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Jacques Delors

In’am Al-Mufti • Isao Amagi • Roberto Carneiro •


Fay Chung • Bronislaw Geremek • William Gorham
• Aleksandra Kornhauser • Michael Manley •
Marisela Padrón Quero • Marie-Angélique Savané
• Karan Singh • Rodolfo Stavenhagen • Myong Won Suhr
• Zhou Nanzhao

EDUCAÇÃO
UM TESOURO A DESCOBRIR
Relatório para a UNESCO da
Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI

CORTEZ UNESCO MEC


Ministério da Educação
e do Desporto
Título original: LEARNING: THE TREASURE WITHIN
Report to Unesco of the International Commission on Education for the Twenty-first Century

Capa: DAC
Tradução: José Carlos Eufrázio
Preparação da edição brasileira: Maria Alves Muller
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida, Eliana Martins
Composição: Dany Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

ISBN: 85-249-0673-1

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa
do editor

© UNESCO 1996
© UNESCO/Edições ASA 1996 for the first Portuguese edition
© UNESCO/Edições ASA/Cortez 1997 for the Brazilian edition

Direitos para esta edição

CORTEZ EDITORA
Rua Bartira, 387 — Tel.: (011) 864-0111
05009-000 — São Paulo-SP

UNESCO no Brasil
SAS Quadra 5 — Bloco H lote 6 Ed. CNPq/IBICT/UNESCO 9º and.
70070-914 — Brasília-DF

Impresso no Brasil — janeiro de 1998

4
CAPÍTULO 4

OS QUATRO PILARES DA EDUCAÇÃO

Dado que oferecerá meios, nunca antes disponíveis, para a


circulação e armazenamento de informações e para a comunicação,
o próximo século submeterá a educação a uma dura obrigação
que pode parecer, à primeira vista, quase contraditória. A educação
deve transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais
saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva,
pois são as bases das competências do futuro. Simultaneamente,
compete-lhe encontrar e assinalar as referências que impeçam as
pessoas de ficar submergidas nas ondas de informações, mais ou
menos efêmeras, que invadem os espaços públicos e privados e
as levem a orientar-se para projetos de desenvolvimento individuais
e coletivos. À educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas
de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo
tempo, a bússola que permita navegar através dele.
Nesta visão prospectiva, uma resposta puramente quantitativa
à necessidade insaciável de educação — uma bagagem escolar cada
vez mais pesada — já não é possível nem mesmo adequada. Não
basta, de fato, que cada um acumule no começo da vida uma
determinada quantidade de conhecimentos de que possa abastecer-se
indefinidamente. É, antes, necessário estar à altura de aproveitar
e explorar, do começo ao fim da vida, todas as ocasiões de atualizar,
aprofundar e enriquecer estes primeiros conhecimentos, e de se
adaptar a um mundo em mudança.
Para poder dar resposta ao conjunto das suas missões, a
educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens

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fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo
para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer,
isto é adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer,
para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos,
a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades
humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as
três precedentes. É claro que estas quatro vias do saber constituem
apenas uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de
contato, de relacionamento e de permuta.
Mas, em regra geral, o ensino formal orienta-se, essencialmente,
se não exclusivamente, para o aprender a conhecer e, em menor
escala, para o aprender a fazer. As duas outras aprendizagens
dependem, a maior parte das vezes, de circunstâncias aleatórias
quando não são tidas, de algum modo, como prolongamento natural
das duas primeiras. Ora, a Comissão pensa que cada um dos
“quatro pilares do conhecimento” deve ser objeto de atenção igual
por parte do ensino estruturado, a fim de que a educação apareça
como uma experiência global a levar a cabo ao longo de toda a
vida, no plano cognitivo como no prático, para o indivíduo enquanto
pessoa e membro da sociedade.
Desde o início dos seus trabalhos que os membros da Comissão
compreenderam que seria indispensável, para enfrentar os desafios
do próximo século, assinalar novos objetivos à educação e, portanto,
mudar a idéia que se tem da sua utilidade. Uma nova concepção
ampliada de educação devia fazer com que todos pudessem des-
cobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial criativo — revelar o
tesouro escondido em cada um de nós. Isto supõe que se ultrapasse
a visão puramente instrumental da educação, considerada como a
via obrigatória para obter certos resultados (saber-fazer, aquisição
de capacidades diversas, fins de ordem econômica), e se passe a
considerá-la em toda a sua plenitude: realização da pessoa que,
na sua totalidade, aprende a ser.

