têm poucas opções de escolha e, por outro lado, são
poucos os que têm condições de avaliar a qualidade das produções.
Não é simples, nem de consenso, definir critérios de qualidade para o livro
destinado aos pequenos. Porém, o primeiro passo para se pensar a qualidade do
1 Observando algumas
livrarias da zona sul do
Rio de Janeiro, sem com-
promisso de pesquisa, ape-
livro infantil é analisar forma e conteúdo simultaneamente, ou seja, a relação entre nas com o objetivo pessoal
o projeto gráfico como um todo (ilustração, tamanho de letra, cores, diagramação) de adquirir algumas obras
de autores brasileiros como:
e o texto. Mesmo que o livro seja de imagens, as ilustrações devem possibilitar Bartolomeu Campos de
Queirós, Sylvia Orthof, José
uma narrativa, devem se abrir a leituras. Não basta ser bonito, resistente, colorido Paulo Paes, entre outros, tive
dificuldades em achar alguns
e atraente; é preciso também ter um texto em que a literariedade e a textualidade títulos. As seções de litera-
sejam observadas e o tema seja abordado de forma interessante, trazendo o novo tura infantil dessas livrarias
tinham basicamente dois ti-
e o surpreendente. pos de livros: os cartonados,
cheios de ilustrações e pouco
texto, geralmente traduzidos,
Por outro lado, toda obra contém uma concepção de infância e de lingua- e alguns títulos de editoras
gem que determinam as relações entre forma e conteúdo do objeto livro. Este, que também atendem ao mer-
cado de adultos.

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enquanto portador ou suporte de um texto e de ilustrações, comporta uma grande


variedade de tipos, gêneros e estilos. Não é possível pensar a qualidade do livro
infantil sem observar o seu discurso, a sua intenção comunicativa. Os discursos,
sejam orais ou escritos, se dirigem e estão inseridos num contexto, ou seja, se
estruturam conforme os interlocutores, a finalidade, a intenção, o lugar, a ativi-
dade, a prática social etc. As perguntas iniciais a serem feitas diante de um livro
infantil seriam: para que criança o texto se dirige? Que concepção de infância está
subjacente ao texto? Qual é a finalidade do texto: informar, convencer, persuadir,
moralizar, divertir ou imaginar?
O que tem ocorrido com frequência é o uso do livro infantil, escrito por um
adulto que sabe o que é bom e certo para as crianças, para transmitir informa-
ções, ensinamentos, preceitos morais ou bom comportamento. Por fazerem uso
de uma linguagem simbólica e de personagens fictícios, nem sempre diferenciam
os gêneros e, sob o rótulo de literatura infantil, se ancoram livros de toda sorte:
informativos, didáticos, religiosos etc. É comum, por exemplo, histórias de per-
sonagens com forma de bichos serem usados para ensinar à criança a escovar os
dentes ou conhecer o nome de objetos e animais. Com isso, camufla-se a intenção
informativa com a roupagem do ficcional.
É um adulto quem escreve para a criança e desse lugar de fala vai estruturar
o seu discurso de acordo com a suas concepções e intenções, que incluem sua vi-
são de linguagem e de literatura infantil. Para avaliar ou selecionar os livros infan-
tis cabe, então, distinguir o livro infantil, num sentido amplo, com os diferentes
tipos de textos e o livro de literatura infantil, cuja finalidade é o trabalho com a
linguagem e a entrada no mundo ficcional – já que literatura é a arte da palavra.
Sendo assim, uma seleção que vise à qualidade supõe algumas indagações
como: que voz se dirige à criança? Como se dirige? Que assuntos e temas são
abordados, como são e com quais objetivos? Como o texto está estruturado? Como
texto, ilustração e projeto gráfico se complementam e ampliam as possibilidades
de leitura? Que diferenças podem ser feitas entre livro infantil e livro de literatura
infantil? Que livros e histórias podem nutrir a criança pela vida afora? Quais os
que se reduzem a meros produtos de consumo imediato?
Nas creches e pré-escolas essa seleção não é simples por vários motivos. A
começar pela compreensão dos próprios educadores sobre a função educativa des-
ses espaços que oscila permanentemente entre duas concepções de educação: se
deixar agir de acordo com Rousseau e deixar agir a natureza, que nunca se equivo-
ca e é fundamentalmente boa; ou ser voluntarista e forçar a natureza introduzindo
na evolução a mão esperta do homem e o princípio da autoridade (GRAMSCI,
1978, p. 128). Essas concepções colocam em oposição atenção e controle, brinca-
deira e ensino, fruição e aprendizagem, espontaneidade e intervenção pedagógica,
provocando tensões e definindo a relação adulto-criança e, consequentemente,
toda a organização temporal e espacial das creches e pré-escolas.
O livro infantil, que carrega uma história de origem moralizante, também
oscila entre os dois polos. Para os pequenos, ora é visto como mais um brinquedo
para ser olhado e manipulado – não importando muito o conteúdo dos diferentes

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tipos de textos e suas práticas sociais diferenciadas, nem a qualidade das suas
ilustrações –, ora se torna um pretexto para se ensinar conteúdos e valores.
A qualidade do livro para as crianças pequenas, especialmente para as que
não sabem ler, não parece ser relevante nem um critério de escolha dos educado-
res. Muitas creches e pré-escolas não têm opção, recebem sobras ou doações do
que não serve para as crianças maiores; com isso, desde que seja livro, aceita-se
qualquer coisa porque seu uso depende da oscilação do pêndulo, uma vez que cabe
ao adulto a mediação entre esse objeto e a criança.
E ainda há a interação da criança com o livro, ou melhor, a qualidade das
inúmeras inter-relações que podem ser estabelecidas entre a criança, o texto, as
ilustrações e o contexto. O livro, enquanto espaço de interlocução e intertextuali-
dade, também segue a mesma lógica pendular que perpassa a concepção de infân-
cia e educação: deixar a criança espontaneamente estabelecer essas inter-relações
ou intervir para ensiná-la alguma coisa? No primeiro caso, o livro tem que falar
por si mesmo para criança e, com isso, corre o risco de tornar-se mudo; no outro,
que tem sido o mais frequente pela própria imagem que o adulto tem sobre o livro,
ele tem sido um pretexto para se ensinar alguma coisa ou para fazer alguma ativi-
dade durante ou depois da leitura. A relação da criança com o livro – nos espaços
educativos, até mesmo nas creches e pré-escolas – tem se restringido, quase que
exclusivamente, à aprendizagem e ao trabalho. Livros informativos e literários re-
cebem tratamento didático semelhante, pois dificilmente a escola diversifica suas
práticas.
Os livros destinados às crianças pequenas geralmente têm pouco texto, mui-
tas vezes uma palavra ou uma pequena frase por página. As ilustrações seguem o
mesmo padrão de simplificação e descontextualização: elementos soltos com pou-
cos detalhes de traços, de cores e de perspectiva. Texto e ilustração se sobrepõem,
em vez de se completarem alargando os espaços de interpretação e diálogo. Os
temas se repetem trazendo objetos, bichos ou situações cotidianas de forma óbvia
e também pouco elaborada.
O objeto livro, destinado às crianças pequenas, já fala pouco e passa a falar
menos ainda quando fica restrito às repetições e às atividades de mero reconheci-
mento e identificação de elementos. Poucos são os textos que contam uma história
e poucas são as histórias que podem ser narradas, por professores ou crianças, a
partir das imagens e dos fragmentos de texto. Um grande número de livros infan-
tis parece não falar nem por si mesmo, nem pelas vozes do leitor narrador e do
leitor ouvinte porque a questão da falta de narrativa não se limita ao livro, assim
como a sua presença também não depende exclusivamente dele.
Especialmente nos espaços e tempos da infância, o corpo, os gestos, os ob-
jetos, as situações, as imagens, tudo isso pode virar um grande jogo da, na, com
e pela linguagem, porque ela atravessa todas as instâncias da vida. Nas brinca-
deiras e jogos infantis, os objetos falam e as palavras brincam no jogo poético das
cantigas e versos recitados. Mas é preciso abrir espaço para que as vozes possam
ser pronunciadas e ampliadas. Passar o turno para a criança não é apenas deixá-la
falar, mas também abandonar o “adultocentrismo” da relação educador-criança.

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Dar a voz, ouvir a voz, só é realmente possível quando a relação não se impõe ver-
ticalmente. Portanto, exige do adulto uma descentração de si mesmo para poder
deixar aflorar a criança que habita o seu interior e ver a criança que o cerca nas
suas especificidades e não nas incompletudes, pequenezes, fragilidades ou faltas.
E, por último, a questão que atravessa as anteriores: a ideia de infância e de
Literatura Infantil. As histórias de ambas se entrelaçam, deixando rastros, resquí-
cios de diferentes épocas sobrepostas, que se presentificam tanto no interior das
próprias obras quanto nas práticas que delas se apoderam. Literatura, infância e
educação são três conceitos distintos que se aproximam na ideia de formação, no
sentido estrito do termo – colocar na forma. A literatura para a infância ainda
não conseguiu dispensar totalmente a ideia que educar e ensinar, inerente à pró-
pria condição posta pelos adultos, à infância, como período de ser moldado. E
a educação fortemente associada à formalização de conteúdos, de conceitos, de
competências e de habilidades escolariza inadequadamente a literatura, desde as
creches e pré-escolas; ao ganhar exclusivamente a função educativa, a literatura
perde o seu estatuto de arte.
Os filtros que atravessam o livro até a recepção da criança são de todas as
ordens. Darnton traça um ciclo de vida dos livros impressos, permitindo a visibi-
lidade da ordem de grandeza desses filtros:
Mas, de um modo geral, os livros impressos passam aproximadamente pelo mesmo ciclo
de vida. Este pode ser descrito como um circuito de comunicação que vai do autor ao
editor (se não é o livreiro que assume esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao vende-
dor, e chega ao leitor. O leitor encerra o circuito porque ele influencia o autor tanto antes
quanto depois do ato de composição. Os próprios autores são leitores. Lendo e se asso-
ciando a outros leitores e escritores, eles formam noções de gênero e estilo, além de uma
ideia geral do empreendimento literário, que afetam seus textos, quer estejam escrevendo
sonetos shakespearianos ou instruções para montar um “kit” de rádio. Um escritor, em
seu texto, pode responder a críticas a seu trabalho anterior ou antecipar reações que serão
provocadas por esse texto. Ele se dirige a leitores implícitos e ouve a resposta de rese-
nhistas explícitos. Assim o circuito percorre um ciclo completo. Ele transmite mensagens
transformando-as durante o percurso, conforme passam do pensamento para o texto, para
a letra impressa e de novo para o pensamento. (1995, p. 112)

O autor de livros infantis, de literatura ou não, ao conceber a obra supõe um


leitor implícito, um gênero partilhado com outros autores e tem ideia do seu em-
preendimento. O editor, por sua vez, também o tem e só edita o que considera ade-
quado e conveniente. O tratamento gráfico materializa a obra dirigindo leitores e
leituras; a distribuição e divulgação têm um papel também importante, na medida
2 É comum em creches e
pré-escolas o professor
“traduzir” o texto para uma
em que faz outras avaliações e consequente seleção. E o livro infantil para chegar
linguagem que ele considera à criança sofre a mediação do adulto: vendedores, pais, professores e críticos, mais
mais adequada às crianças.
Se por um lado a ideia é apro- filtros, que se ampliam na direção que cada um impõe aos textos e suas práticas
ximar o texto escrito ao oral,
por outro, há uma redução da de leitura. O adulto lê para a criança emprestando sua voz ao texto, seus gestos,
experiência da criança com a
linguagem escrita, com sua entonações, intervenções e até mesmo as traduções2 alteram a obra, mostrando o
especificidade de estrutura
linguística, sintaxe, vocabu-
que e como a criança dele ler. Portanto, a tutela e a vigilância se fazem presentes
lário etc. Uma simplificação em todo ciclo de vida do impresso, especialmente na produção voltada para a uma
que reduz a interação da
criança como leitor ouvinte. infância muitas vezes entendida como um tempo da não palavra.

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Narrar é preciso, brincar também


Qual de nós nunca se deixou envolver por uma boa história? Certamente
poucos, porque ouvir e contar histórias faz parte do nosso estar no mundo. A nar-
rativa é a possibilidade que temos de intercambiar experiências, de nos conhecer-
mos e de nos reconhecermos ou nos estranharmos no outro. Ela nos faz perceber
a nossa humanidade sócio-histórica, concilia tempos e espaços distintos, organiza
os fragmentos das histórias vividas e/ou contadas:
Ao reconhecer a diferença no “outro”, recuperamos a dignidade de nos reconhecermos
nos nossos limites, nas nossas faltas, na nossa incompletude permanente, enfim, em tudo
isso que é essencial e verdadeiramente humano e, ao mesmo tempo, inefável. (PEREIRA;
SOUZA, 1998, p. 39)

Embora Walter Benjamim (1992) afirme que a arte de narrar esteja em ex-
tinção, porque cada vez temos menos tempo para esse intercâmbio de experi-
ências e até mesmo para viver a experiência, pela vida que corre em sucessivas
vivências sem deixar marcas, buscando na memória, certamente encontraremos
histórias construídas ou ouvidas em diferentes momentos, com vozes polifônicas,
justapostas, sobrepostas e até impostas. O próprio pensar a existência, nossa his-
tória de vida, não seria uma soma de narrativas que fazemos de nós mesmos e/ou
que recebemos dos outros? Usando as palavras de Larrosa:
É possível que não sejamos mais que uma imperiosa necessidade de palavras, pronunciadas
ou escritas, ouvidas ou lidas, para cauterizar a ferida. Cada um tem a sua lista [...]. E cada um
dispõe, também, de uma série de tramas nas quais as entrelaça de um modo mais ou menos
coerente. E cada um tenta dar um sentido a si mesmo, construindo-se como um ser de pala-
vras a partir de palavras e dos vínculos narrativos que recebeu. (1999, p. 22-23)

Sendo seres de palavras, constituídos na e pela linguagem a partir dos vín-


culos narrativos que recebemos ou que recolhemos da experiência, não podemos
prescindir das narrativas. Ouvir e contar histórias que nos aconteceram e que
aconteceram com o outro, reais ou imaginárias, vão formando a nossa subjetivi-
dade. Mesmo parcas ou fragmentadas, são elas que dão forma e conteúdo à nossa
história, são elas que nos vão fazendo ser o que somos.
E as nossas primeiras narrativas acontecem na infância. Desde o gesto in-
dicador de um desejo que é interpretado pelo outro, tornando-se palavra, às brin-
cadeiras e jogos simbólicos e às falas egocêntricas que acompanham as ações,
chegando às histórias mais organizadas ouvidas e construídas no coletivo. Tudo
isso se soma e se inter-relaciona às leituras de mundo, ao olhar de criança que,
rompendo a ideia de in-fans (aquele que não fala), percebe a linguagem das coisas,
dando voz a si mesmo a partir do significado que apreende do que vê, ouve e sente
do mundo material que o cerca:
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de
minha mãe –, o quintal amplo em que achava, tudo isto foi o meu primeiro mundo. Nele
engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se
dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo
de minhas primeiras leituras. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em
cuja percepção me experimentava e, quanto mais fazia, mais aumentava a capacidade de
perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu
ia aprendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e
com meus pais. (FREIRE, 1992, p. 12)
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Mas se as coisas que habitaram a nossa infância têm um discurso que se


atualiza na narrativa, o que poderíamos dizer de todo universo infantil dos jogos
e das histórias que são partilhados? Eles também trazem a marca de uma lin-
guagem pedagógica que, além da função utilitária da própria narrativa, ensina a
imaginar.
Lembro-me dos momentos antes de dormir em que ouvia histórias contadas
por minha babá ou por minha mãe. Histórias conhecidas, parte do repertório dos
contos maravilhosos como Branca de Neve, A Bela e a Fera, Cinderela, Bela
Adormecida, O Lobo e os Sete Cabritinhos, João e Maria, Sapo Príncipe, entre
outras, e histórias pouco conhecidas, talvez inventadas pelas narradoras, como
a da menina que deixou o anel na beira do rio ou da princesa que andava pelas
nuvens, pelas estrelas com seus sete sapatinhos. Histórias que não me faziam dor-
mir, mas que, ao contrário, despertavam o meu imaginário, histórias que eu pedia,
como toda criança, para serem repetidas, mas repetidas exatamente do mesmo
jeito que eu as ouvira pela primeira vez. A essas histórias se somavam às longas
narrativas do meu avô paterno e do meu pai, contadores de histórias singulares,
capazes de transformar o corriqueiro no incomum, pela graça, pela tonalidade da
voz, pelos gestos expressivos, misturando realidade e fantasia, me fazia rir do que
não seria risível se fosse contado por outros. Minha avó materna também gostava
de contar as histórias da família, dos parentes da Ilha da Madeira, da sua vida de
menina no Rio de Janeiro do início do século, mostrava fotos, cartões-postais,
descrevia o corso do carnaval, dançava para nos mostrar como faziam. Não havia
diferença para a minha imaginação se o que eu ouvia tinha de fato ocorrido ou
não, eu tanto andava com a vovó no bonde até o Teatro Municipal, como trocava
o sapatinho na casa da lua, ou sentia medo do homem do saco que tinha pegado o
anel da menina na beira do rio.
Cada um daqueles narradores imprimiu a sua marca no fato narrado, me
dando a oportunidade de continuar as histórias. Por isso, nesse caso, o compro-
misso com a verdade ou com o real não era nem é relevante. O que marcou foi o
que eles traziam à tona e como as palavras, os gestos, os olhares, o tom de voz,
todos esses elementos estéticos organizavam os textos me acolhendo e me intro-
duzindo ao mundo do imaginário, da linguagem formadora e transformadora.
A narrativa é uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir
o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a
coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a
marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1993. p. 205)

Às narrativas orais, posteriormente, se somaram os textos escritos, espe-


cialmente os contos de Grimm e fábulas, traduzidos por Monteiro Lobato: O Saci,
Reinações de Narizinho, Alice no País das Maravilhas e tantas outras histórias
que ampliavam o meu imaginário e davam elementos para novas brincadeiras.
Pois, mais velha, organizava teatro com os amigos e com os primos, a partir da-
quelas histórias que continuaram (e continuam) me encantando por muito tempo.
Lembro-me também de professoras que liam histórias, dos livros didáticos que
eram antologias de contos e poemas, dos recitais de poesias ao som da canção dos
tamanquinhos e da andorinha que passou a vida à toa, à toa...