Aprender a conhecer

Este tipo de aprendizagem que visa não tanto a aquisição de


um repertório de saberes codificados, mas antes o domínio dos
próprios instrumentos do conhecimento pode ser considerado, si-
multaneamente, como um meio e como uma finalidade da vida

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humana. Meio, porque se pretende que cada um aprenda a com-
preender o mundo que o rodeia, pelo menos na medida em que
isso lhe é necessário para viver dignamente, para desenvolver as
suas capacidades profissionais, para comunicar. Finalidade, porque
seu fundamento é o prazer de compreender, de conhecer, de
descobrir. Apesar dos estudos sem utilidade imediata estarem
desaparecendo, tal a importância dada atualmente aos saberes
utilitários, a tendência para prolongar a escolaridade e o tempo
livre deveria levar os adultos a apreciar, cada vez mais, as alegrias
do conhecimento e da pesquisa individual. O aumento dos saberes,
que permite compreender melhor o ambiente sob os seus diversos
aspectos, favorece o despertar da curiosidade intelectual, estimula
o sentido crítico e permite compreender o real, mediante a aquisição
de autonomia na capacidade de discernir. Deste ponto de vista,
há que repeti-lo, é essencial que cada criança, esteja onde estiver,
possa ter acesso, de forma adequada, às metodologias científicas
de modo a tornar-se para toda a vida “amiga da ciência”1. Em
nível do ensino secundário e superior, a formação inicial deve
fornecer a todos os alunos instrumentos, conceitos e referências
resultantes dos avanços das ciências e dos paradigmas do nosso
tempo.
Contudo, como o conhecimento é múltiplo e evolui infinita-
mente, torna-se cada vez mais inútil tentar conhecer tudo e, depois
do ensino básico, a omnidisciplinaridade é um engodo. A espe-
cialização, porém, mesmo para futuros pesquisadores, não deve
excluir a cultura geral. “Um espírito verdadeiramente formado,
hoje em dia, tem necessidade de uma cultura geral vasta e da
possibilidade de trabalhar em profundidade determinado número
de assuntos. Deve-se, do princípio ao fim do ensino, cultivar,
simultaneamente, estas duas tendências”2. A cultura geral, enquanto
abertura a outras linguagens e outros conhecimentos permite, antes
de tudo, comunicar-se. Fechado na sua própria ciência, o especialista
corre o risco de se desinteressar pelo que fazem os outros. Sentirá
dificuldade em cooperar, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Por outro lado, a formação cultural, cimento das sociedades no
tempo e no espaço, implica a abertura a outros campos do conhe-

1. Relatório da terceira sessão da Comissão, Paris, 12-15 de janeiro de 1994.


2. Conforme Laurent Schwartz: “L’enseignement scientifique” in Instituto de França. Réflexions
sur l’enseignement, Paris, Flammarion, 1993.

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cimento e, deste modo, podem operar-se fecundas sinergias entre
as disciplinas. Especialmente em matéria de pesquisa, determinados
avanços do conhecimento dão-se nos pontos de interseção das
diversas áreas disciplinares.
Aprender para conhecer supõe, antes tudo, aprender a apren-
der, exercitando a atenção, a memória e o pensamento. Desde a
infância, sobretudo nas sociedades dominadas pela imagem tele-
visiva, o jovem deve aprender a prestar atenção às coisas e às
pessoas. A sucessão muito rápida de informações mediatizadas, o
“zapping” tão freqüente, prejudicam de fato o processo de desco-
berta, que implica duração e aprofundamento da apreensão. Esta
aprendizagem da atenção pode revestir formas diversas e tirar
partido de várias ocasiões da vida (jogos, estágios em empresas,
viagens, trabalhos práticos de ciências...).
Por outro lado, o exercício da memória é um antídoto necessário
contra a submersão pelas informações instantâneas difundidas pelos
meios de comunicação social. Seria perigoso imaginar que a memória
pode vir a tornar-se inútil, devido à enorme capacidade de arma-
zenamento e difusão das informações de que dispomos daqui em
diante. É preciso ser, sem dúvida, seletivo na escolha dos dados
a aprender “de cor” mas, propriamente, a faculdade humana de
memorização associativa, que não é redutível a um automatismo,
deve ser cultivada cuidadosamente. Todos os especialistas concor-
dam em que a memória deve ser treinada desde a infância, e que
é errado suprimir da prática escolar certos exercícios tradicionais,
considerados como fastidiosos.
Finalmente, o exercício do pensamento ao qual a criança é
iniciada, em primeiro lugar, pelos pais e depois pelos professores,
deve comportar avanços e recuos entre o concreto e o abstrato.
Também se devem combinar, tanto no ensino como na pesquisa,
dois métodos apresentados, muitas vezes, como antagônicos: o
método dedutivo por um lado e o indutivo por outro. De acordo
com as disciplinas ensinadas, um pode ser mais pertinente do que
outro, mas na maior parte das vezes o encadeamento do pensamento
necessita da combinação dos dois.
O processo de aprendizagem do conhecimento nunca está
acabado, e pode enriquecer-se com qualquer experiência. Neste
sentido, liga-se cada vez mais à experiência do trabalho, à medida
que este se torna menos rotineiro. A educação primária pode ser
considerada bem-sucedida se conseguir transmitir às pessoas o

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impulso e as bases que façam com que continuem a aprender ao
longo de toda a vida, no trabalho, mas também fora dele.

Aprender a fazer

Aprender a conhecer e aprender a fazer são, em larga medida,


indissociáveis. Mas a segunda aprendizagem está mais estreitamente
ligada à questão da formação profissional: como ensinar o aluno
a pôr em prática os seus conhecimentos e, também, como adaptar
a educação ao trabalho futuro quando não se pode prever qual
será a sua evolução? É a esta última questão que a Comissão
tentará dar resposta mais particularmente.
Convém distinguir, a este propósito, o caso das economias
industriais onde domina o trabalho assalariado do das outras
economias onde domina, ainda em grande escala, o trabalho in-
dependente ou informal. De fato, nas sociedades assalariadas que
se desenvolveram ao longo do século XX, a partir do modelo
industrial, a substituição do trabalho humano pelas máquinas
tornou-o cada vez mais imaterial e acentuou o caráter cognitivo
das tarefas, mesmo na indústria, assim como a importância dos
serviços na atividade econômica. O futuro destas economias de-
pende, aliás, da sua capacidade de transformar o progresso dos
conhecimentos em inovações geradoras de novas empresas e de
novos empregos. Aprender a fazer não pode, pois, continuar a ter
o significado simples de preparar alguém para uma tarefa material
bem determinada, para fazê-lo participar no fabrico de alguma
coisa. Como conseqüência, as aprendizagens devem evoluir e não
podem mais ser consideradas como simples transmissão de práticas
mais ou menos rotineiras, embora estas continuem a ter um valor
formativo que não é de desprezar.

Da noção de qualificação à noção de competência

Na indústria especialmente para os operadores e os técnicos,


o domínio do cognitivo e do informativo nos sistemas de produção,
torna um pouco obsoleta a noção de qualificação profissional e
leva a que se dê muita importância à competência pessoal. O
progresso técnico modifica, inevitavelmente, as qualificações exigi-
das pelos novos processos de produção. As tarefas puramente

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físicas são substituídas por tarefas de produção mais intelectuais,
mais mentais, como o comando de máquinas, a sua manutenção
e vigilância, ou por tarefas de concepção, de estudo, de organização
à medida que as máquinas se tornam, também, mais “inteligentes”
e que o trabalho se “desmaterializa”.
Este aumento de exigências em matéria de qualificação, em
todos os níveis, tem várias origens. No que diz respeito ao pessoal
de execução a justa posição de trabalhos prescritos e parcelados
deu lugar à organização em “coletivos de trabalho” ou “grupos
de projeto”, a exemplo do que se faz nas empresas japonesas: uma
espécie de taylorismo ao contrário. Por outro lado, à indiferenciação
entre trabalhadores sucede a personalização das tarefas. Os em-
pregadores substituem, cada vez mais, a exigência de uma quali-
ficação ainda muito ligada, a seu ver, à idéia de competência
material, pela exigência de uma competência que se apresenta
como uma espécie de coquetel individual, combinando a qualifi-
cação, em sentido estrito, adquirida pela formação técnica e pro-
fissional, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em
equipe, a capacidade de iniciativa, o gosto pelo risco.
Se juntarmos a estas novas exigências a busca de um com-
promisso pessoal do trabalhador, considerado como agente de
mudança, torna-se evidente que as qualidades muito subjetivas,
inatas ou adquiridas, muitas vezes denominadas “saber-ser” pelos
dirigentes empresariais, se juntam ao saber e ao saber-fazer para
compor a competência exigida — o que mostra bem a ligação que
a educação deve manter, como aliás sublinhou a Comissão, entre
os diversos aspectos da aprendizagem. Qualidades como a capa-
cidade de comunicar, de trabalhar com os outros, de gerir e de
resolver conflitos, tornam-se cada vez mais importantes. E esta
tendência torna-se ainda mais forte, devido ao desenvolvimento
do setor de serviços.