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Ao longo da minha infância, também estiveram presentes inúmeras brinca-


deiras acompanhadas de músicas, versos, adivinhas como, por exemplo: as canti-
gas de roda; pimenta, pimentinha, pimentão; batatinha frita 1, 2, 3; eu sou pobre,
pobre, pobre; passaraio; mãe da rua, papai Ferreira; pula corda e tantas outras.
Além das narrativas, as palavras me eram apresentadas de forma incomum, entre
rimas e nonsense, juntavam-se aos ritmos das brincadeiras, dando o tom e fazen-
do rir. Os versos e as canções eram repetidos muitas vezes e como o corpo e a
boca estavam ocupados, a comunicação entre nós era feita pelo olhar e marcada
pela voz, ora alta, ora baixa, ora dura, ora doce. Era o olho que ajustava os passos,
os toques e os gestos. As palavras brincavam conosco dando graça e embalando
as brincadeiras. E o jogo estava tanto na sintonia entre vozes e movimentos quanto
na falta dela, era esse conjunto que possibilitava o desfrutar da companhia do ou-
tro, o encontro dos pares, a convivência e até mesmo a aceitação das diferenças.
Esses vínculos narrativos que recebemos desde a infância são marcos que
nos vão fazendo ser o que somos. As brincadeiras infantis, em que os significados
dos objetos e das ações se desloca dos significados aos quais estão habitualmente
vinculados, continuam presentes no jogo poético em que as palavras ganham au-
tonomia sobre os seus significados. Como afirma Vygotsky:
Na idade pré-escolar ocorre, pela primeira vez, uma divergência entre o campo do signifi-
cado e da visão. No brinquedo o pensamento está separado dos objetos e a ação surge das
ideias e não das coisas: um pedaço de madeira torna-se um boneco e um cabo de vassoura
torna-se um cavalo. A ação regida por regras começa a ser determinada pelas ideias e não
pelos objetos. Isso representa uma tamanha inversão da relação da criança com a situação
concreta, real e imediata, que é difícil subestimar seu pleno significado. (1991, p. 111)

O significado que essa inversão da relação da criança com a situação con-


creta, atribuindo novos significados aos objetos, modificando a estrutura corri-
queira dos mesmos, não apenas pode ser subestimado como também não pode ser
descuidado.
Vygotsky (1991, p. 126) considera as brincadeiras do faz de conta como um
dos grandes contribuidores para o desenvolvimento da linguagem escrita. Usando
suas palavras: “a representação simbólica no brinquedo é uma forma particular de
linguagem, num estágio precoce, atividade essa que leva, diretamente, à lingua-
gem escrita”. Com certeza, toda discussão sobre alfabetização tem subestimado
essa relação que se completa com o desenho infantil, quando a criança percebe
que se pode desenhar além das coisas a fala. O autor, já nos anos 30, afirmava que
o melhor método para o ensino da leitura e da escrita seria a descoberta dessas
habilidades durante as situações de brinquedo, em que as letras pudessem se tor-
nar elementos da vida da criança da mesma maneira que a fala: desenhar e brincar
deveriam ser estágios preparatórios ao desenvolvimento da linguagem escrita das
crianças e enfatiza que se deveria ensinar à criança a linguagem escrita e não
apenas a escrita das letras (VYGOTSKY, 1991, p. 134).
Muitos espaços de Educação Infantil, principalmente os que estão preo-
cupados com a função preparatória desse nível de ensino, desconhecem ou des-
consideram a afirmativa de Vygotsky e tratam de abreviar o tempo do brincar e
do desenhar para inserir as crianças, o mais rapidamente possível, à formalidade

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e sistematização do ensino da língua escrita. Paradoxalmente, o que entendem


como preparatório é justamente o que não prepara.
Mas essa relação do brincar com a leitura e a escrita, a meu ver, não se limi-
ta ao processo de alfabetização. Ele se amplia se tomarmos nas mãos a discussão
que esse autor traz sobre a atividade criadora que, tendo como base a imaginação,
cuja origem está nos jogos simbólicos, torna-se inerente a todos os homens e se
manifesta em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criação artística,
científica e técnica:
O cérebro humano não se limita a conservar ou reproduzir as experiências passadas, é
também um órgão combinador, criador, capaz de reelaborar e criar, com elementos das
experiências passadas, novas normas e planejamentos [...]. É precisamente a atividade
criadora do homem que faz dele um ser projetado para o futuro, um ser que contribui ao
criar e que modifica seu presente. (VYGOTSKY, 1987, p. 9)

A imaginação, como base de toda atividade criadora, é um modo de operar


da mente humana, uma função vitalmente necessária e toda criação está na com-
binação do antigo com o novo. Ninguém cria do nada, há sempre uma relação da
imaginação com a realidade.
Em A imaginação e a arte na infância, Vygotsky dá quatro motivos para
não se fazer essa cisão. Primeiro porque a imaginação se compõe de elementos
tomados da realidade e extraídos da experiência anterior do homem. No jogo in-
fantil, a criança não se limita a repetir a realidade, mas a reelabora criativamente.
“A atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza
de experiências acumuladas pelo homem porque é essa experiência o material com
que se constrói a fantasia” (VYGOTSKY, 1987, p. 17). Segundo, porque a experi-
ência pode também se apoiar na imaginação. Podemos imaginar o que não vimos,
conhecer baseando-se em relatos, descrições, imagens alheias que não experimen-
tamos diretamente. Quando ouvimos uma história, somos capazes de imaginar os
ambientes, a paisagem, os personagens etc. A narrativa, somada à vivência de cada
um, é suficiente para a imaginação funcionar. A imaginação nutre-se também das
palavras e das imagens. Terceiro, porque a imaginação vincula-se reciprocamente à
emoção, faz parte da realidade do sujeito. Os sentimentos influem na imaginação e
ela nos sentimentos. Todos os sentimentos e todas as emoções do homem tendem a
manifestar-se em determinadas imagens ou expressões internas ou externas. É por
isso que o homem pode transformar um sentimento em imagem e se emocionar a
partir de uma imagem. Além disso, as emoções suscitadas a partir da fantasia são
reais para quem as sente. Quarto, porque a fantasia pode representar algo inteira-
mente novo, não existente na experiência do homem nem semelhante a nenhum
objeto real; mas essa imagem convertida em objeto, começa a influir na realidade.
Vygotsky ainda acrescenta que a função criativa da imaginação, que per-
tence a todos os homens, é essencial tanto para o nascimento de uma obra de arte
como para as descobertas científicas. Portanto, não pode ser descuidada e releva-
da a um segundo plano em nenhum processo educativo. Alimentar o imaginário
é tão importante – ou mais – quanto desenvolver a capacidade cognitiva ou a
ampliação dos conhecimentos das crianças. Daí a importância da arte na educa-
ção, a presença das múltiplas linguagens e, especialmente, da linguagem literária,

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espaço artístico e expressivo da linguagem escrita. A importância de se continuar


pela vida afora revertendo a relação das coisas com seus significados corriqueiros,
reinventando e transformando o antigo no novo. A importância de poder falar e
ouvir, de se colocar e de se ver no lugar do outro, de socializar a experiência vivi-
da, rompendo com a finitude do presente pela continuidade dada pelo ouvinte. A
importância de ouvir a linguagem das coisas, de se deixar afetar pelo que acontece
ao redor, de deixar fluir a sensibilidade, o encantamento e a afetividade, de poder
percorrer os inúmeros espaços por onde circulam o real e o imaginário.
Como afirma Walter Benjamin (1993), o “homem de hoje não cultiva o que
não pode ser abreviado” e também não cultiva o que não tem uma utilidade prá-
tica, o que foge da lógica da razão instrumental. O mundo mágico, repleto de
despropósitos, onde habita a imaginação, não pode ser cultivado porque rouba
o tempo útil do fazer e do ter. “O tédio, ponto mais alto da distensão psíquica, o
pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”, é visto como perda de tempo.
“Seus ninhos, as atividades intimamente associadas ao tédio [como a narrativa], já
se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desa-
parece o dom de ouvir e desaparece a comunidade de ouvintes” (p. 204). Ouvintes
do outro, das coisas e de nós mesmos...
Abrevia-se também o tempo da infância, o tempo que se permite o “eu era”
e “era uma vez”.

João e Maria
Chico Buarque

Agora eu era herói


E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você
Além das outras três
[...]
E você era princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país...

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Contos de fadas: de mãos dadas com a


narrativa
A experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorreram
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos
se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos
(BENJAMIN, 1993, p. 198).
Os contos de fadas, também chamados de contos maravilhosos ou fabulísti-
cos, foram as primeiras narrativas escritas destinadas à infância. Em 1697, Char-
les Perrault, utilizando as antigas narrativas folclóricas, publica na França o livro
Histoire ou contes du temps passe avec de moralités, com uma explícita intenção:
incutir nos pequenos leitores princípios morais (PERES, 1997)3.
A literatura para crianças aparece não como lazer ou função estética, mas como suporte
e/ou instrumento de apoio para a transmissão de princípios e conformação ideológica que
possibilite ao adulto a manipulação do futuro, ao dirigir e condicionar pela educação as
crianças do presente. (YUNES, 1984, p. 124)

Essa marca moralizante de origem tem como fundamento a concepção de


infância do século XVII. A infância naquela época, segundo Ariès (1981), passou
a ser vista de maneira diferente do que ocorria na Idade Média. Inicia-se uma
preocupação com o desenvolvimento psicológico e moral da criança, que deixou
de ser um “macaquinho” a ser paparicado e a fazer gracinhas – que logo seria
inserido à vida adulta – para ser alguém “puro” e inocente, imperfeito e irracional
que precisa ser educado em um lugar especial (quando surgem as escolas) para se
resguardar do mal que a sociedade pode lhe causar e se instruir ou iluminar4. Para
sair das trevas da ignorância e da irracionalidade.
É para essa criança que é inventada a literatura infantil: uma criança considerada inocen-
te, pura (assexuada?), ingênua, frágil, débil, dependente, irracional, inferior, imperfeita.
Criança que precisa ser moldada pelos mais velhos, preparada “adequadamente” para a
vida. (PERES, 1997, p. 34)

O reflexo dessa concepção no texto aparece na forma como a narrativa é


conduzida: é a voz de um adulto, que sabe e conhece, que passa uma mensagem
para um “menor” que recebe, compreende e copia (YUNES, 1984).
Mas o conto de fadas, mesmo com esse cunho moralizante, traz um ingre-
diente fundamental que o distingue de outros textos destinados à criança: a cum-
plicidade da natureza com o homem e a sua libertação do pesadelo mítico. Usando
3 Hans Christian Andersen,
em 1822, na Dinamarca,
mais tarde, os irmãos Jacob e as palavras de Benjamin:
Wilhelm Grimm, em 1823, na
Alemanha, e também reco- Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças porque foi o primeiro da humanida-
lheram histórias de tradição
oral, transmitidas de geração
de, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua
em geração, e organizaram sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando
livros destinados ao público ele era difícil de obter, e oferecer a sua ajuda, em caso de emergência. Era a emergência
infantil com o mesmo propó-
sito moralizante. provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela
humanidade para libertar-se do pesadelo mítico [...]. O conto de fadas ensinou há muitos
séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é
enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância [...]. O feitiço libertador do
conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua
4 É interessante observar
que, na sua origem, a pa-
lavra aluno significa sem luz.
cumplicidade com o homem liberado. O adulto só percebe essa cumplicidade ocasional-
mente, isto é, quando está feliz; para a criança, ela aparece pela primeira vez no conto de
fadas e provoca nela uma sensação de felicidade. (1992, p. 215)
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E é justamente essa possibilidade de o ouvinte/leitor dos contos de fadas


vencer o mundo místico com astúcia e coragem que dá à moralização o status de
conselho. A centralidade dessas narrativas na mensagem traz as dimensões éti-
ca e estética da língua, provocando o imaginário à continuidade da história pela
ambiguidade que se abre não apenas nos fatos narrados, mas também aos inter-
locutores. Nos contos de fadas a voz autoritária do adulto sobre a criança se dilui
nessa ambiguidade que se instaura, pois vencer o mito é também a libertação do
narrador cúmplice e partícipe de uma infância da própria humanidade.
Os estudiosos desse estilo observaram que eles têm sempre a mesma estru-
tura. Vladmir Propp5 afirma que “nessa estrutura se repete a estrutura do rito”.
Ou seja, o autor afirma que essas histórias seguem etapas que repetem as do rito
pré-histórico de iniciação dos meninos à vida adulta. Esse rito era quase sempre
assim: quando os meninos atingiam uma certa idade eram separados da família e
levados ao bosque, onde o chefe da tribo (geralmente, vestido de forma assustado-
ra e com máscaras) os submetia a provas difíceis, contava histórias da tribo e lhes
dava armas e amuletos. Finalmente, eles voltavam para suas casas, às vezes com
outros nomes, e estavam maduros para o casamento.
Propp deduz então que os contos maravilhosos passaram a existir quando
o rito antigo desapareceu, deixando de si apenas a sua narrativa. Os narradores,
no curso dos milênios, foram transformando o rito pelas próprias exigências da
narrativa. Aos poucos, vários elementos formam sendo acrescentados, como as
narrativas de aventuras, as lendas e as anedotas; e, ao lado dos personagens mági-
cos, juntaram-se personagens do cotidiano (o esperto, o bobo).
A teoria de Propp possui especial fascínio porque institui uma ligação profunda a nível do
“inconsciente coletivo”, dirão alguns, entre o menino pré-histórico que viveu os ritos de
iniciação e o menino histórico que, justamente pela fábula, vive sua primeira iniciação no
mundo do humano. (RODARI, 1987, p. 65)

Analisando a estrutura do conto popular, Propp formulou três princípios:


Os elementos constantes dos contos mágicos são as funções dos personagens, indepen-
dentemente do executor e do modo de execução;
O número de funções presentes nos contos mágicos é limitado;
A sucessão das funções é sempre idêntica, embora nem todas as histórias apresentem
todas as funções. (RODARI, 1987, p. 66)

Essas funções podem ser sintetizadas mais ou menos assim: o herói da


história geralmente sofre alguma proibição que ele transgride, é punido e tem
que passar por algumas provas. Reage e é fortalecido por meios ou elementos
mágicos, ele luta contra o antagonista, vence, se livra da culpa inicial, retorna
à sua casa, às vezes incógnito, o antagonista é punido e o herói se casa. Basta
lembrarmos das histórias de Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida, A
Bela e a Fera, Sapo Príncipe e tantas outras para ver como essa estrutura se
encaixa perfeitamente.
Esse encaixe tem sido a fórmula utilizada por escritores e roteiristas de um
grande número de produções culturais infantojuvenis. Os exemplos de livros, fil-
mes, desenhos animados, programas de televisão e peças de teatro, que fazem
uso dessas funções do herói, são infindáveis porque essa estrutura arcaica atua na 5 Estudioso russo que estu-
dou os contos populares.
Veja Rodari (1982).

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identificação de todos os meninos aos ritos de iniciação à própria vida, tornando-


-se a fórmula mágica para uma boa história.
Paulino (1997, p. 4), na busca de definir os cânones literários, especialmente
no que tange à narrativa, acredita que “eles se dividem em duas modalidades: a
da construção, que abrangeria a qualidade do trabalho de linguagem, e a da sig-
nificação que abrangeria os componentes de uma boa história, isto é, uma história
instigante, capaz de ampliar o mundo vivido e imaginado”. Essa perspectiva, mais
uma vez, permite-nos considerar os contos de fadas como textos literários, pois,
se em muitas versões a construção da linguagem é pouco trabalhada, a riqueza da
significação supera a falta de refinamento.
Diante dessas justificativas, coloco-me favorável à presença dos contos de
fadas na vida da criança desde os seus primeiros anos. Essas histórias, sejam elas
contadas oralmente, dramatizadas por personagens ou bonecos, transformadas em
imagens audiovisuais ou lidas em voz alta por um adulto, além do encantamento e
da possibilidade da narrativa se fazer presente, alimentam o imaginário, possibi-
litam identificações e introduzem a criança ao mundo humano pela linguagem. O
fato de a criança pequena ainda não saber falar não significa que não seja capaz de
ir, aos poucos, ampliando os significados de cada texto enunciado e internalizan-
do a função expressiva e poética do texto literário, que foge aos usos pragmáticos
e funcionais. Mas, diante da falta de cultivo do que não pode ser abreviado, tenho
me perguntado qual tem sido o lugar dessas narrativas na infância de hoje: pais
e/ou outros familiares contam essas histórias para as crianças? Como, quando e
onde contam? Esses textos frequentam as creches e pré-escolas? Caso sim, de que
forma estão presentes? O ambiente é convidativo para permitir a audiência ou a
história é imposta como mais uma atividade escolar disciplinadora? O que se faz
com esses textos, reforça-se a voz moralizante ou a libertadora? E os desdobra-
mentos pedagógicos, os pretextos de trabalho, por onde caminham?
Além dessas questões, é importante ressaltar que o mercado oferece uma
infinidade de versões6, cabendo ao adulto que vai introduzi-las às crianças tanto a
seleção dos textos quanto a voz do narrador. Existem textos mais bem estruturados
do que outros e existem narradores mais conselheiros do que outros que buscam
6 Entre elas considero al-
gumas primorosas como, uma ambiência capaz de promover a coletividade de ouvintes. Também temos o
por exemplo: os três volumes
– Cinderela e outros contos
narrador que traduz o texto para os pequenos, tirando todas as marcas do texto
de Grimm, Branca de Neve literário escrito, com “medo” de eles não compreenderem a estrutura linguística
e outros contos de Grimm
e Branca de Neve e outros dos textos escritos ou se perderem no vocabulário ampliado. Há ainda aqueles que
contos, traduzidos por Ana
Maria Machado e editados consideram algumas versões “pesadas” e por isso, açucaram as provas do herói e
pela Editora Nova Fronteira;
o belo trabalho de organi- as punições do vilão, restringindo o enfrentamento do mundo místico e o poder
zação e reescrita dos contos
maravilhosos italianos feito
do feitiço libertador.
por Italo Calvino, intitulado
Fábulas italianas e editado Tudo isso me traz mais um ponto de reflexão a ser compartilhado nesse
pela Companhia das Letras; e
a tradução de Ferreira Gullar texto. Será que estamos dando às crianças de hoje a oportunidade de viverem
dos contos árabes, As mil e
uma noites, editado pela Edi-
experiências semelhantes à de Jean-Paul Sartre cuja leitura materna em voz alta o
tora Revan. conduziria aos horizontes da literatura?