A “desmaterialização” do trabalho e a importância dos serviços entre


as atividades assalariadas

As conseqüências sobre a aprendizagem da “desmaterialização”


das economias avançadas são particularmente impressionantes se
se observar a evolução quantitativa e qualitativa dos serviços. Este
setor, muito diversificado, define-se sobretudo pela negativa, não

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são nem industriais nem agrícolas e que, apesar da sua diversidade,
têm em comum o fato de não produzirem um bem material.
Muitos serviços definem-se, sobretudo, em função da relação
interpessoal a que dão origem. Podem encontrar-se exemplos disso
tanto no setor mercantil que prolifera, alimentando-se da comple-
xidade crescente das economias (especialidades muito variadas,
serviços de acompanhamento e de aconselhamento tecnológico,
serviços financeiros, contabilísticos ou de gestão), como no setor
não comercial mais tradicional (serviços sociais, ensino, saúde etc.).
Em ambos os casos, as atividades de informação e comunicação
são primordiais; dá-se prioridade à coleta e tratamento personalizado
de informações específicas para determinado projeto. Neste tipo
de serviços, a qualidade da relação entre prestador e usuário
depende, também muito, deste último. Compreende-se, pois, que
o trabalho em questão já não possa ser feito da mesma maneira
que quando se trata de trabalhar a terra ou de fabricar um tecido.
A relação com a matéria e a técnica deve ser completada com a
aptidão para as relações interpessoais. O desenvolvimento dos
serviços exige, pois, cultivar qualidades humanas que as formações
tradicionais não transmitem, necessariamente e que correspondem
à capacidade de estabelecer relações estáveis e eficazes entre as
pessoas.
Finalmente, é provável que nas organizações ultratecnicistas
do futuro os déficits relacionais possam criar graves disfunções
exigindo qualificações de novo tipo, com base mais comportamental
do que intelectual. O que pode ser uma oportunidade para os não
diplomados, ou com deficiente preparação em nível superior. A
intuição, o jeito, a capacidade de julgar, a capacidade de manter
unida uma equipe não são de fato qualidades, necessariamente,
reservadas a pessoas com altos estudos. Como e onde ensinar estas
qualidades mais ou menos inatas? Não se podem deduzir sim-
plesmente os conteúdos de formação, das capacidades ou aptidões
requeridas. O mesmo problema põe-se, também, quanto à formação
profissional, nos países em desenvolvimento.

O trabalho na economia informal

Nas economias em desenvolvimento, onde a atividade assa-


lariada não é dominante, a natureza do trabalho é muito diferente.
Em muitos países da África subsaariana e em alguns países da

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América Latina e da Ásia, efetivamente, só uma pequena parte da
população tem emprego e recebe salário, pois a grande maioria
participa na economia tradicional de subsistência. Não existe, ri-
gorosamente falando, referencial de emprego; as competências são,
muitas vezes, de tipo tradicional. Por outro lado, a aprendizagem
não se destina, apenas, a um só trabalho mas tem como objetivo
mais amplo preparar para uma participação formal ou informal
no desenvolvimento. Trata-se, freqüentemente, mais de uma qua-
lificação social do que de uma qualificação profissional.
Noutros países em desenvolvimento existe, ao lado da agri-
cultura e de um reduzido setor formal, um setor de economia ao
mesmo tempo moderno e informal, por vezes bastante dinâmico,
à base de artesanato, de comércio e de finanças que revela a
existência de uma capacidade empreendedora bem adaptada às
condições locais.
Em ambos os casos, após numerosas pesquisas levadas a cabo
em países em desenvolvimento, apercebemo-nos que encaram o
futuro como estando estreitamente ligado à aquisição da cultura
científica que lhes dará acesso à tecnologia moderna, sem negli-
genciar com isso as capacidades específicas de inovação e criação
ligadas ao contexto local.
Existe uma questão comum aos países desenvolvidos e em
desenvolvimento: como aprender a comportar-se, eficazmente, numa
situação de incerteza, como participar na criação do futuro?

Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros

Sem dúvida, esta aprendizagem representa, hoje em dia, um


dos maiores desafios da educação. O mundo atual é, muitas vezes,
um mundo de violência que se opõe à esperança posta por alguns
no progresso da humanidade. A história humana sempre foi con-
flituosa, mas há elementos novos que acentuam o perigo e, espe-
cialmente, o extraordinário potencial de autodestruição criado pela
humanidade no decorrer do século XX. A opinião pública, através
dos meios de comunicação social, torna-se observadora impotente
e até refém dos que criam ou mantêm os conflitos. Até agora, a
educação não pôde fazer grande coisa para modificar esta situação
real. Poderemos conceber uma educação capaz de evitar os conflitos,

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ou de os resolver de maneira pacífica, desenvolvendo o conheci-
mento dos outros, das suas culturas, da sua espiritualidade?
É de louvar a idéia de ensinar a não-violência na escola,
mesmo que apenas constitua um instrumento, entre outros, para
lutar contra os preconceitos geradores de conflitos. A tarefa é árdua
porque, muito naturalmente, os seres humanos têm tendência a
supervalorizar as suas qualidades e as do grupo a que pertencem,
e a alimentar preconceitos desfavoráveis em relação aos outros.
Por outro lado, o clima geral de concorrência que caracteriza,
atualmente, a atividade econômica no interior de cada país, e
sobretudo em nível internacional, tem tendência de dar prioridade
ao espírito de competição e ao sucesso individual. De fato, esta
competição resulta, atualmente, numa guerra econômica implacável
e numa tensão entre os mais favorecidos e os pobres, que divide
as nações do mundo e exacerba as rivalidades históricas. É de
lamentar que a educação contribua, por vezes, para alimentar este
clima, devido a uma má interpretação da idéia de emulação.
Que fazer para melhorar a situação? A experiência prova que,
para reduzir o risco, não basta pôr em contato e em comunicação
membros de grupos diferentes (através de escolas comuns a várias
etnias ou religiões, por exemplo). Se, no seu espaço comum, estes
diferentes grupos já entram em competição ou se o seu estatuto
é desigual, um contato deste gênero pode, pelo contrário, agravar
ainda mais as tensões latentes e degenerar em conflitos. Pelo
contrário, se este contato se fizer num contexto igualitário, e se
existirem objetivos e projetos comuns, os preconceitos e a hostilidade
latente podem desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais
serena e até à amizade.
Parece, pois, que a educação deve utilizar duas vias comple-
mentares. Num primeiro nível, a descoberta progressiva do outro.
Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação em
projetos comuns, que parece ser um método eficaz para evitar ou
resolver conflitos latentes.

A descoberta do outro

A educação tem por missão, por um lado, transmitir conhe-


cimentos sobre a diversidade da espécie humana e, por outro,
levar as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da inter-
dependência entre todos os seres humanos do planeta. Desde tenra

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idade a escola deve, pois, aproveitar todas as ocasiões para esta
dupla aprendizagem. Algumas disciplinas estão mais adaptadas a
este fim, em particular a geografia humana a partir do ensino
básico e as línguas e literaturas estrangeiras mais tarde.
Passando à descoberta do outro, necessariamente, pela desco-
berta de si mesmo, e por dar à criança e ao adolescente uma visão
ajustada do mundo, a educação, seja ela dada pela família, pela
comunidade ou pela escola, deve antes de mais ajudá-los a des-
cobrir-se a si mesmos. Só então poderão, verdadeiramente, pôr-se
no lugar dos outros e compreender as suas reações. Desenvolver
esta atitude de empatia, na escola, é muito útil para os compor-
tamentos sociais ao longo de toda a vida. Ensinando, por exemplo,
aos jovens a adotar a perspectiva de outros grupos étnicos ou
religiosos podem-se evitar incompreensões geradoras de ódio e
violência entre os adultos. Assim, o ensino da história das religiões
ou dos costumes pode servir de referência útil para futuros com-
portamentos3.
Por fim, os métodos de ensino não devem ir contra este
reconhecimento do outro. Os professores que, por dogmatismo,
matam a curiosidade ou o espírito crítico dos seus alunos, em vez
de os desenvolver, podem ser mais prejudiciais do que úteis.
Esquecendo que funcionam como modelos, com esta sua atitude
arriscam-se a enfraquecer por toda a vida nos alunos a capacidade
de abertura à alteridade e de enfrentar as inevitáveis tensões entre
pessoas, grupos e nações. O confronto através do diálogo e da
troca de argumentos é um dos instrumentos indispensáveis à
educação do século XXI.