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Em roda, leia um conto de tradição oral para a turma (Sugestão: Nariz de prata, A terra onde
não se morre nunca ou Joãozinho sem medo, encontradas no livro Fábulas Italianas de Ítalo Calvino
(Cia. das Letras, 1992).
Após a leitura, pergunte quem lembra de histórias que ouviram na infância e que fazem parte
das tradições locais. Abra espaço para a narração de histórias, e depois de quatro ou cinco histórias
serem contadas, separe a turma em duplas.
O objetivo é formar um livro de histórias da turma:
cada dupla será responsável pela escrita, digitação e ilustração de uma história;
o primeiro passo é incentivar as duplas a escreverem as histórias;
uma vez escritas, é importante fazer uma revisão do texto;
depois digitar as histórias;
observar vários livros e suas partes – professor e alunos vão descobrindo e caracterizando:
capa, folha de rosto, contracapa, orelha etc.;
observar o projeto gráfico como um todo – relação mancha de texto e ilustração – pensar em
possibilidades de organização do livro;
cada dupla escolhe uma forma de ilustrar a sua história;
fazer uma pequena comissão para finalizar o trabalho.
Cada dupla pensa numa forma de apresentar a história que escreveu para a turma: narração,
narração com recursos (fantasias, adereços, som), dramatização, utilização de fantoches, bonecos de
vara, teatro de sombra, organização dos ensaios etc.
Feche o trabalho com a apresentação das histórias e lançamento do livro.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: magia e técnica, arte
e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
PAULINO, Graça (Org.). O Jogo do Livro Infantil. Belo Horizonte: Dimensão, 1997.
PAIVA, Aparecida; EVANGELISTA, Aracy; PAULINO, Graça; VERSIANI, Maria Zélia (Orgs.). No
Fim do Século: a diversidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Sugiro a leitura do texto O narrador, encontrado no livro Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e
política, autoria de Walter Benjamin, e dos livros O jogo do livro infantil, de Graça Paulino e No fim
do século: a diversidade, Aparecida Paiva, Aracy Evangelista e Maria Zélia Versiani.

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Literatura Infantil:
da produção à recepção
Patrícia Corsino
Por que motivo as crianças, de modo geral, são
poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? Será a
poesia um estado de infância relacionado com a
necessidade de jogo, a ausência de conhecimento
livresco, a despreocupação com os mandamentos
práticos do viver, estado de pureza da mente em
suma? [...] Mas se o adulto, na maioria dos casos,
perde essa comunhão com a poesia, não estará na
escola, mais do que em qualquer outra instituição
social, o elemento corrosivo do instinto poético da
infância, que vai fenecendo à proporção que o estudo
sistemático se desenvolve, até desaparecer no homem
feito e preparado supostamente para a vida? – Receio
que sim. A escola enche o menino de matemática, de
geografia, da linguagem. A escola não repara em seu
ser poético, não o entende em sua capacidade de viver
poeticamente o conhecimento do mundo.

Carlos Drummond de Andrade

D
rummond pergunta por que as crianças com o tempo vão deixando de ser poetas, e ele mesmo
responde responsabilizando a escola, o ensino sistemático, por essa corrosão do ser poético.
Desde a Educação Infantil, a preocupação com a sistematização dos conhecimentos vai abre-
viando o tempo do jogo, da brincadeira, da experimentação. Há uma pressa por introduzir as crianças
no mundo produtivo e ordenado pelos adultos. A disciplina imposta às crianças vai desde a contenção
dos movimentos às formas de agir e de pensar. Muitos recursos são usados na escola para disciplinar
as crianças: filas de espera e de deslocamentos, exercícios repetitivos e também músicas e histórias.
Há séculos, o livro destinado ao público infantil carrega a ideia de passar informações e preceitos
morais e/ou religiosos. O interesse que as crianças têm pelas histórias faz com que elas sejam pretex-
tos para se ensinar desde bons comportamentos até hábitos de saúde e higiene. O livro infantil, assim
como o destinado aos adultos, abarca uma infinidade de gêneros e, por isso mesmo, exerce várias
funções e têm diferentes finalidades.
Este texto tem como objetivo discutir o livro de literatura infantil, suas características e seu
“ciclo de vida” da produção à recepção das crianças.

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Literatura Infantil: da produção à recepção

Literatura Infantil: que gênero é esse?


Segundo Yunes (1984, p. 124) é só a partir do século XX, depois de certas
conquistas das pesquisas de cunho psicanalítico e pedagógico, voltadas para a
criança, que a linguagem dos textos infantis se desloca da mensagem para poder
prevalecer a função pedagógica. A literatura infantil passa a ser então confundida
com a pedagogia, isto é, a função conativa ou referencial1 da linguagem se sobre-
põe à função poética. Dessa forma, a informação passa a ser predominante. Espe-
cialmente para as crianças pequenas, a essa função informativa se soma a ideia de
que, por falarem ou não palavras-frases, deve-se repetir a fala infantil como ela se
manifesta na superfície. Assim, a maioria dos livros tem como objetivo ampliar
o vocabulário e informar diferentes conhecimentos, tais como: nomes de bichos,
de objetos, de cores, de formas, ações e situações cotidianas, hábitos de higiene
e também as letras e a decodificação da língua escrita. É comum ver livros com
palavras e/ou frases soltas, destituídas de coerência e de coesão, portanto sem a
estrutura da narrativa com o seu encadeamento de fatos e surpresas. Esses textos,
por sua vez, também não podem ser considerados poemas, pois embora muitas ve-
zes apresentem rimas e repetições, o ritmo, o ludismo e a estrutura característicos
do poema também não estão garantidos. Por isso, grande parte dessas produções
não pode ser classificada como literatura, e sim como livro de cunho didático
ou informativo com um tratamento editorial adequado e direcionado ao público
infantil.
Conforme Yunes (1984, p. 126):
[...] a literatura amplia a margem de significação da língua pela renovação da aptidão
cognitiva já fora dos rígidos parâmetros da comunicação. A apropriação da realidade pas-
sa por uma óptica específica, não necessariamente comprometida com o consenso; nem
determinada pela decodificação imediata. Esse estranhamento aciona a percepção do des-
tinatário/leitor, já que expectativas do discurso cotidiano são contrariadas, desvelando
a originalidade dos objetos. Por isso – repete-se à exaustão – a poesia não referencia o
mundo, mas o recria, a função poética é a marca da autorreferencialidade da linguagem,
não enquanto código (metalinguagem), mas enquanto mensagem.

Quando há o predomínio da informação nos textos infantis, fecha-se o sig-


nificado na unicidade do imediatamente compreensível que, ao vir acompanhado
de explicações, se coloca na direção oposta à do texto literário.
A título de ilustração, trago dois textos: um dirigido às crianças de pouca
idade e o outro às que estão se alfabetizando.
O primeiro, Meus Bichos (que faz parte da Coleção Ver e Ouvir, da Editora
1 Segundo Jackobson (apud
Kaufman e Rodrigues,
1995), a função conativa (ape-
Melhoramentos), não apresenta o nome do autor na capa e, na contracapa, tem a
lativa) orienta-se para um des- seguinte apresentação:
tinatário e encontra sua mais
pura expressão gramatical no A Melhoramentos criou a série Ver e Ouvir pensando nas crianças a partir de um ano.
vocativo e no imperativo. Já
a função referencial (infor-
Para isso, as ilustrações são objetos, animais e situações do seu dia a dia, com textos
mativa) privilegia o contexto que permitem o estabelecimento de relações simples e bem-humoradas. Para garantir a
de referência ou o referente,
sendo uma função importante
durabilidade e um fácil manuseio da série, os volumes são apresentados com capa dura e
da linguagem, uma vez que cartão especial. Fazem parte da série: “Meus brinquedos”, “Meus bichos”, “Meu banho”,
todas as mensagens contêm “Muito e pouco”, “Diferenças” e “Sequência”.
unidades informativas.

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Literatura Infantil: da produção à recepção

O texto é organizado de maneira que cada parte da frase fique numa página,
logo abaixo da ilustração do bicho a que ela se refere:

Miau, miau, miau, diz o gatinho...


para o amigo passarinho.
Canta o galo bem contente...
pra galinha à sua frente.
Au, au, au, diz o cachorro...
e quém quém fala o patinho.
– Currupaco! Quase morro...
no aquário do peixinho!

No interior do livro, a escrita se cola às ilustrações de forma linear, há rimas,


onomatopeias e as reticências sugerem uma continuidade que se pretende realizar
na página seguinte, quando aparece um outro bicho para se fazer as relações sim-
ples e bem-humoradas. Mas quais relações podem ser feitas pela criança quando se
põe um gato dizendo “miau” para um amigo passarinho, um galo cantando para a
galinha, um cachorro dizendo “au, au” com um pato falando “quém” e um papagaio
num poleiro dizendo que quase morre no aquário do peixinho? Fica evidente, ainda
mais quando se observa os outros títulos da coleção, que o objetivo do livro é a no-
meação dos bichos e o reconhecimento de suas onomatopeias e que as relações são
secundárias. Um gato ao olhar um passarinho, uma presa em potencial, diria algo
relativo à alimentação ou à estratégia de caça, mas o texto apresenta a palavra amigo
quebrando essa ideia, provavelmente com o objetivo de amenizar a relação natural
predador-presa.
O segundo, O Sapo e o Pato, de autoria de Sonia Junqueira e ilustrações de
Alcy, pertence à Série Estrelinha, da Editora Ática, classificando-se como Estre-
linha I. Também apresenta na contracapa uma explicação didática para o adulto
que vai intermediar o livro para a criança, justificando seus objetivos e dando
instruções até mesmo de como o livro deve ser lido:
Livro para a criança que está começando a aprender a ler.
As palavras são constituídas unicamente de sílabas simples: vogal e con-
soante e vogal.
As frases são simples, curtas e repetitivas, em ordem direta, para facilitar
a leitura.
O livro contém uma história com começo, meio e fim.
A criança deve ser estimulada a ler sozinha. O adulto apenas confirmará
seus acertos.
Aos poucos, a criança irá descobrindo que já pode ler sem o auxílio do
adulto.

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O texto do interior do livro segue o padrão de simplificação anunciado e é


também organizado com uma frase ou grupo de frases curtas, uma em cada linha,
por página:

O pato mora no lago.


O sapo mora no mato.
O pato vê o sapo.
O sapo vê o pato.
O sapo pula. Ele recita:
– Pé de pato dá é pezada!
Boca de sapo dá risada:
– Co-a-xa-xa-xa!
O pato fala:
– Sapo cara de papo!
O sapo fala:
– Pato cara de mato!
O pato nada, danado da vida.
O sapo pula, danado da vida.
O sapo muda de papo:
[...]

As explicações da contracapa dispensam comentários sobre os objetivos da


coleção. Esse livro, como muitos outros, é uma cartilha para ser lida pelo alfa-
betizando com um grande equívoco de concepção de texto e da própria ideia de
aprendizado da língua escrita. Sem elementos de coesão, sem progressão, com fo-
nemas que se repetem à exaustão, com um assunto óbvio para uma criança de seis/
sete anos, com ilustrações interessantes de traço, mas também presas ao texto,
fica bem marcada, no texto, a ideia de que o significado não é relevante e sim uma
leitura-decifração de um leitor iniciante que vai ganhando, aos poucos, autonomia
de leitura e compreendendo que nem tudo que se lê é para compreender.
Mas se Educação e Literatura estão em oposição nos seus discursos, isso
não significa que não se possa reverter a ordem desses discursos, especialmente
quando se pensa uma educação que não limite à informação e à conformação
e uma literatura infantil capaz de dar uma nova ordem às coisas, de divertir e
de brincar com as palavras e seus significados. A literatura infantil das últimas
décadas já reconhece esse lugar e muitos textos já se libertaram do predomínio da
informação. Já se ouve a voz de um narrador que fala do seu lugar de criança, que
abre o campo de significações e deixa lacunas para serem preenchidas pela criança

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Literatura Infantil: da produção à recepção

ouvinte/leitora. Também já se ouvem as vozes de uma educação transformadora


e crítica que quer educar para a humanização, para o sensível e o poético. São
vozes que urgem serem ouvidas. Vozes intercaladas, entrecortadas, interrompidas
e inacabadas, mas que desejam a reversão do discurso.
Essa possibilidade de reversão não seria possível se a própria concepção de
infância também não tivesse se alterado. Os estudos sobre a criança das diferentes
áreas (Antropologia, Sociologia, Psicologia, entre outras) têm dado uma outra vi-
sibilidade à infância. Embora a visibilidade contemporânea da infância seja para-
doxal e não linear, a criança hoje tem uma inserção social, é concebida como uma
categoria social autônoma (SARMENTO; PINTO, 1999), é compreendida na sua
especificidade como alguém que não apenas recebe o mundo, mas o transforma e
o recria, um sujeito com sua subjetividade, sua situação social e seus direitos.
Alguns textos já se dirigem a uma criança que produz cultura, que brinca e
que dá uma nova ordem às coisas – a criança desordeira de Benjamin (1992, p. 39):
Criança Desordeira. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta cap-
turada já é para ela princípio de uma coleção, e tudo que ela possui, em geral, constitui
para ela uma coleção única. Nela essa paixão mostra sua verdadeira face, o rigoroso olhar
índio que, nos antiquários, pesquisadores, bibliômanos, só continua ainda a arder turvado
e maníaco. Mal entra na vida, ela é caçador. Caça os espíritos cujo rastro fareja nas coisas;
entre espíritos e coisas ele gasta anos nos quais seu campo de visão permanece livre de
seres humanos. Para ela tudo se passa como em sonhos: ele não conhece nada de perma-
nente; tudo lhe acontece, pensa ela, vai-lhe de encontro, atropela-a. Seus anos de nômade
são horas na floresta do sonho. De lá ela arrasta a presa para casa, para limpá-la, fixá-la,
desenfeitiçá-la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de armas e zoológico, museu criminal
e cripta. “Arrumar” significaria aniquilar uma construção cheia de castanhas espinhosas
que são maçãs medievais, papéis de estanho que são um tesouro de prata, cubos de madei-
ras que são ataúdes, cactos que são totens e tostões de cobre que são escudos. No armário
de roupas da casa da mãe, na biblioteca do pai, ali a criança já a ajuda há muito tempo,
quando no próprio distrito ainda é sempre o anfitrião inconstante, aguerrido.

Sylvia Orthof é uma dessas autoras que soube levar para os seus textos o
olhar índio do menino caçador dos espíritos. Mesmo quando traz uma “mensa-
gem” ou um “conteúdo” quebra o discurso pedagógico, trazendo a surpresa e
revertendo o óbvio.

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Pomba Colomba
(ORTHOF, 1997)

Pomba Colomba estava arrumando a casa: varreu um canto, varreu outro


canto, espanou a poeira.
Aí, Pomba Colomba foi regar a roseira do quintal. Abriu a porta e achou
uma cesta.
De dentro da cesta saía um soluço triste. Era uma carta que chorava baixi-
nho:
– Ai, ai, ai!
Pomba Colomba tirou a carta da cesta, dizendo:
– Será que eu vou saber cuidar de uma carta abandonada?
A carta, de nervoso, chorou mais alto:
– Ai, ai, ai, ui, ui, ui!
Pomba Colomba embalou a carta e cantou uma cantiga pra ela. A carta
parou um pouco de chorar. Depois, voltou ao berreiro:
– Ai, ai, ai, ui, ui, ui, ai, ai, ai!
– O que aconteceu com você, carta chorona? – perguntou Pomba Colomba.
A carta respondeu:
– Sou uma carta de amor que quer chegar, mas não sabe o endereço.
– E o que posso fazer por você? – perguntou Pomba Colomba.
Pela primeira vez, a carta falou explicadinho:
– Eu sou uma carta de amor, eu quero chegar... ai, ai, ai!... Mas não sei o
endereço! Fui escrita por ele... que está apaixonado por ela... Ele escreveu,
assinou, mas não sabia o endereço. Me leva, me ajuda Pomba Colomba?
A pomba pensou, ficando de um pé só... Não adiantou.
A poma pensou virada de cabeça para baixo... Não adiantou..
A pomba agarrou a carta, abriu as asas e resolveu virar pomba-correio e
procurar a tal de “Meu Amor”.
A pomba voou, voou. Passou por um palácio todo cercado de goiabeira. No
jardim do palácio, tinha uma princesa:
– É ela a tal de “Meu Amor”? – perguntou a pomba.
– Não! Esta carta não tem nada a ver com goiabas ou princesas! – gemeu a
carta.
A pomba continuou a voar, a voar. Passou por uma pastora.
Passou por um bicho com cara de onça, rabo de onça, pata de onça. Só po-
dia ser onça... E era.
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– É ela! – berrou a carta.


A pomba perguntou assustada:
– Mas o “Meu Amor” da carta é uma onça?
– Morro de medo de onça! Vou largar você aqui mesmo! – disse a pomba.
[...]
– Credo se eu soubesse que a carta era para uma onçona dessas, cruz, eu
não tinha viajado! E pensar que perdi um dia inteiro por causa dessa carta
maluca! – disse a pomba.
E a carta acabou de novo na casa da pomba chorando. Chorou durante uma
semana inteirinha. [...]
Aí a pomba resolveu: pegou um selo, colou bem na cara da carta e falou:
– Vai pelo correio, sua chata!

As ilustrações de Sonia Maria de Souza, que acompanham o texto, são bem-


-humoradas e, com traços simples, desenham os movimentos dos personagens
com leveza e não dispensam os detalhes, que convidam o leitor para novas leitu-
ras. A casa da pomba tem murais, folhinha, retrato, um armário cheio de objetos;
os lugares por onde a pomba passa carregando a carta são vistos de cima, trazendo
a perspectiva da pomba; a forma com que vai retratando a onça, ora enorme e a
pomba pequena, ora lá em baixo lambendo os beiços, junta-se à dúvida da pomba
e acaba dando outros elementos para o desfecho da história.
Apesar da qualidade desse livro, na sua contracapa, além da listagem dos
títulos da Série Lagarta Pintada, da Editora Ática, tem a seguinte observação:
“Para crianças a partir de quatro anos. A indicação da faixa etária é mera sugestão
nossa. A maturidade de cada criança é que deve determinar a escolha dos livros
que lhe são adequados.” A literatura infantil, pelo olhar do editor, parece que pre-
cisa ser explicada. Determinar ou sugerir a faixa etária adequada para a recepção
do texto tornou-se quase uma obrigação. Mesmo um livro como o da Pomba Co-
lomba que, a meu ver, dispensa faixa-etária, não se livra da recomendação, uma
vez que faz parte de uma seleção de textos que a editora organiza numa série. Essa
“tutela” exercida por uma rede que faz parte do ciclo de vida do livro, mostra que
ainda são grandes os resquícios do didatismo que se impõem à literatura infantil
hoje: alguém sabe para quem e como deve ser feita a leitura. Essa restrição, mes-
mo à revelia de alguns autores, enquadra os textos em categorias, trancando-os,
em vez de abri-los como é característico de uma obra de arte.

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Linguagem literária e pertinência temática


Mesmo com todas as tutelas que o texto destinado às crianças acaba se
enredando, é preciso reverter essa ordem, à moda da criança desordeira, e buscar
na literatura infantil o seu espaço literário com as características anunciadas por
Zilberman:
O mundo representado pelo texto literário corresponde a uma imagem esquemática, con-
tendo inúmeros pontos de indeterminação. Personagens, objetos e espaços aparecem de
forma inacabada e exigem, para serem compreendidos e introjetados, que o leitor os com-
plete. A atividade de preenchimento desses pontos de indeterminação caracteriza a parti-
cipação do leitor. A ausência de uma orientação definida gera a assimetria entre o texto e
o leitor. O leitor é sempre chamado a participar da constituição do texto literário, e a cada
participação, em que ele contribui com sua imaginação e experiência, novas reações são
esperadas. (1999, p. 83)

Drummond (apud SOARES) se questiona sobre a existência de uma lite-


ratura destinada ou interessada à criança. Suas perguntas continuam instigantes
ainda hoje:
O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infan-
til? Pintura infantil? A partir de um ponto uma obra literária deixa de constituir alimento
para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro
para crianças, que não seja lido com interesse pelo homem feito? Qual o livro de viagens
ou aventuras, destinado a adultos, que não possa ser dado à criança, desde que vazado
em linguagem simples e isento de matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de
linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte,
estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à parte? Ou será a literatura
infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado – porque coisa primária, fabricada
na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância? (1999, p. 18)

Não há dúvida de que a boa literatura não tem idade, interessa a crianças,
adolescentes e adultos pela elaboração da linguagem e pelo tratamento dado ao
tema. Drummond tem razão ao afirmar que nem todos os temas interessam à
criança e nem toda linguagem é por ela compreensível. Mais do que a adequação
ou inadequação do tema, é o tratamento dado a ele que o torna pertinente ou não,
interessante ou não. A maneira complexa, dialógica, provocadora e aberta com
que o tema é tratado no texto, deixando os pontos de indeterminação para serem
preenchidos pelo leitor, é o que favorece ou não as aproximações. Uma criança
pode se afastar de um texto tanto pela complexidade quanto pelo excesso de sim-
plificação. Cabe ressaltar que não se trata da não pertinência de uma abordagem
de temas religiosos, políticos, morais ou informativos, mas sim da forma com que
estes são apresentados em detrimento de um trabalho literário provocativo, capaz
de instigar o conhecimento de outros mundos e de remeter às questões de diver-
sidade cultural. Num texto de literatura infantil, quanto mais polifônicos forem
o tratamento do tema, a complexidade do enredo, o desenvolvimento do conflito,
a construção dos personagens, a possibilidade de fruição estética e o distancia-
mento do senso comum, melhor pode ser considerada a obra literária (CORSINO;
ANDRADE, 2006).
A Literatura Infantil, como outras produções culturais para a infância, reflete
os paradoxos que envolvem a infância e que podem ser sintetizados nos binômios:
autonomia/tutela, liberdade/disciplina, brincadeira/trabalho, fruição/aprendizagem,

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entre outros. A criança vivencia problemas e dificuldades de toda ordem, é vítima da


pobreza, de agressões, assiste a programas de televisão sem a menor censura – mas
é receptora, muitas vezes, de temas açucarados ou pouco elaborados. Temas que su-
põem uma criança inocente e alheia do mundo que a cerca. É como se, por essa via,
se pudesse resguardar a inocência infantil. As crianças, como os adultos, precisam da
arte como vivência da alteridade, como um olhar do outro sobre o mundo que amplia
os ângulos de visão. Também necessita da arte como catarse, distensão, transfor-
mação, recriação e recreação. Além do mais, não podemos perder a poesia para não
correr o risco de perder a nossa dimensão humana. A arte, como linguagem, “reflete
e refrata a realidade” (Bakhtin, 1992) e é por isso que, ao revelar, transforma. A vida
não é linear, nem única, é polissêmica e plural, não pode ser simplificada nem se so-
brepor a si mesma. Se a arte imita a vida e vice-versa, não pode omitir o múltiplo.
A Literatura Infantil, ao deixar pontos de indeterminação a serem preenchi-
dos pelos leitores, se abre ao imaginário e entra na brincadeira infantil. Embora a
criança não brinque o tempo todo, é o jogo simbólico que dá visibilidade à infân-
cia e é justamente nesse jogo que a literatura acontece. Peres, citando Freud, traz
a relação entre a brincadeira infantil e a atividade literária:
Em seu clássico ensaio O criador literário e a fantasia, Freud associa a noção de jogo à
literatura, quando afirma que toda produção ficcional nada mais é que a “continuação e o
substituto” de um jogo bastante específico: a brincadeira infantil de antigamente. Os pri-
meiros traços da atividade literária se encontrariam, pois, na infância: “cada criança que
brinca se comporta como o poeta, na medida em que cria um mundo próprio, ou melhor,
reorganiza os elementos de seu mundo segundo uma ordem nova.” (1998, p. 36)

A literatura para as crianças é uma grande brincadeira simbólica. Por que


então se cria uma literatura infantil que não entra nesse jogo? Por que a informa-
ção impera nos espaços escolares, abreviando a infância até mesmo nos livros
ditos literários?

Prosa e poesia
Além dos textos narrativos, organizados em frases e parágrafos, que têm a
sua origem nas histórias de tradição oral, os textos poéticos também habitam o
imaginário da infância. O contato das crianças com os textos poéticos tem iní-
cio nas primeiras cantigas de ninar que embalaram os seus sonos. A partir daí,
brincos, parlendas, versos e quadrinhas que acompanham as mais diversas brin-
cadeiras e jogos infantis, desafios, adivinhas, cantigas de roda etc., como numa
grande ciranda vão compondo e partilhando o repertório de textos, tanto indi-
vidual quanto coletivo. Se na prosa a sequência da narrativa exige elementos de
coerência e de coesão explicitados na superfície do texto, na poesia o ritmo dado
pelo significante, com rimas, aliterações etc., faz com que o jogo com as palavras
incitem o imaginário a buscar a coerência indo e voltando ao texto numa leitura
não linear. José Paulo Paes explica as diferenças entre poesia e prosa nas formas
que a criança lê/recebe o texto:
A prosa e a poesia atuam de maneira diferente na sensibilidade infantil. As narrativas em
prosa, com personagens, peripécias e desfechos, estimulam os mecanismos de identificação

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imaginativa. Durante a leitura de uma história desse tipo, a criança se enfia na pele dos heróis
e vive com eles e por eles as aventuras narradas. Com isso, o mundo da simulação literária se
torna indistinguível, durante o tempo da leitura, do mundo da realidade cotidiana. Já a poesia
tende a chamar a atenção da criança para as surpresas que podem estar escondidas na língua
que ela fala todos os dias sem se dar conta delas. Por exemplo, a rima, ou seja, a semelhança
dos sons finais entre duas palavras sucessivas, obriga o leitor a voltar atrás na leitura. Essa
passa então a ser feita não linha após linha, sempre para frente, como na prosa, e sim num ir e
vir entre o que está adiante e o que ficou atrás. Com isso, desautoriza-se a leitura e se direciona
a atenção para o conjunto de significados do texto, não apenas para a sequência deles. (1996,
p. 24-25)

A poesia é o próprio brincar com as palavras, portanto a construção (ritmo,


recursos linguístico, figuras de linguagem) se sobrepõe a significação. Não é im-
portante uma “boa história” com sequência, a falta dela, o nonsense, as quebras
de sentido, os significados inusitados dão o tom ao poema. A poesia para criança
evita explicações. Ela é um convite para o brincar:

Convite
José Paulo Paes

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

como a água no rio


que é água sempre nova.

como cada dia


que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

A poesia rompe com a linearidade e traz as surpresas da língua que fogem


do lugar-comum, recriando sentidos, ressignificando palavras e contextos. Por ser
de difícil tutela, é menos frequente na escola. Os espaços de Educação Infantil,
tentando capturar o poema, “usam” músicas e versos, muitas vezes, para anun-

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ciar atividades e rotinas. Mas a força do ritmo das canções, a cumplicidade do


olhar, o brincar coletivo, podem reverter os grilhões e divertir. Qual de nós não se
embaraça num trava-língua e ri do erro cometido? Qual de nós não se lembra do
uni-duni-tê das escolhas dos jogos? E das brincadeiras de roda, dos domingos pé-
-de-cachimbo, do dedo mindinho e seu vizinho, da janela, janelinha, janelão?

Ilustração e projeto gráfico


do livro destinado às crianças pequenas
Além do texto, o livro para criança pequena hoje é um objeto que tem um
tratamento editorial que valoriza o design. Quanto à ilustração do livro infantil,
é importante observar a relação que ela estabelece com o texto verbal. Observar
o diálogo entre o verbal e o não verbal na sua dimensão polifônica. Uma ilustra-
ção que retrate literalmente o que o verbal expressa não estabelece uma leitura
dialógica do texto literário. Já uma ilustração que busque atravessar o verbal em
sua referencialidade e estabelecer a partir dele uma leitura própria, propositiva
e criativa, pode ser considerada uma boa ilustração. Por isso, ao ler um livro de
literatura infantil, é importante observar se o universo de significação é afetado
pela imagem, se as imagens ampliam as leituras pelo tratamento estético visual
que dão ao texto verbal.
Dessa forma, o projeto gráfico, ou seja, a materialidade do objeto livro, é o
que dá visibilidade e legibilidade à obra, tornando-se um convite inicial à leitura
pelo que está proposto como formato táctil, gráfico e funcional. Portanto, formato,
tamanho, capa, contracapa, relação da mancha textual com a ilustração, contraste
letra/fundo, tamanho da letra, qualidade e textura do papel, técnica e cores empre-
gadas, bem como a adequação e dosagem de informações complementares ao tex-
to literário para contextualização da obra, funcionalidade de sumários, glossários
e dados biográficos dos autores e ilustradores, tudo isso faz parte da proposta e
não pode ser desconsiderado numa escolha de um livro de qualidade (CORSINO;
ANDRADE, 2006).

Literatura Infantil e escolas;


questões à guisa de considerações finais
Muitos são os limites da literatura infantil para as crianças de zero a seis
anos. Da concepção, à recepção, os filtros são grandes, mas não tão poderosos a
ponto de não darem margem à reversão do que está posto. Quando se consegue
vencer os limites do acesso ao texto, muitas são as possibilidades oferecidas às
crianças (e aos adultos também) por uma literatura de qualidade. Especialmente
quando se compreende que esse mundo inacabado aberto pela literatura não é
onde se aprende conteúdos, nem comportamentos. É o lugar da criação, do novo,

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da participação, da experiência do sujeito, do brincar, do encantamento. Muito


se aprende com tudo isso, mas essa aprendizagem não pode ser controlada nem
medida. Checá-la é perda de tempo, pois a resposta imediata diz muito pouco do
que ficou, formou e transformou.
Levar a Literatura Infantil para os espaços de Educação Infantil significa
provocar uma quebra nas tensões entre atenção e controle, brincadeira e ensino,
fruição e aprendizagem, espontaneidade e intervenção pedagógica. A literatura
precisa de atenção do sujeito, da sua disponibilidade para o ouvir/ler, mas não se
tem controle dessa recepção; ela se instaura no próprio jogo ficcional, que ensina
a alteridade fundamental para a constituição da subjetividade, mas não se presta
ao ensino de conteúdos; possibilita a troca, a comunidade de ouvintes, o desfrute
individual e coletivo, sem a força disciplinar da ordem do adulto. Tudo isso é in-
tervenção pedagógica que flui com a aparência de espontaneidade.
A arte manifesta nos textos encanta, faz rir e chorar, pensar e se pensar,
traz o caráter lúdico do jogo que se instaura na e através da linguagem, permite
recriações, prazeres não programados, a aventura e o jogo sem cartas marcadas
(PERES, 1998). A literatura mostra uma língua para além do nível pragmático e
introduz a criança, desde pequena, no mundo da cultura escrita que, como leitor/
ouvinte dos inúmeros gêneros discursivos, pode perceber que a língua escrita é
muito mais que a decodificação de sílabas e frases simples, que tem regras pró-
prias para cada discurso.
Como introduzir as crianças no mundo da escrita, especialmente da escrita
literária se o que chega à criança está colado à linguagem oral ou é traduzido para
simplificar a compreensão? Como experimentar uma leitura literária, com sua
fruição, se há sempre uma tarefa a se fazer depois, uma moral da história a ser
explicitada, uma cobrança de compreensão de texto?
A Literatura Infantil nos espaços das creches e pré-escolas precisa superar
questões que dizem respeito à própria concepção do que é literatura, diferenciação
entre livro infantil e livro de Literatura Infantil e da qualidade do texto literário e
da inadequação da maioria dos usos pedagógicos. Os livros não podem ser mais
moralizantes e educativos que provocadores, seus temas não podem ser abordados
de forma banal, fechada e até mesmo preconceituosa. Como afirma Brito (1997), a
grande maioria dos livros de Literatura Infantil são produtos típicos da cultura de
massa: visa a nichos específicos de mercado (leitor iniciante, leitor inexperiente,
leitor experiente), retrata a realidade imediata do consumidor – espelho do univer-
so ideológico de senso comum da classe média, tende à banalização dos valores e
conteúdos e serve-se a usos didáticos não se preocupando com a dimensão artísti-
ca. O autor ainda afirma que “quem se submeteu a isso pouco leu”.
Que textos formam e transformam o sujeito? Que leitura é possível de ser
feita na Educação Infantil? Que lugar tem ocupado a leitura literária nos espaços
de Educação Infantil? A literatura tem aberto espaço para se aprender sobre si
mesmo e sobre o outro? O que estão aprendendo as crianças com a literatura?

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Selecione dez ou mais livros infantis para cada grupo de quatro a cinco integrantes. Nesses gru-
pos, cada livro deverá ser lido atentamente e depois algumas atividades poderão ser propostas.
Separe os livros conforme a proposta de interação predominante no texto, a saber:
proposta pragmática – a intenção é a mudança de comportamento dos leitores. É um tipo de
narrativa condutora de comportamentos;
proposta informativa – a intenção é envolver intelectualmente o leitor. É uma narrativa para
que o outro fique sabendo, conheça algo;
proposta ficcional – a intenção é agenciar o imaginário. “É uma narrativa detonadora do jogo
de significações que excita o imaginário a participar de possibilidades de composição de
outros mundos” (PAULINO, 2000, p. 44).
Com os livros do grupo, analisar:
construção da linguagem – avaliar nos livros em prosa se o texto tem coerência, coesão, pro-
gressão etc. e se no livro de poesia como se apresentam ritmo, repetições (rimas, aliterações,
repetição de palavras e expressões etc.), ludismo, jogo de significações com as palavras;
tratamento do tema – observar se o tema é tratado de forma criativa, sem didatismo, morali-
zação ou preconceitos;
ilustração – analisar as possibilidades de ampliar a margem de significação do texto verbal,
do não verbal e ir além do que está escrito; criatividade, equilíbrio e harmonia na técnica, no
traço, nas cores, no conjunto da composição;
projeto gráfico – olhar o produto livro como um objeto atrativo à faixa etária a que se destina
e observar: textura do papel (miolo e capa), tamanho da letra, relação da mancha do texto e
ilustração, cores, informações complementares: bibliografia de autores e ilustradores etc.