Tender para objetivos comuns

Quando se trabalha em conjunto sobre projetos motivadores


e fora do habitual, as diferenças e até os conflitos interindividuais
tendem a reduzir-se, chegando a desaparecer em alguns casos.
Uma nova forma de identificação nasce destes projetos que fazem
com que se ultrapassem as rotinas individuais, que valorizam
aquilo que é comum e não as diferenças. Graças à prática do
desporto, por exemplo, quantas tensões entre classes sociais ou

3. Carnegie Corporation of New York. Education for Conflict Resolution (Retirado de Annual
Report 1994 por David A. Hamburg, presidente da Carnegie Corporation of New York).

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nacionalidades se transformaram, afinal, em solidariedade através
da experiência e do prazer do esforço comum! E no setor laboral
quantas realizações teriam chegado a bom termo se os conflitos
habituais em organizações hierarquizadas tivessem sido transcen-
didos por um projeto comum!
A educação formal deve, pois, reservar tempo e ocasiões
suficientes em seus programas para iniciar os jovens em projetos
de cooperação, logo desde a infância, no campo das atividades
desportivas e culturais, evidentemente, mas também estimulando
a sua participação em atividades sociais: renovação de bairros,
ajuda aos mais desfavorecidos, ações humanitárias, serviços de
solidariedade entre gerações... As outras organizações educativas
e associações devem, neste campo, continuar o trabalho iniciado
pela escola. Por outro lado, na prática letiva diária, a participação
de professores e alunos em projetos comuns pode dar origem à
aprendizagem de métodos de resolução de conflitos e constituir
uma referência para a vida futura dos alunos, enriquecendo a
relação professor/aluno.

Aprender a ser

Desde a sua primeira reunião, a Comissão reafirmou, energi-


camente, um princípio fundamental: a educação deve contribuir
para o desenvolvimento total da pessoa — espírito e corpo, inte-
ligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal,
espiritualidade. Todo o ser humano deve ser preparado, especial-
mente graças à educação que recebe na juventude, para elaborar
pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios
juízos de valor, de modo a poder decidir, por si mesmo, como
agir nas diferentes circunstâncias da vida.
O relatório Aprender a ser (1972) exprimia, no preâmbulo, o
temor da desumanização do mundo relacionada com a evolução
técnica4. A evolução das sociedades desde então e, sobretudo, o

4. “— Risco de alienação da personalidade patente nas formas obsessivas de propaganda


e publicidade, no conformismo dos comportamentos que podem ser impostos do exterior,
em detrimento das necessidades autênticas e da identidade intelectual e afetiva de cada
um.
— Risco de expulsão pelas máquinas, do mundo do trabalho, no qual a pessoa pelo
menos tinha a impressão de se mover livremente e de decidir por si própria”.
(FAURE, Edgar e outros, Apprendre à être. Relatório da Comissão Internacional sobre o
Desenvolvimento da Educação UNESCO. Paris, Fayard, 1972.)