Sugiro a leitura dos seguintes textos:


BRITO, Luís Percival. A criança não é tola. In: PAULINO, Graça (Org.). O Jogo do Livro In-
fantil. Belo Horizonte: Dimensão, 1997.
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, Aracy A. M;
BRANDÃO, Helena M. B.; MACHADO, Maria Z. V. (Org.). Escolarização da Leitura Literária.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
ZILBERMAN, Regina. Leitura literária e outras leituras. In: BATISTA, Antônio A.; GALVÃO, Ana.
Leitura: práticas, impressos e letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

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Leitura e escrita: questões para
a Educação Infantil
Patrícia Corsino
Todo acontecimento da cidade, da casa, da casa do
vizinho, meu avô escrevia nas paredes. Quem casou,
morreu, fugiu, caiu, matou, traiu, comprou, juntou,
chegou, partiu. Coisas simples como a agulha perdida
no buraco do assoalho, ele escrevia. A história do
açúcar sumido durante a guerra, estava anotado. Eu
não sabia por que os soldados tinham tanta coisa a
adoçar. Também desenhava tesouras desaparecidas,
serrotes sem dentes, facas perdidas. E a casa, de
corredor comprido, ia ficando bordada, estampada de
cima a baixo. As paredes eram o caderno do meu avô.
Cada quarto, cada sala, cada cômodo uma página.
Ele subia em cadeira, trepava em escada, ajoelhava na
mesa. Para cada notícia escolhia um canto. Conversa
mais indecente, ele escrevia bem no alto. Era preciso
ser grande para ler, ou aproveitar quando não tinha
ninguém em casa. Caso de visitas, ele anotava o dia,
a hora, o assunto ou a falta de assunto. Nada ficava no
esquecimento, em vaga lembrança [...] Enquanto ele
escrevia, eu inventava histórias sobre cada pedaço da
parede. A casa do meu avô foi o meu primeiro livro.

Bartolomeu Campos de Queirós

U
ma casa cujas paredes eram páginas a serem preenchidas com notícias, acontecimentos e
histórias de um avô. Um livro aberto à imaginação do menino que inventava histórias sobre
cada pedaço estampado na parede. Histórias e mais histórias registradas e dadas a ler. Que
conhecimentos aquele primeiro livro trouxe para o menino Bartolomeu? Que elaborações pesso-
ais ele pôde fazer a partir dos traços impressos e das histórias guardadas na parede? Tomo esse
depoimento de Bartolomeu Campos de Queirós para abrir as discussões sobre leitura e escrita na
Educação Infantil.
No primeiro momento do texto, teço breves considerações sobre questões que dizem respeito
a teorias do conhecimento para em seguida trazer dois estudos construtivistas sobre os processos de
apropriação da linguagem escrita pelas crianças pequenas, antes de serem submetidas à formaliza-
ção da alfabetização pela escola: Psicogênese da língua escrita, de Emília Ferreiro e Ana Teberosky
(1979) e A pré-história da linguagem escrita, de Lev Vygotsky e Alexander Luria (1929). Concluo o
texto trazendo alguns princípios para se pensar a área da linguagem, leitura e a escrita na Educação
Infantil.

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Leitura e escrita: questões para a Educação Infantil

Alguns pontos de partida


Para pensar o trabalho com a leitura e a escrita na Educação Infantil e situar
algumas práticas, alguns pressupostos sobre as teorias do conhecimento merecem
uma breve referência, pois têm sido chaves nas discussões que, embora antigas,
estão longe de serem superadas. De forma bastante simplificada, três grandes teo-
rias do conhecimento têm servido de base para o trabalho pedagógico nas escolas,
independentemente do nível de ensino que são: o inatismo, o ambientalismo e o
interacionismo. Vejamos os pontos centrais de cada uma.

Inatismo
A visão inatista enfatiza a importância dos fatores endógenos para o desen-
volvimento do sujeito. Embora tenha uma vertente teológica, esse ponto de vista
também se ancora em diferentes áreas da ciência que buscam entender o desen-
volvimento humano nas suas características físicas e comportamentais, por via do
funcionamento interno do organismo, por dons inatos ou pela própria genética.
Nessa visão, são as aptidões e dons de cada sujeito os responsáveis pelas suas
competências e capacidades de aprender. O desenvolvimento depende da matu-
ração orgânica, emocional, cognitiva etc. Sob esse olhar, o trabalho do professor
seria deixar as crianças se desenvolverem naturalmente. O aprendizado da lingua-
gem escrita, como dos outros conhecimentos, seria uma questão de maturidade da
criança. Com o tempo, os indivíduos bem dotados chegariam aos objetivos.

Ambientalismo
O Ambientalismo, por sua vez, enfatiza a importância dos fatores exógenos
para o desenvolvimento do sujeito. O mais importante no processo de aprendiza-
gem é o ambiente; é ele, com todos os seus estímulos, que garantiria a aquisição
de conhecimentos. Suas vertentes mais conhecidas são o associacionismo, com
destaque na reflexiologia de Pavlov e no condicionamento operante de Skinner, e
o empirismo, que concebe a experiência sensorial como fonte do conhecimento.
Nessa perspectiva, são enfatizados os processos de “colocar para dentro” do su-
jeito o que está fora dele. É o ensino que garantiria a aprendizagem. Desse pres-
suposto decorre a valorização dos métodos educacionais. Situações de ensino or-
ganizadas e bem estruturadas, somadas ao reforço positivo com prêmios e elogios
aos alunos, levariam diretamente à aprendizagem. Em relação à alfabetização, o
foco no método, com procedimentos preestabelecidos, pensados e organizados
em etapas a serem seguidas, ao mesmo tempo por todas as crianças, desconsidera
as conquistas e processos individuais, além de atribuir ao aluno as falhas no pro-
cesso. Ter um método de alfabetização como horizonte traz consequências para o
trabalho de leitura e escrita na Educação Infantil, que acaba voltado para os pré-
-requisitos estabelecidos pelo método, reduzindo esse nível de ensino à ideia de
preparo. Embora os métodos variem, é comum observar brincadeiras e exercícios
voltados para o trabalho de psicomotricidade fina, percepções auditiva e visual,
relações letra-som, fonema-grafema, soletrações etc., vistos como preparatórios.

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Interacionismo
Na visão interacionista, o peso nos fatores endógenos e exógenos é idêntico,
ou seja, o conhecimento acontece a partir do sujeito, mas o sujeito é conhecedor
em um determinado ambiente cultural. Nessa visão se situa o Construtivismo de
Jean Piaget e o Interacionismo sócio-histórico de Lev Vygotsky. Piaget, a partir
do método clínico de investigação, elaborou a sua teoria – Epistemologia Genética
– na qual o conhecimento se constrói pela ação do sujeito no meio em que vive,
desde as rudimentares estruturas mentais do recém-nascido até o pensamento
lógico-formal do adolescente. Na sua concepção construtivista de aprendizagem,
o sujeito só pode aprender aquilo que estiver ao alcance do seu esforço cognitivo.
Num extenso e criterioso trabalho de pesquisa, Piaget e colaboradores abordam
diversas áreas do desenvolvimento infantil, tais como: o nascimento da inteli-
gência, a construção do real, a construção do símbolo, a construção do número,
a construção da moral, entre outras. Em relação à construção da língua escrita, a
visão construtivista piagetiana ganhou destaque nos estudos de Ana Teberosky e
Emília Ferreiro, com a Psicogênese da língua escrita, que veremos mais à frente.
Na visão sociointeracionista de Vygotsky, o conhecimento é visto como um
processo sócio-histórico. A construção do conhecimento é um processo de intera-
ção entre o sujeito e o meio, que se dá do interpsíquico – ou seja, dos vários outros
que fazem parte do mundo social em que o indivíduo se insere – para o intrapsíqui-
co, para o interior do sujeito onde cognição, desejo, afeto e memória se entrelaçam.
A linguagem, como um sistema simbólico básico de todos os grupos humanos, in-
termedia essas interações, exercendo um papel fundamental na comunicação entre
os indivíduos, no pensamento e no estabelecimento de significados compartilhados,
que permitem interpretações dos objetos, eventos e situações. Para o autor, esse
processo inclui também a Educação, pois compreende que o processo educativo
possibilita avanços qualitativos no desenvolvimento do sujeito. O contato com adul-
tos ou crianças mais experientes mobiliza áreas de desenvolvimento que estão ainda
amadurecendo (zona de desenvolvimento proximal), possibilitando a sua consoli-
dação. Ou seja, o aprendizado impulsiona o desenvolvimento, funcionando como
um motor para novas conquistas psicológicas. Em relação à aquisição da linguagem
escrita, Vygotsky e Luria formularam um trabalho intitulado A pré-história da lin-
guagem escrita, que também veremos à frente.
Mesmo que não tenhamos muito conhecimento sobre cada um desses pon-
tos de vista, no cotidiano, nos nossos discursos e ações essas correntes se entre-
laçam muitas vezes de forma contraditória. O Inatismo – condensado no ditado
popular “filho de peixe, peixinho é” – é muito comum nas falas ligeiras, quando
nos referimos aos dons que as crianças têm ou não, quando acreditamos que pes-
soas nascem para fazerem determinadas coisas, quando naturalizamos a ideia de
que uns têm e outros não têm alguma competência. Tudo isso interfere nas formas
de agir e encorajar as crianças com mais ou menos facilidade em alguma área. O
ambientalismo empirista, exemplificado com ditos como “é de pequeno que se
torce o pepino”, “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura” etc., tem lugar
cativo em muitos bancos escolares. Desde a Educação Infantil, a ideia de “prepa-
ro” tira o foco da aprendizagem da criança, enfatizando tudo que está fora dela
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como o currículo, as regras, a organização espaço-temporal da rotina escolar, o


método de alfabetização, entre outros. O construtivismo e o sociointeracionismo,
que têm sido enfatizados nas propostas pedagógicas das escolas1, são teorias de
difícil apropriação, pois sua adoção significa mudança de paradigma na forma de
ver e de agir com as crianças. Assim, parcialmente apropriadas por muitos docen-
tes, acabam gerando inúmeras interpretações, sendo até mesmo tomadas como
métodos, o inverso do que as próprias teorias propõem.
O foco na aprendizagem, nos processos de construção da linguagem escrita
pela criança suscita muitas questões para a prática pedagógica da Educação Infantil
e das séries iniciais do Ensino Fundamental, sendo importante conhecer as discus-
sões postas pelas pesquisas para tentar responder parte delas. Percorro a seguir,
especialmente, as pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1979) e de Vygotsky e Luria
(1929). Ambas, devido às diferentes bases teóricas que tomaram como ponto de
partida, caminham para pontos que ora convergem, ora divergem entre si. As dife-
renças situam-se, tanto na metodologia – a forma de organizar relatórios de pesquisa
nos anos 20 era bastante diferente das dos anos 70 –, quanto em relação às perguntas
que guiam suas experimentações. Mas os dois estudos trazem perguntas que permi-
tem ver algo novo nas produções infantis se constituindo como marcos teóricos que
ampliaram sobremaneira as discussões sobre alfabetização e letramento.

A Psicogênese de Ferreiro e Teberosky


Para Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, desde que viva em um meio social
que faça uso da escrita, a criança é capaz de elaborar hipóteses e buscar respostas
no sentido de conhecer e entender esse objeto sociocultural. Usando o método
clínico de investigação, a pesquisa descreve e interpreta o ingresso da criança na
escrita, em cinco níveis descritos a seguir:
período pré-silábico 1 – escrever seria reproduzir os traços da escrita
dos adultos. A intenção da escrita seria subjetiva, não funcionando ainda
como veículo de informação. Nesse período, observaram que as crian-
ças atribuem características dos referentes às grafias, para a represen-
tação gráfica (realismo nominal). Segundo as autoras, a primeira ideia
das crianças é que as letras têm a função de designar, ou seja, é uma
escrita de nomes, mas que pode designar também quantidades e ações
com quantidades. Mesmo sem ainda fazerem a distinção entre letras e
números nos seus grafismos, por participarem de experiências informais
com letras e números, poderiam diferenciar a função de ambos.
período pré-silábico 2 – formas gráficas passariam a adquirir maior pro-
ximidade da escrita convencional. As crianças seriam capazes de repro-
duzir um repertório variado de grafias e passariam a estabelecer relações
1 Tanto as Diretrizes Cur-
riculares para a Edu-
cação Infantil – Resolução
entre elas. A imitação dá lugar às produções reguladas pelas quantidades
CNE/CEB 10704/99 – quan- gerais de muitos sistemas de escrita: linearidade, união e descontinuida-
to a Referencial Cur-ricular
para a Educação Infantil – de, número mínimo de elementos e variedade interna (TEBEROSKY,
MEC/SEF, 1998 en-fatizam
essas orientações. 2001, p. 86). As crianças imporiam restrições às notações de escrita e às
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numéricas também e conseguiriam expressar verbalmente as atribuições


de cada sistema notacional. Esse período, que foi denominado pelas auto-
ras como pré-silábico, embora apresente uma variedade considerável de
formas grafadas pelas crianças (grafismo linear, desenhos figurativos ou
não, bolinhas, pauzinhos, pseudoletras, letras...), possui como elemento
unificador o fato de não relacionarem a escrita à pauta sonora.
período silábico – quando escrever passaria a ser uma produção contro-
lada pela segmentação silábica da palavra. Na escrita silábica, observa-
ram que as crianças usavam as letras que conheciam e podiam ainda usar
as pseudoletras. Mas as letras podiam ou não ter valor sonoro estável.
Para as pesquisadoras, a construção da hipótese silábica resulta de um
grande trabalho cognitivo da criança, porém, nesse momento, as infor-
mações que vêm do meio não se acomodam nesse esquema, tornando-se
um momento altamente conflitante para a criança.
A escrita silábica, depois de um certo tempo, passaria a revelar valor
sonoro convencional, ou seja, as letras utilizadas pela criança teriam cor-
respondência sonora estável com a sílaba que tem a intenção de expres-
sar. O conflito entre a hipótese silábica e a questão quantitativa seria,
segundo as autoras, um fator fundamental na evolução dessa fase para
a hipótese alfabética. Quando a criança reagia a esses conflitos modifi-
cando o esquema assimilativo, ou seja, assimilando as informações que
eram perturbadoras, começava a reconstruir o sistema de escrita sobre a
base alfabética.
período silábico-alfabético – observaram, ainda, em alguns momen-
tos, uma insistência das crianças em escrever de forma silábica, afinal,
esse sistema havia sido elaborado por elas graças a um enorme trabalho
cognitivo. A esse momento de resistência, as autoras chamaram de fase
silábica-alfabética, que seria um momento de transição.
período alfabético – a escrita alfabética, considerada o final do processo
de evolução da escrita na criança, seria o momento em que compreen-
de que cada um dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros
menores que a sílaba e realiza, sistematicamente, uma análise sonora dos
fonemas das palavras que vai escrever. As autoras ressaltam, porém, que
escrever alfabeticamente não significa necessariamente superar todas as
dificuldades de escrita. A criança terá pela frente inúmeras questões de
origem ortográfica a resolver. Porém, enfatizam que as dificuldades orto-
gráficas não devem ser confundidas com as dificuldades para compreen-
der o sistema de escrita.
Do ponto de vista pedagógico, a Psicogênese tem sido adaptada à realidade
educacional brasileira, apresentando uma forte repercussão nas redes de ensino.
Essa adaptação, porém, tem corrido o risco de uma transposição para sala de aula
de situações de pesquisa, não favorecendo necessariamente a revisão de antigas
práticas. Lerner salienta a diferença entre as questões da epistemologia genética e
da didática construtivista ressaltando que:

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[...] a primeira está orientada para a compreensão do desenvolvimento cognitivo, a segun-


da, para a análise do aprendizado sistemático; a primeira dirige a atenção para o sujeito
cognoscente que interage com o meio físico e social; a segunda faz entrar em cena o alu-
no, essa criança que – ao estar “sujeita” à ordem da instituição escolar – converte-se em
sujeito didático. (1996, p. 91)

A Psicogênese revela expectativas em relação às crianças que frequentam


turmas de Educação Infantil e das séries iniciais, sendo importante indagar sobre
seus pressupostos para não correr o risco de enquadrar as produções infantis em
níveis predeterminados de forma linear, desconsiderando as suas singularidades
e condições de produção.

Do gesto à linguagem escrita: Vygotsky


e a pré-história da linguagem escrita
Na tentativa de entender a pré-história da linguagem escrita, Vygotsky dis-
tingue alguns pontos importantes no processo de simbolização da criança.
O gesto como escrita no ar e os signos escritos como gestos que foram
fixados. Para o autor, os primeiros rabiscos e desenhos das crianças se-
riam mais gestos do que propriamente desenhos. Ao desenharem os atos
de correr ou de pular, por exemplo, as mãos fazem o movimento indica-
tivo desses atos e o lápis apenas os fixa no papel. O mesmo ocorre com o
desenho de objetos complexos, elas não se detêm nas partes, mas sim nas
qualidades gerais. Mais uma vez, o lápis fixa o gesto indicativo. Também
observa que inicialmente as crianças são muito mais simbolistas do que
naturalistas, já que não desenham o que sabem, mas o que conhecem
(por exemplo: dois olhos numa figura humana de perfil). Desenham de
memória e o fazem à maneira da fala, contando uma história e essa ati-
tude, para o autor, contém um grau de abstração, imposto por qualquer
representação verbal.
O jogo das crianças como mais uma esfera de atividades que unem os
gestos à linguagem escrita. Nas brincadeiras infantis, nos jogos de faz
de conta, os objetos podem denotar outros, substituindo-os e tornando
seus signos, independentemente do grau de similaridade entre a coisa
que brinca e o objeto denotado, pois o mais importante é a possibilida-
de de executar com eles o gesto representativo. Vygotsky observou que,
com a idade, a porcentagem de ações gestuais na brincadeira diminui e
a fala passa a predominar, porém a diferença entre uma criança de três
anos e uma de seis que brincam não está na percepção do símbolo, pois a
primeira é capaz de entender a função representativa de uma construção
com brinquedos, mas no modo pelo qual são usadas as várias formas
de representação. Uma criança de quatro anos dá nome às suas criações
antes de começar a construí-las, fato que não ocorre com as menores.
Vygotsky verifica a íntima relação entre a representação por gestos e a
representação por desenhos, observando que crianças de cinco anos de
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idade são capazes de representar simbólica e graficamente por meio de


gestos. Dessa forma, o autor compreende o jogo simbólico e o desenho
como estágios preliminares da linguagem escrita.
Dentro do projeto geral de pesquisa coordenado por Vygotsky, foi Luria o
responsável por tentar recriar experimentalmente o processo de simbolização na
escrita. No artigo O desenvolvimento da escrita na criança, publicado em 1929,
Luria trouxe os resultados de sua pesquisa realizada com crianças entre três e seis
anos, em fase pré-escolar, a respeito da construção da escrita. Na interpretação
dos dados, descreveu níveis graduais de elaboração de técnicas de escrita, nos
quais as marcas grafadas pelas crianças vão ganhando diferenciação e significado
simbólico.
Para Luria, a escrita possui duas funções básicas: mnemônica e comunicati-
va, sendo que esta última não apareceria nos estágios embrionários (p. 99). Segun-
do o autor, a construção da escrita pela criança segue os seguintes momentos:
fase pré-instrumental – a criança, inicialmente, se relaciona com os ma-
teriais escritos sem compreender o que a escrita representa. Nessa fase,
escrever é apenas imitar o adulto, numa produção de rabiscos indiferen-
ciados entre si. O ato de escrever não é um meio para recordar nem para
representar, mas um ato suficiente em si mesmo, um brinquedo (p. 149).
Aqui estariam presentes aspectos externos da escrita para as crianças,
sem a função de signo auxiliar.
escrita como signo auxiliar da memória – ainda nesses momentos de es-
crita indiferenciada, o autor observa que começa a surgir a função mnemô-
nica. Luria descreve um momento em que se surpreende com uma criança
que havia produzido rabiscos indiferenciados e, no entanto, quando so-
licitada a se recordar das sentenças, conseguiu apontar para os rabiscos
correspondentes, e o fez sem errar e repetidas vezes. Relata o autor que a
escrita ainda não era diferenciada em sua aparência externa, mas a relação
da criança tinha mudado: de uma atividade motora, a escrita se transfor-
mara em um signo auxiliar de memória (p. 157). Segundo Luria, essa seria
a primeira forma de escrita no sentido próprio da palavra pois, mesmo não
havendo diferenciação na forma gráfica, a relação funcional que a criança
atribui a essa escrita está de acordo com sua função mnemônica.
diferenciação do signo – posteriormente, a criança começa a dar um se-
gundo passo nessa trajetória – a diferenciação do signo, fazendo-o ex-
pressar realmente um determinado conteúdo. As marcas coordenadas
subjetivamente se transformam em signos com significados objetivos.
Linhas e rabiscos são substituídos por figuras e imagens, e estas dão lu-
gar a signos. Para ele, nessa sequência de acontecimentos está todo cami-
nho do desenvolvimento da escrita, tanto na história da civilização como
no desenvolvimento da criança (p. 161). Dois caminhos pelos quais pode
ocorrer a diferenciação do signo primário na criança foram observados
por Luria: a criança pode retratar um determinado conteúdo ainda com
rabiscos imitativos ou utilizar-se de pictogramas registrando a ideia do

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que se propõe a escrever. Os dois caminhos supõem um salto qualitativo


no desenvolvimento de formas complexas de comportamento cultural –
de signo-estímulo a signo-símbolo.
surgimento das marcas arbitrárias – Luria observou que a escrita picto-
gráfica não consegue expressar todos os conteúdos por ele solicitados. O
pesquisador desafiou as crianças com escrita pictográfica a buscar novas so-
luções e, no conjunto de respostas dadas, dois caminhos foram percebidos:
o uso de formas associadas ao significado e o uso de marcas arbitrárias. Para
Luria, os dois caminhos levam à escrita simbólica, sendo que somente no
segundo há o uso de expedientes qualitativamente novos, pois no primeiro
os meios de representação são os mesmos da escrita pictográfica.
escrita simbólica – quando a criança começa a desenvolver a escrita sim-
bólica, dominando as formas culturais exteriores, tanto presentes no meio
informal quanto por meio do estudo sistemático escolar, apresenta nova-
mente características da fase de escrita não diferenciada, pela qual já ha-
via passado. Pois o fato de aprender aspectos externos da escrita, como a
forma das letras, não significa que a criança imediatamente passe a com-
preender internamente a escrita. Ainda lhe falta descobrir como usar esses
signos. Há, portanto, uma relação dialética da criança com a escrita, pois,
ao mesmo tempo em que emprega sucessivamente novos expedientes e os
transforma, a criança também é modificada nesse processo.
As pesquisas de Vygotsky e Luria e de Ferreiro e Teberosky, embora me-
reçam algumas críticas e reflexões, apontam para uma lógica subjacente às tenta-
tivas de escrita infantis, valorizando-as e procurando explicá-las. O que significa
uma mudança de paradigma em relação à alfabetização das crianças. Se há um
processo intenso de construção e reconstrução da língua escrita pela criança, faria
sentido adotar um método para ensinar o que elas são capazes de construir nas
suas interações?
Voltando à epígrafe deste texto, pergunto: quanto conhecimento sobre a
língua escrita era suscitado no menino Bartolomeu pelo fato de o avô escrever
histórias na parede? O gesto, o traçado das letras, as histórias guardadas na pa-
rede – que ficavam para sempre expostas –, o decifrar, a descoberta das histórias
proibidas – escritas no alto para dificultar a leitura –, o deixar de fazer “pipi na
cama” para o fato não ir para a parede, o assunto ou a falta de assunto, tudo estava
lá, oferecendo-se a ler ao menino curioso.

Aprender a ler e a escrever: o aprendizado


de uma forma de interação verbal
Embora tenha centrado minha análise nos estudos de Vygotsky e Luria,
Ferreiro e Teberosky, por estarem presentes no ideário pedagógico atual, não se
pode desconsiderar as contribuições de outros enfoques da Psicolinguística, da

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Linguística e da Sociolinguística. No Brasil, por exemplo, pesquisadores como


Rego (1982), Goes (1984), Smolka (1993), Pacheco (1997), Abaurre et al. (1997),
entre outros, questionam as interpretações de Ferreiro e ampliam as discussões
da construção da escrita pela criança levando em conta os processos de interação
verbal e de mediação do outro.
Smolka, baseada nos estudos de Vygotsky e de Bakthin, afirma que não se
aprende e não se ensina a ler e a escrever, mas aprende-se a usar uma forma de
linguagem, uma forma de interação verbal, uma atividade simbólica. Nos proces-
sos iniciais da construção da escrita pela criança, a autora considera que não se
pode ignorar o conflito cognitivo apontado por Ferreiro, mas também devem ser
levadas em consideração as funções e configurações da escrita, da dimensão sim-
bólica e do processo de conceitualização e elaboração das experiências, da meta-
linguagem e do conflito social. Ao analisar a aquisição da escrita, pela óptica da
interação verbal, da interdiscursividade, inclui o aspecto social das funções, das
condições e do funcionamento da escrita (para que, para quem, onde, como, por
quê) e observa que não se pode tratar a escrita apenas como uma atividade cog-
nitiva, mas como uma atividade discursiva que implica na elaboração conceitual
pela palavra e que ganha força a função interativa, instauradora e reconstituidora
do conhecimento na/pela escrita. “A criança aprende a ouvir, a entender o outro
pela leitura e aprende a falar, a dizer o que quer pela escrita” (1993, p. 63). Dessa
forma, entende que as primeiras tentativas infantis de produção de escrita vão se
organizando, se estruturando e se tornando texto para o outro (inclusive o outro
“eu”) e, nesse processo, são inúmeros os esquemas e as possibilidades que as
crianças desenvolvem e usam para começar a ler e a escrever. Nessa perspectiva, o
discurso interior, postulado por Vygotsky como predicativo, de sintaxe abreviada,
desconexo, incompleto, com predomínio do sentido sobre o significado e agluti-
nação de palavras, traria também as marcas do discurso social. Assim, o discurso
escrito, sobretudo na sua gênese, traria as marcas desse discurso interior.
Pacheco (1997), ao investigar o processo de produção textual escrita de
crianças de uma escola pública, em fase inicial de aprendizagem formal da língua
escrita, observa a qualidade dos textos produzidos, não no sentido da correção
ortográfica, mas do ponto de vista da elaboração discursiva escrita, da proprie-
dade dos textos em relação às propostas de produção e também da complexi-
dade temática de tais textos. Além disso, percebe que os textos produzidos, por
mais que tivessem problemas de várias ordens, já que se tratava de produções de
crianças que estavam aprendendo um conhecimento novo, eram textos produzidos
para serem escritos, ou seja, com marcas sintáticas próprias da linguagem escrita.
Assim, mostra que as produções escritas infantis que se caracterizam como tex-
tos falados escritos não podem ser considerados como uma etapa do processo de
alfabetização, mas como uma característica circunstancial relacionada ao modo
como se trabalha a alfabetização. Sua pesquisa traz a possibilidade de apropriação
da criança dos diferentes gêneros do discurso que circulam, a partir de enunciados
concretos ouvidos e reproduzidos durante a comunicação verbal viva entre elas e
os que as rodeiam.

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Qual é o lugar da linguagem


escrita na Educação Infantil?
Para Vygostsky, o processo de construção/produção de conhecimento não
pode ser compreendido sem a mediação da linguagem, que permeia todas as nos-
sas ações no mundo, e fora de uma dimensão cultural que inclui também a Edu-
cação. Esse processo interativo, porém, é uma via de mão dupla, em que o sujeito
não só “recebe” a cultura como também produz cultura, reorganizando o real. A
cultura nunca está pronta e acabada, é construída e reconstruída historicamente
nas inter-relações que se estabelecem entre o sujeito e o seu meio histórico-social,
pelas sucessivas produções e apropriações de conhecimentos.
Aderir a uma proposta interacionista construtivista na Educação é assumir
uma mudança de paradigma. Isso muda o foco do trabalho para a aprendizagem
da criança: como ela aprende? Quais são as suas conquistas? Como posso organi-
zar o trabalho para desafiá-la a ir adiante? Como formular perguntas e interven-
ções capazes de provocar reflexões e avanços?
Ao professor cabe planejar ações que ampliem as interações e intervenções
provocativas capazes de mobilizar os avanços. Nesse sentido, sem a pretensão de
esgotar a discussão, mas com o objetivo de pensar a prática pedagógica na Edu-
cação Infantil, trago a seguir alguns princípios para se pensar a leitura e a escrita
nesse nível de ensino.
Aprende-se a ler e a escrever se relacionando diariamente com textos
escritos, ouvindo leituras variadas, observando e refletindo sobre as pro-
duções escritas, lendo e produzindo seus próprios textos de forma espon-
tânea, arriscando e elaborando hipóteses.
Um ambiente alfabetizador não é um lugar cheio de coisas escritas, ex-
postas nas paredes. É um espaço aberto às diferentes linguagens (oral,
escrita, corporal, gráfica etc.). É um lugar no qual as pessoas podem dia-
logar com diferentes tipos de texto, que tenha, portanto, muita fala, muita
leitura feita pela professora e pelas crianças, em que os textos escritos
possam ser vistos, observados e produzidos coletivamente, individual-
mente e em pequenos grupos, mas sempre inseridos em situações e prá-
ticas significativas para o grupo.
A leitura é um processo de interação do sujeito com o texto. Portanto, o
sentido do que é lido é fundamental. A escrita é uma linguagem, portanto
se dirige a um interlocutor e tem uma finalidade. Escreve-se para alguém
por algum motivo.
Os textos escritos devem aparecer em sala servindo a muitos usos e exer-
cendo diferentes funções. A escrita foi feita para a gente se comunicar, se
informar, se expressar, não esquecer. Ela exerce diferentes funções na vida
social e cada grupo tem suas práticas de leitura e de escrita. A escrita não
é um artefato ou um mero recurso. Por isso, desde a Educação Infantil os

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textos devem exercer funções reais, que façam parte do cotidiano da escola
e que ampliem as práticas vividas pelas crianças. Cabe ao professor apro-
veitar as discussões e fatos relevantes para o grupo e usar a imaginação
para registrar em álbuns, cartazes, cartas, receitas, livros, avisos.
É muito importante o trabalho com o nome das crianças, a presença di-
ária de um momento de se contar histórias e fatos que aconteceram, o
registro coletivo de experiências, observações, passeios etc., que sirvam
de referência para as crianças refletirem sobre a língua escrita.
Na relação entre linguagem oral e linguagem escrita, algumas caracterís-
ticas se aproximam e outras se afastam. É importante as crianças perce-
berem as várias diferenças que existem entre a oralidade e a escrita como,
por exemplo, as funções que exercem e a maneira como cada gênero se
estrutura – e verem o modo como a escrita se organiza no papel, como se
fala de um jeito e se escreve do outro.
Existem características da língua escrita que a criança constrói e outras que
ela precisa das informações de um usuário mais competente. O professor deve estar
atento ao que é construção e ao que é informação. Não negar informações às crian-
ças, mas também não exagerar querendo atropelar o processo. É importante saber o
que a criança pode e deve construir sozinha (ou com os seus pares mais experientes)
e o que vai precisar ser informada. Como exemplos de informações que a criança
precisa saber podemos citar: o sentido e a direção da escrita (da esquerda para direi-
ta e de cima para baixo). Não se trata de dar a regra pronta, mas criar condições para
que elas sejam descobertas e compreendidas. Informar não é dar uma aula sobre um
determinado assunto, é ir explicando na medida em que a própria criança vai per-
guntando. Cabendo, também, perguntas, desafios, reflexões individuais e coletivas
sobre as produções, situações criadas para a criança pensar e estabelecer relações
entre as informações que você está dando e as que ela já tem.
Na Educação Infantil não cabem sistematizações. A não ser as que as
próprias crianças solicitem. Tudo deve ser feito de forma lúdica a partir
da curiosidade das crianças.
Brincar com músicas, cantigas de roda, quadrinhas, versos, parlendas,
trava-línguas. Inventar e descobrir palavras que rimam ou que apresen-
tam sons semelhantes.
Contar muitas histórias, sem compromisso com o que fazer depois, com o
único objetivo de deixar as crianças viajarem na imaginação, devolvendo
da linguagem o seu lado expressivo, é uma das grandes maneiras de se
formar sujeitos criativos e autônomos. A formação de um leitor ativo e de
um competente autor de textos também depende de você, do seu envolvi-
mento com a leitura e com a escrita. Leia para a turma histórias que você
goste, recite poemas, descubra autores, estilos e gêneros literários. Quando
você empresta sua voz ao texto, há que ser por inteiro, fazendo as crianças
entrarem no mundo ficcional e no jogo dos ritmos, sons e significados,
descobrindo o lado expressivo, sensível e artístico da língua escrita.

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Termino este texto com um poema de Manuel de Barros, fazendo um con-


vite: vamos permitir que a Educação Infantil seja um tempo-espaço das crianças
carregarem água na peneira?

O menino que carregava água na peneira


(BARROS, 1999)
Tenho um livro sobre as águas e meninos,
Gostei mais de um menino
Que carregava água na peneira

A mãe disse
Que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair
Correndo com ele para mostrar aos irmãos.
[...]
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino


Gostava mais do vazio
Do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
E até infinitos.

Com o tempo aquele menino


Que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na
peneira
[...]
O menino fazia prodígios
Até uma pedra dar flor!

[...]
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda

Você vai encher os


vazios com as suas
peraltices
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos

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1. Separar a turma em grupos para analisar produções escritas das crianças. Analisar a proposta
que foi feita às crianças – o contexto de produção – e as próprias produções.

2. Escolher uma criança para relatar por escrito suas conquistas na área da linguagem escrita. Ler
o registro em grupo.

3. Iniciar ou fechar as aulas com uma leitura literária.

FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artmed,
1990.
SMOLKA, Ana Luiza. A Criança na Fase Inicial da Escrita. Campinas: Cortez, 1993.
VYGOTSKY, Lev. A pré-história da linguagem escrita. In: _____. Formação Social da Mente. São
Paulo: Martins Fontes, 1991.

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Leitura e escrita: questões para a Educação Infantil

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O letramento no cotidiano
da Educação Infantil:
perspectivas para a prática
Daniela Guimarães
Seja como for, para cada pessoa há coisas que lhe
despertam hábitos mais duradouros que todos os
demais. Nelas são formadas as aptidões que se
tornam decisivas em sua existência. E, porque, no
que me diz respeito, elas foram a leitura e a escrita
de todas as coisas com que me envolvi em meus
primeiros anos de vida, nada desperta em mim
mais saudade do que o jogo das letras. Continha
em pequenas placas as letras do alfabeto gótico, no
qual pareciam mais joviais e femininas do que os
caracteres gráficos [...] A saudade que desperta em
mim o jogo das letras prova como foi parte integrante
da minha infância. O que busco nele, na verdade,
é ela mesma: a infância por inteiro, tal qual sabia
manipular a mão que empurrava as letras no filete,
onde se ordenavam como uma palavra

Walter Benjamin

A
s palavras do filósofo Walter Benjamin evidenciam a importância da leitura e da escrita inte-
gradas na vida cotidiana do leitor e do escritor, como experiências de envolvimento, aventura,
descoberta e deslumbramento. Se, por um lado, há um conjunto de regras e convenções a
serem compreendidas por quem aprende a escrever e a ler, exigindo um trabalho específico e que pre-
cisa ser focalizado, por outro lado há a produção de sentidos sobre o mundo, a expressão e o registro
de emoções e ideias nas palavras escritas, dimensões fundamentais da leitura e da escrita.
Portanto, aprender a ler e a escrever possibilita a combinação de elementos arbitrários na
concretização das fantasias e histórias das crianças, tornando-se exercício de prazer e potência. Ao
mesmo tempo que permite à criança sonhar, abre portas para que conquiste recursos mais amplos
de atuação no mundo, à medida que lhe permite participar da vida letrada da sua comunidade.
Aprender a ler e a escrever modifica o olhar da criança para o mundo, permitindo que possa
“ver mais”, à medida que obtém uma nova qualidade de instrumentos para penetrar na realidade e
interpretá-la.