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enorme desenvolvimento do poder mediático veio acentuar este
temor e tornar mais legítima ainda a injunção que lhe serve de
fundamento. É possível que no século XXI estes fenômenos adquiram
ainda mais amplitude. Mais do que preparar as crianças para uma
dada sociedade, o problema será, então, fornecer-lhes constante-
mente forças e referências intelectuais que lhes permitam com-
preender o mundo que as rodeia e comportar-se nele como atores
responsáveis e justos. Mais do que nunca a educação parece ter,
como papel essencial, conferir a todos os seres humanos a liberdade
de pensamento, discernimento, sentimentos e imaginação de que
necessitam para desenvolver os seus talentos e permanecerem,
tanto quanto possível, donos do seu próprio destino.
Este imperativo não é apenas de natureza individualista: a
experiência recente mostra que o que poderia aparecer, somente,
como uma forma de defesa do indivíduo perante um sistema
alienante ou tido como hostil, é também, por vezes, a melhor
oportunidade de progresso para as sociedades. A diversidade das
personalidades, a autonomia e o espírito de iniciativa, até mesmo
o gosto pela provocação, são os suportes da criatividade e da
inovação. Para reduzir a violência ou lutar contra os diferentes
flagelos que afetam a sociedade os métodos inéditos retirados de
experiências no terreno já deram prova da sua eficácia.
Num mundo em mudança, de que um dos principais motores
parece ser a inovação tanto social como econômica, deve ser dada
importância especial à imaginação e à criatividade; claras manifes-
tações da liberdade humana elas podem vir a ser ameaçadas por
uma certa estandardização dos comportamentos individuais. O
século XXI necessita desta diversidade de talentos e de personali-
dades, mais ainda de pessoas excepcionais, igualmente essenciais
em qualquer civilização. Convém, pois, oferecer às crianças e aos
jovens todas as ocasiões possíveis de descoberta e de experimentação
— estética, artística, desportiva, científica, cultural e social —, que
venham completar a apresentação atraente daquilo que, nestes
domínios, foram capazes de criar as gerações que os precederam
ou suas contemporâneas. Na escola, a arte e a poesia deveriam
ocupar um lugar mais importante do que aquele que lhes é
concedido, em muitos países, por um ensino tornado mais utilitarista
do que cultural. A preocupação em desenvolver a imaginação e a
criatividade deveria, também, revalorizar a cultura oral e os co-
nhecimentos retirados da experiência da criança ou do adulto.

100
Assim a Comissão adere plenamente ao postulado do relatório
Aprender a ser: “O desenvolvimento tem por objeto a realização
completa do homem, em toda a sua riqueza e na complexidade
das suas expressões e dos seus compromissos: indivíduo, membro
de uma família e de uma coletividade, cidadão e produtor, inventor
de técnicas e criador de sonhos”5. Este desenvolvimento do ser
humano, que se desenrola desde o nascimento até à morte, é um
processo dialético que começa pelo conhecimento de si mesmo
para se abrir, em seguida, à relação com o outro. Neste sentido,
a educação é antes de mais nada uma viagem interior, cujas etapas
correspondem às da maturação contínua da personalidade. Na
hipótese de uma experiência profissional de sucesso, a educação
como meio para uma tal realização é, ao mesmo tempo, um
processo individualizado e uma construção social interativa.
É escusado dizer que os quatro pilares da educação, acabados
de descrever, não se apóiam, exclusivamente, numa fase da vida
ou num único lugar. Como se verá no capítulo seguinte, os tempos
e as áreas da educação devem ser repensados, completar-se e
interpenetrar-se de maneira a que cada pessoa, ao longo de toda
a sua vida, possa tirar o melhor partido de um ambiente educativo
em constante ampliação.

Pistas e recomendações

• A educação ao longo de toda a vida baseia-se em quatro


pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver
juntos, aprender a ser.
• Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, sufi-
cientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundi-
dade um pequeno número de matérias. O que também significa:
aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas
pela educação ao longo de toda a vida.
• Aprender a fazer, a fim de adquirir, não somente uma
qualificação profissional mas, de uma maneira mais ampla, com-
petências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas situações
e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer, no âmbito

5. Op. cit., p. XVI.

101
das diversas experiências sociais ou de trabalho que se oferecem
aos jovens e adolescentes, quer espontaneamente, fruto do contexto
local ou nacional, quer formalmente, graças ao desenvolvimento
do ensino alternado com o trabalho.
• Aprender a viver juntos desenvolvendo a compreensão do
outro e a percepção das interdependências — realizar projetos
comuns e preparar-se para gerir conflitos — no respeito pelos
valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
• Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua personalidade
e estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de
autonomia, de discernimento e de responsabilidade pessoal. Para
isso, não negligenciar na educação nenhuma das potencialidades
de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades
físicas, aptidão para comunicar-se.
• Numa altura em que os sistemas educativos formais tendem
a privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento de outras
formas de aprendizagem, importa conceber a educação como um
todo. Esta perspectiva deve, no futuro, inspirar e orientar as
reformas educativas, tanto em nível da elaboração de programas
como da definição de novas políticas pedagógicas.

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