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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática

Ler e escrever como práticas socioculturais


Ao focalizarmos as estratégias que visam a favorecer a construção da leitura
e da escrita por parte das crianças no dia a dia da Educação Infantil, é importante
considerarmos alguns princípios.
Em primeiro lugar, ler e escrever não são atos escolares somente, mas atos
de vida que se desenvolvem no cotidiano das crianças e dos adultos nas sociedades
letradas. Quando chegam à escola de Educação Infantil, provavelmente as crian-
ças já participam do mundo letrado de várias formas, especialmente as crianças
que vivem nos meios urbanos. Elas têm contato com diversos objetos portadores
de palavras, textos e sentidos diferentes no campo social mais amplo: letreiros,
outdoors, revistas, cardápios, jornais e outros. Além disso, algumas vezes têm
contato com objetos portadores de textos e sentidos no cotidiano mais íntimo de
suas famílias: cartas, bilhetes, convites etc.
Quando lemos com a criança o que está escrito numa placa de rua, quando
folheamos e lemos com ela um livro, ou quando nos envolvemos com ela em tantos
outros atos que lhe possibilitam participar da comunidade de leitores a que perten-
cemos, contribuímos para sua integração nessa comunidade. Com certeza, nesses
momentos, está sendo construída uma série de atitudes de leitura e, provavelmente,
algumas hipóteses sobre como se organizam os símbolos nos textos lidos.
Também quando escrevemos seu nome sob sua observação, quando escreve-
mos um bilhete junto dela, colhendo suas ideias para o que vai ser registrado, e em
outras situações sociais nos quais compartilhamos com a criança o ato de escrever,
favorecemos sua apropriação da função da escrita e de algumas regras que lhe cons-
tituem. Possivelmente, a criança tanto observa “para que serve” o que escrevemos
(comunicar algo a alguém distante, marcar uma autoria, divulgar um conhecimento
etc.), quanto verifica características técnicas de como se escreve; por exemplo, o sen-
tido da escrita, da esquerda para a direita; a forma e valor sonoro das grafias etc.
Assim, ao recebermos um grupo de crianças em nossas escolas de Educa-
ção Infantil, estamos recebendo crianças com saberes diversos em construção. É
preciso considerar esses saberes, discriminá-los, organizá-los para que possamos
decidir e escolher quais as atividades no campo da leitura e da escrita que serão
mais apropriadas para nossas crianças.
É preciso considerar que a construção de sentidos pela via da escrita encon-
tra-se prenunciada na possibilidade de construção de sentido na palavra falada, no
desenho, na relação com o brinquedo. Portanto, torna-se um princípio importante
a escuta e a valorização das diferenças que as crianças apresentam. Isso se con-
cretiza à medida que abrimos espaço para os significados que elas constroem nos
seus desenhos e dramatizações, percebendo como captam e interpretam imagens,
ilustrações, obras de arte e todos os recursos simbólicos de nossa cultura.
O lugar que essas manifestações socioculturais têm no cotidiano pode forta-
lecer a apropriação da escrita como recurso expressivo por parte das crianças, se
elas têm o direito de escolher do que e como vão brincar, se seus desenhos contam
suas histórias, se suas palavras são espaço de partilha de experiências vividas.

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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática

Ao mesmo tempo, a valorização da expressão e potência de cada uma ex-


põe-se quando abrimos espaço para que escreva “do seu jeito” ou “da melhor
maneira que pode”, o seu nome, o nome dos colegas, o título de uma história, uma
frase etc. Também, quando propomos que leia algo (mesmo quando sabemos que
a criança não sabe ler convencionalmente), notando quais recursos vai usar para
tentar ler (a ilustração; o início da palavra que é parecido com algo que conhece;
o dedo em cima do escrito, acompanhando o sentido da leitura etc). Nessas situa-
ções, percebendo o quanto já conhecem sobre como se escreve e sobre como se lê,
podemos avaliar quais seriam as intervenções mais coerentes com cada subgrupo
de crianças que temos.
Além de considerarmos os atos de escrita e leitura como atos da vida coti-
diana (percebendo o quanto a criança já sabe a respeito de como se lê e como se
escreve) e de valorizarmos as diferenças das crianças (inclusive as diferentes lin-
guagens: desenho, dramatização etc.), é fundamental trazermos para o cotidiano
da escola de Educação Infantil a leitura e a escrita como atos sociais também.
É importante reconhecermos o valor social destas dessas em nosso dia a
dia. Nessa perspectiva, ganham relevo as seguintes situações: ler para o outro,
escrever cartas para quem se ausentou, convites para algum evento coletivo, uma
história compartilhada por todos, recados na agenda para os pais etc. Ler é com-
preender um texto. Ao mesmo tempo, escrever é produzir um texto significativo
para si e/ou para o outro. Compreender e produzir implicam envolver-se ativamen-
te no movimento de ler e escrever. Trata-se de movimento que nos acompanha a
vida toda e não se esgota na capacidade de decodificar letras ou codificar sons,
mas revela-se, sobretudo, na possibilidade de usar a leitura e a escrita de modo
funcional e também prazeroso.
O uso funcional da leitura e da escrita materializa-se quando lemos para
encontrar algo que procuramos (num catálogo, numa enciclopédia etc.); quando
escrevemos para não esquecermos (uma lista de compras, um conjunto de afaze-
res etc.), ou quando desejamos nos deleitar com um saboroso conto, ou registrar
uma história inventada.
Então, no cotidiano das práticas educacionais, torna-se relevante toda a situ-
ação em que ler e escrever aconteçam de forma significativa, tendo em vista suas
funções reais, ou seja, preservar/registrar a memória do grupo; partilhar experi-
ências, ideias, sentimentos; ter acesso ao que os demais grupos humanos viveram,
pensaram, sentiram; saborear um bom texto etc.
O contrário dessas situações apresenta-se quando a escola acaba levando
a criança a escrever ou ler para ser aprovada, para responder ao professor, para
preencher uma tarefa escolar sem sentido para ela, o que torna o universo letrado
algo somente arbitrário e impessoal.
É importante apontar que a unidade básica de comunicação escrita que tem sig-
nificado é o texto. Vale dizer que a característica definidora de um texto não é o seu ta-
manho (uma letra, várias palavras etc.), mas o que define um texto é ser uma unidade
de sentido. Por exemplo, a letra A descontextualizada não quer dizer nada; mas, a letra
A no meio de um círculo no meio é uma unidade repleta de significações (anarquia,
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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática

rebelião, afirmação de identidade etc.). O nome próprio é uma das únicas palavras
soltas, despregadas de outras, que tem um sentido garantido em si mesma. Enfim, se
entendemos que ler e escrever envolvem a produção de sentido e este se concretiza no
texto, a unidade a partir da qual precisamos trabalhar com as crianças é o texto.
Outro ponto a ser destacado é que o texto expõe sempre uma situação comu-
nicativa específica que também está sendo apropriada pela criança. Por exemplo, a
informação sobre castelos que encontraremos em livros de História será diferente
da abordagem do castelo num livro de Literatura. Cada tipo de texto contém uma
forma própria que comunica de modo diferente, sentidos diferentes; isso também
está sendo aprendido pelas crianças. Portanto, é fundamental a diversidade de
tipos e formas textuais experimentada de modo vivo e significativo no cotidiano.
É indispensável que o professor conheça cada uma de suas crianças (quais
suas hipóteses sobre a leitura e a escrita, quais suas dificuldades), acolhendo-as
em suas conquistas, dando relevo a elas, ajudando-as a avançar em seus impasses;
assim como é essencial que ele esteja fomentando sempre experiências ricas e sig-
nificativas de contato com a língua, desafiando as crianças nesse contato.

Desafios e estratégias na produção de textos


Não há receitas a serem reproduzidas ou modelos de trabalho a serem copia-
dos, mas indicações que podem inspirar as práticas sociais de leitura e escrita nos
contextos educacionais. Leitura e escrita são competências que se complementam e
vão sendo conquistadas de modo concomitante por parte da criança. No entanto, va-
mos pontuar aqui algumas peculiaridades no que se refere à apropriação da escrita.
No caso da escrita, o mais importante é favorecer situações em que as crian-
ças possam pensar sobre como se escreve uma palavra (um texto), usando de modo
autônomo os recursos que possuem (outras palavras escritas na sala, os seus nomes,
o amigo com quem podem trocar informações etc.). Trata-se de conciliar o desafio
de produzir sentido no que se escreve com o desafio inerente ao código escrito.
A partir dos estudos de Ferreiro e Teberosky (1991), podemos dizer que
há uma progressão nas hipóteses que as crianças fazem sobre como se escreve;
hipóteses que se desenvolvem no contexto de suas interações com o meio social
letrado. Essa progressão não é linear, mas indica os principais momentos através
dos quais a criança vai buscando registrar suas ideias no papel.
Em linhas gerais, primeiramente, ela discrimina desenho de escrita. Muitas
vezes, encontramos em seus desenhos “cobrinhas” ou “tracinhos” que ela indica
como sendo “o escrito”. Em seguida, começa a usar letras convencionais mistura-
das aos desenhos para identificar escritos (à medida que vai conhecendo as letras
no seu dia a dia). Quando começa a formar palavras, geralmente acredita que para
representar um objeto grande deve colocar muitas letras e, para um objeto peque-
no, poucas letras (a representação apresenta-se colada no objeto). Acontece uma
mudança qualitativa fundamental na expressão escrita quando a criança começa
a relacionar as grafias das letras com os sons delas (não mais com a qualidade/
característica dos objetos). Inicialmente, para cada som ela coloca uma grafia (por

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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática

exemplo, para escrever dedo, pode fazer eo). Pouco a pouco, de acordo com os
desafios que for enfrentando, no contato com outros escritos e no contexto social,
essa hipótese é desequilibrada e a criança começa a compreender que a cada fone-
ma correspondem dois ou três sinais gráficos. Do ponto de vista formal e arbitrá-
rio, a compreensão gradativa de que a escrita representa a fala e não as qualidades
dos objetos é uma das mais importantes no processo de construção da escrita.
Essa compreensão constitui-se paulatinamente, na medida que as crianças
convivem com diversos textos. Uma perspectiva muito importante nesse caminho
é a escrita do nome próprio. A identidade da criança e sua inscrição no mundo
passam pelo modo como seu nome é dito e reconhecido no contexto social mais
próximo (na família, na escola etc.). Escrever o próprio nome, reconhecê-lo em
vários lugares, mostrá-lo aos colegas são conquistas ímpares no desenvolvimento
da autoestima e do pertencimento a um grupo. Para além de um desafio no domí-
nio do código (capacidade de representar fonemas nas grafias), a escrita do próprio
nome possibilita um domínio do sentido, numa prática de intenso valor afetivo.
Assim, os nomes das crianças podem estar escritos em fichas e expostos na
sala, possibilitando que o professor convide o grupo a utilizá-los como referência
na escrita de seus nomes nos trabalhos, em um bilhete coletivo etc. Aos poucos,
conforme vão se apropriando da escrita de seus nomes, eles acabam servindo como
referências (ou paradigmas) na escrita de outras palavras. Por exemplo, se a Beatriz
quer escrever a palavra bebê, pode usar o início do seu nome para ajudá-la.
Além do nome próprio, a escrita de listas de bichos que gostamos, lugares
que queremos visitar, amigos de nossa sala, nome das mães dos elementos do
grupo são conjuntos de palavras repletas de sentido para as crianças. De fato, são
repletas de sentido se forem produzidas em situações significativas, permitindo
tanto a organização coletiva (se queremos organizar uma festa para as mães, ou se
queremos escolher um bicho para fazer uma pesquisa etc.), quanto a reflexão sobre
as diferentes formas gráficas e seus respectivos sons. À medida que as palavras
surgem como possibilidades de escrita significativa, é possível que se possa falá-
-las de modo lento, pensando sobre quais letras utilizar para escrevê-las, é possível
sugerir duplas ou trios para escrevê-las, usando os diferentes saberes do coletivo
como molas propulsoras na conquista do saber por parte de cada um.
Nessas práticas, inicialmente, o professor pode ser o escriba, aquele que
vai registrar as ideias que vêm do grupo, especialmente quando as crianças ainda
estão vivendo o processo de construção do valor sonoro das letras. Ele escreve
uma palavra embaixo da outra e dirige perguntas à turma, favorecendo o acom-
panhamento, pelas crianças, do que está sendo produzido (qual letra vem agora,
onde paramos?). Esse momento, no qual o professor escreve, é sempre momento
de diálogo sobre como a escrita está sendo produzida. Para tal, é necessário que
o conteúdo do que vai ser escrito tenha sido conversado e garantido antes com o
grupo (o que vamos falar e registrar?). Então, na hora do registro, vamos pesqui-
sando “qual letra usar agora? Parece com o nome de qual amigo?”. De qualquer
modo, não podemos deixar de ficar sensíveis ao excesso de perguntas e desafios
quanto à estruturação do código, que podem acabar por esmaecer o prazer e en-
volvimento das crianças com o texto.
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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática

O professor pode funcionar como escriba também em outras situações em


que a escrita emerge como uma necessidade do grupo: escrever um bilhete aos
pais, um aviso para colar na porta da sala, uma história inventada por todos etc.
Em algumas situações, é possível ir pedindo a ajuda da criança, abrindo
espaço para a sua própria escrita. Por exemplo, no texto coletivo, em que o pro-
fessor é o escriba, ele pode deixar espaços para as crianças escreverem algumas
palavras, pode sugerir que elas escrevam o título, o nome dos personagens etc. Ao
mesmo tempo, é possível sugerir que as crianças copiem pequenos textos que são
significativos para elas. Se o conteúdo está dominado e foi tecido coletivamente,
então a forma será produzida, certamente, num exercício de reflexão/apropriação
da correspondência entre grafias e fonemas.
Numa outra direção complementar, quando as crianças começam a aventu-
rar-se na prática da escrita, é importante abrir espaço para que escrevam do seu
jeito, ou “do melhor jeito que puderem”, sobre o que quiserem (nos seus desenhos,
cadernos etc.); ao mesmo tempo desafiamos de forma mais dirigida algumas es-
critas (dos nomes de personagens, títulos etc.), levando em conta que os dois de-
safios são muito intensos (o da forma e o do conteúdo). De modo geral, no início,
quando o desafio proposto pelo professor é que a criança escreva uma história in-
teira, a forma vai ficar prejudicada (a reflexão sobre a relação entre grafia/fonema).
Por isso, a escrita de pequenos textos, ou palavras que tenham um valor de texto,
apresenta-se como caminho interessante.
Um ponto a ser destacado é a potência das atividades coletivas. As crianças
constroem conhecimento na interação com os objetos culturais e com seus pares. Os
diversos saberes que compõem o grupo alimentam-se reciprocamente. Algo que está
plenamente conquistado numa criança apresenta-se como mola propulsora para outra
criança. Portanto, escrever ou ler algo, em dupla ou trio, é sempre um desafio mobili-
zador. Um é o escriba e o outro ajuda a formar o conteúdo, ou então um desenha e o
outro escreve. O fundamental é que a diferença seja catalisadora de aprendizagem.
Nesse caminho, no trabalho de produção de textos desenvolve-se a coe-
são e expressividade na escrita, porque fica garantido o envolvimento afetivo das
crianças. A escrita/reescrita, reconstrução, composição e releitura sistemática dos
textos coletivos vão possibilitando a experiência de enredamento das crianças nos
textos e a sensação de que eles são parte delas, parte de suas vidas comuns.

Desafios e estratégias na leitura de textos


É fundamental garantir satisfação e importância nos momentos de leitura
com as crianças. Para tal, os textos precisam ser claros, mobilizando interesse e
envolvimento por parte dos leitores iniciantes.
É possível e essencial lermos para elas e com elas, assim como apresentar-
mos escuta atenta para suas leituras. Podemos ler para elas e com elas todos os
textos que nos caem nas mãos (de jornais, bilhetes etc.), especialmente os textos
literários que promovem incursão vigorosa no universo do sonho e da fantasia.

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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática

Ler com elas implica permitir que acompanhem a leitura que fazemos, apontando
o texto, perguntando de vez em quando o que acham que está escrito. Possibilitar
que se experimentem como leitoras, mesmo antes de dominarem o código escrito,
envolve a abertura de espaços para leitura de imagens, histórias com ilustrações,
fotografias etc. Uma prática motivadora é a “cadeira do contador de histórias”, em
que uma criança de cada vez pode sentar, tornando-se a narradora de uma história
imaginada por ela ou contada a partir de um livro e suas ilustrações.
Quando o professor possibilita que as crianças “leiam” seus desenhos para
os companheiros, que contem as histórias que esses desenhos apresentam, valori-
zam a dimensão comunicadora e expressiva dos recursos simbólicos criados por
elas. Se as crianças produzem significados que podem ser compartilhados nos
desenhos, vão abrindo espaço para fazer o mesmo pela via da escrita.
Por outro lado, quando se aventuram a dizer o que está escrito em algum
lugar, as crianças utilizam uma série de estratégias que precisam ser consideradas
com atenção, porque vão além da decifração do código. Elas levam em conta o
contexto do texto (forma do portador – jornal, revista etc.), consideram indícios
como as ilustrações, reconhecem palavras ou parte delas, levantando hipóteses
induzidas pelo sentido.
A predição e a inferência são estratégias valiosas no curso da conquista da
leitura e da escrita, particularmente porque são ações de produção de sentido que
se relacionam com o contexto do texto. É preciso valorizar a criança que as utiliza,
mostrando que compreendemos sua lógica, mesmo que o “produto” da leitura ou da
escrita não sejam os “corretos” (por exemplo, quando perguntamos a uma criança
qual o título do livro A vida no zoológico, em que há um leão desenhado na capa, ela
poderá dizer “leão”, o que se justifica plenamente pela estratégia da inferência).
Num outro foco, nas situações de leitura, é pertinente que o professor desa-
fie as crianças tanto no sentido do conhecimento do mundo para a decodificação
(exemplo: o que pode estar escrito nesta placa ou neste jornal?), quanto no sentido
do conhecimento do código na direção de outros elementos (exemplo: de quem
pode ser esse nome se começa com a letra D?). O caminho da pergunta à criança
é sempre instigador, desde que não seja excessivo. Muitas vezes, é válido que o
professor somente leia para a criança. Nesses casos, ela estará aprendendo muito
sobre a postura do leitor e as possibilidades da leitura.
Outra perspectiva sempre interessante é a conversa a respeito das histórias
lidas. Trocar ideias sobre algo que foi lido impulsiona o desenvolvimento de ha-
bilidades linguísticas que se relacionam com a compreensão da leitura, à medida
que se pode apreender o tema e a estrutura do texto, reconstruir relações lógicas e
temporais, reter ideias principais e averiguar a intenção do autor.
Também no plano da leitura, o trabalho com o nome próprio é um foco im-
portante. Há várias formas de sugerir que a criança leia seu nome: embaralhado
com outros nomes, expondo só parte dele e pedindo que digam o que falta, entre
outros. À medida que vai reconhecendo seu nome, nomes de amigos, de familia-
res, entre outras palavras significativas no grupo, constrói paradigmas, ou seja,
referências estáveis, a partir das quais poderá ler outras palavras.
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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática

O trabalho com pequenos textos conhecidos como parlendas, letras de música, cantigas de roda
também é promissor no sentido de propiciar na criança a sensação de “poder ler”. Como já conhece
o conteúdo desses textos de cor, a criança antecipa o que vai estar escrito, sentindo-se potente nesse
movimento. Nesse contexto, ampliar esses textos e colocá-los na parede, assim como recriá-los, mu-
dando palavras (e sentidos) com as crianças, promove a aproximação significativa da leitura.
Ler é interpretar. O leitor participa ativamente da produção de sentidos, na relação com qual-
quer obra. Portanto, promover a leitura no contexto da Educação Infantil é oportunizar às crianças o
exercício da criação e do enlace íntimo entre realidade e fantasia.

1. Você pode observar uma criança entre quatro e cinco anos em situação de leitura e escrita (ten-
tando ler e escrever), anotando quais hipóteses ela apresenta sobre como se lê e como se escreve.
Depois, discuta com seu grupo quais tipos de estratégias de leitura e escrita poderiam levar essa
criança a avançar em suas hipóteses.

Recomendamos a leitura da obra de Sonia Kramer, Por entre as Pedras: Arma e Sonho na Escola,
da Editora Ática, 1993.

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O letramento no cotidiano
da Educação Infantil:
perspectivas para a prática
(poesia e quadrinhos)
Daniela Guimarães
Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero,
uma tendência, um partido, uma obra determinada,
uma pessoa definida, uma geração. [...] Cada palavra
evoca um contexto ou contextos nos quais ela viveu
sua vida socialmente tensa; todas as palavras e
formas são povoadas de intenções. [...] A linguagem
não é um meio neutro que se torne fácil e livremente
a propriedade intencional do falante, ela está povoada
ou superpovoada pelas intenções de outrem. Dominá-la
e submetê-la às próprias intenções e acentos é um
processo difícil e complexo.

Mikhail Bakhtin

N
o trabalho cotidiano com as crianças no contexto da Educação Infantil é fundamental perce-
bermos a forma como as crianças vão se apropriando das palavras que a circulam. Bakhtin
(1998) chama nossa atenção para o processo pelo qual as crianças vão se descolando da for-
ma discursiva do seu meio, formando o que lhes é singular. Tomam o discurso do outro “com aspas”
e vão perdendo as aspas e ganhando um jeito próprio de expressar-se.
Nesse movimento, a qualidade intencional dos discursos, seus tons afetivos, seus universos de
significação são aspectos que marcam a apropriação que a criança faz deles. O mesmo ocorre com
os textos escritos. Eles nascem de situações reais dialógicas ou de iniciativas de explicitação de sen-
timentos e afetos pessoais e vão marcando os textos. Todo o texto lido com as crianças carrega uma
intenção, um sentido que vai sendo recriado também na leitura. Essa qualidade viva da linguagem
não pode ser esquecida!

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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática (poesia e quadrinhos)

Experiências com diversos tipos de texto


A relevância das experiências de leitura e escrita no contexto da Educação
Infantil relaciona-se com a possibilidade de criar nas crianças intimidade com
diversos tipos de texto, ou seja, diversos gêneros de discurso presentes nos textos,
várias formas e conteúdos pelos quais a língua materializa-se na sociedade. Poe-
sia, prosa, texto teatral e história em quadrinhos são alguns exemplos de gêneros
importantes, que devem fazer parte do acervo da escola e da experiência cotidiana
das crianças.
Mais importante do que ler e escrever de fato, é primordial propiciar que a
criança se sinta capaz de ler, experimente a leitura compartilhada com adultos e
outras crianças, debruçando-se sobre variados textos.
Os sentidos que compõem um texto evidenciam-se na sua forma, ou seja, no
seu suporte material (jornal, revista, livro etc.), e também no seu conteúdo, na quali-
dade das palavras, no modo como o discurso se arranja no texto. A intimidade com
formas e conteúdos diferentes é fundamental na formação do leitor e do escritor.
Assim, ter nas mãos e sob os olhos vários tipos de texto, variados gêneros
do discurso, qualifica a experiência da criança como leitora. Na verdade, esse
movimento também vai promovendo acúmulo de experiências com palavras, seus
usos, suas possibilidades significativas, inspirando as crianças na produção de
seus próprios textos, seja tendo o adulto como escriba, seja funcionando como
escritora. Na verdade, a criança produz significados com o corpo, no desenho em
suas relações com os objetos e, posteriormente, ao dominar o código, também
com a escrita, expondo o que tem, recompondo suas experiências acumuladas de
um modo sempre seu, singular e próprio.
Nesse momento, vamos enfatizar possibilidades de trabalho com dois gêneros
diferentes: as poesias e as histórias em quadrinhos – o que elas nos fornecem de
riqueza em termos do trabalho com as crianças na Educação Infantil? Como nos
permitem o mergulho nas formas da língua e na suas possibilidades criadoras?
A poesia que se concretiza nos poemas (afinal, há poesia também em al-
gumas narrativas) é um gênero de qualidade eminentemente expressiva. Muitas
vezes, rompe com normas e regras gramaticais, com formas tradicionais, inven-
tando novos modos de trazer à tona o sentido mais íntimo do poeta. A história em
quadrinhos é um gênero caracteristicamente dialógico, em que se coloca em pri-
meiro plano o cotejo de diferentes pontos de vista, o encontro e o confronto entre
diversos personagens, a polifonia, ou seja, a presença de variadas vozes. Portanto,
ambos são ricos na experiência da criança que ingressa como produtora no mundo
letrado, promovendo diferentes experiências de construção de sentido.

Desafios e encantamentos da poesia


Podemos afirmar que a linguagem poética traz para o primeiro plano as pos-
sibilidades criativas e plásticas da linguagem. As palavras da poesia são marcadas
pelo caráter expressivo da linguagem. Soam como música, às vezes convocando o
corpo a dançar, fazem nascer imagens, inventando novos sentidos para as coisas.
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O letramento no cotidiano da Educação Infantil: perspectivas para a prática (poesia e quadrinhos)

Desembaraçam-se das restrições formais (regras gramaticais etc.), revelando a sub-


jetividade do autor de forma ímpar.
Por isso, trazer a linguagem poética para o cotidiano da criança significa
potencializar o modo de produção inventivo, permitindo o reencontro da palavra
com o movimento, do som com a imagem, muitas vezes enfraquecidos quando
tomamos a linguagem como marca do real, a escrita decodificação de som, de
modo instrumental.
O poeta José Paulo Paes colabora na elaboração dessa compreensão, quan-
do afirma que a poesia promove uma intensificação do sentido das palavras, pos-
sibilitando.
mostrar a perene novidade da vida e do mundo, atiçar o poder de imaginação das pessoas,
libertando-as da mesmice da rotina; fazê-las sentir mais profundamente o significado dos
seres e das coisas, estabelecer entre essas correspondências parentescos inusitados que
apontem para uma misteriosa unidade cósmica; ligar entre si o imaginado e o vivido; o
sonho e a realidade como partes igualmente importantes de nossa experiência de vida.
(1996, p. 27)

Mais do que a rima, a poesia se destaca pela repetição de sons semelhantes


em palavras próximas, pelo ritmo dos versos, comparações e oposições de sentido,
ou seja, recursos que dão vivacidade e poderes de sugestão e de sedução à lingua-
gem. Mais do que se aproximar do cotidiano da criança, promovendo relações
com a experiência vivida (o que faz a prosa/narrativa), a poesia tende a chamar a
atenção da criança para as surpresas que podem estar escondidas na língua, para
a possibilidade de subverter as regras.
Trata-se de descobrir novas possibilidades para palavras já conhecidas, ex-
plorar caminhos inusitados entre elas. Na poesia, é possível dizer algo ao contrário
do que é na realidade, criar efeitos novos para elementos já conhecidos, realizar a
produção do “novo” como recriação do “velho”, tal como propõe Vygotsky (1987).
Dessa forma, podemos perceber a conexão estreita entre as poesias e a dan-
ça, por exemplo, à medida que a leitura de algumas sugerem movimentos e ritmos,
ou a conexão com produção plástica, à medida que alguns objetos e pinturas suge-
rem poesias e essas mobilizam produção de imagens.
Enfim,
quando a criança se apropria da linguagem, revelando seu potencial expressivo e criativo,
ela rompe com as formas fossilizadas e cristalizadas de seu uso cotidiano, iniciando um
diálogo mais profundo entre os limites do conhecimento e da verdade na compreensão do
real. (SOUZA, 1994, p. 159)

O diálogo da criança com a poesia possibilita essa aventura estética e criati-


va, pois provoca uma aproximação do belo e das emoções que ele suscita, à medi-
da que as coisas e acontecimentos comuns aparecem de maneira nova e palavras
também comuns associam-se de modo imprevisto para gerar efeitos de surpresa,
de beleza e de humor.
Lidar com os poemas no dia a dia com as crianças possibilita que as pala-
vras disponíveis na língua possam ser experimentadas em sua abertura e não só
como palavras autoritárias. Por isso é que a escuta de poemas suscita a produção
de poemas por parte das próprias crianças.
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Desafios e encantamentos das histórias


em quadrinhos
O trabalho com as histórias em quadrinhos é relevante na medida em que,
hoje, o quadrinho é uma forma de expressão importante na nossa cultura, partici-
pando intensamente do universo da criança. Por um lado, é um tipo de texto carac-
terizado pela presença da ação, pela velocidade, simultaneidade de acontecimentos
etc. Ao mesmo tempo, é uma forma de registro que mobiliza relações específicas
entre o tempo e o espaço (por exemplo, como representar diálogos e pensamentos ao
mesmo tempo, como conjugar narrativa e diálogo num mesmo quadro?). Num pro-
jeto que envolve a leitura de quadrinhos já existentes e a invenção de personagens,
histórias e a produção de quadrinhos por parte das crianças, estão presentes diversas
dimensões da relação entre pensamento, palavra, escrita e desenho.
De acordo com Vygotsky (1991), podemos dizer que a fala da criança or-
ganiza o seu pensamento, ou seja, à medida que se expressa oralmente, contando
suas experiências ou inventando uma história, a criança elabora os acontecimen-
tos; estrutura início, meio e fim; percebe e preenche lacunas; estende e amplia
seu discurso. Na fala exterior, comunicativa, é necessário colocar em jogo a pro-
dução de significado para a compreensão do outro; portanto, a extensão da fala
se presentifica, assim como a coerência e a organização mais minuciosa. A fala
interior, no movimento de formação do pensamento, é abreviada; sendo que para
si mesmo, para uma organização pessoal, pode ser lacunar e fragmentada. O que
torna necessária a ampliação da linguagem é sua função social que se expõe no
momento da necessidade de comunicação.
Assim, contar sobre os personagens de uma possível história, inventar mora-
dias, características e cenas que os incluem implica em trabalhar a concretização
da linguagem e a estruturação do pensamento, ao mesmo tempo. Produzir con-
textos significativos para dar vida aos personagens, inventar cenários para suas
interações, torná-los coerentes é sempre um trabalho importante em um projeto
que envolva a produção de quadrinhos. A fala e o desenho trazem expressão, cor
e vida aos seres imaginados pelas crianças.
Também de acordo com Vygotsky (1991), a escrita guarda relação com a
fala na medida em que são recursos de comunicação com o outro e, dessa forma,
trazem em cena também a demanda pela extensão. A escrita é uma forma de fala
mais elaborada. Na ausência dos suportes situacionais e expressivos, abundantes
na fala oral, a escrita exige rigor na combinação das palavras, o que explica tam-
bém a necessidade dos rascunhos, o planejamento que revela o processo mental
(mais conciso, rápido, lacunar) desencadeador do texto.
No processo de produção com as crianças é sempre necessário passar pelo
momento da construção do texto escrito, em forma de narrativa, antes da constitui-
ção dos diálogos dentro dos quadrinhos. Na verdade, organizar a história implica em
falá-la, desenhá-la, escrevê-la, representá-la dramaticamente, viver “na pele” os per-
sonagens para, então, lidar com a estruturação característica dos quadrinhos. Só após
a extensão é possível condensar, dizer de forma concisa, própria dos quadrinhos.

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De acordo com Rushkoff (1999), nas histórias em quadrinhos podemos perceber que a escrita
e o desenho ganham características peculiares. Para muitos adultos, os quadrinhos parecem simpli-
ficados e primitivos, mas são essas características que permitem a participação ativa dos leitores e a
manipulação intencional de tempo e espaço pelos autores-artistas. Essa nova composição do registro,
essa forma de contar histórias, em quadros, produz novos modos de expressão, novas relações entre
pensamento e registro.
Nos quadrinhos é importante ressaltar as mudanças na história, as emoções e locações dos aconte-
cimentos. Paralelamente, em vez dos traços descritivos, a representação icônica é preponderante, ou seja,
são mais constantes imagens que condensam a informação, permitindo que ela possa ser rapidamente
vista e entendida. As representações icônicas libertam os quadrinhos da forma linear de contar histórias,
possibilitando o contato com novas formas de compreender o mundo.
Temos situações em que, num mesmo quadro, alguém pensa e outro fala, ou dois personagens fa-
lam, ou seja, um tempo extenso que se passa num único espaço. Ou ainda, podemos ter um quadro em que
um personagem tem uma ideia e só no outro quadro haverá a ação, isto é, o tempo se estendeu. Na verda-
de, os quadrinhos permitem novas e maleáveis relações entre espaço e tempo, pensamento e registro.
Portanto, em um projeto de produção de quadrinhos, é fundamental que possamos viver vários
momentos de produção: o mergulho com as crianças em histórias em quadrinhos já existentes; a in-
venção de personagens próprios, cenas e histórias desses “seres” (faladas e desenhadas); a produção
de textos escritos e narrativos sobre suas histórias; a invenção de diálogos e, por fim, o desafio de
produzir o formato quadrinhos com as crianças. Isso significa que passamos por diversos modos de
relação entre pensamento e palavra, forma e conteúdo, tempo e espaço, permitindo que as crianças
possam lidar proximamente com eles na produção de seus significados.

1. Reúna histórias em quadrinhos, lendo-as coletivamente. Depois, discuta com seu grupo quais
suas peculiaridades e o que caracteriza esse gênero discursivo: por que ele é interessante de ser
trabalhado com quem está aprendendo a ler e escrever?

2. Reúna poesias de Cecília Meireles ou José Paulo Paes: como é caracterizada a forma do texto?
E o conteúdo? O que seria interessante de trabalhar com quem está começando a ler e escrever?
Como? Por quê?

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Recomendamos a leitura das seguintes obras:


PAES, José Paulo. Poesia para Crianças. São Paulo: Giordano, 1996.
RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

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Editora, 2001.
BARROS, Manuel de. O menino que carregava água na peneira. In: _____. Exercício de Ser Crian-
ça. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
_____. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992a.
_____. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec, 1998.
_____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992b.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1993.
_____. Obras escolhidas II: rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
_____. Obras escolhidas II: rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1992.
BONDIOLI, Anna; MANTOVANI, Suzanna. Manual de Educação Infantil: de 0 a 3 anos. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1998.
BRAIT, Beth (Org.). Bahktin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
BRITO, Luiz Percival. Leitor interditado. In: MARINHO, M.; SILVA, C. (Org.). Leitura do Profes-
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BRITO, Luís Percival. A criança não é tola. In: PAULINO, Graça (Org.). O Jogo do Livro Infantil.
Belo Horizonte: Dimensão, 1997.
CORSINO, Patricia. Alfabetização não tem receita, mas tem princípios. In: KRAMER, Sonia (Org.).
Educação Infantil: catálogo de documentos, pesquisas, monografias, textos de apoio e projetos de
extensão. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2003. 1 CD-ROM.
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de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003. Tese (Doutorado em Educação) – Departamento de Educação, Pon-
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KRAMER, Sonia (Org.). Educação Infantil: catálogo de documentos, pesquisas, monografias, textos
de apoio e projetos de extensão. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2003. 1 CD-ROM.
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DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das
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ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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LENTIN, Laurence. Du Parler au Lire. Paris: Les Editions E. S. F., 1978.
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Anotações

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c ativ a da
Ed u
Prática ortuguesa
Língua P ntil
a çã o In fa
Prática Educativa da na Edu c

Prát ica Educat iva da Língua Port uguesa na Educação Infant il


Língua Portuguesa
na Educação Infantil

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-3078-1

Daniela Guimarães
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